Edição Nº 27 - Belém, 2015

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REVISTA BRASILEIRA DE

Belém 2015


Diretoria

Abralic 2014-2015

Presidente

Germana Maria Araújo Sales (UFPA)

Vice-Presidente

Marlí Tereza Furtado (UFPA)

1° Secretária

Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (UFPA)

2° Secretária

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2° Tesoureiro

Fernando Maués (UFPA)

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Membro Titulares

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Membros Suplentes

Diógenes André Vieira Maciel (UEPB) Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)

Conselho Editorial

Eneida Maria de Souza, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima, Maria Helena Bonito, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Yves Chevrel ABRALIC CNPJ 91.343.350/0001-06 Universidade Federal do Pará (UFPA) Instituto de Letras e Comunicação (ILC) Rua Augusto Corrêa, 1 – Guamá CEP: 66075-110 Belém - PA E-mail: revista@abralic.org.br


REVISTA BRASILEIRA DE

Literatura Comparada

ISSN 0103-6963 Rev. Bras. Liter. Comp.

Belém

n.27

p. 1-197

2015


2015 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora

Germana Maria Araújo Sales

Comissão editorial

Germana Maria Araújo Sales Marlí Tereza Furtado Tânia Maria P. Sarmento-Pantoja Mayara Ribeiro Guimarães Maria de Fátima do Nascimento

Revisão

Germana Maria Araújo Sales

Editoração Samantha Andrade de Araújo

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.27 (1991) – Belém: Abralic, 1991v.1, n.27, 2015 ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada. CDD 809.005 CDU 82.091 (05)


Sumário

Apresentação Germana Maria Araújo Sales

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Artigos

Como e por que ler atmosferas na literatura: A magia das palavras em “São Marcos”, de Guimarães Rosa

Alex Martoni

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Antes e depois da primeira tradução portuguesa: Madame Bovary no Brasil oitocentista Andréa Correa Paraiso Müller

O escritor no picadeiro: considerações sobre a recepção da literatura na era do espetáculo Elizabeth Gonzaga Lima

Modernidade, ethos e tradição em O veredicto de Franz Kafka e Lavoura arcaica de Raduan Nassar Evanir Pavloski

A ditadura ficcionalizada Helena Bonito C. Pereira

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47

63

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Crítica e tradução como poiesis: o projeto crítico-literárioantropofágico concretista Juliana Cristina Salvadori José Carlos Felix

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Caminhos da sobrevivência: como um romance desconhecido se tornou uma referência para a identidade intelectual amazônica Márcia Abreu

112

Re(leitura) do romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: o aborto voluntário de G. H. simbolizado na morte de uma barata Maria de Fatima do Nascimento

131

Enredos plásticos em diálogo: Portinari devora Hans Staden Maria Zilda da Cunha Maria Auxiliadora Fontana Baseio

A revisitação do texto bíblico no evangelho saramaguiano

Patricia Conceição Silva Santos

(Des)territorialização em Guimarães Rosa: anotações de Sagarana e Primeiras Estórias Silvana Oliveira

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164

177

Normas da revista 193


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Revista Brasileira de Literatura Comparada N° 27 Caminhos da Literatura na América Latina Apresentação Germana Maria Araújo Sales Ao longo de quase quinze anos, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) preocupouse com as múltiplas e diferentes diretrizes que envolvem os estudos literários, com questões interdisciplinares e transdisciplinares, bem assim com os estudos que extrapolam o texto literário enquanto artefato, incidindo o olhar sobre os demais eixos pertinentes, quais sejam, a recepção, a circulação e os avanços nas discussões sobre a tradução estético-verbal. Nesse sentido, os leitores terão a oportunidade de conhecer aqui um dossiê que divulga artigos sobre tradução e interpretação de obras de diferentes gêneros, ou estudos dedicados à produção, recepção e circulação de textos literários, nacionais e estrangeiros, no território nacional ou, especificamente, na Amazônia. O artigo “Como e por que ler atmosferas na literatura: a magia das palavras em ‘São Marcos’, de Guimarães Rosa”, escrito por Alex Martoni, propõe um modo de leitura e interpretação do texto literário voltado, fundamentalmente, à compreensão da forma como a dimensão material da literatura, em especial a sua prosódia, influindo sobre as modulações afetivas. Dessa perspectiva, é analisado o aludido conto rosiano, no qual a magia da palavra é encenada no enredo e envolve o leitor em uma atmosfera especial. Noutra concepção acerca da apreciação do texto, Andréa Müller, em seu artigo “Antes e depois da primeira tradução portuguesa: Madame Bovary no Brasil oitocentista”, aborda a surpreendente morosidade na tradução para o português do romance de Flaubert e, assim, avalia as possíveis razões dessa demora, analisando a recepção de Madame Bovary no Brasil, antes e depois da primeira tradução portuguesa. O artigo “O escritor no picadeiro: considerações sobre a recepção da literatura na era do espetáculo”, de Elizabeth Gonzaga Lima, considera a maneira com que as


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engrenagens da mídia e da indústria do entretenimento e da distração promovem uma ruptura nas formas de recepção do leitor e nos procedimentos de circulação ao entronar o escritor numa espécie de picadeiro e configurar a arte da palavra como parte do espetáculo. O quarto artigo dessa coletânea, “Modernidade, ethos e tradição em O veredicto de Franz Kafka e Lavoura arcaica de Raduan Nassar”, de Evanir Pavloski, apresenta uma visão comparativa entre as duas narrativas citadas, em que se observa a influência do ethos e da tradição, enquanto parâmetros, com a constatação do domínio do discurso patriarcal, especialmente pela inaptidão dos protagonistas para transgredir o ethos hodierno e estabelecer novas referências para as relações socioculturais. A observação sobre as questões estabelecidas e a tentativa da recriação do meio constituem a análise realizada por Helena Bonito no artigo intitulado “A ditadura ficcionalizada”, que apresenta o contexto da década de 1970, recriado no enredo romanesco em registros variados, cujas denúncias são escamoteadas pelos caminhos da metáfora e da alegoria. Nesse contexto, há espaço para o relato irônico elaborado pelo trabalho artístico com a linguagem, que denuncia a tortura, a censura e os demais males oriundos da repressão. No artigo “Crítica e tradução como poiesis: o projeto crítico-literário-antropofágico concretista”, Juliana Cristina Salvatori e José Carlos Felix trazem à baila o fato de que o processo de tradução é inerente à humanidade, a começar pela percepção circundante, através do que os dados da realidade, quando aportam ao intelecto, são traduzidos em signos. E, conforme sugerem os autores, em se tratando da tradução referente a mais de uma semiose, como a verbal e a visual, e entendendo-se a tradução como um processo de (re)criação, ou poiesis, um exemplo reside na poesia concreta. Assim sendo, tal artigo discute a poiesis e a função da crítica e da tradução na modernidade, bem como o projeto pedagógico-crítico-literário do Concretismo em articulação com a concepção de antropofagia oswaldiana. O artigo de Márcia Abreu apresenta um romance pouco conhecido, Simá - romance histórico do Alto Amazonas, e o percurso da obra até alcançar destaque nos estudos literários. Intitulado “Caminhos da sobrevivência: como um romance desconhecido se tornou uma referência para a identidade intelectual amazônica”, o artigo recupera


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a narrativa e as circunstâncias de sua primeira circulação em 1857; relata a conjuntura em que ocorreu seu reaparecimento, na década de 1970, e avalia as concepções de história literária nacional e regional, além do papel do livro na cultura erudita amazônica. A releitura de um romance conhecido do público é proposta por Maria de Fatima do Nascimento no artigo “Re(leitura) do romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: o aborto voluntário de G. H. simbolizado na morte de uma barata”, numa revisitação das leituras consagradas, que desprezaram a questão da interrupção da gravidez da protagonista, encarada por essa última como um crime de assassinato. A comparação da morte da barata à de seu filho/ embrião e o tormento da personagem diante do cotejo são a matéria para o desenvolvimento da análise, a partir de uma revisão crítica do que já existe publicado acerca do romance clariciano. No artigo “Enredos plásticos em diálogo: Portinari devora Hans Staden”, Maria Zilda da Cunha e Maria Auxiliadora Fontana Baseio procuram, por meio da Literatura Comparada, perscrutar diálogos que se firmaram entre a crônica em torno das experiências de Hans Staden durante seu cativeiro numa aldeia brasileira de indígenas antropofágicos do século XVI, e sua tradução intersemiótica realizada por Cândido Portinari, experiências tais igualmente registradas mediante o código criativo de um conjunto de xilogravuras. A revista se encerra com duas figuras centrais da literatura em língua portuguesa. O escritor português José Saramago é o tema que Patricia Conceição Silva Santos explora em “A revisitação do texto bíblico no evangelho saramaguiano”, artigo no qual discorre acerca da importância do recurso paródico como ferramenta essencial na conservação das fontes primárias quando revisitada. Logo, o ensaio averigua as aproximações entre o texto ficcional de O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e o texto bíblico, observando a (re)leitura e (re)escritura da fonte original.


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Em “(Des)territorialização em Guimarães Rosa: anotações de Sagarana e Primeiras estórias”, Silvana Oliveira propõe uma leitura filosófica de duas obras do escritor mineiro, a partir de um conceito postulado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, isto é, o de desterritorialização, ideia associada ao movimento de devir e de deslocamento, que, por sua vez, resulta num movimento em direção a outro território, ainda por conquistar.


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Como e por que ler atmosferas na literatura: A magia das palavras em “São Marcos”, de Guimarães Rosa How and why to read atmospheres in literature: The magic of the words in “São Marcos”, by Guimarães Rosa Alex MARTONI* RESUMO: Este ensaio tem como objetivo propor um modo de leitura e interpretação do texto literário voltado, fundamentalmente, à compreensão da forma como as suas atmosferas são construídas. Dentro dessa perspectiva, a palavra atmosfera não será aqui empregada na sua clave usual, como uma categoria narratológica, mas no amplo horizonte que a palavra alemã Stimmung nos abre. Para Hans Ulrich Gumbrecht, ler em busca de Stimmungen significa prestar atenção no modo como a dimensão material da literatura, em especial a sua prosódia, influi sobre as nossas modulações afetivas. Portanto, a fim de demonstrarmos a produtividade dessa proposta de leitura, que se inscreve, de alguma forma, na teoria contemporânea dos afetos, examinaremos como, no conto “São Marcos”, de Guimarães Rosa, a magia da palavra não é só encenada na esfera do enredo, mas está presente na própria carne do verbo, como feitiço que nos envolve em uma atmosfera singular. PALAVRAS-CHAVES: Literatura. Atmosfera. Prosódia. Magia. Guimarães Rosa.

________________ *Universidade Federal Fluminense (UFF)

ABSTRACT: This paper aims at proposing a mode of reading and interpretation of literary texts aiming, ultimately, to the understanding of how their moods are built. Within this perspective, the word atmosphere will not be used here in its usual key, as a narratological category, but in the broad horizon opened by the German word Stimmung. For Hans Ulrich Gumbrecht, to read seeking Stimmungen means paying attention to how the material dimension of literature, in particular its prosody, influences our affective modulations. Therefore, in order to demonstrate the productivity of this proposal of reading, which is related to, in certain perspective, the contemporary theory of the affects, we will examine how, in the short story “São Marcos”, by Guimarães Rosa, the magic of the word is not only performed in the field of the plot, but is also present in the flesh of the verb, like a spell that involves us in a peculiar atmosphere. KEW-WORDS: Literature. Mood. Prosody. Magic. Guimarães Rosa.


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Introdução O que pode uma palavra? Os textos de Guimarães Rosa parecem impor, incessantemente, esta questão aos seus leitores. Transgredidas em seu sentido, reconstruídas morfologicamente, exploradas na sua prosódia e submetidas a cadências rítmicas diversas, nas mãos do escritor mineiro, as palavras exibem uma plasticidade incomum. Não obstante a singularidade desse repertório estilístico, o processo de leitura dos seus textos parece despertar algo mais; algo que se projeta para a dimensão afetiva e apresenta o potencial de nos suscitar um tipo de experiência sensível que, habitualmente, tentamos circunscrever com a palavra atmosfera. É exatamente neste ponto que irrompe a nossa questão central: como uma leitura atenta à dimensão atmosférica de um texto pode ser produtiva enquanto um modo de ampliação dos horizontes interpretativos do mesmo? No intuito de pensarmos, sistematicamente, sobre esta questão, buscaremos examiná-la a partir dos problemas que a ela antecedem e dela se desdobram: primeiro, a necessidade de circunscrição mais clara daquilo que chamamos de “atmosfera” no âmbito do texto literário – o que nos levará, mais precisamente, a examinar as relações entre leitura, ritmo e performance; em seguida, nos deteremos no estudo do enredo do conto “São Marcos”, de Guimarães Rosa, buscando, particularmente, pensá-lo como um modo de encenação do poder mágico das palavras; em uma terceira e última etapa, tentaremos demonstrar de que modo nossa proposta de leitura atenta às atmosferas de um texto, à sua dimensão afetiva, pode ser produtiva enquanto forma de enriquecimento do horizonte interpretativo de uma obra. 1 Literatura e atmosfera É bastante comum reagirmos aos afetos provocados pela leitura de um texto literário dizendo que ele apresenta uma determinada atmosfera ou clima. No entanto, quando o dizemos de forma um tanto quanto automatizada, esquecemo-nos de nos questionarmos sobre a natureza desse fenômeno: o que é, mais precisamente, na esfera da literatura, aquilo que denominamos como clima e atmosfera?


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De um modo geral, os estudos de literatura consagraram as noções de atmosfera e clima como categorias narratológicas que indicam uma determinada relação entre o espaço representado e a situação afetiva que envolve os sujeitos ficcionais, numa espécie de relação simbiótica entre ambos. Contudo, essa moldura teórica não nos permite compreender fenômenos mais amplos deflagrados pelo ato da leitura; o texto como realidade tangível aos sentidos e o modo como ele influi sobre a nossa dimensão afetiva. Esta foi, justamente, a preocupação do escritor norte-americano H.P. Lovecraft, que, ao refletir sobre a natureza deste fenômeno no âmbito da literatura fantástica, concluiu que “Atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério final de autenticidade não é a harmonização de um enredo, mas a criação de uma determinada sensação” (LOVECRAFT, 2007, p. 17); o que significa, ainda segundo o escritor, que “devemos julgar uma história fantástica, não pela intenção do autor ou pela simples mecânica do enredo, mas pelo nível emocional que ela atinge em seu ponto menos banal” (2007, p. 17). Mas como exatamente um texto, para além da sua dimensão hermenêutica, pode influir sobre as modulações afetivas do leitor, tal como sugere Lovecraft? Tentaremos refletir sobre esta questão a partir da imbricação entre dois fenômenos que se encontram intrinsecamente relacionados neste processo: o ritmo como elemento constituinte da dimensão material do texto e a leitura como performance capaz de realizá-lo. A literatura é um fenômeno que apresenta materialidade, pois os sentidos que construímos ao longo da leitura são subsidiários de uma percepção sensível das inscrições gráficas que são dispostas numa folha de papel e de uma espécie de acoplamento estrutural que ocorre entre a dimensão linguística e a biológica dos sons que realizamos, no ato da leitura, e que, consequentemente, se enraízam no nosso corpo. No livro Atmosfera, ambiência, Stimmung, Hans Ulrich Gumbrecht propõe o desenvolvimento de um modo de leitura que possibilite a revelação daquilo que ele chama de “um potencial oculto da literatura” (2014, p. 14); isto é, uma potencialidade que a palavra, na sua própria materialidade teria de despertar certas modulações afetivas. Nesse sentido, assevera Gumbrecht, “‘Ler com a atenção voltada ao Stimmung’ sempre significa prestar atenção à dimensão textual das


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formas que nos envolvem, que envolvem nossos corpos, enquanto realidade física” (2014, p. 14). Em outro texto, um ensaio intitulado “Rhythm and meaning” (1986, p. 100), o teórico propõe considerar, como uma das propriedades fundamentais do ritmo, aquilo que ele chama de “affective function”, que, no seu entender, consistiria na “impossibilidade de divorciar a constituição semântica da forma da percepção do próprio corpo” (GUMBRECHT, 1986, p. 100). Os sinais gráficos inscritos em uma página se apresentam como imagens. Cabe a nós, leitores, produzirmos os sons que se encontram apenas representados, codificados, através desses sinais; nós, leitores, somos os responsáveis por transformar essas informações gráficas em pulsos rítmicos, em prosódia, através da performance. A princípio, o emprego desta palavra pode soar estranho e inapropriado, uma vez, no âmbito da arte contemporânea, ela designa, grosso modo, a atuação de um corpo diante de um público. Mas, se estamos falando, aqui, em uma leitura privada, a do sujeito que lê, no sofá de casa, um conto de Guimarães Rosa, como podemos admitir o seu uso? Em que sentido ela é aqui empregada? Ao refletir sobre essa questão, o medievalista Paul Zumthor concluiu que “o que na performance oral pura é realidade experimentada, é, na leitura, da ordem do desejo” (2007. p. 35); o que significa dizer, ainda segundo Zumthor, que “Nos dois casos, constata-se uma implicação forte do corpo, mas essa implicação se manifesta segundo modalidades superficialmente (e em aparência) muito diferentes” (2007. p. 35). A presença do corpo na performance já está na própria etimologia da palavra, derivada do latim per-formare, isto é, “dar forma” física a algo. Nesse sentido, pensar a leitura como performance significa situá-la no âmbito daquilo que Paul Zumthor entende como “um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e físico-psíquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (2007, p. 31). Dentro dessa perspectiva, a leitura é, antes de qualquer outra coisa, uma atividade perceptiva e, enquanto tal, demanda a busca de uma posição mais confortável para visualizar as palavras, um movimento contínuo dos olhos e da cabeça que seguem a linearidade da organização do texto, uma ação das mãos guiando a leitura, passando as páginas, e, frequentemente, uma movimentação dos próprios lábios visando ao


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acompanhamento do que se lê. Barthes já dizia que lemos “levantando a cabeça” (2004, p. 26), isto é, produzindo sentidos que nos impõem afluxos de “ideias, associações e excitações” (2004, p. 26); assim como Zumthor ratifica que “Você pode ler não importa o quê, em que posição, e os ritmos sanguíneos são afetados” (ZUMTHOR, 2007, p.33). É dentro dessa perspectiva que a leitura deve ser pensada como um processo performativo; isto é, na medida em que lemos um texto o tiramos de uma virtualidade para efetuarmos a sua presentificação. É oportuno lembrar que a palavra virtual, etimologicamente, pode tanto indicar a ideia de força, potência; pelo latim clássico – virtus –, como aquilo que existe como atributo futuro; no latim medieval – virtualis. Portanto, é possível afirmar que o texto possui uma força, uma potência, um desejo de vir-a-ser que só se realiza quando lido, ou seja, quando é posto em performance; é ela que nos dá o poder de possuir as palavras; de tê-las dentro de nós, de tocálas com a voz. 2 A palavra mágica em “São Marcos” “São Marcos”, conto que integra o livro Sagarana, de 1946, apresenta um dos temas que mais obsedaram Guimarães Rosa: o embate entre o saber científico e a visão supersticiosa de mundo. Nele, conta-se a história de José – também identificado como “Izé” –, morador do arraial de Calango-Frito que, ao subestimar os poderes de um feiticeiro local, João Mangolô, acaba vitimado por uma súbita cegueira imposta pela magia deste em um dia de passeio pela mata. A história de “São Marcos” pode ser pensada, de certa forma, como um campo de experimentação das inquietudes metafísicas do próprio Guimarães Rosa, médico que nutria um grande interesse por diversos tipos de concepções e práticas religiosas, como nos mostrou Francis Utéza em Metafísica do grande sertão (UTÉZA, 1994). É dentro dessa perspectiva que “São Marcos” pode ser pensado como um conto em que, ao enredo principal, subjaz a questão de o quanto pode uma palavra; isto é, de que modo ela apresenta uma potência para intervir de forma mágica na própria ordem do mundo natural. Esse problema já é sutilmente colocado na primeira página do conto, em que encontramos, lado a lado, o título – “São Marcos” – e uma epígrafe – “Cantiga de espantar males”. Ainda que sejam textos pertencentes a tradições culturais distintas, o cristianismo e a cultura folclórica, ambos


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se aproximam enquanto meios de, através da expressão oral, evocar uma força transcendente, através da qual a palavra se transforma em uma arquipotência protetora. Ao longo de todo o texto, essa força da palavra enquanto forma de intervenção mágica no mundo é reafirmada. Em um encontro com o amigo Aurísio Manquitola, o protagonista, ao entoar a oração de São Marcos de modo casual, é interrompido pelo amigo que o adverte: “Pára, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o que é que está bulindo!...É melhor esquecer as palavras... Não benze pólvora com tição de fogo!” (ROSA, 2001. p. 268). Aqui, encontramos um fenômeno curioso, o da interdição do uso da palavra; o que nos faz indagar sobre as motivações que a envolvem: haveria algo na própria acústica da palavra que determinaria sua escolha como objeto de superstição – como, por exemplo, o problema do trítono, um determinado tipo de intervalo entre notas musicais que, no período barroco, foi chamado de diabolus e teve sua execução proibida – ou estaríamos, para pensarmos com Saussure, no âmbito de uma mera convenção? Em primeiro lugar, é fundamental considerar como essas palavras estão envoltas por um tipo de concepção mental que se opõe ao pensamento teórico e “discursivo”, uma vez que não tendem à busca de concatenação e conexão sistemática, mas a formas de condensação, o que traz como desdobramento, de acordo com Ernst Cassirer, o fato de que: A palavra, como se fosse uma estrutura de outra ordem, de uma nova dimensão intelectual, interpõe-se, por assim dizer, entre os diferentes conteúdos perceptivos, tais como se impõem à consciência no seu imediato aqui e agora; e, precisamente esta interposição, este sobressair-se da esfera da existência imediata, é que lhe confere a liberdade e agilidade que lhe permite moverse entre um conteúdo e outro e conectá-los entre si (CASSIRER, 2009, p. 74).

A palavra mágica realiza uma espécie de suspensão da relação de conhecimento do mundo mediada pelo logos. Em parte, esse fenômeno parece ter uma relação com a própria sonoridade da palavra. Não é por acaso que, no início de “São Marcos”, o narrador afirma que algumas palavras eram sinônimo de mau-agouro na região, em que não se podia “falar em raio: quando muito, e se o tempo


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está bom, ‘faísca’; nem dizer a lepra; só o ‘mal’” (2001, p. 261). Como nesses dois vocábulos – “raio” e “lepra” – não nos parece haver nenhuma relação de isomorfismo linguístico; isto é, a palavra “raio” não imita a acústica tenebrosa do fenômeno ao qual se refere, tampouco o vocábulo “lepra” traz algum aspecto fônico que supostamente mimetiza a imagem que se tem da doença. Uma hipótese plausível nos parece considerar que talvez haja algo no plano das sensações internas despertadas pela pronúncia dessas palavras que se associa, de algum modo, ao significado que foi convencionalmente atribuído às mesmas. Mas o poder das palavras, em “São Marcos”, não se revela somente naquelas interditas; ele se apresenta, também, nas que realizam algum tipo de intervenção sobre o mundo, como a alusão ao fato de que “o comando ‘Abre-te Sésamo etc.’ fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre...” (2001, p.261). Não obstante a crença no poder mágico da palavra ser um dos temas centrais dentro do plano ficcional do conto, como afirmamos, parece ser possível apontar, também, uma outra dimensão em que o processo de encantamento com as palavras se dá: na relação entre texto e leitor. É dentro dessa perspectiva que propomos pensar o processo de leitura como performance; isto é, como meio que consiga colocar em ação tudo aquilo potencialmente presente no texto de Rosa: o sotaque do norte de Minas, as variações entoacionais, a fala coloquial, a tonalidade irônica e as sugestões rítmico-melódicas. Assim, os efeitos da prática de feitiçaria não se constituem somente como o mote do enredo de “São Marcos”, mas também como resultado das operações técnicas empregadas por Guimarães Rosa para nos fazer imergir na atmosfera do conto. 3 A mágica da palavra: lendo ambiências em “São Marcos” O ritmo, como dissemos, parece ser o lugar em que as palavras podem ser tocadas com a voz; o lugar em que elas ganham densidade, peso, “canto e plumagem” (ROSA, 2001, p. 274); não é por acaso que Octavio Paz afirma que “o ritmo não é exclusivamente uma medida vazia de conteúdo, mas uma direção, um sentido” (PAZ, 2012, p. 64); tal como, para reiteramos nossa metáfora, os passos que


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damos ao caminharmos, em que o anterior sempre influi sobre o seguinte, indicando o metro e a cadência àquele que virá. O que nos diz, portanto, as várias cadências rítmicomelódicas presentes em “São Marcos”? Como este fenômeno se enraíza em nosso corpo e opera a construção de atmosferas no conto de Guimarães Rosa? A partir de uma análise dos elementos relativos à sua prosódia, nos parece possível dividir o conto em três momentos. Não há, no texto, é bom ressaltar, elementos gráficos que o dividam em seções e, não obstante a nossa sugestão, outras propostas de divisão poderiam ser apresentadas. Contudo, parece-nos possível identificar três atmosferas modulando a nossa leitura ao longo da história: uma primeira cuja linguagem é predominantemente narrativa, com longas orações subordinadas e entrecortada por várias enunciações em discurso direto; uma segunda, em que a narração cede lugar ao modo descritivo e de natureza autoreflexiva; e uma terceira, na qual diversos recursos sintático-semânticos são empregados para nos fazer sentir a inquietação provocada pela experiência de estupor do protagonista diante da cegueira, que o leva a um extenso monólogo interior. Nosso objetivo, aqui, é, portanto, compreender de que modo a organização sintático semântica do texto e suas implicações na construção da prosódia textual influem sobre nossas modulações afetivas, ao longo da leitura – da performance –, e participam, decisivamente, da construção das suas atmosferas. Em uma primeira parte, a tipologia do texto é predominantemente narrativa, com longas orações subordinadas que, por sua vez, são entrecortadas por várias enunciações em discurso direto, como a que encontramos a seguir: - Ô Mangolô! - Senh’us’Cristo, Sinhô! - Pensei que você era uma cabiúna de queimada... - Isso é graça de Sinhô... - ...Com um balaio de rama de mocó, por cima!... - Ixe! - Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro...” - Ôi, oi!... - “Segundo: todo negro é vagabundo.” - Virgem! - “Terceiro: todo negro é feiticeiro...” (2001, p. 226)


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Esse diálogo revela, no próprio nível da estruturação frasal, o contraste entre o discurso do protagonista, letrado e articulado; e o do feiticeiro local, monossilábico. Ao enumerar, de forma sarcástica, o que seriam os “mandamentos do negro”, evidencia-se como o tom assertivo da fala de José está em consonância com aquilo que visa a fazer: normatizar (“Primeiro”, “Segundo”, “Terceiro”) um determinado comportamento racial. Cabe a Mangolô expressar surpresa, através do uso de monossílabos cuja função se assemelha à de interjeições, como “Ixe!” e “Oi, oi”. É nesse sentido que é estabelecida uma hierarquia entre eles a partir do modo como cada um articula a linguagem; fato que, sob o ponto de vista da prosódia, impõe uma cadência rítmica que se dá, efetivamente, através da alternância regular entre frases longas – as de José – e curtas, as de João Mangolô. Em um segundo momento, tanto o aspecto narrativo quanto os diálogos ágeis cedem lugar ao modo descritivo, pausado e de natureza auto-reflexiva, que se coloca em consonância com a própria condição afetiva do protagonista, que, ao realizar um passeio pela mata, busca atingir um estágio de equilíbrio com a própria “temporalidade da natureza”: Fiquei meio deitado, de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se sumiu, logo, na orla das tarumãs prosternantes. Então, eu só podia ver o chão, os tufos de grama e os sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro numa mesa de jogo (2001, p. 262).

