acrobata 6

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GIULIA PEX (ITÁLIA) É ilustradora. Faz, sobretudo, retratos e peças de anatomia. Hoje mora em Milão, mas nasceu em uma pequena aldeia próxima. Estudou fotografia, ilustração e gosta de misturar linguagens. ______________________________


2016 paulo machado

60 anos t

vida

comemoramos sua

com a potência da

poesia

Paulo Machado, no terraço de sua casa, segura registro de uma das ações poéticas. FOTO | GABRIEL TORRES


acrobata . nº 6 . periodicidade semestral

EDITORES

CONCEPÇÃO PROJETO GRÁFICO / LAYOUTMAN DESENHOS/PINTURAS DESTA EDIÇÃO CONSELHO EDITORIAL

TIRAGEM

DISTRIBUIÇÃO / CIRCULAÇÃO

ISSN

dezembro 2016 .

aristides oliveira demetrios galvão thiago e

teresina / PI

editores acrobatas thiago e

giulia pex

adriano lobão aragão aristides oliveira demetrios galvão thiago e

500 exemplares impresso e digital (issuu.com/revistaacrobata) 2318-3500

CONTATOS

aristideset@hotmail.com | demetrios.galvao@yahoo.com.br | thiago1403@hotmail.com


AVANÇAR LUTANDO 2016 foi um ano impactante na história recente brasileira. Depois do golpe parlamentar, agora sofremos sucessivos golpes institucionalizados no desgoverno Temeroso, atacando direitos conquistados. Na resistência, a arte impulsiona uma política selvagem, e enfrentamos o pragmatismo reacionário, as armações antiéticas. Nossas articulações culturais são políticas cotidianas. Atividade social que alarga a percepção dos fatos, das invenções, faz seu investimento no sensível, contra a barbárie. A revista Acrobata chega com mais uma edição e reforça essa luta. Giulia Pex é uma artista visual italiana e ilustra lindamente este número. A entrevista é com o poeta e pesquisador piauiense Paulo Machado. O percurso da entrevista pontuou diversos momentos da sua trajetória, principalmente a relação história e literatura. No universo das artes visuais e cinema, temos Laura Bezerra, discutindo a situação da cultura no Brasil após o comecinho do golpe parlamentar; Rodrigo Araújo, com um texto reflexivo sobre a representação da tortura pós-ditadura militar no filme “Que Bom Te Ver Viva” (1989); o artista jamaicano Paul Lewin e sua relação com as artes plásticas e os seus ancestrais; Neila Rocha Siqueira, falando sobre a animação “Carcará”, do artista visual Arnaldo Albuquerque; e Carol Miag, contribuindo com um ensaio visual. Temos o ensaio do escritor e editor Nathan Matos sobre a obra poética de Orides Fontela. Há também o trabalho primoroso do escritor, tradutor e editor Floriano Martins, apresentando a poesia surrealista nas Américas, seguido da tradução de poetas de diversos países, mostrando um “outro continente”. E ainda um ensaio que narra a relação da artista Cafira Zoé com suas leituras de Roberto Piva, inspiradas no espetáculo “Paranoia”, de Marcello Drummond, montado pelo Teatro Oficina. A seleta de poetas contempla uma pulsação variada. Estão presentes na nossa antologia: Adriane Garcia, Dalila Teles Veras, Reuben da Rocha, Mardônio França, Fabiano Calixto, Airton Sousa, Kilito Trindade e Sofia Mariutti. O processo de criação fica por conta do Guilherme Salgado e sua itinerância poética - projeto de circulação pelo Brasil, viajando em uma Kombi-biblioteca. Em tempos violentos, lembrando um passado indesejado, se faz necessário avançar lutando. O sopro de vida que nos move é cada vez mais forte.



DE


Rizoma vestígios de pegadas nas areias restos d’ossos roídos e d’espinhas António Barahona a infância e a memória da infância, submersa na líquida travessia vez por outra o atlântico deposita ossos datados nas terras do exílio

(a menina antiga recebe os sinais códigos esquecidos legendas para o lembrar – revivências)

a memória da infância é a memória possível (e só à memória cabe recriar) 06

DALILA TELES VERAS (PORTUGAL) Natural do Funchal, Ilha da Madeira, Portugal, (1946), emigrou com a família para o Brasil (São Paulo, Capital), em 1957. Tem mais de uma dezena de livros publicados e acaba de lançar “Setenta: anos, poemas, leitores” (2016). Atua à frente da livraria, editora e espaço cultural Alpharrabio na cidade de Santo André. http://www.dalila.telesveras.nom.br/ _____________________________________________________________


Das mortes da primeira vez que te vi morrer , a lembrança do horror: teu corpo (ainda) morno e nu na pedra fria e a marca da dor num rosto que já não era o teu da segunda vez que te vi morrer , o torpor das exéquias: pesadelo da tarde sem ar sensação de estrangulamento da terceira vez que te vi morrer , o choque e o estranhamento: teu nome citado no templo na oração aos defuntos da última vez que te vi morrer , a dor fina e lancinante: o descarte dos teus pertences a certeza do nunca mais nunca... (a morte também em mim)


A atriz Irene Ravache em papel do filme Que Bom Te Ver Viva (1989) ___________________________________________

“Mas quem vai ver um filme sobre tortura?� 08


RODRIGO ARAÚJO (PI) É historiador, professor, cinéfilo e tem talento pra boemia. _____________________________________________

Uma imagem vale mais do que mil palavras? Eis o questionamento que paira após a leitura do livro Diante da dor dos outros (2003) da escritora e ativista norte-americana Susan Sontag. Em seu último ensaio lançado em vida, Sontag propõe reflexões acerca dos limites da representação das imagens traumáticas de guerra. Sua análise é conduzida dentro de uma perspectiva que problematiza a relação entre fotografia e realidade. Será que uma imagem consegue captar toda realidade do vivido? Até que ponto esta mesma imagem consegue materializar o fato e sensibilizar o outro através do que é exposto? As inquietações de Sontag nos ajudam a pensar as representações da tortura no cinema brasileiro pós-ditadura. Em uma sociedade ainda fragilizada por eventos traumáticos, abordar a dor do outro nem sempre é uma tarefa fácil, tendo em vista a dificuldade de se falar sobre algo que muitas vezes é visto como “constrangedor” pelos olhares insensíveis de alguns. Desta forma, qual seria o limite entre a representação imagética da dor e aquilo que não deve ser exposto? Diante de tal dilema, a cineasta brasileira Lúcia Murat nos apresenta ao filme Que Bom Te Ver Viva (1989). Lúcia nasceu no Rio de Janeiro em 1948. Passou parte de sua juventude dividida entre o curso de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e os debates em torno do movimento dos estudantes, chegando a ser vice-presidente do diretório estudantil daquele curso. Em 1968 participou do congresso da UNE em Ibiúna quando foi presa pela primeira vez. Posteriormente fez parte do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). A cineasta foi presa pela segunda vez em março de 1971. Levada ao DOI-CODI sofreu inúmeras sevícias, tais como choques elétricos em sua língua e vagina; passou horas pendurada no pau-de-arara; teve o corpo tomado por baratas durante as torturas, além de ter sido vítima de violência sexual. Ao que nos parece, o cinema de Lúcia Murat passou a servir como uma espécie de equilíbrio para encarar e retomar a vida. Na década de 1980, anos após sua prisão, Murat iniciou uma intensa terapia para tratar das memórias traumáticas que levava consigo. O filme nasce como resultado deste processo e seria uma forma da cineasta lidar com a própria dor diante da tortura, tornando-se um marco na cinematografia brasileira por ser um dos primeiros filmes a falar abertamente sobre o tema durante o regime civil-militar sem, entretanto, apresentar nenhuma cena explicita de algozes ou pessoas sendo torturadas.


Oscilando entre documentário e ficção, Que Bom Te Ver Viva consegue tocar o espectador através dos depoimentos de oito mulheres que foram torturadas. O filme ganha um tom ficcional através de monólogos que são interpretados pela atriz Irene Ravache. A personagem tem um papel relevante na trama e deve ser observada sob dois pontos de vista. O primeiro deles é o poder de síntese que exerce ao relatar com propriedade as histórias das mulheres que aparecem aos poucos através de seus depoimentos. O segundo é a representação das angústias e questionamentos da diretora que passam a ser materializados na personagem (servindo como uma espécie de alter ego). Ravache representa as inúmeras mulheres que foram torturadas e que aparecem no filme, bem como as diversas outras que passaram pelo infortúnio e que muitas vezes não conseguiam/conseguem falar sobre o tema, seja por vergonha, dor ou receio da rejeição. Ressalto neste ponto a relação da tortura com o universo feminino, não por ser algo tratado pelo filme de forma unilateral, afinal de contas o trauma físico e psicológico independe do sexo ou gênero, mas toco de maneira particular por observar na obra diversos pontos ressaltados nos discursos das depoentes e da personagem. Boa parte das entrevistadas ressalta que a maternidade foi de alguma forma o ponto de partida para a superação da dor. É como se na possibilidade de ser mãe estivesse o sentido para prosseguir com as suas próprias vidas. Ao mesmo tempo em que aborda os diversos depoimentos, o filme estabelece um contraponto com a fala de amigos que lançam o seguinte questionamento: “como depois de tudo ela consegue casar e ter filhos?”, ficando subentendido que, na visão de algumas dessas pessoas, a barbárie da tortura seria insuperável. Como se não bastasse o trauma, está implícito nos discursos uma ideia de que a torturada está condicionada a carregar o martírio da dor pelo resto de suas vidas e qualquer movimento no sentido de superação passa a ser visto com estranhamento. Na mesma perspectiva, perpassa a inquietação da personagem no monólogo que trata sobre os desejos sexuais. Em um tom de intimidade, tocando-se diante do espelho, Ravache expõe os limites entre a tentativa de expor seus desejos através do sexo e a dificuldade de fazê-lo, não necessariamente por si, mas pelo comportamento desconcertante do seu parceiro e, sobretudo, pelos olhares inquisidores da sociedade. 10


Cartaz de Que Bom Te Ver Viva (1989)


Te amo... ai, cara, que saudades eu tenho de você... ai, como eu gosto de trepar com você... você deixa... não se incomoda... nunca me perguntou nada. Eu também não quero dizer como é que foi. Eu finjo que não sofri tortura sexual, você finge que não sabe de nada. Eu finjo, tu finges, nós fingimos. Ah, meu amor, eu adoro você [...] O resto é passado, o resto é violência, o resto acabou. Ah, meu amor, que mentira ‘o que passou, passou’, que mentira... Eu odeio quando vocês dizem que, se fosse com vocês, nunca mais vocês trepariam. Eu gosto de trepar! Por que eu não tenho o direito de gostar? Por que marcaram o meu corpo? Não marcaram não, é só lavar. Não marcaram. Agora o que é insuportável é ver vocês me olharem com esse ar constrangido de quem não sabe como se pode gostar de trepar depois de tudo o que aconteceu.

Ainda no tocante à sexualidade, a personagem trata sobre o medo da rejeição ressaltando que muitas vezes as presas políticas são vistas como mártires. Pensando na possível rejeição com relação ao seu parceiro, a personagem comenta: “acha que não vai mais conseguir trepar comigo porque com mártir não se trepa. É nossa senhora... é Joana D’arc... quem é que trepa com Joana D’arc?” questiona-se em tom de revolta. A dualidade dos sentimentos é uma constante na narrativa. Como se a personagem falasse ao fluxo do pensamento, recorrentemente sentimentos opostos são colocados para transpor a ideia de conflito ao lidar com o tema. Outros assuntos de fundamental relevância são tratados na película. Em um dado momento, Ravache tece uma crítica ao governo brasileiro no que tange à ausência dos julgamentos aos crimes de tortura. Em outro, há uma clara menção aos meios de comunicação que insistiam em reproduzir os discursos do período da ditadura associando a imagem dos guerrilheiros a “terroristas” e tratando alguns torturadores como “médicos”. Há ainda uma crítica aos jornais que comentam de forma irônica o excessivo número de publicações das memórias da esquerda sobre o período, como se houvesse um limite para tais publicações. Ao mencionar o assunto, percebemos uma alusão à disputa pelos espaços de representação das memórias. 12


Angústia e violência no filme Que Bom Te Ver Viva (1989)

A diversidade dos temas que são expostos em Que Bom Te Ver Viva, mais do que um retrato sobre as inquietações do pós-abertura, nos levam a pensar a própria condição humana em inúmeros aspectos. Ao nos depararmos com os depoimentos e o desejo incessante de seguir adiante, passamos a nos questionar sobre as nossas próprias angustias e a forma que lidamos com elas em busca da superação. No processo de empatia com as personagens, somos ao mesmo tempo tomados pelos discursos e de certa forma pelos sentimentos relatados. A necessidade de pensar a tortura como um tema presente, tendo em vista os enraizamentos da violência na sociedade brasileira contemporânea e os constantes casos de violação de direitos humanos, mostra o quanto o filme é atual e talvez o resultado da obra seja a melhor resposta para a pergunta que é feita pelo amigo de uma das entrevistadas. Ao problematizar a relevância naquele momento de roteirizar uma história que abordava como tema central a dor, o amigo de Pupi indagou-se: “mas quem vai ver um filme sobre tortura?”.


você disse porque você não me dá um beijo eu disse esse porquê é separado você disse eu já sei é por que você não gosta de mim eu disse esse porquê é junto porque você não responde a minha pergunta você disse se fosse uma pergunta seria por que você não me dá um beijo? dou sim não eu não estava perguntando eu só estava te editando eu não pedi pra ser editado eu só pedi um beijo se você me beijasse em vez de ficar perguntando eu te beijaria e depois diria que gosto sim e muito por quê? você perguntou e eu não saberia responder 14

SOFIA MARIUTTI (SP) Nasceu em SP em 1987. Formou-se em letras-alemão pela USP e trabalhou até 2016 como editora da Companhia das Letras, onde foi responsável pela reedição das obras de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão, entre outros livros. Traduziu do alemão os livros A orquestra da lua cheia, A visita e Os voos de Thiago. Alguns de seus textos e traduções podem ser lidos nos sites das revistas piauí, bamboo, Osesp, na Folha de SP e no blog da Companhia das Letras. ___________________________________________________


a baleia dá pra ver lá do alto do avião?

o que sente a baleia quando passa o avião?

os iates milionários os veleiros os navios petroleiros as escunas se confundem com as ondas lá do alto do avião

ó universo úmido e azul ó céu salgado quanto desse branco é de espuma quanto é de nuvem quanto é de estrelas que se espelham — constelação cetácea de seres astronômicos? — no filme black fish as orcas são levadas do sea world na costa americana para o loro park numa ilha da espanha de avião

as baleias assassinas nunca matam humanos na natureza só dentro dos parques criados por humanos as orcas na verdade são golfinhos

os cetáceos se conectam por cantos que alcançam centenas de milhares de metros os humanos não se entendem muito bem dizem que de perto ninguém é normal inventaram devices para amar-se de longe a orca no avião será que ouve o canto da orca ancorada no atlântico? a orca no avião será que canta?

ó mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de baleias tristes?


FOTO | INÊS GUERREIRO

O movimento circular na poesia de 16


Orides Fontela Que vem depois? o depois.

NATHAN MATOS (CE) É editor. Formado em Letras pela Universidade Federal do Ceará, com Mestrado em Literatura Comparada. Atualmente é doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi editor da Revista Pechisbeque e da Revista Substânsia. É editor nas editoras Substânsia e Moinhos, e criador do portal literário LiteraturaBr. ___________________________________________

O que é certo? o mais incerto

o indefinido o aberto. (poema inédito)

O que vem depois da vida? O incerto, o aberto. Não se sabe. A poesia diante o enigma da vida é, provavelmente, o indefinido. E essa indefinição perpassa parte da obra de uma poeta que, aos poucos, passa a ser resgatada, seja pela republicação de toda sua obra, seja pela publicação de um livro – O enigma Orides, de Gustavo de Castro, publicado pela Hedra ao final de 2015 – que traça um perfil biográfico incluindo poemas inéditos. 17


Contudo, não pretendo discutir sobre a vida da poeta, mas falar de sua poesia, que traz consigo a incerteza da vida, a fragmentação e a existência de um movimento do existir, que tende a se desenvolver de várias maneiras, e que é representada em seus poemas ora de maneira espiralada, ora de maneira circular. Para o leitor que somente agora tem a chance de saber mais sobre a poesia de Orides, chamo atenção para a existência de uma desarticulação dos processos linguísticos que a poeta realiza e que acabam por evidenciar um jogo de brincar com a palavra, num processo de ressignificação e desmembramento da linguagem. Foi essa brincadeira, por meio do poema “Ludismo”, um dos primeiros poemas publicado em seu livro de estreia, Transposição, que me inseriu na teia orideana:

Quebrar o brinquedo é mais divertido.

