Edição Nº 22 - Campina Grande, 2013

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R E V IST A BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

Campina Grande 2013


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Abralic 2012-2013

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ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Estadual da Paraíba Central de Integração Acadêmica de Aulas R. Domitila Cabral de Castro S/N 3º Andar/Sala 326 CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó) Campina Grande PB E-mail: revista@abralic.org.br


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Literatura Comparada

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp. S達o Paulo n.22 p. 1-334 2013


2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa­rada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora Ana Cristina Marinho Lúcio Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva Diógenes André Vieira Maciel José Hélder Pinheiro Alves Revisão Priscilla Ferreira

Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.)

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991 v.1, n.22, 2013

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação José Helder Pinheiro Alves 7

Artigos

A literatura juvenil na escola Benedito Antunes

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Ensino de literatura: dos estudos de gênero à historiografia Carlos Magno Gomes

31

Para que ler literatura? Formas e limites dos encaminhamentos pedagógicos à questão Celdon Fritzen

47

Pedagogia do olhar: a potência comparativa no diálogo cinema, literatura e cultura audiovisual Claudio Cledson Novaes Mírian Sumica Carneiro Reis

67

Contribuições do comparativismo para a formação de professores mediadores e a promoção da leitura literária Cláudio José de Almeida Mello

89

Aula de literatura - costurando leituras com fiapos de memórias Daniela Maria Segabinazi

115


Inanimate Alice: o bildungsroman da era digital Ermelinda Maria Araújo Ferreira

143

Rever a escola e os conceitos de literatura e leitura: cruzar fronteiras George França

161

Literatura no ensino médio: reflexões e proposta metodológica Girlene Marques Formiga Francilda Araújo Inácio

179

Ensino da escrita de poesia como construção de autoria J. Buarque

199

A temática do holocausto no ensino de literatura brasileira: um poema de Vinícius de Moraes e uma tela de Lasar Segall Kenia Maria de Almeida Pereira

233

Ferréz e Machado de Assis nos bancos escolares? Márcia Rios da Silva

253

O júri simulado num exercício comparativo: uma leitura de Medéia e Anjo Negro em sala de aula do ensino superior Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega

285

Ensino de literatura em tempos de transformação (a literatura e seus diálogos) Maurício Silva

307

Pareceristas ad hoc Normas da revista

327 329


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Apresentação

Há mais de quatro décadas têm surgido, em todo o país, reflexões, pesquisas e ensaios voltados para o problema do ensino da literatura. Com o advento da escola pública acessível a um público bem mais amplo, oriundo de famílias em acesso ao letramento literário mais erudito, a partir da década de 1970, não foi mais possível manter incólume certo modelo “clássico” de ensinar literatura. Por um bom tempo, jogava-se a culpa do fracasso da formação literária nos alunos ao desinteresse, falta de sensibilidade, explosão dos meios de comunicação de massa, entre outros motivos, e esse discurso ainda tem seus defensores. Poucas vezes se pensou na adequação entre os conteúdos ministrados e o nível de leitura e experiência dos alunos. Menos ainda, se atentou para as metodologias utilizadas no cotidiano do ensino, nem para as relações hierárquicas que presidiam a aproximação entre professor e aluno. Também quase nada se refletia sobre o acesso às obras, a formação das bibliotecas públicas e escolares e sobre a ausência de políticas públicas de incentivo à leitura literária. Os livros didáticos, a partir da década de 1970 consagram o ensino da historiográfica - os estilos de época apresentados, ainda hoje, de modo fechado, com apresentação de autores de vários gêneros literários aprisionados numa determinada escola literária. Nem é preciso ler as obras ou os fragmentos para “saber” literatura, basta decorar as características principais dos estilos de época. Todas estas questões já estão amplamente pesquisadas e discutidas em livros, revistas, teses e dissertações. Mas há outros problemas, que envolvem cada professor individualmente, e que dificilmente são enfrentados, muitas vezes nem sequer colocados. Um deles é o da


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atitude de grande parte dos professores e professoras de literatura perante o ensino. Há, em muitos casos, uma atitude claramente preconceituosa no que se refere a esta questão. É como se voltar-se para questões de ordem metodológica fosse uma coisa menor, que um pesquisador, um intelectual, um doutor não devesse se preocupar. Ouvi mais de um professor universitário denominar a discussão sobre questões de ensino como “pedagorreia”. Parece que uma certa atitude aristocrática ainda preside a formação de muitos destes colegas de ensino. Outro problema a ser colocado diz respeito ao nosso aluno no caso aqui, o do curso de letras. Ele é que tem que se esforçar para alcançar o meu nível, para compreender a minha pesquisa, alcançar a minha erudição, se aproximar da minha sensibilidade. Pouco importa se o aluno vem de um ensino médio precário, com pouca ou quase nenhuma leitura literária; que trabalhe durante o dia e estude à noite e tenha um tempo mínimo para o conhecimento de obras literárias. Os problemas de fora da sala pouco importam. E este professor, que pode ter lido Paulo Freire e Frenet não reconhece como seu o trabalho de buscar um diálogo com o aluno, e, também com ele, buscar uma alternativa. Voltarmo-nos para nossas práticas, nossas metodologias de ensino é tarefa pouco enfrentada por muitos professores de literatura e teoria da literatura. Mas os problemas não são só estes. Há uma certa tendência que acredita que todo problema se resume à permanência do cânone e que a solução está na democratização das leituras, em trazer para sala de aula o que não foi consagrado. Ficam de lado também aqui, as questões de ordem metodológica. A ABRALIC, ao lançar uma chamada para publicação de um número de sua revista voltado para as relações entre literatura, ensino e comparativismo, abre um espaço para reflexão numa área que sempre andou um tanto de lado na nossa Associação. Por outro lado, se observarmos os Simpósios nos últimos encontros internacionais da Associação, vamos encontrar alguns grupos discutindo leitura, campo que abriga a leitura literária. Nos dois últimos eventos, a ABRALIC apresentou em sua programação Mesas Redondas que discutiram questões de ensino. E, mais especificamente no último evento, realizado em Campina Grande - PB, três Simpósios, todos bem


Apresentação

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frequentados, voltaram-se para a discussão de diferentes visões e propostas sobre o ensino de literatura. Este número da revista, com quatorze artigos, é um sinal dos mais positivos no âmbito da discussão dos problemas do ensino de Literatura e dos caminhos que se podem seguir. Se tivéssemos que vislumbrar uma unidade nos textos, certamente seria o desconforto com o ensino tradicional da literatura no nível fundamental, médio e superior. Sob diferentes perspectivas - teóricas e metodológicas - os artigos trazem reflexões que envolvem: o ensino da poesia articulada à criação; a problemática da especificidade da dita literatura juvenil; a utilização da linguagem visual - cinema, literatura e cultura - como “paradigmática na formação do leitor”; o estudo comparativo entre textos dramáticos clássicos e contemporâneos levando o leitor a descobrir aproximações e diferenças; problematização “das funções atribuídas à literatura na formação” do leitor-pessoa; leitura de determinadas adaptações de clássicos como caminho possível de formação de leitores; a incorporação “das historiografias de autoria feminina para o ensino de literatura inclusivo”; a contribuição dos “estudos contemporâneos de cultura (...) favorecendo o diálogo da literatura com diferentes produções artísticas e culturais”; discussão e questionamentos sobre o percurso histórico do ensino de literatura, algumas abordagens de caráter temático, que podem motivar experiências diversas, dentre outras questões. O professor que se proponha a ler todos os artigos poderá recolher, direta ou indiretamente, sugestões de trabalho com o texto literário - em seus diferentes gêneros - em sala de aula e suas diferentes interfaces e reflexões sobre o diálogo entre obras, questionamentos sobre o modelo tradicional de ensino. Mas poderá também ficar com uma sensação de ausência de unidade nas abordagens. As duas sensações são importantes, uma vez que, como já afirmamos há algum tempo, não será da cabeça de um (a) iluminado (a) que sairão as novas rotas para o ensino de literatura. É da prática cotidiano do ensino - muitas vezes transformado em pesquisa -, das diferentes reflexões, dos pontos de vista e ideologias às vezes em atrito, que poderá nascer um caminho realmente renovado.


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Se por um lado, como já afirmamos, os artigos apontam para um desconforto com o modelo tradicional de ensino de literatura, por outro, nem sempre trazem o leitor real - da escola básica e da própria universidade - para o centro da discussão. Neste sentido, muitas das reflexões e propostas precisam avançar. Aqui é inegável, em vários textos - e em várias pesquisas que já circulam nacionalmente - a influência de teorias literárias sociológicas, como a estética da recepção e de teóricos como Octávio Paz, e bem antes o próprio Sartre, que inserem o leitor como instância da teoria literária. Há, por outro lado, em muitos artigos um certo desconhecimento de documentos oficiais tão importantes como as OCEM (2006), que, em certo sentido, influenciaram as discussões feitas já no início deste século. O que fazer? Talvez já passe da hora de os professores de Literatura se articularem nacionalmente para pensar e sugerir propostas de mudança no ensino de literatura em nível nacional. Nesta perspectiva, um caminho possível poderia ser discutir com o Ministério da Educação o modelo de avaliação dos livros didáticos realizada pelo PNBE. Criar uma abertura no modelo de avaliação talvez possibilitasse o aparecimento de obras didáticas com novas propostas, com outras possibilidades de abordagem da literatura. Lembremos que documentos oficiais, como as OCEM (2006) já trazem a possibilidade de mudança no nível médio de ensino. Os próximos Congressos da ABRALIC poderiam dar continuidade à essa discussão e buscar formas de diálogo, sobretudo com o MEC, no sentido de influenciar mais diretamente na mudança do ensino de literatura no país. A meta, não esqueçamos, é formar leitores de literatura, um direito fundamental de nossas crianças e jovens como há muitos anos lembrava Antonio Candido.

Campina Grande - Paraíba José Hélder Pinheiro Alves


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A literatura juvenil na escola* Benedito Antunes**

Resumo: A literatura sempre teve uma relação tensa com a escola. De um lado, a função formadora que lhe é própria tem motivado sua inserção nos currículos; de outro, o uso pedagógico daí decorrente parece conspurcar seu valor estético. O paradoxo pode ser mais claramente observado na literatura juvenil, que nem sempre tem sua especificidade reconhecida. Para discutir a suposta especificidade da literatura juvenil e seu uso escolar, este artigo compara os livros A órbita dos caracóis (2003), de Reinaldo Moraes, e Se eu fechar os olhos agora (2009), de Edney Silvestre, que têm em comum a possível destinação ao público juvenil, ainda que nenhum dos dois tenha sido concebido com essa finalidade. Palavras-chave: literatura juvenil, ensino de literatura, formação do leitor, Reinaldo Moraes, Edney Silvestre.

* Este trabalho foi apresentado no XIII Congresso Internacional da ABRALIC, realizado em Campina Grande, PB, de 8 a 12 de julho de 2013. ** Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Assis.

Abstract: Literature has always had a tense relationship with school. On the one hand, its educational function which is a feature of its own has motivated its insertion into curricula; on the other hand, its pedagogical use seems to defile its esthetical value. Such a paradox may be clearly observed in juvenile literature whose specificity has not always been acknowledged. To discuss the alleged specificity of that literary subgenre and its use in school, this essay compares the books A órbita dos caracóis (2003), by Reinaldo Moraes, and Se eu fechar os olhos agora (2009), by Edney Silverstre, which have in common their possible destination to the juvenile public, even though neither of them has been conceived of with that purpose in mind. Keywords: Juvenile literature, teaching of literature, reader’s education, Reinaldo Moraes, Edney Silvestre.


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Introdução Abordam-se aqui alguns aspectos do ensino da literatura por meio da discussão do conceito de literatura juvenil. Como se sabe, a literatura sempre teve uma relação tensa com a escola. Enquanto, de um lado, a função formadora que todos reconhecem nela tem motivado sua inserção nos currículos, de outro, o uso propriamente pedagógico que essa função enseja parece conspurcar seu valor estético. Essa tensão se agrava ainda mais quando obras criadas especialmente para fins pedagógicos, isto é, para estimular a leitura e a formação dos jovens, aspiram à condição literária. No tocante à literatura infantil, a questão parece mais assentada, pois há um mercado consolidado para esse subgênero, que atende a um público pré-escolar e alunos dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Já com relação à chamada literatura juvenil, as posições são mais controversas. Há desde os que não reconhecem sua existência até os que defendem sua especificidade literária, independentemente de seu uso escolar. Parte-se do pressuposto de que, se a boa literatura infantil é reconhecida como um subgênero acessível às crianças e, tal como a literatura em geral, proporciona prazer estético e forma em sentido amplo, para além de eventuais intenções pedagógicas mais pontuais, a discussão sobre a especificidade da literatura juvenil poderia ser baseada em parâmetros similares, ou seja, considerar essa literatura como acessível a um público jovem e capaz de igualmente formar em sentido amplo. Não se pode ignorar que esse terreno é sempre instável e sujeito às mudanças históricas. Por isso, a posição mais confortável seria ignorar a discussão e tratar a literatura como um gênero sem adjetivos, e o leitor como aquele que lê o que lhe agrada. Do ponto de vista do educador, porém, essa atitude é improdutiva. Enquanto individualmente há leitores precoces e motivados inclusive para a leitura de clássicos universais ou de obras mais densas, na média de uma situação escolar, nem sempre se observa interesse pela literatura e muito menos pela leitura mais exigente, que demanda horas de concentração e esforço. Em outras palavras, mesmo entre crianças e jovens, sempre houve


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interesse pela leitura de autores que eram também lidos pelos adultos. O que se apresenta hoje como problema, especialmente no âmbito escolar, é a conquista do jovem para a leitura, de modo a inseri-lo no processo de formação de um leitor literário. Parece haver consenso entre os especialistas que a boa literatura tanto para crianças quanto para jovens é aquela que emancipa, isto é, proporciona o verdadeiro prazer estético, com variantes emocionais, expressivas e críticas capazes de se transformarem em conhecimento. Dessa perspectiva, a literatura com fins pedagógicos explícitos, voltados para a transmissão de determinado saber pontual, em geral orientado por uma visão ideológica, representaria o oposto da boa literatura. É evidente que, apesar da clareza da formulação, na prática os limites nem sempre são claros. O que pensar, nesse sentido, da obra de Monteiro Lobato, que pode ser considerada pedagógica em inúmeras passagens, mas se revela emancipadora por excelência? Trata-se de um paradoxo que pode ser mais claramente observado na chamada literatura juvenil, que, por se dirigir a um público mais maduro, nem sempre tem sua especificidade reconhecida. Aliás, essa questão está associada à própria dificuldade de se estabelecer a faixa etária desse público. Apesar disso, a designação de uma literatura própria para os jovens tem sido discutida pelos estudiosos e é largamente utilizada pelo mercado editorial e pela escola, bem como por escritores, bibliotecas, leitores, “guias de leitura” e instituições que premiam obras desse subgênero literário. De fato, a questão está posta e deve ser aprofundada. Vale reiterar que essa discussão interessa principalmente ao educador, preocupado com a formação do leitor literário, pois da formação do leitor em geral o mercado editorial sabe cuidar muito bem. A identificação do público juvenil Antes de passar à análise de dois livros supostamente juvenis, é preciso tecer algumas considerações sobre o público preferencial desses livros, visando definir sua possível faixa etária. Para efeitos práticos, poderia ser


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considerado jovem o individuo que frequenta os dois ou três últimos anos do Ensino Fundamental e o primeiro ou o segundo ano do Ensino Médio, com idade entre 12 e 16 anos, quando ele não é mais criança, mas ainda não é considerado adulto. Essa condição recomendaria a leitura de livros adequados à sua capacidade de compreensão e ao interesse que a temática lhe poderia despertar. É comum a preocupação com a idade do leitor nas listas de livros indicados para crianças e jovens. Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, por exemplo, no já clássico Literatura: a formação do leitor (1988), apresentam em apêndice uma alentada relação de autores e obras recomendados para leitura na educação básica, divididos em três faixas etárias: 1) de 7 a 10 anos; 2) de 11 a 14 anos; 3) de 15 a 17 anos. Na verdade, são as faixas utilizadas pelas autoras para exemplificar as unidades de ensino dos métodos propostos no livro: currículos por atividades, currículo por áreas e currículo por disciplinas. Mesmo sem uma análise mais acurada das obras relacionadas em cada faixa, é possível perceber que a variação contempla sobretudo a complexidade dos títulos. Assim, na primeira faixa, correspondente ao currículo por atividades, predominam contos de fada e histórias infantis, com destaque para clássicos como Hans Christian Andersen, Irmãos Grimm, Charles Perrault, Monteiro Lobato e nomes contemporâneos como Ana Maria Machado, Tatiana Belinky, Mary e Eduardo França, Ruth Rocha, Sylvia Orthof, além de textos breves de Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Marina Colassanti, Lygia Bojunga Nunes. Na segunda faixa, correspondente ao currículo por áreas, já aparecem, ao lado de autores claramente identificados com essa idade, como Pedro Bandeira, Marcos Rey, Sérgio Caparelli, clássicos universais traduzidos ou adaptados, como Júlio Verne, Mark Twain, Cervantes, e nacionais, como Monteiro Lobato, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes, Mário Quintana, Drummond, Aluisio Azevedo. Na terceira faixa, correspondente ao currículo por disciplinas, prevalecem os autores da literatura adulta, com obras às vezes menos complexas, como José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Raul Pompeia, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, Rubem Braga, Fernando Sabino Luiz Fernando


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Veríssimo, Rubem Fonseca de Bufo & Spallanzini, além de clássicos universais traduzidos, poemas de Brecht etc. A relação apresentada está baseada na convicção de que “a idade do leitor influencia seus interesses: a criança, o adolescente e o adulto têm preferências por textos diferentes” (Bordini-Aguiar, 1988, p. 19). A questão, dessa forma, consiste em observar a natureza da adequação de diferentes textos à idade do leitor, o que, aliás, varia conforme a época e o contexto social. Há quem diga, por exemplo, que Machado de Assis não deveria ser lido por jovens, menos por uma questão de censura do que de aproveitamento, que só ocorreria de forma mais intensa quando o leitor estivesse mais maduro. De qualquer modo, blague à parte, já não é adequado propor a um jovem do Ensino Fundamental que leia Memórias Póstumas de Brás Cubas se o objetivo for cativá-lo para a boa literatura. A complexidade do livro poderá afastá-lo da leitura porque há nos dias de hoje formas mais acessíveis de satisfação da necessidade de ficção e fantasia. Igualmente, não se propõe que uma criança de 10 anos leia um texto que, embora formalmente acessível, possa chocá-la pela violência, como Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, como não é aconselhável que se proponha nem mesmo no Ensino Médio a leitura coletiva de Pornopopeia, de Reinaldo Moraes, seja pelo tratamento explícito das drogas e do sexo, seja pela própria dramaticidade existencial. Ou seja: a preocupação com um gênero especificamente voltado para os jovens nasce e se desenvolve no âmbito educacional, buscando-se oferecer a eles uma leitura adequada à sua maturidade intelectual e emocional. Essa adequação tinha, no início, uma sobrecarga formadora, que acabava empobrecendo a natureza literária das obras. Nos dias atuais busca-se um equilíbrio, advogando para a literatura destinada a essa faixa etária uma qualidade estética que a aproxime da verdadeira literatura, capaz de emancipar sem subestimar a inteligência e a sensibilidade do leitor nem criar constrangimentos de ordem institucional, familiar ou mesmo moral. Reconhecida a necessidade de adequação entre textos e leitores, cabe caracterizar a literatura juvenil, apontando os traços mais recorrentes em obras normalmente destinadas ao público dessa faixa etária. De modo


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geral, todos os traços parecem situar-se na assimetria entre o escritor adulto e o leitor jovem. Essa assimetria faz que o escritor se dirija a alguém que não dispõe do mesmo conhecimento ou experiência que ele, levando-o a mostrar-se condescendente com seu destinatário ou dar-lhe explicações e conselhos. Sem pretender esgotar a questão, são lembrados a seguir alguns traços que podem ser verificados nos livros de Reinaldo Moraes e de Edney Silvestre: a) Cumplicidade. Com a preocupação de manter a atenção do leitor e ganhar sua simpatia, o narrador procura estabelecer certa intimidade entre os dois, fazendo comentários e observações para sugerir que é alguém próximo da pessoa que o lê no momento. b) Linguagem agradável. Para não entediar nem cansar seu leitor, o escritor usa uma linguagem simples, com expressões modernas, que se aproxime do modo de falar dos jovens, seja por meio de gírias, seja pelas referências a ícones de seu universo. c) Humor. Este recurso é usado como forma de manifestar distanciamento em relação a determinados valores ou práticas que mereceriam reparos ou pelo menos alguma desconfiança, além, claro, de envolver o leitor num jogo que apela para sua inteligência. d) Aventuras. Traço comum aos best-sellers, elas servem para dotar a narrativa de muitas ações, realistas ou fantasiosas, que contribuem para prender a atenção de um leitor pouco acostumado a reflexões ou movimentos mais intimistas. e) Trama policial e mistério. Assim como no caso anterior, enredos centrados no desvendamento de um crime ou esclarecimento de situações misteriosas também favorecem o envolvimento do leitor. f) Erotismo. A referência ao amor e mesmo a práticas amorosas também alimenta a curiosidade e o interesse do leitor pouco atento. Assim como o anterior, é um recurso para prender a atenção,


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independentemente de outras qualidades narrativas. g) Informação cultural. Ao lado da constante referência aos ícones culturais da juventude, que também contribui, no plano da linguagem, para criar identificação com o leitor, a menção a outros aspectos da cultura é usada como forma de enriquecer e ampliar o seu universo cultural. h) Bom exemplo. De forma direta ou apenas sugerida, sancionar bons comportamentos e atitudes corretas do ponto de vista humano, social e político é uma maneira de contribuir para a formação do jovem leitor. Com a mesma preocupação, procura-se não endossar práticas condenáveis, como o uso de drogas, a perversão sexual, os atos de violência e os preconceitos sociais, religiosos raciais, entre outros. Evidentemente, esses traços podem ser encontrados em qualquer obra literária. É provável, porém, que sua presença, ampla ou parcial, desde que percebida como intencional, tenda a diminuir o valor da obra, por tornála subordinada a um objetivo externo à natureza estética, que deveria proporcionar uma experiência criativa e livre de cerceamentos de qualquer espécie. Surge, assim, uma questão que talvez esteja no centro da discussão da literatura juvenil: como avaliar uma obra que se caracteriza como juvenil e, ao mesmo tempo, aspira à condição de arte literária? Uma possível resposta estaria na identificação de um andamento que deixa transparecer traços como esses sem que eles representem o tom dominante, permitindo acima de tudo uma interação de ordem estética com o leitor jovem e deixando os outros aspectos, inclusive o propósito formativo, como decorrência dessa interação, e não como um princípio programático. Dois livros À vista das considerações feitas até aqui, passa-se a uma breve análise comparativa dos livros A órbita dos caracóis (2003), de Reinaldo Moraes, e Se eu fechar os


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olhos agora (2009), de Edney Silvestre, com a finalidade de se avaliar sua possível vinculação ao subgênero juvenil. Além de o estudo comparativo ser estimulante para realçar as particularidades de cada um, os livros apresentam um traço instigante para essa discussão: embora eles tenham em comum a possível destinação aos jovens leitores, por causa de aspectos que se identificam com obras produzidas para esse público, não são oficialmente considerados juvenis. Reinaldo Moraes sempre declara que seu livro não foi pensado como juvenil, sendo da Editora a responsabilidade por essa classificação. Já no caso de Edney Silvestre, parece que nem autor nem editora cogitaram nessa filiação, sem contar que o livro recebeu o prêmio Jabuti como melhor romance de 2010. Essa circunstância favorece uma análise mais isenta do problema, podendo lançar luz sobre a possível especificidade desse subgênero literário e, ao mesmo tempo, colocar em outras bases o paradoxo do uso pedagógico da literatura. Reinaldo Moraes escreveu A órbita dos caracóis (2003) quase duas décadas depois de publicar os já famosos Tanto faz (1981) e Abacaxi (1985) e seis anos antes do mais badalado deles todos, Pornopopeia (2009). Como se sabe, estes livros diferem daquele pela contundência narrativa, com altas doses de droga e sexo servindo de munição para discutir e contestar diversos aspectos de uma sociedade em que a personagem não se enquadra. Segundo suas reiteradas declarações, A órbita dos caracóis não foi concebido como um livro juvenil. Foi a Editora que o trabalhou dessa forma. Verdade ou não, observa-se que o livro se distancia da produção geral do autor. Em mais de 200 páginas, narra a história de Juliana – moça de classe média alta, beirando à condição de patricinha, não fosse sua inteligência dedicada à ciência da informação (chegou a atuar como hacker) e a distância que mantém da família – e Tota, seu namorado – cientista que trabalha em um laboratório universitário e leva uma vida despojada. Juntos, vivem duas séries de acontecimentos que, em princípio, não se relacionam: de um lado, a investigação das circunstâncias da morte de um rapaz, uma espécie de ponta de iceberg que os levaria à descoberta da iminente queda de um satélite sobre a cidade de São Paulo; de outro, a pesquisa para se descobrir


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o antídoto para combater uma bactéria que teria causado a morte de diversas pessoas na Cidade. Curiosamente, as duas sequências não se ligam de forma direta, e o narrador não dá maiores explicações para isso. O detalhe chama a atenção porque, com relação ao restante da narrativa, ele recorda com frequência e explica todas as conexões entre os fatos. Logo, essa falta de conexão não seria casual, já que o problema está colocado no próprio título: afinal, o que é a órbita dos caracóis? Como se pode imaginar, o material do enredo proporciona diversas aventuras que permitem aproximar o livro do romance policial e da ficção científica. Para se ter uma ideia dessas possibilidades, basta considerar que Juliana usa todo seu conhecimento tecnológico para recuperar uma enorme senha constante de um superdevedê que controla um satélite e consegue, assim, impedir que ele caia sobre São Paulo. Da mesma forma, Tota e seus colegas de laboratório, após horas e horas de pesquisa, descobrem o antídoto da bactéria que estava em um lote de escargots enlatados, permitindo que, entre outros, ele próprio e Juliana sejam salvos após terem sido obrigados a ingerir o molusco. Por si só, esses elementos não geram uma boa obra literária. Por mais envolvente que seja, com lances de suspense e mistério, humor e sensualidade, o enredo não passaria de um pastiche de gêneros e elementos ficcionais destinados a alimentar um best-seller. O diferencial reside na engenharia narrativa, em que o narrador desempenha talvez o papel mais importante. Trata-se de um narrador onisciente, em primeira pessoa não identificada, que tudo sabe e tudo comenta. Assume claramente a ótica de um narrador machadiano e estabelece um pacto com o leitor, tornando-o cúmplice de suas estrepolias, como se a cada passo dissesse: “Nós sabemos como é isso”. O jogo prossegue, energético, ininterrupto e tedioso para quem não está jogando, como eu e você, impaciente leitora, sonolento leitor. Aproveito, pois para dirigir sua atenção a essa antiga autoclave de cobre que, de boca aberta, parece assistir com espanto à peleja. (Moraes, 2003, p. 19).


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O jogo aqui referido é pingue-pongue e acontece no Lab 7, da Universidade Paulista Autônoma. O detalhe curioso é que a mesa é um trecho da bancada do laboratório e a rede, uma meia-calça feminina esticada entre um bico de Bunsen e um velho troféu. Ao se apresentar claramente ao leitor, que figura como um narratário inscrito na própria textualidade do romance, esse narrador parece criar uma instância sábia que controla o que vai sendo narrado e lembra o tempo todo que se está diante de uma fantasia. Para sustentar esse arcabouço, é fundamental o trabalho linguístico, cujo tom vai mesclando níveis eruditos e gírias, recursos da linguagem cinematográfica e do desenho animado, tudo com muito humor, ironia, paródias, trocadilhos, metalinguagem, clichês, numa espécie de “máquina mental de fazer gracinhas e encantar pessoas” (Moraes, 2003, p. 93), como diz o narrador a propósito da conversa entre Juliana e Tota em seu primeiro encontro. Essa estrutura concede ao narrador o direito aos mais variados malabarismos, desde a apresentação crua de um assassinato, em que a vítima é literalmente estripada e perde sangue como num filme de Quentin Tarantino, até o andamento à maneira do desenho animado infantil, em que uma voz em off ou as próprias personagens vão explicando o que está acontecendo. Os exageros de violência e o didatismo quase infantil atenuam os aspectos mais cruéis do que está sendo narrado, instaurando um clima leve e bem-humorado, sem deixar de lado a contundência. É o que se observa, por exemplo, na inserção de diversos apontamentos de crítica social, sem o peso de um engajamento, como o comportamento de Juliana em relação à sua empregada Creuzélia. Ao mesmo tempo que procura ajudá-la e não a discrimina em seu espaço doméstico, tem atitudes cômicas que revelam o que vai de contradição no chão social. A esse propósito, veja-se o episódio em que a empregada, ao perceber a chegada da patroa, engasga com a cerveja que estava bebendo escondida: Não consegue retomar a respiração. Juliana acode com uma surra de tapas nas costas da empregada, nem todos com fins exatamente terapêuticos. (...)


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– Se era pra se afogar em cerveja, pelo menos escolhesse uma nacional, né, Creuzélia? (Moraes, 2003, p. 38) Da mesma forma, a sensualidade e o sexo estão presentes no livro de forma leve e cômica. As personagens se amam normalmente, mas os atos recebem um tratamento descolado, como quando Tota, tendo de sair para trabalhar à noite, conforta a amada que queria “dormir juntinhos” dizendo: – “Dormir não dá. Mas uma dormidinha rápida rola, na boa...” (Moraes, 2003, p. 55). Em outra passagem, quando Tota está tentando localizar o superdevedê com o auxílio de uma técnica adivinhatória chamada rabdomancia, que consistia em rastrear o objeto por meio de uma forquilha de árvore, lê-se: Imperturbável, ele segue rastreando as vibrações do ambiente, até que a haste ponteira da vareta se posiciona diante de Juliana. A haste começa uma lenta ereção. Juliana cai na gargalhada. Joga uma almofada na “ereção”. – Seu besta! Bocó de mola! (Moraes, 2003, p. 87) Em suma, o diálogo que o narrador estabelece com o leitor, marcado por cumplicidade, humor e ironia, permite que ele percorra diversos gêneros, estilos, papeis, servindo-se desses clichês para desmontar seu possível significado. A narrativa é, assim, baseada na sincronicidade (como gosta de dizer a personagem Tota a propósito de sua capacidade de estabelecer relações entre fatos aparentemente desconexos), que alinha diversos aspectos contemporâneos sem orientar um desfecho para eles. Apenas os submete a uma voz distanciada, irônica, que os trata com desprezo. É essa sincronicidade que permite associar o envenenamento pelos escargots com o desvio do satélite. “Órbita”, da qual sairia o satélite para atingir a Terra, aplica-se, por contiguidade, ao conjunto de pessoas que se relacionam por causa dos caracóis estragados, num aparente non sense. O sentido, no entanto, vai-se estabelecendo em outros níveis do livro, por meio do discurso do narrador e das atitudes das personagens. Num andamento semelhante ao restante da obra de Reinaldo


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Moraes, o livro vai dissecando o universo de futilidades em que vivem as personagens e afirmando valores mais autênticos no plano cultural, político, ideológico, social etc. Mas faz isso sem recorrer ao estilo violento e pornográfico de Pornopopeia, por exemplo. Se eu fechar os olhos agora (2009) é o que se poderia considerar um romance de formação, em que um adulto, situado no início do século XXI, recorda uma passagem expressiva de sua história, envolvendo mistérios, dramas pessoais, aprendizado e uma grande amizade. Mas essa filiação, como de resto qualquer outra, explica pouco da essência do livro. Este não só possui estilo próprio, como pode ser vinculado a outros subgêneros narrativos. Para começar, uma hipótese, que poderia inclusive justificar sua exclusão na premiação máxima do Jabuti depois de ter recebido o prêmio de melhor romance de 2010: ele possui andamento de narrativa juvenil. A favor dessa hipótese podem ser observados no livro aspectos formais e temáticos mais ou menos recorrentes na chamada literatura juvenil, como a idade das personagens centrais, a onisciência e certa ingenuidade que marcam o foco narrativo, a multiplicidade de peripécias que vai configurando o suspense e, claro, o próprio mistério do enredo, no qual a esperteza e a fantasia de jovens personagens têm papel decisivo. A par disso, sugestivo e quase didático quadro social e histórico vai sendo traçado sob o pretexto da investigação de um crime. São características presentes também em best-sellers, aos quais, aliás, a narrativa juvenil não deixa de se aproximar sob vários aspectos. Dos best-sellers o livro de Edney Silvestre traz também cenas de humor e uma grande dose de sexualidade, que vai das sugestões mais simples da descoberta do sexo até manifestações tensas e corrompidas das relações amorosas, no que talvez se distancie da literatura juvenil, que costuma tratar o tema de forma mais amena, quando não sublimada. O núcleo da história desenrola-se numa pequena cidade fluminense, ao longo de uma semana de abril de 1961, e envolve dois amigos de 12 anos de idade, Paulo e Eduardo, que encontram o corpo de uma mulher, assassinada com requintes de violência. Ao denunciar o acha-


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do à polícia, são considerados suspeitos até que o marido da vítima, conhecido dentista da cidade, assume a responsabilidade pelo crime. Desconfiados de que essa não era toda a verdade, os garotos iniciam uma investigação por conta própria, que não teria ido muito longe se não tivessem encontrado Ubiratan, um ex-preso político da ditadura Vargas, que estava imbuído dos mesmos propósitos. O que se segue, paralelamente à investigação do crime, é o retrato de uma sociedade decadente e corrupta, que, além de explicar o crime, consolida nos meninos a firme convicção de serem estranhos àquilo tudo. Nesse processo, são conduzidos pelo amigo adulto, que ajuda a elucidar o crime ao mesmo tempo que procura formá-los para a vida, tanto do ponto de vista ético quanto político e cultural. Para destacar alguns dos aspectos levantados, observa-se que a narrativa prende a atenção do leitor principalmente pelos mistérios que vai armando em torno do assassinato. O corpo encontrado pelos meninos motiva uma série de ações e suspenses que cria a base para os demais planos do romance. O início, aliás, por essas características, lembra o seriado Twin Peaks (1990-1991), de David Lynch, cujo mote principal era “quem matou Laura Palmer”, em que o assassinato de uma jovem conduz ao retrato de uma pequena comunidade americana. Mas a semelhança é passageira, pois, enquanto no seriado as investigações, mais do que esclarecer o crime, procuram envolver o espectador num clima de tensão e mistério, no romance o enredo policial enseja um percurso por todas as classes e segmentos sociais da cidade, delineando um ambiente marcado por desmandos e impunidade e apontando, num plano mais amplo, para contradições de uma organização social que exclui os que não participam do esquema de poder da cidade. Esse aspecto, de natureza claramente política, é garantido pela focalização de um narrador onisciente, que adota um discurso progressista e intervém na consciência das personagens para esclarecer fatos, fornecer informações históricas e fazer observações críticas sobre suas experiências. É essa perspectiva do narrador, aliás, que parece contribuir decisivamente para aproximar o romance do subgênero juvenil, fazendo que manifeste


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uma preocupação típica da literatura voltada para jovens. Nesta, é muito comum um narrador mais experiente supor um leitor em formação que necessita de informações e explicações além daquelas que a conveniência narrativa pressupõe. Foi esse aspecto que levou Alfredo Monte (2010) a fazer restrições ao livro. Embora o considere excelente até mais ou menos a metade, acredita que decaia em qualidade quando a investigação do crime passa a ser conduzida por Ubiratan, em meio ao propósito de formar os meninos. A partir daí, segundo o crítico, o narrador parece não confiar na inteligência do leitor, que é tratado com se tivesse 12 anos. Tudo o que narra é revoltante, mas é um tanto óbvio, na sua avaliação. Esse viés pedagógico apontado pelo crítico confirma, talvez, a natureza juvenil do livro, pois é o responsável por colocar, em alguns momentos, a preocupação formadora à frente de outras linhas narrativas. Destoaria do romance juvenil o clima violento e erotizado um pouco mais forte do que o aceitável pelo público jovem ou pelas instâncias sancionadoras dessa literatura. Aliás, os meninos chegam a ser afastados da investigação conduzida por Ubiratan quando ela atinge o ponto culminante, com revelações que seriam chocantes e incompreensíveis para eles. A sequência em que a dona do bordel abre o jogo sobre seu negócio e relata histórias das figuras importantes da cidade chega a ser tão obscena quanto a prática sexual nelas implicada. De qualquer forma, além de alguns palavrões e referências grosseiras ao ato sexual, as situações apresentadas no livro não chegam a ser pornográficas, e o texto não incomodaria o leitor jovem de hoje; ao contrário, parece mesmo dirigir-se a ele. Já o didatismo do livro começa bem antes da metade, e diversas passagens poderiam ser indicadas para ilustrar essa tendência. Mas bastam algumas delas para que se entenda a extensão do aspecto formador do livro. Recorde-se, por exemplo, que Eduardo está sempre corrigindo o português de Paulo, seja ao observar erros de sintaxe, seja ao pesquisar e explicar o significado das palavras. E quando aceita colaborar com os meninos na investigação do crime, Ubiratan pronuncia uma frase lapidar do ponto de vista formador: “– Aparências enganam. Mais cedo ou mais tarde vocês irão aprender. Nada neste país é o que


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parece. E esta cidade é um microcosmo do Brasil” (p.84). A síntese parece justificar não apenas o processo de elucidação do crime, que de fato não era o que se dizia, mas todo o desvelamento das relações sociais da cidade, com aberrações que nunca vinham à tona, em nome da dignidade de políticos tradicionais que integravam o esquema de poder. O mesmo efeito didático pode ser observado em cortes narrativos que obrigam o leitor a deduzir o que vem a seguir, enquanto o narrador faz uma digressão de outra natureza. Um exemplo disso ocorre quando, no auge da investigação, Ubiratan leva os dois meninos ao cinema para verem La dolce vita. A tensão já tinha sido esfriada com informações históricas, culturais e políticas sobre a Guerra Civil Espanhola e Guernica, o Estado Novo e a repressão getulista e as Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Nesse clima, vão assistir ao filme de Fellini, que, além de proporcionar uma aula também sobre cinema, enseja a descoberta da sexualidade para Paulo, o que simbolicamente aponta para a perda da inocência dos jovens. Embora o romance conte com mais de um narrador, a maior parte da história é conduzida por um narrador onisciente, em terceira pessoa. Trata-se de uma voz desconhecida que acompanha o movimento das personagens principais. Sabe-se, no final, que o relato principal é feito por Eduardo, cujas anotações são deixadas para Paulo, a quem cabe a sua divulgação. É deste, portanto, o Prólogo, iniciado com a frase que dá título ao livro, “Se eu fechar os olhos agora”, o que sugere que a perspectiva geral de toda a história seja a sua. Mas, além dessa voz, há outra, também em terceira pessoa onisciente, que acompanha a personagem inclusive durante sua tentativa de contato com o amigo, quarenta anos depois. Dessa forma, paira, acima das vozes de Eduardo e de Paulo, uma espécie de narrador geral, que parece corresponder à intenção de misturar a experiência e os pontos de vista dos dois amigos, procedimento que faz prevalecer sobre a trama policial a história de uma amizade, interrompida ou silenciada por 40 anos devido aos acontecimentos vividos pelos meninos na adolescência e que os marcariam por toda a vida. O longo intervalo entre um momento e outro cobre o período em que se gesta a ditadura militar, os vin-


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te anos de seu domínio e a fase posterior de retomada da democracia, sugerindo o doloroso processo de formação e amadurecimento de uma geração. A dinâmica narrativa do livro, capaz de atrair o leitor jovem ou adulto, tanto pelo enredo estruturado em torno de uma ocorrência policial como pela temática de ordem histórica, política e social, atenua mas não chega a apagar o viés pedagógico do livro, o que lhe confere um tom menos de romance de formação do que de romance formador. Conclusão O fundamento das questões discutidas a propósito dos livros de Reinaldo Moraes e de Edney Silvestre situa-se na tensão entre a gratuidade e o comprometimento da obra literária. Embora se trate de impostações próprias de determinados momentos históricos ou contextos sociais, são normalmente evocadas para se referir ao potencial estético de uma obra: o empenho de uma criação ficcional em demonstrar uma tese ou defender posições e princípios tende a limitar seu alcance estético por vinculá-la a um determinado contexto, tornando-a datada, enquanto a criação mais livre, com predominância da fantasia, amplia os horizontes de recepção e permite releituras em novos e desconhecidos contextos, afirmando-se, portanto, com maior universalidade. Ainda que essa contraposição possa ser questionada por diversas razões, quando se observa o uso da literatura na escola, percebe-se a tendência de acolher obras que manifestam compromisso em relação a valores sancionados e aceitos e de recusar aquelas mais inconformistas, que possam questionar a ordem vigente. É comum também que obras menos direcionadas sejam valorizadas parcialmente naquilo que atendem às expectativas do educador. É de Antonio Candido a formulação mais acertada para caracterizar esse paradoxo da literatura na sala de aula: “Ela não corrompe nem edifica”, mas, graças à “sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores”, é capaz de humanizar “em sentido profundo, porque faz viver” (Candido, 1995, p. 244).


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Esse conflito aumenta quando se consideram os textos escritos com a finalidade clara ou implícita de servir aos propósitos pedagógicos, isto é, adequar-se a essa perspectiva edificante da literatura para serem usados na escola. De um lado, valoriza-se com isso a arte literária para a transmissão de saberes; de outro, restringe-se a forma estética a uma finalidade específica. É isso que se observa em alguns textos da chamada literatura infanto-juvenil. Não cabe questionar a vasta produção de livros concebidos com essa preocupação. Afinal, além de cumprir seus objetivos, acabou revelando autores e obras que se projetaram para além desse objetivo imediato. Cabe, sim, avaliar a natureza literária de determinadas obras e seu uso na sala de aula. No caso dos livros aqui analisados, a comparação permitiu reconhecer neles traços que são recorrentes na literatura destinada a um público jovem. De um modo geral, esses traços parecem situar-se na assimetria entre o escritor adulto e o leitor jovem, o que leva o escritor, por se dirigir a alguém com menos conhecimento ou experiência que ele, a se mostrar condescendente e dar explicações e conselhos. Esse procedimento, que significa incorporar traços próprios da literatura juvenil, não implica necessariamente concessão do ponto de vista estético. Com efeito, apesar dos aspectos apontados na análise dos livros, sua qualidade literária é inquestionável. Entretanto, se se aceitar que, quanto menos a proposta formadora de um livro for desenvolvida explicitamente, maior será sua eficácia estética, é provável que A órbita dos caracóis adquira maior autonomia literária. E isto se deve à configuração do narrador e à modulação da linguagem narrativa. Por outro lado, a preocupação, até certo ponto exagerada, de instruir o leitor tende a empobrecer grande parte de Se eu fechar os olhos agora, especialmente quando o autor deixa de lado o suspense e o mistério para se ocupar das lições de formação das personagens infantis. Visto por outro ângulo, em A órbita dos caracóis, o autor mantém, em linhas gerais, o estilo de sua obra destinada ao público adulto, mas atenua, ao longo da narrativa, os aspectos mais picantes, como a prática sexual explícita e o consumo compulsivo de drogas. Intencional ou não, essa mudança torna o livro compatível com o universo escolar, podendo propiciar fruição estética de


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boa qualidade, em termos de aventuras, reflexões, críticas, sem impor valores, mas sugerindo perspectivas de compreensão por meio de um diálogo inteligente com o jovem leitor, que pode até aprender, mas apenas não no sentido escolar, que visa inculcar conteúdos mais controlados do ponto de vista programático. Até certo ponto, o mesmo se verifica em Seu eu fechar os olhos agora. Seu fôlego estético, porém, diminui quando enfatiza valores externos à economia do livro. É lícito admitir que o autor não tenha tido a intenção de escrever para os jovens, muito menos para o público escolar, mas os valores que tenta inculcar no leitor de forma controlada fazem o livro resvalar para o subgênero juvenil por aquilo que ele apresenta de mais discutível da perspectiva literária, o propósito formador. Para todos os efeitos, aproximar os dois livros da literatura juvenil poderia, de um lado, representar um reparo à sua qualidade literária, já que ficariam restritos a um subgênero produzido para determinado público. De outro lado, porém, a própria aceitação dos livros por esse público resultaria, em determinado momento, em aval para o interesse de outros leitores, independentemente da idade e da época. Ascenderiam, com isso, à condição de obra que dispensaria os adjetivos, e o que seria inicialmente uma limitação se transformaria em vantagem, por auferir-lhe a condição de obra que pode ser lida também por jovens em formação. Em suma, apesar de as características da literatura juvenil que justificam seu largo uso nas escolas e nos programas de formação de leitores representarem certo risco para sua autonomia estética das obras, é possível imaginar que o subgênero acabe se firmando no panorama literário da mesma forma que se firmou a literatura infantil, vindo a gerar clássicos que acabem se sobrepondo ao adjetivo do início. E isso, sem dúvida, será produtivo para a formação do leitor em situação escolar e para a literatura como um todo. Além de contribuir para lançar luz sobre a possível especificidade desse subgênero literário, o debate sobre a literatura juvenil, dessa forma, poderá contribuir para ampliar a própria compreensão da literatura na contemporaneidade. Talvez se situe aqui o paradoxo da literatura juvenil que tem instigado o interesse dos estudiosos atualmente.


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REFERÊNCIAS BORDINI, M. da G., AGUIAR, V. T. de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas (1988). 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993 (Novas Perspectivas, 27). CANDIDO, A. O direito à literatura. In: ____________. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 235-63. MONTE, A. Os cadáveres da mentalidade nacional: “Se eu fechar os olhos agora”, de Edney Silvestre. Monte de Leituras: blog do Alfredo Monte, 4 nov. 2010. Disponível em: http:// armonte.wordpress.com/2010/11/04/os-cadaveres-da-mentalidade-nacional-se-eu-fechar-os-olhos-agora-de-edney-silvestre/. Acesso em: 22/1/2011. MORAES, R. A órbita dos caracóis. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SILVESTRE, E. Se eu fechar os olhos agora. Rio de Janeiro: Record, 2009.


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Ensino de literatura: dos estudos de gênero à historiografia* Carlos Magno Gomes**

Resumo: Este ensaio apresenta a importância das historiografias de autoria feminina para um ensino de literatura inclusivo. Pelas inovações dos estudos comparados, no primeiro momento, debatem-se como abordagens ideológicas as propostas pelos Estudos de Gênero, flexibiliza-se o conceito de cânone e de texto literário. Depois, ressalta-se a relevância das historiografias de escritoras excluídas como uma prática pedagógica inovadora. Por último, apresenta-se o modelo de resgate da obra de Alina Paim, feito por Elódia Xavier. Metodologicamente, explora-se o conceito de flexibilização do cânone proposto por Eduardo Coutinho e de resgate por Zahidé Muzart. Palavras-chve: Historiografia, resgate, estudos de gênero. Abstract: This essay shows the importance of the female author ship historiographies towards a inclusive literature teaching. From the innovations of the comparative studies, at first, it is discussed how the ideological approaches, proposed by Gender Studies, make flexible the concept of canon and literary text. Then, it is emphasized the relevance of historiographies of excluded female writers as an innovative pedagogical practice. Finally, it is presented the model of recovery – done by Elódia Xavier – from Alina Paim’s work. Methodologically, it is explored the concept of flexibilization of the canon, proposed by Eduardo Coutinho, and recovery by Zahidé Muzart. Keywords: Historiography, Recovery, Gender studies.

* Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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Nos últimos anos, a Literatura Comparada tem apresentado um leque de opções para a renovação do ensino de literatura ao incluir em sua agenda questões identitárias e culturais próprias dos Estudos Culturais, do Pós-Colonialismo ou do Feminismo. Esse diálogo é profícuo e tem se mostrado eficiente quando se pensa nas historiografias de escritores/as silenciados/as e em uma prática de ensino de literatura inclusivo. A perspectiva ideológica, proposta por esses estudos, questiona as abordagens universalizantes dos estudos tradicionais ao incluir o não hegemônico e o não canônico como parte do debate das fronteiras da literatura. Seguindo essa trilha, a partir das questões de gênero, este artigo propõe uma reflexão sobre a historiografia de autoria feminina brasileira como parte de uma prática cultural de ensino de literatura. Tal proposta reconhece que o ensino de literatura, enquanto parte da instituição literária, também é atravessado por mecanismos de valorização e interpretação que controlam o cânone e a história da literatura. Todavia, os movimentos interdisciplinares surgidos nos debates acerca das fronteiras do literário nos ajudam a pensar esse ensino como uma prática composta por uma variedade de textos atrelados a discursos distintos. Nesse sentido, partimos da trilha já construída pela abertura dos estudos literários, feita pela valorização das questões ideológicas que possibilitaram “uma avalanche de reflexões sobre o campo literário e seus contextos culturais e institucionais” e, de modo especial, a mudança dos modelos e paradigmas referentes à “tradição, texto, leitura, gosto e valor” (Schmidt, 2010, p. 175). Essa perspectiva foi ressaltada por Eduardo Coutinho, no encontro preparatório da Abralic, em 2012, em Campina Grande-PB, quando o autor voltou a destacar a importância de outras historiografias para a renovação dos estudos sobre “Literatura e Nação”. Isso foi possível após o questionamento do “conceito hegemônico de nação” quando se passou a “abordar a literatura como uma entre as muitas expressões da afirmação política de cada grupo que compõe o mosaico étnico, cultural, social e linguístico do continente” (Coutinho, 2013, p.


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27-8). Essa revisão do conceito de hegemônico passa pelo “deslocamento substancial da definição de literatura como arte ou objeto estético, para a noção de literatura como produção estético-cultural, matéria significante situada no domínio da cultura” (Schmidt, 2010, p. 174). Tal perspectiva, influenciada pelos Estudos Culturais, com suas dúvidas e questionamentos, colocou em pauta a interdisciplinaridade e o arejamento dos estudos literários pela “problematização e politização do termo cultura” (Resende, 2005, p. 248). Essa prática interdisciplinar é fundamental para a atualização dos estudos literários, uma vez que evidencia “o caráter fluido e esgarçado das fronteiras que delimitam os espaços disciplinares”, visto agora “como territórios a serem atravessados, cruzados e rasurados por novos sujeitos do conhecimento” (Marques, 1999, p. 62). Nessa trilha, reconhece-se que a literatura não detém verdades inquestionáveis, mas, sem dúvida trata-se de um sistema estético-cultural que tem suas particularidades, com conhecimentos diferentes que têm a função de desconcertar, incomodar, desorientar ou desnortear seus leitores, visto que pertence ao campo da subjetividade e “porque ela faz apelo às emoções e à empatia” (Compagnon, 2009, p. 50). Ora, reconhecer as especificidades do texto literário é importante, mas para um ensino atualizado é preciso avançar além dessas características com um projeto de intervenção política nas aulas de literatura. Em oposição a esse pensamento, há os que tentam manter o espaço hegemônico da literatura, como os defensores do cânone que restringem o objeto de análise literária apenas aos textos consagrados. Todavia, a Literatura Comparada tem ampliado o debate em torno do ensino de literatura quando incorpora as questões culturais como parte das tensões literárias, pois “a literatura é parte de um todo: a cultura” (Marques, 1999, p. 53). Assim, para uma abordagem historiográfica das escritoras excluídas, o ensino de literatura pode abrir o leque de temas estudados ao resgatar heranças culturais esquecidas. Todavia, sem o olhar essencialista de buscar uma “coerência ontológica”, própria das


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abordagens canônicas, visto que se defende uma proposta historiográfica de resgate. Logo, ao deslocar o valor estético de lugar, a concepção do que seja literatura tornase parte do projeto político de ensino de literatura, pois se valoriza um estudo a partir da diversidade de temas e releituras de autores/as esquecidos/as. Vale lembrar que, além da questão do valor, o texto literário vem perdendo espaço na sociedade midiática, visto que há diversos fenômenos culturais e pedagógicos que o sufocam, como na escola, onde os textos didáticos a corroem; na imprensa, cujas páginas literárias se estiolam; nos lazeres, local de práticas digitais que fragmentam o tempo disponível para os livros. (Compagnon, 2009, p. 21). Mesmo com esse contexto adverso, não se deve perder o foco das vantagens de se trabalhar com o texto literário, nem deixar de valorizar o lugar do escritor “que observa e compreende o mundo em que vive antes de encarnar esse conhecimento em histórias, personagens, encenações, imagens, sons” (Todorov, 2009, p. 91). Tal proposta de um ensino de literatura pautada em questões históricas e ideológicas é um desafio, pois surge a indagação de como manter a qualidade desse ensino sem deixar de lado as especificidades do texto literário. Como saída, propõe-se a inclusão do pertencimento identitário no roteiro de recepção e interpretação para se identificar a camada ideológica explorada no texto, visto que “‘o quê’ e o ‘como’ nas representações das ‘coisas’, mesmo admitindo uma considerável liberdade individual, são circunscritos e socialmente regulados” (Said, 1995, p. 120). Reconhecendo essa premissa, uma proposta de ensino crítico passa pela formação de leitores/as capazes de analisar as especificidades desse texto e das tensões políticas que suas representações despertam na atualidade. Ao se incluir o debate do pertencimento identitário na revisão historiográfica, o ensino de literatura ganha mais mobilidade com as diferentes abordagens sobre as relações do texto e da cultura que giram em torno de “questões de gênero e sexualidade, identidades nacionais, colonialismo e pós-colonialismo, raça e etnicidade, além da análise de objetos de estudo de campo, como


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manifestações artísticas e culturais das subculturas urbanas” (Resende, 2005, p. 256). Tal prática de inclusão é própria da agenda de re-leituras propostas pelos Estudos Culturais, Estudos Pós-Coloniais e Estudos Gênero que articulam a leitura crítica por meio de um “processo contínuo de significação do mundo cultural e ideológico, que está sempre significando e ressignificando – esse processo é sem fim” (Hall, 2003, p. 362). Assim, além das novas possibilidades historiográficas, os diálogos da Literatura com outros campos disciplinares também renovaram as estratégias de leitura do texto literário. Tais estratégias são múltiplas e diversificadas conforme os interesses políticos no processo de interpretação. Por exemplo, os Estudos Culturais colocam em xeque o binarismo estruturalista para aproximar a literatura da produção cultural; já o pós-colonialismo defende um análise para além da idealização da nação ao propor “o estudo das relações mútuas entre formas e produções literárias provenientes de fontes diversas e universos culturais distintos” (Coutinho, 2013, p. 35); e, também com um objetivo de revisão, o feminismo tem apresentado intervenções políticas ao resgatar diversas escritoras esquecidas pelo cânone por meio de um “trabalho árduo e extenso do feminismo histórico, um movimento que tem, uma ressonância política” (Muzart, 2011, p. 17). Entre os campos teóricos que assumiram a revisão do cânone, destacamos, a partir deste ponto, a importância dos Estudos de Gênero para a consolidação do trabalho de resgate das escritoras silenciadas. Essa historiografia é fundamental para um novo ensino de literatura que atenda a uma demanda social de revisão das representações culturais. Tal trabalho procura organizar uma história da escritora brasileira e examina “como tais narrativas foram lidas pela crítica consagrada, como se encaixam nas correntes de sua época e como estabelecem relações com a literatura de seu tempo” (Muzart, 2011, p. 22). Dessa forma, o trabalho arqueológico possibilita a descoberta de escritoras que foram silenciadas por sua época e as reinserem nas historiografias atuais. Essa luta de mudanças de paradigmas estéticos


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e ideológicos não é recente, visto que já fazia parte da pauta de feministas desde os tempos da Ditadura, quando esse movimento passou a ter uma face mais politizada e de luta pelos direitos da mulher (Duarte, 2007, p. 132). Nesse contexto, as diversas pesquisas sobre o resgate de escritoras brasileiras fazem parte dessa luta que, no Brasil, ganhou força nos anos 80 e tem sido importante área de pesquisa da pós-graduação em Letras. A construção dessas historiografias faz parte da agenda de professoras vinculadas ao GT da Anpoll: A mulher na literatura, como suas fundadoras: Constância Lima Duarte, Elódia Xavier, Norma Telles, Zahidé Muzart, entre tantas outras. Tais pesquisadoras têm feito um trabalho arqueológico primoroso para a renovação da história literária. Com a aplicação pedagógica dos resultados já alcançados por essas pesquisadoras, o ensino de literatura atualiza-se e incorpora a relevância dessas historiografias, que levam em conta “a construção de uma consciência ética coletiva para a qual os saberes sobre as diferenças enquanto diferenças precisam convergir” (Schmidt, 2010, p. 184). Historicamente, vale destacar que, no processo de resgate, a Editora Mulheres, de Florianópolis, ficou conhecida pelo ineditismo de suas edições do século XIX. O maior exemplo desse trabalho se concretizou com o ressurgimento da escritora Júlia Lopes de Almeida. Com isso, tal estratégia de resgate é fundamental para a renovação da historiografia literária que, por sua vez proporciona novas pesquisas: teses, dissertações, artigos e ensaios como aconteceu com a esquecida escritora carioca. Levando em conta tais premissas, a historiografia das escritoras brasileiras tem cumprido seu papel de resgate de artistas invisibilizadas “em consequência da utilização do gênero como uma categoria de análise” (Campello, 2010, p. 44). Nesse sentido, essas pesquisam retomam uma das premissas dos estudos de Literatura Comparada atuais, quando propõem a expansão das fronteiras do literário e reconhecem as relações de poder que sustentam o cânone nacional. Isso foi possível porque a partir do questionamento dos conceitos de “nação”, “língua” e “literariedade”, “o cânone perdeu seu sentido unívoco


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e autoritário, tornando-se, tanto quanto possível, uma estrutura flexível, passível de constante reformulação” (Coutinho, 2013, p. 38). Dentro das possibilidades historiográficas, há diversas formas de pesquisas que vão de manuais temáticos, passando pelos dicionários de escritoras, até pequenas histórias literárias de períodos específicos. Entre elas, destacamos, pela relevância e abrangência cronológica, alguns trabalhos que cumprem seu papel de ampliar as coletâneas tradicionais de Literaturas de Língua Portuguesa: as abordagens histórico-críticas de Nelly Novaes Coelho, em seu Dicionário crítico de escritoras brasileiras (2002); o árduo trabalho de resgate de Zahidé Lupinacci Muzart, em obra de sua organização, Escritoras brasileiras do século XIX (1999); a perspectiva histórica de Luiza Lobo, em seu Guia de escritoras da literatura brasileira (2006); e o levantamento histórico feito pelas pesquisadoras Conceição Flores, Constância Lima Duarte e Zenóbia Moreira na produção do Dicionário de escritoras portuguesas (2009). Esses exemplos comprovam que a produção de diferentes historiografias faz parte das estratégias para a construção de um novo olhar para a história das literaturas de Língua Portuguesa. Quanto aos resultados desse resgate, destacamos o fato de algumas escritoras, que ficaram fora da história literária, não serem envolvidas apenas com as subjetividades da literatura, pois, pelo contrário, temos muitas feministas engajadas com a luta das mulheres. Silenciadas pelas normas do campo literário de suas épocas, muitas delas apresentam a consciência da literatura como profissão, como os trabalhos pioneiros de Nísia Floresta, Maria Benetida Bormann e Inês Sabino no século XIX (Muzart, 2011, p. 25). Mesmo com a modernização e ampliação do campo cultural e do entretenimento, ainda no século XX, há exemplos de diversas escritoras que ficaram esquecidas pela historiografia oficial, como é o caso da brasileira Alina Paim e da portuguesa Judith Teixeira. Essas duas fazem parte das recentes historiografias citadas acima. O caso da invisibilidade da portuguesa Judith Teixeira é impressionante e assustador, pois revela o quanto o campo literário é controlado pelas regras do


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mercado editorial. Contemporânea de Florbela Espanca e Fernando Pessoa, Judith Teixeira foi uma pioneira na representação da homoafetividade feminina, pois incorporou as propostas futuristas de liberdade sexual para a mulher ao modelo de poesia modernista. Com isso, sua obra “escandalizou em razão do modo explícito e desassombrado como a autora fala do amor e do erotismo entre mulheres” (Flores; Duarte; Moreira, 2009, p. 148). Silenciada pelo conservadorismo lusitano, sua poesia é genial ao questionar as fronteiras sexuais e os papeis sociais das mulheres na sociedade portuguesa. Por ter sido atacada e criticada publicamente, sua obra ficou esquecida e somente há pouco tempo “voltou a despertar o interesse dos estudiosos da literatura e das editoras portuguesas.” (Flores; Duarte; Moreira, 2009, p. 149). Além das historiografias já citadas acima, há alguns estudos sobre a literatura de autoria feminina que merecem destaque. Em estudo sobre as marcas dessa ficção no século XX, Elódia Xavier identifica a presença da violência simbólica e a falência da família patriarcal como particularidades presentes nos textos das escritoras brasileiras em Declínio do patriarcado (1998). Entre as escritoras estudadas, ela traça uma linha histórica de Júlia Lopes de Almeida à Lya Luft para mostrar como a família burguesa foi se esfacelando no imaginário literário. Tais narrativas “revelam sutis diferenças no desfecho das tensões dramáticas vividas pelas personagens femininas” e podem ser vistas como parte da nova identidade feminina “mais livre do peso das relações de gênero” (1998, p. 05). Além do declínio do patriarcado, Elódia Xavier, em uma segunda pesquisa com uma dimensão histórica maior, Que corpo é esse? (2007), sobre a representação do corpo feminino, identifica diferentes categorias da opressão patriarcal. Do corpo “disciplinado” ao corpo “liberado”, a representação da mulher está sempre associada ao questionamento da opressão e à busca da independência feminina nas obras analisadas. Com uma perspectiva ideológica, Xavier ressalta que o corpo liberado é considerado um marco na luta feminista, pois “aparece a partir de meados do século passado, enquanto o corpo disciplinado, por exemplo, é muito frequente no


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século XIX e início do XX” (2009, p. 71). Essa perspectiva histórica é fundamental para entendermos como análise literária e feminismo se confunde na crítica literária de Elódia Xavier. Nesse estudo sobre o corpo, além das narrativas das autoras já consagradas pela crítica e pelo mercado editorial: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Lya Luft, entre outras, Xavier inclui o “corpo invisível” a partir das marcas da ficção de Júlia Lopes de Almeida, em seu contexto histórico do início do século XX. Sem saída para as normas sociais, Júlia Lopes de Almeida parodia o fascismo da opressão feminina por meio de uma literatura irônica em A intrusa (1905). Almeida faz referência à representação do corpo feminino invisível, o silencioado pelo patriarcado, pois “dentro dos princípios cristãos, preserva a dicotomia corpo/alma, privilegiando a alma em detrimento do corpo” (Xavier, 2007, p. 30-1). Com tal estudo, essa pesquisadora inclui escritoras silenciadas no sistema literário brasileiro e reconstitui valiosas peças do quebra-cabeça que é montar uma História da Autoria Feminina no Brasil. Seguindo essa perspectiva, é possível tornar mais visíveis questões de gênero silenciadas nas abordagens tradicionais. Por exemplo, Elódia Xaiver, em seu estudo detalhado sobre os diferentes tipos de corpo femininos, ressalta o quanto o corpo “disciplinado” é questionado pelas personagens das narrativas que colocam em foco a família burguesa tradicional, presentes na ficção de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft, entre outras. Além desse corpo que está atrelado à ordem, Xavier identifica um outro que faz parte de espaços de violência física e moral. Trata-se do corpo “degenerado” que avulta as regras da opressão e do controle patriarcal; mas o mais importante, nessa visão histórica, é que a partir da incorporação das lutas feministas dos anos 60, a escritora brasileira passa a ter como meta a busca do corpo feminino “liberado”. Tal tipo de representação literária está associado à condição de liberdade da mulher que passa a ser mentora de sua vida social e psíquica (2007, p. 22). Com tal análise, Elódia Xavier ressalta o quanto a escritora brasileira apresenta uma ficção preocupada com


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a crítica ao patriarcado e com a busca da independência da mulher. Além desses dois estudos relevantes, Elódia Xavier retoma sua pesquisa sobre o corpo para propor um modelo de resgate para a obra de Alina Leite Paim. Sua proposta passa por incluir as obras dessa autora em seus estudos historiográficos. Portanto, além de incluir Júlia Lopes de Almeida na história da literatura, seus estudos merecem destaque por terem sido um dos primeiros a incluir a obra de Alina Paim no sistema literário brasileiro. Antes de destacarmos as contribuições desse estudo, passemos a apresentação de Alina Paim, uma militante do PCB, esquecida pela história literária. Ela tem uma importante participação na vida literária e política do país. Amiga de Graciliano Ramos e Jorge Amado, com dez romances publicados entre 1944 e 1994, Alina Paim foi deixada de lado na maioria dos livros de história literária. Para Ana Leal Cardoso, pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe, que coordena esse trabalho de resgate em Sergipe, a obra Alina Paim pode ser dividida em dois seguimentos: o de grande teor social, característico de seu engajamento político e partidário; e o da introspecção, marca dos romances da maturidade dos anos 60. (2010, p.125) Marcada por uma literatura de cunho socialista, Alina Paim foi uma escritora preocupada com denúncias, questionamentos e luta de classes, seus romances relatam “o despotismo dos fortes sobre os fracos, o amor como caminho de realização ou de destruição dos seres humanos, a desumanidade do sistema de exploração da força-trabalho, que caracteriza a sociedade brasileira em geral” (Coelho, 2002, p. 39). Entre suas principais obras, destacam-se seus romances: Estrada da liberdade (1944); Simão Dias (1949); A Sombra do Patriarca (1950); A hora próxima (1955); Sol do meio-dia (1961); a trilogia de Catarina composta pelos romances: O sino e a rosa (1965); A chave do mundo (1965) e O Círculo (1965); A correnteza (1979); A sétima vez (1994). Além dessa produção, Paim publicou livros infanto-juvenis e diversos artigos em periódicos no Rio de Janeiro, Salvador e Aracaju, cidades onde mantinha amigos e partidários das causas políticas.


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Na tentativa de sistematizar as marcas estéticas da ficção de Alina Paim, Elódia Xavier ratifica a preocupação introspectiva de sua literatura, quando ressalta o quanto os três romances que compõem a trilogia de Catarina: O sino e a rosa, A chave do mundo e O círculo, da década de 60, aproximam-se de sua história pessoal, pois “nos faz pensar numa narrativa de natureza autobiográfica, dada a intimidade entre narrador e protagonista” (2009, p. 72). Tal aproximação entre vida e obra também é identificada por Ana Leal Cardoso que ressalta que sua “história de vida confunde-se com aquela das suas personagens, quase sempre enredadas num espaço familiar conflituoso ou no interior de algum convento” (Cardoso, 2010, p.125) Além dessa particularidade, sua ficção é composta de “sutilezas semânticas, que exigem do leitor uma atenção redobrada para que o sentido não se perca” (Xavier, 2009, p. 77). Com esse elaborado texto de sutilezas e lutas, a obra de Alina Paim se destaca pela representação dos excluídos e da luta dos direitos da mulher. Nessa perspectiva, é possível afirmar que a mulher está no centro de sua literatura, visto que o discurso feminista sempre entrecorta as falas de suas personagens sedentas por justiça e igualdade de direitos tanto no cotidiano da família patriarcal como no espaço do trabalho. Com isso, sua obra tem uma relação com o modernismo realista e está “fundamente sintonizada com as forças transformadoras do nosso tempo” (Coelho, 2002, p. 39). Voltando ao trabalho de resgate, destaca-se a forma como Elódia Xavier insere Alina Paim na história literária brasileira e constata que a liberdade de suas personagens é uma marca de sua ficção. Na trilogia de Catarina, a formação da mulher está em jogo de sua infância à fase adulta, portanto trata-se de um romance de formação, um Bildungsroman feminino. Nessa obra, depois de muitos desafios, Catarina, a protagonista dos três romances, faz uma escolha pessoal e pode ser vista “como um corpo liberado, pois quando se tem a chave do mundo, tem-se a liberdade de escolha de abrir a porta desejada. E esta liberdade vem respaldada pelo amadurecimento, pela longa e dura aprendizagem.” (Xavier, 2009, p. 78).