O momento-chave dessa relação de equilíbrio com a própria “temporalidade da natureza” é marcado pela palavra empregada para definir essa experiência: “Paz”. Essa palavra “Paz” aparece sozinha, deslocada em um parágrafo seguida por um ponto final, o que marca uma espécie de fim no processo rítmico que vinha se desenvolvendo ao longo das partes descritivas. Uma cadência rítmica que vai desacelerando até se encerrar no som fricativo, contínuo e de intensidade decrescente da consoante [z] que desaparece levemente em nossos lábios em direção a um silêncio total. Estamos aqui em uma espécie de ponto zero, no domínio do equilíbrio absoluto.


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É justamente a frase que sucede á palavra “Paz”, no parágrafo posterior, que introduz uma tensão que rompe com a situação de calmaria reinante: “E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite...E escureceu tudo” (2001, p. 283). A partir do momento em que José é acometido pela cegueira, há uma série de mudanças que operam sobre os parâmetros linguísticos que orientavam a construção do texto até então e que influem, decisivamente, na sua dimensão rítmicomelódica. Passamos a nos inquietar com o estado de angústia vivido pelo protagonista, como se Guimarães Rosa quisesse nos impor um feitiço através da manipulação alquímica do texto. Assim que tudo escurece repentinamente para José, percebemos nítidas mudanças na estrutura textual, se a compararmos com as partes anteriores do conto. O fato de ter sido vitimado por uma cegueira cuja origem lhe é desconhecida e a necessidade de ter que lutar para tentar recuperar sua condição anterior deixam José em estado de estupor; e, assim, junto com a percepção e a cognição, a linguagem se desmorona. Ao longo desta terceira parte – um longo monólogo interior de José –, é possível evidenciar uma mudança considerável na sintaxe das frases, que ocasiona uma certa fragmentação à fluidez narrativa que preponderava nas partes anteriores. Se a contemplação era uma atividade através da qual o sujeito, capturado pela temporalidade da própria natureza, produzia extensas orações subordinadas, deixando-se levar por um jogo em que uma imagem leva à outra livremente, a apreensão provocada pela perda de um dos sentidos motiva um outro tipo de pensamento, de caráter fragmentado e projetado para a resolução de um problema iminente: “Capto-o. Sinto-o direto, pessoal. Vem do mato? Vem do sul. Todo sul é o perigo. Abraço-me com a suína. O coração ribomba. Quero correr” (2001, p. 290). É evidente que o primeiro desdobramento da experiência da cegueira no âmbito da linguagem consiste no modo como a modalidade descritiva fica comprometida no processo de enunciação do sujeito. Como se sabe, descrever consiste em uma operação de linguagem através da qual produzimos sentenças que nos permitem apresentar fenômenos percebidos em uma dimensão espacial. Portanto, desprovido da visão – um dos


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sentidos mais ativos que possuímos –, resta ao narrador a solidão da “treva, pesando e comprimindo absoluta” (ROSA, 2001, p.283). Dentro dessa perspectiva, às longas orações subordinadas das duas primeiras partes, impõem-se, agora, sintagmas curtos – orações assindéticas –, como se a não possibilidade de ver também não lhe permitisse mais adjetivar, resumindo a sentença àquilo que se tem consciência de estar fazendo: “Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui-me. Tonteei. Apalpei o chão” (ROSA, 2001, p.264). Esta mudança nas condições perceptivas não resultará apenas em uma ausência de descrição visual, mas em uma mudança no modo como ela ocorre, com base em imagens-mentais produzidas a partir de comparações e metáforas – “Como se eu estivesse no compacto de uma montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo” (ROSA, 2001, p.283) – ou recorrendo a outros sentidos, como o tato e a audição – “Tacteio”; “Ouvindo. Passara toda a minha atenção para os ouvidos” (ROSA, 2001, p.286). A perda da visão, portanto, provoca mudanças na própria condição afetiva do narrador; agora, inseguro sobre aquilo que o acomete. No entanto, há uma necessidade de saber o que se passa: “Portanto...Estaria eu...Cego?” (ROSA, 2001, p.284); de manter o autocontrole: “Mas, calma...calma” (ROSA, 2001, p.285); de identificar o que se move ao redor: “Espera, há alguma coisa...Passos?” (ROSA, 2001, p.287); de ter a si próprio como interlocutor: “Oh...Diabos e diabos...oh” (ROSA, 2001, p.288). Em virtude da ausência da visão, os pensamentos e movimentos do personagem se tornam mais lentos, meticulosamente calculados; implicando a presença constante das reticências que, no âmbito rítmico-melódico, cria uma leitura repleta de pausas. Dentro dessa perspectiva, o discurso autoconfiante, repleto de frases assertivas, cede às frases interrogativas, que revelam a insegurança do personagem com relação àquilo que se passa: “Será que andei?”; “Que posso? Nada” (ROSA, 2001, p.287). A abundância de sentenças indagativas implica, necessariamente, um outro ciclo entoacional, com diferentes contornos melódicos. É, ainda essa mesma incerteza, fruto da total incompreensão sobre o que se passa, que gera uma linguagem repetitiva, espelho de uma consciência que vacila, que não consegue articular termos que definam, com precisão, o que se passa. Assim, sob o ponto de vista rítmico-melódico, a linguagem se torna extremamente musical, repleta de efeitos


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anafóricos: “Mas, calma...calma...”; “Mas, longe, longe...”; “Que será? ‘Quem será?” (ROSA, 2001, p.285). Em Carta sobre os cegos para o uso dos que veem, Denis Diderot reflete sobre como a ausência da visão pode, efetivamente, abrir os demais sentidos para uma experiência perceptiva muito mais apurada, ao descrever, por exemplo, como há cegos que conseguem discernir uma moeda verdadeira da falsa simplesmente percorrendo as mãos sobre elas. Desse modo, conclui o filósofo, “o tato pode tornar-se mais delicado que a vista, quando aperfeiçoado pelo exercício” (DIDEROT, 1979, p.56). Em “São Marcos”, é justamente a experiência da cegueira que demanda a José uma atenção inteiramente voltada aos outros sentidos, como forma de se guiar pela mata: “Passara toda a atenção para os ouvidos” (ROSA, 2001, p.286). E é exatamente a partir dessa estratégia que ele começa a caminhar por ela, buscando uma saída daquele lugar guiado pelos fenômenos sonoros, como evidencia-se a seguir: Tangi a pedra, e logo senti que pusera no ato notável excesso de força muscular. O projétil bateu musical na água, e deve ter caído bem no meio da flotilha de marrecos, que grasnaram: – Quaquaracuac! O casal de patos nada disse, pois a voz das ipecas é só um sopro. Mas espadanaram, ruflaram e voaram embora (ROSA, 2001, p. 284).

A Stimmung que nos coloca em uma condição de afinação com a cadência rítmica do texto também é fruto de uma radical mudança nos tempos verbais. Até então, a narrativa era predominantemente marcada pela presença de verbos em tempos pretéritos, o que ocasionava o distanciamento entre o plano da enunciação e o do enunciado. Contudo, esses planos parecem ser sobrepostos a partir do momento em que José fica cego, quando já notamos uma guinada em direção aos verbos flexionados no presente do indicativo. Desse modo, o leitor é convidado a compartilhar da experiência angustiante vivida pelo narrador, que, através de monólogos interiores, relata suas ações em um tempo aparentemente simultâneo às mesmas, conforme os exemplos que se seguem: “Vamos”; “Bem, até há pouco, estava uma pedra solta ali. Tacteio. Ei-la”; “Cipóvem-cá, ou um tripa-de-porco. À estrada! Pé por pé, pé por si. Uma cigarra se esfrega e perfura”; “vamos ver”; “Mas,


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calma...calma...Um minuto só, por esforço. Esperar um pouco, sem nervoso, que para tudo há solução. E, com duas engatinhadas, busco maneira de encostar-me à árvore: cobrir bem a retaguarda” (2001, pp. 286-288). E então, na medida em que José vai caminhando pela mata, vamos ouvindo seus passos, um após o outro, dados com muita cautela: “Pé por pé, pé por si... Pèporpè, pè, pèporsí... Pepp or pepp, epp or see... Pêpe orpèpe, heppe Orcy” (2001, p. 287). Este efeito aliterativo, obtido a partir da repetição da consoante oclusiva bilabial [p], se repete em diversos momentos, a partir deste ponto da narrativa; sempre modulando o percurso do narrador pela mata com a audição dos sons dos próprios passos dados para percorrê-la. Após se lembrar da oração de São Marcos e de rezá-la, aquilo que, até então, eram passos cautelosos, se transforma, subitamente, em uma corrida enfurecida: “Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar, destruir...E então foi só a doideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri” (2001, p. 290). O ritmo da leitura, então, se torna acelerado, acompanhando o resfolegar do protagonista, que, correndo em disparada, “parecia o arquejar de uma grande fera” (2001, p.290). Esta corrida leva José em direção à casa de João Mangolô, onde se dá o embate final. Depois de um quase estrangulamento do feiticeiro, com mulheres aos gritos e assustadas se debandando para todos os lados, no último parágrafo, Guimarães Rosa, mais uma vez, altera dramaticamente o ritmo da narrativa, recuperando, ao final, aquele estado de “paz” até então perdido: Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do Angelim verde, de vargens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul (ROSA, 2001, p. 291).

Neste fragmento final, a mudança do modo narrativo do parágrafo anterior para o descritivo aqui preponderante e a apresentação desse olhar que vai, em um movimento gradativo, testando a qualidade da visão recuperada através da busca por aquilo que está mais distante e suas nuances, causam uma desaceleração no ritmo da narrativa e retoma a condição de equilíbrio do narrador quando no ato de contemplação da natureza.


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Considerações finais E aqui voltamos à nossa questão inicial: o que pode uma palavra? Em uma carta datada de 4 de março de 1965, enviada a Harriet de Onis, tradutora de Sagarana para a língua inglesa, Guimarães Rosa chamava atenção para a importância da “poeticidade da forma” (apud UTÉZA, 1994, p. 22); o que, no seu entender, compreende aqueles fenômenos que conferem “tanto a sensação mágica, visual das palavras, quanto a eficácia sonora delas” (1994, p. 22). Para o escritor mineiro, tão importante quanto o enredo, eram “as alterações vibrantes do ritmo, a música subjacente, as fórmulas-esqueletos das frases – transmitindo ao subconsciente vibrações emotivas sutis” (1994, p. 22). E é aí que a palavra exibe o quanto pode em Guimarães Rosa; fruto de uma alquimia do verbo, elas inscrevem forças sobre os nossos sentidos: a leitura do ritmo dos passos, das pausas para reflexão, da entoação irônica, da fragmentação dos sintagmas produz um continuum entre o texto e o corpo do leitor; e é nesse espaço de encontro dessas ressonâncias, nesse lugar em que a experiência do texto se aloja no interior do nosso corpo que se dá a imersão do leitor na atmosfera de “São Marcos”. Referências BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2009. DIDEROT, Denis. “Carta aos cegos para o uso dos que veem”. In_Textos escolhidos. [tradução: J. Guinsburg]. São Paulo: Abril Cultural, 1979. GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Rhythm and meaning”. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich (Org.). Materialities of communication. California: Stanford University Press, 1994. __________. Atmosfera, ambiência, Stimmung. [tradução: Ana Isabel Soares]. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC, 2014. LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. Editora Iluminuras Ltda., 2008.


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PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac & & Naify, 2012. ROSA, Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. UTÉZA, Francis. Metafísica do Grande Sertão. São Paulo: EDUSP, 1994. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo Paulo: Cosac Naify, 2007.


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Antes e depois da primeira tradução portuguesa: Madame Bovary no Brasil oitocentista Before and after the first portuguese translation: Madame Bovary in nineteenth-century Brazil Andréa Correa Paraiso MÜLLER* RESUMO: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em capítulos na Revue de Paris em 1856 e em livro em 1857, foi traduzido para a língua portuguesa apenas em 1881. Alvo de processo judicial por imoralidade, o romance havia alcançado números expressivos de vendas na França e provocado polêmica na imprensa daquele país. Considerando a ampla circulação de traduções de romances franceses em Portugal e no Brasil em meados do século XIX, afigura-se surpreendente a demora em verter para o português um romance que tantas reações vinha suscitando. O presente artigo tem por objetivo discutir as possíveis razões dessa demora e refletir sobre a recepção de Madame Bovary no Brasil antes e depois da primeira tradução portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Romance. Tradução. Século XIX. Recepção. ABSTRACT: Madame Bovary, by Gustave Flaubert, published in chapters in the Revue de Paris in 1856 and as a book in 1857, was translated into Portuguese only in 1881. At the time it was legally accused of immorality, the novel had reached significant sales in France and provoked controversy in that country press. Considering the broad circulation of French novel translations in Portugal and in Brazil in the mid XIX century, it is surprising how long it took for such a provoking text to be translated into Portuguese. This paper aims to discuss the possible reasons of this delay and reflect upon the reception of Madame Bovary in Brazil before and after the first Portuguese translation. KEYWORDS: Novel. Translation. XIX Century. Reception.

Introdução

____________ *Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

Madame Bovary, o hoje canônico romance de estreia de Gustave Flaubert, objeto de polêmica quando de seu lançamento na França, tardou a ser traduzido para a língua portuguesa.


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Alvo de processo judicial por imoralidade desencadeado em seguida à publicação em capítulos, entre outubro e dezembro de 1856, na Revue de Paris, colocou o nome de seu autor, após a absolvição, no centro de um acalorado debate que se travou na imprensa francesa. Apenas em 1857, ano do processo e da publicação em livro pelo editor Michel Lévy, mais de trinta resenhas surgiram nos periódicos franceses, algumas parcialmente elogiosas, outras reprovando a suposta imoralidade da obra e expressando espanto diante da impessoalidade do narrador (MÜLLER, 2012, p. 94). Muitos desses artigos foram assinados por críticos de renome na época, como CharlesAugustin Saint-Beuve, que elogiou o romance no Moniteur Universel, jornal oficial do governo francês, despertando reações de diversos outros homens de letras. Tamanha polêmica se fez acompanhar por um notável sucesso de vendas. A primeira edição, de 6.750 exemplares, teve outras duas tiragens no mesmo ano (SUFFEL apud ROBERT, 2003). Em 1858, várias tiragens foram realizadas. Mais duas edições saíram ainda pela empresa de Michel Lévy, em 1862 e em 1869. Em 1874, duas outras editoras publicaram Madame Bovary: Charpentier, cuja edição incluía o requisitório, a defesa e a sentença do processo, e Lemerre (LECLERC, 2011). Considerando a grande quantidade de traduções de romances franceses que eram editadas em Portugal em meados do século XIX (OLIVEIRA, 2011, p. 251) e a predominância da ficção francesa entre os títulos anunciados por livrarias nos jornais do Rio de Janeiro na mesma época (MÜLLER, 2012), afigura-se, a princípio, surpreendente a ausência de tradução portuguesa de Madame Bovary no calor dos debates suscitados pela obra na França. A primeira seria realizada apenas em 1881, pelo tipógrafo lusitano Francisco Ferreira da Silva Vieira (GONÇALVES, 2006) e viria a circular no Brasil. No presente trabalho, propomos uma reflexão sobre possíveis razões para a não tradução de Madame Bovary para o português em meados do século XIX, assim como sobre a recepção desse romance no Brasil antes e depois da tradução de Silva Vieira.


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1 Romances traduzidos no Brasil oitocentista Quando abordam o início do gênero romanesco no Brasil, as histórias literárias tradicionais e os livros didáticos costumam apontar como primeiro romance brasileiro A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo. Alguns trabalhos consideram ponto inicial da nossa prosa romanesca O filho do pescador (1843), de Teixeira e Sousa. Leitores e estudantes podem ter a impressão de que não se liam romances no Brasil antes dos anos 1840. Entretanto, narrativas ficcionais eram produzidas por aqui bem antes desses “marcos”: No entanto, seja no formato livro ou em publicações folhetinescas, as manifestações literárias brasileiras em prosa de ficção começaram a aparecer, acanhadamente, em 1826, com a novela Statira e Zoroastes, de Lucas José d’Alvarenga, acompanhada de outros títulos que circularam entre os leitores (SALES, 2011, p. 77).

Além das primeiras incursões de escritores locais pela prosa de ficção, quem buscava por leituras no Brasil das primeiras décadas do século XIX tinha a seu dispor um leque de narrativas estrangeiras que circulavam por aqui traduzidas ou em língua original. As pesquisas de Márcia Abreu sobre as solicitações de envio de livros ao Brasil dirigidas aos órgãos responsáveis pela censura (a Real Mesa Censória de Lisboa e a Mesa do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro) registram a presença de narrativas ficcionais estrangeiras no país desde o século XVIII. Segundo os dados levantados pela pesquisadora, entre as obras classificadas como de “belasletras” mais requisitadas à censura para remessas ao Brasil de 1769 a 1807 e de 1808 a 1821, havia um número significativo de narrativas ficcionais, com destaque, pela quantidade, para as de origem francesa (ABREU, 2003, p. 90-107). Muitos desses textos vinham para cá na língua original; outros, em traduções portuguesas. Entre os primeiros livros impressos no Brasil, após a instalação da Impressão Régia, ocorrida em 1808, também havia vários romances. Embora a Impressão Régia tivesse por finalidade principal imprimir documentos e papéis administrativos, publicou também obras diversas, entre as quais onze romances traduzidos (SOUZA, 2008, p. 25).


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A leitura de romances no Brasil antecede, pois, em muito, a publicação dos textos que são tradicionalmente considerados como as primeiras manifestações da prosa romanesca no país. Desde fins do século XVIII, narrativas estrangeiras circulavam por aqui e, certamente, contribuíram para compor o imaginário e o repertório de nossos primeiros romancistas. Nas décadas seguintes, a circulação de romances estrangeiros, marcadamente franceses, intensificou-se consideravelmente. A abertura de bibliotecas e gabinetes de leitura e o aumento do número de estabelecimentos dedicados à venda de livros e folhetos, sobretudo na corte, ampliou o leque de narrativas importadas, traduzidas ou não, ao alcance dos leitores ávidos por ficção (VASCONCELOS, 2002). Em Portugal e no Brasil de meados do século XIX, os romances estrangeiros, mais especificamente os franceses, ocupavam posição dominante no comércio livreiro. Paulo Motta Oliveira observa que “se existiam poucos leitores portugueses, estes não eram prioritariamente leitores de romances portugueses, mas de traduções” (OLIVEIRA, 2011, p. 251, grifos do autor). A afirmação se confirma facilmente pelos expressivos dados: apenas entre 1851 e 1860, foram lançadas em Portugal 109 traduções de Alexandre Dumas, 32 de Eugène Sue, 16 de Émile Souvestre e 9 de Victor Hugo (RODRIGUES, 1992; 1993 apud OLIVEIRA, 2011, p. 251). Muitas dessas traduções de romances franceses realizadas em Portugal desembarcavam em solo brasileiro e contribuíam para compor um repertório literário marcado pela ficção francesa de viés folhetinesco. Com o advento do folhetim, a circulação de romances tornava-se cada vez maior e, consequentemente, crescia a demanda por traduções. Muitos dos romances fatiados nos rodapés dos jornais eram estrangeiros, boa parte franceses e, para figurarem nos periódicos locais, precisavam ser traduzidos. Além das traduções feitas em Portugal, começaram a surgir no Brasil tradutores eficientes, ao menos em relação à rapidez, dispostos a verter para a língua portuguesa as novidades vindas do velho continente, particularmente da França. Nomes como José Alves Visconti Coaraçy, Justiniano José da Rocha e Antonio José Fernandes dos Reis, entre outros, foram


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responsáveis por um número nada desprezível de traduções de romances de sucesso em meados do século XIX (FARIA, 2008). A produtividade tradutória de Justiniano José da Rocha é objeto, inclusive, de saborosa anedota, segundo a qual ele conseguia traduzir dois livros ao mesmo tempo: segurando um volume na mão direita e outro na esquerda, caminhava por uma extensa varanda em cujas extremidades estavam instalados dois secretários; à medida que caminhava, ditava para um deles a tradução da obra que segurava na mão direita e para o outro a da que levava na esquerda (BROCA, 2000, p. 107). Outro exemplo interessante da prontidão com que se disponibilizavam para o público leitor brasileiro os títulos de sucesso da produção romanesca francesa é a tradução de Os miseráveis, de Victor Hugo, publicada em folhetim no Jornal do Commercio, de 10 de março a 16 de outubro de 1862. O trabalho, iniciado por Justiniano José da Rocha, foi conduzido, após a morte deste, por Antonio José Fernandes dos Reis. É surpreendente a rapidez com que foi realizada a tradução. O início da publicação do romance de Hugo nos rodapés do periódico carioca precedeu em quase um mês o lançamento do livro na França, país em que a obra não foi veiculada em folhetim por determinação do autor. Ofir Bergemann de Aguiar (2002) explica que a façanha foi possível graças a um contrato entre o proprietário do Jornal do Commercio, Junius Villeneuve, e o editor belga, o que garantiu o recebimento dos originais diretamente da Bélgica, onde o livro seria lançado ao mesmo tempo que na França. Luís Carlos Pimenta Gonçalves, em pesquisa sobre traduções portuguesas de textos franceses, sublinha a rapidez da tradução de Os miseráveis feita em Portugal por Francisco Ferreira da Silva Vieira, que teria surgido dez meses após a publicação do livro na França. O pesquisador afirma ter sido Silva Vieira o primeiro a verter o romance de Hugo para o português (GONÇALVES, 2006). A tradução brasileira, no entanto, é anterior à portuguesa. Ora, diante de cenário aparentemente tão propício às traduções, sobretudo de romances franceses, que fatores poderiam explicar tão tardia tradução de Madame Bovary para o português?