As peças são outros jogos: construiremos outro segredo. Os cacos são outros reais antes ocultos pela forma e o jogo estraçalhado se multiplica ao infinito e é mais real que a integridade: mais lúcido. [...] Quebrar o brinquedo ainda é mais brincar.¹

No sentido de fazer existir algo exclusivo naquilo que cria, Orides se utiliza de certos artifícios para dar uma nova significância à forma de como vê o mundo. O seu brinquedo é a palavra, sua diversão é “quebrála”, é realizar cortes entre seu significado e significante para criar outros segredos, outros reais. A palavra, então, acaba por estar submetida ao jogo de brincar da poeta, e que ao ser estraçalhada multiplica-se, potencializa-se ao infinito; seu significado primeiro é deixado de lado para possibilitar a sua ressignificação, o que na poesia orideana ocorre de maneira contínua e incessante. Tal ideia se faz presente nas palavras poéticas orideanas no poema “Transposição”, publicado no livro homônimo, quando, por exemplo, a poeta se utiliza da união de palavras, como “vidaluz” e “coresinstantes”.


Orides parece querer mostrar que, com o uso da palavra poética, “[...] a poesia é um tipo de verdade e uma maneira de explorar a realidade e de procurar o real”,² pois é com a palavra poética que se revelam novos mundos, novas imagens e realidades. É como se a linguagem proporcionasse uma metamorfose de si própria por meio da palavra poética, que, como diria Octavio Paz, “[...] é poesia em estado natural. Cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora. E desse modo é um instrumento mágico, ou seja, algo suscetível de tornar-se outra coisa e de transmutar aquilo em que toca”.³ Isso é o que faz Orides. Por meio de movimentos que parecem querer constituir uma representação do que é a vida, ela proporciona, a partir da palavra poética, a criação de novas realidades fragmentadas, infinitas, que ressignificam e representam a vida. Esse “movimento infinito” deseja desorganizar não apenas a palavra, mas a possibilidade do real, buscando evidenciar as mudanças que existem nos seres e nas coisas, num diálogo direto com o pensamento de Heráclito, quando ele diz “Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo”. Daí, para entender a ideia desses movimentos, é preciso voltar o olhar para alguns pensadores pré-socráticos e buscar compreender a ideia do eterno fluir, ou do fluxo, presente em todas as coisas, como bem apontou Heráclito. Só assim será possível entender mais profundamente a relação existente entre o ser e as coisas que Orides vai tecendo, aos poucos, em sua trama. Por estar em constante diálogo com as ideias de Anaximandro, Heráclito e Parmênides, pode-se dizer que a poesia orideana tem como centro a questão do tempo, a transformação das palavras e uma tensão predominante entre as coisas e os seres, constituídas por meio do uso dos símbolos, o que facilmente é constatado ao longo de sua obra poética. Esse movimento de tensão estaria baseado, provavelmente, no que pensavam os três pré-socráticos. Enquanto Anaximandro sugeria que o tempo está acima de todas as coisas, pois é ele quem determina os acontecimentos; Heráclito defendia a ideia de que o mundo se mantém num eterno movimento, e Parmênides fundamentava que só há um ser único e imóvel. Esses pensamentos divergentes contribuem diretamente para se analisar a presença de uma dupla natureza da poesia orideana, como o ser e o nada, o sujeito e o silêncio, a meditação e a fala. Isso porque o pensamento pré-socrático acaba por enunciar o que permanece invisível aos nossos olhos, e Orides faz isso através da palavra poética em sua poesia. 19


Para uma melhor exemplificação desses movimentos, que ora são circulares, ora são espirais, ora são cíclicos, podemos citar alguns poemas, como Ciclo (II), em que os pássaros surgem como símbolos dos acontecimentos que nunca cessam de acontecer, mas que também não deixam de existir em nossa memória, repetidamente, como o ato de migração, dando-nos uma ideia de circularidade:

Os pássaros retornam sempre e sempre.

O tempo cumpre-se. Constrói-se a evanescente forma ser e ritmo.

Os pássaros retornam. Sempre os pássaros.

A infância volta devagarinho.

Ou em Ode, quando se percebe a ideia de um movimento em espiral que se explicita em ciclos, 4 tendo em seu cerne o questionamento: Haverá fim ou início?

O início? O mesmo fim. O fim? O mesmo início.

Não há fim nem início. Sem história o ciclo dos dias

vive-nos.

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Aqui é possível verificar uma busca da representação da criação poética de Orides Fontela por meio da relação de um movimento em espiral que vê na repetição dos ciclos uma possível existência, configurando assim um movimento cíclico, ilimitado e eterno. Já no poema Círculo, o movimento circular acaba por devorar todas as coisas existentes, estando presente em tudo:

O círculo é astuto: enrola-se envolve-se

autofagicamente.

Depois explode – galáxias! –

abre-se vivo pulsa multiplica-se

divindadecírculo perplexa (perversa?)

o unicírculo devorando tudo.

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À vista disso, pode-se dizer que há nessa poesia um ‘movimento do existir’, que acaba por se compor de um eterno prosseguir e retroceder presente nos seres, na natureza, que nunca cessa e nunca é o mesmo, evidenciando algo contínuo, repetitivo e infinito. Esse ‘movimento do existir’ estaria presente na poesia orideana, no seu eu-lírico, que com sua angústia avança e retrocede perante a morte, a dor, a existência. Existência atuante como um mover contínuo, infinito. É importante dizer que o ‘movimento do existir’, desse modo, não converge com aquele proposto pelo Existencialismo, em que o homem está como cerne da existência. Se, por um instante, nos ativermos à vida dos seres, perceberemos que ele – o movimento do existir – ocorre em vários momentos. O voo dos pássaros, por exemplo, surge como um movimento linear, de ir e vir, mas, que ao levar em consideração o movimento de migração que realizam, pode-se relacionar facilmente a um movimento de ciclo. Todos os pássaros realizam o movimento de voo, que os leva, muitas vezes, em sua vida, a migrar, refletindo assim um movimento cíclico. A própria poeta remonta em sua obra o movimento do voo do pássaro em vários poemas, assim como o desabrochar de uma flor. Movimento esse que não cessa de acontecer, pois o ato de desabrochar pode ser tido como infinito, uma vez que ocorre em todas as rosas. O desabrochar possui um instante de início e fim quando nos atemos a uma rosa em específico, pois uma rosa só poderá desabrochar uma vez em vida. Mas ao apreender o movimento da existência do desabrochar, vê-se que ele não tem início ou fim, já que todas as rosas que já existiram, as que existem e as que existirão possuem o ato do desabrochar. No fluir finito da rosa, assim como no voo finito de um determinado pássaro, há a existência dos movimentos incessantes e repetitivos, que são caros a todos os pássaros, a todas as rosas, o “movimento do existir”, na presença do movimento finito, estaria presente a ideia da circularidade ou da repetição de um movimento possível, que ocorre infinitamente; os pássaros não deixarão de migrar, nem as rosas deixarão de desabrochar. Isso contribui para que seja possível definir a existência de um ritmo circular na poesia de Orides Fontela. Esse ritmo não estaria presente apenas nas referências criadas pela poeta em seus poemas, mas também em toda a sua obra. Ao lermos um poema, temos a impressão que Orides está a nos remeter a um outro poema, e outro, incessantemente, como estivesse sempre apontando para uma próxima leitura necessária, mas que, ao chegar ao final, esse movimento não cessa, ele continua para seu próximo poema, seu próximo livro, é como estivesse a nos remeter ao seu princípio fundador e mantenedor de sua poética.


Como se estivesse a nos dizer que assim como na vida a poesia funciona com movimentos, com ritmos cadenciados, que se repetem, mas nunca são os mesmos. É como se existisse na criação poética da obra orideana uma representação da vida que se interliga, se entremeia, que se repete e não consegue se definir como início nem fim. Provavelmente, não há certeza no que digo, Orides, talvez, não tenha produzido suas obras pensando nisso, mas apenas naquilo que está além dos nossos olhos, o incerto. O indefinido assim se constrói, se solidifica, se faz presente, e não se sabe como, nem quando ou onde ele termina. O que se sabe é que ele se estrutura na presença desse movimento do existir, que através de movimentos que possuem um fluir, seja cíclico, circular ou espiral, se dá de maneira eterna e infinita. E não pense que isso não é possível, pois, como diria Orides Fontela, “Só existe o impossível”.

Notas 1 FONTELA, Orides. Poesia Reunida. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 2 LOPES, Marcos Aparecido. Religião, filosofia e teologia na literatura portuguesa contemporânea: os escritores católicos. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, n. 3, Jan. 2009, p. 1. 3 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 30-31. 4 VILLACA, ALCIDES. Símbolo e acontecimento na poesia de Orides. Estud. av. [online]. 2015, vol.29, n. 85, p. 205.

Referências ANAXIMANDRO. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ANDRADE, Alexandre de Melo. Orides Fontela – a poética do retorno. Revista Darandina. v. 2, n. 2, p. 1-12, junho. 2009. FONTELA, Orides. Nas trilhas do trevo. In: Artes e ofícios da poesia. Organizado por Augusto Massi. Porto Alegre: Artes e ofício, 1991. p. 259. FONTELA, Orides. Sobre a poesia e a filosofia – um depoimento. In: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia e Filosofia. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. HERÁCLITO. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978. LOPES, Marcos Aparecido. O canto e o silêncio na poética de Orides Fontela. Revista Ipotesi (UFJF), v. 12, p. 115-128, 2008. PARMÊNIDES. Fragmentos. In: Vol. Pré-Socráticos, Col. Os Pensadores. Trad. de José América Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978. SUSSEKIND, Flora. “Uma discreta cirurgia da flor” In: Papéis Colados. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1993. VILLACA, ALCIDES. Símbolo e acontecimento na poesia de Orides. Estud. av. [online]. 2015, vol.29, n.85, pp. 295-312.

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MENINA DE CRÔNICA DEPRESSÃO Uma vez um peixe que Estava dentro dela Suicidou-se Pulou para fora De seu pulso No exato momento em que O cortou O pessoal da casa Chegou logo E o costurou À força e novamente

O peixe era alaranjado Tinha um néon E barbatanas de asas

Antes de desmaiar completamente Lembrou-se de que já o tinha visto Na batina do padre e que O peixe significava Uma páscoa E outra vida. 24


PROCISSÃO Deste homem cujo braço direito Acaba de ser amputado Sozinho, a torto nado Espera-se regeneração Histórias de salvação No fundo do mar Lázaros aquáticos Madalenas fluidas Cegos que Finalmente enxergaram Para além das lágrimas

ADRIANE GARCIA (MG) Nascida em Belo Horizonte, em 1973, é historiadora, arte-educadora e atriz. Escreve poesia, contos, livros infantojuvenis e teatro. Publicou os livros de poesia Fábulas para adulto perder o sono (2013), vencedor do prêmio de Literatura do Paraná – Helena Kolody, além de O nome do mundo (2014) e Só, com peixes (2015). Integra o site Escritoras Suicidas. _____________________________________________________

Na água salgada Estrelas mutiladas Ganharam outros Braços.


impressþes sobre a peça paranoia 26

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em 1987, piva aparece em uma gravação caseira no meio do mato. em estado de transe poético, tomado por uma lucidez implacável que tudo transborda e explode - pororoca dos que encontram e deságuam - anuncia os horrores de uma época tomada pelas forças do que ele chamou de uma estética cabaço. eu nasci em 87. em agosto de 87 também morreu o poeta carlos drummond de andrade. nesse mês, como de costume, gosto de encontrar algum poema nunca lido, algo escrito ainda por nascer. em agosto de 2016, marcelo drummond estreou PARANOIA no teat(r)o oficina, incorporando o verbo e o corpo poético de piva, na urgência de um teatro trincheira plugado ao aqui & agora.

CÁFIRA ZOÉ (SP) Jornalista, poeta, colagista e artista visual experimental. Graduada em comunicação social pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), com (trans)formação paralela em Fundamentação Artística pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Atualmente, vive e trabalha no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona percorrendo os ofícios de mídia tática, comunicação & estética, vídeo & makumbas gráficas para imagiários das peças. Sítio: www.lacalletorta.com

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56 segundos de gravação são suficientes pra denúncia de uma política estética de assepsia que, pra piva, havia tomado conta do país - e seria pela carne, alerta, que sentiríamos o empenho das forças de controle e opressão. evitando os riscos de um messianismo obtuso e os melindres de um fanatismo profético, pensemos em cosmologias. em 87, há o alinhamento xamânico de piva ao fio descontínuo do tempo com a clareza afiada dos alucinados.


tente esquecer em que ano estamos/ … 28 anos e um golpe depois, com a ciência dos que sabem e redescobrem, esbarramos, e nos enroscamos, com os tentáculos perversos da estética cabaço. o homem normal, a vida mediana, os burocratas de armário, os gozosos da ordem, os fiscais de orgia, os temerosos da pátria… estão todos unidos pra fazer a involução.

tutti és una cuestion estetica diante do emburrecimento da forma e da procriação dos estados fascistas de ódio, é preciso incorporar piva, e com ele antonin artaud, garcía lorca, passolini, dionísio, as bakantes, baudelaire, oswald de andrade, cacilda becker, hilda hilst, hannah arendt, todos nós e os tantos de nós pra acender o fogo de nossa antropofagia incendiária. a arte e a cultura podem ser encaradas, sem titubear, como faróis para a transfiguração dos modos de existir, espécies de devires fundamentais para subjetividades renovadas. reexistir é preciso, resistir não é preciso/ para contracenar com toda a estética cabaço, contemporânea dos nossos atrasos, e com as matilhas herméticas do cães que nos espreitam o pensamento, as liberdades, o desejo e os corpos, é preciso fôlego, e fome. piva é a fome. reencontrá-lo nessa obra poético-visual em 2016 é potência total, verdadeiro rearranjo de átomos em estado de insurreição. o presente é tão grande/ não nos afastemos/ não nos afastemos muito/ vamos de mãos dadas.

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Nosso Tempo “Dos laboratórios platônicos mobilizados vem um sopro que cresta as faces e dissipa, na praia, as palavras. A escuridão estende-se mas não elimina o sucedâneo da estrela nas mãos. Certas partes de nós como brilham! São unhas, anéis, pérolas, cigarros, lanternas, são partes mais íntimas, e pulsação, o ofego, e o ar da noite é o estritamente necessário para continuar, e continuamos” Carlos Drummond de Andrade


FOTO | MARIO RUI FELICIANI

poema porrada Eu estou farto de muita coisa não me transformarei em subúrbio não serei uma válvula sonora não serei paz eu quero a destruição de tudo que é frágil: cristãos fábricas palácios juízes patrões e operários uma noite destruída cobre os dois sexos minha alma sapateia feito louca um tiro de máuser atravessa o tímpano de duas centopéias o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela as vísceras se comovem eu preciso dissipar o encanto do meu velho esqueleto eu preciso esquecer que existo mariposas perjuram o céu de cimento eu me entrincheiro no Arco-Íris

Ah voltar de novo à janela perder o olhar nos telhados como se fossem o Universo o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos eu preciso partir um dia para muito longe o mundo exterior tem pressa demais para mim São Paulo e a Rússia não podem parar quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim? a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos de Modigliani eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani minha alma louca aponta para a Lua vi os professores e seus cálculos discretos ocupando o mundo do espírito vi criancinhas vomitando nos radiadores vi canetas dementes hortas tampas de privada abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras trago o mundo na orelha como um brinco imenso a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem Fôlego.