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Ainda dentro desse trabalho de resgate, Elódia Xavier incluiu a obra A correnteza (1979), de Alina Paim, entre as referências da casa na representação na Literatura Brasileira. Esse estudo de Elódia Xavier (2013) abrange obras de autoria feminina do século XX e do início do século XXI. Ela identifica diversas formas de representação da casa como uma extensão das conquistas das mulheres. Xavier destaca da “casa protetora”, presente em Clarice Lispector, à “casa demolida”, marca das novas escritoras, como Tatiana Salem Levy, entre tantas outras. Quanto ao texto de Paim, essa pesquisadora identifica a presença doentia da posse da casa em A correnteza, que narra a ambição de Isabel ter uma casa toda sua. Em busca de seu sonho, essa personagem passa por cima de todos. Seu desejo de ter uma casa transformase em um pesadelo no fim da vida, pois essa propriedade passa a funcionar como jaula. Essa forma degenerativa do espaço da casa funciona como uma crítica ao sistema capitalista, pois tem “um efeito desagregador” (Xavier, 2013, p. 52). Concluindo, sua análise dessa obra, a pesquisadora destaca a visão de uma proletária amargurada, solitária, viúva e longe dos filhos, pois ficou presa à posse de ter uma propriedade. Sufocada pelas lembranças de suas maldades, Isabel enlouquece e “tenta se salvar, saindo dali, mas está grudada às paredes, presa na casa jaula.” (Xavier, 2013, p. 55). Com essa análise, Elódia Xavier ressalta um modelo de resgate que também inclui Alina Paim no sistema literário, pois coloca suas representações em tensão com a das escritoras contemporâneas. A partir dessa perspectiva inclusiva, suas historiografias podem ser usadas como uma metodologia de leitura literária ao regatar escritoras esquecidas pelas historiografias tradicionais e ao debater as formas da luta das mulheres por seus direitos. Entre outros aspectos próprios da historiografia de resgate, reconhecemos que sua visão crítica é também política e revela que suas opções de pesquisa fazem parte dessa estratégia feminista de “inserção das mulheres no cânone literário” (Muzart, 2011, p. 20). De forma interdisciplinar, como visto até aqui, os Estudos de Gênero incluem não só o estudo de obras de


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autoria feminina fora do cânone, mas privilegiam uma prática ideológica de análise do texto literário, valorizando questões feministas. Nesse sentido, ressaltamos mais uma vez a proposta de releitura que explore uma perspectiva comparativa entre o texto e o passado cultural, já que “cada obra cultural é a visão de um momento, e devemos justapor essa visão às várias revisões que ela gerou” (Said, 1995, p. 105). Com o resgate das escritoras silenciadas por questões políticas, reconhece-se o papel pedagógico da historiografia como relevante para o ensino da literatura. A partir dessa valorização incondicional, “os estudos literários podem articular o seu papel educacional com uma função social de relevância”, pois abrem “o campo de reflexão e crítica às formas de silenciamento e exploração do humano” (Schmidt, 2010, p. 184). Passando para as considerações finais, destacamos que a abertura dos estudos literários para as vozes excluídas foi provocada pela valorização de questões ideológicas e tornou-se uma estratégia legítima de ampliação do ensino de literatura. Portanto, esse trabalho historiográfico de estudo das representações femininas na literatura deve ir além das fronteiras feministas, pois se trata de um patrimônio cultural coletivo. Se no primeiro momento tais pesquisas foram encorajadas por interesses feministas, os resultados devem ser sistematizados e divulgados. Além disso, o trabalho arqueológico das escritoras silenciadas só foi possível a partir do reconhecimento do “perfil feminino/feminista” como “elemento permanente na historiografia literária brasileira” (Campello, 2010, p. 48). Com essas constatações, consideramos o uso de historiografias, que dialogam com questões de resgate, como uma prática pedagógica revisionista que se opõe aos conceitos homogêneos consolidados pela historiografia oficial. Essa mudança de paradigma é fundamental e deve-se muito à expansão dos estudos sobre Literatura Comparada, visto que a seleção tradicional não é mais aceita como única, pois se reconhece que o cânone nacional é “uma construção em aberto, com facetas múltiplas e diversas, variando de acordo com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada momento.” (Coutinho, 2013, p.


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29). Dentro dessa estratégia de releituras, valorizamos as questões ideológicas para que o/a leitor/a “destotalize” as interpretações historicamente impostas para retomálas “dentro de um referencial alternativo” (Hall, 2003, p. 402). Assim, a historiografia proposta pelos Estudos de Gênero é legítima, pois ressalta esse lugar alternativo dos estudos literários. Outra questão que não devemos perder de vista é a necessidade de irmos além do meio acadêmico universitário. Para isso, pensamos em uma abordagem interdisciplinar dessa prática de ensino que revisite também a forma como nossas pesquisas são produzidas e divulgadas, evitando nos fecharmos em produção de livros feitos na academia e para a academia. Por uma abordagem democrática da educação, as questões de gênero, sejam as historiográficas, sejam as ideológicas, não podem ficar de fora de uma proposta inovadora para o ensino de literatura. Vale finalizar, retomando a fala de Constância Lima Duarte, que ainda há muito para ser alcançado na luta pelos direitos da mulher, pois basta nos lembrarmos do “salário inferior, da presença desigual de mulheres em cargos de direção, e da ancestral violência que continua sendo praticada com a mesma covardia e abuso de força física” (Duarte, 2007, p.133)

REFERÊNCIAS CAMPELLO, Eliane. Um novo perfil para a historiografia literária: escritoras brasileiras. In SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.) Sob o signo do presente: intervenções comparatistas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2010, p. 43-54. CARDOSO, Ana Maria Leal. Alina Paim - uma romancista esquecida nos labirintos do tempo. In Aletria. Belo Horizonte: FALE/UFMG, vol. 20, 2010, p.125-132. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras: 1971 – 2001. São Paulo: Escrituras, 2002. COUTINHO, Eduardo. O conceito de “Literatura Nacional” e a crise da identidade na América Latina. In LÚCIO, Ana Cristina Martins; e MACIEL, Diógenes André Vieira (Orgs).


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Memórias da borboleta: reflexões em torno de regional. Campina Grande: ABRALIC, 2013, p. 27-41. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. DUARTE, Constância Lima. Pequena história do feminismo no Brasil. In CARDOSO, Ana Leal; GOMES, Carlos Magno. Do imaginário às representações na literatura. São Cristóvão: Ed UFS, 2007, p. 125-134. HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Gaurdia Resende et alli. Belo Horizonte: UFMG, 2003. FLORES, Conceição; DUARTE, Constância; MOREIRA, Zenóbia. Dicionário de escritoras portuguesas. Florianópolis: Mulheres, 2009. MARQUES, Reinaldo. Literatura comparada e estudos culturais: diálogos interdisciplinares. In: CARVALHAL, Tânia (Org.). Culturas, contextos e discursos: limiares críticos do camparatismo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1999. MUZART, Zahidé Lupinacci. A ascensão das mulheres no romance. In ALVES, Aline et al. (Orgs) A escritura no feminino: aproximações. Florianópolis: Mulheres, 2011, p. 17-27. RESENDE, Beatriz. Os estudos culturais e a política dos saberes. In GUINSBURG, J. e BARBOSA, Ana Mae (orgs.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005, 245-259. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottamn, São Paulo: Companhia das letras, 1995. SCHMIDT, Rita Terezinha. Centro e Margens: Notas sobre a historiografia literária. In DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia (orgs) Deslocamentos de gênero na narrativa Brasileira contemporânea. São Paulo: Horizonte, 2010, p. 174-187. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Trad. De Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009. XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos. 1998. XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Brasil, 2007. XAVIER, Elódia. A construção de um corpo liberado: a trilogia Catarina, de Alina Paim. In Cadernos de Literatura Contemporânea. Brasília: TEL/UnB, vol. 33. 2009, p. 71-80. XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.


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para que ler literatura? formas e limites dos encaminhamentos pedagógicos à questão Celdon Fritzen**

Resumo: Tomando como foco os objetivos da literatura literária na escola, propõe-se uma compreensão dos modelos pedagógicos usados até a contemporaneidade. A discussão é feita pela problematização das funções atribuídas socialmente à literatura na formação, com ênfase no modelo positivista brasileiro e a adoção do modelo de formação do leitor literário observável nos PCN. Palavraas-chave: Ensino de literatura; positivismo; PCN. Abstract: Taking as focus the goals of literary reading at school, this paper proposes an understanding of the pedagogical models used until today. The discussion is made through the problematization of the function socially attributed to literature in the formation of the individual, emphasizing the Brazilian positivist model and the adoption of the literary reader formation model present in the PCN (National Curriculum Proposal). Keywords: Teaching of literature; positivism; PCN.

Professor do Departamento de Língua e Literatura Vernácula da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. *

Não é a única do gênero, mas chama a atenção na rede o nome de uma comunidade do Orkut (agora também com similar no Facebook), batizada de “Eu odeio literatura”. Uma averiguação dos participantes identifica-os predominantemente como estudantes do Ensino Médio ou recém-chegados a algum curso superior e que tiveram contado com textos literários de um modo gerador de repulsa. Passando um filtro nas postagens no que elas oferecem de mais verbalmente provocante e agres-


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sivo (mas não menos tragicamente cômico), as justificativas para o desencontro com a literatura passam pelas queixas às aulas, à linguagem dos livros, aos professores etc. Porém, ressalta aos olhos do visitante um tópico do fórum chamado “pra q serve literatura na nossa vida?” (sic). Com 92 respostas, ele só perde para outro, “Qual livro vc teria prazer ao destrui-lo?” (sic), que possui 176 e é seguido de perto por outro, “Por que o ensino de Literatura é obrigatório?”, com 69 respostas1. Embora esses dois últimos tópicos apontem para aspectos mais específicos que a experiência com a literatura dos participantes da comunidade negativamente proporcionou, lendo os posicionamentos pode-se concluir que eles também se ancoram no primeiro. A ausência de percepção em relação à utilidade para o ensino de literatura é o que parece amparar a grande maioria das manifestações de repúdio. De modo geral, os estudantes não sabem para que ler literatura e argumentam, por exemplo, que seu tempo poderia ser mais bem empregado se o pudessem dedicar às ciências ou que fosse ela excluída do vestibular, posto que este seja concebido como única justificativa incontornável para a leitura literária. Para que serve literatura na nossa vida? Tal questão remete à necessidade do estudante de encontrar utilidade para o emprego de tempo e energia dispendidos. Bem, se poderia responder, como muitos participantes da comunidade o fazem, que para nada; da mesma forma que também, como tantos que leram o texto Aula, de Barthes (2007), para tudo. Tal questão remete ao significado que a arte pode assumir no mundo contemporâneo e merece ser aqui debatida para que se possa compreender suas repercussões no ambiente educacional de uma sociedade organizada para a produtividade econômica. De todo modo, longe de uma visada positiva sobre a utilidade do literário, os diversos depoimentos que se colhem na comunidade “Eu odeio literatura”, na sua irreverência e não raro preconceito, alertam-nos para o fracasso do ensino de literatura no formato que historicamente ele ganhou no Brasil. Penso que eles também possuem uma dimensão que não pode ser recusada e que deve ser problematizada como aspecto dialético da cons-

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Acesso em: 17 jul. 2013.


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tatação. Dentro de nossa conjuntura histórica, é necessário retomar a questão. Para que ler literatura? Essa pergunta pode-se dizer que nos põe no cerne dos debates sobre o seu ensino e presença curricular. E nos colocar no cerne dos debates significa aqui principalmente ouvir as diferentes vozes que em tempos e espaços distintos deram e dão uma resposta a essa questão. Mais do que nunca o que se pretende aqui discutir é a importância da compreensão histórica e crítica de como essa questão foi respondida socialmente com vistas a não repetir as mesmas formas geradoras do fracasso e nem desconsiderar o que no passado pode ser retomado pela sua possibilidade de se atualizar significativamente. Aliado a isso, a crença de que o ensino de literatura só se oferece hoje com perspectivas promissoras se se tomar essa questão como o móvel a partir do qual o processo de formação seja concebido e vivido. Para dar conta de ponderar sobre a função do ensino de literatura, seus limites e horizontes, gostaria de abordar: as formas de apropriação da literatura pelo sistema escolar, de maneira a compreender os impasses da configuração atual; a relação da arte com a expectativa social de utilidade, posto que seja o “para quê” da literatura no currículo o que necessita ser compreendido e justificado; os diálogos e desencontros que a mudança epistemológica sancionada pelos PCN provocou no ensino de língua e literatura. Ler literatura na escola Teresa Colomer faz um histórico das diferentes modalidades pedagógicas que animaram o ensino de literatura. O que sobressalta como conclusão implícita às suas considerações é que embora formalmente presente nas preocupações docentes há mais de 500 anos, na verdade nunca se leu literatura na escola. Retomando as propostas pedagógicas para o literário ao longo desse tempo, o que se pode perceber é que as respostas dadas à questão “para que ler literatura?” implicaram não no contato com esta, mas com seus simulacros.


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É com a filosofia do humanismo que a literatura ganha corpo nos processos e instituições pedagógicos da Renascença. Integrada ao Trivium por meio da Retórica, a literatura assumia a função de fornecer modelos a partir dos quais se poderia esmerar a eficácia do discurso. Tendo em vista objetivos de uma formação liberal, a função da literatura ao fim é colaborar com exemplos que possibilitem o melhor exercício da persuasão, por exemplo, no âmbito das carreiras jurídicas ou clericais. A seleção de textos, portanto, era realizada sempre no sentido de oferecer determinados modelos que poderiam se mostrar relevantes na feitura de um “discurso profissional” e se lia literatura tendo em vista uma pedagogia que possuía como eixo a retórica. Essa noção de modelo ao fim também se preserva quando da criação dos Estados-nação e o novo uso que se atribui à literatura no contexto de meados do século XIX. Com a expansão do acesso ao sistema escolar, responsável pela disseminação ideológica dos valores burgueses, um novo eixo conduz os objetivos da pedagogia literária. Circunscrita a um determinado público, o modelo da Retórica que até então animava os processos de leitura e apropriação dos textos literários cede espaço para a História Literária, a qual tem a missão de fomentar a consciência nacional por meio da apresentação do patrimônio cultural de uma nação que se pode observar depositado em suas manifestações literárias. Dirigido a um público mais vasto proporcionado pela ampliação do sistema escolar, a História literária efetivava a um só tempo a sistematização do processo de formação nacional e a seleção cronológica dos textos nos quais se pode reconhecer essa gênese. Agora, a questão “para que ler literatura?” tem como resposta os interesses de homogeneização da língua e cultura do Estado-nação e pedagogicamente o contato com ela enfatiza a recitação e a atividade mnemônica, já que essas atividades são correlatas às metas de reconhecimento de um patrimônio cultural comum. O que se deve ter em mente quando acima afirmei que embora por mais de 500 anos presente nos processos e instâncias pedagógicas não se lia literatura é o caráter modelar que esta assume. Seja como exemplo do bom discurso ou da história nacional, o que se lia podia ser antes


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um simulacro de obra literária que a própria obra; podia ser um fragmento qualquer que o texto integral, pois o que importava era a utilidade discursiva ou patrimonial2. É possível abaixo ler uma síntese desse percurso do ensino de literatura: Qualquer modelo de ensino se caracteriza pela forte inter-relação que estabelece entre seus objetivos, seu eixo de programação, o corpus de leitura proposto e as atividades escolares através das quais o ensino se desenvolve. Quando se tratava de aprender a produzir discursos profissionais, o eixo da retórica parecia o mais pertinente, do mesmo modo que o era a leitura de textos exemplares e a prática da escrita. Quando se desejava fomentar a consciência nacional da cultura, se recorria ao eixo histórico, à leitura de textos nacionais e práticas como a recitação e memorização. (Colomer, 2007, p. 19)

Exemplo claro dessa natureza de simulacro que a literatura poderia assumir sem prejuízo dos objetivos pedagógicos do ensino amparado no eixo da História Literária eram os livros-texto usados até meados da década de 1970 no Brasil, as antologias nacionais, como as de Fausto Barreto e Carlos Laet. 2

No contexto europeu, um novo modelo de ensino de literatura se fez necessário a partir dos anos 1960, quando se constatou o fracasso do modelo patrimonialista em relação aos objetivos de formação cultural e linguística. Dirigida a camadas sociais até então alijadas do processo, a expansão do sistema educacional feita durante o Pós-guerra teria culminado, relata Colomer, com uma frustrante constatação ao se observar os baixos índices de apropriação das competências desejadas, ao final da educação básica, no que se refere a ler e escrever. Diversas causas foram apontadas para o fracasso de um modelo de educação literária que até antes da expansão da oferta no Pós-Guerra produzia resultados satisfatórios. Prioritariamente elas se vinculavam às mudanças de público e de contexto social: o surgimento de uma nova categoria social com características e demandas específicas - a adolescência -, só possível a partir do retardamento do acesso ao mercado de trabalho garantido pelo amparo econômico da família; o desencontro entre um modelo de ensino voltado anteriormente para uma parcela social que compartilhava determinado patrimônio literário e as novas levas de estudantes providos de outras referências culturais; a ampliação do acesso aos bens culturais, sejam oriundos de outras tradições, alternativos ou de consumo,


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cuja diversidade e natureza resultou na contestação do cânone escolar; a ampliação dos meios de comunicação de massa e das fontes de provisão para a necessidade humana de ficção gerando concorrência para a literatura; os novos usos sociais da escrita possibilitados pelas tecnologias da informação (Colomer, 2007, p. 20-3). Toda essa gama de fatores culmina por fazer perder o prestígio da velha dama, a literatura. Mas, curiosamente, note-se que seu prestígio advinha menos porque a escola proporcionava experiência efetiva de contato com ela do que com seus simulacros. De forma que a constatação do fracasso desatou um processo de reflexão que se objetivou numa nova proposta de modelo para o ensino de literatura que hoje tomamos por referência (embora não se possa dizer que ela se vivencie efetivamente em nossa realidade, veremos). A partir de 1970, expõe Colomer, o objetivo deixa de ser o de consolidação da consciência nacional para se tornar a formação do leitor literário. Tal desiderato seria cumprido por meio do desenvolvimento das competências de interpretação, associadas à compreensão dos elementos constitutivos dos textos literários e, principalmente, a substituição dos simulacros pela leitura integral das obras. Nesse novo modelo, antes que o saber sobre a literatura que a história literária proporcionava trata-se de ler literatura para sabê-la. E saber aqui significa competência para construir sentido em relação à obra lida e o universo de cultura no qual ela se gera e circula. Porém, se a disposição de um horizonte que responde à questão “para que ler literatura?” é dado nas considerações de Colomer, longe se está de encontrar um campo pacífico para sua implementação. Há resistências que se podem localizar no sistema formal de educação e seus agentes, na sociedade e sua diversidade cultural e econômica. No modelo de ensino de literatura que toma a formação do leitor literário como objetivo e o busca efetivar por meio do contato com obras integrais de modo a proporcionar a experiência efetiva, as resistências apontadas por Colomer têm um caráter vinculado à: sistematização de um itinerário de leitura no currículo do ensino fundamental e médio; redisposição do papel da história literária na formação do leitor; e ainda à função utilitária da leitura.


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Aqui, gostaria de explorar esse último ponto, visto que mais se interconecta com a questão posta para a nossa discussão, embora não deixe de considerar a importância dos demais e mesmo a necessidade de eventualmente a eles remeter. Mas agora gostaria de fazê-lo dando maior campo para a especificidade de nosso sistema de ensino A relação da literatura com a expectativa social de utilidade Entre as respostas da comunidade “Eu odeio literatura” para o tópico sobre a utilidade da literatura nas nossas vidas há na abertura esta bem singela: “Serve.... Pra nada! Aliás... Pra uma coisa... Pra ajudar a passar no vestibular”. Penso que tal singeleza nos permite localizar muito agudamente o desencontro entre uma determinada expectativa do que deve ser o conhecimento bem como a inconsciência do lugar fundamental que a literatura, a arte, ocupa em nossas vidas. Tal resposta não deixa de muito bem ilustrar o caráter positivista que anima nossa formação cultural, pois ela tanto expressa o pressuposto da primazia da objetividade científica com sua decorrente utilidade prática, como também mostra como a justificativa apresentada para a literatura estar presente no currículo é sua caricatura de conhecimento. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer argumentavam que há no positivismo uma apropriação do poder emancipatório da razão emancipadora que ao invés de despertar o homem do jugo dos monstros da imaginação termina por reificar não só a natureza, mas a ele próprio. Ao desencantar o mundo, substituindo o mito pelo conhecimento empírico dos fenômenos, também se institui a satisfação das necessidades práticas como critério da ação humana no mundo. Submeter a natureza ao útil do homem é tarefa que melhor seria desempenhada no mundo burguês pela ciência, pois capaz de encontrar as leis que movimentam os fenômenos e assim prevê-los de modo a atender os interesses produtivos: “Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades


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ocultas. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 21). Que a arte não visa a fim nenhum é um princípio que se põe na nossa modernidade desde Kant, o que estabeleceria relação entre a declaração acima e o pensamento estético: “serve para nada”, já que ela se justifica pela contemplação desinteressada do sujeito. Desgraçadamente aquela declaração, produto social de um sistema escolar e cultural, é feita não como o corolário de uma reflexão sobre a relação da arte com o trabalho humano, o que permitiria dar outra consequência ao seu papel social, bem menos ociosa. Isso porque a literatura, a arte, se explorada pedagogicamente nessa dimensão da sua inutilidade social relativa, permite-nos uma reflexão sobre os limites da liberdade humana num mundo burguês organizado instrumentalmente para a dominação da natureza e dos próprios homens. Para Adorno e Horkheimer, no afã de reduzir os fenômenos naturais ao número, a razão que anteriormente prometia aos homens a liberdade, torna-os também presas do processo de reificação intensificado pela sociedade burguesa. Fora da sua utilidade produtiva mediada pela razão instrumental nada encontra justificativa e submetidos a transformar a natureza em utilidade, os próprios homens se transformam no valor economicamente atribuído ao seu trabalho, incapazes de compreender a totalidade do processo de produção social no qual estão inseridos. Tal situação pode explicar muito dos termos expressos naquela singeleza que é típica da comunidade “Eu odeio literatura”, quando a questão para que esta serve em nossas vidas recebe também essa resposta: “pra porcaria nenhuma. Só um babaca mesmo pra acreditar que literatura vai dar dinheiro”3. Bem, não interessa aqui discutir a movimentação de capital realizada pela literatura em seus consórcios com o cinema, por exemplo, como argumento que se contraporia à declaração. A essa altura, depois de localizar o fundamento da depreciação do valor da literatura na ótica positivista do mundo burguês e o modo social de produção capitalista, cumpriria contrapor-se a esse argumento destacando a imprescindibilidade da ficção, da poesia.

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Acesso em: 17 jul. 2013.


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Como aqui já se afirmou, a despeito das declarações antes colhidas entre os estudantes da comunidade do Orkut e as quais se respaldam numa expectativa social utilitarista em relação ao sistema escolar, a literatura não é inútil no sentido da formação humana. Isso porque ninguém vive sem ficção. Ela é um dos bens cujo acesso não se pode prescindir sobre pena de comprometer o processo de formação humana. Ouvir e construir narrativas são experiências que cotidianamente efetivamos; jogar com os sons e sentidos das palavras é algo que se aprecia já na infância; o mundo simbólico da literatura e a ordenação do mundo que ela propõe por meio da linguagem nos ajuda a transformar o caos em cosmos de maneiras muitas vezes pouco sistemáticas mas não menos efetivas. Há utilidade para a literatura, visto que preenche uma necessidade que o homem não pode prescindir e por isso mesmo sonha: Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentidos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles (Candido, 1995, p. 242).

Ora se a despeito de tantas afirmações em contrário, a literatura é imprescindível, por que sua utilidade não se evidencia entre os agentes do sistema formal de educação brasileiro? Não podemos discutir a questão “para que ler literatura?”, sem interrogar os fins sociais com que historicamente ela se colocou no ambiente de aprendizagem escolar. E no caso brasileiro sua missão desde a Primeira República, em sintonia com a filosofia positivista, era ilustrar o processo de formação de nossa nacionalidade de


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forma a colaborar ideologicamente para a cristalização de uma identidade. Ler literatura, nessa ótica, era/é se informar sobre fatos históricos, biografias de autores, listagens de obras, características de escolas literárias. Todavia, num quadro semelhante ao europeu que antes vimos, a utilidade dessa metodologia de abordagem começa a ser questionada quando do processo de expansão de vagas discentes na década de 1970 (Zilberman,1988), quando levas de alunos vindos de extratos socioeconômicos menos aquinhoados e com referências culturais distantes da antologia nacional desviaram-se da assimilação do cânone escolar. Para esse público, pensemos, qual a relação entre aquele simulacro de literatura em que o critério de entrada era, como observou Osman Lins (1977), estar morto, e as expectativas de ascensão social desses novos ingressantes do sistema formal de ensino? Que elemento político significativo aquele simulacro de literatura acrescentaria para a compreensão e transformação do entorno desses alunos? Doutra parte, entre aqueles extratos sociais que partilhavam por gerações das mesmas referências patrimonialistas do simulacro de literatura proporcionado por sua abordagem a partir da história literária positivista, o acesso cada vez mais intensificado às novas tecnologias de comunicação e entretenimento também contestou a utilidade daquele saber. A necessidade de ficção é satisfeita de tantas outras formas no mundo contemporâneo e mesmo a literatura pode ter maior sobrevida por vezes graças às novas mídias que pelo tradicional ensino escolar (Freitas, 2003). Foi a partir da década de 1970, portanto, que pôde ganhar repercussão aqui uma questão como essa: para que ler literatura? Isso era ponto pacífico antes pelo alcance pouco democrático que o sistema escolar proporcionava. Todavia, mais do que a metodologia de ensino amparada no eixo da história literária foi a própria literatura que se viu contestada no seu valor curricular por educadores do campo das Letras que advogavam o contato com a diversidade de gêneros discursivos como novo ponto de incremento para a aprendizagem linguística. Isso significava o que se pôde observar nos livros didáticos a partir da década de 1970: a literatura deixava de ser o principal recurso


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textual para a formação linguística. Isso não aconteceu sem resistência, é claro. Em estudo hoje clássico sobre o livro didático, Osman Lins (1977) já indagava acerca da substituição dos textos literários dos livros didáticos por outros gêneros informativos: como poderiam estudantes brasileiros para os quais o livro didático é muitas vezes o único a que têm acesso tornarem-se leitores literários? Como poderiam eles adquirir conhecimento da formação cultural em que respiram se privados do contato com a tradição literária em favor de textos de consumo mais digestivo? As questões levantadas por Lins na década de 1970 pode-se dizer que se encontram nas reflexões que animaram a formulação dos Parâmetros Curriculares Nacionais na área da Linguagem. Uma nova proposição para o ensino de Língua a partir da renovação epistemológica provocada pela Linguística foi elaborada nesses documentos de forma a reverter um quadro de baixo aproveitamento que se observava. Porém, o lugar da literatura nesse novo modelo teórico-linguístico se mostrou problemático e precisou de ajustes. É como se, pelo debate que promoveu, nos PCN pudéssemos acompanhar as controvérsias que a questão “para que ler literatura?” desperta em nossa sociedade: da ausência de razão a não ser pelo argumento da tradição positivista à justificativa de seu papel na educação estética e política. Gostaria agora de discutir tal lugar no processo formativo a partir dessa renovação científico-pedagógica defendida nos PCN. Ou para não perder o mote que orienta o arrazoado que aqui se constrói, segundo os documentos oficiais, para que ler literatura? O lugar da literatura na proposta de aprendizagem linguística dos PCN Em 2006, o MEC divulga um adendo aos PCN (2000) e PCN+ (2002) chamado Orientações curriculares para o Ensino Médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (OCEM). Dentro desse documento, encontra-se uma seção chamada “Conhecimentos de Literatura” cujo objetivo é rever a autonomia e especificidade que a literatura


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deveria possuir na formação curricular e que os documentos anteriores teriam deixado imprecisas. Para compreender essa necessidade de adendo para a justificação da literatura como conteúdo/disciplina escolar cumpriria retomar um documento anterior do próprio MEC no qual as insatisfações em relações aos PCN foram sistematizadas. Chamado de “Literatura” (2004), ele foi escrito por Enid Frederico e Akira Osakabe e seu objetivo fundamental é criticar a incompreensão exposta pelos PCN da singularidade e função da leitura literária no processo formativo. De início, os autores situam o leitor diante daquela quebra de harmonia entre o ensino de Língua e Literatura a partir da gramática tradicional e da história literária e o público escolar, quebra desencadeada pela democratização do ensino durante o regime militar, como antes apontamos. Num quadro de constatação do fracasso daqueles eixos metodológicos para a aprendizagem linguística os PCN viriam, sem considerável retardo, romper com a “inércia científico-pedagógica” que insistia a despeito também da mudança do perfil dos destinatários que se efetivava há décadas. As bases normativas do ensino de Língua são substituídas pela descrição desta e a compreensão de seu funcionamento num quadro de diversidade sociolinguística. Tudo isso voltado ao objetivo de produção de textos comunicativos em diferentes esferas. É a apropriação da noção bakhtiniana de gêneros de discurso que dá as bases para essa guinada teórico-pedagógica4. Diante dessa reconfiguração, o alvo de Frederico & Osakabe é muito mais os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM). Isso porque, na avaliação dos autores, a situação da literatura no Ensino Fundamental encontraria um encaminhamento adequado dos PCN para essa fase formativa, cumprindo “a função salutar de intervir positivamente no ensino, e provocando mudanças substanciais nas atitudes de seus responsáveis mais diretos, professores e autores de livros didáticos” (Frederico & Osakabe, 2004). Mesma coisa não dizem dos PCNEM. Pensado o Ensino Médio pela nova LDB/1996 para superar o caráter de formação especializada que advinha desde os antigos modelos dos cur-

Embora seja o estudo “Os gêneros do discurso”, de Estética da criação verbal (2000), o texto mais recorrente para essas postulações, é curioso como pouco se aborda a discussão em Marxismo E Filosofia da Linguagem sobre o modelo filológico do ensino de línguas mortas para o estudo das vivas. 4


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sos científico e técnico, a formulação que se encontra no documento dá a essa etapa do sistema escolar a tarefa de: assumir a responsabilidade de completar a educação básica. Em qualquer de suas modalidades, isso significa preparar para a vida, qualificar para a cidadania e capacitar para o aprendizado permanente, seja no eventual prosseguimento dos estudos, seja no mundo do trabalho. (Brasil, 2000, p. 08)

Sobre essa contestação da especificidade do valor literário a partir dos Estudos Culturais, abordagem que parece amparar as declarações elaboradas pelo consultor no documento, leia-se o capítulo de livro de Perrone-Moisés (1999), “Modernidade em ruinas”. 4

Ora, avaliam os autores, se a aprendizagem da Língua se justifica para aqueles que não persistirão no Ensino superior, já que eventualmente necessária para inserção no mercado de trabalho, como justificar o ensino de literatura em bases memorialistas da história literária para aqueles que não podem ou não querem realizar um vestibular. Pensando na frase da comunidade “Eu odeio literatura”, sem o vestibular, para que serve a literatura em nossas vidas? Ao verificar a proposta de encaminhamento realizada pelos PCNEM, a constatação dos autores é frustrante, já que o documento não consegue renovar a metodologia de abordagem ou sequer justificar a presença curricular da disciplina. Pois, acompanhando as parcas declarações sobre o tema no documento, a avaliação que perfazem é de que nele a literatura perde sua especificidade, diluída entre outras manifestações culturais sem que se lhe conferisse um estatuto diferencial5; ou ainda, quando os PCNEM se referem ao conhecimento literário, fazem-no vinculando-o a uma competência que se expressa nesses termos: “Recuperar pelo estudo do texto literário, as formas instituídas de construção do imaginário coletivo, o patrimônio representativo da cultura e as classificações preservadas e divulgadas, no eixo temporal e espacial” (Brasil, 2000, p. 145). Ou seja, o documento apenas institui a força da inércia epistemológica quando ratifica a história literária como paradigma de estudos literários, ou compromete a avaliação do diferencial da qualidade literária quando dilui a especificidade do texto literário no cadinho da cultura em geral. A seção “Conhecimentos de literatura” das OCEM, como já dito, almeja reparar esse quadro. Tanto que a


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questão que abre as ponderações do documento é “Por que a literatura no Ensino Médio?”. Há um belíssimo depoimento de uma mãe de aluno sobre o que é arte. Seu discurso humilde e intuitivo situa o domínio da estética entre o artesanato, entre aquilo que não é para seus filhos que necessitam trabalhar para sobreviver, e ainda como “um que-fazer assim que inventa uma alegriazinha, a senhora compreende?” (Brasil, 2006, p. 50). É a partir daí que o documento aponta para a validade da literatura na formação curricular do Ensino Médio como experiência estética que permite a humanização em um mundo marcado pela reificação do trabalho social, “a práxis utilitária” (Idem, p.51). (Vê-se, pois, retomando a questão que nos orienta aqui, que, para as OCEM, a função da literatura repousa também em questionar o que é utilidade para uma determinada sociedade e, portanto, sua justificativa não pode ser construída sem problematização política). Em consonância com o modelo de formação de leitor literário que antes mencionamos ter se tornado o novo eixo em substituição à história literária, as OCEM não deixam de endossar a importância do contato com as obras integrais como pressuposto da formação do conhecimento de literatura: é a experiência efetiva com esta que se torna o principal alvo das novas disposições metodológicas reforçadas pelo documento. Isso não é feito sem uma avaliação de que se no Ensino Fundamental a aproximação com a literatura tem sido realizada com melhores resultados devido à presença ali do gênero literatura infanto-juvenil, no Ensino Médio a experiência com o literário tem se revelado mais problemática em função de certa tradição de introduzir o contato com as obras canônicas de nossa literatura por meio da história literária6. Sem deixar de avaliar as vantagens e desvantagens desta no ensino de literatura, problematizar a relação tempo e quantidade de obras para a leitura no currículo do Ensino Médio, a importância de espaços de leitura bem organizados, o diálogo com outras linguagens artísticas, os diferentes interesses de leitura, as OCEM também enfatizam o uso da noção de gêneros como móvel para o ensino de literatura. É sobre esse ponto que gostaria de fazer algumas reflexões, já que é esse o principal conhecimento metaliterário que o documento oficial advoga se

Essa perspectiva não é unanime no que se refere à formação do leitor literário. Zilberman, por exemplo, reflete sobre a seleção de obras que circula na escola desde a década de 70 e os efeitos dela na formação de leitor: “Privilegiou-se a literatura infantil, especialmente a brasileira e a contemporânea, hoje hegemônica nas boas casas, digo, escolas do ramo. Mas o excesso de exposição a esse gênero literário não terá levado à formação de leitores imaturos, habituados a narrativas lineares e fartamente ilustradas, que nem sempre requerem grande esforço intelectual?” (2009, p. 11). 6


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poder mostrar efetivo para responder à questão “para que ler literatura?”. As escolhas anárquicas dos adolescentes fora da escola, além de permitir essa formação do gosto, levam a um conhecimento dos gêneros literários que deve ser considerado como base para a didática da literatura na escola e pode contribuir para o planejamento de atividades de reorientação de leitura, uma vez que a escola não é uma mera extensão da vida pública, mas tem uma especificidade. (Brasil, 2006, p.71) [grifo meu]

A noção de gênero do discurso é posterior à milenar de gêneros literários. Ela é instituída por Bakhtin no intuito de compreender o dinamismo das formas de comunicação dentro das diferentes esferas sociais, sejam elas jurídicas, políticas, amorosas etc. Por meio dela o campo da parole também pode ser objeto de sistematização bem como a dimensão ideológica da língua não resta excluída como a noção saussuriana de langue conduzia. Do ponto de vista pedagógico, a noção de gêneros do discurso salienta o aspecto vivo da língua, no qual sempre que exerço alguma função discursiva o faço levando em conta determinados contextos, destinatários, códigos, intencionalidades. Mais do que denominar o conhecimento metalinguístico, os gêneros do discurso possibilitariam aos educandos se apropriar das condições e propriedades específicas nas quais e pelas quais discursos são produzidos, circulam e são recebidos. Tal horizonte se justificaria ao fim pela proposição de uma educação linguística que superasse o artificialismo das atividades de ensino baseadas na gramática normativa em prol da aprendizagem proficiente da língua em seus diferentes usos sociais. As OCEM também se referem, vimos acima, à categoria de gênero como “base para a didática da literatura na escola”. Para além da simples fruição inicial das obras o conhecimento dos gêneros a que as obras se vinculam possibilitaria a formação do leitor crítico. (...) necessário motivá-los à leitura desses livros com atividades que tenham para os jovens uma finalidade imediata e não necessariamente escolar (...) e que tornem


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necessárias as práticas da leitura. Tais atividades evitariam que o jovem lesse unicamente porque a escola pede – o que é com frequência visto como uma obrigação. Ele lerá então porque se sentirá motivado a fazer algo que deseja e, ao mesmo tempo, começará a construir um saber sobre o próprio gênero, a levantar hipóteses de leitura, a perceber a repetição e as limitações do que lê, os valores, as diferentes estratégias narrativas. (Brasil, 2006, p. 70-1)

Todavia, sem desconsiderar o valor que o domínio dos gêneros literários em suas implicações histórico-sociais possa assumir na consolidação de uma leitura literária crítica, é difícil firmar o consenso de que seja o conhecimento metaliterário fundamental para a formação crítica desse leitor. A questão parece-me mais complexa e como demonstração disso pode-se mencionar que, no documento, o autor citado logo abaixo dessa citação acima feita como ratificação da importância do conhecimento dos gêneros literários, Egon Rangel, em artigo publicado posteriormente às OCEM, demostra a dificuldade de estabelecer um consenso sobre o que a escola poderia conceber como o útil da leitura literária7. Isso porque tomado o parâmetro de proficiência da leitura de textos não-literários para a literatura há singularidades nesta que não podem ser desconsideradas. Se para os primeiros a leitura é proficiente quando “conduz o aluno a perceber, mais ou menos sucessivamente, os aspectos mais significativos do contexto de produção; o gênero envolvido; o tema central; a macroestrutura; os aspectos mais relevantes de sua realização na microestrutura etc.” (Rangel, 2005, p.155), a leitura de literatura, embora possa compartilhar desse instrumental de investigação apontado antes, permanece ainda intransitiva, resistente a uma resposta que a explicite inteiramente e em que “reside, em boa medida, a sua singularidade, ou seja, uma forma de produzir significações que não se deixa reduzir ao dado já sabido” (Idem, p. 156). Se ler textos não literários pode implicar em um determinado consenso sobre o que seja um domínio proficiente, o que significa possuir proficiência em leitura literária? Quais são os conhecimentos que esta deveria

A citação de Rangel usada nas OCEM é a seguinte: “Os escritores pressupõem que seus leitores conhecem os gêneros e jogam com esse conhecimento. Os mundos de ficção que nos propõem são moldados em formas que (re)conhecemos facilmente: personagens, situações, cenários, intrigas, modos de dizer, recursos, truques. Todo esse arsenal proporcionado pelos gêneros é utilizado para criar ou frustrar expectativas, para satisfazer e pacificar o leitor ou para surpreendêlo e despertá-lo de velhos encantamentos, propondo-lhe outros. Por isso mesmo, a familiaridade com os gêneros permite ao leitor apreciar a habilidade de um escritor, seu gênio composicional, as características e o rendimento particular de seu estilo. Sem isso, dificilmente se produz um verdadeiro encontro entre autor e leitor; dificilmente se estabelece um convívio amoroso (RANGEL, 2003, p. 141-142)” 7


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Uma discussão de como as universidades reforçam o paradigma positivista na educação literária pode ser vista também em Leahy-Dios (2000). 9 “Da perspectiva da escolar que necessitava de novas formulações sobre o sentido da leitura literária, também resultou particularmente atraente que se passasse a caracterizar o texto literário como um “gênero segundo”, ou seja, como um discurso capaz de absorver todo tipo de formas de linguagem e de transformar as realizações linguísticas habituais no mundo comum – conhecidas como “gêneros primeiros” – em outras formas próprias de comunicação literária. A importância de passar a um “gênero segundo” é que se introduz uma distância entre o leitor e os contextos de interação próprios do mundo comum. Com isto, as formas de representação da realidade que achamos na literatura – em todas as variedades que a constituem: representações miméticas, paródicas, míticas, etc., - projetam uma luz sobre o mundo conhecido, que reinterpreta para o leitor a forma habitual de entendê-lo. Assim, o texto literário ostenta a capacidade de reconfigurar a atividade humana e oferece instrumentos para compreendê-la, posto que, ao verbaliza-la, cria um espaço específico no qual se constroem e se negociam os valores e o sistema estético de uma cultura. Esta ideia básica contribui para a nova argumentação sobre a importância da literatura no processo educativo” (Colomer, 2007, p. 26-7) 8

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implicar? Aqui, inevitavelmente uma abertura deverá ser compreendida como própria à experiência literária e que sempre poderá se mostrar a justificativa para sua exclusão ou permanência no currículo, segundo o interesse político-pedagógico do argumento. A questão “para que ler literatura?” não encontra a mesma utilidade pragmática que poderia ser reconhecida na leitura de textos não literários, embora não a desencontre de modo absoluto. Por isso me ocorre que a noção de gêneros do discurso, apropriada de modo a proporcionar uma aprendizagem linguística proficiente aos estudantes na medida em que possibilitaria a compreensão dos códigos em situações de uso, não se oferece na aprendizagem literária como garantia de proficiência na mesma perspectiva. A despeito da sugestão das OCEM, a noção de gênero é uma categoria metaliterária que pode ser acionada na formação de leitor literário, mas difícil dizer que ela será sempre axial na interpretação de textos. Doutra parte, é de se perguntar se o que deveríamos realizar agora, se a aprendizagem por meio dos gêneros do discurso se revela com perspectivas de êxito, não seria uma inversão. Se a categoria de gêneros pode ter sido indicada pelas OCEM como estratégia para aproximar estudos linguísticos e literários, tentativa muito bem vinda num quadro de relativa esquizofrenia que presenciamos nos cursos de Letras em geral8, não deveríamos buscar estratégias que buscassem solidificar essa aproximação usando os textos literários como lugar da maior ocorrência dessa aproximação? Não é a literatura o gênero secundário que pode absorver a todos gêneros, primários e os demais secundários? Além disso, o problema dos gêneros se tornarem pelos estudantes e professores uma vivência de repetição de receita, não condição comunicativa vívida, não poderia ser atenuado ou superado ao compreender o uso dos gêneros do discurso na leitura literária, conduzido o leitor pelo movimento de exotopia9? Concluindo Vimos até aqui tentando situar a questão “para que ler literatura?”, desafio que me parece crucial ter em


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mente para que qualquer processo de ensino-aprendizagem envolvendo textos literários possa surtir algum impacto. Questão que foi respondida de diferentes modos pelo modelo retórico, patrimonialista e que hoje procura encontrar estratégias e programas no modelo de formação do leitor literário. Somos atores de um processo em que a questão “para que ler literatura?” vive uma transição do modelo da história literária para o da formação crítica do leitor: este não possui ainda bem definidas as categorias metaliterárias e o corpus que se programaria para a aprendizagem curricular; enquanto isso, aquele resiste reforçado pela inércia que anima os processos pedagógicos e nossas instituições. Em relação às categorias metaliterárias, pela experiência deflagrada pela linguística aplicada ao ensino de língua, parecem ser os gêneros a sugestão ao fim dos PCN. Se a sugestão advém de uma base teórica e experimental consolidada ou se apenas busca na categoria dos gêneros do discurso empregada na renovação teórico-pedagógica do ensino de língua um similar para a literatura a oferecer aos professores é algo que demandaria maior espaço para consideração. De todo modo, ainda estaria por se refletir tanto sobre seus limites como também muito mais sobre as possibilidades de uso dessa categoria para a aprendizagem linguística e literária ao que me parece. Enfim, à questão “para que ler literatura?” que nos orientou aqui nessa abordagem, gostaria de responder lembrando algumas palavras que enfatizam a dimensão política que necessariamente deve estar implicada em qualquer tentativa de respondê-la, palavras que alertam para a ameaça sempre iminente que essa forma de comunicação estética sofre em nossos tempos de pragmatismo obtuso: Assim, à escola, em geral, e ao Ensino Médio, em particular, cabe exercer esse papel que deve ser encarado não como imposição curricular, mas como disposição de uma chance única, cujo acesso as exigências da vida cotidiana tendem a vedar. A experimentação literária torna-se assim uma exigência ética da escola. É o momento do exercício de percepção e de incorporação de um tipo de discurso ou comportamento linguísticos que


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correspondem ao exercício pleno da liberdade criadora. Por seu acesso, o aluno conseguirá perceber e exercitar as possibilidades mais remotas e imprevistas a que a sua Língua pode remeter. (Frederico & Osakabe, 2004)

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Pedagogia do olhar: a potência comparativa no diálogo cinema, literatura e cultura audiovisual Claudio Cledson Novaes* Mírian Sumica Carneiro Reis**

Resumo: Neste artigo, discutimos a ideia de educação do olhar a partir de leituras sobre as relações imaginárias entre cinema, literatura e cultura, problematizando aspectos da prática leitora comparativa, visando potencializar uma pedagogia escolar fundamentada na recepção da linguagem audiovisual como paradigmática na formação do leitor na/da contemporaneidade. Palavras-Chave: Cinema; Literatura; Cultura; Pedagogia; Olhar. Abstract: We discussed the idea of educational view from readings about imaginative relations among cinema, literature and culture, questioning aspects of the comparative reading practice, to enhance an educational pedagogy grounded on audiovisual language reception as an intrinsic feature in contemporary reader’s formation. Keywords: Cinema; Literature; Culture; Pedagogy; View.

Aspectos das relações cinema, literatura e ensino * Professor Pleno do Departamento de Letras e Artes (DLA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Coordenador do Núcleo de Estudos em Literatura e Cinema (NELCI). ** Doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista Nota 10 da FAPERJ.

O cinema é parte da realidade histórica e social cotidiana nos diálogos entre as diversas outras artes e com a cultura, apresentando-se ao olhar do espectador como linguagem que se constitui no jogo de representação do real articulado pela performance da imagem objetiva. Essa objetividade da câmera desdobra-se em subjetividade por meio das estratégias de montagens que simulam e dissimulam o cotidiano. Neste sentido, a força imaginária secreta da linguagem do cinema, como diz Jean-Claude Carrière (2006), está desde a percepção anterior da escrita do roteiro de um filme até o que se que projeta como


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imagem fotográfica em uma escritura capaz de despertar o espectador para a capacidade humana de reinventar virtualmente a vida, senão ela seria demasiadamente real e carente de sentidos. O enigma do discurso do cinema, ao forjar um sentimento no espectador de que a imagem da objetiva é real, assume força semelhante a da nossa capacidade de imaginar na vida real. Segundo Carrière (2006), enquanto no senso comum nós somos atores, plateia e palco, ao mesmo tempo, alguns indivíduos transformam a capacidade de imaginar num objeto de linguagem e em imagens, sons e histórias, compartilhando a experiência imaginária com outros, organizando o nomadismo da memória. Isto significa que a realidade estética no filme pressupõe um valor afetivo e a realidade intelectual sobre o mesmo objeto intensifica o valor significante. Neste sentido se constitui ao espectador cinematográfico o que Marcel Martin chama de atitude estética da imagem cinematográfica, quando, segundo ele: a imagem reproduz o real, para em seguida, em segundo grau eventualmente, afetar nossos sentimentos e, por fim, em terceiro grau e sempre facultativamente, adquirir uma significação ideológica e moral (Martin, 2007, p. 28).

O cinema pode ocupar importante papel na educação do olhar para o mundo contemporâneo, no entanto é preciso compreender o jogo entre o real e o imaginado para o leitor/espectador decodificar as afinidades suplementares entre verbo e imagem no movimento do imaginário. Para Carrière: nada poderia ser menos preciso do que essa visão estreitamente aritmética de nosso mundo imaginário. Tudo pode ser drama, ação, história, romance, contanto que o interesse seja mantido e que nossos ouvintes se sentem de olhos bem abertos e não nos neguem sua atenção (Carrière, 2006, p. 142).

Um olhar formado sobre novas bases estéticas e po-


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líticas de obras que revolucionam a recepção das escritas literárias em diálogo com outras performances, como a da linguagem cinematográfica, modificou também a leitura do discurso cinematográfico em dialogo com o literário, indo além das fórmulas tradicionais das adaptações. Como nos alerta Linda Hutcheon, tema, personagens e outras categorias de um texto adaptado em outro são instrumentos importantes como aferidores das correspondências entre as adaptações, no entanto, segundo ela: se deixamos de considerar apenas a mídia dessa maneira e passamos a investigar mudanças mais gerais na forma de apresentação de uma história, outras diferenças começam a aparecer no que é adaptado. Isso acontece porque cada forma envolve um modo de engajamento distinto por parte do público e do adaptador (Hutcheon, 2011, p. 35).

Os novos leitores/espectadores assimilam concomitantemente elementos das duas linguagens, seja na leitura dos livros enviesados pelo imaginário cinematográfico, seja diante de exibições dos filmes com traços do imaginário literário. O pacto do leitor/espectador com a ilusão da realidade é a mesmo para o livro e o filme. O que se alterna é a condição de projeção da imagem que, como diz Ítalo Calvino (1990), no livro se produz de dentro para fora e o filme se projeta de fora para dentro. No entanto não há hierarquia entre a potência do imaginário no livro e no filme. As condições de recepção interferem no ato de leitura literária ou fílmica desde a alfabetização para as imagens das letras, pois o processo de alfabetizar é simétrico ao treinamento do olhar para a comunicação cinematográfica, pois o sucesso de ambos depende da interação com os signos imagéticos. Portanto, a leitura via texto literário ou cinematográfico requer o mesmo pacto social e cultural diante do movimento político que os sentidos do imaginário da arte abrangem. Como afirma Jean-Louis Camoli (2008), toda leitura da imagem envolve o compromisso com a potencialidade do imaginário. Este compromisso ético da estética se dá em qualquer gênero de representação, ou mesmo na formação do olhar cotidiano. Quanto ao cinema, Camolli questiona:


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não se filma nem se vê impunimente. Como filmar o outro sem dominá-lo nem reduzi-lo? Como dar conta da força de um combate, de uma reinvindicação de justiça e dignidade, da riqueza de uma cultura, da singularidade de uma prática, sem caricaturá-la [...] Como construir para os nossos espectadores um percurso de liberdade e subjetividade? (Camolli, 2008, p. 30)

No seu artigo clássico, Por um cinema impuro, Andre Bazin discute das mais evidentes às mais sofisticadas relações do cinema com a literatura, estabelecendo um paradigma conceitual que define o cinema como arte da pilhagem, pois, segundo ele, estas são “as leis comuns da evolução das artes” (Bazin, 1992, p. 93), mas o cinema engenhosamente recria em seu imaginário os elementos apropriados tanto da grande arte quanto dos espetáculos populares e degredados, absorvendo e transformando o mundo pela percepção direta da câmera objetiva. Conforme afirma ainda Bazin isto se dá: porque sua matéria prima é a fotografia não quer dizer que a sétima arte esteja essencialmente voltada à dialética das aparências e à psicologia do comportamento. Se é verdade que só pode considerar o objeto do exterior, tem mil maneiras de agir sobre a sua aparência para lhe eliminar qualquer equívoco e assinalar uma e só uma realidade interior (Bazin, 1992, p. 100).

Da mesma forma, ocorre com o imaginário realista objetivo da literatura, pois enquanto a crítica moderna lamentava a apropriação do literário pelo cinema, como afirma Andre Bazin, a literatura realista se alimentava da influência cinematográfica, superando o drama das adaptações das obras-primas consideradas intransponíveis. Para o crítico: “na verdade, os verdadeiros obstáculos a ultrapassar na hipótese de tais adaptações não são de ordem estética; não dependem do cinema como arte, mas como fato sociológico e como indústria” (Bazin, 1992, p. 103). Ele acredita que a linguagem impura do cinema jamais prejudica a obra literária no processo de adaptação, mesmo reconhecendo que a literatura dispõe de arsenal estético mais antigo para criar seus personagens


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mais complexos do que o cinema. No entanto, o filme adaptado parte desta condição do literário para criar outro tipo de envolvimento do leitor/espectador com a obra cinematográfica. Além disto, a adaptação é potencial divulgadora da obra literária, porque muitos espectadores procuram o formato do livro após conhecer o enredo na narrativa do cinema. O diálogo nestes termos iniciais entre literatura e cinema culminará nos experimentalismos das vanguardas literárias e no cinema de autor, principalmente a partir da segunda metade do século XX. Mas, do ponto-de-vista da reprodução da sensibilidade cotidiana, a linguagem do cinema desde a sua origem já traz a ideia da película do filme como fotografias da vida. Os filmes instituem simultaneamente o panorâmico e os pontos de rupturas e descontinuidades que desconstroem as sensações da temporalidade social. No cinema clássico estes pontos de cisão eram ocultados, enquanto no cinema moderno a estética revolucionária pressupunha a ética de apresentar os pontos de fragmentação no filme como verossimilhança do olhar do cinema moderno em relação com a vida fragmentada. A busca pela verdade referencial panorâmica é também o traço da literatura moderna desde que o moderno surge como sinônimo do agora, como afirma Raymond Williams (2011). No século XIX esta é a característica basilar do imaginário literário e um traço imaginário que o cinema já traz como correspondência com a literatura. Como na literatura, o filme desperta um interesse por si mesmo e não apenas pelo objeto da representação. Tomando o diálogo literatura e cinema por este viés e para além das formulas imediatas da adaptação ou inspiração de uma arte na outra, passamos a pensar sobre uma pedagogia do olhar a partir das relações da literatura do/ no/com o cinema. Ou seja, uma práxis de leitura que possa ser concomitantemente decodificação dos elementos do texto literário e percepção do imaginário cinematográfico apropriado nas escritas, e vice-versa, para operar a leitura do filme na intimidade com as estratégias discursivas da literatura, desse modo, poderia se entender o grau zero da escrita (Barthes, 2000), da linguagem literária ou da cinematográfica, como formas de exprimir na arte a realidade


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individual e coletiva, simultaneamente, e para além da apresentação no exterior em uma língua, estilo ou gênero em particular. Como escreve José Carlos Avellar: Para compreender melhor o entrelaçamento entre o cinema (em especial o que começamos fazer na década de 1960) e a literatura (em especial a que começamos a fazer na década de 1920), talvez seja possível imaginar um processo (cujo ponto de partida é difícil localizar com precisão) em que os filmes buscam nos livros temas e modos de narrar que os livros apanharam nos filmes; em que os escritores apanham nos filmes o que os cineastas foram buscar nos livros; em que os livros voltam e tiram da literatura o que ela tirou do cinema; em que os livros voltam aos filmes e os filmes aos livros numa conversa jamais interrompida (Avellar, 2007, p.8).

A educação do olhar com a leitura cinematográfica envolve o leitor na aventura secreta e discreta entre literatura e cinema. O diálogo assume condição política, ao evidenciar conceitos e saberes novos, para o acesso ao texto, problematizando normas e disciplinas escolares tradicionais. Neste sentido, o cinema como instrumento educativo implica na exteriorização do pensamento do leitor através da intimidade com as imagens objetivas, como num ato de busca por significados para além dos visíveis, algo pouco exercitado na escola. Normalmente, o ensino da leitura se encerra na busca do significado dos códigos semânticos e sintáticos da língua no texto literário, reforçando as hierarquias entre linguagens. Para a educadora Adriana Fresquet (2007), o cenário contemporâneo da educação do leitor verbal em contraponto ao cinema é bastante auspicioso, devido à diversidade de diálogos que se pode estabelecer entre vozes incluídas e excluídas no processo formal de leitura. Isto corrobora a compreensão de que o ato de educar o olhar é um salto também para se reconhecer no desconhecido, saindo da zona de conforto disciplinar e tomando a direção do desaprender como um aprendizado. Algumas leituras buscam nas narrativas cinematográficas modernas escavar as imagens dos registros nas


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memórias das representações tradicionais para promover a alteração do imaginário, provocando um ruído poético nas linguagens e deslocando as relações comunicativas sobre as sociedades contemporâneas para um lugar em contraponto com a hegemonia do racional. Estas leituras fazem reverberar nos temas e formas das narrativas as novas perspectivas de um cérebro que pensa por imagens radicais num processo de educação do olhar do leitor/espectador por meio do que Gilles Deleuze (2005) chama da potência do falso, a fabulação ficcional da realidade. As relações de conhecimento se traduzem no cinema como uma máquina de pensar, sendo esta potência da linguagem moderna do cinema moderno, porque é nele que se dá a mudança de percepção que afeta diretamente o imaginário e a imagem-em-movimento deixa de ser um traço apenas sensório-motor no cinema, para tornar-se um emblema fundamental para a pedagógica da percepção do leitor/espectador sobre a imagem-tempo. A imagem não é realidade em si, e sim a crença no real. Para Deleuze, o cinema moderno realiza a operação radical no sistema-sensório motor do ser situado no mundo através de situação ótica e sonora pura. Para ele, “somente a crença no mundo pode religar o homem com o que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme, não o mundo, mas a crença neste mundo, nosso único vínculo” (Deleuze, 2005, p. 207). Os impactos no/do olhar do cinema sobre o mundo são especialmente percebidos por Walter Benjamin (1993), quando problematiza a perda da aura na arte moderna com reprodução tecnológica, que, segundo ele, destrói o último empecilho para a popularização da imagem de bens simbólicos. O viés otimista de Benjamin é visto por outros críticos de cultura da massa com um pessimismo pela massificação da cultura. O dilema ainda domina em alguns discursos escolares sobre a hegemonia da estética da comunicação de massa, que tem no cinema um dos instrumentos estratégicos na mercantilização da obra arte, inclusive da literatura adaptada ao regime de consumo da imagem em movimento, pois a fotografia ao reproduzir a imagem sacralizada em infinitas cópias prejudicaria a aura da originalidade literária. O reverso da operação é positivo, segundo Benjamin, principalmente


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porque a crise provocada pela exposição técnica da obra de arte simula a crise política da própria modernidade: o sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qualquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las (...) Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador (Benjamin, 1993, p. 183)

É óbvio que a tese defendida pelo filósofo da linguagem não condena ou exalta a tecnologia no âmbito da reprodução da arte, mas sim redefine a nova operação de leitura para a qual o seu olhar contemporâneo é requisitado. A comunicação de massa aparece para ele como elemento inexorável do desenvolvimento moderno, o que implica na necessidade da reeducação dos sentidos, para a compreensão dos paradoxos da modernidade. No caso da associação do ator ao político, Benjamin parece antecipar o jogo de representação que liga o ator ao político, percebendo, por exemplo, a utilização da indústria cinematográfica pelo nazismo, na propaganda ideológica transmutada em ficção, nos filmes alemães da Segunda Guerra, ao mesmo antecipa a estética e a ética política contemporânea fundamentada no marketing eleitoral indispensável aos políticos de hoje; assim como desvela o papel politico que artistas e celebridades encenam publicamente, ou veladamente, através das mídias audiovisuais. É imprescindível para formação do olhar que a escola proporcione a análise das imagens e das estratégias de construção do imaginário através do sistema audiovisual, tendo em vista que o contato do leitor com o mundo contemporâneo é cada vez mais reduzido (ou ampliado) pela comunicação visual: cinema, televisão, web e até mesmo a língua formal sendo reduzida aos sinais visuais mais simplificados do que as correspondências fônicas linguísticas. Roman Jakobson, ao questionar a potencialidade da autonomia significativa do cinema, afirma: “por


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outro lado, o signo é material de todas as artes, e para os cineastas é evidente a essência sígnica dos elementos cinematográficos” (Jakobson, 1970, p. 154). O estudo do cinema como lugar de exercício de leitura da imagem é aporte importante no processo de ressignificação do olhar, pois ele é sofisticado quanto ao discurso que envolve o potencial da técnica aliado à tradição intelectual da literatura, assumindo com cinema moderno um nítido diálogo com a filosofia, a estética, etc. O filme reúne esteticamente diversos gêneros das artes e condensa a ética da desauratização para aproximar-se do grande público, ao mesmo tempo em que retoma a aura ao se transformar no culto ao olhar privilegiado sobre os movimentos apenas imaginados nas narrativas míticas e literárias. Articulações entre teorias e práticas da leitura do cinema na pedagogia do olhar

* Disponível em: www.portal. mec.gov.br/seb/arquivos acessado em 08/08/2013.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) – Ensino Médio1, em vigor, a problemática sugerida para as relações de leitura a partir das interações entre as linguagens da literatura e de outras artes encontra-se bem definida nas orientações sobre as ações pedagógicas questionadoras das práticas tradicionais de leitura na escola. Os autores dos PCNs propõem que, ao invés da memorização mecânica, a consciência do valor apreendido pela leitura deve estimular os sentidos e despertar a autonomia dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Em grande parte, os percalços ainda evidentes na aplicação de novos procedimentos de leitura na prática do sistema de educação estão relacionados com a prática da cultura escolar tradicional que prioriza o aprendizado mecanicista dos significados e precariza a assimilação dos conceitos. Na nossa leitura para a análise dos PCNs encontramos a definição de texto literário e sugestão de leitura, segundo novas categorias interpretativas. Para os conselheiros autores do projeto de Estado para a formação de leitores na escola o texto deve ser lido sob o seguinte enfoque:


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Como representação - um modo particular de dar forma às experiências humanas - o texto literário não está limitado a critérios de observação factual (ao que ocorre e ao que se testemunha), nem às categorias e relações que constituem os padrões dos modos de ver a realidade e, menos ainda, às famílias de noções/conceitos com que se pretende descrever e explicar diferentes planos da realidade (o discurso científico). Ele os ultrapassa e transgride para constituir outra mediação de sentidos entre o sujeito e o mundo, entre a imagem e o objeto, mediação que autoriza a ficção e a reinterpretação do mundo atual e dos mundos possíveis.

O texto ficcional compreendido nestes termos conceituais requer uma pedagogia pautada pela transgressão, mas esta prática ainda esbarra no exercício de leitura segundo fórmulas antigas e modelos clássicos focados em autores, obras, temas e cronologias literárias. A cultura escolar tradicional deve ser desmistificada com as percepções interativas de leituras transtextuais e transdiscursivas na associação entre os textos literários e as linguagens audiovisuais contemporâneas; assim como na recepção do texto cinematográfico sem esbarrar nas fórmulas simplificadas sobre adaptação. Estes gestos permitem desdobramentos nos estudos das linguagens e da língua, assim como possibilitam leituras das artes e de outras linguagens científicas das ciências humanas e naturais por um processo interativo. Tornar as práticas leitoras nas escolas percepções mais complexas das relações entre linguagens é instrumentalizar o ensino/aprendizagem, para melhor compreender o mundo contemporâneo, como preconiza as propostas dos atuais PCNs. O cinema moderno pode ser um laboratório destas práticas leitoras desmistificadoras, pois radicaliza o papel educativo do documentário e da ficção tradicional, ao desconstruir a ilusão da montagem clássica que apresenta verdades ideológicas através de conteúdos morais, cívicos e folclóricos. Neste sentido, o imaginário do cinema trava diálogo com as noções clássicas, ao mesmo tempo em que desloca a leitura tradicional dos significados, despertando a autonomia do indivíduo recalcada pela lógica das disciplinas isoladas. As normas


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disciplinares aparentemente imunes são abaladas pela linguagem impura do texto cinematográfico. Os dilemas metodológicos destas operações ainda causam fraturas nas práticas que agenciam os elementos cinematográficos como formas de exercício de leituras suplementares, pois o filme ainda é privilegiado pelo teor do espetáculo e do prazer lúdico que substitui a razão instrumental, e é também hierarquizado na escala de valor das linguagens, considerando que a leitura introspectiva e de ilustração dos cânones literários padronizados são as experiências leitoras privilegiadas na cultura linguística das escolas. Os projetos educativos oficiais tratam o cinema desde o início como potencial máquina pedagógica para a modernidade das escutas e a aprendizagem de linguagens e conteúdos culturais. Grandes escolas de cinema - americana e soviética - desenvolveram o potencial ideológico do cinema para a propaganda dos respectivos sistemas políticos-ideológicos, adotando a indústria cinematográfica como problema de Estado e tratando a sétima arte como estratégia de guerra. O desenvolvimento das técnicas cinematográficas e as investidas de intelectuais das vanguardas levou o cinema ao campo também dos imaginários de contracultura, problematizando o discurso identitário na educação ocidental e tornando a cinematografia motor de reverberações revolucionárias. No cinema educativo no Brasil é Canuto Mendes um dos ativistas principais da causa. Nos anos 1920, ele tornou-se o precursor do tema, ao incitar o Estado a intervir no cinema em nome da educação. Para Maria Eneida Fachini Saliba, o pensamento de Canuto representa a importância social que despontava no cinema para o imaginário do século XX. Segundo ela: “as reflexões de Canuto Mendes, pelo menos aquelas restritas ao campo educacional, também foram marcadas por este ímpeto de “reformar” a sociedade” (Saliba, 2003, p. 122). Na história do cinema educativo institucional no Brasil o papel exercido pela cinematografia oficial brasileira é importante na construção da ideologia nacional -popular na Ditadura de Getúlio Vargas, inclusive com a participação de grandes cineastas brasileiros. Um deles


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foi Humberto Mauro, que registrou, em filmes documentários destinados ao espaço escolar, as lendas, os mitos e o folclore da cultura popular, assimilando mensagens líricas e dramáticas em uma memória nostálgica, mas que se tornou um importante momento para o desenvolvimento da linguagem audiovisual e do documentário cinematográfico nacional. Diversos estudiosos da História e da Filosofia contemporâneas atribuem ao cinema o papel de potencializar a competência do olhar para o mundo. A importância social do discurso cinematográfico na educação é percebida por gestores educacionais e por empreendedores cinematográficos desde o momento em que os filmes ocuparam o imaginário dos espectadores comuns. Este interesse se condensou em linhas políticas educacionais após a cinematografia despertar também o interesse dos intelectuais e escritores. Para Eric Hobsbawm (1995), a guinada cultural que radicalizou as mudanças de comportamento do intelectual no XX se deu quando os melhores talentos nacionais superaram o confinamento nas tradições e, ao mesmo tempo, deixaram de ser ocidentalizadores e assumiram a vanguarda do autodescobrimento, apresentando realidades contemporâneas pelo viés descolonizado. Para ele, a reportagem e a câmera tiverem papeis fundamentais neste processo, inclusive subsidiando os relatos realistas da literatura. Há várias maneiras de pensar sobre as relações práticas do cinema na escola: desde observar como um conjunto de filmes representa a escola enquanto tema cinematográfico, até observar como a estrutura curricular se apropria do cinema como ferramenta pedagógica. Poderíamos levantar várias outras dimensões, como perguntar quais os compromissos ideológicos em filmes que tematizam a educação, considerando que a quantidade de obras desta natureza e o forte impacto cognitivo que elas causam no imaginário escolar, desde a direção, passando pelo professor e chegando ao aluno. Como lidar com a massificação dos dramas e melodramas nas películas comerciais; ou ainda, como o grande cinema industrial, ou os filmes minimalistas de cinematografias latino-americanas, asiáticas, africanas e outras tendências experimentais reconstroem as representações a contrapelo das percepções convencionais sobre os temas.


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A questão prática é como a escola introduz o cinema como ferramenta educacional. Isto descortina problemas do modelo escolar burguês que tem compromisso com a formação do indivíduo, prioritariamente, mecanicista e racionalista, predominando a utilização das imagens em movimento como fenômeno da técnica e, muitas vezes, alimentando o paradigma da economia objetiva do tempo alimentando um sistema que anula os fatores multifacetários das imagens. Considerando a problemática na representação da escola no cinema e do cinema como ferramenta disciplinar, a ideia de cinema educativo aponta para algumas propostas: primeiro, destacar o olho cinematográfico como paradigma para a reeducação do olhar, ou seja, ver o cinema pelo viés do terceiro olho, o que remete a leitura para os diversos imaginários simbólicos que formam o corpo de imagens visíveis no cinema, a partir das ideias invisíveis sobre um mundo em permanentemente movimento de crises de identidade e de alteridades radicais simulando a realidade na objetiva cinematográfica. Neste sentido, o cinema é uma politica da coletividade, quanto ao significado etimológico mais raro do termo política: aquele que faz referência à vida como transcurso individual e coletivo, simultaneamente. O sistema de produção cinematográfico assimila a ideia de coletividade em todas as suas etapas, desde a concepção do objeto filme, passando pela sua realização em equipe, até a projeção e recepção – esta última somente se individualiza por um processo metafísico que esgarça as fronteiras entre individual-coletivo no ambiente da exibição. Neste sentido, o cinema é terceira via do olhar em busca da terceira margem ou da miragem do entre-lugar, pois é um processo educador do olhar sensório-motor num tempo em que predomina a lógica do reconhecimento do mundo por via do audiovisual. Como afirma Tânia Pellegrini: A cultura contemporânea é sobretudo visual. Vídeo games, videoclips, cinema, telenovela, propaganda e histórias em quadrinhos são técnicas de comunicação e de transmissão de cultura cuja força retórica reside sobretudo na imagem e secundariamente no texto escrito, que funciona mais como um complemento, muitas vezes


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até desnecessário, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos (Pellegrini, 2003, p. 15)

O impacto do discurso audiovisual sobre a realidade contemporânea leva o cinema à condição de instrumento pedagógico importante na formação do olhar, pois a lógica do filme como produto da técnica e a representação espetacular e melodramática dos temas narrados promovem as versões narrativas prosaicas ou poéticas do mundo como os demais modelos das representações em outras artes promovem em outros sistemas sensório-motores e outras realidades políticas e culturais. Como diz Christian Metz, por causa do objetivo de representar, a literatura e o cinema estão condenados à conotação, já que a denotação existe sempre antes do seu empreendimento artístico. Mas há outros planos comparativos em que literatura e cinema se diferenciam enquanto estilos de representação, quando, segundo ele: a expressividade estética se enxerta, no cinema, numa expressividade natural, a da paisagem ou do rosto que nos mostra o filme. Nas artes do verbo, ela não se enxerta numa verdadeira expressividade primeira, mas numa significação convencional amplamente inexpressiva, a da língua (Metz, 1972, p. 94).

Comparar não é verificar a melhor ou a pior expressividade, o que interessa é sondar, sem hierarquizar, a performance das linguagens enquanto composição política e estética do mundo contemporâneo. O cinema como pedagogia do olhar na escola desmistifica o imaginário da comunicação visual de massa na contemporaneidade, portanto ele tem um papel de disciplina na pedagogia escolar para remover o equívoco da “expressividade natural” atribuída ao mito da transparência do olho tecnológico. Ao mostrar diretamente paisagens e personagens o cinema pode visto como fácil e fluente para a leitura, mas é o paradoxo da facilidade de ler imagens que instaura questões sobre a realidade. Como diz ainda Metz: arte fácil, o cinema corre sempre o risco de se tornar vítima desta facilidade: como é fácil dar na vista quando


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a gente tem à disposição a expressão natural dos seres, das coisas, do mundo! Arte por demais fácil, o cinema é uma arte difícil: não acaba nunca de sair do poço de sua facilidade (Metz, 1972, p. 95).