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2 Madame Bovary no Brasil em meados do século XIX Um ano após seu lançamento em livro na França, Madame Bovary foi disponibilizado no Brasil pela livraria Garnier aos leitores que conheciam a língua francesa. Figurou no catálogo das obras adquiridas pela livraria em março/abril de 1858, em meio aos títulos agrupados sob a rubrica Ouvrages français. Além dos livros em francês, o catálogo continha uma seção intitulada “Obras portuguesas”, que incluía textos originalmente redigidos em Portugal e traduções realizadas naquele país; continha 54 títulos, entre os quais livros de direito, de história, de geografia, obras religiosas e uma peça teatral. Já a rubrica Ouvrages français era reservada aos livros em língua francesa anunciados nesse idioma, entre os quais incluíam-se traduções para o francês de obras de outras nacionalidades. Continha 209 títulos, sendo 31 de ficção, incluindo peças teatrais. Se contarmos apenas os romances, somamos 23. Havia obras de Balzac, Chateaubriand, Dumas, Paul Féval e Paul de Kock, autores já bastante conhecidos e apreciados no Brasil. O restante dos livros anunciados compreendia obras de geografia, história, mecânica, economia, filosofia, religião e uma imensa variedade de assuntos, além de guias de conduta. Diante dessa variedade de assuntos, o número de título de ficção (31, ou 14,83% do total) e o de romances (23, ou cerca de 11% do total) não podem ser considerados pequenos. As obras religiosas, por exemplo, somam 14, ou seja, 6,69% do total, número bem menor que o de romances e correspondente a menos da metade do conjunto de obras de ficção. A seleção dos títulos presentes no catálogo estava, provavelmente, em coerência com o gosto e com as preocupações da época. Sendo Baptsite-Louis Garnier um dos principais livreiros instalados na corte, supõe-se que suas escolhas procurassem atender aos anseios e preocupações de seu público. A presença de livros religiosos, embora em menor número do que as obras de ficção, demonstra que também no Brasil havia uma demanda para esse tipo de leitura. E a oferta de 209 livros em língua francesa permite supor que havia no país, ao menos no Rio de Janeiro, pessoas capazes de ler nesse idioma. O número considerável de romances na língua


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original sugere que entre os apreciadores desse gênero (inclusive entre os leitores dos mais populares autores de folhetins, como Féval, Kock e Dumas) havia os que não necessitavam de traduções para ter acesso às produções francesas. Os livros que compunham o catálogo foram anunciados, ao longo do primeiro semestre de 1858, no Jornal do Commercio, importante periódico da corte no qual a livraria Garnier divulgava com freqüência seu acervo. Madame Bovary foi discretamente anunciado nos dias 2 e 4 de abril daquele ano, fazendo parte de uma lista de diversas outras obras do catálogo, todas em francês. Além de serem aquisições recentíssimas, tais obra eram também publicações recentes: assim como Madame Bovary, havia outros livros lançados na França em 1857, como, por exemplo, Les quatre ages, de Xavier Marmier, o que demonstrava a atualização da casa Garnier no que se referia às novidades do mercado livreiro europeu, mais especificamente francês. O anúncio veiculado nos dois dias era o mesmo; não havia título especial, apenas nome e endereço da livraria. Mais de um ano depois, no dia 12 de novembro de 1859, o romance de estreia de Flaubert foi novamente anunciado pela Garnier no Jornal do Commercio, dessa vez em um anúncio intitulado Romans nouveaux e composto apenas por romances publicados entre 1856 e 1859, todos oferecidos em língua francesa. O curioso é que, no reclame de 1858, Madame Bovary havia sido divulgado em dois volumes e com o subtítulo moeurs de province. Tratava-se, ao que tudo indica, da edição publicada por Michel Lévy em abril de 1857. Em 12 de novembro de 1859, contudo, o romance foi oferecido em quatro volumes e com o subtítulo scènes de province, o que leva a crer que se tratava de uma outra edição. Embora não tenhamos informações sobre as vendas nem sobre a quantidade de exemplares disponíveis na livraria, a divulgação de duas edições diferentes em pouco mais de um ano permite supor que a obra havia alcançado uma certa cifra em vendas capaz de impulsionar o livreiro a importar outra edição. No entanto, como só se tem notícia de segunda edição na França em 1862


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(LECLERC, 2011), deve-se considerar a possibilidade de tratar-se de uma contrafação. No dia 25 de novembro de 1859, Madame Bovary novamente apareceu no mesmo periódico em anúncio da Garnier, dessa vez em dois volumes como em 1858 e em meio a romances agrupados sob o título Romans, nouvelles, etc., à 1 $000 le volume. O chamativo título era, na verdade, uma estratégia para atrair clientes, pois, como a maior parte dos romances que ali constavam, assim como Madame Bovary, tinham mais de um volume, o preço total era o mesmo divulgado em reclames anteriores. Em 19 de setembro de 1861, outro anúncio contendo apenas romances em francês publicado também no Jornal do Commercio pela mesma livraria trazia Madame Bovary entre os títulos, agora outra vez em quatro volumes. Realizamos pesquisa em mais de trinta periódicos brasileiros (incluindo jornais diários e revistas) com datas entre 1857 e 1869, entre os quais o próprio Jornal do Commercio, e não identificamos o romance de Flaubert em anúncios de nenhuma outra livraria. Segundo o que observamos na pesquisa, Baptiste-Louis Garnier era, entre os livreiros instalados no Rio de Janeiro, o que mais anunciava obras em língua francesa, o que se pode notar pelo próprio catálogo em que figurou Madame Bovary, no qual constavam 209 títulos em francês e 54 em português. Ao adquirir o polêmico romance de Flaubert apenas um ano após sua publicação no país de origem, demonstrava a atualização de sua livraria e disponibilizava, no Brasil, uma das obras que vinham ocupando as atenções da crítica francesa naquele período. Contudo, a então novidade literária permaneceu durante anos acessível apenas ao público capaz de ler em língua francesa. Romances franceses eram, como já mencionamos, presença dominante no mercado livreiro do Brasil de meados do Oitocentos; outras livrarias os ofereciam a seus clientes quase sempre em traduções. Por que Madame Bovary tardou tanto a figurar entre essas traduções? Não se pode, evidentemente, elaborar uma resposta definitiva para tal questão. Mas é possível refletir a partir de algumas hipóteses. A primeira é a moral. Até a segunda metade do século XIX, a moral era um dos principais critérios de avaliação da produção escrita, principalmente quando se tratava da prosa romanesca. Sendo comum, tanto no Brasil quanto na Europa, a crença na capacidade da literatura de


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influenciar o pensamento e as atitudes dos leitores, somente os romances que apresentavam exemplos tidos como dignos de serem seguidos eram considerados bons pelos homens de letras e pelas autoridades (MÜLLER, 2012; ABREU, 2003). Com base nessa concepção de literatura é que Flaubert, juntamente com o impressor e o diretor da revista que publicara Madame Bovary, foi processado pelo Ministério Público francês sob a acusação de ofensa à moral pública, à religião e aos bons costumes. Também pautava-se na moral a maior parte das resenhas que os críticos franceses publicaram na imprensa daquele país logo após a publicação do romance de Flaubert. Nos trinta periódicos brasileiros de meados do século XIX que consultamos, o único texto crítico que identificamos a respeito de Madame Bovary reprovava fortemente o romance em questão por considerá-lo imoral. Trata-se de uma resenha redigida pelo crítico Nuno Alvares Pereira e Sousa (1860) na Revista Popular, publicação da casa Garnier. O artigo destinava-se, na verdade, a avaliar o hoje desconhecido romance brasileiro A filha da vizinha, de Antonio José Fernandes dos Reis. O crítico recomendava o texto de Reis pela moralidade e pelos bons exemplos, opondo-o a Madame Bovary, que, segundo ele, era um “veneno” para os leitores (SOUSA, 1860, p. 85). A suposta imoralidade teria desmotivado editores e tradutores? Não parece plausível, uma vez que outros romances com temática semelhante foram prontamente vertidos para a língua portuguesa. Fanny, de Ernest Feydeau, publicado na França em 1858, também abordava o adultério, mas nem por isso tardou a ganhar tradução portuguesa, realizada por Camilo Castelo Branco. Em 08 de junho de 1861, o volume traduzido já era oferecido aos leitores do Rio de Janeiro em anúncio da livraria Garnier no Jornal do Commercio. A casa, que costumava oferecer um grande número de romances franceses em língua original, anunciou Fanny no mesmo ano também em francês, no mesmo reclame em que figurou Madame Bovary em 19 de setembro de 1861. O romance de Feydeau já havia sido divulgado pela Garnier no idioma original em outra lista que também incluía Madame Bovary, o anúncio intitulado Romans nouveaux, de 12 de novembro de 1859, no qual Fanny se fizera acompanhar da menção


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“a obtenu en France un succès immense” (obteve na França um sucesso imenso). O romance havia obtido um extraordinário sucesso de vendas no país de origem, com treze edições em um ano (JAUSS, 2007, p. 61), ultrapassando em muito as já expressivas vendas de Madame Bovary. O sucesso foi, provavelmente, o elemento motivador da tradução. No anúncio da edição em português, o nome do romance de Feydeau foi seguido pela informação “romance traduzido da 18ª edição por Camilo Castelo Branco” (JORNAL DO COMMERCIO, 1861). Brito Broca afirma que a tradução teria feito grande sucesso no Brasil e em Portugal. Fanny estaria entre as leituras dos românticos, além de ser mencionado em obras literárias: “Fanny teria sido lido pelas personagens de Machado de Assis e pelos românticos em geral, devido, principalmente, à tradução portuguesa de Camilo Castelo Branco” (BROCA, 1979, p. 111). Embora a questão da moralidade fosse parâmetro para as avaliações críticas de romances, o critério para a escolha de obras a traduzir era, certamente, o sucesso que elas haviam feito em seu país de origem. Segundo pesquisa de Sobreira a respeito do mercado livreiro português de meados do Oitocentos, “os editores preferiam investir em traduções de obras com êxito já comprovado no estrangeiro, e que, portanto, lhes davam garantias de obtenção de lucros” (SOBREIRA, 2001 apud OLIVEIRA, 2011, p. 251). As acusações de imoralidade sofridas na França, portanto, dificilmente chegariam a ser empecilho para uma tradução de Madame Bovary no mercado editorial português do início da segunda metade do século XIX. Todavia, nenhuma edição em português surgiu naquele momento, fosse em Portugal ou no Brasil. Maria Cristina Batalha, em estudo sobre as traduções de romances-folhetins no Brasil, considera que a quantidade de traduções é inversamente proporcional à consolidação da produção literária brasileira: “À medida que aumenta e se consolida a produção ficcional no país, diminui paralelamente o volume de traduções em revistas e jornais” (BATALHA, 2006, p. 47). Seguindo esse raciocínio, poderíamos pensar que a ausência de traduções de Madame Bovary poderia estar relacionada a uma possível diminuição do número de traduções. De fato, aos poucos, autores nacionais começavam a ocupar os


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folhetins e seções destinadas às narrativas em periódicos, mas as traduções estrangeiras estavam, mesmo no final do século, longe de abandonar os rodapés dos jornais brasileiros. Os dados da tese de Ilana Heineberg sobre os folhetins publicados nos três maiores jornais do Rio de Janeiro (Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e Correio Mercantil) entre 1838 e 1870 demonstram que, embora o número de autores brasileiros que escreviam folhetins progredisse, o predomínio da prosa ficcional estrangeira, mais especificamente francesa, ainda podia ser observado mesmo nos últimos anos avaliados (HEINEBERG, 2004). Se nos rodapés dos jornais as traduções ainda estavam muito presentes na segunda metade do século XIX, nos anúncios e catálogos de livrarias elas parecem ter até mesmo aumentado. Júlio César Modenez, em pesquisa de Mestrado, analisou onze catálogos da livraria Garnier com datas entre 1860 e 1865. Os romances franceses, sobretudo os de autores de folhetins de sucesso, como Alexandre Dumas, Eugène Sue, Frédéric Soulié e Paul Féval, destacam-se pela quantidade de títulos. O mais interessante, porém, é que todas as obras anunciadas nos catálogos analisados pelo pesquisador eram traduções: No total, quase 51% dos romances anunciados aos catálogos do corpus forma escritos, originalmente, em língua francesa. Mas nenhum deles é anunciado na língua original, aparecendo todos em tradução para o português (MODENEZ, 2014, p. 227).

Ao compararmos esses dados com os do catálogo de 1858 da mesma livraria, no qual constava Madame Bovary, observa-se uma gritante diferença no que concerne às traduções. Naquele catálogo, como vimos, havia 209 títulos em francês, entre os quais 23 romances, todos na língua original. Tudo aponta, pois, para um aumento da circulação de traduções, levando em conta que outras livrarias já anunciavam também um grande número de obras estrangeiras vertidas para o português. Garnier estaria importando mais traduções feitas em Portugal ou teria contratado tradutores brasileiros? Alessandra El Far informa que na década de 1860, B.L. Garnier havia procurado compor uma equipe de


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tradutores, mas o projeto não foi muito duradouro devido, justamente, à concorrência das traduções vindas de Portugal (EL-FAR, 2004, p. 68-69). Brito Broca lembra que Salvador de Mendonça era uma espécie de “tradutor oficial” da casa Garnier, tendo sido encarregado de traduzir os romances-folhetins mais em voga (BROCA, 1991, p. 59). Com um volume tão grande de traduções em circulação no Brasil daquele início da segunda metade do século XIX, a pergunta retorna: por que Madame Bovary não foi mais um entre tantos romances franceses traduzidos? Resta considerar a hipótese que nos parece a mais plausível: a das diferenças entre Madame Bovary e a maior parte dos romances-folhetins de grande sucesso que eram traduzidos para o português. O romance de Flaubert distanciava-se bastante dos romances franceses que ocupavam os folhetins e os anúncios dos jornais brasileiros. A maior parte desses romances tinha enredos movimentados, recheados de peripécias. Não era o caso de Madame Bovary, que explorava, justamente, o tédio da vida da protagonista e a mediocridade do estreito universo que a cercava. Distinguia-se também dos romances que faziam sucesso no Brasil muito antes da chegada do folhetim e que continuavam presentes em meados do século XIX, como Aventuras de Telêmaco, de Fénelon, Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre ou Atala, de Chateaubriand; o primeiro, de tom pedagógico, e os dois últimos marcados pela valorização da natureza e do amor romântico. Afastavase, portanto, da maior parte dos romances franceses em circulação no Brasil naquele momento, que compunham grande parte do repertório romanesco do público de então. Também na França, Madame Bovary destoava do repertorio da época de seu lançamento. Os críticos que se expressaram na imprensa, habituados às narrativas impregnadas de julgamentos morais, em que os narradores pareciam querer ensinar o leitores a interpretar não apenas a obra, mas o mundo, mostraram-se chocados diante da impessoalidade do narrador flaubertiano (PHILIPPOT, 2006). As descrições minuciosas pareceram excessivas aos adeptos dos romances baseados em peripécias. Madame Bovary apresentava traços inovadores que, como tudo o que difere dos padrões conhecidos e aceitos, não foram imediatamente compreendidos: a construção de uma narrador que forja a impessoalidade; as descrições feitas a partir do olhar das personagens; a pintura da banalidade,


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do tédio e da rotina;o emprego do discurso indireto livre... O próprio Alexandre Dumas, um dos romancistas de maior sucesso no século XIX, autor de inúmeras intrigas movimentadas, afirmou, em seu jornal Le Monte-Cristo, que achara Madame Bovary cansativo e difícil de ler (DUMAS, 1857). Assim, embora fosse um romance francês e tivesse, inclusive, sido publicado inicialmente em capítulos, Madame Bovary não possuía as características de romancefolhetim que talvez fizessem dele sucesso ao lado de tantos outros romances franceses que circulavam traduzidos no Brasil. Talvez sua tradução não parecesse rentável aos olhos de editores da época. 3 Um projeto de tradução Se não se tem notícia de traduções de Madame Bovary no mercado editorial português ou brasileiro antes de 1881, é possível, por outro lado, narrar a história de um projeto, ou melhor, de uma intenção de tradução. No início da década de 1870, Artur de Oliveira, um jovem brasileiro que vivia na Europa, manifestou, em cartas, o desejo de traduzir não somente Madame Bovary como outras obras de língua francesa a fim de publicá-las no Brasil. O jovem tinha apenas vinte anos e mostrava-se encantado com as novidades literárias da capital francesa. Nascido em Porto Alegre, transferira-se ainda criança com a família para o Rio de Janeiro, tornando-se, mais tarde, amigo de vários escritores e intelectuais da época, inclusive de Machado de Assis. Entre 1870 e 1872, viveu na Europa, a maior parte do tempo em Paris, onde travou conhecimento com escritores como Théophile Gautier e Leconte de Lisle. Teve contato com as principais novidades literárias e artísticas do período e, de volta ao Brasil, pôs-se a transmiti-las aos amigos literatos em rodas de animada conversa (LIMA, 1997, p. 48). Não chegou a publicar obras literárias, apenas escritos esparsos, que foram reunidos em 1936 por Luiz Felipe Vieira Souto no volume Dispersos. Nessa publicação encontram-se diversas cartas dirigidas ao pai, escritas na Europa. Em muitas delas, Artur de Oliveira expressou o seu desejo de fazer traduções para ganhar algum dinheiro e solicitou ao pai que procurasse a livraria


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Garnier para oferecer esses trabalhos; Machado de Assis, de quem era amigo pessoal, seria o intermediador. Em uma dessas cartas, escrita de Paris em 23 de novembro de 1871, o jovem literato mencionou Madame Bovary, manifestando a intenção de traduzi-lo: Peço-lhe também que fale ao Sr. Dupont na Garnier (é melhor entender-se com o Machado de Assis) para ver, se esses Srs. aceitavam algumas traduções que eu tenho de romances de mérito, pois que os romances escritos com alma e arte não se vendem. Tenho assim mesmo fé que a Madame Bovary, de Gustave Flaubert, há de ter um sucesso extraordinário (OLIVEIRA, 1936, p. 137).

Vivendo em Paris e interessando-se por literatura, Artur de Oliveira provavelmente escolheu traduzir os autores mais em voga na capital francesa naquele momento. Acreditava no sucesso que Madame Bovary poderia ter no Brasil baseando-se, certamente, na repercussão que esse romance já havia alcançado na França. Em 1871, Flaubert já publicara outros dois romances: Salammbô (1862) que obtivera êxito nas vendas, e L'Éducation Sentimentale (1869), um fracasso de público. O surgimento desses dois livros propiciou novas menções da crítica francesa a Madame Bovary. O renome do romance de estreia de Flaubert deve ter despertado em Artur de Oliveira o interesse em traduzi-lo. Não se tem, contudo, notícia de resposta de Garnier ou de Machado de Assis a respeito da tradução. Se Artur de Oliveira realmente concluiu seus trabalhos, não se sabe, pois nunca foi publicada qualquer tradução feita por ele. Entretanto, ele parecia querer levar seu projeto adiante, pois chegou a entrar em contato com o autor de Madame Bovary a fim de lhe pedir permissão para publicar no Brasil uma tradução do romance, o que se pode comprovar por esta carta de Flaubert a seu editor, Michel Levy, escrita em 11 de fevereiro de 1872: Meu caro Amigo, Eu lhe apresento um escritor brasileiro, Sr. Arthur de Oliveira, que já traduziu a metade de Madame Bovary e que pede sua autorização para publicar uma tradução portuguesa no Brasil. Eu lhe dei a minha e conto com a sua (FLAUBERT, 1998, p. 478). (Tradução nossa).


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O fato de Artur de Oliveira jamais ter publicado sua tradução de Madame Bovary não se deve, pois, a problemas com autorização do autor ou do editor. Em nota relativa à carta acima transcrita, o organizador da edição da correspondência de Flaubert explica que Michel Lévy escrevera no rodapé da carta: “Concedido em 17 de fevereiro de 1872” (FLAUBERT, 1998, p. 1262). A tradução que Artur de Oliveira pretendia fazer de Madame Bovary teria sido a primeira em língua portuguesa, quase dez anos anterior à do português Francisco Ferreira da Silva Vieira. 4 A primeira tradução portuguesa Em 1881, surgiu, finalmente, a primeira tradução de Madame Bovary para a língua portuguesa, realizada por Francisco Ferreira da Silva Vieira, que também verteu para o português Os miseráveis e O homem que ri, de Hugo, Esplendores e misérias das cortesãs, de Balzac, Nana, de Zola, além dos best-sellers de então de Ponson du Terrail, Paul Féval e Alexandre Dumas (GONÇALVES, 2006). A tradução de Silva Vieira circulou no Brasil e foi anunciada na imprensa. Em 6 de julho de 1881, uma livraria que não divulgou o próprio nome, apenas o endereço (Rua de São José), publicou um grande anúncio na Gazeta de Notícias comunicando sua liquidação. O título geral do anúncio era “Livros baratíssimos”, e havia vários subtítulos, como “Romances”, “Leitura somente para homens”, “Romances importantes a 500 rs. cada volume”, “Outros romances para senhoras somente” etc. Madame Bovary figurou na seção “Leitura somente para homens”, ao lado de Salammbô, segundo romance de Flaubert, de romances de Zola, como Nana e O matadouro (L’assommoir) e de Eça de Queirós (O mandarim), além de Noite na taverna, de Alvares de Azevedo. O anúncio era bastante chamativo e procurava destacar os preços com expressões como “É para aproveitar!”, “boa ocasião” etc. Entre os livros classificados como “Leitura somente para homens”, a maioria era romances considerados realistas ou naturalistas, de autores que despertaram, em algum momento, no Brasil ou na Europa, reações de parcelas da crítica ainda afeitas ao critério de moralidade: Flaubert, Zola, Eça de Queirós


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Os títulos, em todas as rubricas, figuraram em português, o que faz crer que se tratasse, no caso de obras de literaturas estrangeiras, de traduções. Quanto a Madame Bovary, não é possível saber, pelo título, se o exemplar anunciado era traduzido ou não; o nome do autor, no entanto, aparece em versão portuguesa: “Gustavo Flaubert” e não “Gustave”. Além disso, é pouco provável que se tratasse de edição em francês, uma vez que os demais livros anunciados estavam todos em português. É bem possível que se tratasse da tradução de Silva Vieira publicada naquele mesmo ano, já que, como vimos, não se tem notícia de tradução do romance para o português anterior a essa. Não foi, no entanto, a única vez em que Madame Bovary foi anunciado como romance “para homens”. Alessandra El Far identificou um anúncio da Livraria do Povo, de Pedro Quaresma, veiculado no dia 14 de outubro de 1889, também na Gazeta de Notícias, em que o romance de Flaubert aparecia na rubrica “Leitura para homens”, precedido por uma extensa lista de textos de caráter pornográfico, tais como Serões do convento, Os amores secretos de Pio IX, O sonho da virgem, Sensualidade e amor, entre outros. Localizamos o referido anúncio no periódico a fim de analisá-lo. Dessa vez, podemos afirmar que a edição de Madame Bovary oferecida era mesmo uma tradução, pois o título vinha acompanhado do subtítulo, “Costumes de província”, o que não ocorrera no reclame anterior. O título geral do anúncio era, assim como o do que fora divulgado em 1881, “Livros baratíssimos”. O padrão dos anúncios também era o mesmo: grande, com várias rubricas, procurando chamar a atenção para os preços. Porém, no reclame de 1889, o nome da livraria, Livraria do Povo, aparecia com destaque, diferentemente do anterior, que expunha somente o endereço: Rua de São José, n. 113. A rua, aliás, era a mesma, o que permite supor que se tratasse do mesmo estabelecimento, que apenas mudara de número. Todavia, a semelhança entre os anúncios e a coincidência de rua não são suficientes para que se possa afirmar com certeza que o anúncio veiculado em 1881 também fosse da Livraria do Povo. A Livraria Popular, de Cruz Coutinho, também ficava na rua de São José, no número 75 (HALLEWELL, 2005, p. 272). Provavelmente, havia ainda outras na mesma rua. De todo modo, se os dois anúncios não foram estampados pelo mesmo livreiro, partiram de estabelecimentos com propostas semelhantes: atingir um público amplo e atrair leitores por meio dos preços e dos livros de apelo popular.


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Nas últimas décadas do século XIX, aliás, tornavamse cada vez mais comuns as livrarias e os livros populares. Além de coleções de baixo custo lançadas por casas de renome no mercado, surgiram livrarias, como a de Pedro Quaresma, dedicadas a comercializar livros de caráter popular, entre os quais incluíam-se edições baratas de sucessos dos velhos folhetinistas franceses, populares desde meados do século, assim como “romances de sensação” e histórias pornográficas (EL FAR, 2004). Os chamados “romances para homens” eram, em geral, narrativas de cunho pornográfico, que proliferaram na corte brasileira dos anos 1870 em diante, a maior parte vinda de Portugal (EL FAR, 2004, p. 193). Madame Bovary, embora não contivesse as cenas tórridas da maior parte dos “romances para homens”, foi incluído nessa rubrica provavelmente por tratar-se de uma história de adultério. Como explica Alessandra El Far (2004, p. 194), nem todos os textos classificados como leitura masculina apresentavam descrições de relações sexuais; muitas vezes, a simples menção de relacionamentos adúlteros bastava para que uma obra entrasse para o rol das “leituras para homens”. Se em meados do século XIX Madame Bovary esteve disponível no Brasil apenas aos leitores que conheciam a língua francesa, no final daquele século, a tradução parece ter aberto as portas para uma certa popularização, ou, pelo menos, para uma diversificação de seu público. Antes encontrado apenas na prestigiosa livraria Garnier, uma vez traduzido, passou a ser comercializado também por livrarias populares, oferecido não mais como novidade francesa, mas como narrativa que poderia agradar os apreciadores de textos picantes. Ao mesmo tempo em que sua tradução era anunciada como romance “para homens” e podia ser adquirida na Livraria do Povo, uma edição em francês de Madame Bovary era colocada à disposição dos leitores da Biblioteca Nacional. Entre os livros estrangeiros solicitados pela instituição à Livraria Garnier no ano de 1892, encontrava-se o romance outrora processado por imoralidade (PINHEIRO, 2007, p. 38). Ora, o fato de ter sido encomendado pela Biblioteca sugere que Madame Bovary mostrava-se suficientemente relevante a ponto de não poder estar ausente do acervo de uma instituição como a Biblioteca Nacional. Na mesma época, críticos respeitados, como Araripe Júnior, expressaram-se na imprensa brasileira a


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respeito de Flaubert. A tradução chega em uma época em que o nome do autor de Madame Bovary passava por um processo de consagração na própria crítica francesa, que deixava de vê-lo como o criador de um romance imoral para considerá-lo um grande artista (PHILIPPOT, 2006). No Brasil, ao mesmo tempo em que repercutiam os escritos de críticos e romancistas franceses que, diferentemente de seus colegas de 1857, viam Madame Bovary como uma obraprima, surgia a tradução, que abria a obra a novos públicos. Ao final do século XIX, portanto, Madame Bovary circulava no Brasil por meio de estabelecimentos diferentes e voltados a públicos distintos. Enquanto a tradução era oferecida por livrarias populares a leitores provavelmente pouco preocupados com as inovações literárias da obra, edições em língua francesa eram comercializadas pela livraria Garnier e disponibilizadas aos frequentadores da Biblioteca Nacional. Considerações finais Para finalizar as reflexões a respeito da tardia tradução de Madame Bovary para a língua portuguesa, parece-nos produtivo recorrer a um trabalho de Maria Cristina Batalha (2006, p. 44) já mencionado neste artigo, em que, apoiando-se em Even-Zohar, a pesquisadora faz referência a dois tipos de papéis que podem ser exercidos por uma obra traduzida no sistema da língua-alvo: primário, quando ela se mostra inovadora e geradora de novas possibilidades de criação; e secundário, quando apenas confirma modelos já conhecidos e aceitos. Batalha afirma que os folhetins traduzidos exerceram, de início, papel primário no sistema literário brasileiro, à medida que “constituíram um elemento propiciador para a criação de gêneros novos” (BATALHA, 2006, p. 49). No entanto, conforme foi assumindo seu caráter de “literatura industrial”, foi perdendo seu lugar primário, sua capacidade de propiciar novas possibilidades literárias (BATALHA, 2006, p. 50). No início da segunda metade do século XIX, o aluvião de romances franceses traduzidos que circulava no Brasil certamente já não mais desempenhava papel primário. A maior parte do que era anunciado repetia as fórmulas do folhetim, receita certa de sucesso.