Roberto Piva, no livro Paranoia


Breve mostra de poetas surrealistas na América Hispânica O poema descerra o horizonte e acende em nós uma fascinante intimidade com todas as fontes de expressão. A imagem poética excita a existência, encoraja novas formas de vida, anima os três reinos e suas reentrâncias esquecidas. O Surrealismo, mais do que qualquer outro ambiente evocado pela poesia, ao longo dos tempos, soube acender a lâmpada do que há de mais essencial no homem, vasculhar as cavidades do conhecimento, despir o verbo de qualquer casulo decorativo. Em seu território de fundação – a Paris dos anos 1920 – logrou plasmar uma visão de mundo, a partir da poesia, tomando por base modelos incomuns ou desprezíveis ou inadequados a uma arte poética. Lidos em isolado, alguns desses modelos já turvariam o olhar da história sobre a poesia. Ao reuni-los todos em um mesmo domicílio, o Surrealismo acabou por despertar uma mescla de recusa e devoção, em doses por vezes tão exageradas que o prejuízo acabou definhando o que ambicionava fundir: vida e obra. 30

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FLORIANO MARTINS (CE) Poeta, editor, ensaísta, tradutor, letrista e artista plástico. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Vários livros publicados, que incluem poesia, ensaio, traduções e antologias. _________________________________________


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Talvez tenha sido excessiva a concentração desses fatores: aproximações insólitas, automatismo, material onírico, acaso objetivo, humor. O fato é que até hoje essa reunião de valores inflamáveis produz um enxame de efeitos desconcertantes, resultando tanto em uma ortodoxia que deságua em pura diluição, quanto na reprodução em cativeiro dos mesmos preconceitos evocados há praticamente um século.


Ao vir dar em terras americanas, o Surrealismo trouxe consigo esse mesmo ideário de insuspeitas arbitrariedades. Aqui, velho e novo mundo se encontravam de uma maneira curiosa. Talvez este tenha sido o melhor encontro entre duas realidades distantes entre si. Não é à toa que Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, tenha despertado a atenção de Breton, em especial, ao ler sua entranhável combinatória, evocando a beleza como um “encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação de uma máquina de costura e um guarda-chuva”, imagem insuperável no que tange a uma definição do Surrealismo. Não faz o menor sentido dizer com isto que o movimento teve origem na América, considerando que Ducasse era uruguaio de nascimento. Mas é quando menos sedutor observar certa antevisão poética do que posteriormente seria posto como união dos contrários ou identidade dos opostos. O dito de Lautréamont, incansavelmente repetido, compreendido ou não, ajuda tanto a situar esse entroncamento do Surrealismo na travessia do Atlântico, quanto permite entender a feição singular que o mesmo tenha assumido na outra margem. O novo mundo e sua vertente mágica, espécie de Eldorado aos olhos de muitos surrealistas europeus que foram dar ali por motivos pouco poéticos, enfrentava seus próprios dilemas em relação à necessidade de construção de uma nova realidade. Como a história estava praticamente ainda por ser fundada, era outro o sentido dado a termos como razão, conhecimento, iluminação, paradoxo, de maneira que era distinta, em essência, a maneira como os poetas americanos ativavam aquela que Baudelaire havia chamado de “a mais científica das faculdades, porque somente ela compreende a analogia universal”, ou seja, a imaginação. Deu-se então aquele que talvez tenha sido o mais explosivo dos casos de aproximações insólitas, o encontro entre Europa e América. Já não importava então o aspecto histórico de que a América era uma imensa colônia europeia. O capricho assumia outra conotação: o que era fascínio para um era já uma concepção de mundo bem constituída para o outro. O trânsito de poetas americanos e europeus, de um lado a outro, desde os anos iniciais do Surrealismo, ajudou a configurar essa preciosa cartografia de aproximações insólitas. A máxima de Lautréamont pescada por Breton foi uma espécie de pré-anunciação dessa realidade do movimento em dois ambientes, cuja distinção intrínseca é o que, afinal, lhe dá maior justificação. Se por um lado exageravam os europeus em uma leitura do transcendente e mágico na cultura americana, excediam-se os americanos nos jogos de linguagem, associações fortuitas que de tão fortuitas eram já gratuitas e não teciam uma nova imagem. Há casos – e a mesma janela permanece aberta ainda hoje – em que se percebe um esmero de seguir tão ao pé da letra a cartilha surrealista que nubla a compreensão de que suas passagens mais consistentes foram escritas com tinta invisível. 32


Ao amparar-se na analogia universal ou – uma vez mais Lautréamont – na ideia de que a poesia “deve ser feita por todos”, o Surrealismo anulava a construção de um manual, de tal forma que seus manifestos, se lidos com rigor, descartam a própria permanência. O que é permanente é o princípio ulterior que eles evocam, e não o estabelecimento de regras. Reino do sensível, a arte sempre teve por um de seus desafios propor um equilíbrio entre dois mundos. Uma diversidade de leitura dos signos acabou por dividir o século XX, grosso modo, em duas variações de surrealistas: os que adotariam irrestritamente o conjunto de asseverações dos manifestos e aqueles que soletraram as entrelinhas, dando asas a uma perspectiva outra de relação entre arte e vida, percebida de acordo com a singularidade de cada lugar. Não cabe aqui julgar os excessos de autoridade paterna de André Breton, por mais que a avaliação cronológica do movimento aponte na direção dos conflitos internos que em muitos casos resultaram em expulsão de vários de seus principais integrantes. Observemos apenas que essa exasperação doutrinária cruzou o Atlântico, fazendo com que a simpatia incondicional de alguns – caso extremo foi o do peruano César Moro – acabasse por se sentir forçada a uma ruptura com o movimento. Entre o enfrentamento direto de Moro e a adoção irrestrita de uma ética surrealista que se supunha superior a seu correspondente estético, nessa área dilatada e pouco percebida pela crítica, é que se encontra o mais intenso foco de conflitos do Surrealismo no continente americano. Matizes que tanto se aproximavam quanto se afastavam, movidas em grande parte pelo aspecto dogmático. É possível entender o dilema de Breton, a determinação por uma exuberância existencial que estivesse acima de todos os demais valores. Contudo, estabelecer uma modalidade única e inelutável de ação tem em si algo de fatalismo. Quando menos, um capricho. E Breton acabou por esquecer que os olhos da América em relação à Europa e a si mesma eram distintos do olhar europeu em equivalentes direções. Ao descrever o encontro com Aimé Cesaire ao lado de André Masson, em sua brevíssima passagem pela Martinica em 1940 (Martinique, charmeuse de serpents, 1948), é tão bonito como Breton se refere ao poeta caribenho como um “negro que não é somente um negro, mas sim todo o homem, que expressa todas as interrogações, todas as angústias, todas as esperanças e todos os êxtases, e que a cada momento se imporá diante de mim como o protótipo da dignidade”. Bem antes, em 1932, poetas da Martinica residentes em Paris já haviam declarado solidariedade ao Surrealismo, por ocasião do lançamento de uma revista intitulada Légitime Défense.


Igual atenção na década seguinte seria estampada nas páginas da revista Tropiques, que Cesaire dirigia nas Antilhas. Afinidades explícitas de ambos os lados, as dissociações certamente surgiram quando do cotejo das simpatias com a realidade de cada ambiente. O encantamento por uma natureza em estado selvagem não correspondia à violência de um sistema colonial, à brutalidade da escravidão, ao esfacelamento das expressões culturais nativas etc. Os postulados originários do Surrealismo como que se ensimesmavam. No entanto, seguiam seduzindo poetas e artistas no continente americano por essa fresta múltipla que abria de amorosa relação entre a realidade e seu dissimulado componente mágico. Surgiram então grupos, assim como adesões diretas da parte de americanos que foram viver em Paris, incluindo os encontros ocasionais de surrealistas de um lado e outro do Atlântico, os que vieram dar na América, os que foram dar na Europa, associações, fascínios, decepções, rupturas. As transições foram inúmeras, provocadas em grande parte pelo comportamento do que se poderia então entender como uma matriz. De um lado ou de outro, do que a poesia necessitava era de um ilusionista e não de um cronista. A realidade não carecia de registro e sim de subversão. A necessidade vital era de fundar uma outra perspectiva frente à realidade. A história deveria passar a considerar como pertinentes os ângulos descortinados pelo sonho, o desejo, a magia. Sem esse novo olhar, por exemplo, seria de todo impensável o avanço da arqueologia em relação aos achados reveladores do comportamento de civilizações milenares. Não é uma questão de mero fascínio, como eventualmente poderia ser a fonte da visão europeia sobre as culturas americanas, mas sim de percepção de que a realidade se move em bases distintas de acordo com o sistema político ou religioso em que foram implantadas. O discurso surrealista evidentemente encanta o poeta americano, porém ele tem a seu dispor um conhecimento ulterior que antecede as escavações arqueológicas. Ao escrever sobre Lautréamont (Tropiques, 1943), Aimé Cesaire o situa como “o primeiro a compreender que a poesia começa com o excesso, o desmedido, as buscas consideradas proibidas no grande tamtam cego, até a incompreensível chuva de estrelas”. É importante observar que a leitura concreta do cotidiano não perde o pé no mágico, ou seja, não há hierarquia possível entre os dois aspectos. A vida é completa ou incompleta. Não há meio termo. A ideia visionária do mundo – qualquer mundo – não pode se afastar de seu componente real, na mesma proporção em que a imagem projetada em um espelho não existe sem a fonte geradora. Este ponto é a matriz do entendimento do Surrealismo na América. A fusão operava como vital e não a ruptura. 34


Por isto lemos em Alejandra Pizarnik que “as palavras / não fazem o amor / fazem a ausência”, porque na visão americana necessitamos subverter toda e qualquer forma de vício de linguagem. Ao contrário do que preconizava Breton, sua proclama de uma síntese entre palavras e coisas, para nós era incontestável a separação entre ambas. A subversão radicaria então em metaforizar a existência, mas de tal forma que essa imagem outra assumisse uma sensualidade atuante. Em face disto é que a poeta argentina via a escritura automática como um exercício de sinceridade da escrita. Talvez por este aspecto – um sentido de liberdade mais mágico e menos inquisitorial – é que na América o Surrealismo se identificou intimamente com a enigmática figura de Lautréamont, e que o nome de André Breton seja uma referência até hoje cautelosa no tocante aos desdobramentos estéticos da arte em nosso tempo. Resisto a discutir reinados, em quais circunstâncias Lautréamont esteve mais presente nos desdobramentos estéticos da lírica americana, nada que nos leve a um tablado de concorrências. O que quero observar tem a ver com uma frase que li em livro do fotógrafo Brassaï – Conversations avec Picasso, 1964 – : “a fascinação que Chirico exerceu durante muito tempo sobre os surrealistas só é comparável à de Lautréamont, o outro ‘ponto fixo’ de seu movimento”. Em todo o continente americano – seja em inglês, francês, português ou espanhol – não existe uma única edição da poesia completa de André Breton. Ao lado dessa quando menos curiosa anotação, acrescentamos que a obra completa de Lautréamont se encontra traduzida, seja para o português quanto para o espanhol, por dois destacados surrealistas, o argentino Aldo Pellegrini e o brasileiro Claudio Willer. Os exemplos se multiplicam por vários países. Murilo Mendes o evoca em um de seus Retratos-relâmpago, logo no início assim o descrevendo:

Debruçado numa janela não de Paris nem de Montevidéu, Lautréamont descobre, pensa, vê, imagina, inventa, redescobre, repensa, revê, reimagina, reinventa, coisas, objetos, seres e situações intercambiáveis. Figura o abstrato sob a forma do concreto, as paixões sob a forma de animais, estica-se, contrai-se, golpeia-se, cria colagens de palavras e cenas sob o signo mágico da anamorfose: antecipa Max Ernst.

E em minhas conversas com Claudio Willer, ele trata de avivar da seguinte forma a destacada influência de Lautréamont:


Lautréamont e Rimbaud, mais que quaisquer outros, foram tutelares para o Surrealismo. Suas leituras por Breton, Aragon e Soupault equivaleram a experiências alucinatórias, em mais um capítulo da confusão entre literatura e vida. Breton relatou “o momento em que me iniciei verdadeiramente em Rimbaud, comecei a estudá-lo profundamente e me apaixonei por ele”, ao descobrir os inéditos que acabavam de vir à luz, mostrando “uma virada transcendental em sua evolução, a despedida definitiva da poesia e a passagem a uma forma distinta de atividade”.

Algo de alucinação, também, marcou a descoberta e as primeiras leituras de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, tal como relatado por Aragon em Lautréamont et nous.1 O livro 2 de Aragon, de 1967, remonta em tom nostálgico àquela época de trincheiras e serviço em hospitais na guerra ao relatar como ele e Breton liam Lautréamont em 1917: revezavam-se a vocalizar o exemplar único de Os Cantos de Maldoror que haviam achado, “em um cenário inverossimilmente maldororiano”: à noite no quarto andar do hospital militar de Val-deGrâce em Paris, onde serviam na ala daqueles sob tratamento psiquiátrico. Enquanto recitavam blasfêmias – “Eu fiz um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias” – ou alguma passagem mais lírica, os internados entravam em surto: Às vezes, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam, batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente. Houve noites que não se pode imaginar. […] Os bruscos buracos de silêncio [decorrentes do pavor provocado pelos alarmes de bombardeios sobre Paris] eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial. […] Por mais que aquele fosse um tempo de acontecimentos consideráveis, parece-me principalmente tomado por essa sombra crescente que Maldoror estendia sobre nós.

A realidade transformada em extensão de Os Cantos de Maldoror.

1. Louis Aragon, Lautréamont et nous. Paris: Sables, 1992. As três notas da presente citação são do próprio Claudio Willer, em comentário que me fez, por e-mail, em junho de 2012. 2. Aragon se desligou do surrealismo e rompeu com Breton em 1932, ao aderir ao comunismo soviético, tornar-se um corifeu do PC francês e da volta às formas tradicionais na poesia. [N. C. Willer]


poemas traduções pequena antologia

LUIS CARDOZA Y ARAGÓN (Guatemala, 1901-1992)

por Floriano Martins

O SONÂMBULO (fragmentos)

7.

Obra poética: Luna Park. Poema, instantánea del siglo 2 x. Paris: Ediciones Excelsior, 1924.; Maëlstrom. Films telescopiados. Paris: Ediciones Excelsior, 1926.; Cuatro recuerdos de infancia. 1931.; El sonámbulo. México: Taller Poético, 1937.; Pequeña sinfonía del Nuevo Mundo. Guatemala: El Libro de Guatemala, 1948.; Poesía. México: Letras de México, 1948.;Dibujos de ciegos. México: Siglo XXI Editores, 1969.; Quinta estación. Costa Rica: Editorial Universitaria Centroamericana, 1972.

A Xavier Villaurrutia

Auroras se oferecem tácitas nos muros que não existem das noites herméticas e nas âncoras e no cais abandonado. No peito duro blindado do inverno e no terno peito do amante esquecido. Como chama sem pele, como sombra sem corpo, em evidência de beijo, como em luz de um luzeiro. Jazia mais morto do que Lázaro escutando o girar dos heliotrópios, o patinar dos astros. Essa rubrica fulminante na cega piçarra desolada que o morto sustentava com suas mãos famintas, arrecifes sem história. Tu, morto, sustentavas essa piçarra sem estrela. E até a voz doía. Essa voz que vem de um ponto além de Lázaro e da noite da maravilha. Essa que Lázaro mordeu com sua memória, esquivo à morte e vivo nela, quando sonhou que estava vivo, oh morte de rádio! Essa voz que lhe queimou as névoas frias e exaltadas sobre a surda piçarra despejada por todo giz branco. Era de diademas e arcos! Enlouqueceram os telescópios e os astrolábios. 36


8.

Fervor de estrelas, negação de rosas. Tristeza do primeiro morto, do primeiro ventre emprenhado! Água régia, prova final para o axioma da verdadeira verdade inesgotável com que a morte coroa a si mesma. Nos deltas de fogo desbocados em teus cabelos, fazem céus os barcos naufragados. E que terrestres nostalgias rasgam os afogados vendo flutuar os litorais. Esses lábios raivosos com farrapos de nebulosas e pedaços do arco. Essa fronte, esses ouvidos com o eco de sua voz adormecida. Caramujo de eternidade com seu despenhadeiro da primeira palavra. Essa ideia fina e teimosa que o litoral persegue com obstinada insistência. Essa forma que o rio pensa e desenha e corrige desdobrando-se sobre si mesmo. Essa forma que a água toda não alcança nem na lágrima, nem na quietude do lago sem pálpebras ou o dia que a desnuda em sua cor de insônia, de asas em vigília, em um clima de mártir, cascata de luz jovem na sombra, a uma temperatura de cariátide ou de balido de estrela esfolada, de morte de criança ou olhar enamorado. [El sonámbulo, 1937] 37


ALDO PELLEGRINI (Argentina, 1903-1973)

A MULHER TRANSPARENTE

Obra poética: El muro secreto. Buenos Aires: Editorial Argonauta, 1949.; La valija de fuego. Buenos Aires: Ediciones Americalee, 1953.; Construcción de la destrucción. Buenos Aires: Ediciones A partir de cero, 1957.; Distribución del silencio. Buenos Aires: Editorial Argonauta, 1966.