Cinema na educação do olhar não significa facilitar leituras verbais com a inclusão de filmes no currículo escolar, mas sim subverter a cultura educativa que compreende a linguagem fílmica desfocada da sua potencial importância para se ler o mundo contemporâneo. O discurso audiovisual inserido no processo de alfabetização do olhar tem valor semelhante ao de no ensino verbal aprender o uso das letras, das palavras, das frases, e dos períodos. A partir dai se percebe as consequências e os significados dos conjuntos de signos. Na leitura do filme as partes mínimas compõem o significado sempre precário da imagem, atribuindo sentidos de dentro para fora e de fora para dentro da obra. Na decupagem das imagens fílmicas desmistifica-se a noção estereotipada da fidelidade e da transparecia do real cinematográfico. Como define Jacques Aumont, é preciso o olhar motivado para ver o visível no cinema: “só vejo um filme porque, diante de uma tela branca, vi o mesmo tornar-se o suporte de uma imagem - infinitamente cambiante, “móvel”, mas de qualquer forma imagem” (Aumont, 2004, p. 54). O cinema como exercício de leitura no processo educativo do olhar como simultaneidade de códigos e sentidos rechaça a ideia basilar do sistema educacional clássico no qual as disciplinas possuem sentidos isolados. Este é um dos desafios educacionais mais equacionados pelos educadores, que se perguntam: como tornar a visão do conhecimento mônada de um sistema complexo de intercâmbios entre singularidades que só fazem sentido pleno se percebidas em suas inter-relações? Como tornar o processo educativo um conjunto complexo de fato e não uma sugestiva grade de modelo interdisciplinar, mas que na prática não se realiza enquanto saberes interconectados porque o fragmentário assusta defensores do conhecimento totalizante? Enfim, a atividade prática da leitura do processo fragmentário na montagem do imaginário do cinema contribui para a formação do olhar do leitor e do espectador,


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pois desmitifica a leitura da imagem realista como uma totalidade transparente. Subvertendo o modelo de leitura escolar tradicional, o leitor cinematográfico verá a imagem fílmica como processo de desaprender em ruptura com a ideologia subliminar da expressividade realista no imaginário tradicional. Algumas observações finais sobre leitura fílmica para a educação do olhar As possibilidades éticas e estéticas articuladas na linguagem do cinema podem apresentar temas e personagens que se ressignificam continuamente, a partir de leituras dos planos longos, dos planos curtos, dos closes, dos conjuntos, dos ângulos das tomadas, dos tipos de luz, etc. Conforme as decisões técnicas as opções estéticas traduzem os estilos de sensibilidade no tratamento com a linguagem que vai produzir sentidos da obra. As interpretações dos recursos estéticos remetem o leitor visualmente para o mundo reconstituído por decisões técnicas que simulam e despertam estatutos motores-perceptivos. Portanto, ler o filme não é apenas o ato de entender o seu papel como suporte mediador de mensagens, mas sim entendê-lo como corpo que simula uma visão autônoma, ou um terceiro olho. Teixeira afirma que a ideia da câmera como o olho do espírito implica na questão do regime da legibilidade da imagem, o que pressupõe nova lógica do olhar a fotografia para além do mimetismo e da abertura para o mundo. Segundo o olhar fotográfico é o “ato cujo significado maior é operar um descentramento em nosso sistema visual-perceptivo -representativo, instaurando toda uma outra lógica da criação artística em ruptura com uma “arte retiniana”” (Teixeira, 2003, 136). O cinema como processo educativo radical do olhar remete também à necessidade de repensar as categorias e gêneros. Por exemplo, a problemática do documentário e da ficção, que desde o surgimento do cinema já se constituem mais como suplemento do que como oposição de gêneros. Se o realismo da imagem é função natural da câmera, a distinção entre documentário e fic-


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ção perde o sentido. Um exemplo é o emblemático filme de Dziga Vertov, O homem e sua câmera (1929), que cria um complexo movimento cinematográfico documentário com função educativa dos sentidos. Nele, a estratégia autoreflexiva e metalinguística exerce sobre a ética do documento direto a força estética ficcional e ideológica infiltrada no real captado. A metáfora do cine-olho no filme de Vertov torna -o embrionário das questões que mobilizam o pensamento do/no cinema como educação do olhar, pois ele promove um sentido construtivista que desvela dialeticamente o mundo numa obra que paradoxalmente é a câmara colocada como mediação direta com o real imediato. Contudo, a realidade passa pela reconstrução ideológica no documentário que adentra nas imagens do mundo burguês. Como destacam alguns pesquisadores, as técnicas desenvolvidas por Vertov “estão hoje disseminadas pela publicidade, pelo vídeo clip, na televisão, no cinema e, claro, no instrumento mais revolucionário, a internet” (Alvarenga e Conceição in: Pernisa Júnior, 2009, p. 85). Perceber que o mundo contemporâneo é, em grande parte, produto das linguagens audiovisuais coloca o cinema como ponto de partida para a percepção deste imaginário que se diversifica numa multiplicidade de suportes comunicativos por imagens. A educação do olhar pelo cinema na escola é um método interdisciplinar que contribui para a formação do leitor, porque em sua curta história a cinematografia já está assimilada em outras linguagens estéticas e técnicas científicas. Aspectos estes que, aos poucos, os críticos (inicialmente, estudiosos que migraram da análise literária para a cinematográfica, como Andre Bazin) foram compreendendo a relação entre o olhar cinematográfico e as outras ciências que constroem no imaginário da nossa interação com o mundo com apoio do discurso cinematográfico, o que causou uma espécie de revolta na percepção cognitiva popular na forma de ver a realidade, como afirma Arlindo Machado sobre o impacto das primeiras modalidades rústicas do espetáculo cinematográfico: Ele reunia, na sua base de celuloide, várias modalidades de espetáculos derivados das formas populares de cultu-


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ra, como o circo, o carnaval, a pantomima, a prestidigitação, a lanterna mágica. Como tudo pertence à cultura popular, ele formava também outro mundo, um mundo paralelo ao da cultura oficial, um mundo do cinismo, obscenidades, grossuras e ambiguidades, onde não cabia qualquer escrúpulo de elevação espiritualista abstrata (MACHADO, in: COSTA, 2005, p. 11).

Do exótico ao grotesco, o imaginário do início do cinema passou a se aproximar da literatura de forma direta através das adaptações dos clássicos. Isto moveu pelo menos duas questões fundamentais: primeiro, o cinema surgindo como arte e tecnologia que ganha o gosto de grandes públicos, inclusive aqueles sem acesso ao código verbal escrito; segundo, a literatura clássica passa a ser consumida indiretamente pelos grandes públicos dos filmes, uma condição antes inconcebível para grande parte de leitores excluídos das belas letras. Em seguida, a literatura cinematográfica consciente iniciada pelas vanguardas modernistas toma aspecto formal que depois se tornará um processo inconsciente com a incorporação de imaginários fílmicos no texto literário, que absorve recursos populares e, ao mesmo tempo, sofisticados da linguagem do cinema, como a montagem, o corte e, enfim, a síntese técnica da estética da visibilidade do filme na dizibilidade literária. Por outro lado, surgiram também na história do cinema as vanguardas poéticas que aspiravam modelos literários e os traduziam em imagens cinematográficas, que a partir de determinado momento da história do cinema começaram a constituir o diálogo sofisticado entre narrativas e poéticas literárias e os meios cinematográficos, despertando os sentidos de modernidade no cinema que opera com representações abstratas da literatura, levando o cinema ao estatuto definitivo de comunicação artística e à criação de institutos difusores de sua estética. A Cinemateca Brasileira2 - organismo oficial de cinema ligado ao Ministério da Cultura - atualmente desenvolve o projeto Cine-Educação, para o qual tem a seguinte justificativa:

Disponível em: www. cinematec.gov.br/page/. php?id=91 – acessado em 08/08/2013. 2


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O Programa Cine Educação foi elaborado a partir de parceria entre Cinemateca Brasileira, Via Gutenberg, diversas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e o patrocínio da MAPFRE Seguros, tendo como foco a formação do cidadão a partir da utilização do cinema no processo pedagógico interdisciplinar.

Completando a finalidade educativa do cinema na prática escolar, esta arte foi instituída como área ou disciplina do currículo também do Ensino Fundamental, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e reforçada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). No entanto, a utilização do cinema, da televisão e de vídeos como recursos no processo de aprendizagem interdisciplinar nas escolas ainda é muito incipiente se considerarmos a expectativa de vanguarda manifestada na proposta dos PCNs para definir a arte como conhecimento: A manifestação artística tem em comum com outras áreas de conhecimento um caráter de busca de sentido, criação, inovação. Essencialmente, por seu ato criador, em qualquer das formas de conhecimento humano, ou em suas conexões, o homem estrutura e organiza o mundo, respondendo aos desafios que dele emanam, em um constante processo de transformação de si e da realidade circundante3.

Disponível em: www.portal. mec.gov/arquivos - acessado em 08/08/2013. 3

Enfim, a capacitação de leitores sobre as estratégias de conhecimento operadas nas linguagens literárias e das artes audiovisuais é função dos estudos comparativos para a formação de leitores com o potencial de intervir nas políticas contemporâneas para a leitura. A ação concreta é via as escolas, mobilizando teorias e constituindo práticas que revertam o olhar sobre os fenômenos dos mundos reais e imaginários. Para isto é preciso mapear criticamente o problema e produzir referências sobre o potencial educativo oriundo do imaginário audiovisual, encarando o problema da leitura de imagens de diversas maneiras na formação básica e fundamental, mas, principalmente preparando os novos formadores de leitores nos cursos universitários das licenciaturas, pois o saber ainda


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mais intensamente uma forma de poder. Apesar da condição precária da escola diante dos desafios atuais, perceber como se articula os saberes escolares específicos com as informações que os leitores trazem do cotidiano, inclusive aqueles das estéticas dos audiovisuais, pode potencializar um novo olhar sobre a capacidade pedagógica da escola. Como analisa Rosália Duarte: Saber como o cinema atua nos leva a admitir que a transmissão/produção de saberes e conhecimentos não é prerrogativa exclusiva da escola (embora ela tenha um importante papel a desempenhar nesse processo), mas que acontece também em outras instâncias de socialização. Pensar o cinema como uma importante instância “pedagógica” nos leva a querer entender melhor o papel que ele desempenha junto àqueles com os quais nós também lidamos, só que em ambientes escolares e acadêmicos (Duarte, 2002, p. 81).

A leitura do mundo é uma estratégia de poder que compreende um gesto paradoxalmente complexo é simples: o olhar. O olho atento aos fragmentos instáveis do cotidiano destitui das imagens as estabilidades ideológicas. O cinema tem um potencial desconstrutor por se constituir de imagens fragmentárias que simulam o imaginário moderno. Por isto é um importante instrumento pedagógico para formar leitores e espectadores que reorganizam o caos da modernidade a partir de outras mediações entre a escola, a arte e a vida.

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Pedagogia do olhar: a potência...

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Contribuições do comparativismo para a formação de professores mediadores e a promoção da leitura literária Cláudio José de Almeida Mello*

Resumo: Este artigo indica a persistência de um modelo de ensino de literatura no Brasil, tanto no Ensino Superior quanto no Ensino Médio, marcado pela transmissão da historiografia literária diacrônica e positivista e pela análise literária de matiz estruturalista, como um fim em si. Com o objetivo de confrontar esse modelo aos referenciais sociointeracionistas e recepcionais e contribuir para a elaboração de alternativas para a promoção da leitura literária como prática social a partir da escola, o artigo reflete sobre a relevância de se considerar o comparativismo como estratégia de ensino na formação de professores mediadores e na formação de leitores. Palavras-Chave: Literatura e educação, ensino de literatura, formação do leitor, comparativismo. Abstract: This article indicates the persistence of a model of literature teaching in Brazil, both in higher education and in high school, characterized by transmission of positivist and diachronic literary history and by literary analysis influenced by structuralism, as an end in itself. In order to confront this model to social interactionist and recepcional references and to contribute to setting alternatives to promote literary reading as social practice, the article reflects on the relevance of considering the comparativism as a teaching strategy in training teachers as mediators and in educating readers. Keywords: Literature and education, teaching literature, formation of the reader, comparativism. * Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Bolsista da CAPES.


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A mais recente edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil (FAILLA, 2012) apresenta uma série de informações que motivam o questionamento sobre o ensino de literatura no Brasil, tanto no Ensino Médio como na área de formação de professores no Ensino Superior. Uma delas refere-se ao fato de que os índices históricos de leitura no país permanecem baixos: 4,0 livros por habitante/ano em 2011, bem inferiores aos 10,3 livros lidos por habitante/ano na Espanha no mesmo ano da pesquisa realizada no Brasil e abaixo da média de vizinhos latinoamericanos como a Argentina, com 4,6 livros lidos por habitante/ano, ou o Chile, com 5,4. Além disso, 50% dos entrevistados no Brasil se identificaram como não leitores, cinco vezes mais que os 10% de não leitores espanhóis (HOYOS; SALINAS, 2012, p. 191213). Quando se considera a motivação para a leitura, nota-se que nos países em que há maior índice de leitores o prazer de ler desponta entre os principais: “O prazer pela leitura é a diferença característica entre um leitor habitual e um leitor esporádico: a Espanha registra que 86% leem por esse motivo; a Argentina 70% e o Brasil 49%” (HOYOS; SALINAS, 2012, p. 194). Parece certo que a prática social, representada pelo prazer e pelo interesse próprio no caso da leitura literária, possui papel relevante na formação de leitores perenes, aqueles que mantêm o contato com a literatura independentemente da obrigatoriedade imposta pela escola (CECCANTINI, 2009). Tanto é que, após deixarem o Ensino Médio, por volta dos 18 anos, o nível de leitura cai de 5,9 de livros por habitante/ano entre os jovens entre 14 e 17 anos para 3,6 livros lidos por habitante/ano na faixa etária entre os 18 a 24 anos, e daí para frente segue em uma queda irreversível (FAILLA, 2012, p. 335). Ou seja, tão logo se vê livre da imposição, o jovem se afasta da literatura. Ainda que os dados quantitativos possam ser questionados por razões históricas, culturais e sociais, eles sugerem que a imposição em detrimento do prazer tem um impacto negativo no desenvolvimento da leitura: o Brasil é o país da mostra em que a motivação relacionada


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à obrigação escolar ou acadêmica aparece em primeiro lugar, 36%, enquanto a Espanha tem o menor índice, 7%, justamente o país com a maior proporção de entrevistados que se consideraram leitores. Embora haja consenso acerca da importância da escola na formação de leitores, quando se analisa as práticas de ensino verifica-se, sobretudo no Ensino Médio, um modelo centrado na transmissão da historiografia literária diacrônica e positivista e na análise literária de matiz estruturalista, como um fim em si mesma. Tal modelo é identificado por estudiosos como Oliveira (2007) e Todorov (2009) como uma transposição do ensino de literatura disseminado nos cursos de Letras, denotando uma constituição estrutural do problema. Um olhar sobre o modo como esse modelo se forjou no Brasil ajuda a compreender a sua persistência perniciosa no ensino. Após apresentar uma síntese desse panorama, este artigo retoma aspectos fundamentais dos referenciais sociointeracionistas e recepcionais para a valorização da experiência estética do leitor e, a partir deles, reflete sobre a relevância de se considerar o comparativismo como estratégia de ensino na formação de professores mediadores e na formação de leitores, com o objetivo de contribuir para a promoção da leitura literária como prática social a partir da escola. Afirmação da historiografia literária no Brasil Surgida na Europa, a ideologia romântica, ocupada em criar um conjunto de fatores responsáveis pela constituição de um sentimento nacional, deu lugar à busca de construção de um passado que desse legitimação à configuração política, histórica e cultural da pátria. Diferentemente das histórias da literatura anteriores, marcadas pela catalogação estática de livros, as de inspiração romântica inovam com uma noção de tempo dinâmico que se renova e procuram abranger obras e ideias. “Por esta razão, Otto Maria Carpeaux considera que foi o romantismo que criou a ´história da literatura` conforme o critério cronológico, como nós a conhecemos” (CAIRO, 1997, p. 36).


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A dimensão política da literatura como instituição cultural no Brasil corroborou para o desígnio de valorização do país, como mostram tantos ensaios redigidos no Século XIX com a perspectiva nacionalista, como “Da nacionalidade da literatura brasileira”, de Santiago Nunes Ribeiro (1972), e Florilégio da poesia brasileira, de Francisco Adolfo Varnhagen (1987). Essa crítica romântica estudou e colaborou na edição e reedição de textos e contribuiu para a consolidação da necessidade de existência de uma história da literatura brasileira, como afirmação das coisas nacionais. Assim, “a história da literatura brasileira foi construída a partir das tentativas dos críticos românticos, que, inicialmente, buscaram coletar um corpus que pudesse justificar a própria existência de uma literatura que se pudesse chamar de brasileira” (CAIRO, 1997, p. 36). Esse trabalho permitiu que, mais tarde, os críticos realistas e naturalistas pudessem concretizar a elaboração das histórias da literatura. A primeira delas, a História da literatura brasileira, de Sílvio Romero (1943), surgiu em 1888 com uma perspectiva determinista em função sobretudo da raça, e consolidou um cânone nacional, iniciado no Romantismo. A obra possui um conceito amplo de literatura que abrange outras manifestações científicas e culturais, além das literárias. Em 1912, José Veríssimo publicou a segunda História da literatura brasileira, delimitando o conceito de literatura em obras propriamente literárias. Embora não seja um crítico romântico, verifica-se no autor uma perspectiva de valorização do nacional: “a história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história do que da nossa atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação” (VERÍSSIMO, 1969, p. 10). O terceiro dentre os críticos mais importantes do período compreendido entre o final do Século XIX e o início do XX foi Araripe Junior, que, embora não tenha escrito uma história da literatura, produziu textos importantes para as duas obras citadas, como o “Ponto de vista para o estudo da literatura brasileira”, publicado, segundo Afrânio Coutinho (apud CAIRO, 1997, p. 39), em A vida moderna, em 1866, antes, portanto, das de Sílvio Romero e de José Veríssimo. O projeto de história de Araripe Júnior possui uma perspectiva determinista,


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tendo como base o meio, donde o conceito de obnubilação brasílica, que afetaria aqueles que chegassem ao Brasil após atravessarem o oceano Atlântico, pensamento que expressa uma ideologia marcada pela valorização do nacional (COUTINHO, 1968). Em 1919, Ronald de Carvalho publicou a Pequena História da Literatura Brasileira, a qual segue o modelo das histórias da literatura anteriores e “constitui uma história da maior relevância pelo fato de ter formado a geração de historiadores e críticos literários atuantes ainda hoje, no Brasil. Basta lembrar a ressonância desta obra, na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi [1994], cuja primeira edição é de 1970” (CAIRO, 1997, p. 40). Assim, “o esquema da história da literatura brasileira inventado pelos críticos naturalistas repete-se ao longo da história da história da literatura brasileira até a exaustão e cai na rotina na medida em que prejudica a visão crítica das obras” (CAIRO, 1997, p. 41). Novos ares na historiografia literária Somente em meados do Século XX apareceram as obras que superaram esse modelo de historiografia literária brasileira, já então arraigado nos cursos de formação de professores e, por conseguinte, no ensino secundário: A literatura no Brasil, de 1955, dirigida por Afrânio Coutinho, com o critério de periodização estilística; e a Formação da literatura brasileira, 1959, de Antonio Candido, escrita não com o objetivo de fazer uma história da literatura, mas sim de identificar os momentos decisivos que marcaram o surgimento de uma literatura nacional. Ao examinar analiticamente o valor literário das obras, Candido apontou relações e avaliou a importância de autores mesmo que secundários no sistema literário, rompendo assim com o modelo centrado no cânone, repetido desde Sílvio Romero. Na introdução da Formação da literatura brasileira, Candido (1969, p. 23-39) deixou claro o modo como a atitude crítica parte de uma impressão e após o estudo da informação, a exegese e a comparação chega ao julgamento de valor. Dessa maneira, o crítico procurou


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superar os perigos do historicismo anterior e do formalismo apenas como técnica de análise, propósito alcançado ao longo dos dois volumes de sua obra. Lançando luz às reflexões sobre a historiografia literária, Haroldo de Campos, ao longo de uma série de ensaios reunidos em 1969 no livro A arte no horizonte do provável, questionou as relações causais do critério diacrônico que marcou as histórias da literatura brasileira e propôs, associado a este, o estudo sincrônico da literatura, o qual permitiria vislumbrar uma perspectiva estéticocriativa das obras. Jogando com os eixos diacrônico e sincrônico, ele se apropriou das palavras de Jakobson (apud CAMPOS, 1977, p. 207) para esclarecer que “a descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida”. Desse modo, o autor questionou a própria noção de historicidade teleológica que caracterizou as histórias da literatura e postulou uma presentificação do estético, uma reinterpretação criadora, conforme o conceito de Jetz-zeitz (tempo-agora) benjaminiano, a partir do qual o crítico pode resgatar da tradição sentidos do presente, fazendo um caminho inverso, “um salto de tigre em direção ao passado”, como disse Benjamim (1985, p. 229). Outro arcabouço conceptual formulado na Europa alguns anos depois e disseminado no Brasil a partir da década de 1980 foi a Estética da Recepção, cujas teses principais foram lançadas na conferência proferida em 1967 na Universidade de Constanza por Hans Robert Jauss (1994), na qual o autor colocou questões importantes para formar a nova base teórica, a princípio focada em uma revisão crítica da história da literatura e na configuração de um novo paradigma de leitura e de leitor, e mais tarde utilizada por outros autores como Bordini & Aguiar (1993) para a formulação de alternativas metodológicas para o ensino da literatura. Nas sete teses que Jauss apresentou naquela conferência encontrava-se já a base da teoria recepcional que argumenta a favor da especificidade artística do encontro do leitor com o texto literário. Para tanto, o autor partiu de uma crítica às histórias da literatura baseadas


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em tendências gerais como a relação entre autor e obra ou os gêneros, dispostos cronologicamente, nas quais ele apontou influências da filosofia da história do Século XIX de índole positivista, baseada na explicação causal, na relevância a fatores externos e na relação determinista entre as obras, assim como influências do idealismo da estética de Benedetto Croce. Segundo Jauss, a influência positivista deu lugar a uma sociologia da literatura de embasamento marxista, e o idealismo propiciou um método imanentista. Rejeitando os pressupostos tanto de um quanto de outro, o autor defendeu que a historicidade da obra literária não pode prescindir dos vestígios de seu aparecimento no decorrer do tempo, elaborados pelo leitor no ato da recepção, aspecto ausente nas outras histórias da literatura (JAUSS, 1994). Formação de professores e promoção da leitura Todavia, quando surgem esses estudos e até que eles sejam absorvidos no meio universitário, os cursos de Letras já haviam assimilado o paradigma historicista voltado para o passado, centrado em um cânone rígido, e o Ensino Secundário já havia incorporado o modelo de transmissão das histórias da literatura. Na pesquisa acadêmica “História literária nos cursos de Letras”, realizada em seis universidades públicas do estado do Paraná, Vanderleia da Silva Oliveira (2007) identificou a existência de um modelo de ensino focado na historiografia literária diacrônica, com estilos de época dispostos cronologicamente dentro de uma periodização literária, em uma perspectiva positivista. “É justamente esta escolarização do texto literário, condicionada às relações com a historiografia literária, que implica no estudo diacrônico das obras literárias brasileiras, com poucas variáveis em todos os níveis de ensino” (OLIVEIRA, 2007, p. 11). Compreende-se, portanto, que os egressos dos cursos de Letras empreendam uma prática docente segundo esse modelo. Em seu estudo, a autora demonstrou que a força da historiografia literária no Ensino Secundário possui raízes no Século XIX e persiste no Século XX, como se nota


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em tantas obras produzidas para essa finalidade, citadas pela pesquisadora, como o Curso de Literatura Nacional de Cônego Fernandes Pinheiro, de 1862; a Pequena história da Literatura Brasileira, de 1919, de Ronald de Carvalho; Lições de Literatura Brasileira, 1919, de José Ventura Boscoli; História da Literatura Nacional, 1930, de Jorge Abreu; Noções de história da literatura brasileira, 1931, de Afrânio Peixoto; História da Literatura brasileira, 1939, de Bezerra de Freitas (apud OLIVEIRA, 2007). Nos cursos de Letras pesquisados, outras obras importantes dos estudos literários no Século XX ganham destaque, como a Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido (1969); A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho (1997); e História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (1994), obra que, “sem dúvida, é aquela que melhor define a relação atual entre história literária e ensino de literatura, posto que é presença unânime nos cursos de Letras” (OLIVEIRA, 2007, p. 68-9). Em outra pesquisa acadêmica desenvolvida na década de 1980 sobre o ensino de literatura em 25 universidades brasileiras, Marly Amarilha de Oliveira já havia constatado a presença de um modelo de ensino de literatura mais pautado na transmissão da historiografia e da periodologia do que na obra literária, como fenômeno estético (OLIVEIRA, 1982). Em âmbito de Ensino Médio, pesquisa acadêmica em quatro escolas públicas e particulares do município de Porto Alegre realizada por Piedras (2007) constatou a hegemonia de um modelo baseado na periodologia em uma perspectiva evolutiva e na transmissão das características de estilos de época. Segundo a pesquisadora, “os planos de conteúdos, tanto nas escolas particulares como nas públicas, mostram uma história da literatura com uma percepção historicista de evolução linear, baseada na continuidade. Não há fragmentação no alinhamento dos assuntos literários, que se organizam temporalmente, do mais distante ao mais próximo” (PIEDRAS, 2007, p. 84). Nota-se que a insistência do modelo forjou no Ensino Superior e Secundário no Brasil um contexto de respeito às histórias da literatura, que deviam ser transmitidas nas situações de ensino. Ajuda a explicar esse fenômeno a


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necessidade romântica de invenção da tradição, dado o vazio que caracterizou a paisagem inaugural no domínio não só literário mas também da história cultural do país, formado em um contexto de dependência em relação à Europa (CARVALHAL, 1986). A transmissão das histórias da literatura na atualidade não deixa, sob esse viés, de caracterizar-se como uma afirmação do nacional anacrônica. Outro campo teórico que se difundiu amplamente por diversas áreas do conhecimento como as ciências humanas e sociais foi o Estruturalismo, que encontrou no meio acadêmico de Letras um campo fértil para a sua aplicação, reproduzida na educação básica. Da concepção de Saussure (1989) da langue como sistema fechado de signos, um código virtual isolado de sua utilização na parole, derivaram encaminhamentos pedagógicos no ensino da língua por meio da taxinomia e da análise da sua estrutura sintática. Nessa perspectiva de ensino, o domínio da língua escrita era medido pela capacidade do aluno de memorizar a nomenclatura e identificar as funções dos termos da oração, além de conhecer a gramática normativa. A partir dos anos 80, somou-se a essa orientação pedagógica o estudo e aplicação do sistema de comunicação de Roman Jakobson (1973), cuja hegemonia chegou a provocar a alteração da denominação da disciplina para Comunicação e Expressão. No ensino de literatura, além da transmissão das histórias literárias, a reprodução no ensino secundário do conteúdo ministrado nos cursos de Letras concentrava-se na aplicação do modelo formalista de análise intrínseca, com o objetivo de identificar as particularidades da linguagem poética, ou, no caso dos romances e contos, de analisar a estrutura narrativa e as funções dos personagens, de acordo com a proposta de Vladimir Propp (1983). Ainda recorrente nas salas de aula, nessa prática “o contato maior que qualquer aluno do ensino médio tem com o texto literário de fato se dá seja nas abonações e exemplos que auxiliam na compreensão das regras e formações da língua portuguesa, seja nas próprias aulas de literatura, que se resumem principalmente ao ensino da história e dos gêneros literários” (MEIRA, 2009, p. 9). Depreende-se desse quadro do ensino de literatura


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tanto no Ensino Superior quanto no Ensino Médio que os programas curriculares se organizam no sentido da transmissão de conteúdos sobretudo da historiografia literária, muitas vezes com o propósito da análise em si a partir de fórmulas estruturalistas, engendrando um trabalho com a literatura incapaz de promover a leitura literária, até porque, nesse paradigma de ensino, não está claro que isso seja objetivo da disciplina escolar. Mesmo Todorov, reconhecidamente estruturalista, rejeita o protagonismo que o modelo intrínseco de análise literária adquiriu nos cursos de literatura em nível superior, reproduzido no nível secundário. Antes de tudo, o autor pensa que a literatura é um fenômeno social que pode contribuir para a formação humana dos sujeitos, e não um mero utensílio para ensinar conteúdos de teorias sobre o texto como o próprio estruturalismo que, se aplicado de forma absoluta, com propósitos metateóricos, “afasta a obra literária de toda relação possível que ela possa ter com o mundo, com o real, com a vida” (TODOROV, 2009, p. 8) O autor adverte sobre o perigo de adotar um modelo de ensino que afaste os jovens da literatura, pois desde a fase em que a literatura é escolarizada até o nível superior, o contato do aluno se dá primeiramente com estudos de crítica, história ou teoria literária e posteriormente com o texto literário ou seus fragmentos, a título de ilustração da teoria ensinada; como resultado, a literatura acaba sendo considerada pelos alunos simplesmente como uma mera disciplina escolar, com conteúdos complexos e desinteressantes (TOROROV, 2009). Claro que esse não é um problema exclusivo do Brasil. Analisando o caso francês, Chartier (2007, p. 282290) observou que a formação universitária dos jovens professores de Letras raramente os tem preparado para pensar-se como professores de língua ou como responsáveis pela transmissão da tradição literária. Dada a dificuldade de ler literatura, a autora assinala que a formação de leitores está condicionada à boa formação de professores de Letras, pois apenas a animação de leitura em biblioteca não é suficiente para abordar a complexidade do texto literário.


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Leitura literária como prática social As pesquisas citadas indicam que a persistência em boa parte das escolas e também no ensino superior de um modelo cristalizado de ensino de literatura focado na historiografia e na teoria literária gera um ciclo que se configura em um problema estrutural, pois os egressos do Ensino Médio, que tiveram um ensino de língua e literatura obsoleto, encontram no magistério em Letras, contraditoriamente, um discurso progressista e uma prática de ensino criticada por esse discurso; e quando regressam à Educação Básica como professores reproduzem em sua prática o modelo de ensino a que se encontraram expostos durante a sua formação escolar e também profissional. Dada a necessidade de rever tal paradigma de ensino, compreende-se que o prazer da leitura seja destacado por tantos especialistas (BARTHES, 1973; CHARTIER, 2007; COLOMER, 2007; MELLO, 2010; PINHEIRO, 2002; ZILBERMAN, 2012). Tal preocupação representa um avanço significativo para a reconsideração dos conteúdos das disciplinas da área de literatura nos cursos de Letras e, consequentemente, na Educação Básica, nas políticas públicas para o livro e a leitura, para a sociedade, enfim. Fazendo eco com as teorias recepcionais pela ênfase na experiência estética e no interesse do leitor, Ana Maria Machado (2012, p. 60) chega a dizer que “(...) ler é como namorar. Quem acha que não gosta é porque está com um parceiro que não lhe dá prazer. Trate de trocar.” Trata-se de um avanço assentado em bases epistemológicas e pedagógicas, cujos principais paradigmas são os conceitos de dialogismo bakhtiniano e sociointeracionismo vygotskiano, os quais dão amparo científico e embasam procedimentos metodológicos na área de língua e literatura. A concepção históricodiscursiva de sujeito de Bakhtin permite compreender melhor as relações dialógicas entre leitor e texto na produção de sentidos: O texto só vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu ponto de contato é que surge a luz


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que aclara para trás e para frente, fazendo que o texto participe de um diálogo. Salientamos que se trata do contato dialógico entre os textos (entre os enunciados), e não do contato mecânico “opositivo”, possível apenas dentro das fronteiras de um texto (e não entre texto e contextos), entre os elementos abstratos desse texto (entre os signos dentro do texto), e que é indispensável somente para uma primeira etapa da compreensão (compreensão da significação e não do sentido). Por trás desse contato, há o contato de pessoas e não de coisas. (BAKHTIN, 1997, p. 405-6)

No campo do ensino, essa relação dialógica engendrou a perspectiva interacionista de discurso como prática social, que orienta procedimentos pedagógicos tanto para o ensino de língua quanto para o de literatura e foi fundamental para o desenvolvimento dos estudos sobre o letramento no Brasil, dando lugar ao ensino de conteúdos significativos para os educandos, superando a escolarização distanciada do seu meio social (KLEIMAN; SIGNORINI, 1995; SOARES, 1998). Nessa perspectiva, tanto na área de língua como na de literatura o ensino é realizado valorizando a interação na aprendizagem situada em contextos históricos, sociais e culturais concretos, de acordo com o conceito de sociointeracionismo de Vygotsky (1984, p. 59-65), segundo o qual o aprendizado passa pela apropriação da cultura, internalizada na consciência pela linguagem em um processo de comunicação interpessoal. O ensino de língua filiado ao sociointeracionismo contempla a leitura, a produção de texto e a oralidade em situações reais vivenciadas pelos educandos no entorno social da escola e inclui a reflexão sobre a língua, contemplando as gramáticas internalizadas, a descritiva e a histórica, além da normativa, hegemônica no modelo de ensino tradicional de orientação estruturalista. Apesar de a utilização do conceito interacionista de linguagem nos encaminhamentos pedagógicos no ensino de literatura ser mais recente do que no ensino de língua, estudos como os de Colomer (2007), Cosson (2006) e Mello et al. (2011) mostram a pertinência de desenvolver nessa área procedimentos análogos aos


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utilizados no ensino de língua, até porque, sobretudo em escolas públicas, trata-se do mesmo professor, com a mesma formação teórico-metodológica. Para Colomer (2007, p. 159), A leitura literária pode expandir o seu lugar na escola através de múltiplas atividades, que permitam sua integração e conferência com outros tipos de aprendizados. Os mais imediatos, é claro, são os aprendizados linguísticos. Por um lado, o trabalho linguístico e literário conjunto permite apreciar as possibilidades da linguagem naqueles textos sociais que o propõem deliberadamente, como é o caso da literatura. Por outro, a interrelação se produz através de formas mais indiretas, já que o contato com a literatura leva as crianças a interiorizar os modelos do discurso, as palavras ou as formas sintáticas presentes nos textos que leem.

A ênfase da socialidade da leitura, portanto, engendra tanto para a área de língua como para a de literatura um ensino permeado pela mesma perspectiva de interação verbal e social no uso do texto, com obras de interesse dos alunos e atividades de cognição e metacognição realizadas com o objetivo de alcançar uma fruição maior por meio da experiência estética. Comparativismo como estratégia de ensino Os avanços nas pesquisas acadêmicas acerca da socialidade do discurso e do texto, da ênfase no leitor, assim como da clareza da necessidade de traduzir em termos pedagógicos os novos conceitos, têm se mostrado mais presentes no ensino de língua do que no ensino de literatura, em cuja prática tanto no Ensino Superior quanto no Ensino Médio persiste um modelo que destoa dos referenciais teórico-metodológicos interacionistas e segue focado na transmissão da historiografia e da teoria literária. Dada a importância da escola para a promoção da leitura literária, a reversão do quadro de leitura no país passa necessariamente senão pela


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superação da dicotomia entre teoria e prática, ao menos pela utilização de procedimentos mais condizente com os atuais pressupostos, e nisso a história recente das ideias pedagógicas, teóricas e metodológicas como o sociointeracionismo, o dialogismo, a Estética da Recepção e o letramento apontam um caminho que demanda uma revisão do ensino de literatura. Nesse sentido, em sintonia com a incorporação de encaminhamentos metodológicos coerentes com a ênfase na recepção e com a concepção de discurso como prática social, fundamentadas na compreensão das relações dialógicas entre o leitor e o texto, os estudos comparativistas têm uma contribuição relevante a oferecer à comunidade científica e à formação de professores, em prol de um ensino de literatura direcionado à construção de um perfil de leitor crítico e à promoção da leitura literária a partir da escola. Pois qual é o papel da escola, senão o de formar, ensinar a ler e a compreender, mediar, ensinar estratégias e, assim, instigar a leitura, revelar que ela é um esforço que vale a pena? Ainda que as fronteiras entre as áreas da história da literatura, crítica literária e literatura comparada sejam tênues ou inexistentes, não foram estas últimas que permaneceram no trabalho com a literatura, nem no Ensino Superior nem no Ensino Médio. Cultivar a atitude comparativista como estratégia de análise, portanto, parece ser um caminho interessante para um ensino de literatura como prática social, o que contribuiria para a formação do leitor de que fala Ana Maria Machado (2012, p. 61): “Depois de ler um livro que desperta entusiasmo, o leitor quer outro do mesmo tipo. E depois, outro para dialogar com esses. No terceiro, já dá para comparar três e saber de qual gosta mais. E poderá rejeitar um quarto que não tenha nada a ver com o que quer. E assim por diante, comparando e formando repertório”. Até porque, se ler é criticar, criticar é comparar. Como lembra um pioneiro dos estudos comparativistas, Paul Van Tieghem (1994), uma impressão inicial sobre uma obra provoca no leitor um gosto inconsciente; mas o estudo da gênese, dos temas recorrentes, das ideologias e das influências aumenta a abrangência do conteúdo da obra e procura no leitor um prazer intelectual muito


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maior. Como as obras das humanidades são constituídas pela sua tradição, o conhecimento das intertextualidades potencializa o seu entendimento e possibilita a realização de sua dimensão mais ampla. Obviamente, não se trata de abandonar as histórias da literatura, mas sim de reconsiderar o seu papel. Assim, o comparativismo pode contribuir para a produção de um sentido de percepção estética no leitor oriunda da comparação entre a diversidade de estilos, autores, obras, gêneros, enfim, conteúdos trabalhados nas atividades cognitivas inerentes à compreensão e à formação do gosto literário (COLOMER; CAMPS, 1991). Claro que não repetindo a velha fórmula positivista de fontes e influências, mas sim buscando nos estudos comparativos a perspectiva crítica de desconstrução ativa e inteligente da obra, de modo a expandir a sua significação pela compreensão das relações interliterárias e dos movimentos econômicos, sociais e políticos que atuam na formação das visões de mundo presentes nas obras literárias (PERRONE-MOISÉS, 1990). Como lembra Coutinho (1995), a literatura não tem fronteiras, ela é universal, por isso a trajetória de leitura pode descobrir, além do cânone tradicionalmente veiculado nas escolas, obras de outros matizes, abrindo a possibilidade de conhecimento da heterogeneidade das literaturas nacionais do nosso continente e de outros países, ampliando as relações histórico-culturais do leitor. Levar para o campo pedagógico a atitude comparativista como estratégia de ensino, vale dizer, não exclusiva, permite uma comunicação maior entre a obra e o leitor, pois a aproximação entre as obras e o acesso aos seus códigos estéticos possibilitam a confrontação do objeto artístico com as experiências acumuladas pelo leitor e, em caso de ocorrer a esperada síntese analítica, a experiência estética se potencializa. Assim, a fusão de horizontes de expectativas existentes no passado da obra e no presente do leitor propicia a sua emancipação, na medida em que o libera das percepções usuais e dota-lhe de uma nova visão da realidade (ZILBERMAN, 1980). Portanto, um dos papéis mais relevantes dos estudos de literatura comparada para a promoção da leitura literária é o de mobilizar conhecimentos da


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história, da crítica e da teoria literária para embasar as análises comparativas entre autores, textos, estilos e gêneros em situações de ensino, a partir dos estudos de literatura comparada (COUTINHO; CARVALHAL, 1994); estudar o diálogo entre literatura e outras artes (CLÜVER, 1997; GONÇALVES, 1997); identificar elementos de intersecção entre a literatura juvenil e a literatura canônica (COLOMER, 2010); estudar o fenômeno da hipertextualidade das obras produzidas com o uso das novas tecnologias (ANSTEY; BULL, 2006); enfim, contribuir para uma leitura multimodal, compreensiva e crítica (BONET, 2012), a fim de fornecer subsídios para que a formação de professores e a prática docente na Educação Básica provoque no aluno uma atitude comparativista, um meio de tornar fascinante a sua trajetória de leitura, na qual: O estudo da obra remete a círculos concêntricos cada vez mais amplos: o dos outros escritos do mesmo autor, o da literatura nacional, o da literatura mundial; mas seu contexto final, o mais importante de todos, nos é efetivamente dado pela própria existência humana. Todas as grandes obras, qualquer que seja a sua origem, demandam uma reflexão dessa dimensão (TODOROV, 2009, p. 91).

O trabalho com a literatura de orientação sociointeracionista que utiliza o comparativismo como estratégia de ensino não se propõe à transmissão de teorias, nem à imposição de obras literárias desvinculadas do interesse do aluno, previamente estabelecidas com critérios estipulados por instituições oficiais, mas sim utiliza-se das diversas disciplinas como ferramentas para ativar o conhecimento do leitor sobre aspectos existentes nas obras que podem contribuir para a ampliação da sua compreensão e da fruição estética. Trata-se de uma estratégia não exclusiva que se associa bem a alternativas metodológicas, como o método recepcional e o método semiológico desenvolvidos por Bordini & Aguiar (1993) ou as sequências didáticas propostas por Rildo Cosson (2006). O trabalho comparativista atende à necessidade de


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reflexão inerente ao letramento literário, pois a fruição associada à prática social da leitura literária demanda uma cognição no âmbito das convenções estéticas, das apropriações e diálogos intertextuais próprios das relações interliterárias e interartes. Enxergar as funções das figuras poéticas, relacionar os planos do conteúdo e expressão em um poema, por exemplo, não é tarefa fácil, mas quando se aproximam mais de um texto de um mesmo ou de diferentes autores, ou quando se consideram uma produção literária e uma criação pictórica do mesmo estilo, a comparação ilumina as escolhas em um e em outro, o que auxilia o leitor a notar aspectos ao nível da estrutura profunda do texto. Ao final da etapa obrigatória da escolarização, “alguns lerão muito pela vida afora. Outros, menos. As vocações humanas são diferentes. Mas, tendo aprendido na escola que a literatura existe e está ao seu alcance, resta só saber onde buscá-la depois, quando quiser.” (MACHADO, 2012, p. 61). Professores mediadores de leitura Mesmo diante da dificuldade de objetivar os desafios para a construção de uma sociedade leitora, não há dúvida de que a formação de professores mediadores de leitura está no centro das transformações necessárias, como se infere do panorama bastante atual traçado por Coutinho (2003): (...) o que se observa com mais frequência, ao menos no âmbito do ensino, é a importação acrítica de correntes teóricas ou, o que ainda parece mais problemático, o mergulho no âmbito da Teoria, dissociada de qualquer prática efetiva. Revestida de um teor de autoridade, decorrente talvez da identificação estabelecida no período estruturalista com o discurso da ciência, e mais tarde no pós-estruturalista com o da filosofia, a Teoria é explorada muitas vezes pelo prestígio que confere. (COUTINHO, 2003, p.121)

Para reverter esse quadro, um dos principais desafios


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pedagógicos por parte dos estudiosos do comparativismo literário e interartes, bem como dos formadores de professores em nível superior, consiste em mobilizar o aparato teórico na elaboração de metodologias de ensino que resultem na valorização da leitura literária como prática social, desenvolvendo nos alunos das escolas uma atitude comparativista. Como lembra Todorov (2009), lê-se inicialmente por prazer, por curiosidade, atendendo ao interesse de formação pessoal de cada um e de compreensão do universo. Quando subordinado a estes objetivos, é bem-vindo o aprendizado de métodos de análise que auxiliem a compreender e a desfrutar o texto literário. Nesse trabalho, o professor mediador mobiliza conhecimentos das diversas correntes da teoria da literatura, da história e da crítica literária sem necessariamente utilizar terminologia específica. Em atividades de leituras compartilhadas, o professor manipula os métodos de análise sem exclusivismo, mas de acordo com a necessidade de cada obra. “Pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim” (TODOROV, 2009, p. 31). Assim, estimular no aluno uma atitude comparativista implica em um protagonismo do papel do professor como mediador, a fim de que as atividades cognitivas potencializem o prazer intelectual advindo da leitura literária, que acontece pela sedução da experiência estética, não por obrigação. Como lembra Zilberman (2012, p. 121), Alinhada ao pensamento de Jauss ou ao de Barthes, uma teoria se enraizou a partir do acolhimento de suas ideias, segundo a qual a leitura da literatura gera prazer. A partir daí, desdobrou-se em propostas distintas de definição desse prazer: ele pode estar vinculado à aquisição de conhecimento e à conquista da emancipação intelectual; ou configurar-se em experiência única, irrepetível e indizível. Nas duas alternativas, evidencia-se um ponto de convergência: recusam-se premissas que incidem em obrigação, dever, necessidade ou instrução.


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Ou seja, o prazer é adquirido como um efeito do ato de ler; se este é feito por obrigação, ou por imposição, o prazer se anula (ZILBERMAN, 2012; PENNAC, 1994). Em lugar de impor o conteúdo da literatura, é melhor seduzir o leitor, direcionar as interpretações por meio de leituras compartilhadas (o aluno individualmente, o aluno com outros colegas, o aluno com o professor), orientadas pelo objetivo da experiência estética. Dessa forma, modifica-se a acepção de leitura da sociedade, de obrigatória, escolar e instrumental para uma leitura como necessidade social, com usos e objetivos concretos de acordo com cada indivíduo e situação (BONET, 2012). Nas leituras compartilhadas avulta a importância da mediação da leitura, que pode tanto afastar o aluno da literatura quanto aproximá-lo dela. Por isso, a mediação deve ser feita de forma sistematizada em um planejamento de leitura, no qual são inseridos os objetivos das atividades, visando a melhorar os processos de alto nível, segundo a acepção das teorias cognitivas, que incluem a elaboração mental da leitura, as relações afetivas desencadeadas, a formação de imagens, bem como os conhecimentos metalinguísticos e metaliterários, necessários para a melhoria do processo comunicativo da literatura e a capacidade do aluno de interpretar os textos (COLOMER, 2007, p. 179-180). Nesse planejamento, conjuga-se o ensino de língua e o de literatura, a fim de melhorar a competência linguística e propiciar uma interação efetiva entre texto e leitor, o qual se identifica com o universo ficcional ou poético em uma dimensão profunda e, porque estética, insubstituível. Desse modo, a mediação de leitura acompanha o leitor na construção de uma trajetória de leitura própria, que, desde a literatura juvenil, contempla os clássicos mas não se restringe a eles, ainda que se reconheça a sua importância e valha a pena lê-los. Mas é justamente porque as obras da literatura juvenil podem conduzir aos clássicos da literatura que elas consistem em uma leitura de formação, algo entre o lazer e o estudo (CHARTIER, 2007, p. 208). Nas atividades de leituras compartilhadas o professor mediador incita o aluno à comparação entre obras, à aproximação entre autores, estilos e mesmo artes


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diferentes, estimulando reflexões ao nível cognitivo que potencializem a fruição e favoreçam a criação no leitor de um senso crítico, uma atitude comparativista que lhe permite fazer suas próprias escolhas. Afinal, Não se leem os clássicos por dever ou por respeito, mas apenas por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça, bem ou mal, certo número de clássicos e entre os quais (ou com referência aos quais) você poderá reconhecer depois os seus clássicos. A escola está obrigada a dar a você instrumentos para fazer uma escolha; mas as escolhas que contam são as que ocorrem fora ou depois de qualquer escola. (CALVINO, 2004, p. 12-13)

Ainda que a elaboração mental ocorra em um âmbito solitário, a leitura consiste em uma atividade eminentemente social e interacionista; nesse sentido, a mediação realizada durante a vida escolar do aluno otimiza o compartilhamento das impressões, das descobertas, dos juízos de valores por meio de um diálogo que explora as subjetividades do leitor face a face com as tensões humanas realizadas esteticamente nas obras. Conclusão O ensino de literatura no Ensino Superior e Médio identificado nas pesquisas citadas, transmissor da história da literatura, possui uma dimensão conteudística e depositária, marcada pelo cumprimento de prazos e pela grande quantidade de informações históricas e metaliterárias a serem armazenadas pelo aluno e cobradas em prova. Já na perspectiva da prática social de linhagem recepcional, dialógica e comparativista, o ensino de literatura: tem de ser aos poucos, por meio da lenta formação de um repertório que habilite a fazer comparações e escolhas. É isso que a escola pode fazer muito bem – se os professores e os formuladores de currículo forem leitores de literatura, de modo a valorizar a liberdade


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de opção e a necessidade de tempo para essa atividade. (MACHADO, 2012, p. 60).

Tania Rösing (2012, p. 103) lembra que “é compromisso do governo, por intermédio dos programas mantidos pelo Ministério da Educação ou mesmo pelo Ministério da Cultura, viabilizar não apenas os materiais didáticos, mas realizar programas de formação de professores mediadores de leitura”. A colaboração dos estudos comparativistas com esses programas governamentais podem configurar-se nas mais diversas ações, como aprofundar os estudos na área da literatura infantil e juvenil; estabelecer relações entre esse subgênero e outras obras que permitam a passagem do leitor adolescente para o leitor adulto; disponibilizar análises dos diálogos interliterários e interartes entre as obras, abrangendo outras intertextualidades; contemplar a multimodalidade textual e as produções literárias em meio digital. O desafio dos estudos comparativistas, tradicionalmente inovadores, é, portanto, o de expandir o seu campo de reflexão e atuação e, a partir de uma dimensão não só teórica como também prática, favorecer a promoção da leitura literária por meio de um ensino de literatura mais adequado às necessidades contemporâneas dos educandos. Na sociedade pós-industrial da tecnologia e da comunicação em que nos encontramos, os jovens estão à frente da escola (ALVERMANN; WILSON, 2007). Se queremos formar leitores, temos que nos ajustar aos novos tempos e desenvolver um ensino de literatura que equalize a fruição e a cognição dentro de novos paradigmas, caracterizados por serem mutantes.

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Aula de literatura – costurando leituras com fiapos de memórias Daniela Maria Segabinazi*

Resumo: O ensino de literatura na escola ainda é norteado quase exclusivamente pelo livro didático, com atividades repetitivas e distanciadas de práticas de leituras. Os procedimentos didáticos, na sala de aula, não acompanham escolhas de métodos de abordagem textual e nem consideram os fundamentos da teoria literária. Conhecendo a realidade das escolas brasileiras, podemos dizer que a atividade de leitura literária quase inexiste e o desinteresse pela literatura é crescente. Nessa perspectiva, inicialmente, apresentamos a problematização do ensino de literatura e, na sequência, o aporte teórico-metodológico que sustenta a vivência pedagógica descrita neste artigo, que envolve a literatura e outras artes em um processo de interação e diálogo. Palavras-Chave: Literatura; Leitura; Formação de leitor; Estética da Recepção; Projetos didáticos.

* Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Abstract: The literature education in high schools is still guided, almost exclusively, by the textbooks, with repetitive activities and practices that are distanced from student’s readings. The teaching procedures in the classroom do not follow choices of methods of textual approach and do not consider the basics of literary theory. By knowing the reality of Brazilian high schools, we can say that the activity of literary readings almost does not exist and the lack of interest in literature is increasing. In this perspective, we initially present the problem of the literature education, and then we present the theoretical and methodological framework that supports the educational experience described in this paper, which involves literature and other arts in a process of interaction and dialogue. Keywords: Literature; Reading; Reader Formation; Aesthetics’Reception; Educational Projects.


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O ensino de literatura na escola ainda é norteado quase exclusivamente pelo livro didático, com atividades repetitivas e distanciadas de práticas de leituras. Os procedimentos didáticos, na sala de aula, não acompanham escolhas de métodos de abordagem textual e nem consideram os fundamentos da teoria literária. Conhecendo a realidade das escolas brasileiras, podemos dizer que a atividade de leitura literária quase inexiste e o desinteresse pela literatura é crescente. O modelo de aula de literatura atualmente em vigor na escola brasileira poderia ser descrito como uma sequência de atividades mais ou menos estáticas, ditadas inclusive pelo livro didático: apresentação de um texto, explicação do vocabulário, exercícios de interpretação, exercícios gramaticais e composição. (AGUIAR; BORDINI, grifos nossos, 1993, p. 36)

Essa afirmação, em parte, desanimadora, nos permite refletir sobre a didática do ensino de literatura, seus métodos de ensino e sua falta de renovação ou mesmo de variação de atividades na sala de aula. Por outro lado, nos faz pensar se atualmente ainda se preserva esta seqüência didática, se ela é ou não pertinente ao ensino e o que se apresenta como novo, enfim, o que seria outro modelo pedagógico de ensino de literatura. Antes de apresentarmos uma proposta didática, entendemos que há a necessidade de explanar alguns conceitos que norteiam a escolha do método de abordagem e, principalmente, que estruturam as atividades constituintes do mesmo. Caso contrário, faríamos uma sucessão de exercícios desvinculados dos objetivos e dos resultados que se queiram atingir com o estudo da literatura no ensino médio. Dessa forma, afinados com as teorias que defendem uma posição sócio-interacionista na aprendizagem, escolhemos a Estética da recepção como teoria que orienta o método recepcional de abordagem do texto literário em sala de aula. O surgimento desta teoria não é recente, nos anos 30 do século passado, Roman Ingardem postulava que:


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[A obra literária é] uma estrutura lingüístico-imaginária, permeada de pontos de indeterminação e de esquemas potenciais de impressões sensoriais, os quais, no ato de criação ou da leitura, são preenchidos e atualizados, transformando o que era trabalho artístico do criador em objeto estético do leitor. (Apud, AGUIAR; BORDINI, 1993, p. 82)

Essa concepção altera o foco do texto literário, evidenciando que a obra não possui mais uma significação única e imutável, impassível de outras interpretações que não aquelas da crítica autorizada, como a do professor e da crítica literária. A formulação dada por R. Ingardem, apoiada na fenomenologia, é apresentada a partir de uma descrição que o autor faz da estrutura da obra literária. Esta compreenderia quatro estratos: 1) fônico-linguístico; 2) unidades da significação; 3) das objetividades apresentadas; e 4) aspectos esquematizados. Essas camadas consistiriam na essência da obra literária. Posteriormente, os autores H. R. Jauss e W. Iser, seguidores de R. Ingardem, acrescentaram que para a concretização do ato da leitura há o preenchimento dos vazios (os pontos de indeterminação) por parte do horizonte de expectativas do leitor. Ou seja, o leitor, durante a leitura, interfere, dialoga e preenche os espaços lacunares de acordo com suas vivências acumuladas na memória, trazendo para o texto literário sua percepção sobre o que lê, revelando nesta atitude um verdadeiro ato de comunicação. Assim, nessa comunicação o que ocorre é o encontro entre os horizontes delineados pelo texto (os estratos) e os pertencentes ao leitor. Aliada a essa concepção de leitor, que participa na construção da significação do texto, é importante compreendermos a noção de horizonte de expectativas, as quais incluem as convenções estético-ideológicas que constituem a produção/recepção de uma obra. Zilberman (1990) esclarece que ao realizar a leitura do texto, o leitor singulariza aquela obra por carregar os juízos introjetados em sua formação, inclusive escolar. Essa interação entre texto-leitor e mundo, resulta do horizonte cognitivo e histórico ordenados pelo social, intelectual, ideológico,


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lingüístico e o literário, considerando, ainda, fatores emocionais do indivíduo. De outro modo, podemos dizer que o ato da leitura se concretiza quando o leitor ao decodificar a palavra e elaborar o pensamento, os confronta com o imaginário e os conhecimentos prévios que acumula em sua memória, revirando e acomodando novas informações e idéias ao seu conhecimento. Essa percepção é permeada pela subjetividade do leitor ao se debruçar sobre o texto que lê. Nessa interação ocorre a compreensão e a interpretação da obra literária e, então, o leitor passa a ser também um co-autor, pois passa a dizer algo sobre a obra que lê. Todavia, segundo Aguiar e Bordini (1993), o processo de recepção se inicia antes mesmo do contato do leitor com o texto, justamente porque o sujeito já possui o horizonte que o limita, embora seja constantemente rompido. São as referências do mundo real e as vivências/ experiências que o leitor insere no horizonte de valores durante o ato da leitura, porém, o texto pode confirmar ou perturbar este horizonte em termos de expectativa do leitor. Isso pode ocorrer, por exemplo, na leitura de uma obra como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, em que os conhecimentos prévios do leitor (cultural, social, intelectual, emocional e outros = horizontes) e suas expectativas sobre a obra não coincidem. Isto é, no ato da leitura os horizontes do leitor não conseguem decifrar/ compreender o universo representado na obra, pode ser limitações na ordem da língua (incompreensível para um leitor com vocabulário limitado ou pouco reconhecido por ele), na ordem discursiva (não consegue acompanhar a narração, o ponto de vista), na ordem histórica (não tem bagagem de conhecimento sobre o contexto social, cultural e histórico), entre outros. O texto, quanto mais se distancia do que o leitor espera dele, mais altera os limites desse horizonte de expectativa, ampliando-os. Isso ocorre porque novas possibilidades de vivências e de expressão foram aceitas e acrescentadas às possibilidades de experiência do sujeito. No entanto, se a obra se distancia tanto do que é familiar que se torna irreconhecível, não se dá a aceitação e o horizonte permanece imóvel, isto é, o leitor não consegue realizar a leitura plenamente, havendo rejeição e aban-


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dono da leitura da obra. Do mesmo modo ocorre com a obra que corrobora as normas circulantes na sociedade do leitor, causando menos estranheza e tornando-se também imperceptível, o que mantém o horizonte igualmente inalterado (AGUIAR; BORDINI, 1993). No primeiro caso, não significa uma obra distante pelo tempo de sua publicação, mas sim distante da expectativa do leitor, por exemplo, uma obra contemporânea como A hora da estrela, de Clarice Lispector, ou mesmo, obras juvenis de Lígia Bojunga Nunes como A bolsa Amarela; A casa da madrinha; O sofá estampado, entre outras, podem ser rejeitadas pelo leitor por não contemplarem seus desejos e seu repertório de leituras para compreensão das obras em questão. Contudo, se aceitas pelo leitor, reconstroem seu horizonte e aumentam seu repertório armazenado na memória. A percepção dessa questão se insinua pela subjetividade do leitor. As sugestões do autor são como doses de estimulantes para a imaginação do leitor. Os arquivos da memória são revirados e de lá surgem paisagens, rostos, gestos, cenas, imagens, objetos, tios, vizinhos, avós, lembranças perdidas evocadas por uma frase, uma imagem, uma descrição. Na interpenetração entre os fragmentos da vida real passada e os fragmentos da presente ficção proposta pelo autor localiza-se a percepção do leitor. (MARCHI, 2000, p.161)

O segundo caso corresponde às obras, reconhecidas por Jauss como conformadoras, porque consolidam os valores e normas presentes na sociedade, além de possuírem um menor distanciamento estético, ou seja, são de consumo rápido e pouco amplia a experiência literária do leitor. As obras que se configuram com estas características são notadamente os best-sellers, conhecidos também como os livros populares, os mais vendidos. Esclarecidos estes conceitos básicos da teoria, é importante salientar que sua adoção é coerente com a postura do letramento literário, uma vez que o sujeito/leitor se torna atuante na escolha de temas e interesses de estudo, e, principalmente, participante ativo na leitura literária. Nessa compreensão, o letramento literário demanda


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do leitor sua imersão no mundo da leitura literária, cultivando e apropriando-se do patrimônio que são as obras, a fim de constituir-se em sujeitos atuantes na sociedade e, em especial, em indivíduos mais plenos na formulação de conceitos e comportamentos. Em outras palavras, A ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria de poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Uma e outra permitem que se diga o que não sabemos expressar e nos falam de maneira mais precisa o que queremos dizer ao mundo, assim como nos dizer a nós mesmos. (COSSON, 2006, p. 17)

Delineados os conceitos, passamos a destacar alguns tópicos relacionados à opção pela teoria e seus procedimentos metodológicos. A apresentação terá como apoio a obra canônica de Aguiar e Bordini (1993), já referida aqui, que nos auxiliou na compreensão do que seja uma metodologia e como se aplica em um contexto de sala de aula. Entre diversas teorias e métodos, as autoras descrevem a teoria da Estética da recepção como fundamento teórico para a proposição metodológica, explicitando os procedimentos das etapas do trabalho e suas técnicas para a concretização dos estudos. Desse modo, nos apropriamos da Teoria da Estética da recepção, constituída por R. Ingardem, complementada posteriormente por H. Jauss e W. Iser; e, ainda, das leituras do texto acima citado para construir nossas propostas didáticas. Contudo, antecipamos que a organização metodológica do ensino de literatura será apresentada em forma de Projetos de trabalho (ou pedagógicos), que consiste em um planejamento ordenado e particularizado para traçar um propósito, perseguir alguns objetivos, mesmo que provisórios. Mais adiante voltamos à discussão teórica e metodológica de como se apresenta a pedagogia por projetos. Então, retomando a teoria proposta, apresentamos o trabalho das autoras Aguiar e Bordini (1993), as quais elaboram o método recepcional e definem as seguintes etapas para o ensino de literatura na escola: Primeira etapa - Determinação do horizonte de


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expectativas: é o momento de diagnosticar os valores prezados pelos alunos como modismos, preconceitos de ordem moral ou social, etc; oferecendo-lhes diversos gêneros discursivos e literários para esse reconhecimento. Nesta situação poderíamos trazer para sala de aula jornais, revistas, livros, letras de música e vídeos do you tube para ler, ouvir e assistir com os alunos. O objetivo é levantar informações, ponto de vista e interesses de temas dos alunos. O professor acompanha as conversas e as opiniões dos alunos e, posteriormente, conclui com os alunos o tema a ser pesquisado e estudado nas próximas aulas de língua e literatura. Assim, tomaremos como hipótese, a escolha do tema Memória. Segunda etapa – Atendimento do horizonte de expectativa: apresentação aos alunos de vários gêneros discursivos que satisfaçam suas experiências tanto quanto ao objeto como as estratégias de ensino já reconhecidas por eles. Pedimos aos alunos que pesquisem e recolham das suas recordações, materializadas em álbuns, cartas, bilhetes, letras de música, filmes e vídeos, etc., elementos que possam trazer para a sala de aula e realizar um primeiro contato com suas memórias. O professor também realiza a mesma tarefa e traz aos alunos para partilhar suas lembranças. É interessante nesse momento, que o professor acrescente outros recursos didáticos para dinamizar esse encontro do aluno com seu passado/presente, como trazer programas televisivos que poderiam estar presente na infância dos alunos, bem como desenhos animados, imagens de brinquedos e bens culturais, entre outros. Terceira etapa - Ruptura do horizonte de expectativas: etapa em que introduz os gêneros discursivos desconhecidos ou estranhos ao conhecimento do aluno, “abalando as certezas e costumes dos alunos, seja em termos de literatura ou de vivência cultural” (AGUIAR; BORDINI, 1993, p.89). Então, após a sequência didática realizada com a pesquisa dos alunos e da proposição da literatura oral, posteriormente a serem explicitadas no projeto de trabalho, será o momento de apresentar os textos literários que devem desacomodar o repertório de experiências literárias dos alunos, rompendo com suas expectativas e confrontando-os com o novo, com o inesperado. Para esta atividade também abrimos espaço para que os


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alunos citem suas experiências com a leitura de obras de ficção sobre o tema e realizem leituras intertextuais com os gêneros discursivos trabalhados anteriormente. Podemos enquanto professores/mediadores, acolher algumas sugestões de títulos e também lançar o desafio, de acordo com nossos objetivos nas aulas de literatura, para a leitura das seguintes obras: Memórias de Emília, de Monteiro Lobato; Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos; Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna; Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco; Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade; e Baú de Ossos do escritor Pedro Nava, entre outras. Quarta etapa - Questionamento do horizonte de expectativas: momento em que os alunos comparam e confrontam as duas etapas anteriores, o que já era estabelecido pelos seus horizontes e o que modificou/provocou com as novas leituras, além da análise do próprio comportamento do leitor diante dos textos lidos. Neste estágio das aulas, o professor retoma os artigos e notícias dos jornais e revistas, as letras das músicas e, principalmente, os episódios e cenas dos filmes e novelas, citadas anteriormente, e confronta com os livros, de acordo com os objetivos e conteúdos elencados no projeto de trabalho. Quinta etapa - Ampliação do horizonte de expectativa: última etapa, em que o professor precisa criar o espaço de avaliação (autocrítica dos alunos) do que foi alcançado e o que resta fazer, tomando “consciência das alterações e aquisições obtidas através da experiência com a literatura” (AGUIAR; BORDINI, 1993, p. 90). Nesse caso, podemos pensar uma etapa avaliativa sobre os conteúdos e temas abordados no projeto e seus resultados para dar continuidade aos estudos de acordo os interesses levantados pela turma, reiniciando então o método. Inclusive, os registros avaliativos e conclusivos podem ser um diagnóstico para um novo projeto, revitalizando o tema. Por exemplo, podemos ampliar para o gênero dramático ou mesmo aprofundar o estudo para gêneros memorialistas como a biografia e a autobiografia na ficção, confrontando-a com a realidade histórico/social, por exemplo. Dessa forma, o método recepcional empreende a visão da abordagem sócio-interacionista em que o aluno


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torna-se agente de aprendizagem, corroborando a pedagogia por projetos. O método “[...] exige a participação ativa do leitor, que deve transitar dos princípios constitutivos próprios do texto para o contexto extraliterário; do mundo da significação textual para o sentido do mundo; da leitura crítica para a avaliação estética do texto (SARAIVA; MÜGGE, 2006, p.36). Estabelecido o método, reafirmamos que “sem alguma forma de teoria, seja ela consciente ou implícita, não é possível analisar um texto literário, ou, até mesmo, apreciá-lo” (SARAIVA; MÜGGE, 2006, p. 28). Isso não significa a retomada da tutela da leitura por nomes consagrados, pois a teoria aqui escolhida favorece o acolhimento e a apreciação das leituras dos mais diversos leitores. Outro ponto a acrescentarmos, antes da proposição prática do ensino de literatura neste artigo, é o caráter interdisciplinar que a literatura e o ensino de língua podem propor em uma pedagogia por projetos. A relação indissociável entre língua e literatura já foi tema de discussão, na década de 80, por Chiappini Leite e Okasabe (2001). Atualmente, o debate se renova pelos Pârametros Curriclares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) e por estudos de novos autores, afirmando que: A convergência entre o ensino da língua e o da literatura centraliza-se na relação texto-leitor: se o texto é objeto significante, é o leitor que, por sua atividade, nele constrói significação. Esse posicionamento acentua a natureza processual do texto literário e da leitura: por um lado, a estrutura lacunar do texto exige a participação do leitor; por outro, a leitura a que ele procede é influenciada por seu comportamento lingüístico e por suas condições socioculturais. (SARAIVA; MÜGGE, 2006, p. 48)

A integração entre a língua e literatura advém de um processo de leitura, de compreensão da palavra, pois ambas não são de campos tão adversos como se mostram na escola. A separação ignora que língua e literatura trabalham e objetivam a produção de sentidos sobre os gêneros discursivos, entre eles os literários, e, descaracteriza a organicidade de recursos lingüísticos que não são exclusivos da literatura.