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leitores brasileiros outras possibilidades de leitura de romances franceses para além das peripécias folhetinescas. A ausência de traduções acompanhou-se de uma quase ausência de recepção crítica. No final do século, quando finalmente surgiu a tradução portuguesa, público e crítica já conheciam Machado de Assis, Eça de Queirós... E Flaubert não era mais um estreante com um romance fora dos padrões, mas um escritor em processo de consagração junto à crítica francesa. O surgimento da tradução em 1881 certamente trouxe uma contribuição muito menor do que poderia ter trazido em meados do século. Referências ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras, 2003. AGUIAR, Ofir Bergemann. Os miseráveis no rodapé do Jornal do Commercio: uma tradução integral e semântica. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL VICTOR HUGO, 1, 2002, Belo Horizonte, Anais eletrônicos. Belo Horizonte, 2002, v. 1. Disponível em: www.letras.ufmg.br/victorhugo. Acesso em: 08 out. 2014. BATALHA, Maria Cristina. O lugar do folhetim traduzido no sistema literário brasileiro. Graphos, João Pessoa, v. 8, n. 1, p. 43-59, jan./jul. 2006. BROCA, Brito. O que liam os românticos. In:___. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos: vida literária e romantismo brasileiro. São Paulo: Polis; Brasília: INL, 1979. EL-FAR, Alessandra. Páginas de sensação. Literatura popular e pornográfica no rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. FARIA, Gentil de. As primeiras adaptações de Robinson Crusoé no Brasil. Revista Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo, v. 13, p. 27-53, 2008. FLAUBERT, Gustave. Correspondance. Org. Jean Bruneau. Paris: Gallimard, 1998. GONÇALVES, Luís Carlos Pimenta. Francisco Ferreira da Silva Vieira auteur de Madame Bovary. Disponível em: www.apef.org.pt. Acesso em: 01 nov. 2014. HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. Trad. Maria da Penha Villalobos; Lólio Lourenço de Oliveira; Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2005.


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O escritor no picadeiro: considerações sobre a recepção da literatura na era do espetáculo The writer on the ring: considerations on the reception of the literature in the spectacle era Elizabeth Gonzaga LIMA * RESUMO: A Estética da Recepção, segundo Hans Robert Jauss (1994), pauta-se na relação dialógica entre a obra e o leitor, pois este diálogo garante o processo dinâmico da atualização e reconfiguração do texto literário. No entanto, é possível constatar que em uma civilização do espetáculo, no sentido proposto por Vargas Llosa (2014), os artefatos literários são ofuscados pela figura do escritor, deslocado para o centro do interesse do público leitor. Percebe-se que tal fenômeno é espelho de uma contemporaneidade bombardeada por imagens, pelo virtual e pelo universo midiático, alterando os parâmetros da recepção, que reverbera, em última instância, no processo de circulação da obra. Sob essa perspectiva, este trabalho pretende analisar de que maneira as engrenagens da mídia e da indústria do entretenimento promovem uma ruptura nas formas de recepção do leitor e nos processos de circulação ao entronizar o escritor, numa espécie de picadeiro e configurando a literatura como parte do espetáculo. PALAVRAS–CHAVE: Recepção. Leitor. Escritor. Mídia. Espetáculo.

_________________________ * Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente Adjunta da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Letras Campus IV e Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens. É pesquisadora em Estágio Pós-doutoral do Projeto CAPES/ PROCAD, Escritas Contemporâneas: desafios teóricos (2014-2018), reunindo PUC-RIO, UNEB, UEFS e PUC-GOIÁS

ABSTRACT: The Aesthetics of Reception, according to Haus Robert Jauss (1994), is based on the dialogical relation between the work and the reader, for this dialogue guarantees the dynamic process of update and rearrangement of the literary text. Nevertheless, one can realize that, in a civilization of spectacle, in a contrary meaning suggested by Vargas Llosa (2014), the literary artefacts are overshadowed by the writer’s persona, displaced to the center of the readers. It is noticeable that this phenomenon is the reflection of a certain contemporaneity bombed by images, by the virtual and the overwhelming media atmosphere, altering the reception patterns, that reverberates, in a last instance, throughout the flow process of the work. Under this perspective, this work intends to analyse in which way the gears of the media and entertainment industry promote the disruption in the reader reception manners and in the flow process when they enthrone the writer on a kind of ring and configuring the literature as part of the spectacle. KEYWORDS: Reception. Reader. Writer. Media. Spectacle.


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Dentre as noções e classificações desenvolvidas por Aristóteles em sua Poética, a catarse figura como um dos efeitos que as representações humanas provocam no público, mas tem sido um critério pouco aproveitado no campo da literatura, em virtude da dificuldade de se captar esse efeito nos leitores devido seu alto grau de subjetividade. Entretanto, no teatro, por exemplo, a catarse é fundamental para que sejam percebidos os efeitos causados no espectador durante o desenrolar da peça teatral. Conforme Regina Zilberman (2008), a catarse configura-se como um critério para avaliação dos produtos expostos ao público, ao mesmo tempo, a reflexão acerca desse efeito, tornou-se um legado aristotélico às teorias da recepção. Se a resposta do espectador na plateia ao expor seu prazer ou horror é imediata, o leitor de literatura, por sua vez, tornou-se uma figura indeterminada, deixada de lado, por exemplo, pelas estéticas marxista e formalista: Com isso, ambas privam a literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto de seu caráter estético quanto de sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito. Leitores, ouvintes, espectadores – o fator público, em suma, desempenha naquelas duas teorias, um papel extremamente limitado (JAUSS, 19994, p. 22).

Constata-se a partir das palavras do crítico, que a historiografia literária ocidental e pode-se incluir neste cenário a brasileira, relegou ao leitor um lugar passivo, de pouca interação com a obra. Segundo Luiz Costa Lima (2002) a valorização cada vez maior do livro como um bem negociável, a partir do século XVII, explicava o descaso com o leitor em nome da importância estética da obra. Entretanto esse cenário transmuda-se a partir dos estudos sobre Estética da Recepção empreendidos por Hans Robert Jauss, em fins da década de 1960. O estudioso mirando na renovação da teoria da literatura escreve, em 1967, o célebre ensaio “A História da Literatura como provocação”, texto fundador da base teórica da Estética da Recepção que lança outro olhar em relação ao diálogo obra-leitor:


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Considerando que, tanto em caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor – relação esta que pode ser entendida tanto como aquela da comunicação (informação) com o receptor quanto como uma relação de pergunta e resposta – há de ser possível, no âmbito de uma história da literatura, embasar nessa mesma relação o nexo entre as obras literárias. (JAUSS, 1994, p. 7).

Configura-se a partir daí um ponto de vista críticoanalítico que traz à cena a figura do leitor, considerando a recepção da obra, seus efeitos pelo leitor e “o horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra" ( JAUSS, 1994, p. 26). Tais pressupostos oxigenam o panorama dos estudos literários que passam a considerar a figura do leitor e tenta entender qual papel ele ocupa neste circuito produtivo entre o escritor e a obra. É necessário levar em consideração que esta relação dialógica termina por constituir novas demandas, como a difusão da obra e sua circulação, pois somente a partir desses segmentos que a obra e o leitor se encontram. É fato que a recepção possui uma ligação intrínseca com a circulação da obra e ambas estabelecem relações com a sociedade e suas consequentes mudanças. Regina Zilberman (2008) entende que as alterações ocorridas no suporte e nas tecnologias de impressão, ao longo dos séculos, modificaram no mesmo ritmo as formas literárias e as formas de consumo do leitor. As diversas transformações tecnológicas no que tange às formas de reprodução de bens simbólicos, como os livros, que circulam há quase cinco séculos, produziu uma engrenagem movida pelo mercado editorial, girando em torno de editores, livreiros. Tal circulação marcada por altos e baixos no fluxo das produções convive com o aspecto mercadológico e suas demandas de um lado e, as exigências da crítica acadêmica e de arte, do outro, sendo que esta crítica se insurge contra os processos de massificação dos bens simbólicos e a provável facilitação no conteúdo que as media proporciona aos leitores. Percebe-se que a cada transformação na materialidade, os suportes são colocados em xeque pelo que o sucede, assim


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o foi com as tábuas de argila aos códices, destes aos livros, que agora passam a ser tensionados pelo hipertexto do suporte digital. Umberto Eco (1996) em “Da internet a Gutenberg” relembra uma cena do Corcunda de Notre Dame e o padre Claude Frollo, este aponta para um livro, para as torres e as imagens da Catedral e vaticina “ceci tuera cela”, isso matará aquilo, ou seja, o livro matará a catedral, o alfabeto matará as imagens. O estudioso italiano utiliza a passagem do romance de Victor Hugo para exemplificar que em vários momentos da história ocidental, a ideia de que isto matará aquilo é cíclica, por exemplo, quando Marshall MacLuhan, em 1960, anunciou no clássico A galáxia de Gutenberg que a imprensa seria substituída por uma forma global de percepção e compreensão através de imagens de TV ou outros tipos de dispositivos eletrônicos. No entanto, este prognóstico não se concretizou conforme o estudioso italiano: A mídia precisava de um certo tempo para aceitar a ideia de que nossa civilização estava prestes a ser orientada por imagem – que poderia envolver um declínio da alfabetização. Hoje em dia isso é algo sem significado para qualquer revista semanal. O que é curioso é que a mídia começou a celebrar o declínio da alfabetização e o poder esmagador da imagem justamente no momento em que na cena mundial, surgia o computador (ECO, 1996, p.5).

O advento do computador, o surgimento da rede e sua expansão em larga escala, proporcionou novas possibilidades de ler, de escrever e de publicar, que ganharam dimensões inimagináveis, confrontando assim a hegemonia do suporte impresso, como os livros e os jornais, que migraram para o espaço virtual, estabelecendo uma recepção quase instantânea em virtude da constituição de novas práticas de leitura, de um novo perfil de público leitor e do novo formato de circulação. Se a indústria cultural de massa acelerou o processo de exposição das pessoas, com o predomínio da imagem sobre a voz e a escrita, a era mídia, por sua vez, imprimiu uma velocidade exponencial na divulgação em tempo real e, em escala mundial de imagens e textos, seduzindo o público a mergulhar na vertigem da autoexposição da própria imagem. Dentre este grupo de internautas e usuários da rede, os escritores tornaram-se alvo do universo midiático ao terem sua imagem exposta pelos grandes conglomerados


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editoriais nas redes sociais como estratégia de marketing. Bem antes de apresentar o produto de sua criação, estampase a imagem do artista à exaustão. Circunstância, guardadas as proporções, que esfumaça as clássicas discussões sobre o autor, como as desenvolvidas por Foucault em “Quem é o autor?” e no fatalismo de Barthes em “A morte do autor”: “Para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do autor” (BARTHES, 1988b, p.64). No entanto, este prenúncio enfraqueceu nas últimas décadas, pois o autor ressuscitou com força no imaginário dos leitores, a ponto de tornar a obra literária opaca. O deslocamento do universo da cultura para o mundo do entretenimento provoca ainda mudanças nos paradigmas de um público que deixa de ser leitor para ser preferencialmente consumidor, vítima do rolo compressor do capitalismo e da indústria cultural. A literatura representante das Belas Letras, remanescente de uma cultura livresca, ganha uma nova dinâmica de circulação ao transitar das prateleiras das livrarias e das bibliotecas para as feiras de livros e ao fenômeno recente das festas literárias que congregam em um único espaço, turismo, gastronomia, palestras de escritores, performances, shows e, claro, obras literárias. Nesse contexto, a literatura é o chamariz para uma série de eventos, que necessariamente não tem a obra literária como centro. O escritor no picadeiro e a literatura na era do espetáculo O jornal O Globo publicou em, 09 de Agosto de 2014, uma foto de Márcia Foletto que clica a “Tenda dos autores” na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), mas a legenda destaca-se em relação à fotografia: “O escritor no picadeiro, movimento do segundo dia da 12ª Festa Literária Internacional de Paraty, em frente à Tenda dos autores”. A princípio uma anotação despretensiosa, bem ao gosto do público de jornais. Entretanto para um leitor mais atento e predisposto a entender os labirintos que o escritor se movimenta na contemporaneidade midiática, torna o comentário “O escritor no picadeiro” mote para uma série de reflexões sobre os acenos da sociedade do espetáculo em direção ao escritor, que reverbera na cadeia constitutiva que


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o cerca, como a recepção de sua obra, o público leitor e a circulação de sua produção artística. Sob essa perspectiva, o trabalho pretende analisar de que maneira as engrenagens da mídia e da indústria do entretenimento promovem uma ruptura nas formas de recepção do leitor, nos processos de circulação ao entronizar o escritor numa espécie de picadeiro e configurando a literatura como parte do espetáculo. O ofício de escritor antes cercado pela aura da criação artística, do isolamento necessário à produção, da distância física em relação ao público leitor, deslocou-se para a centralidade de uma autoexposição midiática, a partir da diversificação dos meios de comunicação de massas, do incremento da indústria cultural e do entretenimento, configurando a civilização do espetáculo, no sentido proposto por Vargas Llosa (2014, p.29): O que quer dizer civilização do espetáculo? É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento. [...] Por isso, não é de estranhar que a literatura mais representativa de nossa época seja a literatura light, leve, ligeira, fácil, uma literatura que sem o menor rubor se propõe, acima de tudo e sobretudo (e quase exclusivamente), divertir.

Nesse sentido, constata-se um processo vertiginoso de transferência, pois o centro de interesse do público e do mercado não se circunscreve única e tão somente à obra literária, mas antes à figura do autor, cuja exacerbada estetização pode ser vislumbrada nas festas e feiras literárias, eventos vistos contemporaneamente como circos midiáticos, nos quais a literatura torna-se parte do espetáculo, como observa Paula Sibília (2008, p. 157): “Entretanto, não é necessário recorrer à crueza das cifras: com boa parte da parafernália midiática voltada para estetização da personalidade artística, a figura do autor parece estar mais viva e exaltada que nunca”. E segundo Peter Sloterdijk a enorme engrenagem que hoje comanda a indústria cultural é, acima de tudo, uma “máquina de mostrar, que já faz longo tempo é mais poderosa que qualquer obra individual a ser exposta” (SLOTERDIJK, apud SIBÍLIA, 2008, p. 158). A questão que se impõe diante da exposição exacerbada de escritores em feiras e principalmente festas,

_________________ 2 Bem antes de Vargas Llosa que apresenta um olhar mais culturalista para a questão, Guy Debord, em 1967, publica a Sociedade do espetáculo, abordando a problemática a partir de um olhar crítico sobre o capitalismo. O escritor desenvolve 211 teses criticando a maneira como as mercadorias passaram a ser donas dos seres humanos, pois o espetáculo, segundo Debord em sua tese 213 “é a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna”.


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não reside precisamente no evento em si. Estes eventos podem e deveriam ser projetos de formação de leitores, incentivo à leitura e acesso ao livro, potencializando o diálogo obra-leitor, ou seja, a recepção e consequente circulação, a fim de que o horizonte da Estética da Recepção ocorra de forma dinâmica e relevante para a sociedade. No entanto, observadores mais atentos percebem que a festa ou a feira, mais especificamente a festa, até pelo sentido lato de reunião com vistas ao divertimento, mergulhou o evento na indústria do entretenimento, onde se conjuga um local turístico, com atrações musicais e artísticas interessantes, compras, entre outros atrativos para o público, não necessariamente público leitor. E no centro do picadeiro, escritores convidados desenvolvem suas performances e se mesclam aos autores best-sellers, aos iniciantes ao estrelato literário e obviamente aos autores reconhecidos pela crítica a fim de conferir prestígio às atividades. Contudo, o glamour que ronda esse fenômeno recente na cena literária e cultural brasileira e seus atores principais, não traz necessariamente a valorização da escrita, que em uma sociedade capitalista se traduz pelo valor monetário dispensado a uma atração artística ou a um produto, como o livro, pois em última instância, o escritor e seu objeto de criação são vistos como mercadoria. E nessa engrenagem, o leitor deixa de ser um elo fundamental nas releituras, na renovação de textos literários e passa a ser um consumidor de performances e diversão, esvaziando o diálogo obra-leitor e estabelecendo o dueto autor-leitor, permeado pela aura da criação artística, mas sem o objeto. André Sant’Anna, autor de O paraíso é bem bacana (2006), ironizou o falso glamour das festas literárias ao relatar as dificuldades ainda existentes para um escritor sobreviver somente com a publicação de livros. O que não é possível no Brasil, levando-o a ministrar palestras, redigir traduções, roteiros televisivos e cinematográficos, organizar coletâneas, trabalhos que nem sempre são pagos religiosamente, jogando o sujeito em situação-limite como ele confidencia acerca de um período em que ficou sem dinheiro para o aluguel e o seguro saúde, mas tendo que sustentar o status de celebridade literária para se apresentar em feiras literárias internacionais em Budapeste, Frankfurt e Berlim:


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Mas eu fiquei preocupado com o dinheiro, que é a coisa mais importante que existe, economizando a ajuda de custo para pagar o aluguel, para não entrar no cheque especial, nem ter que pedir dinheiro para meu pai, ou para minha mãe, o que é um negócio meio humilhante para uma celebridade literária internacional de 50 anos de idade (SANT’ANNA, 2014).

Esse paradoxo entre o glamour que se mantém falsamente ancorado na imagem do escritor, mas que não se transforma em capital simbólico, nem no processo dialógico entre o livro e o leitor, tem seu lado oposto na indústria da música, do show business, com uma super valorização do produto e o reconhecimento do artista com altas cifras. Tal circunstância terminou criando um impasse constrangedor na 27ª Feira do Livro de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, quando o escritor Fabrício Carpinejar, autor dentre outros de Canalha! (2008), cancelou sua participação no evento ao tomar conhecimento de que o patrono da feira daquele ano de 2012, o rapper Gabriel Pensador, receberia um cachê de 170 mil reais para participar do evento. Carpinejar expressou sua indignação e disparou “Literatura não deve ser feita para atrair público, e sim, para formar público”. O escritor gaúcho ressaltou ainda, na ocasião, que com o valor do cachê cobrado pelo rapper, seria possível abrir bibliotecas ou mesmo realizar feiras literárias (Cf. SANTOS, 2012). Essa situação é sintoma das inversões inerentes ao espírito de época atual, quando em uma feira de livros, o homenageado e mais bem pago participante é um rapper, revelando que para estes eventos o importante é entreter e divertir o fã, que é reconhecido nestes espaços como leitor. Se a literatura não é para atrair público para entretenimento, mas antes para formar leitores, como entender nesse cenário o horizonte da Estética da Recepção pois sua essencialidade reside na relação dialógica entre a obra e o leitor com o intuito de atualizar, reconfigurar obras do passado, porém nesse cenário da era do espetáculo, o diálogo é subvertido, pois o leitor deseja, na verdade, estabelecer o diálogo com o escritor, especificamente com sua figura, e o imaginário que evoca o escritor contemporâneo. E nisso, o universo midiático atomiza essas relações, pois o escritor tem sua página na internet, é


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usuário das redes sociais emitindo opiniões, concedendo entrevistas e palestras em vídeo, interagindo com os leitores, numa roda viva digital que termina por relegar o texto literário ao pano de fundo. O efeito do glamour da literatura como espetáculo é ironizado no livro de Paulo Scott, O ano em que vivi de literatura, lançado em 2015, pela Editora Foz. Nele, o autor satiriza o protagonista, o escritor Graciliano que ganha o prêmio de melhor escritor brasileiro em 2011, tornando-se uma celebridade literária. O dinheiro do prêmio possibilita ao autor passar o ano seguinte entre festas e baladas, vivendo de literatura no ano em que não consegue escrever uma linha. Paulo Scott questiona em entrevista a Marisa Loures (2015), “Você tem glamour de festival, de prêmios, é capa de caderno de jornal, de revista, vai ao Jô Soares e tudo o mais, mas está num país em que as pessoas não leem. Que diabo de obra você está construindo?” Diante desse panorama marcado pela contradição, emerge o questionamento, qual horizonte de expectativa vislumbra e cultiva o público leitor contemporâneo, que se formou na junção das mídias digitais e do mundo do entretenimento? É possível, diante desse panorama, efetivar o diálogo entre obra e leitor? Em uma rápida busca na internet é possível rastrear páginas de escritores considerados canônicos como Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, mas observa-se uma recepção de contornos superficiais, breves notas nas caixas usadas para o internauta emitir opinião, ou mesmo nas fan pages de literatura no Facebook, em que a recepção se reduz ao ícone, “curtir”, pois o número de curtidas anuncia o interesse do leitor, contudo não se sabe se pela obra, pela imagem ou mesmo por uma frase interessante proferida pelo escritor. As janelas infindáveis de blogs, sites com prosa, poesia, experimentações poético-digitais circulam ininterruptamente, multiplicando-se aos borbotões fazendo com que os leitores/internautas naveguem ao sabor das infindáveis novidades. Escritores surgem e desaparecem da cena literária na velocidade de um meteoro, outros conseguem permanecer na constelação do reconhecimento editorial, tendo que se submeter aos novos paradigmas de recepção e de circulação da obra literária, sustentada hoje, em alguns casos, pelo carisma pessoal do escritor.


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Reprodução, a o estranhamento do leitor

distância

estética

e

Bernardo Carvalho, escritor brasileiro contemporâneo, manifesta em entrevista a Raquel Cozer (2013) um descontentamento em relação a atual cena literária e ao seu público leitor: Hoje vejo uma estruturação da recepção da literatura, baseada numa hegemonia do gosto e das vendas. Isso reduz no mercado a brecha de experimentação, a chance de erro, uma herança anglo-saxã; na qual experimental é malfeito. A infantilização do público tem a ver com internet e também com uma literatura que entrega o que você quer. Sempre quis algo disfuncional, isso continua comigo.

O escritor desabafa sua insatisfação com os rumos que a literatura tomou diante da exigência do leitor contemporâneo, ou melhor, de seu gosto por textos palatáveis, que distraiam, relegando os livros, cujo conteúdo seja mais denso esteticamente, ao universo do estranhamento, pois segundo Jauss (1994, p. 33) “Uma obra literária pode, pois mediante uma forma estética inabitual, romper as expectativas do leitor [...]”. Se as expectativas dos leitores da era do espetáculo os levam à preferência pela literatura light, e recentemente, tornou best seller livros de colorir, como este público acolhe então um livro como Reprodução de Bernardo Carvalho (2013), que satiriza com acidez e mordacidade o típico leitor dessa era, navegador de blogs, portais, Wikipédia e redes sociais? O horizonte de expectativa do leitor médio contemporâneo é rompido logo nas primeiras páginas do romance, quando o leitor se depara com um monólogo de fluxo ininterrupto, em que a personagem central, o estudante de chinês, tritura uma enxurrada de informações contraditórias entre si, mas ao mesmo tempo reforça sua crença inabalável no universo digital “Qual é o problema? Não vai me dizer que o senhor é dos que acham que a internet é uma entidade do mal controlada pelas grandes corporações da mída pra acabar com a vida privada! (CARVALHO, 2013, p. 19).