Tua voz era uma bebida que eu tomava silencioso diante de olhares assombrados um pássaro de luz saiu de teu corpo transparente pássaro de luz instante que volteia em uma vertiginosa velocidade atravessando ruas e ruas perseguem teu corpo que foge quando poderás afastar a turba enlouquecida? desamparada ao cair te destroçaste toda os restos de teu corpo se arrastam por todos os sítios do mundo ah um dia renascerás tu a transparente única, inconfundível levemente inclinada, jamais caída rodeada de impenetrável silêncio avançando teu frágil pé entre a vacilante monotonia ah um dia renascerá teu riso teu riso de pássaro transparente teu riso ferido.

[El muro secreto, 1949]


JUAN SÁNCHEZ PELÁEZ (Venezuela, 1922-2003)

LENDA

Minhas inimigas prudentes, minhas luvas que decapitam dias chuvosos, um vale negro para a fuga de minhas têmporas. À noite multidão de pássaros e bois invadiram estas ruas submissas. Eu olhava e me dizia: “Sob a tempestade uma roca fia delgadas crianças, o demônio enlouquece as águas taciturnas”. À noite eu ainda não havia nascido. Dali o desfile, as núpcias terrivelmente distantes, o parque de fulminante orvalho. Não existimos; no entanto, o mar aplacaria tua graciosa cabeleira, e os rebocadores içariam tulipas flamejantes para abreviar em teus lábios desfeitos pelo amor.

[Elena y los elementos, 1951]

Obra poética: Elena y los elementos. Caracas: Tipografía Vargas, 1951.; Animal de costumbre. Caracas: Editorial Arte, 1959.; Filiación oscura. Caracas: Editorial Arte, 1966.; Un día sea. Caracas: Monte Avila Editores, 1969.; Rasgos comunes. Caracas: Monte Avila Editores, 1975.; Por cual causa o nostalgia. Caracas: Fundarte, 1981.; Poesía 1951-1981. Caracas: Monte Avila Editores, 1984.; Aire sobre el aire. Caracas: Tierra de Gracia Editores, 1989.; Poesía. Caracas: Monte Avila Editores Latinoamericana, 1993.


JORGE GAITÁN DURÁN (Colômbia, 1924-1962)

O INFERNO

Obra poética: Insistencia en la tristeza. Bogotá: Editorial Kelly, 1946.; Presencia del hombre. Bogotá: Ediciones Espiral, 1947.; Asombro. Paris: Imprimerie E. Durand, 1951.; El libertino. Bogotá: Ediciones Espiral, 1954.; Amantes. Bogotá: Ediciones Mito, 1959.; Si mañana despierto. Bogotá: Ediciones Mito, 1961.

Os homens já não vivem: como serpentes enterradas No outono, como luas vagarosas no inverno, No verão são águias ou tigres, sóis sanguinários Que ardem no opaco mundo das coisas, Guerreiros em vigília como os astros Para que em imortais os converta o céu enganoso. Nobres ou perversos, mas efêmeros, porque é sua obra Única por um instante arrancar do inferno A mesma carne que aos deuses os delata, Os amantes estão solitários na terra. Ferozes, porque o que sempre dá recebe injustiça, Querem ser como unhas ou dentes no outro, Como a selva após a tormenta do verão, querem Que ninguém veja sua debilidade, mas que se sofra violência. Reunidos como belas bestas ou em fuga como criminosos A luz os cega: o homem não tem tempo para reconhecer-se. Abraçam-se em sua miséria até encontrar um corpo Impenetrável onde só a morte toca fundo: Suas bocas estão juntas, mas separadas seguem as almas.

[Amantes, 1959]


BLANCA VARELA (Peru, 1926-2009)

NO ESPELHO

Exploro a chama e não a extingo porque amo seu calor doloroso, suas angustiadas línguas sem som, sua pele redonda que atravesso com meus dedos para chegar à água solitária de tão leves pálpebras.

Raízes de pesadas colunas de sonho entre a fronte, gotas áridas nos frutos caídos que transbordam azeites agudos, insondáveis.

E sinto a asa nos espelhos que me devolvem sempre, como se colhesse as violentas cinzas que jogaram aos peixes, como se uma ave morta pesasse entre meu sangue e a estancasse ali, próxima ao fogo vivo dos próprios insetos, a seus pequenos corpos, belos sob escuros e apodrecidos licores, íntimos e nervosos nos gozos profundos.

[Ese puerto existe, 1959]

Obra poética: Ese puerto existe . , 1959.; Luz de día. , 1963.; Valses y otras falsas confesiones . , 1971.; Ejercicios materiales . , 1978 .; Canto Villano . , 1978.; Camino a Babel. , 1986.; El libro de barro. , 1993 - 1994.; Concierto animal. , 1999.; El falso teclado. , 2001.


ROSAMEL DEL VALLE (Chile, 1901-1965)

DIVINDADE PÚBLICA

Obra poética: Los poemas lunados. Santiago de Chile: Editorial Memphis, 1920.; Mirador. Santiago: Ediciones Panorama, 1926.; País blanco y negro. Santiago: Ediciones Ande, 1929.; Poesía. Santiago: Ediciones Intemperie, 1939.; Orfeo. Santiago: Ediciones Intemperie, 1939.; El joven olvido. Santiago: Nascimento, 1949.; Fuegos y ceremonias. Santiago: Nascimento, 1952. La visión comunicable. Santiago: Nascimento, 1956.; El corazón escrito. Buenos Aires: Ediciones J. Héctor Matera, 1960.; El sol es un pájaro cautivo en el reloj. Colección “El viento en la llama”. Santiago: Armando Menedín, editor, 1963.; Adiós enigma tornasol. Santiago: Ediciones Orfeo, 1967.; Obra completa. Dos volúmenes. Compilación, prólogo, bibliografía y notas de Leonardo Sanhueza. Collages de Ludwig Zeller. Santiago de Chile: J.C. Sáez Editor/Ediciones Dolmen, 2000.

O tempo o urso dança pelas praças Celebrado por paixões e lembranças de crimes Não deixes de livrar-se dos cabelos para entrar no sonho Nesse rito verás o deus que enreda teu destino Porque os frutos adormecidos cairão da árvore Antes que sejas levado de mãos dadas pelos defuntos Entenderás então o que dizem as tábuas Escritas para ser lidas pelos velhos? O cão do outono vem seguido pela ovelha do outono E não passarás a não ser seguido por ti mesmo como o raio de sol Passa seguido pelos dentes da noite Recorda tuas férias no Paraíso Os vulcões passeavam por um jardim e Ninguém fazia fogo junto ao deus desesperado Não o despertes agora com teus dentes ressecados Por um fio estendido irás até o fim e Ninguém sabe como começam a se mover as auroras Presume-se que resvalam por suas próprias facas Antiga é a comunicação dos deuses pelo fogo Porém a noite diz mais sem que ninguém a escute Assim podes fazer para ti hoje e amanhã um colar Para o sonho que venha parecido com uma mulher ou um cometa

[La visión comunicable, 1956]


Qual o lugar do poema? Pixado no muro, circulando em adesivos, camisetas, cartões postais, revistas, pôsteres, calendários, antologias. E mais onde possa caber um texto. Concluímos ao observar alguns passos de Paulo Henrique Couto Machado. “A poesia é uma forma de expressão artística indissociável da espécie humana”, afirma. O poeta nasceu na capital do Piauí em 23 de julho de 1956. Completou 60 anos e, em tudo que faz, dialoga com estudos da história local. Cresceu na casa do avô, no centro da cidade. Quando o pai de sua mãe morreu, o tio mais velho abriu o cofre da casa e jogou no lixo alguns documentos. “Eu me senti agredido. Fui, resgatei os documentos e guardei. Anos depois, soube do que se tratava”, relembra. Era a carta-patente de nomeação do seu avô como Capitão da 25ª Brigada de Infantaria da Comarca de Piracuruca, assinada pelo Presidente da República Hermes da Fonseca. “O que me chamou a atenção era o que estava escrito, de punho, no verso: essa república vai mal, muito mal”, finaliza. Posteriormente, o fato inspirou o poema relatório. Paulo é uma espécie de azougue. É grande a quantidade de leitores e outros autores de Teresina se conectando à sua volta. Sempre viveu em grupos. Sua vida mais parece uma obra coletiva. Na década de 70, fez política estudantil, tentou ser médico, tornou-se advogado, produtor cultural, editor de jornal e revista, defensor público, estudou Direito Agrário e a estrutura fundiária piauiense, sempre analisando a história e a memória do estado. “É um fazer desaparecer que é constante em nossa cidade”, critica. Entre outros projetos que participou, lançou os livros de poesia Tá pronto, seu lobo? (1978) e A paz do pântano (1982). Publicou também As trilhas da morte: extermínio e espoliação das nações indígenas na bacia hidrográfica parnaibana piauiense (2002). Numa tarde de sábado, a revista Acrobata conversou com ele no terraço de sua casa no bairro Cabral. Olha no olho e explica: “é o tempo que nos ensina”.

ENTREVISTA COM 44

paulo machado


FOTO | GABRIEL TORRES

ENTREVISTA FEITA POR ARISTIDES OLIVEIRA DEMETRIOS GALVÃO THIAGO E ADRIANO LOBÃO ARAGÃO 45


Acrobata - Como foi teu início de vida no mundo? Paulo Machado - Nasci em Teresina, no ano de 1956, na Rua Senador Teodoro Pacheco, nº 1193, numa casa antiga, de estilo espanhol, pertencente aos meus avós maternos que tinham adquirido a casa em 1945. Mas a casa já existia há muito tempo. A Senador Teodoro Pacheco era a antiga Rua Bela. A espinha dorsal do plano urbanístico original de Teresina, de João Isidoro da Silva França. E a casa onde nasci ficava localizada a menos de 100 metros da Praça Pedro II. Lá vivi minha infância e adolescência. Quando do falecimento do meu avô, os herdeiros sucessores decidiram pela venda do imóvel. A única pessoa que se insurgiu foi minha mãe, mas foi vencida. Quando o imóvel foi comercializado, e foi decido então que seria feita a entrega das chaves da casa ao representante do novo proprietário, me foi dada uma incumbência muito dolorosa... Fui encarregado de levar as chaves para fazer a entrega. Na noite antes de fazer a entrega, refleti e reconheci que só haveria uma forma de preservar o que ali tinha ocorrido. Pela afetividade, através da produção de um texto. Eu escrevi o poema “Herança”, justamente nesse momento, em 1974. Tu já tinha 18 anos?

Sim. Eu escrevi o texto sabendo que aquela casa seria demolida. Meu avô teve muito cuidado em preservar a casa sem modificar nenhum traço identitário. Escrevi o texto e, no dia seguinte, meus pais e minha avó saíram. Decidi que tinha que levar algo material da casa. Eu me apropriei de um lustre da sala de jantar. Levei comigo e o tenho até hoje. O poema “Herança”, que foi editado pela primeira vez na revista “Cirandinha”, em 1977, foi reeditado no “Tá Pronto, Seu Lobo?”, em 1978. E, 30 anos depois, em 2008, fiz a edição de um pôster e contei com a colaboração de um amigo, Rogério Newton, para fazer a fotografia onde aparece reproduzido, como ponto luminoso, exatamente o lustre. Esse endereço que aparece no poema, materialmente, existiu: Rua Senador Teodoro Pacheco, 1193. Hoje é um estacionamento rotativo. Eu sabia que a casa ia ser demolida, mas nunca imaginei, naquele espaço, que seria um estacionamento. Na época, a área era residencial.

Capa da revista Cirandinha, 1977.


Existiam famílias muito próximas, com uma vivência diária, de conviver mesmo! A coisa de saber a data de aniversário das crianças vizinhas. O ambiente era de muito afeto e de muita intensidade de atividades. O Theatro 4 de Setembro estava instalado ali. Embora, à época, estivesse destinado a uma atividade cinematográfica. O empresário responsável pela casa inseria filmes de boa qualidade, diferentemente do que acontecia com o Rex [cinema ao lado do Theatro]. Eu tive a oportunidade de ver “Os 10 Mandamentos”, “Ben Hur”, “El Cid” projetados nessa Casa de Cinema. Ainda na minha primeira infância, conjugada com a casa onde nasci, foi instalada a Rádio Pioneira de Teresina. Era uma rádio submetida à orientação ideológica de Dom Avelar Brandão Vilela. Embora não fosse a primeira rádio da cidade de Teresina. Já pré-existiam a Difusora e a Clube. Por que a rádio recém-criada recebeu o nome de Pioneira? O tipo de rádio que era posto em execução. No quarteirão próximo, estava instalado o Clube dos Diários, que era também um centro de atividade. As manifestações públicas, desde atos políticos a shows musicais, aconteciam na Praça Pedro II. Então fui privilegiado porque estava crescendo dentro desse meio.

FOTO | GABRIEL TORRES


na senador pacheco 1193 há um poema onde os primos, em volta da mesa, guardam suas ânsias diante das pastilhas de hortelã. e o avô na sala de espera sonha com o voo dos pássaros buscando as canaranas.

(às vezes de sobrecenho, fala da guerra de 14, da gripe espanhola) o tio já não tosse dentro da noite arranhando um estranho silêncio no fim do corredor que muito se assemelha ao gesto acanhado dos meninos com suas canecas, à espera das cabras.

no verão, da mesma forma que no poema, não há lodo no muro e as lagartixas passeiam ao sol. da nudez das pedras e do vermelho arrebenta um verso cicatriz esquecida.

HERANÇA à artista plástica norma couto

(nesse poema o difícil é não ser trágico) no quintal, a erva cidreira cresce por entre as rachaduras das lajes, sussurrando boatos de revoltas. na sala de jantar, o perigo do naufrágio nas tradições de há séculos. há um poema que rói o tédio, na senador pacheco, 1193.


Como a literatura aparece na tua vida? Atribuo isso a uma orientação dada por minha mãe, muito zelosa no sentido de cuidar dos filhos para que tivessem a melhor qualificação possível. Desde o primeiro momento, ela teve uma atitude pedagógica. Lembro que, no segundo dia, ela me convidou para que eu escolhesse, dentro do espaço da casa, um que deveria destinar para estudar, e um horário. Ela não me impôs. Quando eu escolhi o lugar e o horário para estudar: Bom, a partir de agora, você vai fazer o dever de casa e depois é que você está liberado para ir fazer o que você quiser. Essa disciplina pedagógica me foi muito útil. E ela também foi muito solidária porque sempre que os deveres eram feitos, ela vinha e corrigia o que era necessário. Acompanhou até o momento que foi possível. Quando me comunicou – Bom, meu filho, a partir de agora, você tem que caminhar com suas próprias pernas, porque eu não tenho mais conhecimento que possa lhe orientar. Mas eu já estava bem situado, e foi ela que tomou a iniciativa de adquirir os primeiros livros de literatura, na Livraria Servir, instalada no mesmo prédio onde estava a Rádio Pioneira de Teresina. Na adolescência, descobri um pequeno acervo inserido na biblioteca Cromwell de Carvalho, biblioteca pública estadual. E passei a ser frequentador habitual da biblioteca. Quantos anos tinha? 14 anos.

Qual foi o primeiro livro que te deu prazer em ler? Lembro bem do que me impactou. Dentro da organização da biblioteca, existia uma estante e em cima estava escrito: “Literatura Piauiense”. Meus olhos foram conduzidos para a lombada de um livro chamado “Tempo Consequente”. Eu peguei o livro, dei uma olhada e achei estranho o nome do autor: H. Dobal. Até aquele momento, embora eu tivesse professores de boa qualificação, nenhum deles havia me falado sobre a existência, nem desse livro, e nem desse autor. Eu peguei o livro, comecei a folheá-lo e não sei explicar. O certo é que, a certa altura, parei no texto que tinha como título “Leonardo”, exatamente o poema escrito pelo Dobal sobre o poeta ancestral do nosso Piauí: Leonardo de Carvalho Castelo Branco. Eu li e me impactou porque, até então, o que eu tinha de informação literária sobre poesia não me permitia compreender bem aquela concepção. O Dobal tinha utilizado uma técnica de colagem com fragmentos em prosa intercalando as estrofes.