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Precisamos compreender, sobretudo, que a natureza do estudo da língua e da literatura recai sobre o fenômeno da linguagem, e, ambas requerem a leitura e a escrita como compreensão de sentidos e desvelamento/ elaboração das possibilidades de significação, expressão da subjetividade na produção textual, e, por último, reflexão sobre os modos de funcionamento dos recursos expressivos da língua. Quanto à adoção e a definição dos projetos de trabalho, consideramos a concepção entendida por Hernández e Ventura (1998), que se apóiam em fundamentos que viabilizem uma metodologia orientada para o vínculo entre teoria e prática na base do ensino-aprendizagem e a globalização dos conhecimentos disciplinares como problemática da organização dos saberes. A função do projeto é favorecer a criação de estratégias de organização dos conhecimentos escolares em relação a: 1) o tratamento da informação, e 2) a relação entre os diferentes conteúdos em torno de problemas e hipóteses que facilitem aos alunos a construção de seus conhecimentos, a transformação da informação procedente dos diferentes saberes disciplinares em conhecimento próprio. (grifos dos autores, HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998, p. 61)

Dessa forma, os projetos de trabalho superam os limites de uma matéria e abrem espaço para alternativas de diálogo e convergência entre os diversos saberes. É nesse contexto, que acreditamos que aliar o método recepcional a um procedimento didático orientado pelos projetos resulta em um plano de ação de complementariedade, potencializando o conhecimento mobilizado pelo interesse do aluno e da comunidade escolar. Ainda, aliar o método recepcional a projetos de trabalho a partir de temas é uma possibilidade enriquecedora para nossas aulas de literatura. Principalmente, porque os projetos partem da delimitação de uma situação-problema (origem do tema), resultante tanto do projeto político pedagógico da escola como da realidade dos alunos (determinação do horizonte de expectativas) e, posteriormente, se propõe a organizar o processo ensino


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-aprendizagem com a finalidade de compor uma aprendizagem significativa, sem necessariamente seguir um modelo rígido e esquemático. Consoante a essa justificativa, Hernández e Ventura (1998) evidenciam mais uma complementariedade entre a pedagogia de projetos e o método recepcional, ao entenderem que os projetos de trabalho parte do que os alunos já sabem e de seus esquemas prévios de conhecimento, de suas hipóteses (verdadeiras, falsas ou incompletas) ante a temática a ser abordada. Para melhor compreensão da pedagogia por projetos, apresentamos uma organização didática das partes que compõe, estruturalmente, um projeto de trabalho. Todavia, cabe salientar, que para chegar a essa forma o docente e os alunos devem prever as atividades após a escolha do tema e juntos realizar a busca da informação, o que faz com que os estudantes “assumam como próprio o tema, e que aprendam a situar-se diante da informação a partir de suas próprias possibilidades e recursos” (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998, p.75). Então, um possível modelo poderia seguir essa estrutura textual: • Delimitação do tema • Justificativa • Objetivos (Geral e específico) • Conteúdos • Objeto de estudo • Metodologia (procedimentos didáticos, técnicas e recursos) • Avaliação Delineada a opção teórica e metodológica, o tema abordado, os gêneros discursivos e as respectivas obras literárias, cabe-nos apresentar proposições práticas do estudo da literatura para o ensino médio. Lembramos que a proposta a seguir considera os pressupostos da Estética da Recepção e da Pedagogia de Projetos de Trabalho e, por isso, tem com princípio norteador a escolha de um tema-problema que perpasse toda sequência didática. Eis uma proposição prática do que apresentamos até aqui:


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1 TEMA: Costurando leituras com fiapos de memórias 1.1 Delimitação do tema: A delimitação do tema sobre Memórias é um recorte da proposição feita pela professora Zilberman (2005), no sentido de romper com a perspectiva historicista e cronológica da literatura brasileira (periodização da história literária), trabalhada nos manuais didáticos, na escola e também na formação do professor de literatura nos cursos de Letras. A autora sugere oito eixos temáticos para objeto de estudo nas aulas de literatura, e, também, salienta que estejamos abertos a outros temas e autores de outras nacionalidades, bem como a variabilidade de gêneros literários ou não, como os advindos da literatura popular e de massa. Por último, Zilberman acolhe autores e obras que não estão inseridos no cânone das literaturas, “evidenciando a flexibilidade com que professores e estudantes podem lidar com a cultura e a história” (ZILBERMAN, 2005, p. 243). A seleção deste eixo como tema para este projeto também considera as questões pessoais, sociais e culturais de um tempo histórico que permite os alunos se identificar como sujeitos atuantes em uma sociedade, porém, atravessados por fragmentos e restos de memórias que se armazenam nas suas narrativas pessoais e se mesclam na voz da literatura, do cinema e dos diversos discursos instaurados nas mais variadas instituições sociais. 2 JUSTIFICATIVA O avanço tecnológico permitiu um desenvolvimento inestimável na sociedade contemporânea. Certamente não imaginamos como sobreviver sem aparelho celular, internet, eletrodomésticos e outras invenções necessárias a nossa rotina. Ainda, estamos vivenciando descobertas nos mais variados campos do saber que adentram a física, a antropologia, a psicologia, as artes, entre outros, e, que nos permite redescobrir na contínua evolução das ideias. Paralelamente, a essas experiências, que prioriza o intelecto humano, de cunho científico, a humanidade se confronta com as incertezas da alma, angústias, desilusões e fraquezas que (des)orientam o compasso da vida dos


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homens. Nessa confluência de fatos e concepções vamos costurando fiapos de memórias que possam nos transformar em protagonistas de nossa história. Entretanto, para chegarmos a esse patamar de consciência é necessário que reconheçamos a trajetória da memória como um eixo temático indispensável à construção de uma identidade individual e social. Resumidamente descrevemos a origem e o desenvolvimento dos textos que atuam como registros memorialistas e históricos no mundo ocidental. Assim, em séculos passados, na Pré-história, temos a presença dos primeiros registros orais que evidenciam a importância da memória coletiva das civilizações, suscitada nos homens pela consciência da necessidade de manter suas origens e tradições. Posteriormente, os gregos ampliaram a participação na discussão a partir de registros que nos legam sua história, seus mitos, ritos, costumes e hábitos ancestrais. Entretanto, somente na Idade Média, a partir das contribuições de Santo Agostinho é que vamos encontrar um caráter individual, de introspecção, para a memória (LE GOFF, 1996), o que vai ser consolidado nos séculos seguintes com a invenção da imprensa e a arte literária. Assim, recorrer à memória possibilita uma aproximação com as origens, de caráter individual e coletivo. Contar e perpetuar as narrativas orais sempre possibilitou reviver o passado, atiçar o que foi esquecido pela urgência da modernidade, pois a memória realiza uma ‘revivência’ dos fatos que são atualizados pelas lembranças, renovando-se e repetindo-se nas suas diferenças expressas em tempos e lugares. Contudo, precisamos ir além das narrativas orais, alcançar obras que revelam a memória enquanto aparato de recuperação do passado para instituir o sujeito no presente e enquanto matéria da literatura. Nesse novo lugar, da tradição ao ciberespaço, são muitos os escritores e obras literárias que se apropriaram do discurso memorialista para desnudar o ser humano e a humanidade, legando um patrimônio literário inesgotável para o registro de outra história que se confronta e se alterna com a História. Entre os textos mais distantes estão os mitos, tragédias e narrativas épicas até os mais contemporâneos como diários, autobiografias, biografias,


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confissões, entre outros suportes de leitura ficcional/virtual. Em meio a essa literatura, queremos ressaltar o significado de reviver memórias, de reativar leituras da ficção memorialista como modo de costurar e sedimentar nossa identidade, resistindo a uma época de informações abundantes e fragmentadas. Nessa perspectiva, a leitura de obras de cunho memorialista, passa a ser o meio como os alunos organizam seu mundo e, consequentemente, da sua comunidade. A leitura será o ponto de partida para a redescoberta de si e da consciência histórica de seu povo, apontando para a necessidade de manter o debate e a reflexão sobre o que é sua vida em sociedade hoje em correlação com sua particularidade. Em outras palavras, é a inquirição de nós mesmos sobre “nós mesmos”, como aceitar-nos primeiro para depois compreender o outro. Acreditamos também, que o tema em si e seus sentidos plurais são razão suficiente para que a literatura possa abarcar e recolocar os problemas da nossa identidade em outro nível de discussão, concretizando também sua função social e formadora, como afirma J. Larrossa: A literatura que tem o poder de mudar não é aquela que se dirige diretamente ao leitor, dizendo-lhe como ele tem de ver o mundo e o que deverá fazer, não é aquela que lhe oferece uma imagem do mundo nem a que lhe dita como deve interpretar-se a si mesmo e às suas próprias ações; mas, tampouco, é a que renuncia ao mundo e à vida dos homens e se dobra sobre si mesma. A função da literatura consiste em violentar e questionar a linguagem trivial e fossilizada, violentando e questionando, ao mesmo tempo, as convenções que nos dão o mundo como algo já pensado e já dito, como algo evidente, como algo que se nos impõe sem reflexão. (LARROSSA, 2003, p. 126). Desse modo, o ensino de literatura pode atender as expectativas do leitor contemporâneo e disseminar uma leitura estética e ética da sociedade em que estão inseridos. Então, a literatura passa a ter uma contribuição significativa como prática social que pode contribuir com leituras emancipatórias sobre a identidade pessoal


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e social dos indivíduos, decorrentes da construção de um repertório de memórias registrados pela oralidade e escrita de um povo.

3 OBJETIVOS 3.1 Objetivos Gerais: - O aluno/leitor deve compreender a literatura dentro do contexto social, cultural e histórico para relacioná-la ao seu contexto externo, evidenciando a participação no processo de leitura e a construção/reconstrução de sentidos que orientem o resgate de sua identidade familiar e social através de sua memória e de narrativas memorialistas. - O aluno/leitor deve perceber como a literatura pode ajudar na resistência ao esquecimento, silêncios individuais, sociais e históricos, ao realizar reflexões e pensar o confronto entre a memória instaurada pela tessitura literária e a não recordação do seu passado. 3.2 Objetivos Específicos - Comparar os traços peculiares dos diferentes discursos e da linguagem para reconhecer os diversos gêneros literários ou não em seus mais variados modos de produção e recepção; - Estabelecer relações temáticas e estruturais, de semelhança ou de oposição, entre os diversos gêneros literários ou não, de distintos autores e épocas, para perceber os modos e formas de criação e tematização; - Refletir sobre as especificidades do uso da linguagem na produção das obras literárias que constituem o acervo literário e cultural da humanidade para perceber o texto literário como objeto de arte e não apenas veículo de comunicação; - Problematizar o eixo temático memória para estabelecer e fortalecer uma aproximação dos alunos com suas origens identitárias e culturais; - Analisar e reconhecer os gêneros literários me-


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morialistas (diários, autobiografias, romances e crônicas). 3 CONTEÚDOS - Os gêneros discursivos e o gênero literário; - A linguagem literária e os elementos estéticos dos estilos de épocas - A intertextualidade - Paradigmas contemporâneos da temática memória. - Memorialismo literário 4 OBJETO DO ESTUDO Obras literárias: Romance; Autobiografia; Diários; Correspondências. Gêneros discursivos: artigos de revistas; documentários; vídeos do you tube, letras de música, fotografias, cartas, pinturas, filmes, bilhetes, etc. 4 METODOLOGIA (procedimentos didáticos, técnicas e recursos) A) Determinação do horizonte de expectativa: 1) Para dar início ao projeto de trabalho, gerado pelas observações do professor sobre os interesses dos alunos a respeito de registros fotográficos para postagens em redes sociais e o envolvimento dos jovens com a necessidade de criar seu perfil nessas redes, o professor trará para a sala de aula imagens que representam as redes sociais e solicitará que a turma se divida em cinco grupos para que listem as funções que elas exercem no cotidiano deles. Na sequencia, cada grupo apresentará sua proposição e então se iniciará um debate sobre a necessidade e importância dessas redes na vida das pessoas. Na execução da tarefa, muitos alunos evidenciam preocupações com sua imagem e a exposição de suas vidas, por outro lado, outros alunos não “ligam” para as informações colocadas a disposição do público e, então, gera-se um debate sobre a vida pessoal (privado) e a vida pública exposta e autorizadas pelas pessoas. Desse debate surge então o assunto que envolveu e motivou os alunos a descobrir um pouco mais sobre a necessidade do homem em manter sua memória como forma de resistir ao esquecimento até


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chegar ao ponto em que sente a necessidade de expor publicamente comportamentos e ações diárias, do cotidiano privado, para entregar-se ao outro, num desejo, talvez, de reconhecimento, de adoração e de idolatria. O professor, inclusive, aproveita o momento e passa a apresentar outros modos de se projetar uma história pessoal como os álbuns de família ou o álbum da criança (com dados dos primeiros anos de vida); documentos oficiais que marcam acontecimentos e fatos importantes; diários utilizados na adolescência; objetos pessoais guardados como recordação; registros mentais de datas importantes na vida das pessoas, etc. Para finalizar a etapa e prosseguir em direção ao atendimento do horizonte de expectativa, o professor solicita aos alunos que tragam de sua casa, objetos, fotografias e outros materiais que fizeram parte de sua infância, que de algum modo reflete e representa significados importantes na lembrança da família e de si mesmo. Nesse sentido, o professor também deve participar, trazendo suas coisas para a sala de aula e partilhar com seus alunos. B) Atendimento do horizonte de expectativa: Diante dos resultados apresentados na etapa anterior e dos materiais coletados pelos alunos sobre sua vida pessoal, realiza-se uma roda de memórias em que cada aluno escolhe um dos elementos trazidos de casa e expõe os motivos que levaram a guardá-lo consigo por todos esses anos. A roda de memória será gravada e os objetos e outros recursos materiais serão fotografados na perspectiva de registro da memória da turma (atividade a ser organizada pelo professor e alunos), tendo como resultado um dossiê da turma. Para finalizar essa atividade, a turma monta um painel de fotografias, com letras de música e “dizeres” que mais significam e compõe a personalidade de cada um. O painel ficará exposto na sala de aula até o final do projeto. Ainda, na sala de aula, será montada uma instalação com os objetos que os alunos trouxeram de casa e ficará em exposição até o final do projeto. É importante que a sala de aula vá se tornando num ambiente de recordações e que os alunos organizem a melhor forma de dispor de todos os materiais que os identifiquem. Para atender o horizonte de expectativa dos alu-


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nos, o professor levará a sala de aula livros de literatura infantil que contenham Adivinhas, Parlendas, Canções de Ninar, Trava-línguas e Cantigas de roda para despertar possíveis encontros com a infância. Nesse primeiro momento se realiza uma roda de leitura e brincadeiras com a literatura oral apresentada. Na continuidade, serão exibidos vídeos (podem ser adquiridos em livrarias ou mesmo downloads da internet) que contenham contos populares, contos de fadas, lendas e fábulas para compor o repertório de lembranças dos alunos. Nessa etapa devem se organizar oficinas de leitura com os alunos sobre a literatura oral, debatendo as origens, o contexto histórico e social instituídos por essas narrativas e vividos pelos povos em seus contextos de produção para confrontar com a recepção do texto por parte dos alunos na atualidade. Também é importante mostrar aos alunos como essas narrativas constituem a identidade coletiva dos povos a partir da leitura e discussão de mitos de fundação de povos e de heróis, culminando na apresentação de imagens (pintura e escultura) da deusa Menmosine e de uma exposição sobre sua simbolização.

Fig. 1 – Menmosine


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Fig. 2 - Menmosine C) Ruptura do horizonte de expectativa: 1) Em outro encontro o professor começa retomando a imagem e a discussão sobre Menmosine e passa a expor o gênero memorialista na literatura. Comenta que muitos escritores produziram obras que preservam a memória de fatos marcantes de suas vidas, assim como todos nós que guardamos objetos, fotografias ou lembranças do nosso passado. Evidencie para os alunos que os textos literários que traduzem esse memorialismo são bastante diversificados, podendo ser romances, crônicas, poesias, autobiografias, diários e até mesmo correspondências (cartas), todos com forte tom confessional e subjetivo nestas narrativas. Então, será o momento de apresentar alguns excertos de textos literários memorialistas para os alunos, no sentido de ruptura com o conhecido, para estabelecer um novo paradigma de texto literário. Os fragmentos serão distribuídos para grupos de alunos para que realizem a primeira leitura; posteriormente, os grupos discutem os textos, buscando encontrar os traços memorialista, registrando em um painel as características dessa literatura e trechos que correspondem e justificam o que eles identificaram e analisaram. Os textos utilizados para essa atividade são: o cap. 1 do livro Memórias de Emília, de Monteiro Lobato; o cap. 1 da obra Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos; os dois primeiros sub-títulos (A partida e Dias tranqüilos) do livro I da obra Confissões


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de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna; o cap. final (conclusão) do livro Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco; poemas do livro (vol. 1) Boitempo, de Carlos Drummond de Andrade. Terminada a tarefa de reconhecimento e identificação dos traços da literatura memorialista, contextualizados em sua época de produção e, estabelecida as comparações entre os diferentes gêneros e linguagens colocadas nas obras analisadas, o professor indicará a leitura integral da obra Baú de Ossos do escritor Pedro Nava. O objetivo agora é problematizar o eixo temático memória para estabelecer e fortalecer uma aproximação dos alunos com suas origens identitárias e culturais. Para a leitura do livro de Pedro Nava acontecer em sua totalidade é necessário que se constituam estratégias didáticas de leitura (compreensão, interpretação e expansão), por exemplo, para a introdução da obra sugere-se a leitura das primeiras páginas em sala de aula, para reconhecimento e apresentação do estilo narrativo e do narrador, destacando os trechos principais. O restante da leitura e releitura será feito extraclasse, com prazos definidos como uma leitura prévia para compreensão geral da obra em 20 dias. A segunda leitura, em que se verticaliza o estudo da obra, com a interpretação, será feita na sala de aula; o professor levanta a discussão sobre o título e solicita aos alunos que justifiquem suas posições em relação ao texto lido. Depois, considerando que o tempo e o narrador são vetores fundamentais para a interpretação da obra, é importante esboçar o modo como se concretiza na obra, o que pode ser feito por tópicos. Para garantir a interpretação o professor recorre a contextualização da narrativa sob dois aspectos: a presentificadora e a temática. A primeira requer a “correspondência da obra com o presente da leitura. [...] O aluno é convidado a encontrar no seu mundo social elementos de identidade com a obra lida, mostrando assim a atualidade do texto” (Cosson, 2006, p.89). A contextualização temática objetiva que o aluno faça a reflexão sobre a repercussão do tema dentro da obra para evitar a fuga da proposta de leitura, neste caso o eixo temático é memórias. Por fim, chegamos a segunda interpretação, o ápice


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do letramento literário. Nesta fase de leitura será eleito um aspecto a ser aprofundado na obra, que na proposta de estudo de Baú de Ossos será o discurso memorialista e a constituição das origens identitárias e culturais concentrados na focalização do personagem/narrador, que por vezes se dilui na coletividade. Nessas aulas, o professor deve realizar a leitura de trechos significativos para analisar, interpretar, inferir, comparar e observar como a narrativa reconstitui o passado através de documentos como cartas, fotos, imagens, diários, relatos, etc.; além de verificar como o narrador vai reconstruindo sua identidade a partir de percursos históricos, geográficos e culturais nas descrições da culinária, dos lugares e paisagens, entre outras lembranças. O registro final dessa atividade será a composição de um arquivo pessoal do autor Pedro Nava, em que os alunos (pode ser feito em grupos) pesquisarão dados relativos ao autor e sua obra memorialista a ser entregue ao professor para compor o dossiê da turma. D) Questionamento do horizonte de expectativa: 1) Nesta aula o professor retoma as leituras e as atividades realizadas até esse momento, buscando sistematizar os estudos ao confrontar com os conhecimentos prévios da primeira etapa e os adquiridos com o estudo da obra literária Baú de Ossos. A ênfase é dada às obras literárias, evidenciando como a literatura oferece imagens do passado, possibilitando a atualização e a permanência do mesmo, como estratégia de combate ao esquecimento, inclusive permitindo uma “outra” leitura da realidade, seja ela individual ou coletiva. Terminada a sistematização o professor solicita aos alunos que produzam suas memórias a partir da criação de uma autobiografia (pode, inclusive, ser ficcional) e também realize um auto -retrato (é possível trabalhar também com a fotografia ou a caricatura) para compor seu texto; neste caso, é interessante que o professor leve a sala de aula algumas imagens de auto-retrato e apresente aos alunos, tecendo algumas considerações e curiosidades sobre o assunto. Segue abaixo alguns exemplos da pintura.


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Fig. 3 – Tarsila do Amaral

Fig. 4 – Frida Kahlo

Fig. 5 – Candido Portinari


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Realizada a tarefa é importante que o professor faça uma correção, propondo a reescrita em casos necessários. A produção textual, como as demais atividades realizadas até aqui fazem parte do dossiê da turma (instrumento integrante da avaliação do projeto). E) Ampliação do horizonte de expectativa: A última etapa compreende que os alunos tenham tomado “consciência das alterações e aquisições, obtidas através da experiência com a literatura” (Aguiar; Bordini, 1993, p. 90) e, para isso, o professor apresentará à turma o dossiê que foi montado durante todo o projeto. Todavia, essa exposição aos alunos será a partir da abertura de um baú de memórias, em que o professor confeccionará para abrir na sala de aula e de lá retirar o dossiê, já que foram muitas produções orais e escritas realizadas ao longo das aulas. Apreciado o conjunto de informações, documentos e materiais retirados do baú o professor percebe que os alunos desejam manter a discussão do eixo temático, buscando novas comparações entre a literatura de cunho memorialista e outras artes. Em outra aula, alguns alunos trouxeram para a sala de aula comentários sobre o filme Somos tão jovens, que conta a história de vida de Renato Russo (integrante da banda musical Legião Urbana) e algumas leituras que haviam feito durante o projeto. Dentro dessa perspectiva o professor, num encontro posterior, organizará uma discussão sobre filmes e biografias de algumas personalidades, como: Noel, poeta da vila; Gonzaga, de pai pra filho; Cazuza; Frida, entre outros filmes; ainda, no gênero biografia alguns exemplos como: Paulo Coelho, Anne Frank; Pelé, entre outras; e fica acertado que vão assistir alguns filmes e ler duas biografias: Pelé e o Diário de uma jovem, de Anne Frank. Nas aulas seguintes se renovam as discussões, com a determinação do horizonte de expectativas dos alunos e o atendimento para reiniciar um novo projeto.


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Considerações finais A proposição deste artigo foi apresentar uma discussão sobre o ensino de literatura a partir de uma metodologia de ensino de forma organizada e estruturada a partir do projeto pedagógico para o estudo das obras literárias no ensino médio. Partimos da escolha do eixo temático Memória, na perspectiva de retomar e analisar discussões referentes a identidade e memória de nossos educandos, uma vez que é um assunto tão recorrente e tão presente desde as origens da humanidade. Sempre recorremos a nossa história, as nossas vidas pregressas para reavivar e alimentar nosso presente. A trajetória pessoal é um marco que institui sujeitos em uma sociedade e que constrói a coletividade pela alteridade dos indivíduos, então, nada mais significativo do que expor aos alunos a relevância de manter acesa a memória pessoal e social, bem como, mostrar como a literatura tem uma fundamental participação nessa construção identitária de povos e pessoas. Desse modo, na exposição do projeto, primeiramente, a principal preocupação foi justificar a escolha do método recepcional e evidenciar sua concretização a partir da explanação dos procedimentos didáticos. Sabemos que não é tarefa fácil aliar teoria e prática no ensino de literatura e isto nos conduziu a refletir e definir alguns pressupostos sobre o que desejamos com este ensino: a formação do leitor e o letramento literário. A formação do leitor requer uma concepção de leitura pautada em teorias mais recentes que percebe o texto dentro de uma dinâmica de interação, a partir da recepção, do contexto e das atualizações advindas do horizonte de expectativas do leitor. É dentro deste sentido que a escolha do método tem como elemento principal os interesses e conhecimentos prévios dos alunos, procurando ampliar as leituras a partir dos rompimentos de suas expectativas e sensibilizar para as mudanças ocorridas nos valores em sua evolução histórica. Optamos por trazer aos alunos gêneros textuais reconhecidos no seu cotidiano, como vídeos do you tube, notícias e filmes da atualidade, entre outros, para ser o ponto de partida e de conexões com gêneros literários


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denominados mais complexos, sejam pelo seu distanciamento de época ou pelo próprio estilo literário. Acreditamos que este projeto é a configuração de um ensino de literatura sério e responsável por estar ancorado em concepções teóricas e metodológicas que incluem o aluno como sujeito de ação e de intervenção em sua comunidade. Além disso, ajusta-se aos objetivos do ensino médio, determinados pelo art. 35 da LDBEN n° 9.394/96, principalmente no inciso III que versa sobre: “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”. Há nessa perspectiva um pressuposto fundamental para que o projeto se viabilize, “a crença do professor”; ele precisa ter bem definido qual a finalidade da educação, do ensino de literatura que ele acredita e que o move para suas aulas e práticas pedagógicas. Um professor esclarecido e confiante no seu papel, sempre estará atento as necessidades dos alunos e contribuirá com as escolhas e orientações de leituras para além do universo já conhecido do aluno, criando projetos e desenvolvendo o letramento literário em sua plenitude.

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CAZUZA o tempo não para. Direção: Sandra Werneck. Sony Pictures, 2004. 1 DVD (98min). CHIAPPINI LEITE, Lígia. Gramática e literatura: desencontros e esperanças In: GERALDI, João W. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2001. CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição. São Paulo: Ática, 1988. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática (2006). São Paulo: Contexto. GONZAGA de pai pra filho. Direção: Breno Silveira. Paris Filmes, 2012. 1 DVD (120min). FRANK, Anne. Diário de uma jovem. Belo Horizonte: Itatiaia, 1972. FRIDA. Direção: Julie Taymor. Imagem Filmes, 2002. 1 DVD (123 min). HERNANDEZ, F.; VENTURA, M. (1998). A organização do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. Porto Alegre: Artmed. INGARDEM, Roman (1965). A obra de arte literária. Lisboa: Calouste Gulbenkian. KAHLO, Frida (Fig. 4). Disponível em: http://quaseemportugues.blogspot.com.br/2007/02/auto-retrato-frida-kahlo-no-para-todos.html Acesso em: 06 ago. 2013. LARROSA, Jorge (2003). A novela pedagógica e a pedagogização da novela In: ____. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo Veiga-Neto. 4ª ed. Belo Horizonte: Autêntica p. 117-138 LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad de Bernardo Leitão et AL. 4.ed. Campinas: UNICAMP, 1996. LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. Brasiliense, 1981. MARCHI, Diana Maria (2000). A literatura e o leitor IN: NEVES, Iara C. Bitencourt; et alli (org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS. MENMOSINE (Fig. 1). Disponível em: http://www.centrovegetariano.org Acesso em: 06 ago. 2013. MENMOSINE (Fig. 2). Disponível em: http://pt.wikipedia. org/wiki/Mnemosine. Acesso em: 06 ago. 2013. MÜGGE, Ernani; SARAIVA, Juracy et AL (2006). Literatura na escola: propostas para o ensino fundamental. Porto Alegre: Artmed.


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Inanimate Alice: o bildungsroman da era digital Ermelinda Maria Araújo Ferreira*

Resumo: Este artigo tenciona apresentar e discutir brevemente a obra digital Inanimate Alice, de Kate Pullinger e Chris Joseph, enfatizando a sua proposta pedagógica e traçando um paralelo entre os princípios da literatura eletrônica e as discussões filosóficas propostas por Lewis Carroll em sua obra Alice no País das Maravilhas, especulando sobre os recentes agenciamentos desta narrativa como precursora de teorias fundamentais à cibercultura, como as do simulacro e do póshumano. Palavras-Chave: Inanimate Alice; Alice no País das Maravilhas; Cibercultura; Simulacro; Pós-humano. Abstract: This article aims to present and discuss briefly the digital work Inanimate Alice, by Kate Pullinger and Chris Joseph, emphasizing its pedagogical proposal and drawing a parallel between the principles of electronic literature and the philosophical discussions proposed by Lewis Carroll in his book Alice’s adventures in Wonderland, speculating on recent assemblages of this narrative as a precursor of fundamental theories to cyberculture, such as the simulacrum and the posthuman. Keywords: Inanimate Alice, Alice’s adventures in Wonderland, Cyberculture, Simulacrum, Posthuman.

* Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).


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Capa da narrativa digital Inanimate Alice (2003), de Kate Pullinger e Chris Joseph

O livro Inanimate Alice pedagogy project- lessons plan and education resource packs compila diversas possibilidades de abordagens da proposta da literatura eletrĂ´nica na escola, ajudando no “letramentoâ€? digital.


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Inanimate Alice: um projeto artístico-pedagógico revolucionário O significado de ‘jogo’ de modo algum se define ou se esgota se considerado simplesmente como ausência de seriedade. O jogo é uma entidade autônoma. O conceito de jogo enquanto tal é de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade. Johan Huizinga, Homo ludens - Cortem-lhe a cabeça! – berrou a Rainha o mais alto que pode. Mas ninguém se moveu. – E quem se importa com você? – disse Alice. – Vocês não passam de um baralho de cartas! Ao dizer estas palavras, todo o jogo de cartas voou para cima e desceu em sua direção: ela deu um gritinho, meio de susto, meio de raiva, e tentou rebater a revoada de cartas. ... Viu-se então deitada no barranco com a cabeça no colo da sua irmã, que delicadamente afastava do seu rosto algumas folhas mortas que haviam tombado da árvore. Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas Consciousness contemplates no more profound or perplexing a question than this: what is its role in the establishment of reality. Robert Jahn and Brenda Dunne, Margins of reality

Inanimate Alice (2003) é o título de uma premiada produção narrativa para a internet, inteiramente concebida em meio digital, para ser fruída em meio digital. Ao contrário de um e-book - que não passa de um livro nos moldes tradicionais, digitalizado e veiculado no suporte mecânico do PC, IPad, Tablet, Kindle ou outro através de uma tela - esta produção não pode ser escaneada nem impressa sem perder as suas características fundamentais. “Parece um jogo” - dirão alguns, mas não é um jogo. “Lembra um filme” - mas também não é um filme. “Com certeza não é um livro” - dirão os intelectuais, e não estarão muito longe da verdade; pois o fundamento do que hoje se intitula Literatura eletrônica, na definição de Katherine Hayles, teórica pioneira do gênero e compiladora de duas edições de obras identificadas segundo esta rubrica, disponíveis ao acesso público (http://collection.eliterature.


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org), é o fato de ser “digital born”: uma produção artística criada em parceria com a máquina, para ser vivenciada na máquina e inexistente fora da máquina; o que significa dizer, inteiramente virtual. Como toda criação virtual, segundo a já clássica definição de Pierre Lévy, trata-se de um objeto potencial e multimídia, que viabiliza devires de histórias, possibilidades abertas de acontecimentos decorrentes da interatividade com o seu espectador. Mas o fato de não se concretizar como um livro acabado não quer dizer que não tenha um projeto subjacente, tão ou mais sólido do que o projeto de um livro tradicional, gestado à beira de uma escrivaninha por um homem imaginativo e solitário com o seu lápis ou a sua máquina de escrever. De fato, o projeto foi elaborado pela escritora e também professora universitária canadense Kate Pullinger (que identificaremos mais facilmente como a roteirista do filme ganhador do Oscar O Piano, dirigido por Jane Campion); em parceria com o artista e webdesigner Chris Joseph, e produzido por Ian Harper, da The BradField Company, e por toda a sua equipe técnica de suporte. Ao contrário do escritor tradicional, isolado com os seus pensamentos, a escrita digital tem este aspecto: nasce dialógica, coletiva e colaborativa, e tende a realizar-se, no âmbito da recepção, segundo os mesmos princípios. O produto seria apenas mais uma obra de literatura “eletrônica” ou “ergódica”, para usar a nomenclatura de Espen Aarseth, ou talvez de “ciberliteratura”, se não fosse a proposta pedagógica a que está ancorado, e que vem sendo abraçada com sucesso por professores de escolas de ensino fundamental e médio em países falantes de cinco idiomas: inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. A proposta visa a atender a necessidade de letramento digital do público contemporâneo, ainda no ambiente escolar, buscando reduzir os efeitos possivelmente deletérios do autodidatismo nesta área, que estaria levando os usuários da internet a apreender de modo limitado as complexidades do sistema pela prática cotidiana do uso de computadores pessoais, celulares e todo o arsenal de aparelhos portáteis hoje disponíveis. Esse aprendizado automatizado estaria conduzindo este público ao empre-


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go superficial e restrito, quando não fútil ou inadequado, das potenciais competências oferecidas à comunicação humana pela tecnologia na atualidade. Os especialistas mencionam mesmo a demanda por um “transletramento” (“transliteracy”), que definem como a capacidade de ler, escrever e interagir em uma variedade de plataformas, ferramentas e meios, que incluem a oralidade, a escrita, a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema e as redes sociais digitais, fornecendo uma perspectiva unificadora sobre o que significa ser “alfabetizado” no século XXI.1

Em entrevista à Revista Nova Escola, Roger Chartier responde à indagação: “A tecnologia pode ajudar a democratizar o acesso à cultura escrita?”: “Sim. Mas ela não é um instrumento por si só. A tecnologia na escola, por exemplo, favorece uma intervenção do poder público na vida de quem não tem condições para comprar um computador ou conhecimentos para utilizá-lo. A democratização da escrita não pode ser só um desejo. Deve ser uma obrigação. Nossa sociedade está vendo nascer um novo modelo de analfabetismo: o digital. Ele é marcado pela impossibilidade de usar um computador para ler, escrever ou realizar tarefas simples.” In: Revista Nova Escola: Maio de 2013, p. 30. 1


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Trechos da obra infantil É um livro, de Lane Smith Além disso, o baixo nível de alguns produtos de interatividade digital disponíveis no mercado acaba gerando preconceitos difíceis de ultrapassar, como os que percebemos no bem humorado É um livro, de Lane Smith, destinado ao público infantil, que chama de “burros”, literalmente, os aficcionados dos games e das atividades lúdicas no computador: as crianças. Mas seriam realmente “burras” as crianças pós-modernas, porque já não reagem de modo esperado à leitura convencional no suporte do papel, e passam horas abduzidas em jogos às vezes de fraca qualidade, construídos para atender à presente demanda de consumidores pouco exigentes; ou seriam “burros” os seus professores, que não acompanham os avanços da tecnologia que nos vem sendo irreversivelmente imposta num ritmo alucinante, e não se habilitam a ensinar às crianças que lhes são confiadas melhores usos para as linguagens de máquina? De fato, enquanto o “burrinho” da história de Lane Smith revela intensa curiosidade por tudo, e rapidamente aprende a gostar de ler o livro impresso, o inverso não acontece: o erudito macaco sequer considera a possibilidade de uma iniciação no universo digital, preferindo depreciar sumariamente o jovem e os seus interesses. Lamentavelmente, esta é uma atitude ainda encontrada em sala de aula; e


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os nossos professores e alunos certamente teriam algo a ganhar com a utilização dos recursos oferecidos por uma obra como Inanimate Alice, que estou chamando de “Bildungsroman da era digital”. Não por acaso, temos assistido a um boom das escritas confessionais e dos “romances de formação”. As crianças de hoje também parecem buscar caminhos individualistas, talvez por se sentirem um tanto isoladas e desestimuladas nos ambientes institucionais. A escola, muitas vezes, persiste ancorada ideologicamente a um mundo que não é o do cotidiano dos jovens, abrindo um fosso entre a cultura digital e a cultura letrada, identificada aos suportes que já foram avançados no século XV - quando Gutemberg lançou, com a imprensa, as bases materiais para a moderna economia fundamentada no conhecimento e na disseminação da aprendizagem em massa -, mas que talvez já estejam em processo de superação. Não é surpreendente, portanto, que o grande fenômeno da literatura para jovens na primeira década do novo século tenha sido a série Harry Potter, de J. K. Rowling, um perfeito exemplo de Bildungsroman contemporâneo sobre um pré-adolescente órfão, que se sente estranho e incompreendido por parecer um “bruxo” no meio dos “trouxas” com quem é obrigado a viver. A angústia e a ironia que perpassam esta longa série de livros convencionalmente impressos e surpreendentemente volumosos, difundidos e consumidos numa escala planetária nunca vista antes, acompanhou em tempo real os sete anos fundamentais do crescimento de toda uma geração de 2000 a 2007, dos onze aos dezoito anos, ecoando de tal maneira a realidade do abismo que se produzia entre a cultura virtual - mágica - desses meninos e meninas, e a cultura real - “trouxa” -, de seus pais e professores, que acabou se transformando num clássico: um verdadeiro objeto de culto desta geração. Com pretensões muito mais modestas, porém não menos impactantes para um trabalho de base, a obra Inanimate Alice - significativamente um Bildungsroman feminino - também foi concebida numa sequência de dez episódios que buscam acompanhar o crescimento e a formação de uma criança de nacionalidade não identi-


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ficada, dos oito aos dezoito anos, que vive uma existência nômade com seus pais, empregados de uma companhia de petróleo, em constantes viagens pelo mundo. Exposta a uma diversidade de culturas, idiomas e referências rapidamente superpostos, e a longos períodos de isolamento, a menina encontra no seu smartphone um espaço seguro de expressão, comunicação e conforto. Portanto, não é surpreendente ver o quanto Alice, a menina, é emocionalmente ligada ao seu aparelhinho: ele passa a fazer parte do processo de construção de sua identidade. Como a maioria das crianças e adolescentes, Alice é mais uma espectadora do que uma protagonista na narrativa de vida de sua família, embora possamos vê-la crescer e se tornarse mais independente a cada episódio. O projeto consiste em dois produtos: um criativo e outro pedagógico. O primeiro narra a história de Alice e destina-se à leitura interativa do público infanto-juvenil; o segundo contém uma série de lições e um pacote de recursos para serem usados pelos professores com os estudantes, a fim de trabalhar, na prática, a construção de um texto digital. Noções de teoria literária avançada, que incluem a percepção da diversidade de focos narrativos e seus efeitos, de arranjos espaciais e temporais por vezes complexos, da construção do personagem/avatar e da elaboração de enredos e roteiros são repassadas às crianças desde os sete anos, ao lado de noções de design gráfico, produção de trilha sonora e conhecimentos práticos dos softwares disponíveis que viabilizam, no computador, a articulação dos recursos multimídia que fazem parte da forma e conteúdo de uma obra desta natureza. O nível de interatividade do produto final não tem por objetivo rivalizar com os jogos eletrônicos, como podemos ver desde o primeiro episódio da série, intitulado “China”, que dura apenas cinco minutos (equivalente a um pequeno “conto” no sistema da literatura impressa), e destina-se a leitores do primeiro ano fundamental. A criança precisa apenas clicar nas setas para fazer a história avançar, e, a certa altura, clicar nas imagens das flores para fotografá-las digitalmente. A ideia principal é fazer o leitor refletir sobre como as nossas vidas estão entrelaçadas com a tecnologia. O conteúdo deste episódio, por


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exemplo, questiona o intenso relacionamento da menina com a máquina, reproduzindo uma experiência muito familiar às crianças de hoje, plugadas em aparelhos nos quais buscam não só diversão, mas também uma certa evasão da realidade que as cerca. Mas se o vertiginoso declínio das relações humanas presenciais - tão bem retratado nesta obra que um crítico chegou a defini-la como “um estudo sobre as relações homem/máquina num mundo onde ter amigos significa nunca precisar encontrá-los” - é preocupante, também surpreendem as estratégias criativas de sobrevivência que a personagem vai extraindo de si mesma e do mundo para se reconfigurar como pessoa na realidade que a cerca. Sua intensa vida no ambiente virtual, e o convívio com o avatar “Brad”, seu único amigo, criado a partir de um desenho seu (e que funciona como uma espécie de consciência projetada numa imagem), produzem efeitos imprevistos na sua formação, determinando o que ela virá a “ser” quando adulta, nos últimos episódios da série: uma criadora de narrativas digitais. As aventuras subterrâneas de ALICE: entre os fundamentos do simulacro e do pós-humano A obra funciona, assim - à semelhança de sua precursora e homônima do século XIX, escrita por Lewis Carroll, poeta, filósofo e matemático a quem devemos algumas das mais lúcidas considerações alegóricas sobre o simulacro -, como uma reflexão metalinguística, levada a cabo com seus jovens espectadores, sobre a suposta transformação dos seres humanos em cyborgs na atualidade, híbridos tão perfeitos de homem e máquina que a coexistência com próteses tecnológicas já nem é sentida como tal. Poderia ser considerada, portanto, um despretensioso tratado sobre o Pós-humanismo, que trabalha simultânea e coletivamente para forjá-lo, à medida em que pensa sobre ele. As transposições de espaços envolvendo o real e o imaginário presentes nas narrativas de Inanimate Alice já eram comuns na obra de Carroll. No “País das


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Maravilhas”, a menina é posta a fazer uso de substâncias (líquidas - “licores”, ou sólidas - “cogumelos”, sobre os quais uma lagarta “fuma”), para imiscuir-se no cenário da fantasia. Ao contrário do ambiente do “maravilhoso” tradicional, que não exige tais expedientes - dependendo para a sua criação apenas de um acordo tácito entre o escritor e o leitor, que aceitam a suspensão provisória dos critérios de realidade -; neste tipo de fantástico, definido como “estranho” por Tzvetan Todorov, a fuga da realidade é mediada e provisória, e tem sempre uma justificativa razoável no final. Assim, as migrações de Alice resultam ora de um sonho, na melhor das hipóteses; ora de delírios alucinogênicos, na pior delas. Em quaisquer dos casos, Alice não se perde no ambiente fantástico. Ela faz um breve estágio, durante o qual experimenta uma espécie de aprendizado iniciático, e volta ao mundo real de onde efetivamente jamais saiu. A natureza deste “aprendizado” consiste em investigar possibilidades alternativas de organização do mundo e de suas regras. Carroll não propõe rupturas definitivas: apenas permite à menina vivenciar um mundo carnavalizado, onde as leis da natureza, da ciência e da cultura são suspensas ou não funcionam como deveriam. Sua “pedagogia” é a do choque e a do humor: a criança se surpreende com a quebra de suas expectativas, e se diverte com a exploração de novas possibilidades imprevistas. Não há rupturas definitivas com o modelo do jogo do mundo real; apenas a conscientização de que este é um entre uma infinidade de mundos e de jogos possíveis. Se esta hipótese ainda é capaz de produzir um incômodo no século XXI, pode-se imaginar o quão revolucionária terá parecido ao público do século XIX, imerso num horizonte de expectativas dominado pelo convencionalismo de regras e verdades absolutas, impostas pelo poder e pelo hábito. Daí, provavelmente, a saída de Carroll ao utilizar o baralho e o xadrez, jogos de salão, como modelos estruturais de suas narrativas: eram uma forma lúdica e menos comprometedora de questionar os valores conservadores de seu tempo, tardiamente ancorados nos pilares da sociedade medieval. O paradoxo é o tema central do ambicioso


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comentário de Gilles Deleuze sobre a obra de Carroll em Lógica do sentido (1974). Deleuze concede a Carroll o privilégio da autoria da “primeira grande mise-en-scène dos paradoxos do sentido na literatura”, e da “invenção da literatura de superfície”. O humor, na literatura “superficial”, é um efeito leve e despretensioso; ao contrário da ironia, o efeito crítico e comprometido da literatura “profunda”. Mas se o senso comum afirma um sentido único, o paradoxo afirma os dois sentidos ao mesmo tempo. Por isso, as inversões/reversões em Alice (temporais, proporcionais, proposicionais, etc.) surgem como um paradoxo da identidade infinita e conduzem à contestação da identidade pessoal de Alice, leitmotiv que atravessa as suas aventuras. Os movimentos da personagem no eixo vertical ou paradigmático implicitam o seu investimento na busca do sentido em profundidade. A queda interminável no poço, o imperativo do “crescimento” para atender a determinadas cobranças, e do “encolhimento” para atender a outras: todas essas exigências que lhe parecem incoerentes e absurdas deixam a menina aturdida e em dúvida sobre a veracidade e a validade de suas descobertas no mundo dos adultos, o “País das Maravilhas”. As incongruências dos dogmas do poder nas falas de seus representantes institucionais: a Rainha, o Coelho, o Chapeleiro, a Lagarta, o Gato, etc., soam irreais e risíveis, mas ao mesmo tempo aterrorizantes, funcionando como a súbita aparição da figura diabólica do curinga num jogo de baralho que parecia seguro e previsível. E ela então percebe que os adultos e suas verdades são como cartas sem espessura e sem consistência. Por isso, Deleuze afirma que não há “aventuras” para Alice, mas apenas uma aventura: “sua ascensão à superficie”. Esta é a razão pela qual ele acredita que Carroll teria preferido o título Alice’s adventures in Wonderland ao original: Alice’s adventures Underground. A obra de Carroll joga permanentemente com a dualidade dos sentidos, com a proliferação indefinida dos mesmos, com a criação de jogos sem regras e contraditórios. Na filosofia do absurdo, que Deleuze comenta, em sua obra, a respeito da esquizofrenia, “o não-sentido opõe-se ao sentido”. Na


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obra de Carroll, ao contrário, “o não-sentido opõe-se à ausência de sentido, produzindo um excesso de sentido”. É o que Deleuze entende por nonsense, identificando-o ao funcionamento do paradoxo. Ora, “se o mundo dos adultos é absurdo, e eu estou crescendo, então posso perfeitamente tornar-me absurda” - pensa Alice. Literalmente absurda. O “excesso” de absurdo de suas aventuras, portanto, serve para mostrar à criança as contradições da lei, da ordem e do poder, estimulando o seu senso crítico, numa pedagogia divertida em que as revelações não vêm de fora nem de cima, não são proferidas, legisladas nem impostas, mas nascem de dentro, a partir do estímulo lúdico ao desenvolvimento da capacidade perceptiva, criativa e questionadora da própria criança. Deleuze buscou teorizar sobre um conceito que viria a ser fundamental na cibercultura da pós-modernidade: o simulacro. O simulacro é herético e demolidor porque consiste na possibilidade de fornecer uma “cópia” na ausência de um modelo, ou de produzir um “efeito” de real na ausência de uma referência de real. Para Deleuze: O simulacro não é uma cópia platônica degradada; ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. Não há mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. O mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro. (Deleuze, 1974, p. 268):


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Ilustrações de Alice no País das Maravilhas, de John Tenniel. As cartas do baralho pintam as rosas brancas de vermelho, de modo a produzir um simulacro de rosas vermelhas. Uma simulação, e não uma dissimulação (máscara ou disfarce), uma vez que as rosas brancas não passam, elas mesmas, de um efeito, uma projeção de “real” na mente de Alice.

Ao admitir o retorno de Alice à sua realidade de origem, com seus modelos falíveis, porém serenos e estáveis, contudo, Carroll recua diante do abismo que ele mesmo deflagrou ao suspeitar da inexistência de uma verdade absoluta: o abismo que significa a perda de todas as referências, e a existência em permanente estado de dúvida - que é a condição do sujeito pós-moderno. No ciberespaço não há uma “dissimulação” do espaço “real”, como na literatura dita “mimética” ou de ficção. Há apenas uma “simulação” de “um” espaço, o que nivela o “real” e o “virtual”, tornando-os intercambiáveis. Como diz Baudrillard (1981, p. 9/153), “enquanto dissimular é fingir não ter o que se tem, simular é fingir ter o que não se tem”: “O imaginário era o álibi do real, num mundo dominado pelo princípio de realidade. Hoje, é o real que se torna álibi do sonho, num universo regido pelo princípio da simulação. O real tornou-se, paradoxalmente,


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a verdadeira utopia - mas uma utopia que já não é da ordem do possível, aquela com que já não pode senão sonhar-se, como um objeto perdido.” Isto significa que a menina Alice, no seu Bildungsroman pós-moderno, não mais teria a opção de acordar do pesadelo do “País das Maravilhas”, porque a realidade de onde ela teria partido ao adormecer também não era real, mas um mero “efeito” de real. A natureza da verdade seria, portanto, a mesma do sonho que agora a aprisionaria para sempre. Essa conclusão atravessa de modo devastador as narrativas da obra Inanimate Alice, centradas no monólogo da criança consigo mesma, mediado pelo smartphone; e repercute na crescente identificação da personagem com o seu avatar “Brad”, fruto da sua imaginação, cuja única “realidade” é ser a projeção de uma figura desenhada numa tela. O adjetivo que acompanha o título “Alice” (emulador da obra de Carroll) - o termo “inanimate” ou “inanimada” - não deixa dúvidas: aquela que fala não é um ser vivo; aquela com quem falamos não existe como um ser. Isto gera imediatamente a indagação para o leitor interativo: e eu, que falo com ela, através dela, o que sou? Em How we became posthuman (1999), Katherine Hayles aponta o fim não do sujeito, mas de certa concepção do humano, aplicada, segundo ela, “àquela fração da humanidade que tinha riqueza, poder e disponibilidade para conceitualizar-se a si mesma como seres autônomos a exercer suas vontades através da escolha e da ação individual”. O pós-humano é, por isso, mal-estar, ansiedade e especulação em torno da soberania do sentido, perdido pela humanidade com o avanço das conquistas tecnológicas, que resultam do investimento da própria inteligência humana. Talvez a pequena Alice Liddell, ao mirar-se no espelho de Carroll, ainda não divisasse claramente os contornos do cyborg: a máquina a observá-la do futuro, com uns cem anos de vantagem. Mas já inaugurava, indubitavelmente, o ingresso do humano num mundo sem fronteiras físicas ou mentais reconhecíveis, um mundo de intensa promiscuidade do carbono e do silício, destinado a generalizar-se como um universo paralelo que desmaterializa a realidade, o corpo, os signos. Como diz Jair Ferreira dos


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Santos (2003, p. 69): “O virtual provoca a recessão do par presença/ausência enquanto promove a precedência do par padrão/aleatoriedade. Nossa vida passa a ser baseada na troca de informação, não na manipulação de objetos. É o jogo dialético entre essas polarizações que demarca os territórios por onde circula o pós-humano”. Em seu artigo “Gaming literacy: game design as a model for literacy in the twentieth-first century”, Eric Zimmerman comenta: Gaming literacy reverses conventional ideas about what games are and how they function. A classical way of understanding games is the “magic circle”, a concept that originates with the historian and philosopher Johan Huizinga. The magic circle represents the idea that games take place within limits of time and space, and are self-contained systems of meaning. A chess king, for example, is just a little figurine sitting on a coffee table. But when a game of chess starts, it suddenly acquires all kinds of very specific strategic, psychological, and even narrative meaning. To consider another example, when a soccer game or Street Fighter II match begins, your friend suddenly becomes your opponent and bitter rival – at least for the duration of the game. While many social and cultural meanings certainly do move in and out of any game (for instance, your in-game rivalry might ultimately affect your friendship outside the game), the magic circle emphasizes those meanings that are intrinsic and interior to games. (Zimmerman, 2009, p. 23)

Mas é possível que as delimitações deste “círculo mágico” dos jogos, tanto os de salão de antigamente quanto os eletrônicos da atualidade - e que tanta segurança conferiram às narrativas de Lewis Carroll (sempre ancoradas no real que interrogavam e demoliam, mas para o qual sempre retornavam) - estejam prestes a serem superadas. Isto acontece se considerarmos que “Alice”, hoje, longe de ser uma “menina” ou mesmo um “livro”, impresso ou digital, é, antes, uma sigla: A.L.I.C.E. - A Large Ion Collider Experiment. Num curioso retorno ao título originalmente pensado pelo autor do século XIX, o A.L.I.C.E.’s adventures Underground não mais diz respeito a histórias fincadas neste mundo, mas a histórias alheias


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aos conhecidos conceitos de espacialidade e de temporalidade que ainda nos governam. A proposta do C.E.R.N. - Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire - em seu espetacular laboratório, um “círculo mágico” de 27 quilômetros de extensão, situado no túnel do L.H.C. (Large Hadron Collider, ou Grande Colisor de Hádrons, um imenso acelerador de partículas), localizado a quase duzentos metros de profundidade na fronteira franco-suíça, é, muito simplesmente, recriar o mundo: tentar reproduzir as condições que existiam no início do universo, logo após o Big Bang, para encontrar novas partículas, novas forças ou novos fenômenos que permitam explicar o mundo tal como ele é. Ou alterar definitivamente a sua feição. E para os que ainda têm dúvidas sobre a capacidade de apagamento de fronteiras e de reescritura da realidade destas recentes “aventuras subterrâneas do pós -humano”, basta lembrar que o C.E.R.N. foi o berçário, em 1990, da World Wide Web - onde o ciberespaço e a nossa presente discussão começou.

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Rever a escola e os conceitos de literatura e leitura: cruzar fronteiras* George França**

Resumo: Como estamos pensando os conceitos de literatura, leitura e as relações entre ambos em âmbito escolar? Insistimos em uma concepção essencializada do que seria Literatura? Ou lemos a literatura no campo multifário dos objetos culturais de todos os tempos que se sobrepõem no presente? Em que medida conseguimos pensar o fazer sentido do texto no presente? A partir da advertência-desafio de Roland Barthes em O grão da voz, para quem, à pergunta “pode-se ensinar literatura?”, caberia a contestação “é só isso que se há de ensinar”, tendo em vista desenvolver o gozo da dúvida e entender tudo o que temos sobre o mundo são ficções, pretendo confrontar conceitos de literatura e de leitura veiculados em livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) com a proposta desconstrutora feita por Daniel Link nos anos 90 para a educação argentina, na série Literator, visando a alicerçar uma revisão metodológica e conceitual e novas possibilidades para o ensino de literatura no Brasil. Palavras-Chave: literatura, leitura, ensino, Brasil, Argentina.

Este texto resulta das reflexões realizadas para o simpósio Literatura, Cultura e Educação: tensões e convergências, realizado no XIII Congresso Internacional da Abralic, em Campina Grande, PB. ** Professor do Colégio de Aplicação do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). *

Abstract: How are we thinking the notions of literature and reading and the relations between them in the school? Are we insisting in an essencialized conception of Literature? Or are we reading literature in the multifarious field of cultural objects from all the times that overlap in the present? Can we think the space in which the text makes sense for the actuality? From Roland Barthes’ warning-challenge in The grain of the voice, for who, to the question “is it possible to teach literature?”, the answer should be “it’s the only thing that we should teach”, aiming to develop the enjoyment of the doubt and to understand that all we have about the world are fictions, we pretend to compare the notions of literature and reading used by textbooks approved by Brazilian National Program of


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Textbooks (PNLD) with the deconstructive proposition made by Daniel Link in the 90’s for Argentinean education, in a series called Literator. With this, we aim to base a methodological and theoretical review to new possibilities in literature teaching in Brazil. Keywords: literature, reading, teaching, Brazil, Argentina.

“Cedo demais a criança é arrancada ao esquecimento. Então ela aprende a entender a expressão ‘foi’, a senha através da qual a luta, o sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no fundo a sua existência um imperfectum que nunca pode ser acabado.” (Friedrich Nietzsche, Segunda Consideração Intempestiva, 1874) Loja de nostalgia Em uma cena de Meia-Noite em Paris (Woody Allen, 2011), um cético Hemingway pergunta a Gil Penders, romancista perdido em uma experiência anacrônica produtiva de voltar ao passado, à sua “Era de Ouro”: “sobre o que é o seu romance?”. À resposta de Gil (“Sobre um homem que trabalha em uma loja de nostalgia”) segue-se outra pergunta de Hemingway: “Que diabos é uma loja de nostalgia?”. Penders explica: “Uma loja onde se vendem coisas antigas. Recordações. Soa terrível.” A nova lição de Hemingway é impecável: “Nenhum tema é terrível se a história é real, se o texto é claro e sincero e mostra coragem e sedução sob pressão.” Abro esse texto recordando essa cena, como num jogo. A sugestão para esse enigma surgiu justamente durante uma aula com o terceiro ano do Ensino Médio do Colégio de Aplicação da UFSC, quando assistíamos a esse filme como uma das portas de entrada para discutir a arte de vanguarda, ou ainda, a relação singular de cada estudante com a visitação do passado. Com efeito, alicerçado no pressuposto nietzschiano da Segunda Consideração Intempestiva (1874), retomado por Paolo Virno em Il recordo del presente (1999), de que a relação do sujeito


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com a história pode ser de três ordens, quais sejam, a monumental, a antiquária e a crítica, me perguntava: de que natureza tem sido a relação com a literatura que propomos em nossa prática de ensino? Uso “nós” pensando de maneira a me exceder: nós, professores de Língua e Literatura; nós, estudantes de pós-graduação brasileiros; nós, que fazemos as políticas governamentais e elaboramos, avaliamos e adotamos livros do Programa Nacional do Livro Didático; nós, que estamos todos no mesmo barco, como agentes pedagógicos. Como se situar num horizonte em que nem só se olhe para o monumental, considerado por algum paradigma de pensamento como “grande e digno de sobreviver” do passado (a velha “história dos grandes feitos”, sufocando a possibilidade de outros tantos passados, esquecidos, oprimidos, desprezados, e mesmo a do presente, que sempre sairia perdendo), nem trate o passado como antiquário, uma espécie de bibelô sofisticado, à distância dos dedos do público que deve “aprender a contemplá-los”, como se seu gosto ou a produção a ele mais próxima não merecesse ser levada em conta? Até que medida nos será possível, como já queria Nietzsche (2003, p. 92), em nossa experiência, “experimentar algo por si mesmo e sentir crescer em si um sistema coerente de suas próprias experiências”, uma vez que “um tal desejo é anestesiado e como que embriagado pela exuberante ilusão, como se fosse possível em poucos anos somar em si as experiências mais extraordinárias e mais espantosas dos tempos antigos”? Que nos venha a advertência do século XIX, por vezes esquecida: “Somente a partir da suprema força do presente tendes o direito de interpretar o passado; somente na mais intensa tensão de vossas qualidades mais nobres desvendareis o que há no passado digno de ser conhecido e conservado”. (NIETZSCHE, 2003, p. 56) Autonomia? A pergunta que se in(ter)põe, portanto, é: Não estamos ensinando com uma loja de nostalgia? A escola em sua concepção tradicional - o ensino por escolas, a compartimentalização do conhecimento, os nossos livros didáticos fadados ao eterno fracasso, por mais que tentem se modernizar e representem peça im-


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portante num país em que os formandos em Letras têm lacunas enormes de repertório e em que nem sempre se tem acesso a uma biblioteca nas cidades mais afastadas dos grandes centros, o que se soma a regimes de trabalho para o professor que nem sempre permitem ter tempo de ir a uma biblioteca preparar uma aula - são grandes lojas de nostalgia. São grandes arquivos habitados pela pulsão de morte organizados por arcontes autorizados (como queria Derrida em seu Mal de arquivo) e endossados por políticas estatais, que engessam a literatura em uma imagem de Estado - o que, nesses textos, nos define como brasileiros, ou repercute uma “cultura” ou uma “consciência” nacional ou dos tempos - mormente pensada a partir dos cânones modernistas e da crítica modernista do modernismo. Não estou dizendo com isso que não tenhamos de oportunizar o contato com o repertório canônico - a escola certamente é o único e principal espaço para isso. No entanto, a organização cronológica do conhecimento sobre a literatura - e não da literatura como uma poderosa e incontrolável forma de saber - assemelha-se à organização de uma grande loja de antiguidades em que pratarias, pratos, vasos e serviços de mesa antigos - que já não garantem que a comida do prato servido tenha sabor, nem que seja palatável - organizam-se de acordo com suas idades e funcionalidades, e não de acordo com séries, recombinadas, recombináveis e abertas a novos usos por parte daqueles que mobilizam esses artefatos. Isso repercute, em dada medida, a própria concepção tradicional da escola, que aos poucos vai se quebrando e sentindo a demanda de ser reformada. Veja-se, por exemplo, a recente demanda da Câmara de Educação Básica por pelo menos 20% de programas interdisciplinares eletivos, a qual tem obrigado a reformulação de currículos em escolas pelo Brasil, em marcos teoricamente favoráveis, mas, na prática, ainda incertos, inclusive em termos de como docentes sobrecarregados por carga horária de sala de aula lidarão com a necessidade de preparar novas práticas de sala de aula. Essa resolução foi recentemente emendada pela ideia de que não mais teremos disciplinas, mas quatro grandes áreas de conhecimento organizando os saberes escolares - questão ainda em discussão, mas que, certamente, pode pesar inclusive contra a presença de “tanta” literatura nos currículos. Temos a abertura para a cons-


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A tendência se repete, agora, em materiais indicados para o PNLD do Ensino Fundamental – Séries Finais em 2014. Há coleções que se apresentam inclusive como fasciculadas, literalmente separáveis em módulos independentes, e que, ainda, tratam “literatura” e “leitura” como “conteúdos” ou componentes curriculares distintos. Ainda que haja leitura que não seja literária, a relação com a literatura sempre é de leitura. 2 Esse movimento é tentado mais amplamente em materiais de Ensino Fundamental – Séries Finais, como nas coleções Projeto Teláris e Universos, disponibilizadas pelo PNLD 2014. Há, claro, dissidências em torno de como se compreende o que seja um gênero do discurso, dado que, ainda que a discussão filosófica de Bakhtin seja ampla, seus comentadores constróem diferentes compreensões e tentativas de sistematização do que seja um gênero. Muitas vezes, elaboradores de livros didáticos tratam como gêneros as antigas tipologias textuais de narração, descrição e dissertação, que dizem respeito a modalidades discursivas que aparecem e se modalizam em diferentes gêneros, e não a gêneros por si só. 1

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trução de espaços multiseriados e menos estandardizados, em que poderemos dar vazão aos interesses, aos desejos, às singularidades dos indivíduos que transitam pelo espaço-escola. E como entraremos nesses espaços? Por fim: é a literatura algo ensinável? Ensinamos literatura ou algum saber sobre a literatura, ela própria um saber inominável, da ordem da produção de uma diferença radical, de singularidades? É possível “ensinar” literatura? Caberia nesse momento, a título de confronto, observar como os livros didáticos que são recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tratam a questão da leitura de literatura. É notório que é no Ensino Médio que a abordagem do literário ganha caráter mais sistemático, na medida em que os materiais trazem leituras dos diferentes gêneros desde as primeiras séries, mas é na chegada ao final da Educação Básica que surge a preocupação com sistematizar um conhecimento a respeito da literatura, fundamentalmente da brasileira. Analisando-se a lista das obras recomendadas no guia de 2012, duas questões saltam, inicialmente, aos olhos: primeiramente, a presença de vários materiais que ainda tratam a disciplina de Português no Ensino Médio como composta de três grandes blocos separados - a Literatura, a Gramática e a Produção Textual -, em que pesa a possibilidade de, inclusive, dividir-se entre três ministrantes, a depender da organização curricular da escola, o que vai na contramão da integração de saberes que tem norteado o discurso crescente em favor da formação interdisciplinar e, ainda, deixa de lado encarar a literatura num movimento que vai do texto ao texto1; segundamente, o fato de que apenas uma dessas coleções tenta, em alguma medida, pensar a organização didática do estudo da Literatura de maneira diversa da já tão batida divisão cronológica por “escolas” ou “períodos”. O que fazem Carlos Emílio Faraco, Francisco Marto de Moura e José Hamilton Maruxo Jr., em Linguagem e interação, é pensar gêneros textuais como núcleos de organização para cada unidade2 - e em alguma medida, esses gêneros articulam uma mirada para a literatura, ainda que esta, novamente, surja em organização cronológica. É como se isso fosse um imperativo. Ainda que haja a necessidade da localização histórico-temporal dos textos lidos, afinidades temáticas, para além de temporais, ajudariam a organização de séries


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que ajudam a ler a sobrevivência de problemas, questões e imagens ao longo dos tempos. Em que pese o fato de que os pareceristas destacam, com razão, que há maior ou menor espaço para a fruição ou para o exercício da construção de um sentido singular pelo leitor no contato com os textos literários apresentados, o que se vê, ainda, é uma ênfase demasiada na necessidade da identificação de uma obra com um período e um contexto e um conjunto de características. Que não se pense com isso que se faz aqui uma defesa de uma leitura descontextualizada ou que pregue a desvinculação de um texto de sua história uma vez que os textos se fazem de tempos e os tempos se fazem de textos. No entanto, o que é necessário destacar é: que espaço tem o texto, a fruição, a produção de sentidos plurais quando resolvemos sufocá-lo por essa espécie de “parasita” (devendo o termo, aqui, a Hillis Miller e seu O crítico como hospedeiro) que atende pelo nome de “escola”? Seria interessante, ainda, ouvir o que têm a dizer esses materiais sobre os conceitos de literatura e de leitura, uma vez que é sua mirada conceitual algo determinante para pensar por que se dá abordagem semelhante em praticamente todos os materiais recomendados. Note-se, primeiramente, que o PNLD faz distinção entre “compêndios” (que dão mais liberdade ao docente, na medida em que reúnem textos e oferecem subsídios e exemplos para que o professor dê o tratamento que considera válido) e “manuais” (que se organizam como sequências de aulas, de passos e atividades). O documento do PNLD 2012 de Língua Portuguesa observa, ainda, a tendência ao crescimento do modelo “manual”, o qual, no último conjunto de livros recomendados, já respondia por 8 das 11 indicações. Esse crescimento, a meu ver, deve-se, em parte, ao sucateamento das condições de trabalho do docente na escola pública, massacrado por cargas de aula enormes e sem tempo para preparação. Investir em material que deixe tudo preparado para que o docente não tenha de prepará-las, em lugar de remunerá-lo para a elaboração de seus programas e para a qualificação profissional, é parte de uma política que diz se preocupar com a educação, mas revela suas facetas mais perversas na maneira como trata o profissional responsável pela formação dos estudantes. Um exemplo do gênero “manual” é a coleção


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Projeto Eco, que de chofre nos coloca de frente ao fato de que é elaborado por uma editora de pré-vestibulares, a Positivo. Ainda que a avaliação oferecida pelo MEC destaque o fato de que há uma tentativa de posta em relação dos textos literários da dita “tradição” com outros mais contemporâneos, há um conjunto de termos cujos resíduos são da matriz crítica sociológica que construiu a versão hegemônica de nossa literatura a partir do Modernismo. Eles nos apontam para o fato de que é na matriz conceitual que está posta a questão de que formamos menos o leitor para a fruição e a ressignificação dos textos literários, que deveriam ser - e em alguns dos discursos são - prioritários, do que para o entendimento de alguma sociologia da literatura ou correspondência entre história literária e história (de alguma consciência do) nacional. Vejamos, a propósito, o que dizem Roberta Hernandes Alves e Vilma Lia Martin (2012, p. 10), autoras dessa coleção, nas orientações ao professor: A formação do chamado leitor literário deve contribuir efetivamente para a ampliação da autonomia intelectual e da perspectiva crítica dos alunos. Por isso, uma atitude interativa e questionadora diante do texto literário, capaz de levar ao conhecimento e à transformação, orienta a proposta de ensino e de aprendizagem das literaturas de língua portuguesa desta coleção. Essa proposta está apoiada fundamentalmente em dois pressupostos: a comparação e a prospecção.