O escritor no picadeiro: considerações sobre a recepção... 57 A crítica especializada recepcionou muito bem o livro, que ganhou o prêmio Jabuti de 2014, na categoria de melhor romance. No entanto, estes leitores não correspondem ao público leitor em geral, pois de certa forma o texto contraria as expectativas desses leitores, seja pela linguagem vigorosa do texto, que explora o monólogo até as últimas consequências, sufocando o leitor, seja o nível de discussão que exige uma bagagem social, política e ideológica, muito mais abrangente para compreender as discussões empreendidas pelo autor, limitando assim o entendimento da maioria dos leitores. No entanto, o que pode cavar uma distância muito maior entre a obra e o leitor neste livro é o sarcasmo disparado por Bernardo Carvalho em relação ao protagonista, representação do leitor médio em seu equívoco de pensar que a leitura de jornais, da internet, a participação em redes sociais o transforma em um sujeito culto, moderno, em consequência de sua constante interação: Lê jornal também? Ah. Não lê o Corão. Lê só jornal. Tudo bem. Os colunistas? Imbecis? Acha? Acha fácil? Ah é? Basta o quê? Reproduzir os preconceitos do leitor? É o que o senhor acha. Irresponsáveis? Por que não escreve, reclamando? Pode claro! Manda demitir. Cria um blog! Quem manda em jornal e em revista semanal é o leitor. Não sabia? O próprio jornal. E as revistas. Colunista só fica se o leitor quiser. [...] Ah, é! Vou escrever. Eu sempre escrevo pra seção de cartas do leitor. Eu também tenho um blog. Estou no Facebook, Tenho muita opinião. E seguidores. (CARVALHO, 2013, p.33)

E assim, o protagonista de Reprodução, mimetiza os efeitos de um mundo de informações que inundam o espaço virtual, que por isso passou a atribuir um papel fundamental ao leitor, pois é ele, a partir da interação que sustenta os blogs, as redes sociais e os conglomerados dos sites de busca, como o Google. Nota-se que a valorização da figura do leitor articulada pela Estética da Recepção sofre uma espécie de inversão, no que diz respeito à dinâmica da atualização dos textos literários, ao enfrentar paradigmas opostos no atual cenário da literatura. No lugar do diálogo entre obra-leitor, é concedido ao leitor o poder de legitimar o sucesso da obra, em virtude de sua recepção, por meio de acessos e curtidas, provocando a circulação ao compartilhar o interesse pelo


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livro, contabilizando assim o êxito da obra. De que maneira esse leitor avalia o caráter artístico de uma obra em meio à velocidade imposta pelo universo online e sua demandas? Jauss pontua que a distância entre “o horizonte de expectativa do leitor e a obra, entre o já conhecido da experiência estética anterior e a ‘mudança de horizonte’ exigida pela acolhida à nova obra, determina o ponto de vista de recepção, o caráter artístico de uma obra literária” (JAUSS, 1994, p. 31). Porém o problema que se impõe nessa acepção, ao compararmos com a escrita de Reprodução, é que a obra dista em muito da expectativa dos leitores formados pela cibercultura, que reduzirão a sua bagagem de prévia de leitura, as buscas das imagens do escritor, de seu perfil nas redes sociais, pesquisas sobre sua agenda em palestras ou em festas literárias para ocupar o picadeiro e realizar sua performance. Sob essa perspectiva, João Paulo Cuenca comenta sua leitura acerca do escritor e da literatura na era do espetáculo: Nas feiras, o público tem consumido mais o discurso do fazer literário do que a literatura em si. Os debates costumam se concentrar em aspectos vazios. Há um fetichismo sobre o fazer literário, mas eu temo que as pessoas não estejam lendo o livro. No geral, os escritores brasileiros ocupam o espaço no picadeiro com uma ingenuidade desconcertante. Um pouco como um urso panda no zoo: você pega o cara, o coloca num palco, como uma espécie de prova de que a literatura ainda existe. (CUENCA apud TORRES, 2014)

Bernardo Carvalho tenta não mergulhar na sedução do circo midiático, buscando se diferenciar da massa de escritores que surgem todos os dias nas páginas da internet e na cena editorial. O escritor procura apresentar uma visão crítica de seu contexto, das produções culturais e da literatura. As escolhas de Carvalho remetem a alguns escritores de gerações passadas, que assumiam a função de esclarecer o povo, educando-os esteticamente, ou mesmo engajando-se em grandes temas da sociedade como o fizeram Machado de Assis, Graciliano Ramos entre outros. Reprodução de Bernardo Carvalho provoca certo estranhamento no leitor destituído de um acervo histórico e cultural propício ao entendimento das questões levantadas pelo escritor em seu romance. No entanto, essa “distância estética” não intimida o escritor de enfrentar os


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efeitos da da web na cena literária, em virtude da facilitação dos textos e da banalização da escrita, sendo esta ofuscada pelo deslocamento do autor para o vértice principal da tríade escritor-obra-leitor. Contudo é necessário considerar que Jauss acredita que algumas obras em seus primeiros momentos podem não ser entendidas pelo público, mas que outros leitores em outras épocas poderão atualizar esse entendimento e superar assim a “distância estética” do passado e conferir novo sentido à obra literária. Considerações finais Quando Jauss elaborou suas reflexões sobre a Estética da Recepção, a cultura de massas começava sua escalada com as imagens do cinema e da televisão, mídias consideradas hoje tradicionais, mas que mudaram os hábitos de grande parte da população mundial e afetou diretamente os modos de ler literatura. Ainda que Jauss vislumbrasse em sua teoria que “a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto históricas” (JAUSS, 1994, p. 23) a revolução cibernética transformou os meios de comunicação em uma escala inimaginável e afetou a percepção humana da realidade e todos os setores da vida em sociedade. E nesse contexto, a literatura e sua cadeia constitutiva, autor, público leitor, recepção e circulação não ficou imune aos novos tempos, mas antes buscou se adaptar, tendo que deixar de lado seus marcos fundamentais, como a ideia de transcender ao tempo, ser parte do acervo cultural da humanidade, pois com a era digital conjugada ao capitalismo e a sociedade do espetáculo, “os produtos são fabricados para serem consumidos no momento de desaparecer, tal como biscoitos ou pipoca” como alerta Vargas Llosa (2014, p.27). E nesse contexto, a literatura torna-se entretenimento, deixa de ocupar o lado oposto do diálogo com o leitor, tornando-se pano de fundo à imagem do escritor, como estratégia de marketing de editores, que buscam explorar sua performance a fim de aguçar a curiosidade do público para a ideia de um sujeito criativo num mundo onde cada dia é mais difícil criar algo novo, por isso, seu feito criativo torna-se espetacular e a imagem do picadeiro sua melhor interpretação, como relata Sibília acerca do desabafo da escritora Rosa Monteiro que reclama do excesso de exposição dos escritores que são obrigados hoje a aparecer, a falar:


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A ficcionista espanhola continuou seu desabafo Transformamo-nos em atores, somos leões do circo’. Pois nesta nova geração de eventos literários globais que obedecem de maneira explícita à lógica da exibição, os principais produtos em exposição e à venda não são as obras mas os próprios festivais e, inclusive, os fulgurantes autores. (SIBÍLIA, 2008, p. 159).

Diante desse panorama, como pensar sobre a historicidade da obra diante de leitores de feiras e festas literárias? Será que estes vão garantir a atualização da obra literária, cada dia mais esmaecida nesse universo de imagens e da virtualidade? Talvez a a resposta esteja no próprio leitor que transmuda junto com a sociedade, pois segundo Roger Chartier (2011) as evoluções globais que atingem a produção impressa (contemporaneamente pode-se incluir a produção virtual) transformam as intenções do público e as intenções de leitura. É notório que os protocolos de leitura propostos pelo impresso e pelo virtual denotam que o suporte ou a materialidade influenciam nos comportamentos e nas demandas do leitor. Dessa maneira, cabe também ao leitor, alterar essa cena, trazendo de volta o sentido e a relevância do diálogo obra-leitor, pois ainda que surjam obras que provoquem o estranhamento, a distância estética de hoje, em função de contrariar o horizonte de expectativa dos leitores, pode contar com a dinâmica da sociedade, trazendo aos leitores no futuro uma nova percepção. Referências ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988b. CARVALHO, Bernardo. Reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. CHARTIER, Roger. Práticas da leitura. Tradução Cristiane Nascimento. 5. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.


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COZER, Raquel. “Você acha que usa a internet, mas está sendo usado por ela, diz Bernardo Carvalho” (2013). Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/09/1344976voce-acha-que-usa-a-internet-mas-esta-sendo-usado-por-ela-dizbernardo-de-carvalho.shtml Acesso em 27 de julho. CUENCA, João Paulo apud TORRES, Bolívar. “Autores discutem prós e contras da exposição em eventos”. Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/autores-discutempros-contras-da-exposicao-em-eventos-13540795 Acesso em 12 de junho 2015. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 7.ed. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. ECO, Umberto. “Da internet a Gutenberg” (1996). Disponível em http://www.inf.ufsc.br/~jboscoInternetPort. html Acesso em 16 de agosto de 2015. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. LIMA, Luiz Costa.(Org.). A literatura e o leitor. 2.ed. Tradução Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra. LLOSA, Mário Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Tradução Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. LOURES, Marisa. Entrevista: Paulo Scott, escritor. Disponível em http://www.tribunademinas.com.br/entrevista-pauloscottescritor/ Acesso em 12 de agosto 2015. SANT’ANNA, André. “As coisas não são bem assim”. Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/livrosandresantanna-as-coisas-nao-sao-bem-assim-13541352 (2014). Acesso em 25 de julho de 2015. SANTOS, Jorge Fernando dos. “O dilema da literatura na era do espetáculo”. Disponível em http://observatoriodaimprensa. com.brarmazemliterario_ed692_o_dilema_da_literatura_na_ era_do_espetaculo/ (2012). Acesso em 25 de julho de 2015. SIBÍLIA, Paula O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. SLOTERDIJK, Peter. Observaciones filosóficas. Valparaíso, 2007. Apud SIBÍLIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. ZILBERMAN, Regina. “Recepção e leitura no horizonte da literatura”. Alea, Volume 1, Número 1, Janeiro-Julho 2008, p.85-97.


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Modernidade, ethos e tradição em O veredicto de Franz Kafka e Lavoura arcaica de Raduan Nassar Modernity, ethos and tradition in The Verdict by Franz Kafka and Lavoura Arcaica by Raduan Nassar Evanir PAVLOSKI* RESUMO: O objetivo do presente artigo é analisar comparativamente as obras O veredicto, de Franz Kafka, e Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, tendo como parâmetro a influência de conceitos como ethos e tradição em ambos os objetos estéticos. Para tanto, discutiremos os conflitos gerados pelo desejo incontido dos protagonistas por desafiar a ordem patriarcal estabelecida nos respectivos universos ficcionais. Ao longo do trabalho, demonstraremos não apenas as semelhanças entre as personagens Georg e André como representantes de uma nova visão de mundo, que tenta se impor em um contexto ético e estético tradicional, mas também a força dos discursos de autoridade que, se por um lado, oprimem a individualidade; por outro, impulsionam a contestação dos princípios que os norteiam. Nessa perspectiva analítica interdisciplinar, demonstraremos que a supremacia do discurso patriarcal se dá principalmente pela incapacidade dos protagonistas de romper com o ethos vigente e instaurar novos paradigmas de interação sociocultural. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Ethos. Tradição. Franz Kafka. Raduan Nassar.

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Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Professor adjunto do Departamento de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa. *

ABSTRACT: The aim of this article is to comparatively analyze the works The Verdict by Franz Kafka and Lavoura Arcaica by Raduan Nassar through the influence of concepts as ethos and tradition in both aesthetic objects. Thus, we intend to discuss the conflicts fostered by the protagonists’ unrestricted desire to defy the patriarchal establishment in both fictional worlds. As we proceed, we will reveal not only the similarities between the characters Georg and André as models of a new vision that tries to impose itself in a traditional ethical and aesthetical context, but also the strength of the authority discourse that, by one hand, oppresses the individuals; on the other hand triggers the contestation of its principles. Through this interdisciplinary perspective, we will demonstrate that the supremacy of the patriarchal discourse is based on the protagonists’ inability to rupture the effectual ethos and establish new paradigms of social and cultural interaction. KEYWORDS: Modernity. Ethos. Tradition. Franz Kafka. Raduan Nassar


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O advento da modernidade trouxe consigo um impulso problematizador das instituições tradicionais que se desenvolve ao longo do século XIX e adentra o século XX, moldando características e tendências modernistas em todo o mundo. O início da modernidade decretava a constante ruptura de padrões estabelecidos e parecia exigir não só a renovação permanente de ideais, mas também a multiplicação de perspectivas a serem consideradas e analisadas diante de qualquer questão. Marshall Berman (1981), por exemplo, caracteriza a modernidade como um “turbilhão” de pontos de vista que envolvem os indivíduos num processo constante de reavaliação e conseqüente renovação de conceitos tidos até então como impassíveis de contestação e crítica. Essa reestruturação possibilita a produção de novas formas de representação da realidade, nas quais se enfraquecem as amarras do pensamento social e político tradicional, articulando um novo horizonte de experiências possíveis e desejáveis. Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo que é sólido se desmancha no ar... (MARX et ENGELS apud HALL, 2002, p. 14)

Entretanto, seria essencialmente reducionista limitar a experiência da modernidade à descrição de fluxo utopicamente homogêneo de processos de transformação ideológica, social e artística. Primeiramente, é preciso considerar que os impulsos renovadores da modernidade sempre coexistiram com forças tipicamente reacionárias que, por meio de discursos éticos, morais ou estéticos tentavam refrear aquilo que Zygmunt Bauman (2001), ao se referir à desestabilização das estruturas tradicionais, denomina de “derretimento dos sólidos”. Além disso, uma análise diacrônica dos eventos que se sucederam desde a metade do século XVIII parece sugerir que a efemeridade dos paradigmas socioculturais e suas rearticulações facilitaram o surgimento e o fortalecimento de um sistema de organização tão rígido e normalizador quanto o capitalismo.


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O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais ‘sólida’ que as ordens que substituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse econômica. (BAUMAN, 2001, p. 10)

Obviamente, não temos aqui a pretensão de investigar os múltiplos aspectos responsáveis pela consolidação da lógica capitalista, nem de estender uma descrição das conseqüências desse processo. Cabe-nos, entretanto, enfatizar a importância do esfacelamento dos discursos tradicionais no fortalecimento de uma racionalidade instrumental que, por sua vez, atribui características fundamentais à sociedade, ao pensamento e ao imaginário do século XX. Na verdade, nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro; as pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e censuradas caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré-fabricados da nova ordem. (BAUMAN, 2001, p. 13)

Assim, surge um novo panorama social com estruturas e dispositivos que rearticulam as formas de convívio dentro das comunidades, buscando integrar os indivíduos em funções e identidades pré-concebidas revestidas de um verniz de aparente liberdade. Diante desse quadro contraditoriamente libertário e normalizador, a sensibilidade modernista - não apenas no início do século passado, mas em praticamente todo o seu desenvolvimento – se vê colocada entre o tradicionalismo reacionário, a homogeneização microfísica da modernidade e o desejo incontido pela ruptura com ambos os pólos. Malcolm Bradbury salienta que O vanguardista é, num certo sentido, um revoltado contra a sua própria época, que rejeita o moderno e, mais ainda, o convencional. Ele despreza o estado corrompido da cultura burguesa contemporânea, os valores complacentes de uma sociedade mercantilista, materialista imperialista, a tradição de mediocridade corrompida de sua arte. Ao mesmo tempo, ele é a manifestação mais


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integral da própria modernidade, revelando suas formas e princípios mais fundamentais, destilando seu espírito esua contradições. (BRAUDBURY 1989, p. 10)

Tal caracterização nos parece ainda mais adequada quando atribuída a uma das vozes mais inquietas e inquietantes da vanguarda do movimento modernista: Franz Kafka. A fragmentação das identidades, os poderosos discursos fantasmáticos da tradição, os conflitos de linguagem, a substituição dos dogmas religiosos pelas doutrinas de mercado e a perplexidade dos sujeitos diante de um mundo em constante mutação constituem elementos de grande importância na literatura kafkiana. Ao analisar o fluxo de correspondência entre Gershom Scholem e Walter Benjamin, Robert Alter salienta que “como um modernista rigorosamente iconoclasta, ele [Kafka] encarnava com rigor, no âmbito da ficção, a nova poética da disjunção, da descontinuidade e da perplexidade obstinada, que tanto fascinava Benjamin” (ALTER, 1992, p. 32). Dentre os diversos aspectos passíveis de análise na conflituosa relação de Kafka com sua própria época, nos parece profícua a discussão do posicionamento ambivalente do autor no que se refere aos paradigmas tradicionais e modernos que confluem no início do século XX. Tal abordagem se justifica não somente pela complexidade do assunto em seu recorte sincrônico, mas também pela possibilidade de estender nossas reflexões a autores contemporâneos, o que comprova a relevância históricosocial das questões suscitadas. Para tanto, examinaremos os pontos possíveis de aproximação entre a novela O veredicto, escrita pelo autor tcheco em 1912, e o romance Lavoura arcaica, do brasileiro Raduan Nassar, publicado em 1989. Ainda que não se possa restringir a amplitude das reflexões de Kafka a um único viés analítico, há uma ligação aparente entre a relação do autor com a voz autoritária da tradição e com a figura intimidadora do pai. Assim como outros elementos da literatura do autor, esse vínculo não é desprovido de certas contradições internas. Contudo, nos parece que tal conexão pode ser caracterizada como um dos eixos temáticos centrais da obra O veredicto.


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São diversas as correspondências entre a vida do escritor e de sua personagem Georg Bendemann, especialmente no que se refere ao conflito entre uma consciência individual em busca de autonomia e o poder da autoridade patriarcal. Tanto Kafka quanto Bendemann travaram uma luta dolorosa pela afirmação de suas próprias escolhas na tentativa de escapar da sombra paterna que os envolvia. Interessantemente, um movimento de contestação auto-libertária semelhante se revela como elemento essencial na obra de Raduan Nassar. Se entendermos o ambiente familiar como um dos vários núcleos constituintes de uma macro-estrutura social, os esforços de transgressão e mesmo de ruptura demonstrados pelos protagonistas de ambos os textos podem ser mais bem compreendidos quando analisados sob a luz dos estudos sobre o ethos. Além disso, a inclusão dessa perspectiva metodológica facilita a percepção das influências oriundas do universo experimental. Physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos senão a transcrição da physis na peculiaridade da praxis ou da ação humana e das estruturas histórico-sociais que dela resultam. No ethos está presente a razão profunda da physis que se manifesta no finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento da liberdade aberto pela práxis. (VAZ, 1999, p. 11)

A afirmação acima, de Henrique Vaz, salienta a intima ligação entre a natureza (physis) e sua particularização por mei dos atos humanos (praxis), tendo o ethos como mecanismo de comunicação entre as duas esferas. O ethos adota e modifica aspectos da physis, transformandoos em ações práticas, as quais, visando o bem, proporcionam aos indivíduos novos caminhos de realização particular e/ou coletiva. Essas ações acabam por incluir-se no hábito, retomando dessa forma a constância da natureza na qual foram primordialmente criadas. A repetição dos atos considerados virtuosos e formadores de um hábito que, por sua vez, fortalece o costume, potencializa a importância histórica do ethos como caminho para a busca de ideais como o Bem e a Verdade. Esse ciclo contínuo forma aquilo que chamamos de tradição ética, que direciona as ações individuais e opõe


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virtudes e vícios. “É justamente a tradição que suporta e garante a permanência dessa instituição e se torna, assim, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão histórica” (VAZ, 1999, p. 17). Assim, o espaço ético encontra na tradição uma instituição normativa e reguladora dos atos que o sustentam. O conhecimento formado e solidificado pela tradição é transmitido ao longo das gerações como uma herança simbólica de um modo de agir que supostamente retorna de forma benéfica não apenas para o indivíduo que pratica a ação, mas também para o espaço ético onde esta foi praticada. Contudo, não é possível caracterizar o ethos em termos absolutos já que os pressupostos que lhe servem de base se transformam ao longo da história, promovendo uma renovação valorativa da praxis. Ao contrário do que as considerações até aqui desenvolvidas parecem indicar, a tradição não é concebida primordialmente como obstáculo para o exercício da liberdade individual. Na verdade, o ethos representa a passagem de uma forma de liberdade externa para outra visivelmente interna à esfera ética, servindo esse processo como um espaço para embates e contestações que acentuam a transitoriedade dos princípios que a permeiam. Assim, a oposição à tradição pode ser entendida como um conflito ético que pretende transgredir ou subverter os paradigmas estabelecidos. Dessa forma, as ações dos protagonistas Georg e André representam um esforço para romper com padrões tradicionais, renovar o círculo dialético do ethos e abrir caminho para novos conceitos. Em O veredicto, o jovem Bendemann parece estar a um passo de sobrepujar a força dominadora do pai, construindo um novo espaço de realização pessoal e rearticulando o ethos familiar instituído, situação que pode ser associada simbolicamente ao período primaveril mencionado no início do texto e que se torna uma referência simbólica a esse momento de renovação que se desenvolve. Tal panorama pode ser exemplificado pelo direcionamento dado pela personagem ao assumir o controle dos negócios da família, implantando sua própria dinâmica de trabalho e desarticulando a autocracia paterna.


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Georg havia assumido com maior determinação o negócio, bem como tudo o mais. Talvez o pai, enquanto a mãe era viva, por querer fazer valer só o seu próprio ponto de vista na firma, o tivesse impedido de exercer uma atividade pessoal efetiva; talvez o pai, desde a morte da mãe, embora ainda continuasse trabalhando no estabelecimento, tivesse ficado muito retraído [...] fosse como fosse, porém, nesses dois anos a firma tinha se desenvolvido de um modo totalmente inesperado, fora preciso dobrar o pessoal, o movimento havia quintuplicado e se duvida se estava na iminência de um novo avanço. (KAFKA, 1998, p. 11–12)

É interessante notar que o protagonista se mostra não apenas satisfeito com o fortalecimento de sua autonomia, mas também adaptado à lógica empresarial capitalista, uma vez que se revela um hábil empresário e negociante. Além disso, a maneira (aliás, a única) pela qual Georg se refere à sua noiva, ou seja, “uma jovem de família bem situada”, deixa transparecer, ao mesmo tempo, a importância atribuída pela personagem à questão de classe e a principal característica a ser ressaltada pelo protagonista em sua futura esposa. Como afirmamos anteriormente, essa ênfase crescente em aspectos de ordem econômica representa o eixo principal no processo de modernização e na formação de padrões sociais no século XX. Dessa forma, a trajetória aparentemente libertária do protagonista o transferiria de maneira irônica de um espaço normalizador para outro ainda mais rígido, ainda que mais abrangente. Entretanto, a questão do estranhamento em relação aos paradigmas dos novos tempos, aspecto recorrente em outras obras como O processo, A Metamorfose e O Castelo, não está ausente em O veredicto. Neste texto, a imagem do estrangeiro, que se insere em uma sociedade cujas normas que ele não compreende totalmente, é representada pelo amigo distante e interlocutor epistolar do jovem Bendemann. Ao imigrar para a Rússia, essa personagem, que ao longo da narrativa não é nomeada, desprende-se dos padrões de sua comunidade original e adentra um novo espaço ético, no qual sua identidade como forasteira se consolida. Contudo, sua perplexidade diante dos rumos de seu próprio país o transforma em um indivíduo sem pátria, constantemente desafiado pelo entendimento do ambiente ao seu redor e de sua própria terra natal, para onde não consegue retornar. Percebemos nessa situação, os sentimentos de estranhamento


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e deslocamento, traços recorrentes do indivíduo moderno diante do meio social. No entanto, Bendemann não demonstra efetivamente esses sentimentos e se configura como uma personagem não apenas integrada aos novos tempos, mas também desejosa por se afastar da ideia tradição representada por seu pai. Não obstante, na obra de Kafka a confrontação direta é inevitável. O rompimento com o discurso patriarcal precisa se dar não apenas pela superação deste, mas também pelo domínio do espaço compartilhado. Quando Georg adentra a escuridão do passado que preenche o quarto de seu pai – aparentemente o único lugar na casa onde essa presença ainda impera, resistindo ao calor primaveril e renovador do exterior – é possível perceber o clima de decadência que caracteriza o ambiente. Finalmente enfiou a carta no bolso e, do seu quarto, atravessando um pequeno corredor escuro, entrou no quarto do pai, ao qual não ia já fazia meses [...] Surpreendeu Georg como estava escuro o quarto do pai mesmo nessa manhã ensolarada [...] O pai estava sentado junto à janela, num canto enfeitado com várias lembranças da mãe, e lia o jornal segurando-o de lado para compensar alguma deficiência da vista. Sobre a mesa jaziam os restos do café da manhã, do qual não parecia ter sido consumido muita coisa. (KAFKA, 1998, p. 14-15) [grifo nosso]

O declínio trazido pelos ventos da mudança deixa marcas indeléveis no corpo, acentuando os traços da face, enfraquecendo a visão e transformando as lembranças em cicatrizes. Assim, a velhice representa não apenas o enfraquecimento físico do pai, mas também o aparente esgotamento dos discursos por ele representados. O poder da tradição concentrado na figura patriarcal parece estar a ponto de se exaurir. A vitalidade de Georg contrasta com tal caracterização, colocando-o em uma posição supostamente vantajosa e altiva sobre o trêmulo pedestal da modernidade. Sua força se converte ao mesmo tempo em domínio da situação e em um posicionamento dualista em relação ao pai. Se, por um lado, o protagonista deseja abandonar


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definitivamente a casa paterna; por outro, ele ainda se sente ligado às suas raízes. Nesse sentido, a personagem ilustra uma das contradições intrínsecas ao redemoinho da modernidade e de sua representação estética modernista, ou seja, a simultaneidade de um amplo desejo de ruptura e de um profundo sentimentalismo nostálgico. Ainda não havia conversado expressamente com a noiva sobre a maneira como pretendiam organizar o futuro do velho, pois tinha admitido de forma tácita que ele iria ficar sozinho na antiga casa. Nesse momento porém ele decidiu, rápido e com toda a firmeza, levá-lo para sua futura residência. (KAFKA, 1998, p. 19)

Na ficção kafkiana as problematizações do passado e do presente se misturam em diversos níveis discursivos, evidenciando ora uma aversão pelo tradicionalismo, ora uma tendência à recuperação de certezas capazes de traçar rumos para os sujeitos. Tal problemática é desenvolvida, entretanto, sem preterir de uma preocupação estética ao mesmo tempo inovadora e melancólica. Kafka, para ambos [Scholem e Benjamin], era o único escritor capaz de fitar o coração dessa melancolia sem pestanejar, mas que, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de vislumbrar o vago esboço da paisagem dos tempos antigos, assim como K. olha para o Castelo através do nevoeiro e da neve, e, ao mesmo tempo que não vê nada, vê tudo: a invenção lunática de uma criança louca, e o altivo domínio da verdade. (ALTER, 1992, p. 41)

Em O veredicto, essa consciência bi-partida, representada por Georg, se mantém estável por meio da aparente supressão do ethos patriarcal e pelos ilusórios sentimentos de libertação e controle. O passado está quase completamente coberto. -Estou bem coberto agora? – perguntou o pai, como se não pudesse verificar se os pés estavam suficientemente protegidos. –Então você já se sente bem na cama – disse Georg, estendendo melhor as cobertas sobre ele. –Estou bem coberto? – perguntou o pai outra vez; parecia estar particularmente atento à resposta. –Fique tranqüilo, você está bem coberto. (KAFKA, 1998, p.20


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Entretanto, a força da tradição, que ainda resiste à renovação ética e encontra refúgio na nostalgia que perpassa o imaginário vanguardista, revela sua esmagadora presença nas palavras ameaçadoras do pai de Georg. Nesse inflamado discurso, o próprio espírito da modernidade, representado pelo jovem Bendemann, é caracterizado como um fruto que tenta suplantar seu próprio tronco e suas próprias raízes, mas que se mostra incapaz de sobreviver sem a seiva que lhe deu origem. – Não! – bradou o pai de tal forma que a resposta colidiu com a pergunta, atirou fora a coberta com tamanha força que por um instante ela ficou completamente estirada no vôo e pôs-se em pé na cama, apoiando-se de leve só com uma mão no forro. – Você queria me cobrir, eu sei disso, meu frutinho, mas ainda não estou recoberto. E mesmo que seja a última força que tenho, ela é suficiente para você, demais para você. (KAFKA, 1998, p. 20)

Dessa maneira, a ética patriarcal se sobrepõe ao discurso ufanista e contraditório do protagonista, comprovando que sua resistência aos paradigmas tradicionais e seu aparente movimento de renovação do ethos não ultrapassam os limites de um processo de subversão ético-discursiva, ou seja, a substituição de um tipo de padronização por outro. Que outro consolo restava ao velho pai viúvo? Diga – e no instante da resposta seja ainda o meu filho vivo – o que me restava, neste meu quarto dos fundos, perseguido pelos empregados desleais, velho até os ossos? E o meu filho caminhava triunfante pelo mundo, fechava negócios que eu tinha preparado, dava cambalhotas de satisfação e passava diante do pai com o rosto circunspecto de um homem respeitável [...] Cuidado para não se enganar! Continuo sendo de longe o mais forte. (KAFKA, 1998, p. 22)

Em determinados momentos do embate entre as personagens, a imagem do amigo de Georg exilado na Rússia retorna com maior representatividade. É possível perceber que o imigrante pode ser visto como o equivalente simbólico da figura do pai. Os sentimentos de deslocamento e perplexidade aproximam os dois indivíduos, unindo-os na sensação de estranhamento do meio e na recusa da adaptação redentora. Não obstante as pressões, a decadência e o cansaço, ambos ainda resistem.