Essas referências em prosa são recriadas pelos versos do Dobal. Naquele momento, me impactou e eu fiz uma primeira leitura. Aí fui saber da Coordenação se era possível levar o livro para empréstimo. Fui informado que não. Só tinha um exemplar, e era regra da biblioteca que, existindo só um exemplar, ele não poderia ser retirado. Eu tive que voltar várias vezes para concluir a leitura. Essa descoberta aconteceu com 16 anos. Eu não tinha interlocutores. Eu não tinha ninguém para dialogar e confrontar informações. Como surgiram os interlocutores?

Surgiram quando eu era aluno da Unidade Escolar São Francisco de Assis (escola pública da rede estadual). Em 1973, nós vivíamos um momento de menos liberdade do que hoje. Nas escolas, os grêmios estudantis eram instalados por interesse da própria direção, com indicação dos alunos que iriam dirigi-lo, sem passar por processo eletivo. Os adolescentes que conviviam comigo naquele tempo, na escola, com algumas informações trazidas por um periódico semanal chamado Pasquim, decidiram coletivamente que nós criaríamos uma entidade paralela. Seria o Clube Estudantil de Leitura (CEL). A partir daí, nós começamos a editar um jornalzinho mimeografado chamado Zero, e passei a ter interlocutores. Era professor de literatura nesta escola o professor Carlos Evandro Martins Eulálio. Foi a primeira pessoa com quem pude dialogar. O primeiro poeta que chamou tua atenção foi o H. Dobal?

Foi um mineiro, Carlos Drummond de Andrade. Eu li Drummond com muita vontade, depois fui estabelecendo uma sistematização de leitura. Quando me deparei com o Poema de Sete Faces e aquela afirmativa: Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida! Fui procurar saber o que a palavra gauche significava. Isso estava reverberando em mim quando vem à tona, em 1973, a primeira edição d’Os Últimos Dias de Paupéria, do Torquato Neto. Uma edição feita por iniciativa da editora Eldorado, e programação gráfica atribuída a duas pessoas: à viúva do Torquato, Ana Maria, e ao poeta Waly Salomão. No poema Cogito estão as afirmativas que novamente me fizeram refletir sobre o que seria o “fazer” poesia de forma mais consequente. 50


Como se desdobrou no teu percurso de poeta? Foi publicado um edital de Concurso Público Literário. Como eu tinha um conjunto de poemas, entendi que podia selecioná-los e organizá-los sob a forma de um livro, intitulei de Travessia e inscrevi. O resultado foi tornado público. Eu estava classificado e premiado. A premiação era a edição do livro. Fiquei aguardando a edição, que nunca veio a acontecer. Inclusive formalizei requerimento pedindo a devolução dos originais. Na verdade, organizei o livro entendendo que seria editado. Com essa crença, entreguei os originais, que não foram devolvidos, nem editados. Neste ano de 1975, tomo conhecimento da existência do Caderno de Divulgação Cultural (CDC), que era encartado nas edições dominicais do jornal O Estado. Esse caderno era editado sob a responsabilidade de Cineas Santos. Em 1975, estava fazendo o 3º ano do segundo grau, me preparando para fazer o vestibular. Repassei um texto para o professor Cineas. Depois, cobrou-me outros. E, finalmente, editou um deles no CDC. O primeiro texto que eu tive editado em jornal. Em seguida, no ano de 1976, o professor Cineas me comunicou que ia iniciar uma atividade editorial de livros porque o CDC deixou de ser feito. Então me deu a incumbência de ser coordenador do que viria a ser a primeira edição de um livro mimeografado em Teresina. Uma coletânea de poemas denominada Ciranda. O livro mimeografado teve a concepção da capa feita por um dos poetas convidados, Hardi Filho. Como os recursos gráficos eram muito precários, ele concebeu uma solução genial. Pegou os nomes dos autores e formou um círculo, porque a dança da Ciranda é circular, de forma continuada. As folhas foram grampeadas, não coladas, de forma improvisada.

Em 1976, Paulo passou no vestibular da UFPI para cursar Medicina. Desistiu em 1978 porque não se identificou com o curso. O pai se decepcionou bastante, mas a mãe o apoiou. Ainda no mesmo ano, faz outro vestibular e começa a cursar Direito na mesma Instituição. Formou-se em dezembro de 1981 e, há 30 anos, é Defensor Público.


Ao longo da década de 70, como vai se formando o grupo que ficará conhecido como Geração Pós-69? Compreendo-a não como uma Geração Literária, mas como uma Geração Cultural, portanto bem mais ampla. Estão incluídos músicos, artistas plásticos, artistas gráficos, poetas, contistas, romancistas, dramaturgos. Essas pessoas já realizavam suas atividades. Na minha compreensão, o que fez com que elas se aproximassem mais foi a iniciativa da edição de um jornal chamado Chapada do Corisco, editado nos anos de 1976/1977. Era um jornal alternativo. Uma surpresa no cenário cultural piauiense. Os jornais preexistentes, tradicionais, continuaram a existir. Esse jornal não tinha nenhum grupo empresarial financiador, era autofinanciado. Sobrevivia da venda. E a venda só podia ser feita mão a mão, por iniciativa dos próprios integrantes do grupo. Quem eram os integrantes?

Da área de artes gráficas e plásticas, vieram o Arnaldo Albuquerque (que já tinha experiência cinematográfica) com sua vivência em História em Quadrinhos. Ele tinha uma série de histórias prontas que não tinham sido editadas. Ele se aproximou e disponibilizou não só as HQs, mas a capacidade de fazer programação gráfica e ilustração de matérias que fossem produzidas. O Albert Piauhy, que tinha uma experiência de edição de cartuns no Rio de Janeiro, no Pasquim, e tinha retornado para Teresina. O artista gráfico, que era excelente programador visual, chamado Fábio Torres. O fotógrafo Nonato Carvalho, o Dodó Macedo, que escrevia matérias jornalísticas, escrevia contos e fazia cartuns. O Cineas Santos, que tinha a atividade de coordenador do Caderno de Divulgação Cultural. E nós conseguimos, também, estabelecer um intercâmbio com autores de outros Estados, que foram muito solidários em encaminhar textos para serem editados, como o contista João Antônio, do Rio de Janeiro, que tinha ganho vários concursos literários nacionais e se dispunha a enviar contos a serem editados em Teresina, num jornal alternativo. Ao redor das atividades do Chapada do Corisco, aproximaram-se outros produtores de cultura. Havia apresentações de músicos, encenações de peças teatrais. Paralelamente, às exposição de artes plásticas. Esse conjunto de produtores de cultura, num determinado momento, começou a colaborar para a veiculação dos livros, pois os que tinham sido editados em Teresina, por edições autorais, não traziam ilustrações, não traziam programação gráfica e, no nosso caso, desde os primeiros, contaram com capistas, ilustradores, programadores visuais. No final de 77, o Chapada do Corisco deixou de ser editado por total esgotamento, não se tinha condições de continuar a fazer o jornal. 52


Vocês tinham prejuízo na venda? Não. A estimativa de qualquer periódico é aumentar a tiragem. Para isso, precisávamos ter aumentado o número de leitores. Nós não conseguimos. Eram mil exemplares por edição mensal. A venda era feita mão a mão, com a participação de várias pessoas.

De onde vem a expressão Pós-69? Essa Geração encerrou-se?

Na minha concepção, ela não se extinguiu ainda. Quanto à denominação, não é ponto consensual porque, a nível de Brasil, surgiu uma atividade, essa eminentemente literária, de grupos sediados em São Paulo e Rio de Janeiro, que foram denominados pelos analistas dos grandes jornais de divulgação, como sendo “poetas marginais”. Eles estariam fazendo a chamada “poesia alternativa”. Para o ambiente literário piauiense, essa denominação foi trazida. Nós entendíamos que estávamos no eixo central do processo. Fazendo o processo cultural acontecer. Daí a necessidade de renominar. Surgiram outras denominações. Alguns chegaram a rotular de Geração Mimeógrafo. Nós refletimos: por que essa Geração Mimeógrafo? A produção não era só textual! Em decorrência da imposição do Golpe Militar-Civil de 1964, foi em 1969 que as medidas repressoras mais intensas se materializaram. Nesse mesmo ano começa a ser editado no Rio de Janeiro, por iniciativa de um grupo de intelectuais, o jornal Pasquim. Esse jornal foi uma das fontes de informação. Talvez as entrevistas mais contundentes da época tenham sido veiculadas no Pasquim, como a abertura para autores que eram excluídos de qualquer possibilidade de edição em outros jornais. O que nós estávamos fazendo tinha iniciado depois deste ano emblemático. Por isso essa denominação: Pós-69. De quem foi essa ideia?

A iniciativa de dar essa denominação foi minha. Levei para um grupo maior, para a gente pensar como nos autoidentificaríamos a partir de então. Isso acontece no início dos anos 80. Até então, não havia denominação nenhuma. Aquele trabalho que tinha sido iniciado em 74 / 75 veio acontecendo sem que houvesse preocupação em rotular.


Capas das primeiras edições

Lançamento do livro Tá pronto, seu lobo? no Theatro 4 de Setembro em 1978 | ACERVO PESSOAL

Esta máquina de escrever, da marca Olympia, pertenceu ao avô materno de Paulo, Luis Gonzaga de Moraes Machado. Em 1968, Paulo a recebe de presente, e escreve todos os poemas desses dois livros. Foto da máquina | PAULO GUTTEMBERG

Lançamento do livro A paz do pântano no colégio Andreas Vesalius em 1982 | ACERVO PESSOAL


Tu tem dois livros de poesia lançados: Tá Pronto, Seu Lobo? e A Paz do Pântano. Fala do processo de escrita deles. Tendo uma escrita potente, por que tu lançou tão pouca poesia? Continuei escrevendo e veiculando de outras maneiras. Quer dizer, lançando pôster, cartão postal, camiseta. Talvez isso seja desconsiderado. A mim, pouco importa. Em relação aos livros, o Tá Pronto, Seu Lobo? se constitui de 22 poemas, mas eles estão subdivididos em dois grupos. E eu não tinha apenas os 22 poemas naquele momento, tinha um número maior. A seleção foi feita por mim. Por que a razão dos 22 poemas? Se nasci em 1956, em 1978, estaria completando 22 anos. Daí a escolha dos 22 poemas, como se fosse a proporção de um poema por ano de vida. Peguei os poemas mais antigos de escritura e os aglutinei buscando uma identidade temática. Depois os poemas que são voltados para a cidade. Não para uma cidade qualquer, mas para Teresina, que tem início com o Post-Card. Sobre o Post-Card, como foi editado na primeira edição, foi sacrificado. Porque é um único poema: Post-Card 57/77, em que eu usei a técnica do espelhamento. São 20 estrofes, mas formando um par de duas estrofes para um mesmo local, com um distanciamento de 20 anos. Por que essa escolha? Em 57 eu teria o primeiro ano de vida. Obviamente com um ano de vida não teria condições de compreender as informações que estavam naqueles dez lugares da cidade. Onde obtive essas informações? Ouvindo pessoas mais velhas pela linha da história oral. E indo até à casa Anísio Brito (Arquivo Público do Piauí) procurando informações sobre aqueles 10 lugares, nos jornais impressos. Feito isso, então visitei os mesmos dez lugares, com 21 anos de idade, em 1977, para fazer a minha leitura. E houve também um ordenamento espacial. O primeiro par de estrofe está focada na quadra número 1 do planejamento urbanístico feito por João Isidório da Silva França, para o projeto da cidade de Teresina, que era o Largo Municipal, posteriormente, Praça da República, e hoje, no imaginário popular, Praça da Bandeira. Ali é o marco zero da cidade. Vou me distanciando fisicamente até alcançar a primeira quadra da Avenida Frei Serafim e retornar à origem, que é o Rio Parnaíba. A concepção do poema foi feita por mim dessa maneira, e eu gostaria que ele tivesse sido editado assim, mas não foi. Foi colocado o bloco 57 e depois, na sequência, o 77. Isso tem dado margem às pessoas que leem a primeira edição, e vão reeditar o poema, de reproduzi-lo dessa maneira, tratando como se fossem dois poemas. O Tá Pronto, Seu Lobo? reúne poemas escritos de 74 a 77. Em 78, ocorreu a publicação do livro, com o selo das Edições Corisco. A capa foi projeto gráfico do Albert Piauhy. A foto da capa é do Nonato Carvalho. Como ilustradores estão Arnaldo Albuquerque, o Albert e Nonato Oliveira. Como o projeto era em preto e branco, e nós não tínhamos, naquele momento, disponibilidade de impressão em offset, o livro foi feito em monotipia.


As ilustrações foram feitas em lineogravura. Houve uma boa repercussão local, com uma tiragem de mil exemplares, e continuei escrevendo. Em 81, a Academia Piauiense de Letras publicou edital do Concurso de Poesia Odilo Costa Filho. Eu tinha pronto o poema chamado A Paz do Pântano, uma continuidade daquela visão presente no Post-Card. Busquei a identidade do quadrilátero original do planejamento feito por João Isidório da Silva França. E também de ouvir as pessoas e ir até ao Arquivo Público confrontar as informações sobre episódios que ocorreram e que a historiografia excluiu. Então assumi o compromisso de reincluir esses episódios pela via literária. Inscrevi o texto no concurso e o livro foi premiado com o primeiro lugar. O edital garantia uma premiação em dinheiro e a publicação. A premiação em dinheiro me foi entregue na solenidade formal, mas a Academia nunca editou o texto. O texto foi editado em 82, com a tiragem de 500 exemplares. O Tá Pronto, Seu Lobo? tem três edições, e a A Paz do Pântano só a primeira. Paulo, em toda a tua fala literária, há uma busca de informação no campo da história pela informação fidedigna, pesquisando no arquivo público, nos jornais, preocupado com a memória da cidade. Como tu costura a relação entre história e literatura?