Ainda surge aí uma contradição em termos: a “comparação” é dada pelas autoras como uma estratégia “descolonizada” para respostas sobre identidades dos países de língua portuguesa; ora, se temos de buscar uma identidade entre países a partir justamente da língua do colonizador - ainda que com todos os acréscimos que demos a ela, com a “contribuição milionária de todos os nossos erros”, como a definia Oswald de Andrade - não estamos insistindo em uma estratégia “colonizada”? Mais, ainda: termos de insistir em uma identidade, ou na literatura como um instrumento de criação de identidade nacional (ou lusófona) não nos devolve ao domínio do Romantismo, em que nossos folhetins atendiam pela tarefa de inventar imagens do interior, do herói nacional e da vida urbana para que entendêssemos nossos cacos de


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catástrofe como uma nação? O passo seguinte, proposto por ambas, é a tal “prospecção”, como espécie de “diálogo” entre o registro do que foi e o presente; “recuperar a memória que subjaz ao texto e projetar ao futuro” - estaria aí a literatura no plano de uma futurologia, ou novamente, de um projeto de nacionalidade? E onde o espaço do singular, do indivíduo? O que surge no arrazoado teórico, é a remissão a Candido e seu texto sobre O direito à literatura (1988), em que finalmente se encontra uma “função” para a literatura, que não poderia restar como objeto “sem função”. Daí surgem argumentos em defesa do ensino de literatura como “formação ética e autonomia intelectual”, como “fator de humanização”, como até mesmo o resto cristão que se encontra em “tornar compreensivo à natureza, à sociedade, ao semelhante”. Vale repensar, ainda, de que ideal de humano se está falando, e do fato de que a remissão ao texto de Candido recai sobre um texto em que discute a ligação entre literatura e direitos humanos pensando justamente que os problemas que temos nessa esfera são de falta de racionalidade (quando creio que deveríamos reivindicar a sensibilidade, a aesthesis, para além de uma racionalização do ou a partir do literário) - ou, ainda, que quando se pensa em garantir o que o “semelhante” deveria ter, deveríamos pensar num pacote aculturador-humanizador que compreendesse não apenas uma moradia decente, mas também o acesso a um Beethoven ou um Dostoievski. No entanto, ainda que Candido faça a crítica às fronteiras que separam “erudito” de “popular”, entende que há um sentido de “elevação espiritual” (entendendo-se a “cultura” como parte da “vida do espírito”) no direito ao contato com os textos canônicos. A escola configura-se, em si, como talvez o único ambiente que possa propiciar esse contato, e não deve se furtar a ele, ou a incitá-lo; no entanto, precisa fazer com que o aluno reconheça que o que traz consigo, em sua bagagem, também é cultura, e como tal, precisa ser prezado, respeitado e, por que não, estudado, incitado, posto em contato com o que há nesse repertório que não é imóvel e não se cristalizou na história. Precisa fazer sentido no presente, precisa fazer do presente sentido. Na mesma direção, e remetendo ao mesmo texto de Candido, ainda encravado num debate da redemocratização do Brasil nos anos 80 (sempre e nunca tão presente),


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Ver, a esse respeito, a recente conferência de Raúl Antelo, Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia, que começa justamente por historiar o conceito de autonomia. “A autonomia é basicamente um conceito político. Nasce, em Sócrates e Aristóteles, como uma condição da cidade-estado. Com o Iluminismo, porém, ela se torna um atributo individual, em que cada um é autor de sua própria lei. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, por exemplo, Kant estabelece que nada possui valor, a não ser o que, a cada coisa, for atribuído pela lei. Mas a própria legislação, que determina todos os valores, deve ter, por isso mesmo, uma dignidade incondicionada. A autonomia é, pois, o princípio da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional e a autonomia da vontade, mais específicamente, é a propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma, independentemente da natureza dos objetos a que se aplica. O princípio da autonomia consiste, portanto, para Kant, em escolher sempre de modo tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis universais, no próprio ato de querer.” 3

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está o que apresentam Leila Sarmento e Douglas Tufano (2012, p. 12) no volume 1 de sua coleção Português - Literatura, Gramática e Produção de texto (que apresenta essas três práticas em blocos apartados, separados, como independentes), no qual apresentam aos alunos as noções de Gombrich (construção social do conceito de arte) e de Candido com as “três faces” da função da literatura: “(1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente”. Há ainda aqui o ressaibo do velho debate da autonomia das artes e do indivíduo, por demais extenso para esta exposição, que redunda, na Itália dos anos 70, numa confluência antiadorniana, na crítica que aparecerá no debate italiano com Mario Tronti, autor que apontará para o quão utópica e ligada ao projeto político capitalista é a própria noção do sujeito autônomo, autor de suas próprias leis. A contrapelo, surge no pensamento de uma teórica como Josefina Ludmer o conceito de pós-autonomia, que se manifesta no regime de realidadeficção de nosso espaçotempo3. É preciso pensar o presente em sua relação com o passado, sim, mas também com o futuro, introduzindo uma quarta dimensão na discussão sobre os espaços que construímos e as potências do possível para além do dado e das versões únicas da história. Em um mundo globalizado, Ludmer destaca em pensadores como Virno justamente a possibilidade de refundação de uma política que refunde o potencial criativo de uma utopia a partir da globalização. Esse pensamento é caudatário do desenvolvimento teórico de uma nova leitura para o tempo, como dimensão do possível, e do espaço, como também ele tempo, desencadeada no pensamento das vanguardas do início do século XX por nomes como Marcel Duchamp ou Carl Einstein. Tanto em Sarmento e Tufano quanto em Faraco e Moura (Língua e Literatura) encontraremos conceitos de literatura ligados ao mundo da “recriação da experiência do real”, de sujeitos entendidos como “plenos” que “interpretam” a realidade. Faraco e Moura chegam ainda a dizer que a diferença do texto literário para o jornalístico ou histórico seria a de que esses últimos “não podem dar margem a interpretações diversas”, depositando


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fé numa possibilidade de transparência da linguagem já negada pelo debate teórico sobre linguagem travado ao longo do século XX. À literatura estaria restrito o mundo do regime “ficcional”; ora, caberia justamente a pergunta inversa: qual o acesso ao mundo, em linguagem, nos textos escritos de que dispomos, que não é, ela mesma, ficcional? A crítica se estenderia, ainda, nesses materiais, a uma concepção instrumental do próprio conceito de literatura, como se a partir da fixação dele se pudesse criar um regime de contenção para esses discursos mais ou menos indomáveis e proliferantes a que chamamos literários, e que depois se aplicaria a uma seleção de textos “que continuam a interessar os leitores de hoje” (quais sejam, os que configuram um cânone nacional). Caberia perguntar: e o que fazer com os chamados “homens infames”? “Afrontamento do desejo” A resposta, o “afrontamento de um desejo” de leitura que confrontaria justamente essa concepção que tem se mostrado fadada ao fracasso por, em diferentes diagnósticos, mostrar que um desejo não se desperta por um enquadramento histórico, mas sim, por uma relação singular, despertada em um movimento para além das fronteiras que têm emoldurado nossos materiais, surgiria para além das fronteiras. Em 2001, num colóquio intitulado A peste lacaniana, o crítico argentino Daniel Link procura dar uma resposta à pergunta Como se lê? (título de seu livro homônimo, em que está publicado o texto que leu nesse colóquio), na qual ecoa, ainda e fortemente, um livro em que diz ter posto tudo quanto sabia até então – o começo dos anos 90: sua proposta para o ensino de literatura na educação básica argentina4, chamada Literator. Link (2002, p. 17) toma como ponto de partida a assertiva borgiana de que “uma literatura difere da outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto que pelo modo que é lida”. Para pensar esses modos de ler, recorre à Psicanálise, e para um movimento - pensado no âmbito da intervenção analítica, mas por que não dizer, da ordem da leitura - experimental, que se radicaria nem no plano da descrição, nem no plano da interpretação. Tratar-se-ia, pois, de conceituar a leitura como “a correlação entre duas séries

O próprio autor relembra que escreveu esses compêndios numa era em que não havia computador, com menos recursos gráficos e audiovisuais possíveis – inclusive em termos da apresentação gráfica do material – e sob uma política governamental que ainda mandava separar para o quarto ciclo as literaturas europeias e para o quinto, as americanas. No entanto, a tessitura dada à abordagem dos problemas, em grande medida, excede essa divisão. 4


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de sentido, uma inerente ao objeto e outra inerente ao sujeito”, pensando que a descrição corresponderia a uma aproximação maior ao objeto e a interpretação a uma proximidade do sujeito; seriam esses os limites entre os quais se daria o ato de ler, que acaba consistindo, pois, em “terceira margem”. Os sentidos seriam então uma espécie de pomo de disputa, possíveis apenas na inserção em séries, ao longo das quais se deslocam; resgata-se assim uma dimensão em que não mais se cristaliza a versão oficial do objeto literário, mas se abre o texto à prenhez de sua significação, à tensão em que sempre se coloca; o acaso que rumina em toda a linguagem, que um lance de dados jamais abolirá, quando redenominado, quando paranoicamente raptado - lição tomada aos surrealistas fará com que o sentido possa aparecer na medida em que o objeto texto seja tomado de sua série, de uma série cuja composição se dá em relação singular. Outras paragens, doutro lado das fronteiras, podem, por vezes, nos oferecer espelhos em que (não) nos reconhecemos. Se a linha de fronteira insiste na separação, façamos um movimento inverso e pensemos no que nos une: para além de todas as condições “periféricas” ou “colonizadas”, modos de ler que se articulam, “mapas” deixados por afinidades eletivas comuns. Não penso aqui que o Literator como tal seja adotável, uma vez que foi publicado em 1994 e pensado para outro sistema educacional que não o brasileiro, revolvendo, também e além, um repertório que não é o nosso, que não estaria de acordo com nossa legislação educacional. No entanto, ele nos mostra que outras maneiras de organização e de estudo de literatura na escola são possíveis. Ele aponta para possibilidades combinatórias, arranjos entre textos “nossos” e “não-nossos” que antropofagicamente pudessem vir a construir outras séries de sentido que não apenas a das divisões em escolas e momentos históricos que se assemelham distantes e sem objetivo para estudantes com pouco ou nenhum repertório e potenciais professores em condição semelhante, lecionando (sobre) um cânone que não dominam e que não corresponde mais a um possível presente. Disponho de dois volumes gentilmente digitalizados pelo autor e enviados a mim, dado que é praticamente impossível encontrá-los à venda, mesmo em sites de


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comércio de livros usados. São o IV e o V. Na capa do IV, em um quebra-cabeças, uma imagem do Quixote5, e a indicação de que se trata do “Regreso”, da volta do herói. Na capa do V, surge em outro quebra-cabeças a indicação de “La batalla final”. Isso se deve à tarefa tomada pela série de se portar como uma saga heroica, uma narrativa composta de fragmentos de textos e de tempos diversos, mosaico ou quebra-cabeças em que se trava um combate contra um vilão eleito pelo autor como intolerável: a banalidade. À melancolia do pensamento de que não haveria outro remédio, em um mundo irremediavelmente banal, a resposta é uma aposta com eco barthesiano. Eis que logo de chofre, no prefácio, a pergunta que nos assombra e que não passou despercebida a Barthes ainda no final dos anos 70 aparece: “pode-se ensinar literatura?” A resposta, operando uma das inversões de que Link, em Como se lê, diz tanto gostar, inversões que credita a seu “pai” (a posta entre aspas aponta aqui o eterno drama parricida que marca toda a cultura ocidental) Foucault na leitura da lógica das séries, e que faz ver que se tratam de uma leitura radical que este faz de Marx (que inverte Hegel em sua leitura da relação entre Estado e povo), é: “é somente isso que se há que ensinar”. Na medida em que se pensa a escola como formadora do famigerado “senso crítico”, é na literatura que se pode encontrar a resposta em que se soma a dúvida não ao ceticismo, mas ao gozo. Fazer estremecer a verdade (Nietzsche), não deixar que nada pareça natural (Brecht). Link chama a pergunta “o que é literatura”, em seu material, de “maldita pergunta”, e, além de retomar a definição institucional, desessencializada, trata também de dizer o que literatura não é: “expressão de sentimentos, mera apelação a quem lê ou escuta, testemunho sobre algo que passou”; pode contê -las, mas as subordina ao prazer estético, esse, que se tem perdido de vista no presente, no trato com ela na escola; a literatura, por fim, é uma máquina de perceber. Como se lê: a leitura é combate, é notação, é experimentação. O livro para ser usado na escola, portanto, não é uma antologia sistemática, nem uma história da literatura, nem um tratado sistemático dos gêneros. Encarnando justamente a ideia de que as leituras estão eternamente em batalha, Link se propõe a responder a outra pergunta - “Como se lê”, a mesma que nomeia

A imagem não é produto de mero acaso. Não se trata apenas de um personagem literário dos mais conhecidos, num trabalho sobre a representação que lhe fez Picasso, mas, como aponta Susana Scramim a partir da leitura de Foucault – autor aqui já referenciado como espécie de “pai” para Link – de uma figura paradigmática da modernidade que marca a opção por um método-sem-método, ou ainda, por uma busca sem fim último, o que curto-circuitaria o princípio estatal arcôntico conferido a quem articula esses arquivos a que chamamos “livros didáticos”: “a experiência produzida pela busca de Dom Quixote é sempre uma “quête”, uma experiência na qual à produção de um saber, de um conhecimento, é sobreposta uma experiência sem finalidade, sem fim, uma experiência inoperante, isto é, um modo de existência genérica da potência. Por isso, paradoxalmente o “methodo” para aproximarmo-nos da literatura moderna é, por princípio, aporético, “a-poros”, sem caminho, sem caminho previamente definido. É um caminho que se faz no meio do caminho.” (SCRAMIM, 2012, p. 7) O que se impõe, nesse método aporético que Link cria, é uma abertura para o exercício da singularidade que a estandardização posta pelos materiais que temos negligencia, e, em sua fixação historiográfica, praticamente suprime. 5


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seu livro posterior - em uma linguagem a um só tempo precisa e aguda o suficiente para impactar um estudante de quarto ano da escola secundária argentina, algo como nosso segundo ano do Ensino Médio. Susana Scramim, ao comentar o autor e essa iniciativa pedagógica, toca no inalienável problema do “arconte”, aquele que domina, regula, organiza e dispõe sobre o arquivo (um livro, uma antologia, um projeto pedagógico, em suma, são um arquivo, pensável na linha do que define Derrida em Mal de arquivo). A pesquisadora argutamente observa que quando Link responde à pergunta dizendo que “se lê de qualquer modo” e que ao fim e ao fundo se trata muito mais de “impor” ao texto uma leitura do que de discutir métodos únicos e unívocos que legitimem uma leitura, abre aí uma problemática das forças, para além das formas, no campo literário. O que se reconhece é que mesmo sentidos que se apresentam como cristalizados são eles, também, resultados de embates, versões vitoriosas que repetimos à exaustão. Scramim (2012, p. 2) pondera a questão dessas tensões nesses termos: Mas de que poder se trata aqui quando dizemos que há que se convencer com a leitura? “Convencer” quer dizer persuadir com a razão, com argumentos e fatos. Daí que poderíamos pensar na obsessão do arqueólogo por uma lógica da repressão que degeneraria numa violência em impor um sentido? Retornando a Derrida, quando seu texto interroga sobre a pretensão de Freud em explicar o assédio do arqueólogo em sua lógica da repressão, lembremos que o inconsciente também é tomado como um arquivo, origem e lei pela psicanálise freudiana. Nessa disposição de Freud, Derrida vê um impulso que ultrapassa a própria lógica do arqueólogo, isto é, Freud radicaliza o procedimento do arqueólogo no momento em que se coloca no papel de um arquivista que é mais arqueólogo que o arqueólogo.

Cada volume desse arquivo, para além de explicitar seus conceitos de literatura e de leitura - de entrar na tensão dos convencimentos a respeito de uma leitura não-essencialista da literatura e de uma abordagem da leitura como aquilo de que dispomos para construir mundos - constitui-se de uma parte em que o autor sugere um “Pequeño taller de escritura”, com situações que respondem


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a textos da antologia apresentada pelo autor no segundo bloco, organizado tematicamente. No volume IV, os temas são a Pátria, a Família, a Guerra, o Dinheiro e o Erotismo. No volume V, dedicado às literaturas americanas (por determinação legal), são apenas três temas: a Viagem; a Pátria; o Corpo. Um segundo bloco do manual, pequeno, quando comparado à monta dada ao conjunto de textos literários a se trabalhar, é dedicado à apresentação da história literária: são trinta páginas, contra duzentas em que quem domina são os próprios textos dos autores. Na oficina de escritura, possibilidades criativas que procuram ressignificar práticas e momentos históricos que os alunos discutirão a partir dos textos do arquivo. É aí que se enquadram propostas criativas e produtivas, por exemplo, relatar como seria se você fosse um astronauta cuja nave caiu em local estranho, mas fazendo-o “à maneira de Colombo” (pensando em texto lido na antologia, ou seja, realizando um movimento do texto ao texto), ou descrever as roupas dos incas como se relataria um desfile de moda. Os textos são numerados para poderem ser encontrados com as propostas de redação da Oficina de Escritura, e acompanham-nos questões para ajudar o caminho interpretativo. Ao final do volume, há um dicionário e um índice de autores para facilitar a navegação do aluno pelo livro. O convívio dos textos, tematicamente, é anacrônico: Melville e Colombo se encontram com Fito Paez e César Aira; as fronteiras nacionais tampouco são o princípio máximo, dado que, além de Melville, personagens como Octavio Paz, Neruda ou cantores mais conhecidos do grande público, como Jim Morrisson, convivem em embate com Sófocles ou Borges. O foco é, pois, o texto, e a construção de sentidos novos para problemas que dizem respeito ao estudante, não a historiografia, ou a representação do nacional, na medida em que percebese ser um conjunto que fortemente se posta pela singularidade, esquecida em muitos compêndios didáticos. Link, ao escrever em 1992 e 1993, ainda não podia vislumbrar as novas e múltiplas possibilidades que a ampliação do acesso a computadores, câmeras, smartphones, internet e afins nos oferece atualmente. É claro que o Brasil é um país continental, com realidades socioeconômicas muito distintas, Os sendeiros da literatura se bifurcam ainda mais no livro infinito que somos na medida


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em que hoje, com toques, podemos visualizar imagens em movimento, e na medida em que gerações de alunos já nascidos em uma cultura digital chegam à escola. Esses mesmos grupos configuram também uma nova relação com a cultura letrada e com a atenção, na medida em que se revelam muito mais multifocais e com uma demanda cada vez maior de que as velhas práticas disciplinares se renovem e se oxigenem, fazendo algum novo sentido. É nessa perspectiva conceitual que se pode ler algumas das atividades de ressignificação que hoje podemos propor em alguns contextos escolares - como é o caso do Colégio de Aplicação da UFSC, onde trabalho - possibilitam ir ainda mais longe nos movimentos incessantes de mudança no currículo, que fazem com que o aluno dê à literatura uma visão maior do que historiográfica, instrumental ou “necessária para o vestibular” (ou para o Enem, que pretende suplantar os testes locais). Propostas como a de integrar a poesia marginal dos anos 80 a referências audiovisuais contemporâneas ou ao trabalho recente de Ferrés (referência trazida por um aluno, por deriva do significante com que se nomeia a geração dos 80), para reler com olhos de presente a própria noção de “marginal”, por exemplo e à produção de videopoesia, como a que realizamos, eu e os estudantes do terceiro ano do Ensino Médio, juntos, ano passado, fazem com que a relação entre poesia e imagem possa levá-los a pensar a poesia em outras ordens. Da mesma forma, atividades em que se preza o contato e a transformação do texto literário em outras ordens, ou ainda, textos em que o estudante seja instigado à produção num gênero discursivo que se aproxime de algo realmente existente. É interessante lembrar que no seu Como se lê, o próprio Link (2002, p. 66) se vê instado a tentar uma teoria dos gêneros, como “instituições da cultura e da arte” a partir de uma ida ao cinema do shopping como os filhos. Para além, no entanto, de formas - ainda que os gêneros impliquem repetições ou recorrências de formas - Link (2002, p. 67) agudamente observa que “A cumplicidade entre gênero, texto e cultura, pois, garante a legibilidade da vida” - e que ao fundo estamos sempre tratando de problemas de leitura, de leitura de mundo, na medida em que também é necessário um efeito de leitura para que se constitua algo em um gênero. Em outro movimento curricular, pensado para pro-


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curar fazer com que um poeta de linguagem complexa e oriundo do fim do século XIX como Cruz e Sousa foi com a fotografia. Para isso, graças a uma parceria com um projeto da Universidade Federal de Santa Catarina, chamado Santa Afro Catarina, visitas guiadas foram realizadas com os alunos ao centro da cidade, passando por lugares ligados à vida de Cruz e Sousa em Florianópolis, antes de se mudar para o Rio de Janeiro. Ao andar pelo espaço urbano e dar a ele outro sentido, os estudantes foram instados a fotografar e buscar correspondências entre o texto da cidade e os textos do poeta, lendo poéticas do espaço urbano nos espaços por onde transitou. O fato de que a literatura se fez parte de um dispositivo de nova leitura de mundo, do mundo que circunda o estudante, fez com que algo que facilmente poderia se tornar “acessório”, como um livro de sonetos, caso não se pudesse disputar para ele um sentido no presente, ganhasse aos olhos dos alunos novas cores. Criamos ensaios fotográficos, seleções de fotos entre o conjunto de todas as produzidas pelos grupos durante a saída de estudos, foi acompanhada da redação de editoriais, em que se explicava a seleção de fotos e se fazia o contraponto das fotos com os textos do poeta. Isso tudo se transformou em uma exposição, realizada no Espaço Estético do Colégio de Aplicação da UFSC. Essas iniciativas, que perpassam o cotidiano escolar, extravasam o espaço da sala de aula e dialogam com interesses que o professor observa no conjunto dos estudantes de suas turmas são parte de movimentos começados nos textos literários, em sua relação com outros textos, e redundou na produção de novos textos, abertos, em que o estudante podia se vislumbrar, se ver se vendo, como se finalmente a poeira do antiquário tivesse sido retirada e aí se tornasse possível descobrir novas formas de uso (de um uso da ordem do impossível, como quereriam as Profanações de Agamben) para as outrora intocáveis louças.


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VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente: ensayo sobre el tiempo hist贸rico. Trad. esp. de Eduardo Sadier. Buenos Aires: Paid贸s, 2003.


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Literatura no Ensino Médio: reflexões e proposta metodológica Girlene Marques Formiga* Francilda Araújo Inácio**

Resumo: O presente artigo traz à lume questões relativas ao tema Ensino de Literatura na escola, partindo de reflexões acerca da formação docente e propostas teórico-metodológicas atinentes à relação Leitura-Literatura-Ensino, que, nas últimas décadas, tem suscitado uma produção científica considerável. Na discussão, visando compreender e realizarmos uma crítica sobre a formação do professor de literatura, visitamos a história do Ensino de Literatura no Brasil. Por outro lado, considerando as concepções a respeito da função e dos objetivos da literatura no ensino médio, apresentamos ainda uma proposta de abordagem de leitura literária voltada para as adaptações dos clássicos. Para fundamentar as discussões, buscamos como referência estudos de especialistas que reforçam a preocupação com o ensino de literatura e coadunam com a nossa forma de pensar e conceber o ensino literário para jovens leitores. Palavras-Chave: Leitura; ensino de literatura; formação docente; adaptações literárias.

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba - IFPB Campus João Pessoa. ** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba - IFPB Campus Campina Grande. *

Abstract: The present paper brings up questions related to the theme Teaching of Literature in school, starting from reflections around teacher training, and theoretical and methodological proposals concerning the relation Reading-LiteratureTeaching, that in the last decades has raised considerable scientific production. In the discussion, aiming to understand and criticize the literature teacher training, we went through the history of Literature Teaching in Brazil. On the other hand, considering conceptions about the function and the objectives of reading in high school, we presented an approach proposal of literary reading regarding classic adaptations. To underpin our discussions, we used as a reference specialist studies that reinforce the concern with the teaching of literature and agree with our way of thinking and conceiving literary teaching to young readers. Keywords: Literature; teaching of literature; teacher training; literary adaptations.


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Revisitando a história do Ensino de Literatura no Brasil O ensino da Literatura no Brasil está intrinsecamente ligado a uma história que se inicia com os jesuítas e com o método Ratio Studiorium, pensado para uniformizar o ensino dos discentes dos colégios da Ordem Jesuítica em qualquer lugar do mundo, em cuja preleção havia a advertência de que somente os autores antigos fossem explicados, os modernos, de modo algum. (Fontes, 1999). Isso pressupunha, no âmbito de Literatura – termo utilizado inapropriadamente à época, já que não diferenciava arte literária da ciência (Abreu, 2003) – um ensino construído a partir de uma base imóvel, um ensino fundamentado, portanto, em verdades solidificadas. A esse propósito, a pesquisadora Socorro Barbosa (2005), estudiosa da História da Leitura e da Literatura, tece seguintes considerações: O ensino do que hoje concebemos como literatura dizia respeito ao universo da Retórica e da Poética, cujas disciplinas incluíam a oratória, o estilo e a erudição e exigia que os discípulos tivessem contato com os textos clássicos como modelos do bem escrever. O problema era que esse contato não poderia se fazer de forma “integral”, razão por que foram introduzidas as adaptações dos textos clássicos, de onde eram expurgadas as matérias “inconvenientes”. O método durou até a expulsão dos jesuítas em 1759, pelo Marquês de Pombal, quando foram paralisadas as atividades de 17 colégios, alguns seminários e escolas elementares. A partir desta data tem início o período pombalino, que tenta, através de decreto, transformar a educação do Brasil em uma educação laica, através do alvará de 28 de junho de 1759. Ao mesmo tempo que suprimia as escolas jesuíticas de Portugal e de todas as colônias, Pombal, que acreditava que o estabelecimento da Monarquia portuguesa só ocorreria quando as Armas e as letras fossem associadas, fundou na cidade de Lisboa, para estudos das artes liberais e das ciências, a florente Universidade de Lisboa, conforme o Compêndio histórico do estado da Universidade de Coimbra (1972). É de 1759 a Arte Poética de Cândido Lusitano (Francisco José Freire), escrita com o objetivo de refor-


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mar os estudos da poesia. Note-se que o estudo da poesia implicava também a formação de poetas ou homens de letras, como se dizia à época, modo de se apropriar da “literatura”, que estava na base da concepção jesuítica.

Embora a história dos cursos de Letras seja recente em nosso país, razão pela qual dispomos de escassa legislação sobre o assunto, o ensino da literatura como objeto de estudo já estava presente no ensino dos jesuítas, perdurando durante todo o Brasil Colonial. Assentado sobre as bases dos clássicos greco-romanos, o ensino era norteado pelo Método Pedagógico dos Jesuítas, o Ratio Studiorium, documento oficial, elaborado pelos jesuítas no final do século XVI, que organizava todo o modelo de educação jesuítica. Para Afrânio Coutinho (1997, p.196-97), nos três séculos da história colonial, o ensino fora modelado pelas disciplinas de Gramática, Retórica e Poética, “aplicadas ao estudo da língua latina e portuguesa, e aprendidas pelas técnicas tradicionais, como as versões, os exercícios de linguagem e de estilo, com que se procurava alcançar o domínio dos instrumentos clássicos de expressão”. Estas eram, pois, as disciplinas nas quais se fazia o ensino da língua portuguesa e o de “literatura” até o fim do Império. Claro que, na época, o conceito de literatura ainda não estava estabelecido como hoje o concebemos, mas os escritos clássicos - a poesia, as cartas e os discursos dos gregos e latinos - eram utilizados para o ensino da Retórica e da Poética. Isso significa que a leitura dos clássicos servia tanto para conhecer as regras da boa conduta, adquirir erudição, como para aprender regras do bem escrever. Este modelo de ensinar “literatura” prevaleceu até meados do século XIX, quando o ensino da Retórica e da Poética foi substituído pelo de História da Literatura. Convém esclarecer que, até o ensino dessa disciplina se consolidar e ser incluída no currículo do Colégio Pedro II - fundado em 1837 no Rio de Janeiro - o próprio sentido do termo literatura foi se construindo e adquirindo o perfil do que atualmente consideramos como Literatura. Segundo análise e levantamento realizados por Roberto A. Souza (1999), os estudos literários adquirem


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consolidação no Brasil Império, devido à transferência da família real para a colônia e, consequentemente, à transferência da capital do Império português para o Rio de Janeiro, fato que propiciou uma vida cultural e a instauração das letras. Assim, tornando-se modelo para o ensino brasileiro até meados do século XX, o Colégio Pedro II exerceu grande contribuição para a história de literatura nas escolas, e mais fortemente na época de sua fundação porque inexistia no país curso superior de Letras - situação que persistiu até os anos 30. Regina Zilberman (2005, p. 234), ao discutir sobre a universidade brasileira e o ensino das literaturas de Língua Portuguesa, reconhece que o ensino dessas literaturas - atribuição de instituições que hoje seria de escolas de nível médio - foi transplantado para a universidade a partir dos anos 30 do século XX, e, desde então, apesar das grandes modificações nos paradigmas científicos, as Faculdades de Letras não chegaram a alterarem seu programa de estudos das literaturas vernáculas. As observações da autora contemplam o conteúdo dos programas de Literatura desenvolvidos no Colégio Pedro II, os quais marcaram a mudança do ensino da poética e da literatura, no ensino jesuíta, para uma visão historicista da literatura. Essa transformação do ensino deve-se às mudanças do próprio contexto histórico, político e social brasileiro, que busca a construção de uma identidade nacional no espírito nacionalista. Daí a razão da influência sobre o programa de estudo de literatura ser atribuída aos românticos que desejavam organizar os fatos históricos e classificá-los, anunciando o espírito científico do positivismo e naturalismo, ou seja, o ensino da história literária era comprometido com o projeto nacionalista adotado na época. Como é possível perceber, a perspectiva historiográfica como abordagem exclusiva do texto literário na escola, reduzindo o acesso à literatura por meio de trechos, descontextualizados de suas condições de produção, parece ser o nosso “calcanhar de Aquiles”. Pois bem. À medida que a literatura passa a ser mais um componente curricular a ser aprendido tão somente em sua periodização, ou mais: quando o contato


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não é feito mediante a leitura dos textos literários, mas por meio do acesso à crítica ou à teoria literária, perdese outra maneira de conhecimento sobre a humanidade e sobre si mesma. Esse direito, defendido por Antonio Candido (1995), cabe também à escola a defesa de sua permanência. Pensar em direitos humanos, segundo Candido (1995, p. 239), implica um pressuposto, qual seja: “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo”. Para o crítico literário brasileiro, a fabulação é necessidade humana, pois “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (p. 242). Nesse sentido, concebendo o letramento literário como fonte e principal função da literatura escolarizada, Cosson (2006, p. 17) argumenta que a experiência literária não apenas nos permite saber da vida pela experiência do outro como também vivenciar essa experiência. Conforme o autor, “é por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas escolas”. Para que a literatura cumpra esse papel, é preciso mudar os rumos de sua escolarização, de maneira a promover o letramento literário. Em razão dos pressupostos aqui apresentados, notadamente no que se refere ao acesso à leitura propriamente dita de textos poéticos, há necessidade de repensarmos práticas docentes adotadas para a mediação da leitura literária na escola. Nessa perspectiva, reflitamos, agora, sobre algumas propostas metodológicas que podem contribuir para a aproximarmos nossos estudantes da literatura pela forma “disciplinar” na instituição escolar. Ensino de literatura em discussão: em busca de outros caminhos É certo que a literatura circula pelo universo escolar; a discussão, porém, é a forma como tem sido oferecida aos jovens leitores desde o momento em que entra


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no ensino fundamental até o Médio, ou até mesmo o Superior. Vejamos, então, algumas possibilidades de tratamento mais coerente para a mediação do texto literário. Regina Zilberman (2005), ainda que se restrinja ao estudo das literaturas portuguesa e brasileira para o curso de Letras, apresenta uma proposta para o ensino de literatura que não se atém tão-somente à preferência pela perspectiva histórica ou ao posicionamento idealista da literatura, ao dividir as literaturas conforme as nacionalidades. Para tanto, acompanhando a legislação adotada para as licenciaturas, propõe uma divisão do conteúdo em semestres ou níveis, elegendo para cada semestre um tema centralizador, a partir do qual se explicitam tópicos possíveis para desenvolvimento, examinados em relação às obras literárias e não-literárias. Nessa proposta, elege os temas, a saber: “Viagem, Natureza e Novo Mundo”; “Identidade e Etnias”; Política e Revolução”; “Gênero e minorias”; “Metalinguagem e Leitura”; “Memória e Subjetividade”. Além disso, a pesquisadora ainda enumera uma série de nomes de autores e obras, passíveis de colaborar para o conhecimento dos temas em evidência; agrupa textos pertencentes a gêneros literários diversos; como também os não-literários, à medida que sugere obras pertencentes a outros contextos artísticos, a exemplo de cinema, música, ou originários da cultura popular e dos meios de comunicação de massa. Consideramos que a sugestão de temário, para ser estudado ao longo dos semestres em um curso de Letras, é uma proposta de ensino que pode colaborar, sim, - como deseja Zilberman (2005, p. 244) - para o “alargamento e expansão do conhecimento da literatura em nosso país”. Conforme a autora, essa proposta metodológica substitui a noção de linearidade com que foi pensada a história da literatura no século XIX e que migrou para o século XX, sem grandes contestações no que se refere à organização do ensino das literaturas em língua portuguesa no Brasil. E introduz a possibilidade de se trabalhar com perspectivas múltiplas num espaço até então marcado pela unidirecionalidade.


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Nesse sentido, corroboramos a perspectiva da autora de que a literatura deve ser vista além de uma visão historiográfica - ou seja, enquanto expressão representativa de uma poética, de aspirações artísticas e ideológicas de uma sociedade ou das camadas de que aquela se compõe. Baseada nessa proposta, é possível compreender que o modelo de ensino de literatura vigente até então nas instituições de ensino superior em Letras - consequentemente reproduzido nas escolas de Ensino Médio - pode ser um dos impasses para a falta de motivação de leitura de textos literários por parte dos alunos nessa idade escolar. Somado a este, acrescente o fato de - conforme assinala a própria Zilberman - as sucessivas reformas no ensino foram “encolhendo o espaço de circulação da literatura em sala de aula, a ponto de o ensino médio, hoje, poder, se assim o desejar, suprimi-la”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB - Lei 9394-96, em seu art. 22, reconhece o Ensino Médio como parte de uma etapa da escolarização que tem como finalidade o desenvolvimento do indivíduo, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania, fornecendo-lhe os meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Para alcançar tal propósito, uma das diretrizes, expressa no art. 36, diz respeito ao destaque para a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes. A partir dessas disposições legais, vários documentos foram produzidos, criando novas propostas curriculares a fim de promover inovações nas práticas educacionais, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, criados em 1999; os PCN+ Ensino Médio Orientações Educacionais Complementares, em 2002; e, por último, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio - linguagens, códigos e suas tecnologias, cuja publicação data de 2006. A esse respeito, Barbosa (2010) demonstra como a criação desses vários documentos, ao longo desses dez anos, revela a dificuldade de situar a literatura no contexto da linguagem e de fazer dela uma disciplina escolar. Segundo a pesquisadora, mesmo o ensino da literatura ganhando um capítulo à parte da Língua Portuguesa nas Orientações Curriculares, atualmente em vigor, ainda


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apresenta “alguns problemas de incompatibilidade teórica e histórica”. Para a autora, “ao final do documento, o professor não consegue ter nem uma ideia clara sobre o motivo de ensinar-se literatura no Ensino Médio, nem orientações para possibilitar um ensino eficiente da disciplina” (p. 80). Ainda segunda ela, esses são mais visíveis no que concerne a aspectos relativos à história do ensino da literatura no Brasil, sua função no Ensino Médio e as formas de abordá-la. Principalmente com relação à abordagem teórica, os comentários são tecidos meio que ao acaso, a partir de várias perspectivas teóricas, sem levar em consideração as competências e habilidades exigidas para área de linguagens, códigos e suas tecnologias (BARBOSA, 2010, p. 79).

Assim, no contexto de pouca clareza do documento oficial, responsável por orientar a organização curricular para etapa final da Educação Básica, é que cabe à escola formar cidadãos capacitados à sua inserção social. E, nesse aspecto, a leitura enquanto componente da formação geral pode contribuir para o acesso ao conhecimento e exercício da cidadania. Sabe-se que o ensino de literatura sempre esteve atrelado à escola, e de maneira igual o conhecimento de literatura é atribuição dos cursos de Letras, e, como tais, devem capacitar professores responsáveis pela formação de leitores, bem como criar alternativas de mediação de leitura devem ser experimentadas. Dessa forma, tendo em vista os últimos dados dos resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que revelam, ainda, o baixo desempenho de leitura entre os estudantes brasileiros em formação escolar, é possível inferir que o resultado desse desempenho pode ser consequência de uma metodologia marcada pela “unidirecionalidade”. Compreendendo que a perspectiva dos temas caracterizadores, apresentada por Zilberman (2005), possibilita corrigir problemas relativos ao ensino e aprendizagem de literatura, um grupo de professores pesquisadores apresenta sugestões para “Ensinar Literatura através de projetos didáticos e de temas caracterizadores” para o


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Essa proposta é fruto da pesquisa da Tese de Doutoramento de FORMIGA (2009), disponível em http://bdtd.biblioteca.ufpb.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2475. Acesso em 02 maio 2013. 1

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Ensino Médio. O livro, organizado por Barbosa (2011), reúne quatro propostas, baseadas em aporte teórico diverso – história cultural, estética da recepção, dialogismo bakhtiniano e literatura comparada. Dentre as propostas encontra-se a de Formiga1 (2011) - “As várias formas de ler clássicos: uma proposta com as adaptações” -, na qual apresenta uma perspectiva de leitura de textos clássicos literários em materialidades diversas para o Ensino Médio. Como forma de desenvolver essa prática que possibilita a aproximação entre o adolescente e o texto literário, provocando a significação dos textos e a instrumentalização dos alunos para a leitura, Formiga defende que a leitura de obras literárias mediadas por meio desse mecanismo constitui uma forma de acesso à literatura, destinada aos jovens leitores. Para ela, não é uma modalidade nova na história da leitura, pois surgiu muito antes do desenvolvimento da literatura infantil, quando não havia leituras exclusivas para essa categoria, mas práticas adotadas por esse público de leitor que revelava sua especificidade. Logo, essa maneira de ler os clássicos literários, grande filão da indústria cultural que promoveu incontáveis títulos no Brasil no Dezenove, quando foi fundada a imprensa em nosso país, continua a dar a ler um bom número de narrativas clássicas nos dias de hoje. Esta proposta de leitura de clássicos para o Ensino Médio também tenta contribuir para refletirmos sobre a história das adaptações como objetos culturais que serviram de suporte material para a formação educativa brasileira, perspectiva com a qual podemos restabelecer a fé nas reescrituras como textos que não substituem a obra integral, mas que, para uma determinada época da vida do leitor, possibilita o acervo dos primeiros contatos com a literatura universal. Nesse aspecto, a adaptação historicamente esteve sempre ligada ao universo pedagógico da escola, razão pela qual podemos observar seu papel relevante no que se refere ao cultivo e interesse pelos clássicos da literatura universal. Essa antiguidade da qual se cercam as adaptações representa uma manifestação que, de certa forma, afiança a legitimidade desse procedimento.


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Adaptação de clássicos literários: possibilidades de leituras no universo escolar Grandes textos de séculos longínquos ou da contemporaneidade atingiram o status universal e se tornaram patrimônio da humanidade dita “culta”, alcançando o prestígio da posteridade. Assim, nomes como Shakespeare, Homero, Cervantes, Machado de Assis lideram a lista do chamado cânone literário. Algumas obras denominadas canônicas, entretanto, não chegam à maioria dos leitores (Abreu, 2006), outras chegam pelo viés das adaptações literárias, e outras pelo processo de apropriações por outros textos ou meios que não os impressos. Afinal, quem não conhece, por exemplo, a história de Romeu e Julieta, apropriada por outros autores na literatura, pelo cinema ou TV, pelos cordéis, pela música e até pela indústria gastronômica? Os clássicos adaptados, portanto, remetem a um repertório hierarquizado de livros canônicos venerados, mudando, entretanto, a forma como se estrutura textualmente esse material para se chegar ao leitor. Tal procedimento se estabelece nas práticas de leitura há alguns séculos, e, notadamente, hoje se verifica uma grande quantidade dessa produção no mercado brasileiro. A instituição encarregada de manter e difundir o cânone tradicional da leitura é, sobretudo, a escola. As novas formas de ler são criadas, levando-se em conta as categorias intelectuais que asseguram a compreensão da obra pelo destinatário. Nesse aspecto, a escola promove a democratização do acesso ao clássico pelas adaptações, um processo de ruptura, mas também de continuidade de um texto clássico. A adaptação enquanto “fórmula editorial”, no sentido atribuído por Chartier (1990)2, se estabelece como um modo de composição do texto a fim de atender às expectativas de um certo grupo de leitores - os iniciantes, por exemplo. Para a realização desse fenômeno, são consideradas diferenças de natureza linguística, cultural, temporal, espacial, e até ideológica, o que possibilita a produção de um outro texto, permitindo a sobrevivência do “primeiro”, o integral; bem como promove a valoriza-

Seguindo a sugestão de Chartier, Abreu (2008) revela que emprega o termo “fórmula editorial” para denominar a editoração da chamada “literatura de cordel”. Para ela, as histórias de cordéis e folhetos não pertencem a um gênero literário, e sim a um gênero editorial. Ao passo que defendemos que, embora se trate de uma “fórmula editorial”, uma estratégia de reescrever textos para se adequarem a determinado público, as adaptações de clássicos literários são, necessariamente, originários da Literatura, e não perdem tal estatuto ao serem reescritas. 2


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ção da cultura humana ao tentar garantir a leitura dessas obras por meio de um outro artefato. Não seria possível examinar-se o panorama das adaptações no Brasil sem que se voltasse a atenção para quem as produziu e as fez circular entre os leitores. Desde o surgimento da atividade editorial em nosso país, oficialmente implantada em 1808, com a imprensa Régia, as reescrituras de obras estrangeiras são produzidas em terras brasileiras, e os editores, naturalmente, não ficaram inertes ao novo filão mercadológico, estimulado, inclusive, no entre-séculos, por uma nova categorização profissional que aqui se formava: o de escritor voltado para o corpo discente das escolas reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno (Lajolo e Zilberman, 1985). Cecília Meireles (1984), no começo da década de 50 do século passado, discutindo sobre os problemas da literatura infantil, já afirmava que os livros que constituem a “‘biblioteca clássica’ das crianças foram selecionados por elas. Muitos traziam inicialmente, esse destino; outros que o traziam, foram postos de lado, esquecidos. Ainda outros, envelheceram: serviam ao leitor de uma época, não ao de todas as épocas”. Passado mais de meio século, os livros destinados à categoria infantil se multiplicaram, e, dentre as obras que permaneceram e as novas produções feitas especialmente para este público, perduram muitas narrativas adaptadas. A necessidade de reescrever tais obras surgiu a partir do aparecimento da infância como uma idade que requeria tratamento diferenciado, assim, o mercado livreiro, com a anuência da escola, passou a oferecer os livros com status especificado ao reconhecimento desse novo público leitor que se formava. A história da leitura dirigida às nossas crianças - assim como aos jovens - no universo escolar, portanto, confunde-se com a história das adaptações dos clássicos literários, uma vez que o público infanto-juvenil é o maior destinatário dessas publicações, conforme atestam os catálogos de muitas editoras. Como as adaptações estiveram intimamente ligadas aos propósitos didáticos, naturalmente trataremos de forma prioritária de seu destino escolar, embora reconhe-


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çamos que tais textos não serviram, e não servem apenas a esse contexto, se considerarmos que as modalidades de leitura aplicadas à escola não são universais. Não podemos nos esquecer de que, antes de serem escritas para a ambiência institucionalizada da escola, algumas narrativas, hoje estabelecidas no sistema literário, já faziam parte do imaginário popular, portanto, recontadas oralmente de geração em geração no ambiente familiar. Na França, por exemplo, um estudo revelou que a leitura era promovida pela Igreja e pela família mesmo entre as classes menos escolarizadas, como a das moças (Certeau, 2000)3. Considerando a perspectiva voltada para a relação histórica entre adaptação, leitura e escola, observa-se esta instituição como responsável pela prática de leitura por meio de reescrituras e intervenção editorial de clássicos literários, o que a torna uma prática legítima. Em vista disso, assim como o Estado brasileiro, em seu ordenamento político educacional, a indústria editorial promove campanhas ou cria projetos de incentivo à leitura, ao promover uma maior produção e extensa circulação de livros, criando um público cada vez mais amplo de leitores. Nessa perspectiva, ambos os segmentos apostam no crescimento e difusão da leitura, incluindo na escolha o corpus de obras pertencentes ao cânone. Por razões diferentes, tanto um quanto outro funcionam como instâncias de poder que determinam os textos veiculados no mercado editorial, servindo como mediadores na aquisição e utilização desse bem cultural. No que se refere às adaptações, parece haver uma espécie de concordância silenciosa entre a escola e as editoras sobre a escolha das mesmas obras, dos mesmos títulos, se levarmos em conta a lista homogênea de livros que aparecem nos catálogos anualmente, encarregados de divulgar e fazer circular os livros no universo escolar. Nessa medida, as adaptações de textos literários podem ser vistas como instrumento que concorre para a formação do gosto artístico também desses leitores, preparando-os para serem consumidores das Belas-Letras. Por outro lado, alcançar a beleza estética talvez não seja a única pertinência de se lerem os clássicos. Afinal, a leitura propõe aspirações incontáveis e inconfessáveis, e, nes-

Segundo Certeau, embora a escola tenha tentado unir as capacidades de ler e escrever no passado, apenas no século XIX foi possível, de fato, uni-las. 3


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se aspecto, a literatura carrega muitos exemplos com esse tema: Madame Bovary, Balzac e a Costureirinha Chinesa, A Normalista, Os contos proibidos do Marquês de Sade. Os exemplos mostram que a partilha da literatura não é a mesma para todos os leitores, ainda quando o suporte é o mesmo. Assim, é ilusória a crença de que o texto é um objeto que produz apenas uma única e invariante leitura; ou ainda, para aqueles que consideram adaptação uma violação à integridade dos textos primeiros, a ideia de julgarem que a obra vai ser traduzida − e lida, necessariamente, na íntegra. Dessa maneira, os suportes determinam e mudam as leituras, mas, ainda que permaneçam os mesmos, as leituras são diversas, conforme seus leitores e o sentido que se revela para cada um deles. Para uns, ela pode ser objeto de saber e conhecimento; para outros, objeto de divertimento e fruição; e, ainda para outros, apenas realização de seus desejos. Nesse aspecto, poderíamos indagar até que ponto a leitura sempre marcada pela sua utilidade não se constituiria um exercício de poder. Destacando a importância das adaptações, Coelho (1996) cita, além dos contos de fadas que se tornaram “clássicos” e foram reescritos adquirindo validade humana universal, muitos outros textos, como os mitos greco-latinos, os mitos indígenas, feitos históricos, mais uma série de obras cujos heróis se teriam transformado em mitos na história da leitura, entre os quais Hamlet, A despeito do que se pense de que as adaptações podem simplificar, empobrecer ou falsificar a obra primeira, os discursos apresentados colaboram para relativizar essa concepção negativa, demonstrando a legitimidade dessa leitura. A aprovação governamental também lhe confere alcance e credibilidade. Os selos de aprovação e indicação governamental das adaptações nas escolas são indícios de que atendem aos propósitos no esforço de democratizar o acesso aos clássicos. Há, por exemplo, os livros da coleção Literatura em Minha Casa, formada por clássicos universais, entre os quais: Os miseráveis, de Victor Hugo, traduzido e adaptado por Walcir Carrasco; A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, adaptado por Claire Ubac; Ali Babá e os quarenta ladrões, adaptado por Luc


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Lefort; O mágico de Oz, de L. Frank Baum. Embora haja toda uma resistência em relação aos textos adaptados, o fato não impede que esse novo texto se fortaleça como outro suporte para leitura - outras categorias de se ler -, conforme atesta o próprio Estado, que institucionaliza a adaptação de clássicos. A aprovação governamental não é a única que confere às adaptações alcance e credibilidade, pois se registram as aprovações oriundas também da iniciativa privada, a exemplo do Serviço Social da Indústria. Estruturado em base federativa para prestar assistência social aos trabalhadores industriais em todo o país, o SESI lançou este ano, pela Editora L&PM, a coleção “É só o Começo”4 formada por nove títulos adaptados, quais sejam: Romeu e Julieta, de Shakespeare; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; Dom Quixote, de Cervantes; O Alienista, de Machado de Assis; O Guarani, de José de Alencar; A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; além de Garibaldi & Manoela: uma história de amor, de Josué Guimarães. Essa entidade privada, que mantém pela indústria brasileira a Educação Infantil, Fundamental e Continuada do País, informa ainda, na contracapa dos livros, que a coleção foi desenvolvida por pedagogos, professores, editores e críticos literários. Com isso, em se tratando de uma coleção que visa “fortalecer as atividades dos professores com instrumentos reais e eficazes na formação dos nossos leitores”, tenta assegurar a qualidade dos textos adaptados. A intenção do SESI, em relação às adaptações, é esclarecida antes de lermos as obras, pois sua indicação “aos nossos leitores” e “aos professores” mostra que, para estes últimos, os livros da coleção devem fazer parte na “formação dos seus alunos e no enriquecimento dos seus planos e programas didático-pedagógicos”; e, para aqueles, com o objetivo de facilitar o seu acesso ao livro e fazer com que se “conheça os grandes autores e suas inesquecíveis obras”. Em sua configuração impressa, as nove obras da coleção “É só o começo” trazem o nome do autor, seguido do título, mas acompanhadas do inscrito “versão adaptada para novos leitores”, que, em nota editorial, é assim justificada:

Esta coleção também fez parte do Projeto “Leituração”, criado pelo MEC em 2003, cujo objetivo era “publicar regularmente adaptações da literatura brasileira e mundial, escritas em linguagem simples, própria para jovens e adultos recém-alfabetizados”. Disponível: http://mecsrv04.mec.gov. br/ Acesso 30/08/2009. 4


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Esta edição foi baseada na versão integral do texto de [...]. O texto original foi reduzido, e a linguagem foi adaptada para um público específico, de neoleitores, segundo critérios linguísticos (redução do repertório vocabular, supressão ou mudança de pronomes, desdobramentos de orações, preenchimento de sujeitos, etc.) e literários (desdobramento de parágrafos, eventual reordenação de capítulos e/ou informações, ênfase na caracterização de personagens, etc.) que visam oferecer uma narrativa fluente, acessível e de qualidade.

Carvalho (2006), a partir de um levantamento bibliográfico, apresenta uma ampla pesquisa acerca do panorama quantitativo das adaptações literárias no Brasil no período de 1882 a 2004, correspondente a um número de 899 livros adaptados, formado por 342 títulos. 5

Graças a esse processo, obras relegadas a um público leitor privilegiado chegam a outros leitores pelo viés da reescritura. Ao dispor de maior liberdade para empreender mudanças em um texto adaptado, não significa, contudo, que o adaptador se dispa da sensibilidade estética e a descaracterize dessa atribuição de que está investida a obra de partida. Ademais, a adaptação é um constructo formal e histórico, e o fato de não a reconhecermos como gênero literário legítimo é alimentar a ilusão de que se pode anular da história certos gestos de leitura e comunidades de leitores que se utilizaram e se utilizam dessa forma de ler. Com a análise dos catálogos de editoras de grande acesso mercadológico no Brasil, é possível observar o volume de adaptações5 que são publicadas atualmente no país destinadas ao público leitor escolar. As adaptações, nesse sentido, implicam outras formas de se ler, estabelecendo sentido entre texto e leitor em virtude de sua materialidade, possível pela nova produção cultural, pela reescritura. Tal fato corrobora a posição defendida por Chartier, que perpassa na maioria de suas obras, ao tratar das práticas de leitura, dos livros e dos materiais impressos, de que o texto não atua sobre o leitor por si só, mas através de uma materialidade que contribui no processo de construção de sentido do leitor. Embora a forma narratológica, notadamente o romance, tenha ocupado um lugar privilegiado, outras estruturas formais também foram eleitas para serem adaptadas aos propósitos dos leitores. Nesse aspecto, verificamos que a adaptação não contempla apenas os tradicionais gêneros textuais escritos consagrados ou outras formas de interartes, como a música, o cinema, as artes visuais, mas


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também novas formas artísticas, ainda que sem lugar assegurado no sistema acadêmico. No portal eletrônico da Academia Brasileira de Letras, entre as várias seções no espaço destinado a Machado de Assis - Biografia, Bibliografia, Produção Acadêmica, Machado na imprensa, Machado na ABL - encontra-se o item Adaptações, envolvendo os diversos suportes nos quais são apresentadas recriação de obras machadianas nas seguintes categorias: Literatura e HQ (História em quadrinhos); Cinema, TV e Vídeo; Teatro e Ópera; Música e Dança; LP e CD; e, por último, Rádio. Todos esses suportes é uma clara demonstração das várias possibilidades de leitura da obra machadiana. Na divisão denominada Literatura, é apresentada desde a bibliografia de Memórias Póstumas de Brás Cubas e O Alienista, lançadas na Coleção Clássicos em Cordel pela Editora Nova Alexandria, até a Coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos, publicada pela editora Escala Educacional; esta última com indicação do link da referida editora para os internautas leitores que se interessarem por ler Machado em HQ. Na divisão nomeada HQ, é possível perceber que se repete o anúncio da coleção em quadrinhos, acrescentando os nomes dos dois contos de Machado de Assis - Uns braços e O enfermeiro - e o nome do desenhista e adaptador, Francisco Vilachã; responsável também pela adaptação de Ideias do Canário, com orientação do site onde está disponibilizado o conto. O termo adaptação aqui assume um significado vasto. É atribuído à produção de Machado de Assis, recontada sob muitas formas, que circulam em vários suportes; mas também pode ser sinônimo de resumo em, por exemplo, no conto Ideias do Canário em que o quadrinista sintetiza a sua criação: “Eis aqui o resumo da narração”. Ademais, no campo da Literatura, a Academia Brasileira de Letras, além de reconhecer, autoriza a leitura de um texto literário pelo viés das histórias em quadrinhos. Em nossa pesquisa também verificamos que, nos catálogos de algumas editoras, as adaptações de clássicos também estão disponibilizadas em HQs. Sobre as Histórias em Quadrinhos, embora na última década de 90, quando foi criado o Programa Nacional


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O PNBE, cujo objetivo é promover “o acesso à cultura e o incentivo à formação do hábito da leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência”, atende desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, distribuindo obras que incluem textos em prosa (novelas, contos, crônica, memórias, biografias e teatro), obras em verso (poemas, cantigas, parlendas, adivinhas), livros de imagens e livros de Histórias em Quadrinhos. Em 2009, as publicações foram distribuídas para as séries/anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio. Já em 2010, será a vez das escolas de Educação Infantil e de séries/ anos finais de Ensino Fundamental receberem. Disponível: http://lce.mec.gov.br/. Acesso 03/08/2009. 7 Sobre a avaliação e a seleção das obras do PNBE 2009, segundo informa o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, foram realizadas pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também contribuíram mestres e doutores de São Paulo, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, profissionais com múltiplas experiências, entre as quais a docência na educação básica e a formação de professores. Disponível: http://www.fnde.gov.br/ Acesso 03/08/2009. 8 Cf. artigo “E os gibis contra -atacam”, extraído da revista Língua Portuguesa, edição 46. 6

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Biblioteca da Escola6, do MEC, já pudesse adotar HQs em sua lista, somente a partir do edital do PNBE/2006 esse gênero passou a fazer parte dos títulos adquiridos pelo Programa com 14 obras. Desde que viraram política governamental, o número cresce, integrando as listas de compras pelo programa do Governo que distribui livros às bibliotecas da rede pública. Conforme dados apresentados pelo MEC, em 2008 foram selecionadas 16 obras de narrativas em quadrinhos e, este ano, chegam a ser 23, entre os 540 publicados, os títulos que chegarão às escolas, do Ensino Fundamental II7. Segundo atesta o diretor de políticas de formação, materiais didáticos e tecnologias da Secretaria de Educação Básica do MEC, Marcelo Soares, “o que permitiu a entrada dos quadrinhos no programa foi o aporte de recursos e a convicção de que HQs são importante ferramenta para o desenvolvimento do gosto pela leitura.” Ele ainda acrescenta que “a linguagem provoca o aluno a ingressar com prazer no universo literário”8. As Histórias em Quadrinhos, ou “a nona arte” como citam alguns, legitimadas, portanto, pela política de governo, que abastecem as bibliotecas escolares, entram na sala de aula como prática de leitura capaz de atrair leitores iniciantes a adentrarem desde cedo no mundo da literatura. Refletindo sobre histórias, autores e textos para jovens leitores do Brasil, que passam diretamente pela discussão a respeito da relação leitura e escola, Lajolo e Zilberman (1988, p. 11) afirmam que é delegada “à sala de aula e aos ombros do professor a responsabilidade maior pela implantação de bons hábitos de leitura ou pelo desenvolvimento do gosto de ler, como formulam recomendações pedagógicas desde o fim do século passado até nossos dias”. A escola, portanto, justificada, a princípio, pela ausência de material didático, conferiu seu prestígio de instituição às adaptações de clássicos literários, espaço fértil para consumidores desse tipo de texto, e até hoje continua a fazê-lo. Para desenvolver essa prática de leitura que possibilita a aproximação entre o adolescente e o texto literário, provocando a significação dos textos e a instrumentalização dos alunos para a leitura, propomos a leitura de obras


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literárias mediadas por meio do mecanismo de adaptação. Considerando as dificuldades naturais de muitos leitores de se aproximarem de grande parte da tradição literária, recomendamos uma leitura por intermédio das adaptações. Essa maneira de ler os clássicos literários, grande filão da indústria cultural que promoveu incontáveis títulos no Brasil no Dezenove, quando foi fundada a imprensa em nosso país, continua a dar a ler um bom número de narrativas clássicas nos dias de hoje. Dessa forma, a adaptação para os jovens leitores não é uma modalidade nova na história da leitura, pois surgiu muito antes do desenvolvimento da literatura infantil, quando não havia leituras exclusivas para essa categoria, mas práticas adotadas por esse público de leitor que revelava sua especificidade. Dentre tais práticas, encontram-se as histórias folclóricas de origem camponesa, denominadas pelos românticos do século XIX de “conto de fadas”, que foram reformulados de várias formas, para se enquadrarem nos padrões de cada época. Além dos contos maravilhosos, há outros gêneros que, ao longo da História, foram reescritos e apropriados, como as fábulas e outras narrativas, as quais até hoje servem aos nossos leitores iniciantes, publicadas em materialidades diversas pelas editoras.

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Ensino da escrita de poesia como construção de autoria J. Buarque*

Resumo: O ensino de poesia é restrito à leitura. Para repensálo, propomos discuti-lo na Educação Básica por outra via: a da prática escrita de poemas. A partir desse objetivo, tratamos sobre formar o “aluno escrevente”, não o poeta. A proposta se fundamenta no princípio de que poesia é arte e, como tal, pode e deve ser ensinada para que produza no aluno real efeito de apreciação, análise, interpretação e explicação literária. Ensinar pela prática da arte leva o aluno, como aquele que escreve e, logo, lê, ao desenvolvimento de autoria, da capacidade de dar acabamento a certos acontecimentos do mundo a partir de uma posição axiológica, como nos orienta Bakhtin, teórico de base de nossa pesquisa. Observamos que ao orientar o “aluno escrevente”, podemos nos ocupar do ensino das escolas literárias, da estrutura do texto literário, da relação entre Literatura e contexto empírico, e da seleção canônica de autores e obras de modo presentificado, sem que essas linhas de força do ensino padrão de Literatura pareçam um equívoco patente. Concluímos, a exemplo do ensino de outras artes na escola, que a eficácia do que se faz atualmente apenas tornaria a poesia protagonista de seu ensino se ela fosse levada à prática. Palavras-Chave: Ensino de poesia, aluno escrevente, escrita do poema.

Professor Adjunto III de Teoria e Ensino de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (FL/UFG), bem como do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL) da referida instituição. *

Abstract: The teaching of poetry is closed in reading. To rethink it, we discuss it in the Elementary and High School by practice of writing poems. With this aim, we think in to educate the “scribe student”, but not the poet. The proposal is based on the principle that poetry is art, therefore, can and should be teached to the student for produces real effect by literary fruition, analysis, interpretation and explanation. Teaching the practice of art takes the student, as one who writes and reads, develop yours authoring as ability to assume an axiological orientation in aesthetic activity about the life, according Bakhtin , our theoretical base to research. We note that for educate the “scribe student” can teach about literary


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schools, the literary structure text , the interrelationship of literature with empirical context , and the choice of canonical authors and works without those lines from standard teaching by Literature seem a blatant mistake. We conclude that the effectiveness of teaching poetry just makes the protagonist if it is put into practice, such as the teaching of other arts in school. Keywords: Teaching poetry, scribe student, writing the poem.

Congressos, seminários, simpósios, bem como revistas especializadas (acadêmicas e de circulação comercial), livros e programas de disciplinas dos cursos de graduação e de pós-graduação em Letras e Linguística se apresentam com discussão, descrição, crítica e estratégias a respeito do ensino de Literatura na Educação Básica, notadamente quanto à prosa de ficção e à poesia. Em uma primeira observação, parece que a Literatura é protagonista desse cenário. No entanto, o corpo mais presente e em ação diz respeito às estratégias de ensinar, ao que se chega pelo caminho da discussão, descrição e crítica. Quanto a este último ponto, comumente se considera o ensino vigente negativo por se concentrar na descrição característica das chamadas escolas literárias, bem como por se fundamentar em um cânone cuja seleção de autores e obras é apenas repetida sem debate. Habita o interior da protaganização das estratégias, a discussão em torno do leitor, no sentido de que o ensino de Literatura não realiza efetivamente o chamado letramento literário. Isso tudo, por parte dos meios, instituições e sujeitos que se dedicam ao que está posto, é dado com legítimo interesse de transformação – deseja-se realmente construir uma sociedade leitora de Literatura, uma sociedade que aprecie a Literatura integrada à vida em geral, em suas nuanças públicas e privadas. Contudo, ainda que o dedo contra o Estado e suas políticas de ensino esteja sempre em riste, não há uma rebelião instalada, pois, não-raro, a carência de autocrítica por parte de muitos dos sujeitos que se preocupam e se ocupam do problema cega-os diante do fato de que são agentes do ensino de Literatura. Fundamentados no andamento de nosso projeto de pesquisa “Estudos de poesia: subjetividade, recepção,


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Doravante: Rede. É importante acrescentar que a Rede, a depender da ação em curso, recebe auspícios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). 2 Tomamos esse termo emprestado da Crítica Genética (LEBRAVE, 2003; 2006; WILLEMART, 1993, 2002; ZULAR, 2002), porquanto diz respeito ao processo de criação, cujo resultado é o escrito. Quer dizer: a escritura é concernente a todas as etapas ou fases da criação verbal (impulso, plano, arquivos, rascunho, rasura, colagem, corte, seleção, técnicas de escrita, experimentos etc.), enquanto o escrito (poema, romance, conto etc.) é aquilo dado como produto final (definido ou temporário) daquele processo. 1

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ensino e criação” –, considerando projetos inclusos sob orientação (de licenciatura, bacharelado, mestrado e doutorado) e também duas disciplinas, sendo uma de pós-graduação e outra de graduação –, bem como nos estudos da “Rede Goiana de Pesquisa em Ensino e Leitura de Poesia”1, não deixamos de nos inscrever em muito daquilo que acabamos de apresentar. Contudo, temos algumas ressalvas. Dentre elas: não julgamos que o ensino das chamadas escolas literárias, assim como o ensino do cânone, seja necessariamente um equívoco, e muito menos um erro. E, embora seja de fato devida a relevância dada à recepção, porque põe o leitor em foco, ressalvamo-nos de que tanto o ensino de Literatura no processo de formação do profissional em Letras quanto seu ensino na Educação Básica é pautado na leitura, de modo a pouquíssimo considerar, quando não preterir ou até se indiferenciar à escrita. Propomo-nos, portanto, a tratar mais especificamente do ensino de poesia, pondo em tese que para a Literatura se tornar protagonista de seu ensino ela precisa ser praticada durante o processo de educação. Sobre isso, cabe considerar que o aluno escrevente, assim como o poeta, inscreve-se, simultaneamente, no polo de produção e no polo de recepção, pois quem escreve, lê. Observaremos que a poesia pode muito bem ser avaliada, assim como pode integrar o processo de avaliação do aluno no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades e de competências sobre o conhecimento de Língua e de Literatura. Se há uma seleção canônica de poetas e obras, se há concursos e prêmios literários concernentes à criação poética, bem como há apreciação crítica mais positiva sobre certo poeta, livro de poesia ou poema em comparação a outros, logo, há evidente princípio de avaliação. Se há princípio para ler, quer dizer, para desenvolver crítica (apreciar, analisar, interpretar e explicar), há, portanto, princípio para escrever. E, assim como uma teoria da leitura deve ser sensível à variedade de poemas existentes, uma teoria da criação também deverá ser sensível a uma variedade de escrituras2. Cabe nisso não exatamente derruir os conteúdos do conhecimento de Literatura quanto ao ensino de poesia. Não se trata de, por exemplo, deixar de descrever e mostrar como e por


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que Gonçalves Dias é romântico em relação a como e por que Castro Alves o é de outro modo, bem como deixar de proceder da mesma maneira em relação a esses dois poetas e Camões, dentre os clássicos da Língua Portuguesa, e Drummond, dentre os modernos. Também não se trata de deixar de lado Camões, Gonçalves Dias, Castro Alves e Drummond, porque canônicos, para substituí-los por Pero de Andrade Caminha, Sousa Caldas, Laurindo Rabelo e Gilka Machado, porque preteridos ao largo do processo de seleção de poetas relevantes da Língua Portuguesa. Cabe, na verdade, levar o aluno a intervir nesse conjunto, não apenas lendo poemas para responder questões de atividades analíticas, mas escrevendo poemas à maneira de, primando pela comparação entre o modo de compreender e lidar com o mundo por parte do aluno em relação aos poetas, poemas, épocas, estilos estudados. Nesse sentido, processualmente o aluno desenvolverá autoria como capacidade de dialogar textualmente com o mundo, o que não tem como expectativa torná-lo poeta. Aliás, este último ponto é óbvio, como já observou Drummond (1974) a respeito, e ainda assim merece destaque, pois sempre é preciso enfatizar que não se orienta a Arte-Educação na escola na vã e desnecessária esperança de que os alunos se tornem escultores, pintores, músicos, dançarinos, atores3. Isso pode ser considerado em analogia à Educação Física, que não tem como finalidade formar atletas, mas educar o corpo e promover a saúde. Se toda sorte de conhecimento escolarizado tivesse como finalidade a profissionalização especializada, a escola jamais deveria congregar conhecimentos e muito menos interdisciplinarizá-los, pois, ao estudar matemática, geometria e trigonometria, o aluno seria obrigado a especializar-se em ciências exatas, e isso poderia entrar em conflito com o estudo de história e filosofia, por exemplo. Em tempo: a escrita de poesia se ensina (LONGINO, 1996), do contrário, poesia não é arte, dado que se ensina a cantar, a dançar, a pintar etc. Para que esse princípio seja eficaz em âmbito escolar, é preciso considerar as quatro linhas de força no ensino de Literatura na Educação Básica, a saber: o ensino das chamadas escolas literárias, o ensino da relação entre Literatura e o contexto na qual

A afecção que a arte em geral produz sobre os indivíduos, no sentido de tornar um apreciador em um produtor, quer dizer, fazer o leitor de poesia (inclusive aquele que arrisca um versinho ou outro) tornar-se poeta, é demasiado microfísica para ser dada teoricamente a ponto de tratar de todos os casos. 3


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“Explicação”, neste artigo, segue a ressalva a seu sentido dada por Macherey (1971, p. 75-79), a respeito de atender à pergunta “Como é feita a obra?”, sobretudo porque estamos fundamentados em princípios de autoria e de subjetividade quanto à atividade criativa da escrita poética. Devido a isso, na escala do processo de leitura, a “explicação” se encontra no ponto final, aquele que de fato daria conta da obra. 4

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está inscrita, o ensino da estrutura literária, e o ensino de uma seleção canônica de autores e obras. Isso é feito via leitura, e pouquíssimo ou de modo algum via escrita. Peca-se, é fato, em muito concentrar-se nesses conteúdos e pouco na leitura de obras literárias propriamente ditas. Contudo, apenas a leitura de obras em ambiente de debate não tornaria a Literatura protagonista de seu ensino, se sua prática, quer dizer, sua escrita não estiver em cena também. Além daquelas linhas de força, porque não são necessariamente equívocos – como já dissemos –, mas também não compreendem um modelo estanque, deve-se acrescentar a relação entre Literatura – em nosso caso, especificamente poesia – e a experiência do vivido, bem como se deve convocar para o diálogo autores e obras preteridas pela seleção canônica. Desenvolver essa discussão envolve tratar de autoria e da tomada do processo de leitura (apreciação, análise, interpretação e explicação4) por inversão, no sentido de gerar um efeito de não somente olhar para o objeto (o poema), mas também de produzi-lo. Para tratar de autoria, partimos de Bakhtin (2010, p. 173-192), quanto ao ensaio “O problema do autor”. A primeira coisa a destacar a respeito é a distinção entre autor-pessoa e autor-criador. Dado um aluno, é preciso ter em mente que este é um sujeito escrevente em potencial. Como tal, ele tem pessoalidade, história e socialidade relativas a sua língua, cultura local e geral (mais restrita, a regional; e mais ampla, a nacional), bem como a sua vida doméstica (sempre relativa à vida comunitária, porque envolve a vizinhança, os parentes e, não-raro, igreja ou outros grupos constelares) e aquilo que está em curso segundo as políticas públicas de ensino da Educação Básica. Uma vez alfabetizado e em processo de letramento, quer dizer, orientado a ler e a escrever processualmente a seu desenvolvimento sócio-cognitivo e intelectual-emotivo, esse aluno sai de seu estado de potência como escrevente e entra no estado de ação como tal. Se nosso hipotético aluno se torna, por exemplo, Manuel Bandeira, ele é o escritor, o poeta – um indivíduo como pessoa física, com inscrição cidadã reconhecida. Reservadas as diferenças entre ser criança ou adolescente em relação a ser adulto,


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o aluno escrevente equivale ao poeta. Já o autor-criador é uma função estética que engendra a obra de arte da criação verbal. Em poesia5, essa função equivale a dar forma – logo, a materializar pela linguagem verbal – a uma relação entre o que se convencionou chamar de “eu lírico” – que é uma instância do enunciado – e o mundo que lhe diz respeito, quanto a configurar aquilo que Bakhtin chama de presença ou orientação axiológica, quer dizer, uma posição de avaliação ética na contingência de confluência entre o autor-pessoa e o autor-criador, o que sempre diz respeito à sociedade de certa cultura em dada época. Nesse sentido, observe-se que “O autor ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse acontecimento” (BAKHTIN, 2010, p. 176). A estratégia do autor para atingir isso é a de dar um acabamento (de formar uma imagem via condensação pela linguagem verbal) a uma imagem do mundo, o que produz uma realidade autosuficiente, mas jamais indiferente à realidade mesma. Ciente desse processo, o mediador – aquele que ensina na escola, ou seja, o professor – precisa se instalar no ensino de poesia, previamente à orientação pedagógica, na mesma ordem. Quer dizer, deve ele se colocar na condição de autor. Vejamos isso observando a conduta criativa. O poeta sempre olha algo, alguém, o mundo. Sempre o mundo que lhe é conhecido. Mesmo quando imagina, quando escreve aquilo que se considera fantasioso, o poeta o faz a partir do mundo que ele conhece, pois se diz absurdos – como fazia Zé Limeira – ou se diz algo muito “estranho” à experiência inteligível ou sensorial mais geral – como faz Manoel de Barros –, o poeta realiza tais coisas pela linguagem verbal como obliteração, deformação, fuga ou o que o valha a respeito do mundo por ele conhecido – afinal, “por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para o que a palavra deve ser superada por via imanente como palavra, deve tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação do autor com esse mundo” (BAKHTIN, 2010, p. 180). Assim, se em um dado poema uma vela canta, é porque, por exemplo,

Bakhtin não trata desse gênero, dado que se ocupou em sua obra teórico-literária, basicamente, do romance. No entanto, ele dá abertura a fundamentos gerais da criação verbal. Ele entrevê, ainda que muito de passagem, a poesia (a lírica) e, por isso, permite-nos construir elementos teóricos mais especificamente a respeito da autoria do poeta. 5


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pessoas ou pássaros cantam. Logo, a vela é dada como uma pessoa ou um pássaro, ou se um poema diz de um homem sem sombra, o que é um absurdo, diz porque há homem e sombra – aquela imagem, pois, produz sentido por uma obliteração que nega um fato do mundo conhecido: os homens têm sombra. O olhar do poeta é principalmente o saber, o conhecer que mantém na memória e na lembrança. Embora os historiadores comumente tratem da memória como algo do domínio individual integrado indistintamente ao domínio coletivo, distingui-la da lembrança produz efeito mais objetivo para nossa proposta, porque a prática poética no curso da história, sobretudo a prática da lírica, mostra-se como exercício de subjetivar o mundo e aquilo que é deste. Isso significar tomar o mundo para pertença e dar-se à pertença dele, assumindo uma posição axiológica mediante certos acabamentos da vida. Consideramos que a memória contém imagem ou conjunto de imagens que habita um lugar acessível ao pensamento reflexivo, crítico, objetivo ou racional dos indivíduos. Ao descrever que “A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos (…) ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações”, Pierre Nora (1993, p. 9) nos faz observar que, por mais que a memória emane da espontaneidade, ela se inscreve em uma intensa relação com o pensar. A memória se instala na mente pelo que vivemos, experimentamos, aprendemos no passado, porém, porque viva, porque sempre estamos na atividade de exercê-la, ela “é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente” (NORA, 1993, p. 9). Isto de vivido, experimentado, aprendido no passado que sempre se apresenta de modo presentificado toma uma forma na mente, uma forma algo que objetal, às vezes de monumento, uma forma de coisa, de evento, de fato, uma forma substantiva. Contudo, porque viva, a memória se materializa com o impulso da lembrança. Esta é aquilo que se manifesta repentinamente em nossa mente. A lembrança acontece na memória tornando o


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passado tão presente que ele chega a acontecer de novo no sentimento. É como se a memória fosse uma vida que constantemente se sabe viva e se dinamiza em um presente que não se encerra, enquanto a lembrança é uma vida que muito repentinamente se manifesta a partir de dentro da memória. Esta e aquela atendem, em criação poética, a dicotomias várias, tais: injunção e inspiração; emoção intensa que faz cantar falando e música que se faz com ideias; esforço, ou rigor ou arquitetura e espontaneidade, ou irrupção ou impulso. Sobretudo em termos educacionais, o que Pierre Nora chama de “dever de memória”, porque “faz de cada um o historiador de si mesmo” (1993, p. 17) é fundamental para aliar a atividade de prática poética como autoconscientização da identidade, principalmente se exercido (o “dever de memória”) em comunhão com a lembrança, porque intima o sentimento de pertença a um grupo. A memória e a lembrança correspondem ao direito de exercer a humanidade porque decorrem da experiência do indivíduo em sua condição de gente em inter-relação com sua experiência do vivido socialmente, uma vez que uma e a outra se integram e somente acontecem de existir na história, porque somente há alguém quando diante de outrem consubstanciados em um conjunto unitário, em conjuntos de intersecção e como singularidades. Alguém, pois, somente existe porque está na história como ser humano, indivíduo de certa inscrição identitária coletiva e sujeito singular dotado de particularidades em simultânea dialética e dialogia às generalidades. Pensando no caso de Manuel Bandeira, não dá para dizer que foi simplesmente um poeta que diante da vida de repente via que um poema estava ali em algo, em alguém, em um fato etc., dado que ficou conhecido como um “poeta inspirado”. Ainda que se acredite na anedota de Michelangelo, aquela em que este diz ter visto um anjo no mármore e esculpiu a pedra até libertá-lo, é patente que há no processo de criação artística atividade intelectiva, e não apenas mãos animadas sui naturalis que revelam uma peça apenas fruto da intuição. A importância que o poeta inspirado confere ao que de repente lhe ocorre, ao que de repente suscita emoção ou que provoca a sensibilidade é, propriamente, decorrente de um método. Este, visto que


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partimos de Bakhtin, procede em gerar um acabamento que corresponde àquilo que o autor assume como posição axiológica no mundo pela via de uma exotopia, dado que: “[n]enhum entrelaçamento de procedimentos literáriomateriais (…) concretos (…) pode ser entendido do ponto de vista de uma lei literária esteticamente estreita (…), isto é, pode ser interpretado apenas a partir de um autor e de sua energia puramente estética” (BAKHTIN, 2010, p. 1983). O chamado “poeta inspirado”, nesse caso, embora seja a pessoa de quem a lembrança emana, assume na escrita uma posição que lhe é externa, porque encerra a lembrança em uma forma acabada em específico, que jamais é igual à lembrança toda, principalmente porque é expressa via linguagem verbal e porque assume a responsabilidade de sensibilizar, de dizer respeito a outrem – tanto àquele que poderá ler o poema quanto àquele que é todo mundo no acontecimento do real. Logo, como autor, o poeta é alguém que media certa parte eleita pelo seu eu em relação à dada parte que diz respeito a outro, porque senão o poema será ilegível ou mera confissão informada. Justamente a memória assume o papel de geograficalizar método, saberes, experiência do vivido etc. como se tudo isso sempre estive estado aí do modo que se encontra hoje, à medida que a lembrança surge a partir de dentro desta geografia e sobre esta se espraia imprimindo o singular da intimidade no geral da identidade. A título de ilustração, consideremos o poema “O martelo”: As rodas rangem na curva dos trilhos Inexoravelmente. Mas eu salvei do meu naufrágio Os elementos mais cotidianos. O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei. Dentro da noite No cerne duro da cidade Me sinto protegido. Do jardim do convento Vem o pio da coruja. Doce como arrulho de pomba.