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Georg levantou os olhos para a imagem aterrorizante do pai. O amigo de São Petersburgo, que de repente o pai conhecia tão bem, o comoveu como nunca antes. Viu-o perdido na vasta Rússia. Viu-o na porta da loja vazia e saqueada. Entre os escombros das prateleiras, das mercadorias destroçadas, dos tubos de gás caindo, ele ainda continuava de pé [...] - Mas o seu amigo não foi atraiçoado! – exclamou o pai, sublinhando a fala com o dedo indicador que se mexia de lá para cá. – Eu era seu representante aqui no lugar. (KAFKA, 1998, p. 21–22)

Confrontado pela força esmagadora do discurso ético-patriarcal, Georg não vê alternativa senão mergulhar na sua própria fraqueza, abandonando sua tentativa de superação e mesmo abdicando do uso da linguagem, uma vez que suas palavras se mostram impotentes e desencontradas diante do poder de conceitos patriarcais, dos quais ele nunca conseguira se afastar completamente. Georg encolheu-se a um canto o mais possível distante do pai. Fazia já algum tempo tinha tomado a firme decisão de observar tudo de maneira absolutamente precisa, para não ser surpreendido num descaminho seja por trás ou de cima para baixo. Lembrou-se nesse momento da decisão há muito esquecida e a esqueceu de novo, como um fio curto que se enfia pelo buraco de uma agulha. (KAFKA, 1998, p. 21– 22)

Assim, o veredicto é proferido e a resistência finalmente se encerra. O protagonista é condenado a submergir sua individualidade nos padrões com quais não consegue romper. Robert Alter afirma, inclusive, que há um sentimento de conforto decorrente do encerramento desse esforço obstinado. “George Bendemann de O veredicto, sente um alívio da angústia trazida pelo ato de resistir, ao se submeter a esta sentença” (ALTER, 1992, p.87). Se entendermos a água como elemento simbólico de renovação, é ironicamente por meio dela que Georg se despede da possibilidade de romper com o ethos familiar estabelecido. Entretanto, a ironia kafkiana vai ainda mais longe ao evidenciar o vínculo jamais quebrado pelo protagonista com suas raízes nas últimas palavras da personagem. “Queridos pais, eu sempre os amei – e se deixou cair” (KAFKA, 1998, p. 25). Além disso, a menção ao movimento ininterrupto sobre a ponte pode ser interpretada como uma alegoria ao fluxo frenético da modernidade e que direcionava os


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sujeitos para novos paradigmas, aos quais Georg tentava se adaptar. “Nesse momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável” (KAFKA, 1998, p. 25). Em Lavoura arcaica, o conflito entre uma tradição erigida no ethos familiar e o desejo por formar um novo espaço de liberdade pessoal atribuem caráter subversivo ás ações do protagonista André. Tanto na obra de Kafka quando na de Ruduan Nassar, nota-se a escolha do ambiente familiar como pólo oposta á fluidez da vida moderna. André Lázaro, ao se referir á idealização familiar burguesa consolidada no século XVIII, afirma que a “a burguesia esperava da família um ambiente de ordem e estabilidade, em oposição ao mundo instável que, para além da porta da casa, perdia a nitidez” (LÁZARO, 1996, p. 157). Além disso, a família é o primeiro espaço socializado ao qual os indivíduos são expostos e essa primeira experiência condiciona, até certo ponto, as ações que serão posteriormente desenvolvidas em outras esferas. A família pode ser considerada o habitat primário do homem, sua primeira morada, e o seu contato inicial com o comportamento ético. Uma cadeia complexa de mediações ordena os movimentos do indivíduo no todo social e, entre elas, desenrolam-se as mediações que integram o indivíduo ao ethos: os hábitos no próprio indivíduo e, na sociedade, os costumes e normas das esferas particulares nas quais se exercerá sua praxis, ou seja, trabalho, cultura, política e convivência social. (VAZ, 1999, p. 23) Em

Lavoura arcaica, a praxis exercida por André convulsiona as mediações que objetivam integrá-lo ao espaço ético familiar. Na obra, os ideais que sustentam o discurso da tradição no seio da família, ao serem subvertidos pelo protagonista, tornam-se elementos de revolta e subversão. Assim como ocorre em O veredicto, os princípios éticos convergem na figura protetora e autoritária do pai do protagonista: Iohána. Esta personagem representa a própria força de uma tradição que, com o intuito de preservar o grupo constituído como família, impõe aos indivíduos uma forma específica de comportamento e que procura condicionar não só os atos, mas também a linguagem e os pensamentos. O


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discurso de Iohána é ao mesmo tempo a materialização verbal e a valorização do ethos familiar em sua perenidade histórica. O tempo que, poderoso, se revela ás costas do pai, proteja sobre ela a força da tradição ética construída pelas gerações, cadenciado mecanicamente as suas palavras: Entretanto, percebemos na inquietação revelada pelo semblantes dos ouvintes um primeiro indício de um desejo latente de contestar os princípios transmitidos pela voz patriarcal. Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas. (NASSAR, 2001, p. 53)

Ao longo da obra, fica evidente a importância que a reunião da família em torno dessa mesa ancestral tem como ritual de reafirmação dos princípios que ordenam a esfera ética e como representação do desvio que permeia a união do grupo e caracteriza os atos do protagonista. A mesa da família é o próprio ethos em Lavoura arcaica e guarda em si a semente da rebeldia. Em primeiro lugar, notamos a função educadora presente nesse ritual discursivo diário, a qual se confunde com a própria pedagogia inerente ao círculo ético, derivada da reafirmação dos hábitos no fortalecimento da tradição. Nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pãode-casa, e era na hora de reparti-lo que concluíamos, três vezes por dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da justiça. (NASSAR, 2001, p. 78)

A partir do discurso patriarcal, podemos distinguir, na estrutura constitutiva desse círculo dialético particular, quatro ideais que lhe servem de base fundamental: o amor, a união, o trabalho e a temperança. Esses valores se entrelaçam na formação do código normativo que estabiliza o ethos como hábito e, curiosamente, carregam em si mesmos os pilares sobre os quais se sustenta o comportamento transgressor e subversivo de André. A noção de amor idealizada por Iohána se efetiva no próprio núcleo familiar, por meio da doação e do respeito para com os pais e, de forma até mais explícita, para com os irmãos. Entretanto, a incondicionalidade e a livre aceitação não apenas do amor, mas também do prazer emocional e


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.27, 2015 (...) o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado (...) na união da família está o acabamento de nossos princípios. (NASSAR, 2001, p. 56–61)

A união da família, insistentemente pregada pela voz da tradição, é fortalecida tanto pela doação de seus membros quanto pelo apagamento de suas individualidades. Em outros termos, o ethos familiar não prescreve apenas o exercício da praxis em favor do bem estar do grupo, mas também condena a valorização das idiossincrasias. Dessa forma, as contingências da família em Lavoura arcaica suplantam as necessidades particulares e forçam um esmagamento das identidades em prol da estabilidade do espaço compartilhado. (...) a sabedoria está precisamente em não se fechar nesse mundo menor: humilde, o homem abandona a sua individualidade para fazer parte de uma unidade maior, que é de onde retira a sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar a sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas. (NASSAR, 2001, p. 148)

Nesse sentido, a revolta de André é também uma busca por uma liberdade emocional e discursiva que lhe é negada pelo código ético vigente. Parece-nos que, assim como ocorre com o jovem Bendemann, André se esforça para fugir de um ethos normalizante, tendo como objetivo o alcance de um horizonte quimérico da individualidade plena. Trabalho e temperança completam os quatro pilares que sustentam o espaço ético e que serão fortemente abalados pelo comportamento do protagonista. A cadência do círculo ético representado na obra é determinada sob a égide do tempo, que exige esforço, paciência e comedimento. Assim, as mãos calejadas dos indivíduos constroem a casa e provém a família com alimento, mas o trabalho só alcança seus objetivos graças à compreensão e à reverência aos desígnios do tempo. Tal atitude respeitosa redunda no cuidado com as ações, no controle dos desejos e no discernimento para reconhecer o momento certo de cultivar a terra.


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(...) existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes de nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil de nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; (...) rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso (NASSAR, 2001, p. 55– 57).

É interessante notar que esses ideais prescritivos parecem estar voltados diretamente para André, numa antecipação dos acontecimentos futuros. O protagonista desafia o fluxo do tempo e dá vazão às suas paixões de forma desesperada, contrariando tudo que lhe foi ensinado por Iohána, num movimento que envolve não apenas a rejeição de conceitos, mas também uma prática subversiva como tentativa de romper com o espaço ético. (...) por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo do que a perna (...) aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia (...) ai daquele que se antecipa ao processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue. (NASSAR, 2001, p. 55–57)

Tal antecipação, passível de ser comparada ao olhar melancólico de Georg Bendemann em direção ao rio e à ponte no início de O veredicto, ressalta não só o aspecto tragicômico do posicionamento humano diante de seu próprio meio, mas também como a gênese do processo de contestação ocorre a partir dos próprios conceitos tradicionais, revelando-se como indissociável deles. Uma vez mais, recorremos à imagem da mesa ancestral encabeçada por Iohána para ilustrar a cadeia de relações familiares que geram uma tensão ética, que culmina na transgressão, supostamente libertária, do protagonista.


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(...) eram esses nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família. (NASSAR, 2001, p. 156-157)

Segundo André, é o excesso de afeto da mãe que deforma eticamente a linhagem do lado esquerdo da mesa, criando uma reação em cadeia que afeta todos os indivíduos e que se inicia com o protagonista. Assim, o amor dentro do espaço ético familiar assume diferentes facetas, podendo estabilizá-lo ou comprometêlo. Se, para o jovem Bendemann, os ideais de amor e de casamento servem como um caminho para a afirmação de sua individualidade, André parte da subversão da incondicionalidade afetiva de sua mãe para iniciar seu movimento de revolta. A personagem subverte o ideal do amor ao erotizá-lo. Contudo, o protagonista não consegue construir suas ações externamente ao círculo ético do qual tenta escapar. A personagem desconstrói o discurso patriarcal, adapta-o aos seus interesses e rearticula o processo de apagamento das individualidades. André nega a alteridade dos indivíduos e instrumentaliza seus corpos como meio de convulsionar os princípios éticos familiares: “preciso estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico, preciso do teu amor, querida irmã, e sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a parte que me compete, o quinhão que me cabe a ração a que tenho direito” (NASSAR, 2001, p. 125-126). Se, por um lado, a personagem explicita abertamente um desejo de dar vazão à sua individualidade reprimida e fundar um novo círculo ético distinto daquele no qual se deu a sua criação:


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(...) eu tinha que gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios jamais foram escritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia nenhuma ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista. (NASSAR, 2001, p. 111)

Por outro lado, ao longo da narrativa percebemos que as ações do protagonista não ultrapassam os limites da subversão e que o seu objetivo é, na verdade, consolidar a sua individualidade dentro do espaço ético familiar. André busca, por meio de sua contestação e de sua ausência, o respeito por sua identidade; ele tenta estabelecer o seu lugar na mesa ancestral sem abdicar de sua individualidade. Nesse sentido, a revolta da personagem é também uma tentativa de inclusão e seu afastamento do seio familiar jamais fora concebido como uma atitude definitiva. (...) e que peso dessa mochila presa nos meus ombros quando daí de casa, colada no meu dorso, caminhamos como gêmeos com as mesmas costas, as gemas de um mesmo ovo, com os olhos voltados para frente e os olhos voltados para trás [...] não era com estradas que eu sonhava, jamais me passava pela cabeça abandonar a casa, [...] queria o meu lugar na mesa da família. (NASSAR, 2001, p. 34–69–160)

Assim, percebemos que André é um produto da tradição ética estabelecida e, justamente por isso, não consegue desvincular o seu discurso dos princípios pregados por Iohána, restando ao protagonista, subverter os valores do pai como forma de construir uma identidade autônoma. Ao fazer isso, a personagem utiliza o mesmo mecanismo impositivo e homogeinizador de Iohána, causando uma deformação na circularidade ética do espaço familiar, a qual se estende aos outros irmãos que completam o ramo esquerdo e disforme da tradição familiar: Ana e Lula. Tal tendência, ao mesmo tempo subversiva e libertária, parece ter sua continuidade garantida na figura do irmão mais novo do protagonista: “só foi você partir, André, e eu já vivia empoleirado lá na porteira, sonhando com estradas, esticando os olhos até onde eu podia, era só na tua aventura que eu pensava [...] André não vou falhar com você” (NASSAR, 2001, p. 180– 181).


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Além disso, é preciso notar que, apesar de todos os seus esforços, a trajetória de André se realiza de forma circular. Ao retornar para casa, a personagem se dispõe a contestar abertamente o discurso paterno, desafiando os seus princípios e tentando fazer com que sua voz seja ouvida. Contudo, são os olhos mudos da mãe sob suas costas que fazem com que o protagonista renuncie ao próprio discurso e aceite os ideais de Iohána. O mesmo afeto que incitara a revolta de André faz com que ele se cale ao final da narrativa. (...) senti num momento a presença de minha mãe às minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem voltar, pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos para o meu pai: “Chega Iohána! Poupe nosso filho!” [...] Estou cansado, pai, me perdoe [...] daqui pra frente quero ser como meus irmãos [...] vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer de coração sincero, pai, todo o teu amor. (NASSAR, 2001, p. 170)

Dessa forma, André, de maneira similar ao posicionamento de Georg Bendemann, aceita a supressão de sua individualidade e reassume o seu lugar silencioso à mesa da família. A personagem não apenas retorna para o ambiente temporariamente abandonado, mas também volta a fazer parte do círculo ético por ele contestado, submergindo aparentemente na homogeneidade que lhe é oferecida. Porém, todo esse processo de readaptação se mostra eficiente apenas na superfície, uma vez que André mantém sua individualidade suprimida pela ética da família, mas de forma alguma abandonada em caráter definitivo. Quando o protagonista seduz Lula, o irmão mais novo, ele refaz a mesma prática erotizante e subjugadora anteriormente utilizada com Ana. Mais uma vez, André tenta encontrar sua liberdade no seio da família. (...) mas não foi para fechar seus olhos que estendi o braço, correndo logo a mão no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de um lírio [...] Minha festa seria no dia seguinte, e, depois eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela. (NASSAR, 2001, p. 181–182)


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À guisa de conclusão, percebemos que os protagonistas das obras de Kafka e Raduan Nassar descrevem trajetórias que apresentam semelhanças no que se refere à contestação de modelos sociais tradicionais. Primeiramente, o conflito ético gerado por essas personagens em relação ao meio no qual elas habitam e do qual foram cunhadas serve como metáfora para o impulso de ruptura que caracteriza a modernidade. Georg Bendemann e André representam o espírito inquieto e contraditório que perpassa o imaginário coletivo moderno. Ambas as personagens misturam em suas ações o desejo de renovação e a ligação com um passado tradicional do qual não conseguem se libertar. Nesse sentido, a teoria do ethos se mostra profícua para a compreensão do poder da tradição – representado pelas figuras paternas – não apenas como princípio regulador do espaço compartilhado, mas também como elemento de confrontação por parte das personagens, embate que redunda na supressão das individualidades dos protagonistas diante da impossibilidade de construção de um novo discurso ético alheio aos paradigmas tradicionais que os definem. Assim, as obras de Franz Kafka e Raduan Nassar constituem reflexões problematizadoras das consciências individuais e coletivas, colocadas diante de um momento histórico que desafia a compreensão de si mesmo e a do papel dos sujeitos nas sociedades que o compõem. Referências ALTER, Robert. Anjos necessários. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1981. BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. KAFKA, Franz. O veredicto / Na colônia penal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LÁZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.


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NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia II: Introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999


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A ditadura ficcionalizada Dictatorship fictionalized in novels from the 70’ s Helena Bonito C. Pereira* Ficou moderno o Brasil Ficou moderno o milagre: A água já não vira vinho Vira direto vinagre. Casaco RESUMO: A exemplo do que ocorreu com atividades artísticas e culturais em geral, a produção literária não passou incólume pelo regime ditatorial. Não só a censura e a proibição de circulação de livros, como também uma espécie de autocensura, por parte de alguns escritores, interferiram na produção ficcional. Apesar disso, destacam-se representações do período em romances cujos autores adotaram registros variados: alguns recriam as situações de exceção em relatos factuais, próximos da reportagem jornalística, tematizando cruamente a repressão e a tortura; outros enveredam pelos caminhos da metáfora e da alegoria. Em meio a modalidades de ficcionalização opostas, há espaço para o relato irônico, a intensa elaboração formal, o trabalho artístico com a linguagem. Discute-se neste artigo, portanto, o contexto dos anos 70, bem como as modalidades das manifestações em narrativas literárias. PALAVRAS-CHAVE: Anos 70; ficção brasileira; literatura e censura.

* Doutora em Letras Modernas pela FFLCH-USP e docente de no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) em São Paulo.

ABSTRACT: Just as it happened with artistic and cultural activities, in general, literary productions were not spared from the dictatorial period. Not only censorship and the prohibition of books happened, but also a kind of self-censorship, from some authors, interfered in fictional productions. In spite of this, some representations from this period can attention, mainly in novels whose authors adopted several varied registers: some recreate situations of exception in relation to factual reports, close to journalistic reports, bringing repression and torture as a cruel theme; others take the paths of metaphors or allegories. Among all the kinds of opposed fictionalization, there’s room for the ironic report, the formal intense elaboration, the artistic work with the language. Taking all of these into consideration, this article discusses the context of the 70´s, as well as all forms of literary narrative manifestations from the period. KEY-WORDS: 70´s; Brazilian fiction; literature and censorship.


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As circunstâncias que marcaram a vida brasileira sob a ditadura militar estiveram em evidência em 2014, por ocasião do cinquentenário do golpe que a instituiu. Ao lado das publicações que interpretam (ou reinterpretam) as condições político-econômicas, sociais e culturais, são relativamente escassas as que se situam no campo da crítica literária. Não só a ficção produzida no período (1964-1985), como também as narrativas publicadas posteriormente, tendo como pano de fundo o mesmo período, parecem insuficientemente exploradas até o presente. Os estudos sobre o período ditatorial ultrapassam as fronteiras da ficção proliferaram em especial entre historiadores de política e economia, sociólogos e estudiosos da cultura brasileira. Sobre a amplitude do fenômeno no pensamento brasileiro, observa Ridenti: Modernização, desenvolvimento capitalista, autoritarismo e lutas sociais pela constituição de uma esfera pública, ou até mesmo um outro tipo de sociedade, entrelaçaram-se de tal maneira, sobretudo a partir dos anos 1970, que qualquer desses aspectos só pode ser compreendido levando-se em conta os demais. Isso talvez ajude a explicar a atualidade da discussão sobre os tempos da ditadura, cinquenta anos após o golpe e quase trinta anos depois da volta do governo a um presidente civil. Em 1987, o debate sobre o Estado Novo de 1937 não tinha nem de longe a mesma repercussão que hoje ainda tem o golpe de 1964. Afinal, as bases da sociedade em que vivemos foram construídas a partir dali. (RIDENTI, 2014, p. 44)

A constatação de Ridenti deve estender-se, sem dúvida, à produção ficcional posterior à ditadura. Embora o conjunto de obras produzidas nos decênios de 30-40 do século passado, agrupadas como “regionalistas”, sejam marcadas pelo engajamento e pela denúncia da desigualdade socioeconômica, e, em numerosos casos, por sua visão de mundo calcada na teoria marxista, são escassas as referências ao regime de exceção instituído por Getúlio Vargas e vigente no período de 1937 a 1945. O monumental Memórias do cárcere, que custou a Graciliano Ramos longos e amargos anos de escrita, pode ser considerado a exceção que confirma a regra. Assim, a


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ficção que foi publicada sob o regime de exceção, exposta à censura, perplexa em meio à consolidação da cultura de massa e à urbanização desenfreada, tem peculiaridades que a tornam merecedora de maior atenção. Este trabalho examina determinadas narrativas que instauram, cada qual a seu modo, a representação de uma realidade atemorizante. Levando em conta a complexidade do período, espera-se acrescentar novas luzes à compreensão da ficção brasileira que o elegeu como contexto temporal. No período correspondente à implantação e consolidação do governo militar, desde o golpe até o final de 1968, definido por Gaspari (2002a) como “ditadura envergonhada”, foram suprimidas as liberdades democráticas, entrou em vigência a censura e a legislação de exceção passou a regulamentar todas as esferas da vida pública. A partir da decretação do Ato Institucional no. 5, conhecido como AI-5, o país passou a viver os “anos de chumbo”, com repressão violenta, tortura, desaparecimentos, mortes inexplicáveis e perseguição implacável a qualquer movimento real ou hipotético de dissidência. As atividades intelectuais, artísticas e culturais foram seriamente prejudicadas pela censura até 1979, ano em que foi promulgada a Lei da Anistia. Observa-se, portanto, que diferentes contextos envolvem a produção ficcional, situando-se o primeiro deles antes do AI-5, período da “ditadura envergonhada”, segundo Gaspari (2002a, p. 19), o seguinte a partir de 1969, período da “ditadura escancarada”, também conhecido como “anos de chumbo”, em razão do endurecimento feroz do regime, e o terceiro com o advento da anistia, em 1979, às vésperas da reconquista da liberdade, que ocorreria efetivamente com a passagem do poder a governantes civis em 1985. Essas duas décadas constituem-se em um contexto de produção artística e literária variado e heterogêneo, graças à paradoxal simultaneidade de movimentos de modernização e de obscurantismo. Ortiz reconhece o lado modernizador da ditadura: Deve-se levar em consideração que a modernização da sociedade brasileira implica uma mudança drástica no cenário cultural. [...] O advento da indústria cultural coincide com o período da ditadura, esse é o momento em que a televisão transforma-se num veículo de massa, o cinema consolida-se como atividade financiada pelo Estado, desenvolve-se de maneira ampla a indústria fonográfica, editorial e publicitária. (ORTIZ, 2014, p. 119)


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Os avanços – modernizadores – da indústria cultural, até então incipiente, trouxeram em seu bojo tanto a cultura do assentimento a favor do regime e modelaram a sociedade do espetáculo descartável e acrítico que permeia nossa sociedade desde então. Mas graças à modernização do parque industrial, dos meios de distribuição e de outros fatores de ordem econômica, cresceu também o mercado editorial, com um espantoso salto na quantidade de publicações. Ainda de acordo com Ortiz, “a produção nacional de livros entre 1966 e 1980 passa de 43,6 para 245,4 milhões de exemplares”. No contexto dessa ditadura fechada e autoritária, ocorreram distorções e arbitrariedades sem conta no tratamento dado aos produtores de cultura, inclusive perseguição e prisão, em razão de posicionamento ideológico, de personagens aos quais dificilmente se poderia atribuir a pecha de terroristas ou subversivos. Equívocos de autoridades pouco expressivas ou de agentes de segurança culminaram com prisões de responsáveis pelas maiores editoras do país, como ocorreu a Ênio Silveira, proprietário da Editora Civilização Brasileira (Gaspari, 2002a, p. 230). Em termos de produção literária, o decênio de 1960, segundo Antonio Candido, [...] foi primeiro turbulento e depois terrível. A princípio, a radicalização generosa mas desorganizada do populismo, no governo João Goulart. Em seguida, graças ao pavor da burguesia e à atuação do imperialismo, o golpe militar de 1964, que se transformou em 1968 de brutalmente opressivo em feroz repressivo. [...] Na ficção, o decênio de 60 teve algumas manifestações fortes na linha mais ou menos tradicional de fatura, como os romances de Antônio Callado, que renovou a “literatura participante” com destemor e perícia (CANDIDO, 1989, p. 208)

De fato, ao publicar Quarup, em 1967, Callado recriou a realidade sociopolítica brasileira em um tempo ficcional que se situa às vésperas do movimento de 1964. Boa parte do enredo se passa em plena Amazônia, espaço em que Nando, jovem padre recém-saído do seminário, convive com sertanistas que tentam contatos com tribos desconhecidas, índios em situação degradante, tentando defender suas terras e sua cultura, e tantos outros tipos existentes nessa área de dimensões continentais. De volta ao mundo urbano, todavia, o protagonista se vê no Brasil das lutas (e derrotas)