Tendo nascido e vivido no centro da cidade, percebi mudanças arquitetônicas e comportamentais. As áreas deixavam de ser residências e as famílias ausentavam-se. Os imóveis começavam a ser modificados ou demolidos. As práticas de vidas iam sendo substituídas, num processo muito rápido. Começou a surgir, nas mídias impressas da época, a afirmação que “Teresina era uma cidade sem memória”. Isso me inquietou. Pode uma cidade não ter memória? E o que significa a memória de uma cidade? Fazendo essas reflexões, comecei a perceber que a memória coletiva é o somatório das memórias individuais. E que a memória coletiva, não corresponde à memória construída nos textos de história. Sabemos que toda História é uma versão, produzida por quem escreveu o texto, a partir de determinantes ideológicos. Muito da memória coletiva é excluída. Há quem afirme: “isso ocorre por esquecimento”. Mas o esquecimento é involuntário. Já o processo de ocultação, este, sim, é resultado de uma decisão. Nesse contexto, me deparei com o poema do H. Dobal, spbre Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco, personagem por mim desconhecido. Até hoje ele continua um desconhecido para muitos piauienses. Quais forças teriam produzido a ocultação de Leonardo? Em 1976, quando fazíamos o Jornal Chapada do Corisco, numa das discussões de pauta, foi colocada a possibilidade que editássemos pela primeira vez, no Piauí, um conto de um piauiense, que só tinha sido editado, uma única vez, em Salvador. Titulo do conto: Fogo. Autor do conto: Vitor Gonçalves Neto. Editor baiano: Pinto de Aguiar. 56


Livro em que o conto foi editado: Contos Regionais Brasileiros, em 1951. Temática do conto: os incêndios ocorridos durante a Ditadura Vargas, na cidade de Teresina, que resultaram na morte de um número significativo de pessoas! Apopulação que morava em casas de taipa, cobertas de palha. Decidimos editar o conto Fogo, pela primeira vez no Piauí, no Jornal Chapada do Corisco. Fiquei incumbido de procurar um sobrevivente da época, que tivesse sido indicado como incendiário, para entrevistá-lo. Não tinha informação nenhuma sobre tal fato histórico ocorrido em Teresina. Na historiografia da época, o fato tinha sido ocultado. Saí em busca de informações. Disseram-me que na Rua Rui Barbosa, próximo à Av. Joaquim Ribeiro, residia um professor de marcenaria da Escola de Aprendizes e Artífices, Francisco de Souza Barros. Encontrei a casa e fui informado que ele já tinha falecido. Mas a viúva residia. Quando cheguei na porta da casa, bati palmas e entrei. Passei por um portãozinho de madeira sem dar muita atenção aos seus detalhes. Ela narrou o seguinte. Francisco de Souza Barros era oeirense e tinha se tornado professor. Exercia seu trabalho normalmente. Um dia, à tarde, parou um carro em frente à casa e desceram policiais à paisana. Bateram palmas e procuraram se ali residia o professor Francisco de Sousa Barros. Ela foi chamálo. Ao chegar na porta, ele foi imobilizado e levado para a Cadeia Pública, que funcionava onde hoje é o Verdão. Preso como incendiário, foi torturado várias vezes para que confessasse a autoria dos incêndios. Ele sempre negou. Foi posto em liberdade, juntamente com outros, porque foi preso como mandante, uma pessoa de projeção social e política, o médico José Cândido Ferraz. O médico contratou um advogado do Rio de janeiro, Vitor do Espírito Santo, para defendê-lo: “O senhor está sendo contratado e fará a minha defesa e dos que estão sendo acusados de incendiários”. Assim fecharam o contrato. O advogado realizou as defesas. Só que, ao se referir aos acusados de incendiários, teria usado a seguinte expressão: “Vou defender os filhos de ninguém.” Fez uma boa defesa e obteve êxito. Depois, ela me perguntou: “Você viu o que está entalhado no portãozinho?”. Respondi que não. Então fomos até o portão e ela me mostrou. Lá estava entalhado: um dos filhos de ninguém. O mestre Francisco Barros permaneceu mais de 3 anos preso! E identificou a porta de sua residência com essa expressão. Ao final, decidi titular a matéria para o Jornal com a expressão Um dos Filhos de Ninguém. O Chapada do Corisco difundiu a informação. Então a conexão é essa, ter constatado, gradativamente, que determinados episódios e personagens foram ocultados, e havia razões para o ocultamento. O Chapada do Corisco editou o conto Fogo e, muitos anos depois, a Universidade Federal do Piauí exigiu, como leitura para o vestibular, o conto. A instituição universitária assumiu a responsabilidade de incluir um tema velado. Quem editou o conto Fogo na coleção Contar, com o selo das edições Corisco, foi Cineas Santos.


na praça marechal deodoro às nove horas falavam da udn e do american-can

na praça marechal deodoro às nove horas há velhos com suas memórias recompondo o tempo

no cruzamento da barroso com a senador pacheco há um sinal que não raro encrenca desafiando a rotina

quinta-feira é um dia qualquer e na praça pedro segundo a mudança notável é a da posição da estátua que parece sorrir

não há tertúlias no clube dos diários as baratas medrosas saem das bocas-de-lobo admiram os caixotes de cerveja empilhados e fogem

nos canteiros da avenida frei serafim putas acenam com gestos medidos a fome é mais forte que o medo

um louco jaime fazia ponto no cruzamento da barroso com a senador pacheco sem saber que existia a guerra fria

quinta-feira era dia de matar o tempo na praça pedro segundo enquanto os sapos copulavam nos lajedos do tanque

post card 57/77 à memória do artista plástico fernando costa

nas tertúlias do clube dos diários uma geração embarcava no marasmo esquecendo tudo mais

nos canteiros da avenida frei serafim os cupins construíam suas casas fiando estranha quietude


no bar carnaúba o sol roía o marrom das tabículas das mesinhas e os homens de casimira cinza faziam planos

não há bar carnaúba mas os homens de casimira cinza continuam fazendo planos cogitando não aceitando irreverências

a paissandu agoniza os bêbados já não falam tanto e a frieza da noite venceu o calor dos boleros

madalena morreu de câncer e nas calçadas da simplício mendes nada há que lembre sua presença

no mercado central negrinhos descarnados catam laranjas e limões podres em plena manhã de maio

o parnaíba continua lavando as almas pagãs dos meninos fujões roendo as pedras do cais com a mesma fúria

na paissandu os bêbados pregavam a subversão e um bolero esquentava as entranhas da noite

nas calçadas da simplício mendes um rosto magro madalena deixava brotar estranhamente um sorriso largo de espera

no mercado central pretas carnudas vendiam frito de tripa de porco fígado picado e caninha

FOTO | GABRIEL TORRES

no cais do parnaíba piabas prata saltavam das águas barrentas como no sonho dos meninos


Como surgiu a revista Pulsar? No início da década de 1990, estavam coexistindo grupos de dança, teatro, literatura e artes plásticas. Interagiam para a produção de determinados eventos. Em 1994, percebemos que uma ideia tinha sido desconsiderada. Pois, como mídia para circulação de textos, não tinha sido utilizado o adesivo, e vinha sendo utilizado por empresários para fazer divulgação de produtos, e por políticos para divulgar suas campanhas. Eu e Rogério Newton decidimos criar o projeto Poesia Adesiva. Consistiria em, trimestralmente, editar 20 mil exemplares de poemas de dois poetas. Precisamos da colaboração de artistas plásticos para ilustrar os textos. Pensamos no adesivo por sua capacidade de circulação e exposição. Eram postos em bancas de revista para serem vendidos. Para lançamento do projeto, buscamos aproximação com o Grupo de Teatro Circo Negro, que estava em atividade no momento. Solicitamos que transformassem os textos literários dos adesivos em cenas teatrais. Levamos para um público maior no Teatro do Boi. Ao mesmo tempo, convidamos alguns artistas plásticos, que levaram suas telas para serem expostas. Quando isso aconteceu, decidiu-se que era possível, sim, aglutinar mais pessoas e fazer uma revista de cultura. Decidimos que a primeira iniciativa era fazer uma entrevista com uma temática até então silenciada. A entrevistada seria Niède Guidon. Como revista de cultura, tinha que fazer a regressão mais extensa possível para buscar as origens. E buscar essas origens era exatamente ouvir a Coordenadora de um grupo de pesquisas centradas em São Raimundo Nonato, nos sítios arqueológicos, sobre a história do Homem Americano. Na época, a Fundação do Homem Americano (FUNDAM) estava em construção. Paulo, e o nome Pulsar, quem deu?

Pulsar é uma estrela e emite radiações periódicas, segundo o resultado de pesquisas tecnológicas mais recentes. A nossa pretensão era que a revista funcionasse como um Pulsar. Emitindo informações para serem decodificadas, ou não. A necessidade da revista foi uma decisão coletiva. A sugestão de nome foi minha. Nós sabíamos que cada número teria um entrevistado. Alternadamente, seriam editados um contista e um cronista, e seria editado sempre um poeta. Um artista plástico seria focado. A revista não teria editorial com palavras. O editorial, a cada número, seria uma fotografia. A fotografia da nº 1 teria que ser uma fotografia coletiva. 60


Abaixo, as 5 edições da revista Pulsar (1998-2003). Acima, foto-manifesto da revista em 1998, na margem esquerda do rio Poty, em Teresina. Registro de Paulo Guttemberg. Da esquerda pra direita: Rogério Newton, Airton Sampaio, Chiquinho Pereira (com chapéu), Rubervam du Nascimento (com os peixes), Cláudia Santos com Marina Lua (a criança) Adriano Abreu, Eva, Ferdinand Cavalcante, Lúcia Quitéria e Amaral (atrás do quadro de Fernando Costa). Sentados, Paulo Machado (com a placa), José Pereira Bezerra e Carlos Aguiar.


+ 3 POEMAS DE PAULO MACHADO

Um Galo Negro Um galo negro, (no campo absurdo da página branca) estranhamente esquecido entre papéis, na escrivaninha.

Um galo negro, (crista serrilhada e afiados esporões) desvelador de auroras, desafia a fúria do sol bronze.

Um galo negro, (trama de ramos de parábolas e instigantes linhas quebradas) ícone reinventado no desenho de Gabriel Archanjo.

desenho | GABRIEL ARCHANJO - poema publicado em calendário da livraria e editora Corisco, 2002

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o rio

para o poeta cineas santos

preciso urgentemente escrever um poema! que os versos sejam vorazes, lembrando do rio de minha cidade, comendo as pedras do cais. mas como escrevê-lo?

como domar o rio de minha cidade à condição de poema?

o rio de minha cidade não pede adjetivos, principalmente recusa os que o tornam abstrato.

poética

o rio de minha cidade guarda em suas entranhas o orgulho do homem sozinho.

fica o ranço das metáforas, o outono na velha aquarela. no porto, a lembrança das velas.

o rio de minha cidade é um rio migrante, Por que aprisioná-lo no corpo de um poema?

FOTO | GABRIEL TORRES

o rio de minha cidade é água viva na carne, água pesada na memória. o rio de minha cidade é torto como uma cicatriz fazê-lo reto seria contradizê-lo FOTO | GABRIEL TORRES vivê-lo, petrificá-lo nas retinas esquecê-lo, jamais

preciso urgentemente escrever um poema!

fica o silêncio, o esboço do poema, os músculos rijos à espera do agora. fica a certeza de caminhar em linha reta, não fugir nunca. remar contra a corrente, lutar sem temer os golpes sujos dos que rastejam, cães roendo os ossos da omissão. fica a ânsia, o sangue queimando nas veias até o último momento.


O grupo se manteve coeso da primeira às últimas edições? O grupo implodiu na última edição [risos]. Na reunião pra fazer o outro número, que não aconteceu. Vamos contextualizar. Em 2003, tinha chegado ao poder político, nacional e local, o Partido dos Trabalhadores. Lula foi eleito Presidente da República, e Wellington Dias, Governador do Estado. Alguns integrantes do grupo, não sei de onde tiraram essa ideia, disseram que iríamos fazer um alinhamento. A revista, que inicialmente se propunha autônoma sem vinculação política e ideológica, faria uma opção. O que não correspondia à verdade. Ninguém tinha planejado isso. Os que defenderam essa ideia decidiram sair. A saída causou um mal-estar tão grande que não tivemos como continuar. Esse mal-estar persiste?

Sou receptivo a todos. Notei que, não sei por quais circunstâncias, houve muitos distanciamentos. Faço uma ressalva porque, pessoalmente, a partir de 2006, tive que enfrentar uma situação pessoal muito difícil. Minha mãe adoeceu, ficou em estado vegetativo, e tive que assisti-la. Fiquei praticamente recluso. A Pulsar cumpriu seu papel? Como memória, isso se propaga?

foto | GABRIEL TORRES 64

Quando a Pulsar encerrou as atividades, eu tomei a iniciativa de fazer três encadernações. Fiquei com uma, levei as outras para a Biblioteca Pública Estadual, e para a Biblioteca Central


da Universidade Federal do Piauí. Com a preocupação de preservar para, no futuro, se alguém tiver algum interesse, possa tê-la como fonte de pesquisa. Paulo, tu tem algo inédito pra publicar?

Tenho alguns poemas que foram editados de forma esparsa. Eu gostaria de reuni-los. E que fosse reeditado o livro A Paz do Pântano, que foi editado há 34 anos, numa tiragem diminuta de 500 exemplares. Está fora do circuito há três décadas. Tu tem acompanhado a produção contemporânea?

Tenho, na medida do possível. Uma coisa que aconteceu de interessante foi a pluralidade. Nos anos 70, o número era bem menor e o direcionamento era muito vinculado a grupo. Hoje percebo que não. Têm surgido muitas pessoas escrevendo bem. E é muito bom. Qual é a coisa mais importante do mundo?

A liberdade. Sem liberdade, a vida fica terrível. Experimentei isso na minha infância após o Golpe de Estado em 1964. Quais são as lembranças que tu tem dessa perca de liberdade?

Logo que me interessei por literatura, e tomei conhecimento da existência de determinados livros, fui procurá-los. A informação que obtive foi que tinham sido retirados do mercado porque estavam proibidos. Fui um leitor assíduo do Pasquim. Em algumas edições, os jornalistas informavam que as matérias veiculadas tinham sido censuradas. E as frequentes notícias de prisões e desaparecimentos de militantes políticos. Que mentira tu gostaria que fosse verdade?

A dotação de recursos públicos suficientes para a realização de todas as atividades culturais que o povo brasileiro tem capacidade de realizar.


transmito o q me foi transmitido aqilo q recebi condenso multiplico trânsito fluido tempo transito minha gênese assimilo e pratico caminho sobre este planeta remanescente da erosão d 1 supernova ( a julgar pela riqueza d átomos tão pesados enraivecidos na fúria do sexo qqr q seja a dor q experimente lavo-a na água águas claras alimentam onde vivo na íris do giro, aqi, há qietude sou = a gota d água qéeñé e tudo q se origina da água ñ tem + realidade q 1 sonho seria sólido? 1 edifício sobre a água

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)

REUBEN DA ROCHA (MA)

cavalodadá vulgo Reuben da Rocha (São Luís, 1984) publicou os livros Miragem no olho aceso; As aventuras de cavaloDada em + realidades q canais de TV (2013); Na curva da cobra nos cornos do touro no couro do tigre na voz do elefante; O astronauta cruza a rua (2015) e o seriado em seis fascículos Siga os sinais na brasa longa do haxixe (2015 - 2016). Autoeditor na Gurugutu baratos gráficos. _______________________________________________________


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a mão é + rápida qe a mente atiça o músculo cardíaco, aperta-o, cheia d coragem e , ao soltá-lo , o coelho do coração pulsa pânico desbragado desejoso seu hospedeiro só p/ fingir estar fazendo algo apruma-se, vira-se p/ seu sistema cardiovascular : calma!, seu afobado sem estilo, é devagar qe sobe-se a ladeira 1 protozoário se alojou em seu coração deixe ele aqi p/ eu comê-lo a moléstia na sua ausência, pediu c/ olhos caídos d máscara


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ARNALDO ALBUQUERQUE: 68


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NEILA ROCHA (PI) Mestranda em Design pela Faculdade Anhembi Morumbi, Professora DE do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Piauí. Coordenadora do PIA projeto de ilustração e animação da UFPI. Autora dos livros Os dentes de Maurício e A casa de Anabela. _________________________________________

transgressão e vanguarda nas animações piauienses ANIMARE: DAR VIDA A ALGO

A animação é um processo intrigante, desenvolve-se num ambiente tecnológico complexo onde vários elementos se articulam. Nasce com as mesmas engrenagens do cinema e partilham dispositivos e conteúdo técnico. A ilusão do movimento através da rápida sucessão de imagens só aconteceu após o Renascimento, no começo do século XX, com a criação de suportes, máquinas que serviram, num primeiro momento, como estudo científico, e depois como atração cultural. No Piauí, acolhemos a chegada da animação em 1976, com Arnaldo Albuquerque, que iniciou sua carreira nas ilustrações, quadrinhos e, após um acidente de moto, experimentou as técnicas de animação. 69


Arnaldo Albuquerque nasceu em 1952, lançou a revista Humor Sangrento em 1977, a primeira publicação de quadrinhos do Piauí, participou de filmes como câmera e fotógrafo. Suas obras conseguem ser, ao mesmo tempo, tradicionais e contemporâneas, tanto no traço do desenho como nos temas políticos abordados. Num momento em que se consumia muito produto estrangeiro, em todas as áreas culturais, Arnaldo Albuquerque insere-se com seus quadrinhos num movimento de contracultura. Ele mesmo dizia:

“Eu falava de exploração sexual, de poluição e fazia brincadeira com a classe média. E como todo artista da época que se prezava, eu falava do imperialismo americano” [...] Trabalhos que reaproveitam lendas e historias populares, bem como fatos verídicos são uma marca sempre presente no trabalho do artista. “Gosto de falar desses temas e das injustiças porque acho que o artista tem que denunciar as mazelas sociais”. (Jornal Meio Norte. 3 de março de 1996. p. 6.)

Um dos temas tratados nas animações foi a dominação americana presente em “Carcará pega, mata e come” (1976) o título da animação faz referência à música de João do Vale, interpretada por Maria Bethânia. A história é contada de forma irônica, utiliza símbolos nordestinos e americanos, como uma família de retirantes e a imagem do Capitão América. O pássaro Carcará derruba o bebê carregado por uma cegonha, em seguida, come-lhe as vísceras. O gavião transforma-se em Capitão América, símbolo da dominação americana, mas depois é abatido por uma família de retirantes nordestinos que assam e comem o pássaro. A animação é carregada de significados políticos e sociais, reflete a dominação americana ao mesmo tempo que exalta a força e resistência dos nordestinos.