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Sei que amanhã quando acordar Ouvirei o martelo do ferreiro Bater corajoso o seu cântico de certezas. (BANDEIRA, 2006, p. 45)6

Observe-se o poema pelo título, “O martelo”. Da leitura, note-se que o mesmo não descreve o objeto que lhe dá título. Quer dizer, lendo-se o poema, não identificamos uma apresentação de um martelo, do que vem a ser este objeto, de como ele é nem de como deve ser um martelo. Também não identificamos uma expressão daquilo que faz um martelo nem sobre aquilo para que sirva um martelo, bem como não dá para saber, no poema, por que há martelos no mundo. Não há isso nem aquilo sobre os martelos em geral nem sobre um martelo em específico. De todo modo, o título especifica, determina, discrimina um martelo em particular, dado que diz “o”, e não “um” martelo. Note-se que o martelo propriamente dito ganha expressão apenas no penúltimo dos catorze versos. Podemos dizer que o eu lírico dado pelo poeta algo que se impressiona de um martelo em particular, de um dado ferreiro, e porque aquele objeto, sem dúvida, amanhã – decerto como diariamente – imprimirá certezas de modo muito resolvido, porque corajoso, ele tem relação com aquilo que ao eu lírico é garantido: a salvaguarda de seus “elementos mais cotidianos”, que certamente correspondem ao que está guardado em sua memória, tudo que vem do passado e que faz parte de sua intimidade, uma vez que esse passado está resumido no quarto (lugar particular, íntimo) desse sujeito “em todas as casas” que habitou. A convicção de que ouvirá o martelo do ferreiro amanhã é equivalente à convicção das coisas pessoais indeléveis que o eu lírico tem consigo. Acontece ao poeta, por algum motivo que não podemos mapear, dizer de suas coisas íntimas que são inexoráveis. Não sabemos que coisas são essas, pois não são ditas, mas sabemos que elas habitam sua memória, uma vez que se resumem de seu passado. Se o poema fosse encerrado no verso “Doce como um arrulho de pomba”, seria apenas uma confissão. Uma vez que essa confissão é dada em relação à convicção de que ouvirá

Este poema poderá ser consultado também em uma edição de seu livro de origem (Lira dos Cinquent’anos, original de 1942) ou em uma edição completa da poesia de Manuel Bandeira (Estrela da vida inteira). 6


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o martelo amanhã e de que deste ouvirá, “seu cântico de certezas”, o poema marca uma posição axiológica no mundo: o eu, que diz a confissão, por dizer disto, personaliza-se, mas também se despersonaliza, para dizer a outro que sua certeza é comum ao mundo, assim como são todas as certezas alheias. Para dizer que nossas certezas particulares são coisas que ouvimos no íntimo, necessariamente não precisamos falar do ranger de rodas de um trem, de um pio de coruja nem de uma batida de martelo. Esses elementos, para um poeta como Manuel Bandeira, decerto ocorrem do olhar que este confere ao mundo: um olhar sempre muito particular, muito íntimo, voltado para as coisas mais vizinhas, mais convividas. Isso, sem dúvida, é obra da espontaneidade, do impulso, da irrupção, do cantar falando que decorre de uma emoção intensa, da “inspiração”. Mas há nisso uma regra: o poeta se interessa por aquilo que lhe é mais íntimo, por aquilo que lhe acontece de sentir mediante àquilo com que convive na experiência mais comezinha. Logo, para escrever segundo Manuel Bandeira, é preciso pensar: há particularidades minhas ou um particular meu – que necessariamente não preciso descrever nem nominar – que me é tão certo a ponto de eu ser capaz de relacionar a algo que me é externo e com o qual convivo? O elemento externo principal é um objeto, cujo nome comum será o título de meu poema, a partir do princípio de que eu não descreverei esse objeto, dado que o relacionarei, em alegoria, àquilo que me é particular? Pensar sobre isso deverá orientar a conduta do mediador para auxiliar a ação de escrita do aluno. Evidentemente, essa orientação não levará apenas a escrever um poema a exemplo de “O martelo”, mas também a quando algo assim tomar corpo na emoção repentinamente, se o indivíduo no processo de letramento literário estiver inscrito em uma recursiva prática de escrita, aquela atividade deixará registrada no sujeito o efeito de permitilo se orientar quanto a exprimir-se em sua relação com o mundo e o outro. O propósito profundo de uma prática dessa natureza é educar os sujeitos para que consultem sua autoconsciência individual e para que investiguem e indaguem a consciência coletiva, pois, uma vez que a


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poesia está aí a pelo menos algo em torno de três mil e quinhentos anos sem nunca haver se dado como gênero utilitário, ela é capaz de resistir à força das ordens de poder que politicam a vida comum naturalizando saberes e valores de uma hegemonia de controle. Tomando especificamente a prática de escrita da lírica conforme mais consensualmente entendida, como voz poética de uma subjetividade que diz eu partir de si mesmo, aquele efeito que o aluno escrevente aprenderá com a atividade de criação anteriormente descrita será, decerto, mais eficaz, uma vez explicado pela seguinte observação de Bakhtin (2010, p. 187-188): (…) para a lírica, a crise de autoria sempre tem menor importância (…); a vida se torna compreensível e ganha peso de acontecimento apenas de dentro de si mesma, só onde eu vivencio enquanto eu, sob a forma de relação comigo mesmo, nas categorias axiológicas do meu eu-para-mim: interpretar significa compenetrar-se do objeto, olhar para ele com os próprios olhos dele, renunciar à essencialidade da nossa própria distância em relação a ele; todas as forças que condensam de fora a vida se afiguram secundárias e fortuitas, desenvolve-se uma profunda descrença em qualquer distância (…). A vida procura recolher-se ao esquecimento adentrando a si mesma, migrar para sua infinitude interior, teme as fronteiras, procura desintegrá-las, uma vez que não acredita na essencialidade e na bondade da força que forma de fora; rejeição do ponto de vista de fora7.

Logo, a criação pela lírica de tradição produz um efeito de entendimento do sujeito em relação a si mesmo, muito embora habite a discussão de Bakhtin um teor negativo, que faz saber dessa lírica como uma intestinação de si para si que se faz alheia ao mundo, dado que o esteta, a serviço de investigar a criação do romance, alheia-se do fato de que o eu lírico, como sujeito do enunciado, como autor-criador, como função semântica dada pela estética da linguagem verbal, é metonímico e desdobra-se (COMBE, 2009-2010, p. 112-128). Quer dizer: o eu lírico estabelece uma imagem de si na medida em que estabelece uma imagem do outro, dado que a este comove e faz com que se mova na integridade da vida.

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Grifos do autor.


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De todo modo, aquela atividade de escrita, como qualquer outra que diga respeito à poesia, é sempre bastante avizinhada de ser fadada ao fracasso. Isso digo com base em nosso capítulo “Por uma desestabilização da leitura de poesia no Ensino Médio” (BUARQUE; BARROS, 2012, p. 75-89), resultado dos estudos da Rede, no qual descrevemos o cenário de ensino de poesia: lugar em que a leitura de textos poéticos via ensino lúdico migra para o estudo de conteúdos em textos de conhecimento que apresentam funcionalidade imediata na vida civil (pública e privada), fazendo o aluno, em geral, considerar o poema como uma inutilidade patente. Isso tende a produzir um efeito de ausência de boa vontade para com o texto poético, de sorte que este quase sempre será tratado como algo sem sentido, de leitura difícil, por mais, digamos, realista que seja a expressão mimética do poema, como é o caso do destacado “O martelo”, de Manuel Bandeira. Além disso, a média do jovem adolescente, saído da infância – quando a distinção de gênero não se pauta pela compreensão de sexo –, tende a rejeitar o poema como “coisa de mulher”, assevera que “quem gosta de poema é gay”, dada uma variante do senso comum que compreende a poesia como alheia à vida prática e meramente sentimental (BUARQUE; BARROS, 2012, p. 78-80). Outro fator a serviço do fracasso da atividade de escrita como prática de criação pró-letramento literário pode ser apreendido do capítulo, também resultado dos estudos da Rede, “A poesia no livro didático da Primeira Fase do Ensino Fundamental” (CAMARGO; OLIVEIRA, 2010, p. 27-40). Este texto é fundamentado em pesquisa desenvolvida em 2005 sobre livros didáticos mais adotados para os anos de 2003 e 2004. O estudo revela que muitos dos livros adotados contam com três a sete poemas para orientar a leitura da criança, e a maioria desses poemas é comum a todos os livros didáticos, assim como é importante salientar que a orientação de leitura é focada na aquisição de vocabulário (CAMARGO; OLIVEIRA, 2010, p. 32). Uma vez atualizada a pesquisa em 2010, a respeito da seleção de livros para os anos de 2011 e 2012, os fundamentos da escolha anterior se repetiram.


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O destaque para esses dois capítulos de livros da Rede nos interessa porque sabemos que a formação do leitor é inerente à formação do aluno escrevente, visto que, retomando uma analogia já apresentada, o escritor é um leitor. Efetivamente, não pode haver efeito de afecção positivo, no sentido de encetar no aluno a pertinência – à qual se segue o desejo e, depois, a necessidade – de escrever. É preciso ter em mente que toda a problemática apresentada, assim como os fundamentos bakhtinianos sobre autoria, deve ser compreendida pelo mediador para que ele intervenha na práxis das políticas públicas de ensino de Literatura na Educação Básica. Evidentemente, há implicações que fogem dos objetivos deste artigo, como as condições de produção de material de ensino por parte do mediador e a necessidade de rebeldia em massa contra a imposição de livros didáticos que não satisfazem o ensino de poesia, isso em relação às condições de trabalho, ao regime jurídico da carreira docente e, inclusive, à remuneração competente para desenvolver o trabalho de docência não apenas como aplicador, mas como produtor-aplicador. No que diz respeito mais diretamente aos objetivos deste artigo, é devido ressalvar que orientar a criança e orientar o adolescente à escrita poética compreendem duas atividades pedagógicas bem distintas. Para a criança, comumente, tanto a leitura quanto a escrita de poesia atuam de modo lúdico, como um jogo (BUARQUE; BARROS, 2012, p. 76-78). A priori, não é possível que a criança exercite a escrita de um poema consciente de que ocupa uma posição axiológica nos momentos da vida e que se faz dotar da tarefa do acabamento artístico, no sentido de que “à verossimilhança da orientação vital ético-cognitiva do homem, mensura-se a verossimilhança (…) do motivo lírico” (BAKHTIN, 2010, p. 184). Essa observação é consoante à afirmação de Terry Eagleton (2007, p. 29) quanto ao que declara um poema: “[p]oems are moral statements, then, not because they launch stringent judgements according to some code, but because they deal in human values, meanings and purposes”8. A ressalva de que os poemas não atendem a um código específico de rigor moral, seja de qual for a natureza, atende ao princípio

Os poemas são declarações morais, contudo, não porque emitem rigorosos juízos de valor de acordo com um código, mas porque tratam de valores humanos, de significados e propósitos. (Tradução nossa.) 8


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de que o poeta busca apreender um acontecimento da vida e dá forma ao mesmo. Dito isso, é preciso ter em mente que a criança, como aluno escrevente do poema na prática da aprendizagem da Literatura, não age como o autor, o poeta propriamente dito, o qual, conforme Bakhtin (2010, p. 177), visa ao conteúdo e para isso opera sobre tal um acabamento a partir de um material, que é a linguagem verbal. A criança, portanto, apresentará pouca ou nenhuma atenção sobre as relações que os elementos empregados do material devem estabelecer para cumprir a tarefa poética, pois se envolverá ludicamente sobre os próprios elementos. Já o adolescente, mais dotado de uma necessidade de afirmar-se no mundo, tanto aquele sedento em marcar sua voz quanto aquele contido, pouca atenção empreenderá sobre os elementos empregados do material. Contudo, também quase não apresentará atenção sobre as relações entre os elementos do material, pois ficará adido ao conteúdo. Sua atenção a este, por sua vez, é comumente muito detida em proposições morais e experiências reguladas por um código de controle, logo, em quase nada diz respeito àquilo que Eagleton (2007, p. 28-31) trata quanto aos poemas serem declarações morais, dado que o adolescente se limita à objetividade – o que, consoante a sua fase escolar, decerto decorre da imposição de gêneros “mais pragmáticos”, “mais sérios” por parte do sistema de ensino (BUARQUE; BARROS, 2012, p. 76-77). Nisso, enquanto a criança comumente produzirá poemas que exprimem jogos linguísticos de ordem semântica e fonológica, o adolescente produzirá poemas que exprimem uma posição axiológica equivalente entre a realidade estética e a realidade cognitiva e ética. Em ambos os casos, a realização poética é apenas incipiente. Na prática, lidar com a criança nesse âmbito não será problemático, pois ela entrará no jogo. Contudo, esteja claro que o educar para o letramento poético – o que será eficaz se diversas atividades forem recursivamente orientadas ao curso da Educação Fundamental – existe apenas para o mediador, pois para criança o que existe é fruição, embora, por está no espaço escolar, ela saiba de algum modo que aquilo “rende nota”, ou que cumprir a proposta a torna benquista aos olhos do mediador.


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Embora isso, ela frui, porque mergulha no jogo. Lidar com o adolescente, porém, requer que este tenha o direito de ser avaliado pelo esforço empreendido. Dadas as assertivas decorrentes daquela variante destacada do senso comum sobre poesia, o adolescente em geral não entrará de bom grado em processo de atividade de escrita poética. Embora não diga respeito aos objetivos deste artigo, é importante cuidar de não tratar a avaliação como prêmio ou mera bonificação. Permitir que um aluno fosse avaliado por um poema que escreveu, assim como ele é avaliado por um artigo de opinião, deveria constituir parte do processo de educar a responsabilidade autoral, considerando-se que “[a] visão de mundo constrói atitudes (…), dá unidade à orientação semântica progressiva da vida, unidade de responsabilidade” (BAKHTIN, 2010, p. 189). A ressalva que fizemos sobre o teor negativo que habita a observação de Bakhtin sobre a lírica de tradição é mais eficiente quando tomamos emprestada a seguinte afirmação de Adorno (2003, p. 66): “o teor [Gehalt] de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética, conquistam sua participação no universal”. Dado isso, a construção da autoria deve compreender a subjetividade poética em geral, incluindo a lírica de tradição, como uma subjetividade consubstanciada ao coletivo. Quando o aluno é dado a escrever um poema, ele participa em certa medida de seu mundo de modo mais amplo do que quando se inscreve em uma conversação cotidiana ou quando exerce uma atividade rotineira. O que há de cotidiano e rotineiro, no âmbito do real concreto, participa da linguagem verbal acabada como poema para além da proximidade com o outro que é íntimo ou que é vizinho – como acontece à certeza predita pelo eu lírico de Manuel Bandeira ao se referir ao martelo, pois, decerto, “(…) amanhã quando acordar/ Sei que/ Ouvirei o martelo do ferreiro/ Bater corajoso o seu cântico de certezas”. O processo educacional de orientação à construção da autoria – que sempre vale a pena ressalvar, não implica em formar poetas – deve ser atento à formação


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“Ficcionalizar”, por sua vez, consiste em distinguir um texto de seu imediato contexto empírico para que atenda a um contexto mais amplo. (Tradução nossa.) 9

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da subjetividade, e, dada a dupla articulação daquele que escreve, em autor-pessoa e autor-criador, é preciso considerar que o princípio de ficção é inerente à escrita poética, quer dizer, não é uma particularidade da prosa de ficção (romance, novela, conto). Como observa Eagleton (2007, p. 31): “To ‘fictionalise’, then, is to detach a piece of writing from its immediate, empirical context and put it to wider uses. To call something a poem is to put it into general circulation, as one wouldn’t with one’s laundry list”9. Fazer com que isso funcione não é simples, dado que a escola da Educação Básica não é uma escola de arte. Das experiências que vimos observando, não somente via pesquisa bibliográfica, mas também via participação direta em processos formativos que leva em conta a escrita de poesia em sala de aula, assim como a orientação de pesquisa teórica e de campo (aplicada), notamos nos poemas dos alunos escreventes uma expressão generalizante dos valores comunitários de controle da vida pública e privada que estão inculcados. Outro dado que observamos é que a forma dada ao poema algo que resulta de uma grande relevância empreendida aos elementos empregados durante a escrita, no que se inclui correção da linguagem e artificialização do ritmo. Dado que “[o]bras de arte têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde”(ADORNO, 2003, p. 68), a produção dos alunos escreventes navega em sentido contrário, pois, devido à formação do mediador se restringir à reprodução imediata (jamais reflexiva) daquelas quatro linhas de força do ensino de Literatura, ou (e de todo modo sempre) se restringir à prática da leitura, inculca-se a criança e o adolescente a julgar o dizer de sua escrita poética como fundamentalmente individual. Disso resulta justamente o contrário: o mínimo de individualidade e o máximo de reprodutibilidade daquilo sobre controle que está codificado. É preciso entender que a chamada individualidade lírica, o chamado eu lírico sobre o qual se convencionou afirmar que diz eu sobre si mesmo, emana de sua socialidade e tem inscrição histórica, tendo em vista que a isso não é alheio. Considerando-se que o eu lírico tem o poder de intervir nos acontecimentos da vida, do real concreto, ele o faz não por ideologia,


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mas porque sua virtude é reconfigurar a vida. O eu lírico assume expressão de compromisso mediante a vida pela legitimidade dos elementos do poema em relação ao mundo que lhe é inerente. Como “[o] artista nunca começa desde o início precisamente como artista, isto é, desde o início não pode operar apenas com elementos estéticos” (BAKHTIN, 2010, p. 183), e estando resolvido que não cabe à escola formar poetas, o ponto de escrita do qual partem os alunos escreventes não é um problema, nem deles nem da finalidade do que vimos propondo. O problema está em como a escola leva os alunos a escrevem poemas, quando essa prática é incutida ao mediador. A escola começa pela forma, pelo poema como texto em versos, com rima, estrofação, ritmo, “musicalidade”, metáforas as mais mirabolantes – para dizer que o poema deve constituir, pela linguagem verbal, uma condensação de imagens – e, o que é pior, a tal da “licença poética” horaciana – como se isso fizesse sentido dois mil e trinta e um anos depois, como é o caso. De resultado, aquilo já demonstrado: a criança se restringe ao jogo, e o adolescente se vê algo que obrigado a dizer em linhas interrompidas o que diria em uma prosa descritivo-dissertativa. Isso pode ser observado em uma experiência em curso de larga escala no Brasil, a “Olimpíada de Língua Portuguesa”. Como uma iniciativa do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e da Fundação Itaú Social, sob gestão e coordenação técnico-pedagógica do Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e a União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e o Canal Futura de Televisão, o programa Escrevendo o futuro “desenvolve ações de formação de professores com o objetivo de contribuir para a melhoria do ensino da leitura e escrita nas escolas públicas brasileiras” (ESCREVENDO, s/d) a partir da “Olimpíada de Língua Portuguesa”, que tem caráter bienal e, em anos pares, realiza um concurso de produção de textos que premia as melhores produções de alunos de escolas públicas de todo o


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país. Na 3ª edição participam professores e alunos do 5º ano do Ensino Fundamental (EF) ao 3º ano do Ensino Médio (EM), nas categorias: Poema no 5º e 6º anos EF; Memórias no 7º e 8º anos EF; Crônica no 9º ano EF e 1º ano EM; Artigo de opinião no 2º e 3º anos EM. Nos anos ímpares, desenvolve ações de formação presencial e a distância, além da realização de estudos e pesquisas, elaboração e produção de recursos e materiais educativos (ESCREVENDO, s/d).

De imediato a iniciativa é bastante devida e bem proposta por diversas razões, das quais destacamos seu endereçamento à escola pública, e, de acordo com nossos objetivos, seu interesse em desenvolver a escrita, que, conforme pode se verificar, inclui a prática da escrita poética. O programa está em andamento desde 2002 e tem como tema “O lugar onde vivo”. Esse ponto de partida para o ensino da escrita é de particular interesse para nossa discussão, dado que esse tema incita a um propósito educacional de construção de identidade. O caderno Poetas da escola (ALTENFELDER; ARMELIN, 2010, p. 11) notifica que “a escrita permite o acesso às formas de socialização mais complexas da vida cidadã. Mesmo que os alunos não almejem ou não se tornem, no futuro, jornalistas, políticos, advogados, professores ou publicitários, é muito importante que saibam escrever diferentes gêneros textuais”, e, embora isso seja dado no sentido de atender “às exigências de cada esfera de trabalho” e a fazer com que o indivíduo, no futuro, seja livre, independente dos outros porque sabe ler e escrever – o que é uma falsa proposição –, habita ali o princípio adorniano de que a subjetividade poética (que seja lírica) é sempre social. Senão por má condução pedagógica – o que, de resto, reina –, esse fundamento de apresentação da proposta de ensino de escrita de poesia da “Olimpíada de Língua Portuguesa” deveria evitar que o aluno escrevente produzisse poemas cuja voz do eu lírico seja correspondente a um eu que diz eu sobre si mesmo, ou, conforme já assinalamos, limite-se a uma mera confissão informada, ou como denuncia Adorno, a uma “mera expressão de emoções e experiências individuais”. No entanto, já na “Introdução ao gênero”, na parte


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“Sobre poemas e poetas”, o caderno Poetas da escola assinala o caminho que sua orientação seguirá, dado que se refere ao poema como um texto que emprega certos elementos da linguagem de modo mais predicado ou mais livre, para obter certas formas e destaca que “[o] poema é criado como se fosse um jogo de palavras” (ALTENFELDER; ARMELIN, 2010, p. 18). Como indaga Eagleton (2007, p. 25-28), quais recursos da poesia não se vale a prosa de ficção? Como pensar no romance Avalovara, de Osman Lins, dispensando o dado de que não faz um jogo de palavra porque não é poesia? Como não dizer o mesmo a respeito de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa? E como dizer que Infância, de Graciliano Ramos, não é introspectivo, auto-reflexivo, se se acrescentar a subjetividade lírica em oposição à objetividade narrativa da prosa de ficção? Nessa mesma cadeia de interrogações, como desconsiderar que o romance O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho, não é tão metafórico e desenvolto no sentido da retórica do simbolismo das imagens quanto àquilo que se flagra, por exemplo, na poesia de Manoel de Barros? Dada uma tradição contra a qual os prosadores ainda não se rebelaram, apenas dois recursos comumente empregados pela poesia não são empregados na prosa de ficção: a versificação e, como também observa Eagleton (2007, p. 25): “It is true that prose does not generally use metre. On the whole, metre, like end-rhymes, is peculiar to poetry”10. A poesia, como se sabe, já desestabilizou a escrita cursiva como própria da prosa, mas se esta seguir o exemplo e recorrer ao verso, entrará em um conflito histórico, uma vez que há a tradição da poesia épica, da canção de gesta, do romanceiro, do poema narrativo popular, da balada, do poema extenso meditativo e do poema-livro ou poema longo narrativo. Evidentemente, se os prosadores comprassem esse conflito, haveria toda uma reconfiguração dos gêneros literários como os conhecemos – mas isso escapa aos limites deste artigo, ou levar isso adiante seria teorizar sobre o virtual do abstrato. De todo modo, cumprir inferir que a racionalização faz cortes, categoriza e, portanto, impõe limites: um texto narrativo cursivo com enredo é prosa de ficção, um texto narrativo em versos com enredo é poesia; aquele, um romance, um

É verdade que a prosa geralmente não emprega a métrica. Via de regra, a métrica, assim como a rima em final de linha, é peculiar à poesia. (Tradução nossa.) 10


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conto, uma novela; este, uma epopeia, um epinício, um hino, um peã, um romance de cordel etc. Logo, a fortiori, qualquer tentativa de versificar a prosa a tornará poesia, e qualquer tentativa de narrar cursivamente com enredo descategoriza o texto da condição de poesia, garantindolhe o lugar de prosa de ficção. Outro problema marcante da proposta do programa Escrevendo o futuro é que os gêneros são etarizados. Como assinalamos em “Por uma desestabilização da leitura de poesia no Ensino Médio” (BUARQUE; BARROS, 2012, p. 75-89), propõe-se a prática da escrita do poema para crianças, enquanto a prática de gêneros dados como “mais sérios”, porque diretamente inscritos no sistema de valores da vida funcional que está codificada em atender às necessidades do mercado de trabalho, é proposta para os adolescentes, sobretudo das séries finais da Educação Básica. Conforme já assinalado, será muito difícil inscrever alunos de Ensino Médio, adolescentes que estão inculcados a estudar aquilo que é ou que possa ser utilitário, em uma atividade cujo objeto está tacitamente dado como obra de um jogo. Para jogar, o adolescente recorre aos meios digitais e ao desporto. Além disso, o adolescente é orientado desde criança a julgar que em poesia tudo vale, logo, o que ele disser deve contar, seja para ler ou para escrever um poema. Consequente a isso, ele tem o entendimento de que a escola não poderá avaliá-lo pela prática da escrita de poesia, afinal, com base em que critérios isso será feito, dado que há o princípio de liberdade plena? Logo, o máximo de criação literária à qual ele se aproxima na prática escrita é da narrativa breve, muito mais pelo conto do que pela crônica. Contudo, dado que poesia e prosa se permutam quase que integralmente, conforme já discutido, em recursos e elementos empregados no processo de acabamento estético, por que é possível avaliar um aluno pela escrita de um conto e não é possível avaliá-lo pela escrita de um poema? Ao conto não é permitido “liberdade plena”? À parte esse contra-senso, as épocas, os estilos, os gêneros, os autores e as obras literárias não são discutidos em relação à atividade de prática escrita do conto. Aliás, não é em aulas de Literatura que essa atividade é proposta.


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Logo, escrever o conto na escola se limita a uma atividade de Redação como qualquer outra, sobretudo porque os principais critérios de avaliação são: atendimento ao tema, à coesão e à coerência, ao emprego da língua padrão e ao gênero – que, neste caso, é dado em conjunto de características a serem cumpridas, de modo quase tão predicativo como era gerido pelo Classicismo. É legítimo denunciar que a escola vem abandonando cada vez mais a Gramática porque predica normas para a expressão escrita da língua, o que ofende recursos linguísticos singulares de representação identitária, por outra tábua de predicação: a retórica dos gêneros. Isso significa a mera troca de orientação pré-determinada de ordem superior de expressão escrita micro-estrutural para a expressão escrita macro-estrutural igualmente pré-determinada por força de poder alheio à diversidade das classes sociais submetidas às políticas públicas de ensino. O que poderia dar muito certo com a iniciativa da “Olimpíada de Língua Portuguesa” – afora o concurso que promove – falha porque não se conta com a poesia faixa a faixa etária da seriação escolar. O propósito de entender a escrita do poema como algo que emana do indivíduo a partir de sua socialidade e com poder de intervenção em seu contexto empírico é próprio tanto do poeta, o escritor publicamente reconhecido como tal, ou que se publica para o reconhecimento, assim como é próprio também do aluno escrevente, ainda que este não almeje a carreira literária nem que venha a interessar-se pela livre (descompromissada, espontânea) prática artística. Por outro lado, a proposta do programa Escrevendo o futuro é dada com o plano de trabalho à parte, o qual a escola poderá integrar ou não em sua política pedagógica. Comumente, por como é dirigida a “Olimpíada de Língua Portuguesa”, quem integra o plano de trabalho da proposta é um dado professor em uma ou mais turmas. Como a proposta é apresentada segundo a pedagogia da sequência didática para cumprir uma série de tarefas acerca da escrita do poema sob o tema dado, “O lugar onde vivo”, pode-se dizer que o programa Escrevendo o futuro propõe, na verdade, um curso de criação poética para crianças de 5º e 6º anos. Nesse sentido, se o


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mediador se detém atentamente à “Apresentação” e à “Introdução ao gênero”, mesmo havendo ali fundamentos de instrumentalização do ensino pela escrita do poema a serviço da formação do cidadão produtivo conforme a lógica capitalista e liberal, é possível realizar um bom trabalho no sentido de escrever poemas como atividade do processo educacional de construção de autoria como subjetividade social. Contudo, ao entrar no programa de ensino escolar, o caderno Poetas da escola não pode ser dado como um curso isolado do ensino de Língua Portuguesa, que inclui o estudo dos gêneros textuais (pela prática da Análise do Discurso e da Análise Linguística), da Gramática, da Redação e da Literatura. Aplicar as lições de Poetas da escola como estão dadas, a fim de cumprir o programa da “Olimpíada de Língua Portuguesa”, no que diz respeito ao concurso que implica, seria como, a título de analogia, tomar o Estudo analítico do poema (CANDIDO, 1996) e aplicar suas lições de um ponto de partida inverso, isto é, em vez de orientar à análise do poema, orientar à escrita, mas pelos mesmos tópicos desenvolvidos. A título de exemplo: ao tratar de “Comentário e interpretação literária”, Antonio Candido (1996, p. 17-23) propõe ao final, conforme enfatiza, “[a] ntes de entrar na apresentação dos elementos necessários à análise do poema” (p. 19), que se desenvolva um exercício de comentário e interpretação sobre o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões. Dado o que sinalizamos, o caso seria de, em vez de propor comentar e interpretar, propor escrever um soneto, ao que se seguiria apresentar um motivo, a estrutura italiana, a métrica mais apropriada ao poema em português (o decassílabo heroico ou o sáfico), o silogismo e o jogo das antíteses – estando entendido que esses dois elementos finais são próprios da sonetologia camoniana. Como dissemos, isso poderia até funcionar, se o caso fosse de um curso à parte, de uma oficina. Ainda assim, se desestabilizado de sua indicação etária, o caderno Poetas da escola do programa Escrevendo o futuro é, em âmbito escolar, pelo que pesquisamos, a proposta mais objetivamente viável formalizada para orientar a escrita de poesia na escola – principalmente porque a “Olimpíada de Língua Portuguesa” é a única ação


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brasileira do gênero que se ocupa de um concurso apenas em segundo plano, pois em primeiro está o processo de formação continuada de práticas de ensino de leitura e de escrita para professores da rede pública de Educação Básica. Retomando o poema destacado de Bandeira, “O martelo”, importaria orientar o aluno escrevente a observar as instâncias do texto. Há, inicialmente, um dístico seguido de outro dístico. Depois vem um longo verso independente. Em seguida um bloco em três versos seguido de mais um dístico. Depois mais um verso independente, no entanto, bem mais breve do que o outro, e, finalmente, mais um bloco em três versos. Há catorze versos e não se trata de um soneto. De todo modo, como Manuel Bandeira foi um poeta muito preocupado com as formas de tradição, embora tenha sido também um poeta de expressão espontânea, dada pelo acontecimento da poesia, observe-se que: os dois primeiros dísticos formam um quarteto, o verso longo independente mais o consequente bloco em três versos formam outro. O dístico seguinte somado ao verso breve independente formam um terceto, assim como o bloco final em três versos. Isso muito bem se parece com um soneto corrompido ou desmantelado – o que é próprio da poética de Bandeira. Muito afeito às formas de tradição, o poeta ou as seguia estritamente ou partia delas para criar poemas em forma livre, de modo até experimental, como é o caso do canônico poema “Meninos carvoeiros”, cuja versificação livre, na verdade, criptografa octossílabos cujas sequências rítmicas foram desarticuladas. Para levar o aluno a escrever, o momento seguinte deve ser considerado para orientar que o dístico inicial de “O martelo” apresenta um comboio de ferro que faz incessante barulho. O dístico seguinte diz que, apesar desse barulho, as particularidades do eu lírico estão salvaguardadas. O longo verso independente desdobra a imagem sobre o que são essas particularidades: coisas íntimas resumidas do vivido, vindas do passado. O primeiro bloco em três versos dá garantia que as particularidades do eu lírico estão seguras. O dístico seguinte irrompe com mais um som que se ouve na noite:


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o pio da coruja. O próximo verso independente informa que esse som não o derrui de sua seguridade, pois é um som doce. E o dístico final funde o barulho metálico do trem com o pio da coruja, produzindo um efeito de certeza sobre a seguridade de suas particularidades em relação à batida do martelo do ferreiro. O poema é, por isso, muito bem pensado, como um soneto, e ainda que seja muito subjetivado em suas escolhas, pois poderia ser qualquer coisa que não o barulho do trem, o pio da coruja e a batida do martelo, não se limita à “mera expressão de emoções e experiências individuais”, dado que amplia nossa percepção sobre a repetição ou sobre a seguridade de certas coisas caras à vida. Pois bem, realizada essa leitura, basta, na sequência, propor ao aluno que trabalhe seguindo “O martelo” mediante a escolha de três coisas sonoras mediadas por um conjunto ou por uma particularidade apenas, quer dizer, por algo íntimo, mas que não será descrito, não será apresentado, não será exposto literalmente. Como primeiro exercício de criação, orientar-se-á o aluno a seguir o exemplo: dar a cada verso extensão similar ao correspondente no poema, e, inclusive, seguir a pontuação. Mas, a escrita do novo poema dever ser realizada a partir da escolha de outro objeto de arremate no lugar do martelo: um ventilador, um despertador, um aparelho de celular, uma prensa gráfica etc. Poderá ser escolhido o barulho que alguém faz na cozinha cedo e que desperta ou sempre chama atenção do aluno – se esse caso tiver materialidade na experiência do vivido. E há mais liberdade dentro da orientação: quem sabe um papagaio ou outra ave que há em casa ou há na casa do vizinho. Mas essa coisa escolhida encerrará o poema e deverá está marcada como uma certeza do que sempre ocorrerá amanhã. Para a abertura, para o início do poema, orientar-se-ia que se escolhesse algo que aluno ouve agora, algo que ouve no instante de escrever, ou algo que ouve sempre à noite em contrapartida do que certamente ouvirá amanhã cedo. Para o meio do poema, deixar-se-ia que o aluno escrevente escolhesse algo qualquer. Como seria importante seguir o exemplo, é pertinente que o aluno seja orientado para que a coisa que ele ouve na


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abertura do poema seja barulhenta, que a coisa que ouve no meio do poema seja cantante e que a coisa final seja síntese de uma e outra. No ínterim disso, caberá ao aluno relacionar tudo a uma particularidade ou a um conjunto de particularidades suas, que sejam íntimas. Embora possa dizer-se que um roteiro de atividade de escrita poética como descrevemos se limite à escolha de elementos, na verdade, ele trata de como relacionar os elementos empregados para dar acabamento a uma posição axiológica. Porém, como não se trata de uma descrição de um poeta em exercício, mas de uma orientação a ser mediada por um professor, é preciso haver motivação, e o exemplo cumpre esse papel. Se, durante o processo, algum aluno realmente se interessar pela criação poética, de todo modo, terá um longo caminho pela frente para seguir exemplos, pois é a Literatura que ensina à Literatura a ser Literatura, uma vez que não há produção literária sem precedente, assinalada fora da história – há, sim, e isto é outra coisa, formações textuais primitivas da oralidade que foram mobilizadas por força contingencial a formar isto que chamamos de Literatura. No entanto, a partir de quando a Literatura foi formada, o que nela se inscreve sempre tem precedência. Uma ressalva importante sobre esse processo é que a Literatura parte da leitura, do “comentário e interpretação”, conforme se enfatizou na referência a Candido. Contudo, não é possível asseverar que a partir da escritura o processo se cumpre. Ainda assim, é possível sugerir, como foi feito, que se siga o processo como método. A legitimidade de converter a sugestão em método e sua eficácia diz respeito, consoante a Adorno (2003), ao dado de que para afirmar que um poema foi esteticamente intuído é preciso que também tenha sido pensado, uma vez que aquilo que se determina pelo pensamento “não é uma reflexão externa e alheia à arte, mas antes uma exigência de qualquer configuração linguística. O material próprio dessa configuração, os conceitos, não se esgota na mera intuição” (p. 67). Ainda assim, essa proposta não resiste ao fato que é própria para um curso ou para uma oficina de criação poética. Há nela pouco daquilo a mais que interessa ao ensino de Literatura na escola.


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Como inferência, a título de considerações finais, faremos, conforme introduzido, uma proposta de natureza teórica sobre o ensino de escrita de poesia para a Educação Básica. Essa proposta considera os seguintes fundamentos: o método discutido como mais apropriado a um curso ou a uma oficina de criação poética; as quatro linhas de força (as escolas literárias, a estrutura do texto literário, a relação entre literatura e contexto e a seleção canônica de autores e obras) do ensino de Literatura na escola; a relação entre poesia e experiência do vivido; e a consideração de autores preteridos pela seleção canônica. Antes de ir diretamente a cada uma, há um ponto que reservamos para este final, pelo motivo de aqui se localizar até onde nossa pesquisa desenvolveu reflexão mais substancial. Trata-se do dado de que não é possível conduzir o ensino de poesia pela prática da escrita do poema sem um mediador poeta. Evidentemente, não cabe aos cursos que diplomam o licenciado em Letras que atuará na escola formar poetas, assim como ser poeta não é imprescindível à formação do professor de Língua e Literatura. E, embora seja uma sugestão viável, não se trata também de os professores da Educação Básica se capacitarem poetas para atender ao que vimos discutindo. Trata-se do seguinte: o estudo da Literatura apenas pela leitura (apreciação, análise, interpretação e explicação) de obras sempre irá resultar no efeito que vem surtindo há muito tempo: interessados em particular, havendo uns que transformam a Literatura em algo que participa assiduamente de sua vida; outros que desenvolvem uma relação intrínseca com ela, mas que apenas a visitam aqui e ali; outros que se tornam seus agentes, quer dizer, que se tornam escritores; e, finalmente, o que por incrível que pareça é o grupo maior, aqueles que se profissionalizam em certo grau para lidar com ela sem sua vida funcional de cidadão economicamente ativo. Esse conjunto todo, se comparado com a população alfabetizada não funcional de um país como o Brasil, é mínimo, ínfimo até. E o é também se pensarmos no caso da Polônia, reconhecida como nação de uma sociedade satisfatoriamente leitora de livros, e, particularmente, de poesia. Mas, ainda que lá haja o caso da Nobel de Literatura Wisława Szymborska,


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que apenas em seu país vendeu em 1976, durante uma semana, 10 mil exemplares de sua reunião de poemas Wielka liczba (Grande Número), assim como em 2005 sua antologia Dwukropek (Dois Pontos) vendeu 50 mil exemplares em dois meses, qualquer comparação destes números com os de outros gêneros de livros (ficção científica de entretenimento, auto-ajuda, didáticos, culinários) resultará em número muito inferior para a poesia. Logo, se há aumento do percentual daqueles que iniciados no letramento literário pela escola se tornam leitores de poesia, é porque o número de pessoas com acesso à escola aumentou, portanto, proporcionalmente, o efeito de formação presente é o mesmo do pretérito. Não há dúvida de que a apreciação e o consumo de outras artes têm mais efeito no gosto público. Defendemos que isso não decorre de apenas de a Literatura prescindir de alfabetização e letramento – o que não é imprescindível às demais artes, pois ninguém, necessariamente, precisa saber ler e escrever para apreciar cinema, fotografia, dança, música – nem decorre de exigência de maior atividade: para apreciar Literatura é preciso dar-se ao esforço de ler; para apreciar um filme, um conserto ou um vernissage, não – além do que é bastante discutível que a apreciação dessas artes seja tão ou realmente passiva. Em nosso julgamento, as demais artes gozam de mais ampla recepção no gosto público porque, no espaço escolar, elas não são ensinadas limitadamente para a apreciação, análise, interpretação e explicação. Sabe-se que a ArteEducação ensina a fazer a arte, e sem a pretensão de formar futuros músicos, fotógrafos, pintores, dançarinos etc. A dificuldade permanece, pois os arte-educadores, comumente, são artistas, uma vez que seus cursos de graduação são voltados para a criação. O problema que está em tópico, no entanto, não é uma barreira se a escola estabelecer convênio para ação pedagógica criativa com poetas residentes. Voltando aos elementos que encerram nossa discussão, sobre o método inerente ao modelo exemplificado a partir do caderno Poetas da escola em analogia ao livro Estudo analítico do poema, de Antonio Candido, considere-se que reconstruir, ainda que a título


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de hipótese, o pensado para cumpri-lo em tarefa de escrita é uma proposta que leva o aluno a estudar estilo, forma e motivo. Esse estudo poderá ser restrito a poemas isolados como casos, bem como poderá ser feito considerandose poemas de época, de estéticas específicas, e também poderá atender ao estudo particular de um autor canônico e à relação entre Literatura e sua contingência de mundo – sua inscrição na socialidade e na história, sobretudo. Quer dizer: levado o modelo para ser operado em relação ao que mais interessa no ensino de Literatura na escola, o efeito poderá ser de eficácia. Não entendemos, pelo acompanhamento que vimos fazendo nos últimos três anos, que isso ocorra em relação ao programa Escrevendo o futuro, e julgamos que a falha nesse caso permanece devido à etarização dos gêneros e à corrida ao concurso, que, de resto, compete com o principal: a formação continuada de professor de Língua Portuguesa da rede pública da Educação Básica. Há, pois, uma falha pedagógica e outra política. Se esta não pode ser corrigida, por força do Estado e de financiamento, bem como pelo princípio de formação de um cidadão economicamente ativo que lhe é inerente, aquela pode – e a solução disso já modifica em muito o efeito de ensino de escrita do poema em relação à aprendizagem de Literatura. No caso análogo, que é de nossa responsabilidade, não há defeito, pois Candido não propôs um manual de Poética – muito embora tenhamos o tomado como tal, e insistamos que ele efetivamente funciona para orientar à escrita de poemas, ressalvando-se que seria necessário trazer para ele mais alguns elementos de suporte, os quais, na verdade, já estão sugeridos lá, basta que sejam tratados com essa finalidade. Dado que aprender sobre o conhecimento de Literatura diz respeito a conhecer obras que reportamos literárias, pela leitura e pela prática, as críticas ao ensino vigente são devidas, pois, de fato, não se faz aquilo, logo, não se ensina Literatura. Contudo, o que diz respeito a esse problema sobre o ensino de Literatura ser pautado nas chamadas escolas literárias, na estrutura do texto literário, na relação entre literatura e contexto, e na seleção canônica de autores e obras não nos parece legítimo. Se não temos conhecimento, pelo menos geral,


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sobre o Romantismo como tal, não sabemos de Literatura em sua dimensão histórica em relação às mentalidades e às práticas de época. Se lemos uma coletânea de poemas de Gonçalves Dias e outra de Castro Alves e apenas conseguimos distingui-los como poetas, se não conseguimos observar nada a respeito do Romantismo de um e de outro, instalamo-nos no equívoco de tirar de ambos sua relação com as mentalidades e práticas estéticas, éticas e políticas do período em que viveram. Se tirarmos Drummond da história da poesia brasileira, boa parte de poetas, alguns contemporâneos já renomados, como Paulo Henriques de Britto, não seriam o que são. Decerto, sem Drummond, Henriques de Britto seria poeta, mas não aquele que conhecemos. E se não conseguimos compreender que a extensão do conto é equivalente a sua distensão narrativa, dado que o foco daquilo que narra é mais concentrado, evidentemente teremos problemas de recepção, de leitura como interpretação e como explicação para a expressão de comentários acerca de textos que reportamos chamar de conto. Julgamos, portanto, que qualquer problema a respeito do ensino de Literatura na escola está muito pouco localizado nesses conteúdos e muito mais localizado na pedagogia e na política que orientam e regulam tal ensino. Exercitar modos de expressão românticos nacionalistas, românticos indianistas, românticos amorosos, parece-nos evidente, promove no aluno um entrosamento mais efetivo em relação àquilo que leu em Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, no sentido do que foi o Romantismo no Brasil em relação ao que foi o Romantismo em Portugal e na Europa, dado que o aluno leia poetas românticos portugueses, franceses, alemães e ingleses, por exemplo. É certo que os conteúdos devem ser informados, pois muitos deles são fundamentados em dados e fatos, assim como certas obras devem ser lidas e comentadas, e, paralelo a isso, o modo de intervenção mais eficaz ao entendimento, uma vez que estamos lidando com uma dimensão da arte, é escrever a exemplo de, para que se escreva por si – seja esta escrita final decorrente da formação educacional de base do aluno, não especificamente uma escrita estética, mas uma escrita autoral constituída de uma subjetividade


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integrada em seu mundo e capaz de diálogo com o outro. Decorre disso a pertinência de orientar o aluno escrevente a intervir nos conteúdos com um escrita poética referente a sua experiência do vivido – deixando entendido que isso não se trata de depoimento nem de confissão. Finalmente, para o último ponto, queremos trazer uma reflexão de Raymond Williams, que funciona à guisa de proposta e de reavaliação do que está dado: “Se quisermos romper com a rigidez histórica do pósmodernismo, então devemos, para o nosso bem, procurar e contrapor-lhe uma tradição alternativa retirada das obras negligenciadas e deixadas na larga margem do século” (WILLIAMS, 2011, p. 7). Embora a palestra de fonte dessa reflexão-proposta nos pareça movida pelo excesso, concernente à seleção de poetas e obras de referência do Modernismo pela crítica literária do século XX, uma vez que por essa ou por aquela via far-se-á seleções e haverá esquecidos, a discussão de Williams nos permite mais do que uma revisão da tradição modernista e de seu cânone de escritores (sobretudo, de poetas) e obras: permitenos uma comoção dirigida à revisão de qualquer cânone dado a partir da autoridade de um poder estabelecido que codifique, controle, regule e cerceie valores. Se defendemos que certos nomes e certas obras que estão estabelecidas em nossa história literária são viscerais, não é porque são os melhores em relação aos demais, que deveriam mesmo ser preteridos. Defendemos porque constituem uma imagem consistente e substancial daquilo que formou o literário posterior, seja via recursividade, indiferença ou transgressão. Há balizas. Não devemos, é fato, ficar calados diante delas, mas é justamente a elas e contra elas que recorremos ou acorremos. Ainda isso, intervir na formação escolar com captura de autores e obras que passaram, por esse ou por aquele motivo, ao largo da história, convém para ampliar o horizonte de leitura e de escrita no processo educacional de construção da autoria como subjetividade social. As próprias escolas literárias, a relação entre Literatura e história (política, econômica, jurídica etc.), o conhecimento dado acerca da estrutura literária, além do cânone de autores e obras, seriam necessariamente


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revistos, apresentariam um dimensão mais ampla, mais plural. Isso levaria o aluno, na medida do desenvolvimento de sua formação, a observar que nossa complexa variedade contemporânea foi processualmente formada e que, portanto, ele, o aluno, tem identidade de pertença muito mais dimensiosa no mundo do que a restrita ilha que as forças simbólicas de controle o fazem acreditar.

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A temática do holocausto no ensino de literatura brasileira: um poema de Vinícius de Moraes e uma tela de Lasar Segall* Kenia Maria de Almeida Pereira**

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal apontar alguns caminhos para a discussão do Holocausto (Shoá) nas aulas do Ensino Médio, propondo, por meio da literatura comparada e de importantes teóricos sobre o tema, um estudo da poesia de Vinícius de Moraes em interface com a arte de Lasar Segall. Palavras-Chave: Literatura Brasileira; Holocausto; Poesia; Pintura. Abstract: This paper aims mainly to point some ways to discuss the Holocaust (Shoah) in senior high school classes, proposing, by means of the Comparative Literature and of important theoreticians on the subject, a study of Vinicius de Moraes’ poetry in interface with Lasar Segall’s art. Keywords: Brazilian literature; Holocaust; Poetry; Painting.

Parte deste artigo foi tema de palestra proferida na II Jornada Interdisciplinar para o ensino do Holocausto, USP - São Paulo - em agosto de 2006. Disponível em: <http:// www.arqShoá.com.br/uploads/ jornada/5/JORNADA13_ 240609121455.pdf> e também na revista Athos Ethos, Patrocínio-MG, v. 2, p. 11-348, 2002. ** Universidade Federal de Uberlândia (UFU). *

Se ministrar literatura brasileira no Ensino Médio é uma tarefa desafiadora, também não deixa de ser um instigante exercício de criatividade, de análise cultural e de postura política para o professor no mundo contemporâneo. Aliás, estes três elementos se mesclam muito bem quando o assunto a ser discutido em sala de aula é a temática da Shoá, ou do Holocausto. Tratar deste tema complexo e espinhoso talvez seja um dos momentos políticos mais intensos que tanto os alunos da licenciatura como os professores poderão enfrentar no exercício do magistério. Theodor Adorno já chamava a atenção para este fato em seu belo texto intitulado “Educação após Aus-


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chwitz”. Para este filósofo, ensinar é um estado de crítica permanente e a “exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação”. (ADORNO, 2006, p. 119). Já Primo Levi, adverte que se deve, sempre que possível, falar para o jovem sobre o Holocausto, muito embora os adolescentes de hoje, em sua grande maioria, sejam céticos e desconfiados quanto a temas históricos mais complexos. No entanto, afirma Levi, na medida do possível, deve-se trazer o assunto à baila, uma vez que a Shoá aconteceu [...] contra toda previsão, aconteceu na Europa; incrivelmente aconteceu que um povo civilizado, recém-saído do intenso florescimento cultural de Weimar, seguisse um histrião cuja figura, hoje, leva ao riso; no entanto, Adolf Hitler foi obedecido e incensado até à catástrofe. Aconteceu, logo pode acontecer de novo; este é o ponto principal de tudo quanto temos a dizer. (LEVI, 1990, pp. 123-124).

Tal qual Primo Levi, a professora Maria Luiza Tucci Carneiro em seu livro Holocausto: Crime contra a Humanidade (2002), também aponta para o fato de que o estudo do tema do Holocausto desempenha um importante papel de conscientização, pois alerta a humanidade a não incorrer nos erros do passado. Já para o filósofo Zygmunt Bauman, apoiado em Raul Hilberg, comenta que é urgente trazer para o debate escolar a questão do Holocausto, já que é muito perturbador pensar que [...] os criminosos foram pessoas educadas de sua época. Esta é a questão crucial sempre que indagamos o significado da Civilização Ocidental depois de Auschwitz. Nossa evolução foi além da nossa compreensão; já não podemos fingir que temos pleno alcance de nossas instituições sociais, estruturas burocráticas e tecnologia. (BAUMAN, 1998, p. 106).

Já para Márcio Seligmann-Silva, o estudo da Shoá no Brasil ainda é um tema restrito a um pequeno grupo de pesquisadores, no entanto, tal fenômeno necessita ser mais estudado e compreendido uma vez que a Shoá foi


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um acontecimento terrível, uma força devastadora, que chegou mesmo a transformar a [...] literatura tradicional, a filosofia e a nossa visão mesma do homem moderno ocidental. Vimos que este continua sendo capaz de praticar genocídios desta magnitude e o progresso tecnológico não implica progresso moral. O holocausto exige mais do que nunca a literatura para podermos enfrentar a realidade da violência. (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 12).

Assim, tendo por suporte teórico estes importantes estudiosos do Holocausto, bem como a necessidade do educador de levar tal tema para a sala de aula, que elaboramos com os alunos do Estágio Supervisionado em Literatura, da Universidade Federal de Uberlândia (MG), um projeto no qual trabalhamos alguns textos da literatura brasileira, cuja temática está relacionada com a Shoá. Há mais de dez anos, desenvolvemos um projeto de pesquisa com alunos de iniciação científica e do curso de mestrado, cujo assunto gira em torno da poesia e do Holocausto na literatura brasileira. Algumas dissertações já foram defendidas sobre este tema e também alguns textos já foram publicados pelos alunos da iniciação, bem como artigos e livros lançados por mim sobre esta temática, além de palestras ministradas para educadores das escolas municipais e na Universidade de São Paulo (USP), durante as Jornadas Interdisciplinares para o ensino do Holocausto, sob a supervisão da professora Maria Luiza Tucci Carneiro. A boa procura de alunos e pesquisadores sobre o tema permitiu-nos que, em 2012, criássemos também o LEJ (Laboratório dos Estudos Judaicos) o qual está devidamente registrado no diretório dos grupos de pesquisa do CNPq. Resolvemos, assim, dar continuidade a este projeto, levando para os alunos do curso de graduação em Letras, futuros educadores do ensino fundamental e médio, propostas para enfrentarmos este tema de forma ao mesmo tempo política e criativa, provocando o prazer estético e problematizando as questões sociais e filosóficas embutidas nos textos propostos por nós. Lembremos aqui Paulo Franchetti (2009, p. 5), o qual afirma que a mais profunda


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fruição do texto literário pressupõe “um exercício amplo da cultura, naquilo que ela tem de relação com o passado, de continuidade, de ponte a transcender os limites do tempo e as formas da sensibilidade do presente”. Aliás, trabalhar com o tema do assassinato em massa de milhões de judeus, além de polêmico e árduo, é também uma forma de conscientização, pois é um alerta, como apontamos antes, uma tentativa de discutirmos com os jovens sobre erros do passado. Daí a importância de falar sobre o tema sempre que possível, uma vez que a Shoá foi “um fenômeno tão imprevisto e tão complexo, em que jamais tantas vidas humanas foram eliminadas num tempo tão breve, e com uma tão lúcida combinação de engenho tecnológico, de fanatismo e de crueldade”. (LEVI, 1990, p. 7). Outro fato que muito nos preocupa durante nossos estudos sobre as temáticas do judaísmo e do Holocausto é a questão relacionada aos inúmeros blogs antissemitas, racistas e homofóbicos que circulam hoje livremente pela internet. Segundo o site Pragmatismo Político: O crescimento do número de simpatizantes neonazistas tem se tornado uma tendência internacional. É o que aponta um monitoramento da internet realizado pela antropóloga e pesquisadora da Unicamp, Adriana Dias. De 2002 a 2009, o número de sites que veiculam informações de interesse neonazistas subiu 170%, saltando de 7.600 para 20.502. No mesmo período, os comentários em fóruns sobre o tema cresceram 42.585%.1

Blogs, sites e redes sociais que são acessados todos os dias, por muitos dos adolescentes que cursam hoje o ensino médio e a universidade, ou seja, alunos que convivem conosco no dia a dia da sala de aula. Torna-se, portanto, urgente que o tema do Holocausto venha para o centro do debate, se possível, em algumas aulas de literatura, em interface ou em diálogo interdisciplinar, sempre que possível, com professores de história, geografia, filosofia e sociologia. E quando a questão é o direito à literatura e o respeito à dignidade humana, lembramos sempre de Antonio Candido, que nos recorda que:

Disponível em: <http://www. pragmatismopolitico.com. br/2013/04/conheca-o-mapaneonazista-no-brasil.html>. Acesso em: 08 jul. 2013. 1


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[...] nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que consideram prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (CANDIDO, 1995, p. 243).

Assim, neste intercurso literário entre a estética e a política, entre a cultura e o passado, entre o afetivo e o educativo, entre o complexo e o humanizador, que propomos uma análise do poema de Vinícius de Moraes, intitulado A balada dos mortos do campo de concentração, em diálogo com a pintura Campo de Concentração, 1945, do pintor Lasar Segall. Em primeiro lugar, propomos uma leitura inicial do poema: A balada dos mortos do campo de concentração Vinícius de Moraes Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Ocos, flácidos cadáveres Como espantalhos, largados Na sementeira espectral Dos ermos campos estéreis De Buchenwald e Dachau. Cadáveres necrosados Amontoados no chão Esquálidos enlaçados Em beijos estupefatos Como ascetas siderados Em presença da visão. Cadáveres putrefatos Os magros braços em cruz Em vossas faces hediondas Há sorrisos de giocondas E em vossos corpos, a luz Que da treva cria a aurora. Cadáveres fluorescentes Desenraizados do pó


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Que emoção não dá-me o ver-vos Em vosso êxtase sem nervos Em vossa prece tão-só Grandes, góticos cadáveres! Ah, doces mortos atônitos Quebrados a torniquete Vossas louras manicuras Arrancaram-vos as unhas No requinte de tortura Da última toalete... A vós vos tiraram a casa A vós vos tiraram o nome Fostes marcados a brasa Depois vos mataram de fome! Vossas peles afrouxadas. Sobre os esqueletos dão-me A impressão que seres tambores Os instrumentos do Monstro Desfibrados a pancada: Ó mortos de percussão! Cadáveres de Nordhausen Erla, Belsen e Buchenwald! Vós sois o húmus da terra De onde a árvore do castigo Dará madeira ao patíbulo E de onde os frutos da paz Tombarão no chão da guerra! (MORAES, 2004, pp. 365-366).

Depois da leitura em voz alta com os alunos, numa tentativa de resgatar a voz e a performance corporal no envolvimento com o texto literário, naquilo que Paul Zumthor (1997) chama de “fenômenos poéticos da oralidade”, agora é a vez do professor situar o poeta Vinícius de Moraes. Vinícius não vivenciou de perto a Segunda Guerra Mundial, não era judeu, nem tampouco ficou preso em um campo de concentração. Mas se ele não sentiu literalmente na pele a dor e a flagelação de ser prisioneiro, este poeta teve a sensibilidade suficiente para transformar em boa poesia as terríveis notícias sobre os lagers2, que pelo rádio e pelos jornais chegavam todos os dias em sua casa. Assim, Vinícius dá seu testemunho como partici-

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Campos de concentração.


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pante de uma época tormentosa, filtrando pela palavra metafórica as atrocidades nazifascistas. Para Theodor Adorno, depois do Holocausto, fazer poesia seria uma impossibilidade e um ato de barbárie, ou como o próprio filósofo afirmava:“Luego de lo que pasó en el campo de Auschwitz es cosa barbárica escribir un poema, y este hecho corroe incluso el conocimiento que dice por qué se ha hecho hoy imposible escribir poesía”. (ADORNO, 1962, p.29). Mas, o que se viu, felizmente, foi o contrário, a poesia renascendo das cinzas e se reinventando nas estrofes de inúmeros poetas, dentre eles, Vinícius de Moraes. Quando evocamos o nome de Vinícius, lembramos sempre do poeta plural, que transitou pela música, cinema e teatro. Ao lado de Antonio Carlos Jobim, Vinícius deu grande impulso à Música Popular Brasileira, com o revigoramento da Bossa Nova. Ele é, ainda, o trovador dos amores quase infinitos, dos sonetos da separação, o poeta lascivo, trovando para todas as mulheres as sonatas do amor perdido. Suas músicas e poesias podem ser ouvidas ainda estilizadas numa espécie de jingle, em comerciais de televisão, quase sempre, direcionados ao universo feminino. Grande parte dos alunos sabem cantarolar alguns versos de “Garota de Ipanema”, aliás, uma das canções mais famosas no mundo. Para Alfredo Bosi (1983), Vinícius de Moraes é, talvez, depois de Manuel Bandeira, o mais intenso escritor erótico da literatura brasileira. Claro que um erotismo sutil, envolto em pudores de quem foi educado por jesuítas. Ou seja, Vinícius “oscila entre as angústias do pecador e o desejo do libertino”. (BOSI, 1983, p.514). Mas Vinícius não é apenas o poeta do amor que se afoga entre a sensualidade e a oração, nem só o poeta adocicado das garotas de Ipanema. Ele é também um lírico entristecido com o fatídico adeus de outros escritores. Um cantor, também, da despedida e da morte. Desolado, por exemplo, com o suicídio do poeta norte-americano Hart Crane, escreve, em 1932, a bela elegia intitulada O poeta Hart Crane suicida-se no mar. Elabora, também, sob o impacto do fuzilamento de Federico Garcia Lorca, as contundentes estrofes do poema A morte de madrugada. Já para o velório Mário de Andrade, compõe um doloroso poema intitulado A manhã do morto.


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Vinícius é ainda o artista alarmado com os muitos problemas sociais, um vate engajado e politizado. Um poeta com poesias participantes. Vinícius estava disposto a denunciar tanto a pobreza do operário em construção, como a intensa luta das prostitutas do mangue, além das muitas catástrofes oriundas da Segunda Guerra Mundial, dentre elas, os campos de concentração da Alemanha nazista e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Desta forma, com o poema Balada dos mortos dos campos de Concentração, o poetinha recupera uma forma medieval de fazer versos, a balada, que é o embrião do teatro e da dança, para rimar, de modo inusitado, hediondas com giocondas. Tudo isso sobre o arcabouço melódico da redondilha maior, a qual empresta ao poema uma cadência rítmica marcada pelo lamento e pela tristeza. Para quem fez poemas clamando que a “beleza é fundamental”, eis que agora chegou o momento de compor sobre os horrores e pavores de cadáveres torturados em decomposição. Lembremos que o Belo, na modernidade, prenuncia-se no “feio” e adquire sua inquietude, como queria Baudelaire, mediante a absorção do bizarro, do grotesco e do espantoso. (FRIEDRICH, 1991, p. 44). Quando estourou a Segunda Grande Guerra, em 1939, Vinícius, que estava na Inglaterra estudando literatura inglesa em Oxford, foi obrigado a abandonar tudo e regressar ao Brasil, trazendo consigo as reminiscências terríveis de uma Europa em convulsão. O totalitarismo de Hitler incluía, dentre outras loucuras, o massacre dos judeus encarcerados em campos de concentração. Quando Vinícius publicou, em 1946, o livro Poemas, sonetos e baladas, do qual faz parte o poema lido, a guerra já havia terminado, iniciava-se agora a contagem dos mortos: centenas, milhares deles. O mundo tinha pouco a comemorar, os judeus, muito menos: seis milhões deles havia sido exterminados pelo rolo compressor do racismo e do ódio. Os campos de concentração não foram inventados pelos alemães, eles datam das guerras coloniais, foram as autoridades espanholas, em Cuba, durante a guerra da independência, em 1898, que, pela primeira vez, fizeram uso dessa arma estratégica, encarcerando grandes massas


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camponesas. Foi, contudo, na ditadura nazista que esse conglomerado humano funesto adquiriu fama, ganhou fôlego, alastrou-se da Alemanha para outras regiões da Europa. Áustria, Polônia (com o famoso Auschwitz), Iugoslava, Ucrânia, Noruega, Holanda, Bélgica, França. O primeiro campo de concentração que, aliás, serviu como modelo para a criação dos demais, é Dachau, criado em 1933, quando Hitler foi aclamado Chanceler do Terceiro Reich. Vinícius enumera em seus versos os mais conhecidos deles, os de fama mais sinistra: Nordhausen, Erla, Belsen, Buchenwald, Dachau. Por estas prisões, passaram milhares de detidos; se a grande maioria consistia de judeus, havia também outros grupos perseguidos como os ciganos, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais, dissidentes políticos, anarquistas e Testemunhas de Jeová. Tudo isso em nome da purificação da raça: uma raça pura, ariana, como queria Hitler, isenta da contaminação judaica e de outros elementos considerados nocivos. O grotesco e o disforme não poderiam ser poupados. Lendo os trechos mais ignominiosos da obra Mein Kampf, Hitler não deixa dúvidas: os Judeus são como ratos a infestar as nossas cidades, devem ser exterminados como exterminamos as pragas. E mais: os nazistas odiavam também os latino-americanos, considerados como raça híbrida e inferior, tanto que os livros de Thomas Mann, autor de A Montanha Mágica, foram proibidos na Alemanha, no período da Segunda Guerra, não por ele ser judeu e sim por ter mãe latina. Jorge Amado explicanos que o maior crime de Tomas Mann era ele “ser filho de mãe brasileira e não ter, por consequência, um puro sangue ariano”. (AMADO, 2008, p. 31). Curioso que os brasileiros que insistem em ser neonazistas desconhecem ou se esquecem deste fato: os simpatizantes latinos do regime fascista seriam os primeiros a serem fuzilados pela gestapo por serem considerados mestiços. Voltando ao poema, os sofrimentos das vítimas do Holocausto são intuídos por Vinícius de forma incisiva nos versos: “Ocos, flácidos cadáveres/como espantalhos largados”. Ocos, já que os prisioneiros depois de serem submetidos ao confisco de todos os seus bens materiais, perdiam também sua identidade e, consequentemente,


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sua dignidade. “Flácidos”, já que eram submetidos a um regime obrigatório de fome, passando a pão e água, de vez em quando, uma sopa rala. Trabalhavam em tarefas inúteis, estafantes, pesadas: quebravam pedras, carregavam areia, cavavam valas. Trabalhadores subnutridos, expostos à neve, à chuva, ao frio, ao sol escaldante. Depois de mortos, sugeriam a imagem de espantalhos, abandonados ao relento, amedrontando os pássaros, apavorando os vivos. Nem todos morriam de inanição, muitos se suicidavam, outros enlouqueciam. Hannah Arendt, ao refletir sobre o sistema totalitário e os campos de concentração observa que: [...] é apenas aparente a inutilidade dos campos, a sua anti-utilidade cinicamente confessada. Na verdade, nenhuma outra das suas instituições é mais essencial para preservar o poder do regime. Sem os campos de concentração, sem o medo indefinido que inspiram e sem o treinamento muito definido que oferecem em matéria de domínio totalitário, que em nenhuma outra parte pode ser inteiramente testado em todas as suas radicais possibilidades, o Estado totalitário não pode inspirar o fanatismo das suas tropas sem manter um povo inteiro em completa apatia. (ARENDT, 1999, p. 565).

Vinícius evoca os “Cadáveres necrosados, amontoados no chão”. Uma cena aterradora que imediatamente nos remete às fotografias dos livros de história, delatando as centenas de corpos amontoados em valas comuns. Mas é, talvez, Primo Levi, testemunha e vítima que experimentou os rigores das milícias nazistas, quem melhor descreve os tormentos impostos aos prisioneiros. Levi expõe que, dentre os prisioneiros, alguns eram escolhidos para fazer parte de algo mais terrível, o Esquadrão Especial. Primo Levi relata ainda que dentre os próprios prisioneiros, alguns eram escolhidos para manejar os fornos crematórios e acionar as câmaras de gás: Com esta denominação deliberadamente vaga, esquadrão especial, era indicado pelos SS o grupo de prisioneiros aos quais estava confiada a gestão dos fornos crematórios. A eles cabia manter a ordem entre os re-


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cém-chegados (muitas vezes, inconscientes do destino que os esperava) que deviam ser introduzidos nas câmaras de gás; tirar das câmaras os cadáveres; extrair o ouro dos dentes; cortar o cabelo das mulheres; separar e classificar as roupas, os sapatos, o conteúdo das bagagens; transportar os cadáveres para os fornos crematórios e cuidar do funcionamento dos fornos; retirar e eliminar as cinzas. (LEVI, 1990, p. 26).