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populares, da corrupção, da repressão política. Trata-se portanto de uma obra que pode ser compreendida como alegoria da complexidade do país, cujas contradições se mostrariam cada vez mais evidentes nas décadas seguintes e até o presente. Graças a sua temática e ao renome de Callado, escritor bastante conhecido, proveniente das hostes do jornalismo, Quarup foi considerado desde logo a grande narrativa do período. Apesar dos comentários apreensivos de Candido, a literatura do período não se limitou a obras apenas tradicionais ou apenas engajadas. Merecem registro publicações ficcionais de escritores atuantes em nossas letras desde décadas anteriores, como A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, em 1964, ou Nove, novena, de Osman Lins, em 1966, e ainda, no ano seguinte, Tutameia, de Guimarães Rosa. Talvez a falta de entusiasmo com a produção ficcional do período decorresse de uma expectativa muito alta associada ao grande evento literário da década anterior, o lançamento e imediato reconhecimento de Grande sertão: veredas, a obra-prima de Mestre Rosa, em 1956. 1969–1978: a ditadura escancarada Episódios do cotidiano inspiram, em maior ou menor grau, o fazer literário. Ora, tais episódios poderiam referir-se a prisões arbitrárias, tortura e desaparecimento de prisioneiros políticos, matéria submetida a feroz censura, sobretudo a partir de 1969, com a promulgação do já mencionado Ato Institucional no. 5, em dezembro de 1968. A legislação assegurava aos censores todas as condições para agir com a máxima desenvoltura. Reimão (2011, p. 29) observa que se tornou obrigatória a submissão para censura prévia de todos os conteúdos criados para cinema, televisão, teatro, espetáculos públicos, música e rádio, prática que se estendeu a revistas e jornais impressos, e para a totalidade da produção editorial. O excessivo poder concedido pelo governo militar aos censores pode ter causado reações de autocensura, ou seja, os próprios artistas, jornalistas, cineastas, escritores e demais produtores de arte e cultura tenderiam a exercer um controle excessivo, como prevenção contra eventuais ataques. “Esse sim é o período em que mais claramente se


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passa a sentir a presença de um censor ao lado da máquina de escrever”, afirma Süssekind (2004, p.31), complementando com a citação de Geraldo Carneiro: “ Em vez de dialogar com a realidade, nossa interlocutora predileta era a censua”. Apesar disso, escritores como Érico Veríssimo, Jorge Amado, Lygía Fagundes Telles e outras personalidades de visibilidade na época manifestaram-se desde a primeira hora como opositores, para que não se cumprissem as disposições legais quando á submissão de obras literárias á censura prévia. Em consequência de suas ações, articuladas ás de outros escritores, intelectuais e membros da sociedade civil, a censura prévia a obras literárias passou a ser exercida apensas em textos que “versassem sobre temas referentes ao sexto, moralidade pública e bons costumes” (REIMÃO, 2011, p. 30). Outras obras literárias em geral seriam – e de fato foram, como se comenta adiante – censuradas e apreendidas em decorrência de denúncias feitas diretamente aos órgãos de repressão. O mercado editorial de ficção sempre abrigou enorme diversidade em termos de público-alvo, tipologia das narrativas, qualidade estilística, compromisso ideológico. Nesse contexto, os livros atingidos pelo braço mais pesado da censura foram os de natureza pornográfica, ou seja, declarados como “atentatórios à moral e aos bons costumes”. Marcados pela pobreza estética ou formal, sem nenhuma relevância – pelo menos do ponto de vista deste estudo – os romances eróticos, limitavam-se muitas vezes apenas a pornografia, o que não os impediu de alcançar expressivo número de leitores e enormes vendagens. Em meio à diversidade da produção ficcional, vicejou outra vertente de textos pobremente elaborados, escritos com um realismo que se manteve ativo em todo o período ditatorial, no formato conhecido como romance jornalístico ou romance–reportagem. Com enredos ancorados em fatos verídicos que não podiam ser publicados na íntegra por jornais e revistas, tais romances têm em comum uma espécie de descompromisso com a elaboração estética que deve distinguir a narrativa literária de suas congêneres, como a jornalística ou documental. Diferem entre si, todavia, na escolha temática. Durante a ditadura, proliferaram romances jornalísticos relacionados ao noticiário policial. Segundo Silverman, estes últimos surgiram “como consequência


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específica da censura à imprensa” (2000, p. 37), que impedia a publicação de notícias de interesse púbico. Por essa razão, “a prioridade no romance-reportagem não era compor uma narrativa brilhante, mas informar ao leitor o papel declarado do jornalismo, mediante estilo direto e sucinto, junto com uma elaboração factual, tipo diário policial” (id., p. 38). Mesmo que nesse conjunto seja possível destacar obras de José Louzeiro, Carlos Heitor Cony e Aguinaldo Silva, ainda segundo Silverman, Na sua forma mais pura, o gênero não é dogmático nem particularmente escrito para influenciar o pensamento social. É mais projetado para reproduzir ficcionalmente algum caso delicado de injustiça comprovada, quase sempre contra os menos favorecidos. A relação simbiótica entre os criminosos e a polícia é um alvo especialmente popular, e talvez uma metáfora inflada para a conivência entre uma burguesia cooptada e o governo militar. (id., p. 39)

Não é difícil relacionar o consumo desse tipo de ficção à intensa massificação cultural e à urbanização desenfreada que atingiam o país, em paralelo ao ufanismo que teve seu auge no governo do general Emílio Médici, apoiado pela mesma classe média que passava a consumir bens outrora inalcançáveis. Publicava-se em livro aquilo que a mídia de massa não podia publicar porque devia submeter-se à censura prévia. A simplificação textual e a superficialidade no tratamento do tema, características do romance-reportagem, acabavam por eliminar nuances, resultando em uma literatura artificialmente homogeneizada, sem contradições, sem a capacidade de problematizar o real, como constata Süssekind: Não é difícil, pois, entender a preferência pelos retratos falados do país e da própria subjetividade em estilo abundante e ritmo oratório. Neles não se acham em perigo identidades, nacionalidades, nem o próprio gesto de escrever. Neles se fala de medos individuais ou coletivos, mas não se deixa que eles invadam o próprio texto. A literatura-verdade, com suas certezas, pode falar de abismos, mas jamais se debruça demasiadamente sobre eles. (SÜSSEKIND, 2004, p. 114)


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Tais limitações autorizam a inserção do romancereportagem em plano bastante secundário no conjunto ficcional da época. Qualidade estética e representação alegórica Deixando à parte as obras para consumo descartável, como as pornográficas, bem como os romances jornalísticos datados, pode-se esboçar um recorte da variada produção da década de 70 com base em dois fatores indissociáveis: os componentes estéticos ou artísticos, que pesam, sempre, como critério essencial para a inclusão ou não de uma obra em um cânone, e os componentes temáticos ou ideológicos que voluntaria ou involuntariamente se presentificam no texto. Considerandose as peculiaridades políticas do período, cumpre atrelar à face ideológica um viés adicional, mais explícito, no que se refere a suas implicações políticas. O ponto de vista estético é o que realmente importa para a crítica literária, como reiterou Bosi ao tratar da ficção do período: “na rede de uma cultura plural como a que vivemos é a qualidade estética do texto que ainda deve importar como primeiro critério de inclusão no vasto mundo da narrativa” (1985, p. 438). Nesse sentido, a escrita de Clarice Lispector atingia pontos culminantes, com a publicação de Água viva (1973) e, em especial, A hora da estrela (1977), em que enredos intencionalmente frágeis dão lugar às verdadeiras “festas da linguagem”, para empregar ainda uma expressão de Bosi. Não menos marcante foi o aparecimento de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, espécie de reescrita da parábola do filho pródigo, em intensa elaboração formal e intertextual. Ainda no período veio a público Avalovara (1973), narrativa poética, de primoroso lavor estilístico, com a qual Osman Lins se consagrava como um dos grandes nomes em nossas letras. A criatividade na arte de narrar marcou também O risco do bordado, de Autran Dourado (1970) e o instigante A festa, de Ivan Ângelo (1976). Obras bem elaboradas – embora não tanto quanto as citadas anteriormente – com conteúdo ideológico mais explícito, associadas em grau mais ou menos elevado ao contexto repressor, dão a tônica no período, cabendo destaque especial para Incidente em Antares, de Érico


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Veríssimo (1971). Narrativa de fôlego, tem em comum com a saga rio-grandense um panorama histórico que remonta, inicialmente, à colonização do fictício Povinho da Caveira, posteriormente renomeado para Antares, conforme narração em 1ª pessoa, na voz de um cientista que teria viajado pela região no século XIX, em diálogo com o líder político local: [...] mostrei ao Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora não parecesse, ela era maior do que o Sol. O meu hospedeiro olhou para a estrela em silêncio e mais tarde, quando chegamos a casa, murmurou: “Antares.... Bonito nome. Para mim quer dizer ‘lugar onde existem muitas antas’, bem como nestas terras perto do rio”. [...] “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira” (1985, p. 9)..

Esse “lugar onde existem muitas antas” não deixa de ser uma antecipação da alegoria de país veiculada pela ficção. Escrito nas fronteiras entre ficção e história, Incidente em Antares comporta muitas chaves de leitura e interpretação. Classificado por Pellegrini como “inesperada subversão” (1996, p. 61), situa-se, segundo essa mesma crítica, em uma vertente do realismo “que considera o fantástico como uma possibilidade do real (id., p. 74). A duplicidade de matérias em que se estrutura o enredo – um incidente em que mortos insepultos retornam à cidade para expor as mazelas sociais e políticas, talvez seja apenas aparente, pois há [...] a primeira, matéria historicamente dada – o Brasil e seus fatos e homens preeminentes, os governadores, presidentes, as revoluções, golpes e contragolpes, avanços e recuos de facções políticas, alianças estratégicas e cisões irreconciliáveis, - a segunda, a matéria imaginária: os tipos criados – coronéis, matriarcas, comerciantes, ativistas, padres [...]. A História é a ficção e esta acaba sendo um reflexo assustador daquela. (PELLEGRINI, 1996, p. 79)

A abertura de Incidente para numerosas leituras, entre o fantástico e o alegórico, entre o histórico e o satírico, levou Süssekind a considerar essa obra uma “alegoria de cartas marcadas” (2004, p. 102) e a questionar com rigor quase toda a produção ficcional do período. Em Literatura e vida literária, Süssekind comenta negativamente a importância atribuída as narrativas alegóricas, feita, a seu ver, em detrimento de uma produção


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literária que deveria ser essencialmente artística e apenas acessoriamente ideológica. Identifica uma “certa preferência, tanto de parte do público quanto da crítica, por duas faces do realismo (mágico ou jornalístico), por uma literatura superpovoada de pistas alegóricas e obcecada pela referencialidade, e não por uma linguagem menos ‘figurada’ e mais ficcional” (2004, p. 18). Esse conjunto de obras metafóricas “de mão única”, ou seja, incapazes de maior abertura ou da multissignificação própria do texto literário é definido com excessivo rigor e sem nuances pela autora de Literatura e vida literária, como “uma literatura cujo eixo é a referência e não o trabalho com a linguagem, a consciência da própria materialidade verbal, é o recalque da ficcionalidade em prol de um texto predominantemente documental”. (p. 103-104) Escritores e editores Como se observou acima, escritores renomados aliaram-se à sociedade civil e tiveram condições de refrear o alcance da censura. Cumpre lembrar, por outro lado, que seria praticamente impossível aos censores darem conta de produções caudalosas, com trezentas a quatrocentas páginas, caso de Incidente em Antares, As meninas ou Zero. Exemplares, nesse sentido, são as circunstâncias de publicação do referido romance de Lygia F. Telles. Ao trazer à cena o cotidiano de três jovens universitárias residentes em um pensionato de freiras, o romance gira em torno do convívio solidário dessas protagonistas, que exteriorizam suas inquietações psicológicas, econômico-sociais e, no caso de uma das protagonistas, ideológicas. Essa personagem, visitando seu companheiro que é prisioneiro político, tem acesso ao pedido de socorro em forma de carta, escrita por outro prisioneiro, submetido a violentas sessões de tortura e ameaças de morte. Tal conteúdo seguramente teria sido censurado, porém o livro, sem cortes, foi vendido livremente. Em Conspiração de nuvens, coletânea de confissões e reminiscências literárias publicada em 2007, a romancista rememora momentos de tensão quando, em plenos “anos de chumbo”, participou do grupo de intelectuais que tentou entregar ao então ministro da Justiça um documento reivindicando o fim da censura. Nessa viagem a Brasília, Lygia relata ter dado entrevista a um jornalista sobre a publicação de As meninas:


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Um jornalista pediu-me detalhes. E então, tinha algum livro ameaçado de proibição? Contei-lhe que publiquei um romance, As meninas, no qual uma das personagens, exatamente uma jovem subversiva, lê um panfleto que Paulo Emílio recebeu pelo correio. Era o relato de um preso político torturado provavelmente até a morte. [...] Então esse romance saiu em 1973, acrescentei. O jovem ficou me olhando meio perplexo, E ainda não foi censurado? Perguntou, e contei-lhe o que Paulo Emílio tinha ouvido, o censor chegou até a página 72 e não foi adiante porque achou o livro chato. (TELLES, 2007, p. 65)

Para escritores menos conhecidos, todavia, não foi fácil publicar obras de denúncia e contestação, que se confrontavam abertamente contra o regime. Para contornar os rigores (muitas vezes aleatórios) da censura, alguns escritores encontraram pequenos editores ousados, que produziam pequenas tiragens de suas obras, alcançando modesta repercussão, por meio de propaganda “boca a boca” e da venda em pequenas livrarias ou em bancas de jornais. Estudos de Reimão (2012) e Maués (2013) ressaltam a relevância dessas pequenas editoras, como a Brasília-Rio, responsável pela primeira edição brasileira de Zero, de Ignacio de Loyola Brandão, a Artenova, que publicou Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, ou a AlfaÔmega, que publicou Em câmara lenta, de Renato Tapajós. Nesses e em outros casos, sabiam os editores que seus livros encontravam-se sob risco de apreensão ou eliminação de toda a tiragem, caso houvesse denúncia aos censores. Mesmo tendo sido isentadas da obrigatoriedade de censura prévia, obras literárias podiam ser censuradas em razão de denúncia, feita diretamente ao Ministério da Justiça por qualquer pessoa que considerasse o texto atentatório à moral e aos bons costumes. Foi essa a razão de censura a Feliz ano novo, que traz, em linguagem recoberta de agressividade e cinismo, mazelas da sociedade brasileira da época. No conto que dá título à coletânea, o leitor tem acesso a um assalto em mansão da Zona Sul carioca a partir do ponto de vista e da linguagem de um dos marginais que o cometem. Ao término, tendo roubado objetos e assinado pessoas, os protagonistas se dirigem tranquilamente á favela para recuperar algumas armas que haviam sido guardadas por uma senhora idosa aliada ao bando:


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.27, 2015 -Posso ver o material?, disse Zequinha.(…) A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse. […] Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá! –É antigo mas não falha, eu disse. Zequinha pegou a Magnum. Joia, joia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, para jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá. (FONSECA, 1989, p. 15–16)

Publicado em 1975, Feliz ano novo havia alcançado a vendagem de 12.000 exemplares quando foi proibido de circular em todo o território nacional e apreendido, com base em decreto assinado pelo ministro Armando Falcão (Reimão, p. 61–63), e só retornaria às prateleiras anos depois. Caso mais drástico, e único no gênero, foi o que ocorreu com Em câmara lenta, de Renato Tapajós. O autor havia participado da luta armada, fora condenado e, enquanto cumpria sua pena, escreveu essa obra que, embora o fato nem tenha sido bem percebido na ocasião, fazia uma amarga reflexão sobre o fracasso dos movimentos de esquerda no país. Publicado em 1977, o livro foi considerado pelas autoridades da época uma apologia ao crime e à guerrilha, o que levou Tapajós novamente à prisão. 1979, pós–anistia No final da década, cumpridos quinze anos de um governo militar que dava visíveis sinais de esgotamento, intensificaram-se as reivindicações da sociedade civil contra a censura e em prol da anistia aos presos e exilados. “O tema da anistia assumiu o protagonismo político”, no dizer de Villa (2014). Em junho de 1978 o governo suspendeu a censura prévia à imprensa escrita e em dezembro foram revogadas as penas de morte, prisão perpétua e banimento. Finalmente, em agosto de 1979 foi promulgada a lei da anistia. Os dois eventos – fim da censura e concessão da anistia trouxeram novas perspectivas para a publicação de literatura ficcional, num período em que o mercado livreiro encontrava-se consolidado.


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Vieram a público romances que tematizavam o período recente, como o autobiográfico O que é isso, companheiro?, em que Fernando Gabeira relata sua adesão à luta armada e a participação no sequestro do embaixador americano no Brasil, ocorrido em 1969. Seguiram-se, do mesmo autor, Crepúsculo do Macho (1980), Entradas e bandeiras e Hóspede da utopia (1981), completando seus depoimentos sobre prisão, tortura, período de exílio e, finalmente, o retorno ao Brasil e o afastamento em relação à utopia marxista. Essas obras compõem um conjunto do que a crítica literária reconhece como romances de depoimento ou de testemunho político. O que é isso, companheiro? pode ser considerado o romance que marcou o fim do período mais obscurantista da ditadura. Recém-chegado ao Brasil, após os anos de prisão, tortura e exílio, Fernando Gabeira tinha muito a dizer, e soube dizê-lo com leveza. Seu estilo jornalístico é, antes de tudo, o de um leitor bem formado, conhecedor do que havia de melhor em nossa literatura. Se não alcança riqueza estilística à altura dos nossos melhores escritores, tampouco pode ser nivelado aos relatos puramente denotativos que marcaram o gênero. Nem é romance-reportagem, na verdade, a categoria em que se pode inserir a narrativa de Gabeira. Ao prestar contas com o passado de uma geração, como afirma Pellegrini em Gavetas vazias, tornou-se um “livro– testemunho-documento-depoimento-memória” (1996, p. 35). Respeitoso em relação a seu próprio passado, o narrador-protagonista não deixa de refletir com distanciamento sobre os fatos vividos. A verdadeira tensão do livro, ainda segundo a autora de Gavetas vazias, “reside entre o tempo narrado e o tempo vivido” (id. p. 57), em uma narrativa em primeira pessoa que trata do tempo vivido e que oscila constantemente entre ficção e realidade, articulando história individual e história da nação. O registro realista com predomínio da violência destrutiva do regime pontua todo o enredo e compõe o núcleo temático em numerosas obras, além das já citadas Em câmara lenta e O que é isso, companheiro?. Merecem referência também Nas profundas do inferno, de Artur José Poerner (1979), que narra em primeira pessoa a violência e as arbitrariedades a que foi submetido, com


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prisão, tortura e exílio, ou ainda Os que bebem como os cães, de Francisco de Assis Almeida Brasil (1975), narrativa densa das opressões de que é vítima Jeremias, prisioneiro político que não resiste à violência e brutalidade da tortura física e psicológica, optando por suicidar-se. Mais recentemente, a temática de violência, repressão e tortura dos anos 60 e 70 continua presente em nossa produção ficcional. Dentre os relatos ficcionais com esse viés destacam-se Não falei, de Beatriz Bracher (2004) e em especial K., lançado por Bernardo Kucinski em 2011. Ambas as obras receberam premiações em concursos literários, o que se deve à sua elaboração textual, mas também à sensibilidade e verdade com que o mundo nelas é representado. Com base neste breve apanhado sobre circunstâncias de produção variadas, dentro de um mesmo período de dois decênios, pode-se concluir que as realidades instauradas pela ficção contrapõem-se ao conformismo e aos discursos oficiais, seja por meio da alegoria, seja em formatos quase biográficos, decorrentes de vinculação pessoal do autor com os fatos narrados, seja pela elaboração estética em suas numerosas possibilidades de realização. Tanto a concepção alegórica quanto o discurso realistanaturalista podem ser permeáveis à criação artística. De todo modo, a recorrência do período ditatorial como contexto temporal da narrativa ficcional brasileira constitui mais uma contribuição da literatura para a compreensão desse passado cujos efeitos estão longe de se esgotar. Referências ANGELO, Ivan. A festa. 8ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 1995. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. Rio: Codecri, 1979. CACASO [Antônio Carlos de Brito], “Jogos florais”. NEJAR, C. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Leya; Biblioteca Nacional, 2012. CANDIDO, A. “A nova narrativa” in A educação pela noite. 2a. ed. São Paulo: Ática, 1989.


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Crítica e tradução como poiesis: o projeto crítico-literário-antropofágico concretista Criticism and translation as poiesis: the critic-literaryanthropophagic concretist project Juliana Cristina SALVADORI* José Carlos FELIX** RESUMO: Este texto discute a proposta crítico-pedagógica posta pelo movimento de poesia concreta ressaltando como esta dialoga com outras propostas que acabaram por convergir para uma concepção da feitura literária, crítica e tradutória como poiesis em que os limites entre texto literário e crítico, texto original e texto-tradução, poeta e crítico, poeta e tradutor se apagam, seja porque, o crítico e o tradutório se tornam textos criativos dotados de potencial do texto literário; seja porque, na proposta concretista, o texto literário acaba por se tornar no espaço da crítica e da teoria. Nesses movimento entre textos, discutirmos a noção de poesis a partir de Agamben (2012), o papel da crítica e da tradução nas propostas modernas para atualização da potência significativa das obras literárias, bem como o projeto pedagógico-crítico-literário dos poetas concretos, articulado pelo conceito estruturante da antropofagia oswaldiana, concentrando-nos no projeto tradutório de Augusto de Campos relativo á obra de e.e. cummings. PALAVRAS-CHAVES: Poiesis. Antropofagia. Tradução Literária. Poesia Concreta. __________________________ * Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Departamento de Ciências Humanas, Campus IV – Colegiado de Letras/ Inglês. Jacobina – BA, Brasil. Pesquisadora pelo grupo Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora (UNEB). ** Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas/ UNICAMP. Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Departamento de Ciências Humanas, Campus IV – Colegiado de Letras/Inglês. Jacobina – BA, Brasil. Pesquisador pelo grupo Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora (UNEB).

ABSTRACT: This essay discusses the critical-pedagogical proposal established by concretist poetry movement focusing on how such movement dialogues with other proposals, which in turn end up converging to a conception of literary production, criticism and translation as poiesis in which the limits between the antinomies such as literary text and critic, original text and translation, poet and critic, poet and translator blur – that could be either because both the critic and the translation turn into creative texts endowed with the potential of the literary text or, in the concretist poetry, the literary text ends up converging both into the locus of criticism and theory. It is within this ongoing movement of texts that the essay examines the notion of poiesis departing from Agamben (2012), the role of criticism and translation found in those modernist projects aiming up-to-date the meaningful potential of literary works, as well as the pedagogical-critical-literary project of concretist poets,


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articulating by the oswaldian concept of anthropophagy to examine Augusto de Campos’ translation project regarding e. e. cummings’ oeuvre. KEYWORD: Poiesis. Anthropophagy. Literary Translation. Concretist poetry.

Pensamos que a questão da techné – que ora é traduzida como técnica, ora como arte, no sentido latino de ars, que fundamenta, até hoje, parte das divisões entre as áreas de saber nas universidades (Scientia et Ars) – é central para a discussão posta: o de pensar a crítica e a tradução como poiesis, desdobramentos e atualizações das potências inscritas nos textos literários. Isso porque, podemos dizer, a literatura moderna, em especial em sua manifestação aguda, as ditas vanguardas e neovanguardas, põe em xeque a tríade aristotélica poiesis – práxis – theoría, tríade esta que, grosso modo, distinguiria entre as ações de produção/criação de algo, isto é, a ação do homem sobre a natureza por meio de um instrumento e uma técnica; a ação na qual o fim é, em si mesmo, objetivo desta ação – práxis; e a theoría, da qual advém a noção do pensamento como contemplação para se chegar ao conhecimento – abstrato, generalizável. Agamben (2012) chama atenção em seu ensaio “Poíesis e práxis”, em O homem sem conteúdo (2012), para esta distinção entre poiesis e práxis, sendo a primeira pro-dução, isto é, produção na/de presença, que ultrapassa e não se reduz a ação que visa apenas a si mesma, ou seja, a práxis. Nesse sentido, Agamben volta para a distinção aristotélica entre a tríade theoría, poiesis e práxis/techné para fundamentar o argumento que desenvolve ao longo do livro acerca da afirmação sobre a morte da arte. Segundo o autor, a arte, de fato, morreu na modernidade, se a entendemos a partir da tríade citada. A arte, a obra de arte, antes poiesis, produção de presença e, logo, irrepetível, foi identificada na modernidade à práxis, pura ação, e, logo empobrecida porque cooptada pela técnica/ techné. Para fugir desta cooptação, a arte e os artistas se refugiam na reflexão do fazer e sua produção se recusa à observação/contemplação, acabando por se caracterizar pelo negativo, pelo “não conteúdo” – a obra se recusa a tornar energéia (ato) e se refugia no dýnamis (potência). A obra, portanto, fecha-se sobre si mesma, preservando as suas possibilidades, a sua potência. Ao leitor/receptor/


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espectador, é furtada a experiência catártica da arte pela contemplação. Contudo, e este é o pulo do gato – ou do tigre, diria Benjamin, do modernismo, herdeiro da proposta romântica: a obra, enclausurada em suas potencialidades pode e mesmo deve ser liberta, realizada, tornada energéia, por meio da crítica e da tradução. Estas, portanto, tornam-se estratégias e narrativas que viriam a desdobrar e, em certo sentido, fazer atuar a potência da obra, enclausurada, forçando a pro-dução, a poiesis – produção na/de presença, gesto irrepetível/irreprodutível. Ao empobrecimento da poiesis reduzida a práxis, os românticos, e posteriormente os modernistas, propõe/ opõe uma poiesis do desdobramento: texto criativo, crítica e tradução – convergem pelo domínio da techné, que é sempre a retomada e reelaboração de uma tradição, isto é, memória, para que a potencialidade latente da obra se transforme em enérgeia. Para que tal proposta seja levado a cabo, contudo, é preciso que o leitor, tornado co-produtor, seja educado para tanto, e esta é a pedra de toque de proposta pedagógica romântica e modernista, lição aprendida pelos poetas do movimento de poesia concreta – o leitor modelo para esta nova arte precisa ser educado para que possa cumprir efetivamente seu papel – o de leitor crítico e tradutor, leitor/autor que capaz de desenclausurar a potencialidade da obra. A crítica, como dito, assim como a tradução, desempenha o papel de desdobramento da obra e de sua potencialidade, trazendo consigo, também, a possibilidade de desdobramento ad infinitum – afinal, as controvérsias sobre as interpretações e superinterpretações críticas ocupam espaço privilegiado no desenho da historiografia literária moderna. Nesse sentido, a proposta pedagógica foi melhor levada a cabo pelo movimento de poesia concreta em seus textos menos programáticos e mais literários, incluindo-se aí sua poesia, particularmente nos projetos tradutórios, em que os poetas puderam ler e (super) interpretar outros poetas a partir de sua apropriação/ deglutição da tradição literária e de sua proposta poiética. Este se tornaria, portanto, um dos critérios para avaliar as leituras – críticas e traduções – de uma obra: a abrangência, isto é, a liberação das possibilidades que a obra guarda. Uma boa leitura – seja via crítica, seja via tradução – desdobraria a obra, mesmo que apenas em uma


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de suas possibilidades, sem, contudo, encobrir outros trajetos possíveis – daí mesmo a necessidade dessa arte com bula, com crítica, com tradução e com comentário para que sua potencialidade possa ser sempre e novamente explorada, desdobrada, expandida. É, portanto, a partir desta visada que abordamos o projeto tradutório de Augusto de Campos, projeto de longo prazo, a cobrir cerca de cinco décadas. As cinco edições organizadas pelo autor da poesia de cummings (10 poemas - 1960, 20 poemas - 1979, 40 poemas – 1980s e Poem(a)s – duas edições, sendo a última de 2011) mostram o desdobramento da potencialidade da obra cummingsiana, suas várias facetas e mesmo sua técnica: sem entender, por exemplo, a tmese – técnica de cisão/desmonte da palavra em seus afixos e radicais que são deslocados e/ou re-inseridos – em que não é possível “ler” sua poesia: o poeta, aliás, acredita que sua poiesis, sua produção de presença, só pode ser levada a cabo pelo esforço do leitor – que, em seu caso, teria como modelo um leitor-tipógrafo – em pro-duzir a poesia, poesia para fazedores, não para leitores apenas. Da tortografia a ironia cummingsiana, até as reelaborações da tradição poética formal e da lírica amorosa, as cinco edições se desdobram e desdobram o poeta, ampliando para o leitor brasileiro, leitor/ tipógrafo/tradutor aprendiz, o leque das possibilidades da poiesis cummingsiana, uma das referências no paideuma concreto, paideuma antropofágico, devorador seletivo de certa tradição reelaborada no movimento de poesia concreta, levando-nos a “somewhere i [we] have never travelled gladly beyond any experience”. Só a experiência, a práxis, já nos alerta cummings, não é suficiente – é preciso que a técnica nos resgate e que a leitura seja esse ato/gesto irrepetível, irreprodutível, que cada leitor deve sempre e novamente empreender sozinho – como Orfeu a sair do Hades e vislumbrar a evanescente Eurídice. À dimensão da experiência soma-se a dimensão pedagógica da arte: é preciso buscar o paideuma pessoal do artista se se quiser, de fato, compreender essa obra em meio a rede de relações/constelações que ela busca estabelecer com determinada tradição. Logo, a função pedagógica clara da arte: para apreender isso, essa obra, o leitor deverá aprender pelo caminho e parte do trabalho do artista que, por sua vez, está tanto na seleção deste paideuma quanto no modo, no como, ou seja, na forma, em que este figura na obra – sua charada.