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Para assistir à animação, visite o link: https://www.youtube.com/watch?v=368ltQ1BAVQ


Produções suicidas apresenta! É com esta frase, e com o logotipo que imita o do MGM Studio, que Arnaldo Albuquerque inicia suas animações. São 27 frames desenhados e coloridos com tinta guache em papel manteiga e 3 segundos de duração onde aparece um rapaz atirando na sua própria cabeça e caindo. A produção revela todo o lado transgressor de Arnaldo, ao mesmo tempo, o caráter experimentalista, muito comum no cinema marginal.

Logotipo do MGM Studio

Frame da abertura

Cada frame/desenho foi feito em papel manteiga no tamanho 14 x 12cm aproximadamente. Dois furos ajudavam na hora de desenhar uma imagem sobre a outra, eles eram cuidadosamente encaixados em uma base de madeira com dois pinos. A pintura foi feita no verso do papel, como ele apresenta certa transparência, a cor é vista, mas o relevo da tinta não é percebido.


Foto de um dos frames da abertura.

Como forma de economizar na animação, Arnaldo utiliza um recurso muito comum entre os animadores: recortar uma imagem que se repete e só alterar o que realmente será animado. A seguir, as duas imagens que representam isto. A primeira é constante, foi feito um recorte cuidadoso de forma circular para mostrar a parte que será animada. As imagens sobrepostas eram filmadas juntas.

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Fotos dos frames da abertura

O trabalho de animação realizado por Arnaldo continua sendo atual, embora produzido em 1976, tanto no tema trabalhado, como na técnica. Falar de suicídio de forma artística na cidade que apresenta números alarmantes desta prática entre os jovens, desde aquela época, é expor uma ferida social, e isto reflete suas inquietações com os temas pouco trabalhados na mídia. Sexo, política e desigualdade social também estavam presentes em tudo que fazia. Trazer de volta as animações de Arnaldo é uma importante ferramenta para valorização da cultura local, provocando novos estudos e servindo como resgate histórico.


não recuse o envelhecer há dias contrários à fé

nas paredes de tua casa a vigília é sacerdócio iludido multidão de fome e farpa nas vigas habitam ateu o teu consolo

te veste de sombra & atravessa a sobra porque a morte está contigo e nem um cajado te consola.

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há naufrágios demais nesse corpo que quer margem repertório de queda no espelho que noticia mergulho e presença

um dia há de se revogar a paisagem selvagem das fotografias não reveladas & as ruínas dos conventos que só permitem segredos e silêncios.

AIRTON SOUZA (PA) Poeta e professor. Tem 24 livros publicados e já venceu diversos prêmios literários importantes, entre eles: III Prêmio Nacional de Literatura da UFES, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o livro Cortejo & Outras Begônias (2016). ________________________________________________


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A Vaca Profana, o Ministério da Cultura e o governo golpista de Michel Temer

LAURA BEZERRA (BA)

Professora de Política e Gestão da Cultura no Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. ______________________________________

Em 1985, um ministério exclusivo para a cultura foi criado no Brasil. Paradoxalmente, nos governos da Nova República, as políticas de cultura passaram por um período de enorme instabilidade: a extinção do Ministério da Cultura (MinC) sob Collor de Melo, sua recriação no governo Itamar Franco, além de dez diferentes mandatários ocupando a pasta entre 1985 e 1995, impediram o desenvolvimento de políticas culturais que mereçam este nome. Tal instabilidade é uma constante, sendo considerada por Albino Rubim (2007) uma das “três tristes tradições” nas políticas culturais brasileiras, ao lado dos autoritarismos e das ausências. A gestão de Francisco Weffort à frente do Ministério da Cultura nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso representou uma bem-vinda estabilidade. Porém, em um momento de forte identidade entre Estado e Mercado, as leis de incentivo fiscal transformaram-se no principal instrumento da política cultural no período 1995-2002, deixando de ser apenas uma modalidade de financiamento e passando a, praticamente, substituir as políticas de cultura (CASTELLO, 2002; RUBIM, 2007, 2010b; SARKOVAS, 2005) – o que, de certa forma, representou uma nova modalidade da ausência do Estado nas políticas culturais. No Governo Lula, houve um forte deslocamento nas políticas de cultura do Brasil. Nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira, o MinC, apesar de manter alguns elementos neoliberais (como as leis de incentivo na sua forma atual), assumiu uma postura propositiva. A ideia de uma política pública de cultura orientou as ações – não mais direcionadas apenas aos artistas, como de praxe, mas a toda sociedade.


Uma noção ampla de cultura substituiu as velhas ideias da cultura reduzida às artes institucionalizadas e ao patrimônio histórico, o que permitiu implementar programas inovadores, como o Cultura Viva, o Revelando os Brasis, o DOCTV, etc. Diversas medidas estruturantes foram iniciadas, a exemplo das tentativas de descentralização da ação ministerial (tradicionalmente restritas ao eixo Rio-São Paulo), da construção de instâncias de participação popular (consultas públicas, conselhos, conferências), do desenvolvimento de um sistema de informações e indicadores culturais (para embasar a definição dos programas e permitir seu monitoramento e avaliação), bem como o processo de implementação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que propõe um modelo de gestão compartilhada e descentralizada. O orçamento da cultura aumentou significativamente em relação a 2002, assim como a presença do MinC no cenário nacional e internacional. Essas tentativas nem sempre foram bem-sucedidas, mas a direção apontada estava em conformidade com a Constituição Federal de 1988 quando afirma que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”. Parecia que o Brasil construía um novo paradigma de atuação, caminhando para superar as “tristes tradições”. Entretanto, no primeiro Governo Dilma, o Ministério teve uma trajetória errática com retrocessos de difícil compreensão. Somente se considerarmos que os valores que orientaram a atuação do MinC no Governo Lula, e que possibilitaram transformações tão potentes, não haviam sido efetivamente incorporados pelo governo ou pelo PT. Mesmo apontando alguns elementos positivos neste período (a continuidade no processo de implementação do SNC, as ações na interface cultura e educação e no âmbito da economia da cultura, por exemplo), observamos que o Ministério da Cultura não somente “perdeu o norte”, como também amargou uma expressiva perda de recursos e de prestígio. O retorno de Juca Ferreira em 2015 não foi suficiente para reverter as perdas anteriores, e cabe salientar que a comunidade de produtores e ativistas culturais não se mobilizou contra os recuos do Governo Dilma. A extinção do MinC no primeiro dia do governo de Michel Temer precisa ser vista em um contexto maior de perda de direitos, desestabilização da democracia e abertura do Brasil para o capitalismo mais selvagem e tacanho que se possa imaginar. Não é por acaso que o Ministro da Educação (e Cultura, no primeiro momento) é ligado aos empresários da educação privada, assim como o Ministro da Saúde tem relações íntimas com gestores de planos de saúde privados. Neste sentido – de subordinação do governo à perspectiva do capital – pode ser entendida a criação de uma Secretaria Especial de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que esvaziaria o IPHAN, criado em 1936, e abriria espaço para a subordinação do patrimônio aos interesses econômicos. 78


Não é por acaso que, junto com o MinC, logo no início da gestão, foram extintas também as Secretarias da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Direitos Humanos – pastas com orçamentos mínimos, o que torna pouco verossímil o argumento de “economia de recursos”. Seria uma represália à classe artística que havia se posicionado majoritariamente contra o impedimento da presidente eleita? Possivelmente. Mas, mais do que isso, trata-se de um projeto mais amplo de esvaziamento dos direitos conquistados; no caso do MinC, dos direitos culturais como base da ação ministerial, do aumento da participação pública na elaboração e avaliação de políticas culturais, do empoderamento de grupos subalternizados, de utilização de uma noção de cultura ampla, diversa, multifacetada. A cultura se parece com a vaca profana, que “põe os cornos pra fora e acima da manada” e o governo de Michel Temer parece ter um verdadeiro horror à reflexão crítica e à expressão criativa, não domesticada. Reuniões a portas fechadas com um seleto grupo de produtores culturais levam a supor que o velho clientelismo (a cultura dos “notáveis” e dos “amigos”) voltou a reger o Brasil. A cultura mofada, bacharelesca, elitista, restritiva, ultrapassada nos espreitou com seus olhos azuis de machos brancos, provincianos, coronelescos. Sucupira revisited. Desta vez, porém, a “classe” artística se mobilizou no Brasil e fora dele, com a ocupação de espaços do MinC em 25 estados e a presença constante do “Fora, Temer!” em festivais e outros eventos. Em função disso, dez dias após a posse do “atual” presidente, o Ministério foi recriado e um gestor (Marcelo Calero, que já pediu demissão desde que se transformou no pivô do mais recente escândalo a abalar a Presidência da República, Geddel Vieira Lima e o IPHAN) assumiu a pasta afirmando que sua presença seria uma “mensagem muito forte de que a gente está aqui estabelecendo políticas do Estado brasileiro, consistentes e duradouras” (O Globo, 28/5/16). O discurso não convenceu; as ocupações continuam, a recriação do MinC não enganou os artistas e produtores culturais: o que se está defendendo não é a permanência do Ministério, mas sim de um projeto político-cultural que é incompatível com os valores e as práticas do governo Temer. O ex-Ministro da Cultura, Marcelo Calero, disse no seu discurso de posse que “estaremos sujeitos àquilo que a sociedade demanda, nunca a serviço de um projeto de poder” (Imprensa Viva, 24/5/2016). Entretanto, o protesto feito pela equipe do filme “Aquarius”, em Cannes, foi chamada por Calero de “até um pouco totalitário” (sic!) e “irresponsabilidade quase infantil”, por “causar prejuízos à reputação e à imagem do Brasil” (programa “Preto no branco”, do Canal Brasil, em 5/6/2016). São realmente as “demandas da sociedade” que estão a orientar a atuação do MinC? Como se explica, então, que a Procuradoria Federal tenha ingressado com ações de reintegração de posse dos espaços ocupados pela comunidade artístico-cultural em três Estados (nota da Assessoria de Comunicação do MinC em 21/6/2016)? A comunidade cultural está atenta para o discurso vazio e permanece mobilizada contra o retrocesso. Isso é bom, mas é pouco. Faz falta que a sociedade como um todo saia às ruas gritando “#OcupaMinC”. E cantando “Deusa de assombrosas tetas // Gotas de leite bom na minha cara // Chuva do mesmo bom sobre os caretas”.


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KT (PI) Figura da noite, tragada pelo vício do vandalirismo; na calada, desdobra a insônia em pretexto(s) para espixar diálogos com as paredes e muros das cidades. Paredes têm olhos e ouvidos, boca também. O pixo grita! _____________________________________________________________


PAUL LEWIN (JAMAICA) Nasceu em Kingston, Jamaica, em 1973. Mudou para os Estados Unidos com a família em 1977. Passou a maior parte da vida em Miami-Flórida e agora mora em Oakland-Califórnia. A primeira mostra de artes foi em 1998 em Miami. Em 2004, mudou para a área da baía (São Francisco), para ir mais além com a sua arte. Atualmente, seu estúdio fica em Oakland.

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TRADUÇÃO: DENISE LIMA 76


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Processos plásticos em trânsito: a identidade negra em Paul Lewin Sempre amei a arte de contar histórias. Essa prática faz parte da minha cultura desde a época dos antigos ancestrais. Para mim, meu trabalho é uma forma de continuar essa tradição, na linguagem que eu conheço melhor... a arte visual. Com a pintura, sou capaz de criar minhas próprias histórias e refletir sobre as histórias dos meus ancestrais. Assim como aqueles que vieram depois de mim, a arte tem um papel importante na minha vida. Ela me ajudou em tempos difíceis, e a compreender melhor quem eu era, de onde vim e onde eu poderia chegar. Para as primeiras comunidades afro-caribenhas, a expressão artística foi uma ferramenta vital na luta contra a colonização e uma forma de manter os laços com suas forças ancestrais. A criatividade e narração de histórias foram meios de sobrevivência cultural em terras desconhecidas. Acho isso parecido com o que nós, descendentes da diáspora, experimentamos hoje. Por ter crescido em uma dieta constante de tv, video games, ficção científica e fantasia, eu fui submerso em um mundo onde vi poucas representações de personagens semelhantes a mim. Grande parte do meu trabalho acontece em meio ao cenário da ficção científica e da fantasia. 83


Gosto de misturar motivos tradicionais africanos e caribenhos com visões surreais da natureza e ancestralidade que nos cercam diariamente. Quero que cada peça conte a sua própria história. Muitas vezes, uma história se desenrola à medida que eu pinto e tento deixá-la se formar sem pensar demais.


Também tento não revelar demais em cada peça, pois gosto de deixar a experiência dos espectadores livre de interpretações. Meu trabalho é minha própria história e jornada. Creio que seja importante, para nós, contarmos nossas histórias da maneira que queremos que elas sejam ouvidas.


Inventário de sonhos possíveis: Itinerância Poética Que a razão não embriague minha capacidade de voar

No início era o verbo, verso... ...ação! Creio que uma das coisas que nos faz gente é nossa capacidade de decidir. Assim me tornei poeta, decidindo-me, metendo a palavra no oco do mundo, tirando da gaveta e expondo ao papel e aos ouvidos algumas “loucuras de juízo”. Escrevo poesias, pequenos contos, reflexões oníricas e outros textos, que eu me lembre, desde os 14 anos. A vida passa, a gente cresce e vai tomando decisões enquanto novos adultos. Nas Minas Gerais em que nasci e me criei até os 24 anos a poesia ressoava das “peladas” jogadas na rua, das corridas de bicicleta atrás do “trenzinho da alegria”, das frutas frescas furtadas do pomar de Seu Odorico, das conversas com os antigos, dos provérbios das velhas avós, enfim, das presepadas comuns a infância nos interiores. Aos 18 anos sem saber pra quê entrei pra faculdade de fisioterapia e lá descobri a anatomia, disciplina que fui monitor por quatro anos e lembro que os termos latinizados despertou minha paixão pelas palavras e suas origens, suas histórias. Foi lá também que me encontrei com a educação popular e por si com a cultura popular. Me formei e segui para uma pós-graduação no interior de São Paulo, nova terra, novas pessoas, novas culturas, isso tudo me estimulou a voltar a escrever, com alguma consciência a mais. Foi nesse momento que percebi a escrita enquanto necessidade, como processo de auto cuidado mesmo, pois me tornando um ser cada vez mais pensante, rebelde com causas, esta me ajudava e me ajuda muito a esvaziar cabeça, transformar minhas idéias, pensamentos, ideologias. 86


GUILHERME SALGADO (MG) 31 anos. É poeta andarilho e animador de processos educativos, viaja pelo Brasil de forma autônoma e solidária, a bordo da Komboteca Itinerância Poética. Publicou os livros “Itinerância Poética” (2013), “Estirpe” (2014) e o livro postal “Poesia é Desenho” (2015), em parceria com a artista visual Ludmila Britto. _________________________________________________