Primo Levi menciona, ainda, que raros foram os participantes desse Esquadrão Especial que escaparam com vida, a maioria foi eliminada antes do término da guerra, uma vez que os nazistas não admitiam que portadores desse horrendo segredo pudessem sobreviver para relatá-lo à posteridade. Com o Esquadrão Especial, Hitler acabou por inventar algo funesto para a identidade judaica: a vítima-carrasco. “A vós tiraram a casa / a vós vos tiraram o nome / fostes marcados em brasa / depois vos mataram de fome.” Estes versos, com suas rimas soantes, ficam ecoando pelo poema como a entoação de uma ladainha, a recitação de um salmo, uma oração tartamudeante. Depois de perder os bens materiais, as vítimas perdiam também a condição de ser humano. Relegados ao plano dos animais, as vítimas eram também marcadas com ferro em brasa. Mais uma vez, o memorialista Primo Levi, relata-nos que a ação de tatuar o corpo dos prisioneiros como gado era procedimento rotineiro nos campos de concentração: A operação era pouco dolorosa e não durava mais que um minuto, mas era traumática. Seu significado simbólico estava claro para todos: este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se imprime nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram isso. Vocês não têm mais nome: este é o seu nome. A violência da tatuagem era gratuita, um fim em si mesmo, pura ofensa... (LEVI, 1990, p. 26).

Vinícius fala ainda nas peles frouxas de pancadas. Pancadas horrendas, desferidas sobre corpos ossudos, espécie de tambores arrebentados pela dureza dos castigos impetrados pelos carrascos. A espantosa comparação,


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aproximando os sofrimentos dos judeus à percussão de um instrumento musical, no verso “Ó mortos de percussão”, também, nos remete às lamúrias das mulheres e das crianças, já que elas eram as primeiras a serem sacrificadas nas câmaras de gás. Eichmann, um dos carrascos nazistas julgados em Jerusalém, durante interrogatório, afirmou que, enquanto trabalhou burocraticamente como coordenador dos campos, às vezes, passava horas observando as imensas filas de judeus nus, balbuciando preces. Eichmann, comenta que eles avançavam inocentes, pelos longos corredores para serem asfixiados com ácido ciânico. (ARENDT, 1999, p. 26). Ao final do poema, Vinícius encerra, clamando: “Vós sois o húmus da terra / De onde a árvore do castigo / Dará madeira ao patíbulo / E de onde os frutos da paz / Tombarão no chão da guerra!” (MORAES, 1999, p. 149). Vejamos que ele compara os judeus ao “húmus da terra”. Como falar impunemente sobre os judeus e não mencionar a revolução intelectual desencadeada por muitos deles? Eles são espécie de húmus da civilização ocidental. Sabemos que são inúmeras as personalidades judaicas que mudaram a nossa concepção do mundo e de nós mesmos. Spinoza, Marx, Freud, Einstein, Walter Benjamin etc. Sem nos esquecermos de citar a centena de escritores excepcionais que mudaram o curso da literatura no Brasil e no mundo: Kafka, Fernando Pessoa, Samuel Rawet, Clarice Lispector, Moacyr Scliar, dentre outros. Já os últimos versos que fecham o poema “E onde os frutos da paz/ tombarão no chão da guerra”, parecem mais uma profecia a ecoar pelo futuro, um vaticínio assustador. A árvore da paz traz também a guerra. A criação do Estado de Israel, em 1948, deveria trazer a concórdia e tranquilidade aos milhares de judeus sem pátria, mas o que se viu, ironicamente, daquele ano até hoje, foram verdadeiras carnificinas, guerras absurdas, envolvendo palestinos e judeus. Aconteceram e acontecem massacres assustadores que parecem ser infinitos, os quais acabaram por culminar nas atuais convulsões do Oriente Médio. Assim é que “Os frutos da paz tombarão no chão da guerra”. Para Eric Hobsbawm, o século XX foi o mais assassino na história registrada. “O número total de mortes


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causadas por ou associadas a suas guerras foi estimado em 187 milhões, o equivalente a mais de 10% da população mundial em 1913”. (HOBSBAWM, 2002, p. 15). É de se perguntar: o que nos reservará o século XXI? Ainda estamos no início do novo milênio e já presenciamos estupefatos: atentados terroristas, conflitos no Oriente Médio, que impulsiona uma nova onda de antissemitismo; convulsão econômica na América Latina e na Europa; a multiplicação das bombas atômicas; o aumento descontrolado do tráfico de drogas e da violência nas grandes cidades, bem como a devastação do meio ambiente. O que mais nos restará? É significativo pensar que a análise de um só poema poderá proporcionar inúmeros debates entre os alunos, os quais mobilizarão conhecimentos de história, antropologia, geografia, filosofia, dentre outros. Durante a análise desta polêmica poesia, a qual, com certeza, despertará, como dissemos, acaloradas discussões, propomos que o professor mostre o quadro Campo de Concentração, 1945, do poeta russo-brasileiro Lasar Segall.

Lasar Segall – Campo de concentração, 1945. Fonte: <http://www.reuvenfaingold.com/artigos/aulas/faap/lasar-segal.pdf>. Acesso em 08 jul. 2013.

Interessante observarmos que a dor que Vinícius registrou em versos, Segall traduziu em pincelas de cores ocres. O desalento, a fome, o choro e os gestos de desespero da balada de Vinícius se materializam de forma intensa na pintura de Lasar Segall. Basta olharmos com atenção para a tela e estão


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ali também, entre os vivos flagelados, os corpos em putrefação, os “cadáveres fluorescente” e “amontoados no chão”, os “góticos cadáveres”, “os espantalhos largados na sementeira espectral dos ermos campos estéreis”. Mas, diferentemente do poeta carioca, o pintor-lituano, naturalizado brasileiro, Lasar Segall, sentiu literalmente na pele e nos ossos a angústia de ser prisioneiro em um campo de concentração. Segall nasceu na Lituânia em 1891, numa família judia e grande parte de sua pintura demonstra os hábitos e costumes hebraicos. Segall foi testemunha direta das atrocidades da guerra. Antes de fixar residência definitiva no Brasil em 1923, ele foi preso e confinado num campo de prisioneiros civis em Dresde, logo no início da Primeira Guerra Mundial. Excepcionalmente, os poucos meses em que esteve preso, ganhou permissão para desenhar e pintar. Trata já desta época sua inspiração para inúmeros desenhos que ele produziria no Brasil, principalmente com a série intitulada Visões de Guerra (1940-1943), as quais se constituem de dezenas de aquarelas que retratam os horrores da Segunda Guerra. Mas de todas as figuras, de Exodo I, a Os sobreviventes da Segunda Guerra, bem como Estudo para campo de concentração, 1945, nada se compara a esta pintura a óleo sobre tela, medindo 81x185 cm, com o título direto de Campo de concentração, 1945. Aliás, ao observarmos com mais detalhe este quadro, percebemos a técnica de deformação, própria do movimento expressionista: os corpos amontoados de forma grotesca, os olhares, as mãos e as bocas em desespero. Vivos e mortos se misturam numa mesma visão aterradora da fome e da morte. Segundo Celso Lafer, na arte de Segall, a técnica do expressionismo, que consiste em dar relevância e expressão aos sentimentos, se transformou num “meio de exprimir os duros fatos da existência humana no século XX, para articular assim, uma arte de protesto”. (CARNEIRO; LAFER, 2004, p. 83). Já para Tarsila do Amaral, a arte de Lasar Segall sempre se mostrou “corajosa” e “arrojada”, uma vez que o [...] contato com o drama humano, expressado através da sua pintura é o equivalente de uma reno-


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vação estética e a gente, ao se afastar desta pintura, leva consigo a impressão de que a arte, ao lado da beleza superficial e agradável, tem outra modalidade muito mais séria: a de comover fazendo pensar. (AMARAL, 1992, p. 31).

http://www.museusegall. org.br 3

Desta forma, comovendo e fazendo pensar, o pintor Lasar Segall intriga-nos e fascina com a intensidade estética e política de seus quadros, os quais, a maioria deles, o professor pode acessar no site do museu Lasar Segall.3 Tais desenhos acrescentarão mais elementos para o debate e discussões sobre as consequências da Shoá. Assim, pintura e poesia em diálogo poderão abrir novos caminhos para temas complexos e intrigantes que sempre estarão a nos desafiar no ensino da literatura. Os campos de concentração nazista, evocados dolorosamente por Vinícius de Moraes e por Lasar Segall estão historicamente muito próximos de nós, não se passaram nem setenta anos, e diante do caos e instabilidade político-econômica que o mundo atravessa, é importante retomarmos, sempre que possível este tema em ambiente escolar. Daí, o importante papel do artista de registrar, delatar, denunciar. O poema de Vinícius e o quadro de Segall são registros, mas, também, um alerta. São obras excepcionais de grande beleza estética, mas é também um registro histórico do passado. Vinícius, um poeta não judeu, cantou dolorosamente os campos em sua triste balada. Segall, o pintor hebraico, retratou os campos e os corpos amontoados no chão: ambos revelaram pela arte a barbárie de uma época que não respeitava nem a diversidade de pensamento nem a diversidade da condição humana. Zygmunt Bauman, autor do livro Modernidade e Holocausto, chama a atenção para o fato de que nunca se pode esquecer que foi o mundo racional da civilização moderna e as conquistas tecnológicas e burocráticas da sociedade ocidental que tornaram o Holocausto possível. As mesmas estratégias usadas nas linhas de produção das fábricas foram aplicadas nos campos, desde as experiências biológicas, passando pelas enormes e organizadas filas


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a caminho das câmaras de gás, até os pavorosos fornos de cremação. Bauman diz mais: “o regime nazista de há muito desapareceu, mas seu legado venenoso está longe de morto”. (BAUMAN, 1998, p. 233). Infelizmente, o preconceito e a visão estreita de mundo, que tornou o Holocausto possível não foram eliminados. Já para Lyslei Nascimento e Julio Jeha (2012) a Shoá aconteceu uma vez e pode vir a se repetir novamente. E mais: negando a “existência daquilo que, mais do que um assassinato em massa, foi um crime contra a humanidade, é tornar-se cúmplice da barbárie e colaborar para que o mais grave e mais horrendo dos delitos venha a materializar outra vez”. (NASCIMENTO; JEHA, 2012, p. 12). Dentre os inúmeros fatores sócio-político-sociais que guardam em seu bojo as sementes que podem reeditar os perigos do Holocausto está a precária formação educacional de nossos adolescentes. Como apontamos antes, uma das consequências são o aumento dos grupos neonazistas tanto no Brasil como na Europa e EUA. Grupos formados, em sua maioria, por jovens urbanos, classe média. Jovens comuns que, bem ou mal, frequentam as salas de aula. Jovens que assistem às nossas aulas. Desta forma, o papel do educador comprometido tornou-se mais complexo, ou, como quer Edgar Morin (2000), o professor deve educar para a paz, este um dos maiores desafios à educação do futuro. Tal desafio torna-se maior ainda, quando ouvimos os ecos da voz de Paulo Freire a nos provocar em Pedagogia da autonomia. Para Freire, “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação”. (FREIRE, 1997, p. 39). Já quanto ao nosso projeto sobre literatura e Holocausto, os alunos do curso de Letras ampliaram as aulas, acrescentando ao projeto, leituras de alguns livros de memórias, diários, romances, contos e poemas que podem ser explorados no ensino médio, uma vez que estes textos ajudam na reflexão sobre tema tão desconfortável e penoso: a perseguição e a morte de seis milhões de judeus. Talvez, o mais famoso desses relatos seja O diário de Anne Frank, escrito pela adolescente Anne Frank, entre 1942 e 1944. Importante, também, são as obras editadas em por-


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tuguês, alguns testemunhos de sobreviventes dos campos que moram hoje no Brasil, como E o mundo silenciou, de Bem Abraham, publicado em 1972, pela editora Símbolo e o livro Pesadelos: como é que eu escapei dos fornos de Auschwitz e de Dachau: memórias, de Konrad Charmatz, publicado em 1976, pela editora Momento. Os estagiários deste projeto acharam interessante, trabalhar também com a leitura de O centauro no jardim, de Moacyr Scliar. Neste intrigante romance, o autor enfoca de forma metafórica, na simbologia ambígua de um centauro, a problemática de ser judeu em meio aos cristãos. Não podemos esquecer, ainda, outros poetas, além de Vinícius de Moraes, que enfocaram a temática da guerra na cadência de seus versos, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, dentre outros. Estas são apenas algumas sugestões para tornar algumas aulas de literatura mais criativas, inteligentes e menos maçantes. O professor pode ainda, dando continuidade à interface poesia e pintura, projetar mais quadros que enfoquem a guerra, como, por exemplo, o famoso Guernica, de Pablo Picasso e alguns painéis de Guerra e paz, de Candido Portinari. Comentar sobre a Segunda Guerra, comentar sobre o Holocausto e o antissemitismo na era da informática e da tecnologia do computador, falar para jovens que, nem sempre querem nos ouvir, é muito desafiador: uma esfinge que todos os dias nos ameaça e, se não estivermos respaldados com boa bibliografia e muita criatividade, com certeza, ela nos devorará. Este texto é, portanto, uma pequena sugestão para o professor enfrentar o desafio de ensinar sobre a Shoá, neste universo tão extenso e complexo que é o ensino da literatura comparada na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.


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Ferréz e Machado de Assis nos bancos escolares? Márcia Rios da Silva**

Resumo: Neste artigo discute-se a persistência da “tradição literária” no ensino de literatura em um contexto de transformações sociais, marcadas por diferentes reivindicações de grupos minoritários. Nesse sentido, questiona-se o papel dos cursos de Letras na formação docente, ao tempo em que se propõe uma reflexão sobre as contribuições dos estudos contemporâneos de cultura, que deslocam a centralidade do literário, favorecendo o diálogo da literatura com diferentes produções artísticas e culturais. Palavras-Chave: literatura; cultura; ensino; formação docente Abstract: It is discussed inthis text the persistent “literary tradition” in the teaching process of literature in a context of social changes, defined by different minorities claims. Thus, it is questioned in this text the role of the academic language courses to the educational academic formation and pedagogical training. It is also proposed here a reflection on the contributions of the contemporary cultural studies that displace the centrality of the “literary”, enabling the dialogue among diverse cultural and artistic manifestations. Keywords: Literature; culture; teaching; educational formation

UNEB – Universidade do Estado da Bahia. *

Em entrevista concedida a Heloísa Buarque de Hollanda (2012), o jovem Ferréz, autor de Capão pecado (2005), reivindica o seu “direito a Flaubert”. Ao fazer essa cobrança, o escritor expõe um processo de exclusão secular violento, promovido pelo Estado brasileiro, que não acolheu em seu projeto de nacionalidade os segmentos populares do país, ao negar-lhes o acesso à escola e consequentemente não distribuir um capital cultural prestigiado pela elite letrada. Morador do Capão Redondo, bairro


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da periferia de São Paulo, Ferréz pertence a uma geração de escritores que abraçou a literatura como atividade de militância junto à sua comunidade, mas que reivindica reconhecimento e ocupação ampliada de espaços sociais. A Heloísa Buarque de Hollanda, fez a seguinte colocação: “ainda que eu escreva prioritariamente para minha comunidade, não quero minha literatura no gheto [sic]. Quero entrar para o cânone, para a história da literatura como qualquer um dos escritores novos contemporâneos. E não acho também que minha comunidade deve se limitar à minha literatura, ela tem o direito de ter acesso ao Flaubert”. (Ferréz, apud Hollanda, 2012). Mais do que pensar que Ferréz estaria endossando uma apologia ao cânone, à “grande tradição” literária, importa entender que o escritor reclama uma partilha de bens culturais e simbólicos, negados a uma fração significativa de jovens desse país. Ferréz faz parte de um segmento social que frequenta a escola, com outras demandas e novos repertórios culturais, mas que não abre mão daqueles bens que lhe foram sequestrados. Ao declarar o desejo de que sua literatura faça parte do cânone nacional, de que entre para a história da literatura, o escritor apela para o alargamento da tradição literária, com a inclusão de vozes que estão produzindo nas diversas periferias brasileiras, mas distantes dos centros decisórios do poder responsáveis, inclusive, pela manutenção de um restrito cânone nas escolas. Ainda hoje, torna-se flagrante nos livros didáticos, que ainda têm lugar privilegiado na escola pública, a persistência de um cânone literário reduzido, ao se constatar um número baixo de nomes de escritores compondo uma galeria representativa da produção literária do país. E assim um cânone estabelecido pela historiografia e crítica literárias se mantém, endossado pela escola, a despeito de se ter ampliada a produção literária brasileira nas últimas décadas. Embora esse cânone seja alvo de críticas advindas dos cursos de Letras, sobretudo nos programas de pós-graduação, os debates promovidos em tais espaços não chegam a abalar uma visão de literário - relacionada a autores de prestígio no campo da literatura -, sedimentada pelo senso comum erudito e assimilada por segmen-


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tos médios e populares da sociedade brasileira. Soma-se àquelas críticas uma constatação: as novas produções que estão forçando a abertura do cânone instituído quase sempre entram nas escolas de modo transversalizado e às vezes perturbador. É exemplar de uma entrada perturbadora a literatura produzida por Paulo Coelho, o qual ainda não “recebeu” o aval do campo erudito para que frequente a universidade ou ocupe os bancos escolares da Educação Básica. Em sua tese de doutorado, Sayonara Oliveira analisa, através das mensagens dirigidas ao escritor, e postadas nos seus blogs, “os pactos de leitura que evidenciam o cânone literário e cultural de Paulo Coelho, constituído à revelia ou na contramão dos valores do campo literário instituído”. (2010, p. 7). A autora desenvolve um estudo sobre a repercussão de público de uma produção textual que trouxe embaraços à crítica especializada por deslocar uma visão corrente de literatura. Ressalte-se a sua discussão acerca de uma espécie de duelo que os leitores de Paulo Coelho, na defesa do escritor, travam com os críticos literários. Como desdobramentos dessa discussão, a autora problematiza o cânone instituído ao trazer as inquietações desses leitores, colocadas em seus depoimentos nos blogs, quanto à condenação, por boa parte dos professores, do autor de O alquimista, sobre o qual recai o seguinte veredito: o que Paulo Coelho escreve não é literatura. A partir desse dado, pode-se inferir que o escritor entra de forma clandestina no espaço escolar, através de conversas informais entre os estudantes ou quando eles interpelam um professor, lançando-lhe alguma pergunta acerca de sua produção literária. Algumas dessas produções desviantes encontram mais resistência ainda no ambiente da escola. Ferréz sentiu na pele o veto a seus livros, como atestam os episódios ocorridos em escolas públicas de Minas Gerais e da Bahia. Trechos de Capão pecado estão inseridos no livro didático Linguagem, práticas de leitura e escrita, de autoria da lingüista Anna Christina Bentes, da UNICAMP -, indicado pelo MEC e adotado em colégios. Contudo, alguns pais e professores rechaçaram de modo contundente tal inclusão. No ano de 2010, pais de estudantes de um colégio


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estadual de Feira de Santana-BA registraram queixa no PROCON, órgão de defesa do consumidor, denunciando a professora de português de uma turma de 8ª série, por ter trabalhado em sala de aula com o trecho do livro de Ferréz inserido no livro didático, precisamente o 15º capítulo de Capão pecado. O fato foi noticiado no telejornal de uma rede de TV da Bahia, de grande audiência, a qual deu um tom moralista ao acontecido, censurando o suposto “conteúdo erótico” do livro. O PROCON encaminhou o assunto ao Ministério Público, para averiguação, alegando que a questão estaria fora de sua alçada, pois o fato não ocorreu em escola privada, onde se tem estabelecida uma relação de consumo. Contudo, por considerar que o uso de palavrões no livro de Ferréz o torna inadequado à 8ª série, o funcionário daquele órgão orientou para que o “caso” fosse levado ao MP. A direção do colégio atribuiu a iniciativa do trabalho à professora da turma, cuidando de esclarecer que o livro didático em questão destinava-se aos estudantes, jovens e adultos, do turno noturno. Difícil fica aceitar o argumento da inadequação da linguagem para estudantes cuja faixa etária está entre os 14 e 16 anos, como se nunca tivessem ouvido palavras de “baixo calão” nem relatos de cenas de sexo. Quem sabe acreditam esses pais que cabe à escola preservar, como uma espécie de bolha, a “moral e os bons costumes”, imunizando os jovens contra uma linguagem “inapropriada”, com a qual inclusive já têm grande familiaridade. Chama a atenção o fato de que o episódio tenha extrapolado os muros da escola e sido levado ao PROCON. Ao se recorrer a essa instância, os estudantes supostamente violentados com a leitura de Ferréz foram incluídos na categoria de consumidores, não mais vistos como educandos. Nesses termos, estariam consumindo um produto com defeito de fabricação. O escritor fez protestos, indignado, postando textos em seu blog, nos quais se ressalta o descaso dos autores do processo - e das instâncias que o acolheram -, em relação à questão maior abordada em Capão pecado: a desigualdade social. Ao justificarem o veto ao livro pela linguagem empregada, pais e professores expõem uma visão conservadora, não


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poupando esforços para controlar o outro, e um outro da periferia, num exercício explícito de autoritarismo. Em Minas Gerais, a censura a Capão pecado na escola, pelo uso desse livro didático, ocorreu em 2009. O “caso” foi levado, através de ofício, ao governador do estado pelo presidente das Associações de Pais e Alunos das Escolas Públicas de Minas Gerais, cobrando explicações, como também conduzido ao Ministério Público. Houve quem entrasse em defesa da professora mineira e da adoção do livro, como um pedagogo e professor da PUC-MG, que lamentou o ocorrido, ao tempo em que declarou que o debate deveria sair da esfera moral. A presidente daquela associação, conforme matéria no blog de Ferréz, argumentou que as expressões retiradas de Capão pecado foram usadas em contexto específico, visando “explorar as diversas formas de linguagem”. Comenta a presidente: “Não tem nada além do linguajar do dia a dia. Está mostrando a realidade nua e crua do brasileiro pobre. Indecente e imoral é roubar. Não estou defendendo o palavrão, mas houve um objetivo, que era mostrar uma comunicação mais simples”. (Apud Paixão, 2012). Ressalte-se o uso reducionista de Capão pecado feito pelo livro didático, ao destacar um fragmento dessa narrativa para ilustrar “as diversas formas de linguagem”, no sentido restrito, como exemplo de “comunicação mais simples”, do “brasileiro pobre”, o que retira a forte carga de denúncia pretendida por Ferréz. Episódios como esses envolvendo Ferréz dão a medida de quanto é difícil na escola romper com um cânone sedimentado, o qual se sustenta por um conjunto de valores, desde a sua formação até a sua manutenção. No cânone literário brasileiro, nos moldes como se apresenta nos livros didáticos, predomina a seleção de obras de escritores do sexo masculino e brancos, oriundos da elite letrada, cujos textos, se não trazem uma assepsia linguística, assegurada pela norma padrão, que está, por sua vez, assentada na norma culta, ao menos dela não desviam de modo radical, como faz Ferréz. No início da constituição do cânone nacional, no século XIX, quando se elegeu a literatura, enquanto arte, como linguagem exclusiva para representar a nação, foi com desconforto


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que a elite letrada teve que reconhecer o valor de um escritor afrodescendente, de nome Machado de Assis, para figurar no cânone literário. Contudo, ao incluir esse romancista na galeria dos notáveis, tal elite apagou a sua filiação étnico-racial, omitindo o fato de se tratar de um escritor negro. A crítica literária da época vai se ocupar, inclusive, do uso correto da linguagem culta nos textos machadianos e promover uma interpretação de seus romances pela clave do universalismo, leia-se o universal gestado conforme os valores da cultura dominante. Para Marli Fantini (2011), não se pode ignorar ainda que uma parcela de críticos, contemporâneos do escritor, tratou de desqualificá-lo, acusando o seu absenteísmo. Ao fazer uma releitura da “tradição” literária, a pesquisadora expõe as motivações desses críticos, ressaltando que alguns deles, como Sílvio Romero, foram responsáveis por escamotear a atuação intelectual e política de Machado de Assis, inclusive referiam-se ao escritor com epítetos pejorativos acerca de sua “origem” racial. De modo contundente, Machado de Assis questionou o regime escravocrata do país. Na esfera pública, o escritor, funcionário do Ministério da Agricultura, teve atuação vigorosa na vigilância, destaca Sidney Chalhoub (2003), à aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871, para interferir favoravelmente, com interpretações jurídicas, pela libertação dos escravos. Em seus textos ficcionais, dramatiza as relações da classe senhorial com os escravos, como escancara os interesses individualistas de alguns intelectuais brasileiros do século XIX, beneficiados pelo liberalismo e pelo regime de escravidão. Como valor, o universal em Machado de Assis continua sendo um viés explorado pela crítica literária de formação erudita, que o torna um imperativo categórico na formação dos leitores, insistindo na permanência das leituras de seus romances pelos jovens, ainda que muitos não se sintam atraídos por suas narrativas ao menos nos moldes interpretativos elaborados pela crítica e aplicados no ensino de literatura. Em consequência desse imperativo, alguns professores, ao não incluírem o escritor nos conteúdos de literatura do Ensino Médio, são cobrados,


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ou assim se veem, por não oferecerem aos estudantes o “melhor” da nossa tradição, como se não tivessem cumprido o papel de educadores. Apesar de se constatar que algumas questões abordadas na obra de Machado de Assis podem não ser de interesse dos jovens - por não comungarem ainda dos dramas ou conflitos dos personagens e se encontrarem distantes do contexto histórico e social trazido pelo escritor -, no imaginário da elite letrada a escola, ao não tornar obrigatória a leitura desse “grande clássico”, estaria rompendo com o compromisso de formar leitores. Mas, como entender os questionamentos, recorrentes no âmbito dos cursos de Letras, à imposição do cânone na escola quando um escritor da periferia, hoje produzindo uma “literatura marginal” - rótulo dado pelo próprio Ferréz -, cobra um bem simbólico do qual foi privado de usufruir, o seu “direito a Flaubert”? E aqueles que estão na escola, como estão usufruindo a literatura ensinada se os professores restringem seu trabalho aos escritores incluídos nos livros didáticos? E por que os questionamentos feitos à literatura ensinada não têm força para uma mudança nas práticas em sala de aula? A formação docente na área de Letras, apesar das tentativas de se inovar - por exemplo, quando da formulação do projeto pedagógico dos cursos de licenciatura em Letras no país, conforme diretrizes curriculares estabelecidas pela Resolução do CNE/CES/2002 -, ainda não teve a devida atenção, como objeto de estudo, de pesquisadores e docentes da área. É frequente se constatar a recusa, por parte dos professores das licenciaturas - da área de linguística e literatura - em discutir questões relacionadas à formação, sob alegação de não serem pedagogos, a despeito de serem educadores. Por vezes, alguns reconhecem a crise no ensino, contudo as reflexões não chegam a resultar em intervenção de impacto na formação e não extrapolam os muros das universidades. E assim uma tradição continua sendo ensinada. Os jovens licenciados em Letras, ao iniciarem o magistério - em um contexto de ensino público marcado pela precariedade, adverso às inovações e mudanças -, se veem às vezes tomados pela sensação de que não foram suficientemente preparados


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para o exercício do magistério, que parece distanciá-los do que aprenderam na universidade. Em seu livro A literatura em perigo, publicado inicialmente na França em 2007, Tzvetan Todorov (2010) analisa as implicações do ensino da literatura nesse país, no nível secundário, destacando que o trabalho com as produções literárias desenvolvido nas escolas abandonou “o sentido das obras”, uma vez que esse ensino é mediado por um aparato teórico-crítico ou historiográfico, eleito sem dúvida pelos professores. Tais mediações, de ordem disciplinar, terminam por vetar o contato dos jovens com a literatura - daí a ideia de perigo - no que ela tem de extraordinário: falar das relações entre os homens, da vida, das paixões, enfim. Predominam no ensino da literatura na França, destaca Todorov, o estudo dos movimentos literários e as leituras de resenhas das obras ou de textos de críticos literários. Todorov atribui esse fato a uma formação docente na área de Letras, particularmente após o advento do formalismo russo e do estruturalismo orientando a crítica literária nas universidades, com seus métodos que primam por dissecar o “literário”, o texto em sua imanência, ou por buscar a estrutura “profunda” do texto. Contudo, o autor exime os professores dessa culpa, ao estender sua análise à concepção de arte elaborada pela tradição filosófica no Ocidente, que, por sua vez, contribuiu para a constituição do campo artístico e literário. Tal concepção, sustentada no ideal de transcendência, modelou a teoria literária nos centros universitários, formulada como ciência, na qual predominou o estudo imanente das obras através de um código restrito de análise, promovendo assim uma centralidade do literário e a sacralização da figura do autor. De acordo com Todorov, ganham relevo nos estudos literários, a partir da segunda metade do século XX, concepções niilistas e solipsistas da literatura, apoiadas “na ideia de que uma ruptura radical separa o eu e o mundo”, as quais dissociam as obras da realidade exterior, bem como daqueles que as produziram. Em consequência, afastam a literatura dos “leitores comuns”, categoria abstrata que forma uma comunidade anônima de receptores, acusados, quase sempre, de fazerem interpretações “defi-


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cientes” ou equivocadas das obras literárias. Tal cobrança escamoteia o fato de que esses leitores não dispõem daquele código restrito de análise. As questões analisadas por Todorov, no contexto do sistema educacional francês, também se apresentam com vigor na educação formal dos países latino-americanos, guardadas as suas especificidades, onde a centralidade do literário ganhou terreno. Tal centralidade antecede, sem dúvida, o século XX e tem explicação histórica. Em uma perspectiva cultural, o pesquisador norte-americano John Beverley faz uma análise da supervalorização do literário na América Latina, o que contribui para compreender a distância que o ensino de literatura promove entre leitores e obras. Segundo o autor, desde o início da colonização, a literatura, como instituição, sob a forma dos ensinamentos dos Humanistas, foi transplantada para a América Latina. Esse fato delega à literatura um papel ambíguo: o de ser uma instituição de dominação colonial e, em paralelo, o de desenvolver uma “cultura crioula autônoma” e, posteriormente, uma cultura nacional. Em toda sua história, portanto, os escritores latino-americanos atribuíram à literatura “uma supervalorização social e historicamente determinada de sua importância e função”. (Beverley, 1994, p. 14; grifos do autor). Contudo, esse posicionamento não abalou uma aura de transcendência que se criou sobre as artes e a literatura. No Brasil, o ensino de literatura também explica a negação do sentido das obras, ao ser conduzido, desde o século XIX, por uma perspectiva historiográfica de base positivista, acompanhada de uma visão elitizada de literatura ao se privilegiar um cânone eurocentrado ou o que viria a ser uma tradição literária. Com base nas pesquisas de Roberto Souza e Marcia de Paula Razzini, acerca da vida escolar e das práticas de ensino do Colégio Pedro II no século XIX e parte do século XX, William Cereja (2004) encontra explicação para uma prática cristalizada no ensino da literatura. Com mais de 150 anos, a abordagem historiográfica, implantada no ensino secundário pelo Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, uma escola da elite, converte-se em “tradição”, sustentando os conteúdos programáticos, que priorizam a “visão panorâmica da


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literatura [de Brasil e Portugal], enfocando os cânones da tradição literária”. Aliada a uma concepção humanista de educação, a literatura vai corresponder ao projeto de consolidação do Estado brasileiro, atendendo aos interesses de uma elite política, econômica e cultural. Assim, vai caber ao sistema de ensino, e não só ao colégio Pedro II, reproduzir os valores eruditos e culturais das elites, cuidando de disseminar o cânone literário eleito por esse segmento social, enfim, divulgar a cultura erudita. Para Bourdieu (1996), a escola reproduz os valores do campo de produção erudita, contribuindo para os processos de legitimação da chamada arte culta. O sistema de ensino torna-se instância complementar ao processo de autonomização e consequente institucionalização da arte e da literatura, pois é responsável por instruir e assegurar “os esquemas de percepção e apreciação dos bens simbólicos” (Bourdieu, 2002, p. 117) a serem aceitos e valorizados. Desse modo, ressalta, a produção literária legitimada pelo campo da produção erudita - no qual se incluem as artes e a literatura -, e divulgada na escola, impõe-se pelo “monopólio do exercício legítimo da violência simbólica”, em busca de legitimidade cultural, e contribui para a institucionalização da literatura erudita, num momento em que o campo artístico e literário alcança um grau máximo de autonomia, no século XIX, com a arte moderna. Como agente do sistema de ensino, está o professor, um grande aliado, responsável por validar determinadas produções, uma voz autorizada a respaldá-las. Segundo Bourdieu, a expansão da produção e a circulação dos bens simbólicos nas sociedades modernas capitalistas, aliadas a um crescente público consumidor, orienta o campo erudito para que cultive e mantenha seus capitais culturais intrínsecos e exclusivos às suas próprias leis. Isso se deve ao fato desse campo se estruturar com um corpo de agentes especializados - escritores, artistas, críticos e promotores culturais -, profissionais qualificados para selecionar e validar as produções literárias e definir os princípios e critérios do campo. Essa organização, marcando uma institucionalização da literatura, resulta na distância da arte moderna em relação ao público. (Bourdieu, 2002).


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Para Bourdieu, o culto da “arte pela arte” e o funcionamento do campo de produção erudita são regidos pelos critérios de autossuficiência e especificidade, conforme interesses de seus agentes. As obras modernas ou experimentais são tidas como “puras”, demandando “imperativamente do receptor uma disposição propriamente estética”, e “esotéricas”, por sua “estrutura complexa que exige sempre a referência à história inteira das estruturas anteriores”, tornando-se “acessíveis apenas aos detentores do manejo prático ou teórico de um código refinado”. (Bourdieu, 2002, p. 117). Em paralelo a esse campo, situa-se o campo de produção da indústria cultural e das artes tidas como populares ou comerciais. Para Bourdieu, no campo da produção erudita as obras se apresentam como algo inaugural e original, vindo a criar, posteriormente, a demanda do seu público seleto. As produções massivas, da indústria cultural, por sua vez, contam com uma recepção tida como “mais ou menos independente do nível de instrução dos receptores (uma vez que tal sistema tende a ajustar-se à demanda)”. De acordo com Simon During (1999), teórico inglês dos estudos de cultura contemporâneos, na GrãBretanha dos anos 1950 desenvolveu-se um projeto para as escolas, conhecido como Leavisismo, por ter à frente R. F. Leavis, uma iniciativa cujo intuito era distribuir o capital cultural através do sistema educacional, quando se incluiu a literatura em tal programa. Assim, num contexto em que os produtos da indústria cultural circulavam de modo incessante na Inglaterra, a literatura ensinada, em sua roupagem institucionalizada, estará a serviço da formação cultural e culta dos jovens, tomada, portanto, como um projeto civilizador na escolarização formal. Os leavisistas pregavam o valor da leitura da “grande tradição” para cultivar a sensibilidade moral dos estudantes, isto é, “formar indivíduos com o sentido concreto e equilibrado da vida”, ameaçados com o prazer oferecido pela chamada cultura de massa. Essa tradição passa a compor um cânone literário e converte-se em valor universal, produzido pela cultura hegemônica, tornando-se uma esfera da arte erudita, e é naturalizado como uma verdade a ser aceita por diferentes segmentos sociais e culturais.


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Esse universalismo orienta a formação de um cânone literário com as obras da “grande tradição”, uma seleção imposta como o que merece ser ensinado nas escolas, independente do público que as frequenta. O universalismo que se quer alcançar está assentado no princípio de que a escola transmite saberes que devem ser válidos para todos, ignorando-se assim a diversidade das culturas e os novos segmentos sociais. A “grande tradição” literária passa, desse modo, a fazer parte do currículo escolar - instrumento que traduz um projeto político e pedagógico - e vai sendo naturalizada como o “melhor” a ser ensinado. Para Tomas Tadeu da Silva (2003), um currículo escolar - documento de identidade, de saber e poder, nos termos do autor - endossa processos de exclusão, na medida em que o que ensinar implica seleção e organização de conteúdos. No Brasil, enquanto o sistema educacional atendia majoritariamente às elites do país, a “grande tradição” incorporada ao currículo - e aqui evocando During - não encontrava resistência. O impasse se apresenta quando o ensino público se expande consideravelmente, a partir dos anos 1970, para segmentos sociais de etnias e culturas diversas, os quais não fazem parte da cultura dominante, mas certamente interessou ao regime militar tê-los na escola, como forma de controle social. Tal expansão não veio acompanhada de qualidade, mas marcada pela precarização, que se intensificou com o passar das décadas, o que historicamente tem explicação. Vale destacar a atuação de Antônio Almeida de Oliveira, advogado, educador, jornalista, deputado geral e presidente de província. Tendo vivido no século XIX e se dedicado ao ensino público na província do Maranhão, Oliveira (2003) vai fazer um diagnóstico assustador da educação pública no Brasil Império, vista com desprezo pela Igreja, pelos políticos e pelo imperador Dom Pedro II, que vão sempre inviabilizar projetos educacionais de expansão da instrução pública. Incansável defensor do ensino público para os segmentos populares do país, esse educador, preocupado com o alto índice de analfabetismo, vai implantar uma experiência de escola noturna para adultos e defender


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a educação das mulheres, para se tornarem mestras. Conforme seus estudos divulgados em um livro editado pelo Senado Federal, não havia vontade política para um projeto de educação pública no país, e o ensino vai ser um privilégio das elites e, sobretudo, um privilégio dos homens. Em Prefácio a essa edição, Davi Gueiros Vieira destaca que no ano de 1872 o analfabetismo alcançava o percentual de 80% da população livre, chegando a 83% após a abolição da escravatura, mantendo um patamar de 80% até 1920, caindo um pouco para 76% às vésperas da Revolução de 1930. Os anos 1930 vão se tornar importantes na expansão do ensino público, o que consequentemente contribuiu para a ampliação dos bens culturais, mas distante está de atingir toda a população do país. O professor e sociólogo Antonio Candido (1984) vai atribuir a esse movimento revolucionário uma revolução na cultura brasileira. É a partir dessa década que se amplia a distribuição do capital cultural, quando ocorre uma expansão do ensino público. Ainda que não se possa falar em “socialização ou coletivização da cultura artística e intelectual, pois os bens culturais eram de uso restrito a uma minoria culta”, segundo Cândido, houve, depois dessa década, um “alargamento de participação”, fruto da ampliação da “instrução pública, vida artística e literária, estudos históricos e sociais, meios de difusão cultural como o livro e o rádio. Tudo ligado a uma correlação nova entre, de um lado, o intelectual e o artista; do outro, a sociedade e o estado devido às novas condições econômico-sociais”. (p. 27). Para Cândido, esse movimento, embora não tenha iniciado as mudanças no ensino, já despontadas anos 1920, vai ser o responsável por sua expansão no país. Em 1930 é criado o Ministério de Educação e Saúde, tendo à frente Francisco Campos, que vai estabelecer em todo o Brasil, para o ensino público leigo, as “idéias e experiências da pedagogia e da filosofia educacional dos ‘escola-novistas’”, ainda com o sociólogo. Em âmbito local, tais reformas começam na década anterior: por Sampaio Doria, em São Paulo, com a modernização dos métodos pedagógicos, com a obrigatoriedade do ensino primário, tornando-o realidade, e o incremento de escolas rurais;


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por Lourenço Filho, no Ceará; por Francisco Campos, em Minas Gerais; por Fernando de Azevedo no então Distrito Federal. Para Cândido, as oportunidades continuaram reduzidas, apesar desse movimento de 1930 e do progresso havido, pois no decênio de 1940 “os índices mais altos de escolarização primária eram os de Santa Catarina e São Paulo, respectivamente 42% e 40%”. (p. 28). A renovação pedagógica dos anos 1930, orientada pela “escola nova”, de cunho liberal, para formar o cidadão - na qual se destacou Anísio Teixeira -, opõe-se ao ensino religioso, que buscava criar o fiel aos ensinamentos da Igreja. Tal renovação não resulta na ampliação de escolas para os segmentos populares, e o saber vai se manter um privilégio para poucos. Cândido ressalta que, após os anos 1930, haverá um aumento considerável de escolas médias e do ensino técnico sistematizado, quando também se torna favorável a situação do ensino superior, com a criação das universidades, a começar pela USP, em 1934, o que altera “o esquema tradicional das elites”. Ainda nessa década surgem as faculdades de filosofia, letras, ciências e educação. Na busca de renovação do ensino, os intelectuais almejam a “redefinição e o aumento das carreiras de nível superior para renovar a formação das elites dirigentes e seus quadros técnicos, agora com mais oportunidades de diversificação e classificação social”. (Cândido, 1984, p. 28). Embora a criação de novas faculdades tivesse reduzido a aura de nobreza de uma tradição de bacharéis e doutores no país, e a literatura e as artes produzidas nos decênios de 1920 e 1930 tivessem abalado a visão academicista e conservadora dominante na concepção de literatura e de arte até o final do século XIX, a literatura continuará sendo uma escrita altamente prestigiada, promovendo uma distinção social, pois ainda era alto o número de analfabetos, o que vai favorecer para que se mantenha uma noção elitizada da arte literária. No empenho para tornar o Brasil um país alfabetizado, vai se assistir a um processo lento de democratização do ensino público. Na história de sua expansão, a escola vai acolhendo os segmentos populares, e outras demandas e novos repertórios culturais entram em sala de aula. Desse modo, os conteúdos de literatura selecio-


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nados para a composição do currículo formal - que elege um cânone literário com autores da “grande tradição” quase sempre não têm boa aceitação por sujeitos que nem sempre se veem nessa composição, a qual não contempla seus valores culturais, crenças e modos de viver. Em se tratando do português, como disciplina e língua ensinada, vai sendo imposta uma norma linguística, a das elites, que nega as falas dos segmentos populares, ao desqualificá-las como falares incorretos e incultos. Em relação à literatura, levada para a sala de aula - passada, portanto, por um processo de escolarização -, os estudantes vão se deparar muitas vezes com uma série de dificuldades, dentre elas, a de dar as respostas pretendidas pelos professores, pelas abordagens propostas, a de ler textos literários nos quais não encontram sentido, seja por não se verem aí representados, seja porque a abordagem os limita no exercício de interpretação. Frente a um trabalho com a literatura que não lhes parece ter sentido, criam uma resistência à literatura ensinada, o que impõe uma investigação acerca da formação docente ao tempo em que algumas questões permanecem. Por que persiste uma prática cristalizada do ensino de literatura? Como libertar a literatura das análises ancoradas em um arcabouço teórico-crítico que a descolaram da vida dos estudantes? Que propostas teórico-metodológicas podem contribuir para que novas práticas de ensino de literatura se instaurem nas escolas públicas? O que explica a permanência do ensino de literatura através da abordagem historiográfica de base positivista, apesar de constantes críticas, debates e da emergência, quando da abertura política no Brasil, de propostas inovadoras, como a do ensino da literatura a partir de temáticas, nos anos 1980? Se ainda não se tem propostas no âmbito da formação docente, ao menos se pode apostar que os estudos contemporâneos de cultura e literatura têm muito a colaborar pelos deslocamentos que provocaram ao questionarem a cultura hegemônica. Antes de uma incursão por tais estudos, vale indagar o que propõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96 sobre a reforma do ensino no país, que pudesse vir a impactar o ensino de literatura.


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Os documentos produzidos e publicados a partir da LDB 9.394/96, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e o Médio, os Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Fundamental e Médio e os Parâmetros Nacionais + Ensino Médio, têm o intuito de orientar para uma prática pedagógica que promova a interdisciplinaridade, o conhecimento significativo para o estudante, além de endossar a importância da participação social, da cidadania e da integração do estudante ao mundo globalizado e tecnológico. Contudo, tais parâmetros não são suficientes para se alcançar efetivamente esses ideais, o que aponta para uma discussão acerca do papel da universidade na formação docente. Os referidos documentos são analisados por William Roberto Cereja (2003) em sua tese de doutorado sobre o ensino da literatura no Ensino Médio. Para esse pesquisador, que desenvolve seu estudo com base nos livros didáticos e é conhecido como autor de livros didáticos de literatura para o Ensino Médio, nos documentos se constata a persistência da perspectiva historiográfica nas práticas de ensino, introduzida no século XIX, sobrevivendo a várias políticas educacionais no país. Segundo Cereja, a reforma de ensino promovida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71, criada pelo regime militar, “inspirada numa concepção nacionalista e tecnicista, favoreceu a permanência da historiografia literária na escola, geralmente trabalhada com ênfase na memorização de períodos, autores, obras, datas, etc.” (p. 193). É nesse contexto, afirma, que surgem “os livros didáticos, com textos, estudos dirigidos e exercícios preparados diretamente para o aluno, ignorando a colaboração do professor”. Com a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96, não foi diferente, ao não possibilitar efetivamente um questionamento acerca das tradicionais práticas de ensino que resultasse em mudanças concretas em sala de aula. Ao analisar as diretrizes dos PCN’s, Cereja comenta a sua insuficiência e inconsistência teórica e prática. Em relação ao ensino da Língua Portuguesa, constata uma superposição de correntes de pensamento distintas: o interacionismo, a semiótica e o funcionalismo; o último


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define linguagem como meio de expressão, informação e comunicação, ignorando os sujeitos sociais, que fazem a história. Contraria, assim, o princípio que supostamente rege tais Parâmetros: o estudante é o sujeito ativo da aprendizagem. Para Cereja, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio não tiveram impacto junto aos professores dada a brevidade desse documento, que não desenvolve “sua concepção supostamente inovadora de ensino de língua e literatura” nem apresenta “condições para que professores e escolas repensem com critérios objetivos suas práticas pedagógicas”. Ainda com relação à área específica de Língua Portuguesa, Cereja constata que nos PCNEM “não há desenvolvimento das propostas ou maior clareza sobre conteúdos e metodologia a serem adotados”. No tocante à literatura, continua, há pouco destaque, apresentada como “mais uma linguagem” na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, definida pelos PCNs. Com essa observação, o autor reivindica um lugar privilegiado para a literatura, tida como escrita altamente valorizada, reforçando uma velha hierarquia. Inserida na área de Linguagens, a literatura perde a centralidade, o que resulta numa cobrança nostálgica por parte de professores e pesquisadores formados por uma tradição erudita. Agora, o trabalho com a literatura enfrenta a concorrência de outras linguagens, a exemplo da música popular, do cinema e produções televisivas. Contudo, o documento Parâmetros Curriculares Nacionais + Ensino Médio, elaborado depois de críticas à inconsistência do PCNEM, torna a “emenda pior do que o soneto” por endossar o ensino tradicional. Cereja destaca que o documento, embora dê relevo à formação dos leitores, ao propor atividades orienta o professor para desenvolver trabalhos que levem os estudantes a identificarem obras com determinados períodos literários e “estilo individual”, reforçando uma prática tradicional, cristalizada, de ensino. Desse modo, conclui o autor, por serem incipientes, os PCNEM não orientam para um novo ensino da literatura, que continua sendo ensinada como conteúdo de uma disciplina cuja carga horária semanal não favorece a realização de um trabalho


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rentável. Logo, os PCNs não afetam as práticas de ensino, ao contrário, como constata Cereja, até reforçam antigas práticas, consideradas pelo documento um obstáculo ao conhecimento significativo do estudante. Ainda no Colégio Pedro II, no final do século XIX, a produção literária de cada país, de acordo com a tese do autor, estava organizada em épocas literárias, assim como hoje se organiza em estilos de época ou movimentos literários. Por último, “também há semelhança na divisão dos períodos literários”, ressalta Cereja. Tal ensino é herança do modelo humanista, afirma, que prega a formação integral do indivíduo, reforçado pelos PCNs, mas hoje tão desacreditado aquele modelo, quando se tem por meta uma formação profissional para, supostamente, vir a atender ao mercado de trabalho. Pode-se acrescentar que, aliada à concepção humanista de educação, no século XIX tem-se o ensino da literatura na perspectiva historiográfica, adotada para atender ao projeto de consolidação do Estado brasileiro, como já se destacou aqui, tornando-se de certo modo, tal perspectiva, anacrônica nos tempos atuais. A persistência de uma prática de ensino cristalizada encontra solo ainda hoje quando se tem uma Lei, como a LDB 9394/1996, que privilegia a formação profissional, e se constata o abandono do Ensino Médio na política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso, e a situação não se reverteu. Tem-se uma prática que sofre interferências de uma representação sobre o ensino como uma etapa a ser logo vencida pelos jovens. Essa etapa vem marcada pelo aligeiramento, durante a qual os estudantes são pressionados a apresentar performance, como uma senha de inserção no chamado mercado, ainda que os postos de trabalho estejam escassos. Assim, tentando sobreviver nessa seara de mudanças no ensino público, em que se privilegia a formação profissional, o trabalho com a literatura continua em sala de aula, guiado por abordagens historiográficas de base positivista ou por um arcabouço teórico-crítico. Tendo em vista os novos contextos socioculturais na contemporaneidade, parece que não se vislumbram novas alternativas metodológicas, possibilidades que sempre se veem


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frustradas enquanto se mantiver o aviltamento das condições salariais e de trabalho dos professores da rede pública escolar, o que contribui para um empobrecimento do ensino. Tal constatação não invalida uma reflexão acerca da formação docente na área de Letras, particularmente a formação do professor de literatura. Conforme levantamento feito por Celdon Fritzen e Danielle Silva (2009) acerca das pesquisas sobre o ensino de literatura no Brasil realizadas pelos Programas de Pós– Graduação, em teses e dissertações produzidas entre 1988 e 2006, é recorrente se tomar os livros didáticos como objeto de estudo, prevalecendo as seguintes abordagens: livro didático e didatização do texto literário; crítica à prática docente e ênfase no papel do professor na mediação da leitura; importância do contato do aluno com o texto literário; problemas de letramento. Nesse levantamento, Fritzen e Silva destacam algumas questões problematizadas por tais trabalhos e ressaltam que as pesquisas apontam que o livro didático, a despeito de o Governo Federal oferecê-lo aos estudantes das escolas públicas, é alvo frequente de críticas. Tais pesquisas ressaltam ainda a importância de se fazer um trabalho em sala de aula com textos literários integrais, e não por fragmentos, como é comum encontrá-los nos livros didáticos. Nesse caso, a crítica recai sobre a formação docente, mas sem problematizá-la. Surpreende que os livros didáticos sejam o foco e o fim último nos estudos, quando deveriam ser o ponto de partida para se investigar a formação docente e os problemas enfrentados em sala de aula. Além disso, tais estudos, ressaltam Fritzen e Silva, chamam a atenção para o fato de que o livro didático deixa de ser um instrumento de apoio ao trabalho docente para ser, quase sempre, o único material utilizado. Ainda, as pesquisas identificam problemas de letramento entre os estudantes do Ensino Médio, como consequência de lacunas deixadas durante o Ensino Fundamental, o que exige, como reivindicam tais estudos, um trabalho mais efetivo nos primeiros anos de escola. Fritzen e Silva concluem, com base nessas teses e dissertações, que, embora as atuais políticas de incentivo à leitura tenham se popularizado, não há garantia efetiva de que toda a população


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será privilegiada, e mesmo aqueles que têm acesso à escola não necessariamente vão se tornar leitores. A partir dos resultados dessas pesquisas, que atribui quase que exclusivamente ao livro didático o fracasso no ensino de literatura, prevalece uma visão idealizada sobre literatura, como linguagem exclusiva na formação crítica dos estudantes, de certo modo um valor produzido por uma elite cultural. Por tal pressuposto, os estudantes das escolas públicas ficarão descapitalizados, num contexto em que a política pública para a educação no país privilegia a formação profissional, que ocorre no Ensino Médio. Considerando que é nesse período de escolarização que a literatura é incluída como conteúdo da disciplina Língua Portuguesa, o contato do estudante com as obras literárias é reduzido por “força” do que propõe ser esse componente curricular. Se se levar em conta que a evasão escolar no Ensino Médio é muito alta, um número expressivo de jovens estará prejudicado, caso se confirme a crença no poder da literatura para a formação crítica. Tendo em vista as questões apontadas nas pesquisas analisadas por Fritzen e Silva, e o direcionamento dado pelos autores daquelas teses e dissertações, deduz-se que a literatura continua gozando de grande prestígio na formação cultural dos jovens, ainda que tenha concorrentes como a música, o cinema e os programas de TV, além do universo espantoso de informações que a Internet oferece. A despeito da crença no prestígio da literatura, as práticas de ensino não têm dado uma contribuição de peso, quando se sabe que os estudantes quase sempre não encontram sentido na literatura ensinada. Como a formação docente é ignorada, enquanto objeto de estudo, no âmbito da pós-graduação, pode-se também deduzir que a literatura, ou pelo menos a concepção de literatura formulada pela tradição erudita e letrada, vai ficando cada vez mais distante dos jovens das escolas públicas. Confirmando o que poderia ser uma inferência desprovida de dados sobre a ausência de pesquisas relacionadas à formação docente nos programas de pós-graduação da área de Letras e Linguística, destaque-se o levantamento de teses feito por Rodrigo Santos (2011), da área da educação, a partir do qual o autor busca responder


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à seguinte pergunta: “que contribuições para alcançar avanços e mudanças no trabalho com a leitura literária, recorrente em contexto escolar, estariam sendo oferecidas pelas teses de doutorado defendidas nos Programas de Pós-Graduação do Brasil nos últimos anos?” O pesquisador justifica a escolha de teses pelo entendimento de que se espera, num curso de doutorado, que as pesquisas devam responder a questões sociais emergentes. Colocando como objetivo maior em seu doutorado contribuir para a discussão realizada por disciplinas pedagógicas oferecidas nos cursos de Letras/Habilitação em Língua Portuguesa, e pelo entendimento de que tais cursos pretendem, em sua maioria, formar professores para uma atuação nos últimos anos da Educação Básica, Santos tomou como ponto de partida o ano de 1996, quando foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação/ Lei 9.394/96, que integrou o Ensino Médio à Educação Básica no país. Com base nos dados coletados, referentes ao Ensino Médio, Santos delimita os assuntos a serem buscados nessas teses: ensino de literatura no Ensino Médio; formação de professores de Português; e formação de professores de Literatura. Para esse pesquisador, apesar das críticas feitas às abordagens dos textos literários e ao ensino de literatura no Ensino Médio, quando se pensa na formação dos professores de Língua Portuguesa é insípida a contribuição das teses de doutorado produzidas no Brasil. Também são mínimas as pesquisas relacionadas à formação do professor de Português. No tocante à formação de professores de literatura, o autor encontrou apenas 01 tese, de 1996, na qual se discute a formação de professores de Educação Básica e Superior, da área de Letras. No entanto, essa tese detém-se na constituição do perfil dos sujeitos de pesquisa como leitores - adianta Santos - e a sua autora conclui pela frágil formação leitora de tais sujeitos. A investigação feita pelo autor, a partir dos resumos das teses no Banco da CAPES, cobre o período de 1996 a 2007, último ano em que as teses foram disponibilizadas até o encerramento de sua pesquisa, em 2009, assim ele justifica. Destaque-se aqui uma tese de doutorado, de Micheline Lage (2010), também na área de Educação, na


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qual a autora desenvolve um estudo acerca dos “direcionamentos do ensino de Literatura nas faculdades federais de Letras (licenciaturas) do estado de Minas Gerais e suas relações com as demandas provenientes da Educação Básica”. Graduada em Letras e professora do Ensino Médio, a autora conclui que, apesar de se terem registradas ricas experiências literárias nessas faculdades, a universidade, como expressão da sociedade atual, pragmática, utilitarista, destaca Lage, “corre o risco de deslocar a literatura para dois eixos: o da distinção e o da pedagogização”. Contudo, observa que algumas instituições já apontam para um diálogo entre literatura e educação, como alternativa de renovação e ultrapassagem da dicotomia distinção/pedagogização da literatura. Sem dúvida as preocupações que começam a se manifestar, como as de Rodrigo Santos e Micheline Lage, decorrem das inquietações de docentes que atuam no Ensino Médio. Esses professores constatam o fosso que se estabeleceu entre o ensino universitário e a Educação Básica, na qual os novos sujeitos que aí chegam expressam demandas e aspirações diversas, vivem e produzem uma textualidade híbrida, elaborada pelos fios da cultura popular-massiva e erudita, transtornando uma visão tradicional do ensino de língua portuguesa e de literatura. Essas questões se impõem desafiando a área de Letras à criação de um projeto político-pedagógico que oriente os licenciandos nas práticas de ensino que façam sentido para os estudantes, confrontando-os com a “necessidade de aprender”, e resultem numa relação prazerosa com o saber, pois o que está em jogo são as relações dos sujeitos com o saber, sua produção, sua apropriação e sua transformação, no entendimento do educador francês Bernard Charlot. A “relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender”. (Charlot, 2000, p. 80). Ainda, “a relação com o saber é o conjunto (organizado) das relações que um sujeito mantém com tudo quanto estiver relacionado com o ‘aprender’ e o saber” (p. 80). Segundo Charlot, o conceito de relação com o saber implica também o conceito de desejo. É importante


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compreender as múltiplas relações dos indivíduos com o aprender e, de modo mais específico, com os processos pelos quais o sujeito aprende, o que o mobiliza a aprender. A relação com o saber é uma relação de sentido, de valor, entre um indivíduo ou um grupo e os processos ou produtos do saber. Por esse entendimento, a formação docente deve ser enfrentada e discutida no âmbito dos cursos de Letras por professores e pesquisadores da área. Particularmente em relação ao professor que vai ensinar literatura, deve-se ter a abertura para se promover deslocamentos radicais acerca da visão da literatura, que não pode ser compreendida como uma prática de escrita distanciada da cultura, e pensar os sujeitos que estão na escola pública, com suas demandas e expectativas em um processo de aprendizagem. Não se pode ignorar a contribuição singular dos estudos comparados, os quais, ao emergirem como disciplina nos programas de pós-graduação em Letras no Brasil, nos anos 1980, convocam a comunidade acadêmica para que se pensem as velhas hierarquias, o predomínio da teoria literária, responsável por conduzir a uma centralidade do literário, distanciando-o da cultura. E essa perspectiva favorece trabalhos mais instigantes com a literatura na Educação Básica. Na visão de Eneida Leal Cunha (1996), com a onda comparatista daquela década, “problemas e matérias pontuais afloram e são desenvolvidos”, promovendo a desierarquização dos produtos da cultura e de formas do literário; a apropriação e operacionalização do conhecimento de outros territórios, de outras disciplinas; os nexos investigados ou promovidos entre literatura e outras linguagens; o jogo fascinante que relativiza ou reverte valores, conceitos e formas das ficções, das biografias, das relações de parentesco. Trabalha-se enfim nas intertextualidades, nas intersemioses e nas interdisciplinaridades. (p. 20)

Esses instigantes investimentos analíticos da literatura comparada vão se somar às também provocadoras reflexões produzidas pelos estudos contemporâneos de cultura. Tais estudos vão dar também uma contribuição


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extremamente rentável para se pensar novas propostas de ensino de literatura, ao relativizarem as hierarquias e questionarem o valor do cânone literário estabelecido. Ao investirem em análises acerca da pluralidade das culturas, por exemplo, esses estudos colocaram em questão a centralidade do literário, o que pode contribuir para que se para rompa o impasse gerado com o conflito criado pelos interesses dos jovens da escola pública frente a um projeto de escolarização formal, particularmente quando se vive uma realidade que é fruto de temporalidades diversas. Os repertórios culturais dos novos sujeitos que frequentam a escola sejam aquelas experiências e valores de uma formação cultural elaborada no passado, considerado pelo pensador marxista inglês Raymond Williams (1979) como residual, sejam os novos significados e valores, novas práticas, tidos pelo autor como força emergente - vão se cruzar com valores da cultura dominante, disseminados pela escola. Tais repertórios provocam um abalo das crenças em práticas cristalizadas, como a do ensino de literatura que vigora, implementado por um sistema educacional moldado pelas aspirações de segmentos sociais que fazem parte da cultura dominante. Frente ao “residual” e ao “emergente” que provêm dos segmentos populares, o sistema educacional vê-se num impasse, mas segue cumprindo o seu papel, ao preservar uma prática cristalizada na abordagem da literatura, o que faz da escola o conservatório da alta cultura, a saber, a “tradição” literária. Ao se manter esse papel, são ignoradas as mudanças sociais ocorridas, como as trazidas pela cultura massiva, que também constituiu o seu campo, cujos produtos são desqualificados pelo sistema escolar. Por isso, os repertórios da cultura massiva, tão familiares aos jovens, entram de modo transversal no currículo escolar, que se encarrega de definir uma cultura legítima. Na análise que faz dos valores e forças que atuam na elaboração dos currículos escolares, em diferentes momentos, Tomaz Tadeu da Silva (2003) afirma que esse instrumento tem se constituído em objeto de preocupação de muitos teóricos, principalmente a partir da emergência, na década de 1970, de teorias pedagógicas críticas. Os


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estudos realizados nessa perspectiva focalizam os processos de seleção, organização, distribuição e estratificação dos conteúdos curriculares. Segundo Silva, o fenômeno do multiculturalismo foi fundamental a esses questionamentos: provocou uma problematização dos currículos, atacando os valores da classe dominante neles veiculados, e questionou a exclusão das culturas populares e até do popular massivo promovida por uma organização curricular, o que expõe o jogo entre saber e poder. Ainda com o autor, as teorias pós-críticas do currículo, produzidas no âmbito dos Estudos Culturais, significaram uma dilatação de questionamentos a serem considerados nessa problematização. Isso possibilitou à sua teorização articular a produção do conhecimento às relações de poder e à produção de identidades sociais, de gênero e sexualidade, apontando novos caminhos para se pensar o nexo entre conhecimento e indivíduo, enfim, as experiências humanas. Ao apontarem as relações sociais de dominação nesse jogo, os estudos contemporâneos de cultura vão favorecer que se pensem nos novos atores sociais da escola, favorecendo a construção de currículos nos quais as literaturas produzidas por diferentes sujeitos ganhem efetivamente espaço e sentido. Como campo de produção do conhecimento, tais estudos emergem nos anos 1950 promovendo rupturas significativas, o que marca um posicionamento político e teórico, ao se preocuparem com a cultura popular e a dos mass media, desqualificadas pela cultura dominante. Com esses deslocamentos, as artes e a literatura são consideradas práticas culturais, minimizando assim o culto da arte pela arte ou a autonomia artística defendidos pela modernidade estética. Destaque-se a obra The uses of literacy, de Richards Hoggart, na qual aborda as experiências e os estilos de vida das classes populares da Inglaterra. Tendo vivido em bairros operários do Norte desse país, interessa a Hoggart o que vem da cultura popular, no contexto dos anos 1930 a 1950, quando a classe operária foi escolarizada, tendo acesso a livros, revistas e jornais, como também ao rádio e à televisão, meios de comunicação que passam a fazer parte do cotidiano dos operários. É no contexto dos anos 1950, cabe ressaltar, que o Leavisismo,


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analisado por Simon During, é encampado como projeto de divulgação da “grande tradição” literária nas escolas para enriquecer o capital cultural dos jovens britânicos, na tentativa de livrá-los dos perigos da cultura de massa. Segundo Ana Carolina Escosteguy, a pesquisa de Hoggart “inaugura a perspectiva que argumenta que no âmbito popular não existe apenas submissão mas, também, resistência, o que, mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos meios massivos”. (1999, p. 139). Tal perspectiva amplia as análises de Bourdieu, que postula que a escola é o lugar da reprodução cultural, bem como se torna fundamental para se entender os impasses postos pelos currículos escolares, que ainda preservam a importância da “tradição” literária. A resistência dos jovens aos textos dessa tradição pode, inclusive, contribuir com mudanças de ordem metodológica no ensino de literatura, forçando uma expansão do cânone na escola, a despeito do elitismo na defesa dessa tradição, já abalada com produções de segmentos sociais historicamente excluídos. Assim, a expansão dos estudos da cultura, ao contrário das severas críticas que lhes são feitas - como a de que teriam liquidado os estudos literários - acompanhou, segundo o crítico norte-americano Jonathan Culler, a expansão do cânone literário. Culler contesta a ideia corrente de que os chamados estudos culturais fazem oposição aos estudos literários. Ao contrário, o que ocorre é um questionamento a uma tarefa dos estudos literários convencionais, que faziam, e ainda fazem, ressalte-se, a “interpretação de obras literárias enquanto realizações de seus autores, e a principal justificativa para o estudo da literatura era o valor especial das grandes obras: sua complexidade, sua beleza, sua percepção, sua universalidade e seus potenciais benefícios para o leitor”. (Culler, 1999, p. 52). Continua o autor: O trabalho nos estudos culturais se harmoniza particularmente com o caráter problemático da identidade e com as múltiplas maneiras pelas quais as identidades se formam, são vividas e transmitidas. Particularmente importante, portanto, é o estudo das culturas e identi-


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dades culturais instáveis que se colocam para grupos – minorias étnicas, imigrantes e mulheres – que podem ter problemas em identificar-se com a cultura mais ampla na qual se encontram – uma cultura que é ela própria uma construção ideológica que sofre mudanças. (p. 52).

Em vista disso, e a despeito da escola recusar a ampliação do cânone literário, um trabalho com a literatura em sala de aula pode ser beneficiado pelas contribuições dos estudos contemporâneos de cultura, que têm o mérito de reconhecer as literaturas produzidas por diferentes sujeitos, ricas por trazerem a pluralidade das identidades sociais. Tais produções apresentam singularidades, demandas e valores desses protagonistas e fazem cair por terra a já sedimentada ideia de literatura universal, para que se fale “de ‘literaturas’ em condições históricas e socialmente específicas de produção e recepção”, como ressalta John Beverley (1994). Assim, uma prática de ensino da literatura que venha acolher essas produções literárias permitirá a escuta de experiências humanas, diversas e diferentes – expressas por sentimentos, ações e expectativas, mas silenciadas por vozes autoritárias. Com esse entendimento, deve-se evitar que as produções textuais oriundas de segmentos populares sejam trabalhadas de modo limitado, como o que ocorreu com a literatura de Ferréz no livro didático Linguagens: práticas de leitura e escrita, o qual restringiu Capão pecado a exemplo de linguagem entre as “diversas formas”. Se persiste tal perspectiva, tais produções continuarão tendo uma visibilidade segregada, nos termos de Stuart Hall (2003), em suas discussões acercas das relações raciais. Em seu ensaio “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, esse sociólogo jamaicano alerta para os perigos que corre a luta dos negros - por mais espaços na sociedade - frente aos usos, feitos pela cultura dominante, dos repertórios e práticas culturais populares e dos negros. Tais usos, segundo Hall, se dão de modo regulado e controlado, produzindo uma visibilidade segregada. Desse modo, a cultura dominante se apropria das diferenças de uma forma que não faz diferença alguma, afirma Hall. Dito isso, ao se ampliar nas práticas de ensino o re-


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pertório de obras literárias que são produzidas por diferentes sujeitos, há que se explorar o diálogo do estético com o cultural, a fim de que os jovens estudantes encontrem os sentidos das obras, que lhes chegam como experiências de vida singulares, agora compartilhadas. Aí há que se ter em vista o sentido amplo de cultura, não devendo, portanto, restringi-la ao cultivo de formas estéticas, na busca de elevação e refinamento. A literatura ensinada deve ser uma prática cultural libertadora, a fim de que conduza os jovens não só ao exercício da leitura, como ao da escrita. Tal exercício já se encontra socializado nas redes digitais, quando se sabe do imensurável volume de textos literários produzidos na Internet, por diferentes sujeitos. Exemplos dessas experiências também podem ser vistos fora da rede, ainda que a Internet venha a ser o veículo de divulgação por excelência. São os saraus literários, os “coletivos”, as “ações” poéticas e artísticas promovidos pelos escritores e artistas das periferias urbanas, em todo o Brasil, a exemplo do que faz Ferréz. Esses “coletivos” e “ações poéticas” convocam toda a comunidade a não só assistirem às intervenções ou performances, mas a se envolverem e produzirem seus textos, num exercício de criação que devolve aos participantes o sentido da literatura, num puro devir. Tais práticas culturais são extremamente ricas e interessantes para se pensar um processo saudável de desescolarização da literatura e se entender os deslocamentos feitos da noção de literário elaborada pela tradição letrada, noção que marcou distância entre público e leitor. Portanto, para se recuperar o sentido das produções literárias, há que implicar o outro na relação com o saber, e o ensino deve tomar a literatura em seu devir, nos termos de Gilles Deleuze (1997), que entende a literatura como processo, criação, prática de escrita da ordem do inacabado. “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”. (p. 11). Essa perspectiva ainda desloca a literatura de uma dimensão estritamente institucionalizada - nos currículos escolares -, em favor da vida, das experiências, de seus


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sentidos, que explodem por diferentes linguagens. Um verso de Manoel de Barros sintetiza tal pretensão: “A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”. Também com Ferréz se pode desarrumar a linguagem - “palavrão pra mim é FOME, Corrupção e Hipocrisia” - na busca de um trabalho com as literaturas que promova um reencontro dos estudantes com outras experiências individuais e coletivas.

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O júri simulado num exercício comparativo: uma leitura de Medéia e Anjo Negro em sala de aula do ensino superior Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega**

Resumo: Neste trabalho temos como objetivo descrever e refletir, a partir de uma experiência de leitura com o texto dramático em uma turma de Teoria da Narrativa do Curso de Letras da UFCG, acerca das contribuições da Literatura Comparada enquanto método de leitura para o ensino de literatura, tendo como objeto de leitura, via júri simulado, as tragédias Medéia, de Eurípedes, e Anjo Negro, de Nélson Rodrigues. Palavras-Chaves: Nélson Rodrigues, Teatro, ensino de literatura. Abstract: In this paper we aim to describe and reflect, from a reading experience with the dramatic text in a class of Narrative Theory Course Letters UFCG, about the contributions of Comparative Literature as a method for teaching reading literature, having as object reading via moot, tragedies Medéia by Euripides, and Anjo Negro, by Nelson Rodrigues. Keywords: Nelson Rodrigues, theater, literature teaching

Introdução

Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. *

Nas duas últimas décadas, as reflexões acerca do trabalho com o texto literário vêm se intensificando e levado muitos pesquisadores a (re)pensarem possibilidades metodológicas para uma abordagem da literatura, tanto em nível da Educação Básica quanto no Ensino Superior. Tomando por base uma certa escassez de subsídio teórico


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e metodológico para abordagem de textos teatrais em sala de aula, esse trabalho tem como objetivo relatar uma experiência de leitura com o texto dramático realizada em uma turma de Teoria da Narrativa do Curso de Letras da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Para melhor atingir a esse objetivo, dividimos o trabalho em quatro momentos. No primeiro momento, de natureza teórica, fizemos uma rápida descrição do percurso histórico da literatura comparada a fim de visualizar suas contribuições para o ensino de literatura. Os textos que nos serviram de aporte teórico foram Aristóteles (1966), Carvalhal (1999), Carvalhal e Coutinho (1994), Eliot (1989), Jauss, (in: Lima, 2002) e Nitrini (1988). No segundo momento, discutimos algumas questões polêmicas em torno da formação do leitor em ambiente universitário, com enfoque voltado para o leitor literário no contexto do ensino de Graduação do Curso de Letras. Os textos que fundamentaram as reflexões foram Candido (1981), Brasil (2001), JOVER-FALEIROS (2013), DALVI (2013) e Todorov (2007). No terceiro momento, relatamos uma experiência de leitura com alunos matriculados no segundo período da Graduação em Letras da UFCG na disciplina Teoria da Narrativa, buscando descrever como o júri-simulado contribuiu para discussões dos conceitos de gênero narrativo, mas especificamente da tragédia e do mito, na busca de encontrar elementos que permitissem uma relação dialógica, comparatista, portanto, entre as obras Medeía e Anjo Negro, escritas, respectivamente, por Eurípedes e Nelson Rodrigues. Por fim, no último momento, sob uma sistemática de avaliação conclusiva, discorremos acerca dos principais pontos de recepção dos alunos à experiência de leitura vivenciada. Literatura Comparada e ensino de literatura A definição de Literatura Comparada, enquanto método crítico, considerando o seu objetivo primordial


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de confrontar duas ou mais literaturas não é suficiente para uma compreensão dos seus fundamentos, sempre mutáveis em função do tempo e espaço. Uma rápida incursão histórica faz-se necessária para compreender os ajustamentos sincrônicos e diacrônicos que o comparativismo sofreu, desde seus primórdios grecolatinos (NITRINI, 1998). A compreensão histórica para o surgimento da disciplina, enquanto modelo sistematizado, tem lugar na Europa durante o século XIX (CARVALHAL, 1986). Naquela situação, o termo teórico para basilar o método de leitura é a influência entre autores. Nesse viés, vem a tônica uma percepção nacionalista da literatura, para mostrar, em nível de cultura, a autoridade de um país sobre o outro. Segundo Carvalhal (1986, p. 10), há uma relação estreita entre comparativismo e historiografia literária, visto que, para a escola francesa, o predomínio de relações “causais” entre obras e/ou autores é fundamental. Nesse contexto, as noções de evolução, continuidade e derivação integram-se com facilidade aos ideais ‘cosmopolitas’ vigentes, sendo animadas, ainda, pela visão romântica, que, na busca de exotismo, alimentou o interesse por literaturas diferentes.

Nas universidades francesas, o ensino de Literatura Comparada foi inserido por Abel Villemain, Jean-Jacques Ampère e Philarète Chasles. Tomemos como ilustração sistemática do método, a definição de compativismo proposta por Chasles (apud NITRINI, 1998, p. 20), em sua aula inaugural: Deixe-nos avaliar a influência de pensamento sobre pensamento, a maneira pela qual povos transformam-se mutuamente, o que cada um deles deu e o que cada um deles recebeu; deixe-nos avaliar também o efeito deste perpétuo intercâmbio entre nacionalidades individuais.

A citação é exemplar de que a concepção comparativista do século XIX é “influência”, o que revela uma situação política bastante peculiar. Na época, muitos países europeus se firmaram como nações e buscavam


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identificar suas raízes culturais. Segundo Carvalhal (Op. Cit.), a partir de 1931, um novo contexto se delineia na França. Paul Van Tieghem ao publicar sua obra La littérature comparée, estabelece diferenças entre literatura nacional, Literatura Comparada e literatura geral. O método de Tieghem (considerado por muitos, o precursor da “escola francesa), baseia-se em três elementos: o emissor (entendido como o ponto de partida da passagem de influência), o receptor (ponto de chegada) e o transmissor (intermediário entre o emissor e o receptor). Trata-se de uma visão contextualista uma vez que a preocupação primordial do teórico não é a estrutura interna do texto, e sim o contexto que o envolve. Em seus argumentos, Tieghem defende que, em uma análise comparativista, o contexto, entenda-se como o emissor, tem grande relevância. Para ele, Aquela obra, aquele conjunto de obras que você

leu com interesse, examinou e julgou, qual foi a sua origem, o que as ocasionou, qual o seu destino, em resumo, sua história? Este escritor que lhe agrada, como foi sua carreira, breve ou longa, brilhante ou obscura, abundante em publicações ou marcada por um único livro que é uma obra-prima? Sob que influências se formou, como se desenvolveu seu talento, que relações manteve com alguns de seus contemporâneos dos quais você leu certas produções? (VAN TIEGHEM in CARVALHAL e COUTINHO, 1994, p. 90)

No início do século XX, começou a se desenvolver novas compreensões para o termo influência literária. Paul Valéry, poeta francês, (apud NITRINI, 1998) defende que a dependência entre autores se dá como fonte de originalidade e não como imitação. Eliot, na Inglaterra, tentando compreender o conceito de Valéry, argumenta que originalidade seria algo capaz de alterar a ordem existente, renovando a tradição, por diferenciar-se das demais obras já inseridas no cânone. Segundo ele, Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que deles fazemos constituem a apreciação de sua relação


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com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimálo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral. (ELIOT, 1989, p. 39).

A partir da década de 1960, sob a influência das teorias de intertextualidade (Kristeva), dialogismo (Bakhtin) e Estética da Recepção (Iser e Jauss), os conceitos de fonte, influência e originalidade se renovaram. Em ordem de apresentação, tem-se desses teóricos, as noções de que: o texto literário, na visão bakhtiniana, é atravessado por diversas vozes, produzindo ponto de vistas diferentes durante o processo de leitura; ao ampliar a noção dialogismo, Kristeva imprime o conceito de intertextualidade e defende que não há mais influência e , sim, referência de um texto a outro durante o ato criador. Segundo ela, todo texto é um “mosaico de citações” (apud NITRINI, 1998, p. 162 181; por fim, Iser e Jauss devolvem ao leitor seu papel ativo na construção de sentidos para o texto literário, cunhando, assim, a importância da recepção literária. Em alusão ao texto de Jauss, segundo Nóbrega (in: Milreu e Rodrigues (orgs.), 2012), os princípios que norteiam essa teoria centralizam-se na interação entre o sujeito produtor e o sujeito receptor, visando, assim, o diálogo entre literatura e leitor. Em alusão ao texto de Jauss, conforme Nóbrega (in: Milreu e Rodrigues (orgs.), 2012), os princípios que norteiam essa teoria centralizam-se na interação entre o sujeito produtor e o sujeito receptor, visando, assim, o diálogo entre literatura e leitor. Segundo a autora, para que esse diálogo aconteça em sala deu aula, o professor de literatura pode, no mínimo, elaborar atividades que permitam ao aluno construir o seu próprio sentido para o texto. Criar sentido é experimentar. Experimentar exige paciência, aproximação, distanciamento. Nitrini (1998, p. 181) refletindo acerca da importância do leitor para a teoria de Jauss, afirma: com seu objetivo de substituir a historiografia literária substancialista, fundada no estudo da obra e do autor,


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por uma historiografia voltada para o leitor, a estética da recepção abre perspectivas para que a influência já não se explique mais causal e geneticamente de obra a obra, de autor a autor, de nação a nação, mas como resultado complexo da recepção.

Para a proposta deste trabalho, interessa-nos o comparativsmo advindo das contribuições da estética da recepção visto que no contexto de escolarização, o diálogo que a literatura possibilita entre leitor e texto só é possível através de um contato real com ela mesma, de modo que o aluno, ao se apropriar da literatura, busque comparar a sua vivência de mundo de modo a obter uma experiência estética. Para Jover-Faleiros, (2013), a dificuldade incide no modo como o leitor busca sistematizar os conhecimentos teóricos específicos da literatura, relacionando-os com as suas vivências particulares. Segundo ela, “entrar em contato com a experiência e compartilhar essa experiência como forma de conhecimento em contexto didático é eminentemente pedagógico” (p.132). A formação do leitor em ambiente universitário O curso de Letras, em sua propositura ampla, objetiva formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de refletir criticamente sobre temas e questões relativas aos estudos e ensino linguísticos e literários (Brasil, 2001). Deste modo, espera-se que a formação seja compreendida como um processo contínuo, autônomo e permanente. No que diz respeito à formação em literatura, Todorov (2007) distingue que os objetivos do ensino da literatura na universidade são diferentes daqueles no nível secundário. Para o primeiro nível, por ter como destinatário um público de especialista em potencial, o autor defende que os conceitos de teoria, crítica literária e técnicas de análise tenham funcionamento nas obras. Já no nível secundário, a literatura, por ter um destino mais amplo, deve ser ela mesma ensinada/vivenciada e não os seus estudos.


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Candido (1981, p. 25) concebe a literatura como sistema que prescinde da “existência de um conjunto de produtores literários”, “um conjunto de receptores” e, por fim, “um mecanismo transmissor, que liga uns a outros”. Neste sentido está formada uma tríade composta por autor, leitor e texto que, também, se constitui em objeto de estudo e discussão para o professor de literatura em sala de aula do ensino superior. No entanto, quando se compara a tríade apresentada por Candido com aquela que o professor universitário tem que considerar em processo de formação, a questão torna-se complexa. Para Candido, o seu leitor é um sujeito histórico, um leitor proficiente, munido das ferramentas interpretativas capazes de desnudar a verdadeira essência atemporal do fenômeno literário, entendido como objeto estético. Para o professor universitário, uma tarefa urgente que lhe é imposta na formação de leitores é a de preparar o aluno para tornar-se o leitor pensado por Candido. Deste modo, disciplinas que envolvam teorias acerca de poesia, narrativa e crítica literárias são imprescindíveis. No caso específico da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, estas disciplinas são rotuladas de: Teoria do Texto Poético, Teoria da Narrativa e Crítica Literária. Nelas são comuns as situações de adoção de textos sobre elementos estruturais da narrativa e da poesia lírica, bem como aqueles que fornecem subsídios teórico crítico para a abordagem da literatura. Esses textos direcionam docentes e estudantes para as operações seletivas que dão suporte aos estudos literários na universidade. A partir dessas ponderações, é interessante destacar que, em se tratando de que texto literário deve ser levado para serem lidos por estudantes em sala, alguns critérios de valor (comparativos, portanto) são estabelecidos e giram em torno de questões de escolha, tais como: O que é um livro bom para ser lido de modo que contribua para a formação teórica e metodológica do estudante? Quem é um bom autor? Quem merece ser lido, e de que maneira? Como comparar procedimentos estéticos de um mesmo autor e em relação a outros? Quais as consequências da leitura? Dependendo do modo como o professor de Teoria literária enfrenta esses questionamentos pode


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ter diferentes resultados em seu trabalho na busca de formar leitores. Estas perguntas acionam uma de natureza educativa - é possível ensinar a ler? A resposta fica a cargo de Paulo Freire, que, ao ser entrevistado por Ezequiel Theodoro da Silva, valoriza a importância de posturas metodológicas. Segundo ele, Você não ensina propriamente a ler, a não ser que o outro leia, mas o que você pode é testemunhar como você lê e o seu testemunho é eminentemente pedagógico. Então, eu tenho a impressão de que ler com o professor, com os estudantes é também importante. (Cf. Faleiros, p.132)

A Experiência leitora em sala de aula sob uma perspectiva comparativista Pensando em responder as perguntas anteriormente formuladas, realizamos uma experiência de leitura comparativa em sala de aula a partir de duas peças trágicas: Medéia, de Eurípedes e Anjo Negro, de Nélson Rodrigues. A disciplina escolhida para a intervenção foi Teoria da Narrativa, cujos objetivos são: fornecer subsídios teóricos e metodológicos para a análise e interpretação do texto literário; buscar a ampliação da experiência dos alunos no tocante à análise e à interpretação da narrativa, levando-os a aprofundar, de forma sistemática, a atividade de leitura e de pesquisa; articular o estudo da narrativa ficcional com os contextos de produção e de circulação. A escolha das peças seguiu, preliminarmente, dois critérios: as duas peças são tragédias; o infanticídio é um condutor temático, embora os motivos que levaram as personagens a praticarem tamanha violência sejam diferentes - em Anjo Negro é o preconceito racial que incita Virginia a assassinar seus três primeiros filhos; em Medeia é o ciúme.


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Os passos elaborados para o júri simulado enquanto técnica de leitura

A experiência foi realizada durante o semestre 2012.1. O prazo de preparação foi alterado em função da greve dos docentes que contribuiu, de certa forma, para uma dispersão dos estudantes. Finda a paralisação, toda a programação foi alterada, de modo que os alunos tiveram que apresentar a leitura da peça 20 dias após o retorno das aulas. Essa alteração teve uma implicação nos registros documentais da experiência: o que antes estava previsto para ser gravado em vídeo não aconteceu. Assim, todo o relato aqui descrito, limita-se à dados escritos em um diário de sala elaborado pela professora para este fim. 1

Ao selecionarmos o júri simulado como técnica de leitura comparativa em sala de aula, tínhamos como objetivo desenvolver no aluno habilidades analíticas dentro de uma situação teórica específica: os gêneros narrativos, no presente caso, a tragédia, enquanto manifestação do gênero dramático. Para dinamizar o trabalho, a iniciativa surgiu em resposta a uma indagação muito antiga dos docentes: como fazer alunos iniciantes do curso de Letras terem interesse na leitura de textos dramáticos visto que, pouco, ou nunca, são lidos durante a educação básica? A estratégia considerou, também, a linguagem do gênero, comumente em diálogo. A propositora de associar Medéia e Anjo Negro não foi difícil visto que as ações de assassinato praticadas pelas personagens constituem-se elementos de discussão em um júri. A metodologia utilizada seguiu os seguintes passos: no início, os 23 alunos matriculados na disciplina foram orientados a realizarem individualmente a leitura das duas peças, buscando compreender o enredo, bem como a pesquisarem pela internet ou através de entrevistas com profissionais do meio jurídico, como se constitui um júri. Em seguida, os alunos, juntamente com a professora, definiram que tipo de papel cada estudante iria representar. Ficou definido quem atuaria como: juiz, relatores, advogados (defesa e acusação), promotor, testemunhas de defesa e de acusação, perícia, corpo de jurado, ré, agentes de segurança e público. Após essa tarefa foi concedido um prazo de 01 mês1 para que os estudantes se preparassem teórica e metodologicamente buscando o empenho necessário para realização de uma performance de leitura das peças privilegiando os contextos de produção e de recepção. Durante o momento de preparação, os alunos também leram textos teóricos acerca da tragédia e de procedimentos comparativos, de modo que pudessem entender melhor as ações de cada personagem, e a partir de aproximações e distanciamentos, respeitassem os


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limites de cada obra. Os textos teóricos indicados foram Brandão (1988), Samuel (1985) e Pascolati (Bonnici e Zolim (orgs.), 2009). Nessa incursão teórica, preliminarmente, duas noções costumeiras que se tem acerca de tragédia foram destacadas: a designação de um acontecimento doloroso, catastrófico, acompanhado de muitas vítimas, e a descrição do desenlace de uma paixão qualquer que redundou em assassinato. No campo específico dos estudos literários, entanto, os estudantes passaram a conhecer que os gregos entendiam o termo, acima de tudo, como uma forma artística, ou um acontecimento apenas vivenciado entre os grandes. Foi apresentada a visão de Aristóteles (1966: 73), definido a tragédia como uma representação imitadora de uma ação séria, concreta, de certa grandeza, representada, e não narrada, por atores em linguagem elegante, empregando um estilo diferente para cada uma das partes, e que, por meio da compaixão e do horror provoca o desencadeamento liberador de tais afetos.

Enfatizou-se, também, que mesmo não tendo se preocupado em elaborar uma teoria conceitual sobre a tragédia, Aristóteles voltou sua atenção para o efeito do espetáculo sobre o público. Para ele o espetáculo trágico que se impõe e se legitima como obra de arte deveria sempre provocar a Katarsis nos espectadores. Assistindo as terríveis dilacerações do herói trágico, sensibilizandose com o horror que a vida dele se tornara, sentindo uma profunda compaixão pelo infausto que o destino reservara ao herói, o público deveria passar por uma espécie de exorcismo coletivo. Deste modo, a encenação dramática é vista como uma espécie de remédio da alma, propiciando as pessoas do auditório a expelirem suas próprias dores e sofrimentos ao assistirem o desenlace. Para que um espetáculo seja considerado trágico faz-se necessária a presença de três premissas básicas: a queda do herói e de sua dignidade; a aceitação consciente dessa queda e a falta de uma solução absoluta que impeça o infortúnio. Como não há outra saída além


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daquela determinada pelos acontecimentos que vão se descortinando frente ao herói, a tragédia já tem em si a gênese da violência, no sentido de que o herói não pode escolher outro destino para sua auto-afirmação. Foi esta noção do trágico que buscamos direcionar os alunos para a leitura comparativa entre Medéia e Anjo Negro. Medéia, Virgínia e Ismael no banco de réus

Optamos por não identificar nominalmente os alunos que realizaram a experiência. Preferimos destacar sua participação a partir do papel correspondente a atores de um júri propriamente dito. 3 Considerando os limites desse texto, cumpre esclarecer que selecionamos apenas a atuação dos alunos que representarem o juiz, a relatora, réus, advogado de defesa e, eventualmente, o advogado de acusação e público. 4 Os resumos aqui expostos sofreram correções e adaptações na linguagem. A ordem de apresentação dos argumentos, no entanto, permanece. 5 Aqui transcrevo o diálogo respeitando sua escrita original constante em Rodrigues, 1993. 2

Ao iniciar a sessão de julgamento de Medeia, Virgínia e Ismael, a relatora2 convoca todos os participantes para adentrarem ao recinto e desempenharem seu papel3. Em seguida, fez a leitura inicial dos crimes cometidos pelos acusados4. No caso de Medéia, foi lido um resumo de suas ações destacando que a história dessa personagem remonta ao século V a.C. Corinto é a cidade em que o crime ocorreu. Jason é casado com Medéia e tem dois filhos dessa união. Com sede de poder, apaixona-se por Creúsa, filha do rei Creonte. Sem hesitar, abandona Medéia e compromete-se casar com a princesa. Por ter sido rejeitada, Medeía articula vingança contra o marido e culmina matando seus próprios filhos. A trama construída em torno da personagem Virgínia também foi apresentada e gira em torno de sua relação com o negro Ismael. A relatora ao ler que o terceiro filho do casal foi assassinado, é interrompida pelo coro formado por um grupo de quatro alunas que, de posse do script da peça, leem a fala das dez senhoras pretas que, entre polêmicas sobre a cor, especulações sobre a morte, maldição e lamento, dialogam5. SENHORA (doce) – Um menino tão forte e tão lindo! SENHORA (patética) – De repente morreu! SENHORA (doce) – Moreninho, moreninho! SENHORA – Moreno, não. Não era moreno! SENHORA – Mulatinho disfarçado! SENHORA (polêmica) – Preto! SENHORA (polêmica) – Moreno! SENHORA (polêmica) – Mulato! SENHORA (em pânico) – Meu Deus do Céu, tenho medo de preto! Tenho medo, tenho medo!


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SENHORA (enamorada) – Menino tão meigo, educado, triste! SENHORA (encantada) – Sabia que ia morrer, chamou a morte! SENHORA (na sua dor) – É o terceiro que morre. Aqui nenhum se cria! SENHORA (num lamento) – Nenhum menino se cria! SENHORA – Três já morreram. Com a mesma idade. Má vontade de Deus! SENHORA – Dos anjos, má vontade dos anjos! SENHORA – Ou é ventre da mãe que não presta! SENHORA – Mulher branca, de útero negro!

Em sua leitura sobre as acusações contra Ismael, a relatora enfatiza que o preconceito racial é patente. Entra em descrição os atos do réu que se auto-violenta ao não aceitar sua condição de negro. Na concepção de Ismael, sua mãe - negra - é a causadora de sua desgraça. Na esperança de mutilar sua carga genética, casa-se com Virgínia, branca e linda, acreditando que dela teria filhos brancos. O casamento não se deu de forma espontânea, mas resultou de uma violação sexual. Virgínia fora criada por uma tia que tinha três filhas solteironas. Apenas a mais nova iria se casar. Certo dia, a tia e as filhas saíram de casa, o noivo da prima chegou mais cedo e achando Virgínia sozinha, não resistiu e deu-lhe um beijo. A tia e a prima assistiram à cena. O noivo fugiu e a prima enforcouse. Como vingança, a tia chamou Ismael (que já nutria uma paixão por Virgínia) para violentá-la. Em seguida, o médico comprou a casa em que esta morava, mandou a tia e as primas irem embora e casou com Virgínia que passou a viver em cárcere privado. No entanto, o quarto onde ocorreu o estupro permanece intacto, com os vestígios da violência ocorrida há oito anos. Dadas às condições do casamento, Virgínia sente-se violada todas as noites por Ismael. Para vingar seu infortúnio, Virgínia fez um juramento que mataria todos os filhos que nascessem de Ismael. Por ocasião do velório de seu terceiro filho, apareceu Elias, o irmão cego e branco de Ismael que, seduzido por Virgínia, acaba por engravidá-la, enquanto Ismael e todos da casa estavam no cemitério.


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Ao descobrir que fora traído, Ismael ameaça matar o filho que Virgínia espera. Ela, para dissuadi-lo, convence-o a matar o próprio irmão. Pouco antes do assassinato, Virgínia confessa a Elias que irá amar seu filho não com o amor de mãe, mas com o de uma mulher. Contrariando as expectativas, nasce uma menina, Ana Maria. Ainda bebê, Ismael cegou a criança a fim de que ela não visse sua negritude e ao mesmo tempo encarregou-se de incentivar - na criança - um sentimento de ódio pelos negros, embora fosse ele o único ser que ela conhecia e dialogava. Como se não bastasse a violência física (cegueira) e ideológica (preconceito racial), Ismael ainda comete uma terceira (a pedofilia, ou se considerarmos a relação pai x filha - o incesto). Feita a leitura dos fatos que pesam contra os réus, o juiz os convoca para se pronunciarem. A ultrajada Medéia, ao mesmo tempo em que reclama tanto da ingratidão de Jason por ela lhe ter salvado a vida, quanto do abandono da casa paterna e de sua gente, também reflete acerca da condição de confinamento doméstico imposto às mulheres na Grécia Antiga e, em linguagem atual, faz menção à seguinte passagem da peça: MEDÉIA – Mulheres de Corinto, saí do palácio para não merecer vossas reprovações, pois conheço muitos mortais, por havê-los visto com meus próprios olhos ou por deles ter ouvido falar, que se fecharam em orgulhosa reserva, e que, por essa repugnância de aparecerem em público, adquiriram má fama de desdenhosa despreocupação. A justiça, com efeito, pouco esclarece no pensamento de seus semelhantes, eles os condenam à primeira vista, sem haverem sofrido por parte daqueles a menor ofensa. Mas é preciso que um estrangeiro se acomode aos costumes da cidade em que habita. (...) De todos os seres que respiram e que pensam, nós outras, as mulheres, somos as mais miseráveis. Precisamos primeiro comprar muito caro um marido, para depois termos nele um senhor absoluto da nossa pessoa, segundo flagelo ainda pior que o primeiro. (...) Eis a graça que vos peço: se eu encontrar um expediente, algum artifício, para vingar-me de meu esposo pelos males que sofri (para punir aquele que lhe deu a filha, e aquela que ele desposou), guardai segredo. A mulher é


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comumente temerosa, foge da luta, estremece à vista da arma; mas quando seu leito é ultrajado, não existe alma mais sedenta de sangue. (p. 25) [......] Que fazer? Falta-me coragem, ó mulheres, quando vejo o cândido olhar de meus filhos. Não, não poderei jamais. Adeus, funestos projetos meus! (...) Não! Pelos demônios vingadores, pelos deuses dos infernos, não será dito que terei deixado os meus filhos expostos aos ultrajes de meus inimigos. (É absolutamente preciso que eles morram e, pois que é preciso, sou eu que lhes darei a morte, como fui eu que lhes dei o dia). Acabou-se! O fim é inevitável. (P. 50)

Após esse momento de introspecção profunda, Medéia confessa como maquinou sua vingança contra Jason. A primeira atitude foi tirar a vida da nova esposa. Finge está resignada com a situação de divorciada e como presente de casamento envia para a noiva de seu exmarido, através dos seus dois filhos, uma túnica dourada, garantindo-lhe que ao usá-la, teria “todas as felicidades” pois encontraria em Jason “um esposo perfeito”. Em risos histéricos, a ré descreve que a princesa, fascinada pelo esplendor da roupa, tão logo a usou, a túnica incendiouse, tirando-lhe a vida, juntamente com a de seu pai Creonte. Insatisfeita, Medéia vai mais além, confessa que sem hesitar, assassina seus dois filhos com as próprias mãos. A justificativa para tamanha violência é dada por ela própria. Apelando para o corpo de jurados, parafraseia uma fala da personagem: “Se vocês estivessem no meu lugar, entenderiam minha dor e desespero. Se cometi uma atrocidade, a cólera em mim foi mais forte que a razão, é ela quem causa aos mortais as maiores desgraças”6. Após o depoimento da ré, entram em cena os advogados de acusação, defesa e promotoria. Para a acusação e promotoria, o crime de Medéia foi premeditado e é digno de sentença máxima. Já para os argumentos da defesa apelam para a sensibilidade do corpo de jurados e tentando defendê-la, utiliza-se dos argumentos de Brandão (Op. Cit.: 70), questionando: trata-se de “uma criminosa comum? De uma louca? Talvez uma grande dor possa responder por ela.” Nesta argumentação, a defesa solicita ao juiz uma avaliação psíquica da personagem. Permissão concedida.

Conferir citação original do texto em Eurípedes, 2007. 6


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Virgínia, em seu depoimento, não ocultou o crime, mas atribuiu a sua atitude insana ao ciúme possessivo do marido. Não demonstrou arrependimento em ter traído o marido com o cunhado cego, ao contrário, sentiase aliviada por ter gerado em sua ventre uma criança de outra linhagem étnica. Afirmou estar cansada do regime de prisão domiciliar em que vivia e não queria que seus filhos (os negros) tivessem o mesmo destinoa clausura doméstica. Assim, revela que o assassinato cometido teve dois fins: a libertação das crianças e a vingança contra Ismael. É interessante mencionar que, enquanto Virgínia prestava seu depoimento, na busca de tornar a apresentação mais próxima de um júri, um grupo de alunos representando o público exigiam a prisão preventiva da ré, causando certo tumulto na sessão, o que exigiu do juiz a suspensão do evento por algumas horas (simbolicamente). Quando do retorno das atividades, a promotoria e advogado de acusação, após ouvirem as testemunhas, dentre elas a tia de Virgínia e o cego Ismael, direcionaram suas arguições para a condenação da ré. Já o advogado de defesa, após ouvir o cego Ismael, optou pela solicitação de uma avaliação psíquica da ré. Interessante observar a perspectiva de proteção à mulher que os alunos expressaram durante a montagem do júri, sobretudo a partir do ponto de vista da defesa das personagens femininas. O mesmo destino não teve Ismael. Durante o seu depoimento, o próprio réu se encarregou de buscar, em vão, inocentar-se. Argumentou que sempre foi vítima de preconceito, negou os crimes contra seu irmão Elias - segundo ele, tanto a cegueira, na infância, quanto o tiro fatal após saber de seu envolvimento amoroso com Virgínia foram acidentais. Acerca da acusação de pedofilia, Ismael pondera e diz ter sido um momento de loucura, mas que, a mulher digna de seu amor era Virgínia, a quem dedicou sua vida inteira, inclusive sendo conivente dos crimes cometidos contra seus três filhos. Confessa que o amor à esposa é tão especial que justifica a construção do mausoléu para a morte de Ana Maria, como uma espécie de eliminação da única responsável pela infelicidade da mãe. Ismael só teve testemunhas de acusação, as de defesa não compareceram. As provas


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apresentadas pela promotoria durante a sessão foram as notas fiscais da garrafa de ácido e da caixa de projéteis calibre 38 compradas por Ismael para agredir Elias. Em função do depoimento do réu, das provas e do relato das testemunhas, os pontos de vista da acusação e promotoria assemelharam-se ao das outras acudas. O advogado de defesa, mesmo fazendo poucas ponderações subjetivas sobre a discriminação racial vigente no país durante a época dos crimes, reservou-se o direito de não interpelar seu cliente. Após avaliação dos depoimentos, o corpo de jurados fez chegar às mãos do juiz a sugestão da seguinte sentença: Medéia e Virgínia deverão ser submetidas a tratamento psiquiátrico em manicômio judicial, conforme indicação constante no laudo da perícia oficial, e após sua recuperação, deverão pleitear uma reabilitação social. Já o destino de Ismael foi a reclusão em Penitenciária Máxima em virtude dos crimes de preconceito racial, assassinato em primeiro grau e a hediondez da pedofilia. Na ótica dos avaliadores, três princípios legais foram considerados: a Lei Maria da Penha para julgar Medéia e Virgínia, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aplicado a infração de Ismael contra Ana Maria e a Lei 7.715, que define os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor no País. Um pretexto de conclusão: avaliação da experiência Após o relato da experiência sumariada acima, foi feita uma avaliação oral tendo como foco de discussão duas situações específicas: justificativa apresentada pelos alunos para algumas alterações nos scripts originais das peças e para a aplicabilidade penal dos réus, além de uma análise acerca da técnica de leitura utilizada. Para o primeiro elemento de discussão, os alunos argumentaram que alteraram algumas partes dos textos levando em consideração o seu contexto de recepção que exigia experimentar a um só tempo aproximação e distanciamento dos fatos em função dos objetivos da


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leitura em articular teoria e prática. Cumpre lembrar que o conteúdo em estudo era a tragédia, enquanto exemplificação de gênero narrativo e o conceito de Katharsis aristotélico que pode provocar piedade e compaixão no espectador. Sob este ponto de vista, o que parece conferir ao texto euripediano um grau elevado de tragicidade não é a descrição das ações mágicas da temível feiticeira, mas é o tratamento demoníaco dado à mulher, assassina dos próprios filhos. Segundo Brandão, em Medéia não existe a performance maniqueísta típica do herói trágico aristotélico [...] porque não se pode sentir terror e piedade por esse tipo de personagem. Arrebatada, cruel, extremada e sanguinária, Medéia é uma figura trágica muito mais que uma heroína trágica talvez mais uma vítima trágica que um agente trágico [...] (Op. Cit.: 64).

Para os alunos, a atitude de Medéia não deveria ser considerada como uma vingança, mas para cumprir a tradição, ela cumpriu sua Moira. Sua tarefa principal seria, portanto, mudar o destino da história que estava reservado às mulheres. Daí a escolha da Lei Maria da Penha para inocentar a personagem. Com relação às escolhas da legislação para os “réus” do texto de Nélson Rodrigues, os alunos ponderaram que embora a violência da peça envolva questões de natureza étnica, o conflito de Anjo Negro supera a história do indivíduo e do grupo que as personagens Virgínia e Ismael representam. A estilização do negro que se quer branco e da branca amante do negro intensifica a perspectiva trágica rodrigueana, por trazer à luz o conflito latente e transcendente entre o ser humano e uma ordem superior detentora do domínio sobre o homem que, movido pelo medo, o leva a não aceitar-se enquanto indivíduo. E, deste modo, impulsiona-o a violentar-se a si e ao outro. Para a personagem branca, a defesa dos estudantes girou em torno de sua caracterização de herói trágico. Como na tragédia grega, Virgínia – orgulhosa e agora mulher dominadora de uma situação por ter conseguido gerar uma filha branca - é personagem típica do herói trágico,


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pois não discerne a determinação histórica de sua queda, pois a afirmação do amor/ódio dedicado ao um só tempo a Ismael e Ana Maria impõe uma violência interior ainda mais forte, provocando o desequilíbrio psicológico de Virgínia. Para os leitores da peça, via júri simulado, a atitude de Virgínia provocou uma reação em Ismael, a de dissimulação. Eis a razão para sua condenação à penitenciária máxima. Acredito que aqui reside a atualização de leitura dos alunos. O texto rodrigueno não nos autoriza a rotular Ismael de dissimulado, no entanto, os alunos justificaram esse procedimento a uma necessidade de validar os direitos femininos prescritos em leis de proteção à mulher em função da violência doméstica. Pode-se depreender que se a leitura em sala de aula, nesse contexto, se constituiu, também, como um processo avaliativo, os alunos perceberam que para a efetiva realização desse processo, faz-se necessário considerar o nível de ensino (daí articulação teoria e prática) as proposituras da disciplina (o objeto de estudo) e as especificidades da formação leitora, revelada através da necessidade de procedimentos comparativos que respeitem os limites do texto. A esse respeito, é oportuno citar a sétima tese (dentre as dez) de Dalvi (2013) elaborada a partir daquelas propostas por Victor Manuel de Aguiar e Silva sobre o ensino do texto literário na aula de português. Em sua proposta, Dalvi defende uma metodologia fundada no seguinte princípio: TESE VII – O RESPEITO E A PROMOÇÃO DA LIBERDADE DE LEITURA, SEM CONFUSÃO E RELAXO INTERPRETATIVO-ANALÍTICOCRÍTICO: ler um texto literário é um ato crítico histórico-social-culturalmente situado, ou seja, é um ato (ou um conjunto deles) que envolve e comporta hipóteses e juízos. Por isso mesmo, não há uma leitura ne varietur de um texto literário, o que não significa que toda e qualquer leitura seja legítima e admissível e que não existam critérios para distinguir as leituras fundamentadas das leituras forçadas, arbitrárias ou até aberrantes. O professor tem de saber traçar cuidadosa e prudentemente a fronteira entre leitura legítima


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e a liberdade de leitura e a confusão e o “relaxo” interpretativo-analítico-crítico (e faz isso a partir de sua experiência e repertório como sujeito leitor e de sua formação sólida, tanto inicial quanto continuada). (In: REZENDE e JOVER-FALEIROS, 2012, p. 79).

Com relação ao outro enfoque da avalição, o da técnica utilizada para a leitura, os alunos revelaram que a estratégia facilitou a relação teoria e prática (tragédia, gênero dramático, tema, ações de personagens). Além disso, permitiu exercitar a expressão bem como a importância de uma atualização das peças a partir da experiência de vida e realidade social do aluno, muito embora o espaço social representado no texto remonte a tempos pretéritos (século V a.C, Medéia, e primeira metade do século XX, Anjo Negro). De um modo geral, embora a atividade tenha se realizado a partir do envolvimento de uma coletividade, entendemos que cada aluno vivenciou isoladamente a experiência comparativa. Nesse sentido, entendemos que, tendo como exemplo o trabalho aqui relatado, esse processo de atualização da obra literária contribui para que o aluno, ao comparar seu tempo com o da ficção, perceba e sinta-se integrante do movimento dialético da história, sendo responsável, portanto, pela transformação espaço-temporal. Tal atitude favorece o reconhecimento individual do aluno, mobilizando-o para sua emancipação por meio da criação de novos horizontes de expectativa. No dizer de Aguiar (In: REZENDE e JOVER-FALEIROS, 2012, p. 160), O texto ficcional apropria-se das referências da realidade histórica, em termos de tempos, ambientes, costumes, personagens, conflitos, sentimentos, para abstrair dos fatos as motivações humanas que os geraram e que são comuns a todos os homens.


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Ensino de literatura em tempos de transformação (a literatura e seus diálogos) Maurício Silva**

Resumo: O presente artigo trata do ensino de literatura, entendido como uma prática efetiva de apreensão do universo literário por meio não apenas de uma nova concepção da literatura, mas principalmente de uma outra maneira de conceber seu próprio ensino no mundo contemporâneo, maneira que se traduz, entre outras coisas, em pelo menos quatro propriedades dessa prática: o caráter anticanônico, a relevância social, a configuração interdisciplinar e o princípio multidimensional do ensino de literatura. Palavras-Chave: Ensino de literatura, interdisciplinaridade, diálogo, leitor Abstract: This article analyses the teaching of literature, and points out it in the contemporary world since a new conception of literature. In this way, the teaching of literature has to consider at least four properties: his anti canonical shape, his social relevance, his multidimensionality and the interdisciplinary teaching of literature. Key Words: Teaching literature, interdisciplinarity, dialogue, reader

Universidade Nove de Julho (UNINOVE). *

Ler, analisar, interpretar e julgar um texto literário pode ter os mais diversos sentidos para as sociedades letradas, mas talvez nenhum deles seja tão importante ao ser humano como a capacidade que a literatura tem de conferir ao homem uma singular experiência ontológica, na medida em que emerge como representação simbólica de sua própria vivência. Isso não quer dizer que a experiência literária


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prescinda de uma faceta mais prática: ao contrário do que se pode imaginar, a atividade literária pressupõe certo pragmatismo, marcado por uma funcionalidade pedagógica, não exatamente de natureza impessoal, mecanicista e - nos limites do neoliberalismo mercadológica, mas atuando como suporte da própria educação: faz parte, assim, de um modelo de ensino em que a educação dos sentidos torna-se o denominador comum de um sistema que procura equacionar, no plano da imaginação criativa, ética e estética. Lidar com a literatura é, portanto, uma maneira de compreender melhor e mais a fundo uma espécie de instrumento capaz de desautomatizar nossa percepção do cotidiano, agindo no sentido contrário à padronização de nossa apreensão da realidade; de desenvolver nossa sensibilidade e inteligência, habilitando-as plenamente para uma leitura mais abrangente do mundo; de despertar nossa capacidade de indignação, criando em cada um de nós uma consciência crítica da realidade circundante; de alicerçar nossa conduta ética no trato social, a fim de aperfeiçoar nossas inter-relações humanas; e de desenvolver nossa capacidade de compreensão e absorção da atividade estética, a partir de uma prática hermenêutica consistente. Contudo, há que se considerar que o texto literário requer, antes de tudo, um modo diferente de apreensão e intelecção. Em outros termos, é preciso saber ler o texto literário de modo “diferenciado”, uma vez que ele apresenta tanto fins práticos quanto artísticos; é por isso que ler o texto literário requer a mobilização não apenas de uma perspectiva interpretativa e analítica, mas também crítica. Todos esse saberes fazem parte de um universo de conhecimento e aprendizagem que se relaciona diretamente com o ensino de literatura. Quando falamos em ensino de literatura não queremos nos referir a um sentido lato de ensino, a um processo genérico de transmissão - muitas vezes automático, mecânico - de informações. Ao contrário, no reportamos a uma prática efetiva de apreensão do universo literário por meio não apenas de uma nova concepção da literatura, mas principalmente de uma outra maneira de conceber seu próprio ensino no mundo


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contemporâneo, maneira que se traduz, entre outras coisas, em pelo menos quatro propriedades dessa prática, nem sempre suficientemente discutidas por teóricos e educadores que têm no texto literário um dos elementos fundamentais de sua prática analítica e pedagógica: o caráter anticanônico, a relevância social, a configuração interdisciplinar e o princípio multidimensional do ensino de literatura. Ensinando literatura em tempos de transformação 1. No que diz respeito ao caráter anticanônico do ensino de literatura, defendemos a ideia de que não apenas a literatura, mas também o seu próprio ensino devem ser concebidos como uma prática anticanônica, o que requer a adoção de pelo menos dois pressupostos: o de que a historiografia literária deve pautar-se por preceitos críticos não redutíveis a padrões pré-concebidos de valor estético; o de que o ensino da literatura deve pautar-se por atitudes pedagógicas caracterizadas mais pela inclusão do que pela exclusão de gêneros discursivos. O problema da constituição de um determinado cânone literário passa - acreditamos - pela necessidade de se expandir os princípios e critérios de interpretação estética. Para que se possa estabelecer, por exemplo, um determinado cânone literário, faz-se mister considerar, além das particularidades inerentes à própria obra, aspectos que lhe são aparentemente mas só aparentemente! - alheios, como os relacionados à produção e à recepção literárias. Em outras palavras, o estabelecimento de um quadro historiográfico que contemple satisfatoriamente obras e autores de uma determinada cultura literária carece de uma consideração particular de cada obra analisada, mas também de uma contextualização adequada dessas mesmas obras, a fim de que se possam estabelecer parâmetros reais para a compreensão dos recursos estéticos de que o autor se utilizou em seu processo de criação artística. Desse ponto de vista, poder-se-ia afirmar de antemão que fatores como a nacionalidade do autor, a região onde a obra foi engendrada, a abordagem cronológica ou a língua em que a obra foi redigida pouco auxiliam no trabalho


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de instituição de uma historiografia literária condizente com a complexidade da produção artística. É necessário, antes de mais nada, que se estabeleça uma conjunção de fatores que efetivamente contribuam para a realização plena de uma determinada obra, fatores que vão das condições sócio-históricas em que se criou a obra às relações institucionais que seu autor estabelecia durante sua vida produtiva ou aqueles concernentes aos meios de divulgação e ao seu acolhimento pelo público. (REIS, 1992) A constituição de qualquer manifestação artística não depende, exclusivamente, do meio pelo qual ela se exprime, por isso a interpretação e coerência artística pressupõem - ao menos no âmbito da historiografia literária - a consideração dos elementos contextuais, responsáveis pela inserção efetiva das obras de arte no circuito literário de uma determinada cultura. Há, contudo, uma distância muito grande entre as diversas perspectivas empregadas no trabalho de instituição canônica no âmbito da literatura. As obras submetidas à abordagem historiográfica nem sempre correspondem à expectativa do crítico literário, levando-o a lançar mão de atitudes seletivas cômodas e/ou conservadoras. Carecendo de um fundamento mais consistente, tais atitudes acabam por adotar uma abordagem crítica parcial das obras literárias, desconsiderando seus principais elementos constitutivos: utilizar-se de um cabedal analítico simplificado para se estabelecer um determinado cânone literário é, no mínimo, uma atitude contraproducente, na medida exata em que prejudica uma futura análise e compreensão das obras que compõem o conjunto proposto. Essa atitude simplista revela uma compreensão reducionista da própria atividade literária, fato que passa a comprometer de maneira cabal um trabalho mais elaborado e rigoroso de historiografia, pelos vícios que cria e pelos preconceitos que gera. Não obstante, há muitas perspectivas críticas relacionadas à literatura que se revelam exequíveis, expressando diversas particularidades que uma obra apresenta e abrangendo de modo bastante satisfatório a complexidade estrutural que lhe é peculiar. Tais perspectivas revelam-se, assim, uma atividade percuciente


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de análise e interpretação dos fatores extra e intraliterários que toda obra necessariamente contém. Como se afirmou acima, há que se levar em consideração a necessidade do estabelecimento de um caráter anticanônico do ensino de literatura, a começar por não reduzir a historiografia literária a padrões pré-concebidos de valor estético. É o que propõe, por exemplo, Jaime Guinzburg ao tratar da questões do cânone especificamente na literatura brasileira, propondo uma ruptura com conceitos como a tradição nacionalista idealista, a submissão ao colonialismo, a historiografia evolutiva etc., no processo de constituição de nossa historiografia literária: para o autor, os programas universitários de ensino de literatura revelamse particularmente conservadores, na medida em que se fundamentam na periodização e naturalizam as exclusões, não apenas centrando-se na leitura imanente do texto, mas também omitindo-se diante de questões mais candentes, como a constituição da sociedade brasileira a partir da experiência de violência crônica, o que afeta diretamente a formação de nossa tradição literária. (GUINZBURG, 2012) Urge atentar, portanto, com maior acuidade para os problemas que o estabelecimento de um cânone, com vistas à instituição de uma história literária, apresenta, já que, em última instância, a questão do estabelecimento de um cânone literário pressupõe, necessariamente, a abordagem de vários problemas estabelecidos pela própria historiografia. Desse modo, promover o resgate de autores e obras que têm sido sistematicamente alijados de nossas histórias de literatura significa também promover uma reavaliação dos modos tradicionais de se escrever essa história. E a adoção de uma atitude crítica que encontra seus principais fundamentos na consideração conscienciosa dos aspectos sociais da produção literária parece ser o melhor caminho para se reavaliar o papel da historiografia literária nos dias atuais. Daí o fato de não podermos nos apoiar meramente em determinados episódios literários independentes e com uma tênue relação com outras práticas, sem levar em consideração fatores imprescindíveis para a consolidação de uma tradição literária e de uma fruição estética, sob pena de -


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como já se sugeriu uma vez - estarmos construindo uma pseudo-história. (JAUSS, 1994) Nem só de historiografia vive a prática do ensino de literatura: há que se considerar também, como igualmente aludimos, no trabalho de estabelecimento do caráter anticanônico dessa prática, a adoção de atitudes pedagógicas caracterizadas pela inclusão de gêneros discursivos até então considerados inapropriados ao universo do ensino de literatura, o que demonstra, entre outras coisas, a natureza refratária de nossa tradição historiográfica. Márcia Abreu, ao discutir a imagem social que os livros adquirem em nossa sociedade, ressalta a necessidade de considerar, na avaliação da natureza do texto escrito, outros elementos que contribuem para a configuração de sua literariedade, sob o risco de se adotarem como válidas avaliações críticas que veem o texto erudito e acadêmico como o único merecedor de consideração, relegando todos os outros a qualificativos pejorativos e, muitas vezes, preconceituosos, vetando-lhes, em consequência, o ingresso no universo da literatura e, por extensão, no mundo da escola, uma das instâncias em que o texto literário acaba por ser socialmente legitimado. (ABREU, 2006) 2. O ensino de literatura possui também - além de um caráter anticanônico que, na atualidade, lhe deveria ser peculiar - uma relevância social intrínseca à sua natureza artística. Daí advém a assertiva de que se trata, tout court, de uma prática socialmente relevante. Isso que dizer, entre outras coisas, que ensinar literatura vai além de uma atitude de alcance restrito, dialogando de perto com o que se convencionou chamar - sobretudo no âmbito da educação - de letramento. O termo letramento originou-se do vocábulo literacy, palavra de origem inglesa que, segundo Magda Soares, foi adaptada ao português por meio de uma tradução diretamente do termo originário, denotando “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2004, p.18). Em termos mais simples,


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o conceito de letramento remete à ideia de uso social da leitura e da escrita e de estado ou condição que assume o indivíduo alfabetizado, pressupondo que o uso da escrita pode trazer ao indivíduo consequências tanto políticoeconômicas quanto socioculturais. O letramento, além disso, possui diversos desdobramentos, sendo absolutamente possível falar em letramento não num sentido absoluto do termo, mas em letramentos, no plural. Rildo Cosson, por exemplo, pesquisou em especial o chamado letramento literário, particularmente voltado ao ensino da literatura na escola. Em seu livro sobre o assunto, o autor propõe um trabalho que leve o aluno a se tornar letrado, apropriando-se da leitura de literatura na sala de aula. Assim, segundo Cosson, ser leitor de literatura na escola é mais do que fruir um livro de ficção ou se deliciar com as palavras exatas da poesia. É também posicionar-se diante da obra literária, identificando e questionando protocolos de leitura, afirmando ou retificando valores culturais, elaborando e expandindo sentidos. Esse aprendizado crítico da leitura literária [...] não se faz sem o encontro pessoal com o texto enquanto princípio de toda experiência estética (COSSON, 2006, p. 120).

Não sem razão, uma das maiores discussões em torno do ensino de literatura é como ele se dá na sala de aula, já que, convém lembrar, os textos que estão presentes no cotidiano do aluno podem ou não estar na escola. Baseadas nessa questão, pesquisas revelam casos de estudantes que, embora afirmem não gostar de ler, fazem uso da leitura e da escrita fora da sala de aula, produzindo letras de músicas, escrevendo poesias, ficando boa parte de seu tempo lendo no computador etc. (SOUZA, CORTI & MENDOÇA, 2009) Muitas vezes, a escola acha que a leitura está só nos textos que são abordados em sala de aula, quando, a bem da verdade, no dia a dia, o aluno pratica a leitura e escrita de acordo com sua realidade, adquirindo familiaridade com práticas de letramento variadas e que têm significado distinto na constituição de sua identidade como cidadão. Muitas vezes, a escola, preocupada com metas


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burocráticas a serem cumpridas, não deixa espaço suficiente para a leitura autônoma por parte dos alunos, questão que deveria ser repensada e reformulada, podendo, por exemplo, haver mais espaço em sua grade disciplinar e em seu currículo para a prática de uma leitura literária mais de acordo com a amplitude que o próprio conceito de literatura adquiriu nos dias atuais. Segundo Pinheiro, o debate acerca do letramento literário está atrelado à reflexão sobre a importância de se ensinar a literatura. A inserção dessa disciplina na grade curricular da Educação Básica deveria estar interligada à concepção pedagógica da instituição escolar e da prática docente daqueles interessados em assumir a tarefa de formar leitores literários. (PINHEIRO, 2001, p. 301)

Mas não é somente como letramento literário que o ensino de literatura deve ser pensado como uma prática socialmente relevante. Há que se considerar, também, a possibilidade dele ser pensado como exercício de resistência, em seus diversos níveis e em suas várias manifestações. Esta questão tem a ver, evidentemente, com ações concretas, em que a literatura tornase um elemento fundamental na constituição (ou reconstituição) de uma cidadania que fora, de alguma maneira, sequestrada. Michele Petit, em seu livro A Arte de Ler ou Como Resistir à Adversidade, retrata, em extensa pesquisa-ação, a importância da leitura como prática de resistência especialmente em situações de crise aguda (estado de guerra e violência, contextos de deslocamentos populacionais, recessões econômicas etc.), circunstâncias em que a leitura pode contribuir tanto na reconstrução psíquica dos indivíduos quanto na reorganização de determinados grupos sociais. Nesse sentido, a autora defende, em particular, a apropriação da literatura nessa atividade prática - quanto não, pragmática -, na medida em que ela se torna, desse modo, capaz de explorar a experiência humana numa dimensão mais ampla. (PETIT, 2009) Pesquisa semelhante, mas em contexto e com metodologia diversa, foi realizada por Ana Lúcia Silva, que estudou as práticas de letramento no meio


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cultural do hip-hop, analisando como se configuram as identidades sociais de seus agentes, na periferia de São Paulo; apoiando-se nos estudos sobre os letramentos múltiplos e heterogêneos – que atribuem uma perspectiva sociocultural às práticas de letramento –, a autora observa que tais perspectivas se expressam tanto nos meios escolarizados como em processos de espaços de aprendizagem em distintas esferas, além do fato de o hiphop recombinar, sem hierarquizar, os multiletramentos, reinventando os usos sociais da linguagem: é o que ela chama de letramentos da reexistência, que age no sentido contrário ao sistema educacional segregacionista vigente. (SOUZA, 2011) Como se vê, a literatura não é um espaço de representação neutro, mas uma forma de discurso em que a ideologia - aqui concebida numa perspectiva ampla - surge como elemento determinante, o que confirma, ainda mais, sua relevância social. 3. Como dissemos antes, conceber o ensino de literatura no mundo contemporâneo pressupõe, ainda, uma terceira propriedade dessa prática: a ideia de que ela possui uma nítida configuração interdisciplinar. Sendo, portanto, na sua essência, interdisciplinar, o ensino de literatura não prescinde do relacionamento de outras áreas do saber humano, tampouco de outros modos de expressão desse saber. Assim, ao se relacionar tanto com disciplinas diversas quanto com suportes de veiculação diversos - sobretudo atualmente, em que as mídias eletrônicas estão bastante desenvolvidas -, a literatura ganha novo estatuto, ultrapassando a concepção anacrônica que, conforme afirma Wolfgang Iser, reduz o texto ficcional à sua mera significação discursiva. (ISER, 1997) Para muitas pessoas, a literatura é vista como mero entretenimento, invariavelmente ligada ao ócio e ao prazer descompromissado: é na leitura de livros ficcionais - sejam eles de poesia, de prosa romanesca, crônicas ou memórias - que podemos nos libertar dos afazeres do dia a dia, das agruras do cotidiano e, de um modo bastante simples, sonhar, viver literariamente tudo aquilo que não podemos viver realmente durante nossa existência. Isso,


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com efeito, não é ruim: como forma de lazer pessoal, usufruído em comunidade ou individualmente, também se atinge o que se poderia chamar de dimensão estética da literatura. Basta nos lembrarmos, corroborando essa ideia, da verdadeira febre recreativa ocasionada, durante quase todo o século XIX, pelos rocambolescos folhetins literários, avidamente consumidos em família, no recanto aconchegante do lar, ou por grupos mais extensos, nas ruas das cidades em vias de urbanização. (MEYER, 1982) Ocorre que nem todos percebem que, além da dimensão acima citada, a literatura contém ainda uma outra dimensão, não menos autêntica que a primeira, a que se pode chamar de pedagógica. De fato, pode-se cumprir os mais básicos preceitos e as mais essenciais funções da educação (isto é, ensinar, formar e informar, desenvolver o senso crítico etc.) por meio da literatura que, para muitos, como dissemos, não passa de mero entretenimento. É lógico que a leitura literária pode e deve se constituir, basicamente, numa forma de prazer estético, necessitando ser, nesse sentido, continuamente estimulada; mas é verdade também que a leitura mais aguçada e analítica, desfrutada com um deliberado propósito crítico pode ser tão prazerosa quando à estética. E essa dimensão pedagógica da literatura só é plenamente alcançada - acreditamos - por meio da prática da interdisciplinaridade: é no encontro com outras áreas do saber humano que a literatura atinge, por assim dizer, sua plenitude, tornando-se não apenas fonte de prazer estético, mas também de conhecimento prático e teórico. Pensemos, a título de exemplo, nas incontáveis possibilidades de relacionamento interdisciplinar - e, portanto, na importância que a literatura adquire para essa área - entre o universo literário e a psicologia, aqui escolhida aleatoriamente como uma das áreas de saber e atuação humanos, para nos servir de modelo do que vimos falando até agora. Para a psicologia, em particular, a literatura pode desempenhar, de início, um duplo papel: aliar ao prazer do entretenimento a satisfação de um aprendizado distinto. Não é à toa, nesse sentido, que os mais representativos nomes da psicanálise se dedicaram - em maior ou menor grau - a percucientes análises literárias, exibindo um conhecimento que passa, obrigatoriamente, pelas mais


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diversas obras de ficção: Freud, por exemplo, como aliás a maior parte daqueles que se dedicaram à psicologia e à psicanálise, sabia com certeza das sólidas relações existentes entre os processos de criação literária e o que chamou de funcionamento do aparelho psíquico, (FREUD, 1997) explorando como poucos essa relação. E a crítica literária especializada não se descuidou, igualmente, desse aspecto, salientando com frequência a “convergência da psicanálise e da crítica literária por perceber que pode e deve haver alguma correspondência entre os processos literário e psíquico”. (BROOKS, 1994, p. 25) Além disso, está mais do que provado que o próprio Freud utilizouse de algumas obras literárias não como mera ilustração de determinadas teorias, mas dando a elas uma função verdadeiramente estrutural em sua prática, não raro conjugando-as organicamente a algumas de suas mais relevantes ideias. (CLANCIER, 1973; HARTMAN, 1978) Não custa nada lembrar, a estas alturas, que grande parte da literatura produzida durante todo o século XX tem como marca distintiva, entre outras coisas, a investigação contínua da alma humana, o esquadrinhar quase obsessivo de nossa intimidade, a inenarrável comoção psíquica do homem. Trata-se, em outras palavras, de uma literatura que passa da evasão romântica e do registro de costumes realista ao mais profundo e imponderável movimento em direção à interioridade humana. James Joyce, Proust, Virginia Wolf, Jorge Luis Borges, Dostoievski, Franz Kafka... esses são apenas alguns dos nomes de autores que se dedicaram, nas formas mais diversas, à desditosa tentativa de compreensão da mente por meio da arte, porventura a mais sublime das atividades humanas. Dessa maneira, podemos perceber que muitas teorias forjadas a partir de uma ponderação dos elementos próprios do universo teórico da psicanálise são de inegável valor para a compreensão, a análise e a interpretação da obra literária, e vice-versa. Não sem razão, já se ressaltou mais de uma vez que toda produção ficcional, em todos os tempos, tem como uma de suas principais preocupações o perscrutar do mundo interior do homem, a insofismável descoberta do chamado “enigma of the self”. (KUNDERA, 1988) O que corresponde a afirmar que, em última instância e guardadas as devidas proporções,


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toda representação literária é, também, uma expressão da psicologia humana. Mas, como dissemos acima, essa propriedade interdisciplinar do ensino da literatura não se limita ao seu relacionamento com outras áreas do saber humano, passando também pela aproximação com outros modos de expressão desse saber que, no limite, se traduz como formas distintas de veiculação do conhecimento humano, das quais as mídias contemporâneas parecem ser o índice mais visível. É relativamente comum falar-se, hoje em dia, da importância do computador, em particular, e dos meios cibernéticos, em geral, para a veiculação do texto literário e, por extensão, para o desenvolvimento do próprio ensino da literatura. Mas há que se considerar, nesse intrincado universo de relações interdisciplinares, outras possibilidades de relacionamento entre - nesse caso - a tecnologia e a produção ficcional. Atuando principalmente sobre narrativas literárias, há, atualmente, a título de exemplo do que aqui vimos dizendo, estudos que partem do pressuposto de que toda narrativa possui uma determinada estrutura interna comum, ideia que, com menor ênfase, posto que com poucos resultados concretos, já fora antes proposta pelos formalistas e pelos estruturalistas: ambas as teorias contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento dos estudos literários, privilegiando, em suas análises, a busca de uma estrutura comum a determinados gêneros literários e categorias culturais, como no caso do mito; (PROPP, 1970; MIELIETINSKI, 1987) da procura de elementos imanentes à obra de literatura, agrupados sobre o nome comum de literariedade; (TODOROV, 1965) e, finalmente, numa mescla das duas ideias anteriores, da busca de uma estrutura abstrata inerente a todas as narrativas. (TODOROV, 1973; TODOROV, 1979; BARTHES, 1970) Atualmente, seguindo de perto essa tendência, como instrumento de apoio ao trabalho crítico - não cumpre discutir aqui o papel positivo ou negativo da informática na pesquisa literária, dada a complexidade do tema -, o computador extrapola a mera função de suporte do texto de ficção ou instrumento de pesquisa na área dos estudos literários: dotado de uma suposta


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objetividade e de uma presumível capacidade de se furtar às influências de natureza ideológicas sobre a análise, elege a obra literária como objeto de observação, buscando nela elementos que possam ser considerados unívocos e comuns, inaugurando, por exemplo, uma vertente da análise literária que caminha, entre outras coisas, para o levantamento e inventário de determinados universais narracionais do texto, (IDE & VÉRONIS, 1990; MEUTSCH & ZWAAN, 1990) fazendo desta atitude mais uma das infinitas possibilidades de aproximação da literatura - e, evidentemente, da prática de seu ensino - e os suportes tecnológicos contemporâneos. 4. Ao tratarmos, desde o princípio, das propriedades do ensino de literatura, referíamo-nos ainda a uma quarta e última propriedade desse ensino, seu caráter multidimensional, que, por sua vez, pressupõe - pelo menos - uma dimensão profissional, uma dimensão hermenêutica e uma dimensão epistemológica desse mesmo ensino. No que compete à dimensão profissional, há que se ressaltar – no ensino de literatura - os possíveis desdobramentos “profissionais” que a formação na área permite e promove; trata-se, evidentemente, de uma dimensão de natureza prática, na medida em que diz respeito ao vínculo entre o ensino de literatura e a prática docente, em particular, e qualquer outra atividade profissional, em geral. Não há, numa perspectiva multidimensional, a possibilidade de se pensar essa dimensão profissional sem vinculá-la, organicamente, às duas outras dimensões, que, no final das contas, conferem sustentação àquela: a hermenêutica e a epistemológica. Em relação à dimensão hermenêutica, que diz respeito diretamente à questão - de natureza teórica dos modos, metodologias e processos de interpretação do texto literário, há que se fazer um primeiro movimento assertivo em direção aos possíveis vínculos entre a literatura a uma série de circunstâncias sociais mais amplas, num sentido que prescreve a necessidade de se avaliar obras e autores não meramente a partir de determinadas categorias estruturais do texto literário, mas inseridos num processo sociológico mais amplo,


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fato que aponta para a problemática mais dilatada do contexto literário, articulando-o a atores e suas condições socioculturais de ação. (SCHMIDT, 1996) Nessa acepção do trabalho de interpretação literária - a que, aqui, demos o nome de dimensão hermenêutica do ensino de literatura - o contexto não deve ser considerado uma categoria que existe independentemente do fenômeno literário, mas como um elemento intrínseco ao próprio texto, devendo, assim, fazer parte da obra literária tanto os “suportes materiais da enunciação”, isto é, seus elementos técnicos (escrita, tipografia, veículo etc.), quanto a “situação de enunciação”, isto é, suas circunstâncias (período, lugar, indivíduo enunciador etc.), já que o contexto “informa em profundidade a enunciação literária” (MAINGUENEAU, 1995, p. 101). Trata-se, mutatis mutandis, do que a Sociocrítica chama de grammaire des contextes, ideia que sugere, no limite, tanto uma “relation d’implications et de proposition entre le sujet producteur, le narrateur, les personnes et les événements du discours”; quanto uma “relation de préssuposition et d’intentionnalité entre le sujet producteur et son produit”; sem se descuidar dos “problèmes concernant le statut des énoncés littéraires en tant qu’actes de parole”. (THOMAS, 1979, p. 48) O universo da dimensão hermenêutica da literatura, particularmente inscrito na contemporaneidade, não prescinde da tentativa de deslocamento do eixo da análise crítica, que passa diretamente do texto para o sistema literário, ideia que, como nos ensina Antônio Cândido, sugere um movimento de “continuidade literária”, a forjar uma determinada “tradição”, a qual se firma sobre “conjuntos orgânicos” que manifestam um propósito declarado de fazer literatura. (CÂNDIDO, 1981, p. 17) Neste sentido, importa saber em que medida é possível considerar o fenômeno literário como um sistema sociocultural mais amplo, que extrapola os limites estreitos do texto e ultrapassa as fronteiras da análise estrutural. No que compete à dimensão epistemológica do ensino de literatura - que, unindo as duas dimensões anteriores, adquire uma natureza prático-teórica -, nos reportamos, em suma, à relação que esse ensino estabelecer com a formação do pesquisador na área e sua inúmeras implicações. Com efeito, a pesquisa científica


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da área das humanidades – da qual a pesquisa literária faz parte - pressupõe algumas singularidades que devem ser levadas em conta a priori pelo pesquisador. A primeira delas é o fato de que, nas ciências humanas, a pesquisa qualitativa, em geral, apresenta a vantagem de assentarse numa concepção mais dinâmica entre o observador/ observado e a realidade circundante, motivo pelo qual se revela mais adequada do que a pesquisa meramente quantitativa e/ou experimental. (CHIZZOTTI, 1991, p. 79) Além disso, especialmente no que concerne à pesquisa na área da literatura, há uma clara tendência em se privilegiar a técnica da pesquisa bibliográfica e documental, o que, evidentemente, não dispensa a adoção de um método determinado (histórico, comparativo, estruturalista, funcionalista etc.), como prescrevem os mais elementares manuais de metodologia; (LAKATOS & MARCONI, 2001) tampouco, deve-se dispensar uma determinada estratégia metodológica, que, no final das contas, irá direcionar toda a perspectiva - ideológica ou não - da própria pesquisa, uma vez que, como afirma Jeniffer Mason, o conceito de estratégia metodológica distingue-se do de metodologia, basicamente consistindo na “logic by which you go about answering your research questions”. (MASON, 2002, p. 30) Conclusão O ensino de literatura - que até meados do século XX parece ter permanecido, de alguma maneira, subserviente às abordagens imanentistas da literatura e a outras práticas de reduzido alcance social - modificouse bastante ao longo das últimas décadas, chegando à atualidade renovado, mas também, como consequência natural desse processo de renovação, marcado por crises diversas e conflitos próprios de um quadro instável e em processo de mutação. Parte dessa mudança, bem como dos conflitos que se instauraram posteriormente, se deveu à atuação incisivamente marcante de Mikhail Bakhtin, cujas teorias, de modo geral, vinculam os atos de enunciação à situação social em que eles se inscrevem, tendo consequências diretas não apenas na linguística, mas


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também na literatura e seu ensino. No rastro dessa ideia, o teórico russo formulou um novo conjunto de conceitos, a partir dos quais sugere a impossibilidade de se estudar uma obra literária fora de sua contextualização social, (BAKHTIN, 1988; BAKHTIN, 1990) conferindo a ela uma abrangência e um alcance até então inimagináveis. De fato, para Bakhtin os estudos literários devem ser considerados uma manifestação prática do conceito de ideologia, sendo a literatura uma criação ideológica que se concretiza no processo de relação social, daí a necessidade de se levar em conta aspectos exteriores na tarefa de interpretação crítica: social intercourse is the medium in wich the ideological phenomenon first acquires its specific existence, its ideological meaning, its semiotic nature. All ideological things are objects of social intercourse, not objects of individual use, contemplation, emotional experience, or hedonistic pleasure (...) The work of art, like every other ideological product, is an object of intercourse. It is not the individual, subjective psychic states it elicits that are important in art, but rather the social connections, the interactions of many people it brings about. (BAKHTIN & MEDVEDEV, 1978, p. 08/11)

Como consequência de todo o processo aqui descrito e comentado, destacamos a necessidade, no que compete ao ensino de literatura em tempos de transformação, de resgatar a dignidade da literatura e das áreas de estudo e pesquisa que a ela se dedicam. Como lembra Todorov em um de seus mais recentes livros, é necessário revalorizar o universo em que a literatura atua, a fim de que se recupere sua condição de um discursos idealmente vinculado ao cotidiano do ser humano e às suas experiências essenciais. (TODOROV, 2009) Uma outra questão que se coloca, a título de conclusão, é a necessidade urgente de promoção da leitura literária, uma vez que - competindo não apenas com outras leituras, mas principalmente com outros suportes de veiculação do texto escrito e/ou outros meios de comunicação -, ela tem sido relegada, já não dissemos ao ostracismo, mas certamente a uma subcategorização, no amplo espectro dos mecanismos de aquisição de


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informação ou, simplesmente, de usufruto do prazer estético. Desse modo, obtém-se, de forma mais eficaz, como resultado imediato dessa prática, maior intimidade com o texto literário, primeiro passo para que se possa desenvolver no leitor - em formação ou já formado - o tão debatido gosto pela leitura; por extensão, alcança-se também, como resultado desse processo, habilidade na manipulação de um instrumental adequado à análise e à interpretação da obra literária, desenvolvendo no leitor uma competência crítica. Pois, como diz Peter McLaren, ao propor uma pedagogia crítica, os estudantes precisam aprender a ler não como um processo de submissão à autoridade do texto, mas como um processo dialético de compreensão, de crítica e de transformação. Eles precisam escrever e reescrever as histórias nos textos que lêem, de forma a serem capazes de identificar e desafiar, se for o caso, as maneiras pelas quais tais textos funcionam ativamente para construir suas histórias e vozes. Ler um texto deve ser uma maneira de aprender a fazer escolhas, a construir uma voz e a localizar a si próprios na história. (MCLAREN, 2000, p. 38)

Com isso, conseguimos alcançar pelo menos algumas das perspectivas distintas e complementares que o trabalho de pesquisa em literatura requer (relações textuais, enfoques analíticos, abordagens historiográficas etc.), além de tornarmos mais efetivos não apenas o ensino de literatura, mas principalmente o interesse pela leitura literária, nesses tempos em que a transformação - nem sempre assimilada e/ou experimentada de modo positivo - parece ser a tônica.


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Parecerista ad hoc

Pareceristas ad hoc

Amador Ribeiro Neto (UFPB) Genilda Azeredo (UFPB) Luiz Antônio Mousinho Magalhães (UFPB) Maria Goretti Ribeiro (UEPB) Marilene Weinhardt (UFPR) Mário César Lugarinho (USP) Sandra Margarida Nitrini (USP)


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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; - Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; - Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; - Keywords – mesmas observações sobre as palavraschave; - Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; - Parágrafos – usar adentramento 1 (um); - Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; - Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; - Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.

- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.

- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-


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nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. - Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. - Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

Alguns exemplos de citações • Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens


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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992) • Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

Alguns exemplos de Referências • Livro PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33. • Dissertação e tese PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. • Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.


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• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4. • Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95. • Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009. Observação Final: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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