“Andei por andar andei, mas todo caminho deu no mar”. Alguns trajetos me levaram a Bahia, e foi lá que quebrei “minha régua e meu compasso”, me tornando um ser cada vez mais sem medidas. Lá me encontrei com alguns sujeitos e coletivos que trabalham com as várias linguagens das artes. Esses encontros permitiram com que eu pudesse olhar pra mim mesmo com outros olhos, olhares que vem contribuindo para o desvelar de minhas potências criativas enquanto sujeito pensante e fazedor de coisas. Nesse momento é que começo a reunir e organizar esses diversos escritos, que por mais de uma década foram se amontoando de forma caótica em velhos papéis, cadernetas, canto de folhas avulsas e arquivos de computador. Numa primeira reunião de poesias, decidi junto ao incentivo e apoio direto de dois amigos, diagramar, desenhar e lançar o que eu chamei de Livro Primeiro: Itinerância Poética. Ao mesmo tempo forjamos um selo editorial independente chamado Edtóra, pois nosso processo nascia na tora mesmo, sem editais, sem editoras. Daí rolou uma produção intensa de sentidos, afetações, inquietações e materialidades. De forma inter-dependente e autônoma foram impressas e montadas manualmente 500 cópias desse material. O processo de idealização, organização dos escritos, diagramação e impressão foram incríveis, mas aí veio a parte cheque do processo, divulgação e distribuição: “- e agora José?” No diálogo com um amigo professor de Belas Artes é que veio o sinal: “se teu livro chama Itinerância Poética e pelo que vi, cada poesia foi escrita num lugar diferente, vá rodar cabra, dá um jeito, circula seu material na raça, invente lançamentos por onde quer que vá, enquanto durar o estoque de livros”. E assim comecei a fazer, forjar lançamentos aonde eu ia, juntando a necessidade de viagens do trabalho de sanitarista que desempenhava na época ao interesse/desejo e também necessidade de circular meu material. Além de Salvador e Cachoeira na Bahia, nessas primeiras viagens articulei lançamentos no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Sergipe, sempre em articulações com pessoas, coletivos, saraus e instituições de cada local. Depois dessas primeiras incursões, passei a levar essa história cada vez mais a sério, até que pedi demissão do trabalho formal, comprei um Fusca 1979 e comecei uma viagem de Minas a Bahia, passando por várias cidades, com o mesmo movimento de antes. 88


Nessas andanças comecei a ganhar muitos livros autorais de poetas e escritores independentes com as mesmas questões que a minha, problemas na distribuição/vendagem dos livros. Além disso formei um pequeno sebo de livros usados angariados na minha pequena biblioteca e assim foram 6.000 km: Timóteo, Vitória da Conquista, Salvador, Palmeiras, Formosa do Rio Preto, Brasília, Uberlândia, São Carlos, São Paulo, Belo Horizonte. Esse sonho real me levou até a Ilha de Cuba, nesse caso não de Fusca, que no momento passava por uma intensa reforma, após essa longa aventura. Isso tudo aconteceu ao longo dos anos de 2013 e 2014. Essa foi uma aventura primeira que iria de algum modo re-significar a vida desse sujeito que vos fala. Mal cabendo no fusca, em meio a tanto livro e incentivado pelo lançamento do Livro Segundo Estirpe: pequenos contos e algumas poesias no final de 2014 em São Paulo, pelo selo independente Poesia Maloqueirista. Somado a recém notícia da paternidade, quando todos esperavam meu retorno a uma vida “normal”, a um emprego formal e a uma vida familiar comum... tive a idéia de ampliar o sonho e trocar o Fusca por uma Kombi 1999. Aí então o projeto começa a se forjar enquanto movimento e tomar formas e sentidos mais palpáveis. Junto ao meu pai e um primo adaptamos toda a Kombi para receber um sebo, uma biblioteca, um cine-clube, cama e cozinha, então surge uma nova aventura... numa primeira investida subo pra Bahia, onde fico por um tempo, morando e circulando pelo estado por seis meses, pela Chapada Diamantina, Recôncavo e região metropolitana de Salvador. Em Salvador iniciamos uma intervenção na lataria da Kombi, num grafitti iniciado por Flos, e escritas por Laura Castro e intervenções de outras figuras encontradas pelo caminho. Em meados de 2015, realizo a ousadia maior, da Bahia a Maranhão pelo Sertão e do Maranhão a Bahia pelo litoral. Subindo pelo sertão baiano o processo se deu de diversas maneiras, algumas cidades planejadas, articuladas previamente, com apoio de famílias, coletivos, instituições, saraus ou então eu simplesmente chegava, estacionava em uma praça mais central, armava o material, puxava o toldo e fazia um café, daí estava iniciada a disposição ao encontro pela curiosidade, pela poesia, pela palavra, pela literatura, pela simples necessidade de estarmos juntos a partir da palavra. Poetas populares, tradicionais, contemporâneos, músicos, artistas, professores, crianças, profetas, andarilhos e seres viventes das ruas era comumente o público que se achegava. Foram cerca de 70 cidades em todos os estados da região nordeste, mais de 12.000 km, sete meses, acolhimentos em incontáveis casas, centros de cultura, saraus, eventos de arte, coletivos, etc.


Aos poucos algumas intencionalidades do projeto foram se desenhando como: ocupar espaços públicos com coisas públicas, se associar a projetos e coletivos que ocupavam estes espaços nas cidades, participar de eventos de literatura e poesia, como saraus e recitais, forjar lançamentos do Estirpe, bem como expor todo material da Poesia Maloqueirista com os 26 livros de 21 poetas, ofertar outros livros da Edtóra e demais selos independentes, realizar sessões de cine clube como entretenimento e oportunidade para o debate de história, política, direitos, meio ambiente e outras coisas, angariar produções literárias loco-regionais para ampliar a diversidade da biblioteca, com ênfase na poesia, na literatura contemporânea independente, ser uma galeria itinerante de artes visuais, enfim, polinizar e ser polinizado pelas poesias e produções artísticas por onde passava. Nesse meio tempo é impossível não lembrar dos poetas populares e da festa de São João Evangelista em Uáuá no sertão da Bahia, do Roteiro Poético Boêmio do Crato-CE, do reencontro dos poetas em EXU-PE, momento este que culminou na criação de um sarau permanente chamado Flor do Mandacaru, do cine-clube e da oficina de percussão popular brasileira com a juventude do Projeto Adimó em PicosPI, do novo grafitti do parceiro Dband e o acolhimento dos poetas em Teresina-PI, das intervenções junto ao Circo Tá na Rua em São Luís-MA, a parceria com o Coletivo Artezona em Pipa-RN, do necessário encontro com Miró da Muribeca e Valmir Jordão no Recife, do Sarau de Baixo e seus guerrilheiros urbanos em Aracaju-SE, do reencontro com a Bahia através do Fica na Rua durante a Flica junto ao Pouso da Palavra em Cahoeira-BA, além de outras incontáveis e incríveis vivências. 90


O desfecho da viagem foi massa, por estar retornando a Bahia, reencontrando amigos e ainda articulando o lançamento do terceiro livro, um livro de arte-postal-poema impresso com o selo Edtóra, feito com muito carinho em parceria com a artista visual Ludmila Britto. Só que, no meio das flores espinhos, a Kombosa manifestou sinais e sintomas de graves problemas no motor e suspensão, tentei arrumar, em vão, tive mais prejuízos e a komboteca teve que ser rebocada até Minas, foi-se a economia restante. Após avaliada por Edinho, mecânico de confiança, o diagnóstico: ”precisa de um novo motor e de uma nova suspensão”... aí danou-se, neste momento surge a proposta do financiamento coletivo. Dois meses intensos de campanha e não é que deu certo, rolou a grana, mais de 100 pessoas de várias lugares do país e de fora contribuíram, conseguimos o montante para a recuperação da Komboteca e no início deste ano estreamos novo motor, nova suspensão, novas pinturas, novas rotas. Logo então surgiu a oportunidade de vir morar em Fortaleza, assim tornei a subir o mapa: Guanhães, Serro, Diamantina, Montes Claros-MG, Guanambi, Itacaré, Salvador-BA e enfim, novamente no Ceará. Depois de quatro meses em Fortaleza e região estamos de volta as estradas. A idéia é seguir, enquanto houver poesia, rua, gente, arte, até quando o corpo, a lataria, o bolso e o motor agüentarem ou até algum “mecenas” der o ar da graça. Pois: “Ávida, a vida são os próximos dez segundos, o resto é fantasia”.


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CAROL MIAG (BA) É mestre em Cultura e Literatura pela UFBA, artista plástica e ilustradora baiana radicada em São Paulo. Em seu MiagStudio, produz pinturas e ilustrações para livros e revistas em diversas mídias. Fan page: https://www.facebook.com/miagstudio Portifólio: https://www.instagram.com/carolmiag/ Prints online: store.miag.art.br Camisetas e acessórios online: http://foxbear.cc _________________________________________________


cato carunchos na lembrança aberta deste dia que agoniza e espelha sua agonia em nós (círculos concêntricos de dor) o que Borges em nós sonhara na derradeira luz

ou Goethe, sob os círculos concêntricos de dor, mehr licht

ou Emiliano Perneta naquele verso bonito : Luar de um círio no azul de um lírio morto...

NOS VEMOS NA SEGUNDA para Donizete Galvão

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a lua, a luz, a light, a aurora onde nós, bêbados, deitávamos as retinas

a vida não cabe na gaveta tampouco na gravata (melhor a goles de grapete e sinfonia de gravetos) o tempo todo cinza no cinza todo tempo destes tempos

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toda as coisas perdidas numa parte de nós partida (água de bica, montanha, alface, grilo, galinha)

passar de nós mesmos como um ensinamento breve e inútil porém, ainda é uma abstração que nos leva ao nosso duplo ao dublê da cambalhota macabra por cima de nossa carne a leve pele indelével do ar e as rugas (cânions estreitos

FABIANO CALIXTO (PE)

nasceu em Garanhuns, em 8 de junho de 1973. É poeta. Vive em São Paulo com Natália Agra. Publicou vários livros de poesia, entre eles, A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China,2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/ Pitomba, 2014). Seu próximo livro de poemas, intitulado Fliperama, sairá em 2017. _____________________________________________

escritos pela estações que nos levam, sem barulho, ao nosso último mergulho) por cima de nossa carne a saudade dos nossos pais

o céu será nosso último crachá e não nos dará meia-entrada na última cena de cinema nosso acerto de contas nossos dois rios enterrados sob a rua de Matacavalos

na segunda nos vemos a fábrica fantasma continua em greve

o tempo antes o tempo depois de nossa nada quase nenhuma fugaz passagem por este planeta ficamos nós com a poesia nosso batismo de sabedoria

(a gente fica troncho é de perder)

a vida às vezes se parece com aqueles crepúsculos dominicais nos quais saímos para caminhar sob aquele sol atijoladamente vermelho e às vezes nos cruza a memória o tema de abertura do esporte espetacular náufragos natos, a lágrima rasga nosso rosto como um galeão ao ciano do oceano a oração líquida do mar no coração físico da morte


acrobacias indicadas JOMARD MUNIZ DE BRITTO E O PALHAÇO DEGOLADO

OSTREIROS

O editor da revista Acrobata, Aristides Oliveira, faz uma leitura sobre a cultura brasileira através de um mergulho na cena pós-tropicalista em Recife. Explora a vida intelectual de Jomard Muniz de Britto e seu filme mais polêmico: O Palhaço Degolado (1977). Uma abordagem que trafega nos trópicos entrópicos da Pernambucália. Para comprar: aristideset@hotmail.com

UM NOVO CONTINENTE: POESIA E SURREALISMO NA AMÉRICA

O TODO NAUFRÁGIO É TAMBÉM UM LUGAR DE CHEGADA

O poeta Floriano Martins apresenta uma vasta pesquisa, 560 páginas, abordando o surrealismo na América. Um trabalho profundo e de muito apuro sensível. O livro tem como grande mérito as traduções de poetas dos diversos países. Autores pouco conhecidos, ou mesmo totalmente desconhecidos no Brasil. Referência sobre o tema.

Marco Severo traz vinte histórias nas quais o medo, a loucura, a desesperação e a morte estão presentes, provocando uma reflexão sobre as chances daquilo que faz sermos quem somos. Inseridos em determinadas circunstâncias, podemos ter atitudes nunca imaginadas.

Ed. ARC Edições

(Ed. Moinhos). AUTO IMPERIALISMO | BRASIL S/A Duas obras fundamentais para compreender a condição do Brasil contemporâneo por uma ótica lúcida arrasadora, que nos conduz a um abismo assustador. O livro de Benjamin Moser e o filme de Marcelo Pedroso vão te levar ao Brasil nunca antes visto.

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Bruno Azevedo e Ana Mendes fazem uma etnografia sensível e afetiva, acompanhando os percursos dos vendedores de ostra nas praias da cidade de São Luís (MA). O livro aborta as questões singulares da atividade dos ostreiros e de suas vidas particulares. Tudo bem alinhavado e acompanhado de uma bela narrativa visual. Ostreiros é um livro que humaniza e dá a ver pessoas invisibilizadas. (Ed. Pitomba)


GARGANTA, LP DE POESIA E ANTOLOGIA Um vinil coletivo de 20 poetas contemporâneos: Alice Sant’Anna, Amora Pêra, Ana Ana Martins Marques, André Dahmer, Angélica Freitas, Beatriz Azevedo, Bruna Beber, Domingos Guimaraens, Fabiano Calixto, Fabrício Corsaletti, Gregório Duvivier, Laura Liuzzi, Marcelo Montenegro, Mariano Marovatto, Omar Salomao, Pedro Lago, Pedro Rocha, Sergio Cohn, Thiago E (editor da revista Acrobata) e Vitor Paiva. O LP produzido por Sergio Cohn, acompanha a antologia-encarte GARGANTA, com 180 páginas e mais de 100 poemas, fazendo um dos registros preciosos da produção de nosso tempo. Editado por Azougue e Embolacha. Para adquirir, é só clicar na Editora Azougue: http://www.azougue.com.br/garganta/p

REVISTA CAFÉ COLOMBO #6

O DUPLO DA TERRA

Na revista Café Colombo, desde seu número inaugural, a literatura aparece como carro-chefe da publicação, mas seguida de perto por abordagens de temas de orientação filosófica, bem como debates ligados à comunicação, em suas implicações políticas, econômicas e em seus desdobramentos tecnológicos. Para comprar a nova edição:

Terceiro livro da escritora gaúcha Jana Lauxen, e oitavo lançamento da Editora Os Dez Melhores. O livro fala sobre o primeiro contato imediato de quinto grau indiscutivelmente comprovado da história da humanidade, apresentando ao leitor uma cultura e uma civilização extraterrestre intrigante e pacífica. Ele custa R$ 25 e pode ser adquirido na livraria virtual da Editora Os Dez Melhores.

http://www.cafecolombo.com.br/

www.oduplodaterra.com

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a menina dança e o cavaleiro andaluz (...) ***

o poeta entregou suas armas: cajado história silêncio.

o poeta encontrou uma alegria de peixes alucinados. um risco áureo no ventre pindorama. alegria alegria encantamento. ***

exílio

tal ulisses para com a gaia ítaca loth, partindo com estátuas de sal, na passagem. ele estará nu.

e tal nudez de sentimento o faz amar na totalidade. 98

***

entre as auroras e a partida recebi envelopes e mercadorias de um lugar inventado. partilhei a chave arrastei todo o manto sagrado tive surtos sais e exílios

para descobrir toda potência de meu-ser ser a partir da mineração do sonho beijo-sonho paixão-sonho |doce suave. ***

deliciosa dança partitura criança ancas e penas de mudar o tempo ventania centauro girassóis

oh encante brincadeira que não se acaba nunca perdição de meus instrumentos náuticos perdição e descoberta.


garça e sereia do mar, iemanjá. ***

a menina dança e o cavaleiro andaluz sarará arvoa

a menina dança como um corcel selvagem translua

a menina dança e entre seus dentes guarda um punhal sagrado punhal que corta meu peito com um riso lascivo de um pássaro mordaz e curvo.

MARDÔNIO FRANÇA (CE) É poeta e editor da revista corsário. Em 2012 lançou o livro-objeto Mitologias. Participou da antologia de poesia brasileira, Massanova (2007), da antologia Encontos e Desencontos (2007). Foi coeditor da revista gazua. Publicou 3 números da Revista corsário. Editou 16 livros pela Editora Corsário. Fez diversos videopoemas, como o premiado “Mário” sobre o poeta Mário Gomes. Estuda física por amor e gosta de ver o mar em Fortaleza com Cristina. _______________________________________

a menina dança e tem consigo as tábuas misteriosas dos egípcios coaduz o segredo das pirâmides aglutina o cálculo dos mercadores persas e a força da cavalaria moura.

a menina dança e envolve-se com o novelo de outro roubado dos astecas no tempo ultramarinho. a menina dança e traduz a labirinto de tupã caminhando [ entre as planícies das matas da terra perdida e mistura-se [ com os tesouros das ilhas fantásticas dos heróis bucaneiros libertinos.

a menina dança e faz escambo de cristais-celestiais

a menina dança e dante vem na valsa com beatriz [ fazer revel-síntese. a menina dança e os astros, na reverência-temporal, conjecturam um novo horóscopo [ de uma neo-era. a menina dança e um ciclo surge-explode a partir de meu coração cantante saravá!


GIULIA PEX Todos os desenhos desta edição. _______________________________________________________

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