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“Aprender muito pelo caminho” é, portanto, poderíamos dizer, o objetivo final da prescrição poundiana para os que aspiram ser poetas: para que o lema “make it new” se concretize, é preciso que o poeta, via experiência – sua e do outro – percorra e compreenda certo repertório de técnicas e temas a sua disposição; para que não se perca ou perca tempo, é necessário que ele se concentre no que ainda está vivo ou pode alimentar, nutrir seu impulso criador – morto, estagnado, só gera putrefação. Esse é o papel, então, dos demais poetas, de sua atividade criativa e crítica – escolher, por em circulação, o que há de mais vivo/revificante na tradição literária, via crítica, via tradução: o antropófago, afinal, só se alimenta do que está ainda vivo, pulsante, não do degradado. Não por acaso, em seu ensaio “Da tradução como criação e como crítica” (2006), de 1963, Haroldo de Campos, quando sistematiza e expõe a teorização – advinda de sua prática – do movimento de poesia concreta, recorre a Pound como referência: a dimensão de poiesis, de criação, que a atividade literária – seja na produção do texto criativo per se, seja via crítica e/ou tradução. Este é o ponto de convergência de inúmeros projetos culturais/literários, com pressupostos e alcance diversos, como o concretista. Em outras palavras, os poetas-críticos do concretismo buscaram, à maneira do modernismo anglo e hispano-americano, rearranjar o cânone de autores consagrados por meio dos parâmetros modernistas que instauram, em termos estéticos, a tradição da invenção e da novidade – a compreensão de originalidade se deslocando da origem para a execução – a noção do writer as arranger. A reinvenção de uma tradição do novo, por meio da crítica e da tradução, funciona como contextualização para as inovações concretistas. Vistas a partir desta lógica, tais inovações fundam uma nova tradição, fato que por si atesta, portanto, a capacidade que uma obra realmente inovadora tem de ultrapassar/transcender o lugar de onde emerge – e neste ponto se revela a questão centro-margem que perpassa a produção concretista. Tal lógica acena com a possibilidade de subverter esta hierarquia, pelo menos em termos culturais. Esta ânsia de superar a dicotomia centro-margem, de criar uma literatura autêntica e original, no sentido de não-derivada, marca o projeto concretista e a ambiguidade que o conceito de novo adquire dentro desta configuração. Pode-se dizer


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que essa incessante busca por uma outra poesia, uma outra forma, essa abertura e mesmo aclamação do experimental, conjugada a uma proposta estético-cultural de intuito marcadamente didático-pedagógico é o que aproxima os concretistas da trajetória poundiana. Para se pensar o lugar/tarefa da tradução no projeto concretista, é preciso ter em mente que o conceito de antropofagia é estruturante para a prática e reflexão tradutória dos Campos, uma das faces da empreitada pedagógico-literária dos concretistas. Ademais, é preciso se atentar para o fato de que o conceito de tradução se reconfigura ao longo da obra e da prática de ambos os irmãos citados, sendo que três textos são centrais para se mapear essa transformação do conceito de tradução no movimento de poesia concreta, sendo Haroldo de Campos o sistematizador desse pensar e fazer tradução: teorização e labor. Os três textos são “Da tradução como criação e como crítica”, publicado em 1963, já mencionado; “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, escrito em 1980 e publicado em 1981, em que a antropofagia como conceito operador e estruturante já está nitidamente colocada; e “Post Scriptum: transluciferação mefistofáustica”, tratado sobre Fausto – Deus e o diabo no Fausto de Goethe, também de 1980, em que o conceito de devoração, pensado quanto a questão historiográfica e crítica, é transmudado para tradução como vampirização – da transfusão de sangue de um texto a outro, trabalhando não mais com o conceito de tradução mas como de transtextualidade. Iniciemos com o primeiro dos ensaios citados. “Da tradução como criação e como crítica”, apresentado em 1962 publicado em 1963. Neste, HC parte de Fabri e Bense para pensar a informação estética: segundo o primeiro, “a essência da arte é a tautologia, pois as obras artísticas não significam, mas são” (2006, p. 32), sentença absoluta, nomeação edênica, em que é apagado aquela distância entre representação e representado, daí a impossibilidade da tradução; Bense, por sua vez, distingue categorias de informação – documentária, semântica e estética – apontando a fragilidade desta última: afinal, o total de informação estética é o total de sua realização, onde, por consequência, realização diversa implica informação estética diversa – logo, a questão central – como traduzir informação estética? É possível? Ambas as teses, assim como Jakobson em seu texto clássico sobre tradução, apontam para a intraduzibilidade de textos criativos, a princípio, a não ser que consideremos a tradução como um texto criativo,


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autônomo, que evoca o outro, em uma relação de alteridade em que se preserva a isomorfia na/da técnica: Admitida a tese de impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário de possibilidades, também em princípio, recriação desses textos. Teremos como quer Bense, em outra língua, uma informação estética, autônoma, mas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema (CAMPOS, 2006, p. 34). A partir desta discussão inicial, afirma HC: “Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca” (p. 34), pois não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim, tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele ‘que é de certa maneira similar àquilo que ele denota’) (CAMPOS, 2006, p. 35). Esta concepção da tradução como operação literária que se debruça sobre o arranjo do material linguístico é central para que possamos compreender o horizonte tradutório – que encampa tanto o projeto quanto a posição tradutória – a definir e configurar o projeto pedagógico-cultural concretista, em que a tradução desempenha papel articulador entre teorização e técnica, criação e labor. Além dos filósofos acima mencionados, HC cita Pound e sua teoria/prática de tradução, o seu conceito de criticism by translation, enfatizando o aspecto crítico e pedagógico da tarefa tradutória para que o lema poundiano – make it new – se torne possível: re-inventar o passado, aproveitar o que este pode oferecer de melhor para revivificar o presente, via tradução e crítica que são, a princípio, escolhas de leitura – ler como eleger, essa sendo a função e a implicação ética do poeta frente aos seus: Quando os poetas concretos de São Paulo se propuseram uma tarefa de reformulação da poética brasileira vigente, em cujo mérito não nos cabe entrar, mas que referimos aqui como algo que se postulou e que procurou levar à prática, deram-se, ao longo de suas atividades de teorização e de criação, uma continuada tarefa de tradução. Fazendo-o, tinham presente justamente a didática decorrente da teoria e da prática poundiana da tradução e suas idéias quanto à função crítica – e da crítica via tradução – como “nutrimento


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do impulso” criador. Dentro deste projeto, começaram por traduzir em equipe dezessete Cantares de Ezra Pound, procurando reverter ao mestre moderno da arte da tradução de poesia os critérios de tradução criativa que ele próprio defende em seus escritos. Em seguida, Augusto de Campos empreendeu a transposição para o português de dez dos mais complexos poemas de e. e. cummings, o grande poeta norte-americano recentemente falecido, poemas onde inclusive o dado “ótico” deveria ser como que traduzido, seja quanto à disposição tipográfica, seja quanto à fragmentação e às relações interlineares, o que implicava, por vezes, até mesmo a previsão do número de letras e das coincidências físicas (plásticas, acústicas) do material verbal a utilizar. (...) Deste ensaios, feitos antes de mais nada de intelleto d’amore, com devoção e amor, pudemos retirar, pelo menos, um prolongado trato com o assunto, que nos autoriza a ter ponto de vista firmado sobre ele. (CAMPOS, 2006, p. 42)

Este trecho assinala de forma indelével não somente o papel que a tradução desempenhou no projeto concretista de reformular a poética brasileira vigente, mas o próprio conceito de tradução como poiesis, como atividade – tarefa, para usar o termo empregado por HC e que nos remete a Benjamin – tanto criativa quanto crítica: daí a seleção dos textos poetas traduzidos – o tradutor, afinal, é o leitor ideal do texto, atento às suas nuanças e movimentos. Ademais, não por acaso usa-se como exemplo a tradução tanto de Pound quanto de cummings, ressaltando-se, inclusive, o desafio da poiesis cummingsiana, um fazer/criar pautado pelo movimento das coisas, elevada pelo tradutor que escolhe traduzir “dez dos mais complexos poemas” do poeta norte-americano. Essa defesa das escolhas tradutórias – tanto em termos de paideuma (quem e o quê se traduz) como em termos de técnicas e operações linguísticas (como se traduz) – levadas a cabo tanto por si quanto por seu irmão Augusto de Campos e demais integrantes do movimento de poesia concreta e desta tarefa hercúlea de pôr em circulação estes textos e autores, culmina na seguinte formulação, poundiana, por sinal: “[t]radução de poesia é antes de tudo, uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido” (p. 43) e, por isso, só pode ser crítica. Esse papel crítico do tradutor como aquele que revivifica – tanto a


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tradição quanto sua própria prática – e sua responsabilidade frente aos demais, fica claro neste trecho do ensaio: Os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a traduzir, mas sempre extremamente reveladora), um exercício de intelecção e, através dele, uma operação crítica ao vivo. Que disso tudo nasça uma pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição e de função, mas fecunda e estimulante em ação, é uma de suas mais importantes consequências. Ora, nenhum trabalho teórico sobre problemas de poesia, nenhuma estética da poesia será válida como pedagogia ativa se não exibir imediatamente os materiais a que se refere, os padrões criativos (textos) que tem em mira. Se a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica, será através dela que se poderão conduzir outros poetas, amadores e estudantes de literatura à penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens mais íntimos. (CAMPOS, 2006, p. 43-44)

A função pedagógica é ressaltada como parte integrante do papel do poeta que tem para com seus contemporâneos, que desempenhar o papel de leitor ideal, ensinando-os a ler por meio da imbricação/interpolação de textos e gêneros, crítica/poesia, crítica/tradução, poesia/ tradução/crítica. A interlocução entre textos e entre poetas, portanto é uma condição ideal, sine qua non, para que a tradução criativa de fato ocorra – preceito enfatizado tanto por Haroldo quanto por Augusto de Campos, especialmente no que tange às traduções feitas das obras e cummings, extensivamente documentada em seu processo de transcriação por meio da correspondência entre poetas – fonte/alvo. Ademais, acresce HC, no final do ensaio, à guisa de conclusão, mesmo sendo literária, a tradução opera no linguístico e seria necessário um laboratório de textos, em que perspectivas diversas como a do poeta e a do linguista, do amante e do acadêmico se coadunassem para iluminar o texto fonte, concentrando-se, sobremaneira, no processo tradutório – via laboratório, seminários – em que o produto seria discutido – sempre – criticamente, criativamente, a partir das soluções que oferece para determinadas questões tradutórias. Essa concepção de tradução como tarefa crítica e criativa, intrinsicamente interlocutória/dialógica, com foco na informação estética como uma forma de transposição criativa.


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“Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”, ensaio apresentado em Lisboa em Colóquio de Letras organizado pela Fundação Gulbekian, é republicado em 1986 em espanhol e em língua inglesa, esta útlima na Latin American Literary Review, 14/27. O título desta versão posterior, reformulada, é extremamente revelador, pois há uma mudança de foco, do Brasil para a Europa, permanecendo a antropofagia, contudo, no cerne da questão: “The Rule of Anthropophagy: Europe under the Sign of Devoration”. Há uma ênfase dupla no título do tropos da antropofagia já metáfora estruturante/articuladora da poiesis do então diluido movimento de poesia concreta: há tanto antropofagia quanto devoração, que, podemos inferir, substitui no título primeiro diálogo e diferença – devoração por diálogo, uma troca na lógica do movimento. Essa ênfase na antropofagia, ademais, é reforçada pela epígrafe que abre o ensaio, mantida em todas as versões e tomada amimo a Benjamin, pensador que contribuirá sobremaneira para a reconfiguração do projeto crítico e tradutório dos Campos, particularmente de HC, nesta outra fase. A epígrafe: “A polêmica verdadeira apodera-se de um livro tão amorosamente quanto um canibal que prepara para si uma criancinha” (apud CAMPOS, 2006, p. 231). A polêmica é o tom, uma estratégia argumentativa, incorporada a poiesis concretista. De saída, o autor aborda a questão do nacional versus universal. É interessante analisar o movimento argumentativo do texto que se volta a Oswald de Andrade e relê a antropofagia como o tropos do diálogo encetado, pela cultura brasileira, com esta dita literatura/cultura universal: Creio que, no Brasil, com a “Antropofagia” de Oswald de Andrade, nos anos 20 (retomada depois, em termos de uma cosmovisão filosófico-existencial, nos anos 50, na tese de A Crise da Filosofia Messiânica), tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal. A “Antropofagia” oswaldiana – já o formulei em outro lugar – é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem” (idealizado sob o modelo das virtudes europeias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, em Gonçalves Dias e José de Alencar, por


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exemplo), mas segundo o ponto de vista desabusado do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é “outro” merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um “polemista” (do grego pólemos = luta, combate), mas também um “antologista”: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento de suas próprias forças naturais. (CAMPOS, 2004, p. 234-5)

Um polemista e um antologista: essas são as qualidades enfatizadas para o canibal, que se pode argumentar, passa a ser a representação, o tropos, do intelectual/artista brasileiro e mesmo latino-americo ou pós-colonial, desde sempre. Em Oswald e na antropofagia, temos já o que HC denomina de “um elemento crítico”: o riso oswaldiano, sua irreverência, melhor dizendo, é o que nos salva, digamos assim, de sermos resgatados/ redescobertos, novamente, pelos europeus: O suíço [Cendrars] pensou que tinha redescoberto o Brasil e escaldado o amigo brasileiro numa panela de “fondu” cosmopolita. Oswald pediu-lhe emprestada a máquina fotográfica e retribuiu-lhe a gentileza comendo-a. Sutilezas do morubixaba Cunhambebe: “Lá vem a nossa comida pulando”, como diziam os tupinambás à vista do europeu Hans Staden (CAMPOS, 2004, p. 235). Na segunda seção do artigo, intitulada “Nacionalismo modal versus nacionalismo ontológico”, HC já inicia por se opor ao que ele chama de “modelo organicista-biológico da evolução de uma planta”, modelo este que, segundo ele, fundamenta a noção de nacionalismo “ontológico”. A este modelo, ele propõe um “nacionalismo modal, diferencial”, nacionalismo como movimento dialógico da diferença: o des-caráter, ao invés do caráter; a ruptura, em lugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva, antes que como homologação do homogêneo. O desenho historiográfico que tal concepção do nacional, bem como o objeto desta, é explicitado de forma ostensiva: “gráfico sísmico de fragmentação eversiva”


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(p. 237), afinal, antecipa o desenho das constelações, a ser proposto logo em seguida. Como objeto, esse movimento dialógico em que a busca do nacional, dessa qualidade definidora, é sempre diferida – postergada e diferenciada, pois composta da dialética entre o mesmo e o outro, o nativo e o europeu. A esse primeiro desenho, da constelação a qual pertence à poesia concreta – “a poesia concreta representa o momento de sincronia absoluta da literatura brasileira”, afirma categoricamente HC – outros se seguem, em uma proliferação vertiginosa de nomes e diálogos, latino-americanos e europeus, modernos e contemporâneos, barrocos e concretos, a ilustrar que “a diferença podia agora pensar-se como fundadora”, a emular aquele gesto inicial do Romantismo de Iena rumo a uma “poesia universal progressiva” fundada em um “policulturalismo combinatório e lúdico, [n]a transmutação paródica de sentido e valores, [n]a hibridização aberta e multilíngue” para alimentar e realimentar esse “almagesto barroquista: transenciclopédia carnavalizada dos novos bárbaros, onde tudo pode coexistir com tudo” (p. 254). Nesse novo desenho, (des)ordenado pela dialética marxilar – palavra-valise Marx + maxilar – oswaldiana, como nos diz HC, os artistas e intelectuais, esses bárbaros alexandrinos, vivem a sombra da biblioteca de Babel, metáfora que justapõe os mitos fundadores da crítica e da tradução em um só corpo: a biblioteca de Babel, afinal, é esse mítico local da confluência e da divergência via linguagem: biblioteca universal, a guardar tudo; diferença dialógica de saída, no impedimento das línguas babélicas. Esse vertiginoso e tumultuoso – além de povoado – final de ensaio, em que enlaçam-se nomes e linhagens das mais diversas ordens, é finalizado em tom triunfal e ameaçador, como portas de castelo/torre a ser invadido: Escrever, hoje, na América Latina, como na Europa, significará, cada vez mais, reescrever, remastigar. Hoi bárbaroi. Os vândalos, há muito, já cruzaram as fronteiras e tumultuam o senado e a ágora, como prenunciado no poema de Kaváfis. Que os escritores logocêntricos, que se imaginavam usufrutuários de uma orgulhosa koiné de mão única, preparem-se para a tarefa cada vez mais urgente de reconhecer e redevorar o tutano diferencial dos novos bárbaros da politópica e polifônica civilização planetária. Afinal, não custa repensar a advertência


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atualíssima do velho Goethe: (...) (“Toda literatura, fechada em si mesma, acaba por definhar no tédio, se não se deixa, acaba por definhar no tédio, se não se deixa renovadamente, vivificar por meio da contribuição estrangeira”). A alteridade é, antes de mais nada, um necessário exercício de autocrítica. (CAMPOS, H; 2004, p. 255)

Delineamos, brevemente, o percurso que a poiesis/ teoria tradutória haroldiana percorre até que se consolida. Ao longo deste artigo procuramos mostrar que Haroldo de Campos e seu conceito de tradução criativa, de transcriação, está no cerne do projeto concretista articulando crítica, poesia e tradução, borrando as delimitações de gênero entre o acadêmico, o literário e o da prática linguística. Ademais, é preciso entender como este conceito operador, o da tradução como criação – transcriação na palavra-valise de HC, tradução-arte, como a prefere denominar AC – se transfixa para poder empreender a leitura das traduções empreendidas pelos poetas concretos, particularmente em sua revista Código, em voga entre as décadas de 1970 e 1990. A literatura, mais especificamente a poesia, constitui a fronteira na qual as teorias linguísticas e tradutórias esbarram, porque é seu papel não cercear ou circundar a ambiguidade, a polissemia, mas a de fomentá-la, multiplicando o ruído e ensurdecendo o leitor, que é obrigado a parar sua leitura, treinada para ser fluida, e a atentar para o próprio ato de ler, para a materialidade do signo que não vem cindido para a poesia, mas inteiro, palavra-coisa, nomeação absoluta, adâmica. Finalidade dúplice, prática dialógica: a tradução refina, enriquece, vivifica a obra do autor-tradutor, que antropofagicamente – mas de modo seleto – se apropria do que há de melhor, de mais criativo – inventivo – tornando sua própria obra totem, monumento – transubstanciação arquitetônica dessa confluência espácio-temporal de autores e obras, uma paideuma edificada; a tradução, também, no que tem de mais assustador em sua antropofagia – o apagamento da fronteira entre o eu e o outro por meio de uma violência/ violação transgressora – engole a fronteira entre autor e tradutor, autor e leitor, original e tradução, original e cópia, literatura e não literatura (crítica, teoria, tradução): o espaço do texto é o espaço da devoração, do apagamento: o tradutor é um autor-leitor, leitor-crítico, leitor-autor – não há mais a diferença pensada como essencial entre o princípio criador,


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ativo, e o recriador – seja via tradução, seja via leitura – tido como passivo. O tradutor é sempre um leitor que inscreve sua leitura no corpo do texto, transmutando-o, portanto, em Outro. Do leitor, pede-se a mesma reciprocidade: leitorautor, que se inscreva no texto – via interpretação e crítica. Logo, a finalidade dupla: o refinamento desse autor-leitor, em sua obra, pela prática da escrita – a própria e a do outro – apagando as demarcações entre poesia, tradução, ensaio, e o refinamento do leitor-autor que precisa, então ser ensinado a ler estes outros textos, textos palimpsestos, para usar o conceito de Genette, textos-paideuma. Referências AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo?: e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. BENJAMIN, W. “A tarefa do tradutor”. Tradução de Fernando Camacho. IN: BRANCO, Lucia Castello. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. p.25-50. Disponível em: < http://www.letras.ufmg.br/vivavoz/data1/ arquivos/atarefadotradutor-site.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2011. BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligman-Silva. São Paulo: EDUSP / Iluminuras, 1993. CAMPOS, A.; CAMPOS, H. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. CAMPOS, A. “Poesia concreta, memória e desmemoria”. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez e Moraes, 1978. p. 55-70. CAMPOS, H. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Debates; 247). __________.Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. 4. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. __________. Oswald de Andrade – Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1967 (Nossos Clássicos 90). _________.“Post-scriptum: Transluciferação mefistofáusti ca”. In: Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 179-209.


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Caminhos da sobrevivência: como um romance desconhecido se tornou uma referência para a identidade intelectual amazônica Pathways for survival: how an unknown novel became a reference for the intellectual Amazonian identity Márcia ABREU* RESUMO: O texto analisa os caminhos que levaram um romance desconhecido (Simá – romance histórico do Alto Amazonas) a ocupar um papel relevante nos estudos de literatura amazônica e na identidade intelectual da região. Apresenta-se a narrativa e as condições de sua primeira circulação em 1857; descreve-se a situação em que se deu seu ressurgimento no campo das letras a partir da década de 1970; e tecem-se considerações sobre concepções de história literária nacional e regional, a fim de compreender o papel do livro na cultura erudita amazônica. PALAVRAS-CHAVES: Historiografia literária. Nacionalismo. Regionalismo. Amazônia. Romance. ABSTRACT: The article analyses the pathways that led an unknown novel (Simá – romance histórico do Alto Amazonas) to play an important role in Amazonian literature studies and in the intellectual identity of the region. It presents the narrative and the context in which it was first circulated in 1857; it describes the conditions of its rebirth in academia from the 1970s; and it takes into consideration ideas of national and regional literary history to try to understand the role that the book plays in Amazonian intellectual identity. KEW-WORDS: Literary historiography. Nationalism. Regionalism. Amazonia. Novel.

______________________ *Doutora em Teoria Literária. Professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp – Campinas – São Paulo. Bolsista CNPq. Trabalho desenvolvido com apoio da FAPESP

Certamente, poucos de meus leitores terão ouvido falar do livro Simá – romance histórico do Alto Amazonas. Menos ainda o terão lido. Este desconhecimento do livro que é tido como o “primeiro romance amazônico” foi entendido por alguns como uma forma de “silenciamento” produzido pela historiografia literária que o teria apagado da história da literatura brasileira. Serve de exemplo deste sentimento a afirmação de Amilton Queiroz e Simone Lima, em texto que tem o significativo título “Simá: o (não) lugar da ficção amazônica na historiografia do romance brasileiro”. Eles afirmam:


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O texto amazônida não aparece referido nos compêndios de Literatura Brasileira. A hipótese levantada é que houve o silenciamento/apagamento da memória literária quanto à existência desse imaginário que se revela através de uma ficção que encena, dentre outros aspectos, a cultura indígena como símbolo de brasilidade e mostra um autor como pertencente aos círculos da intelectualidade de sua época.(QUEIROZ e LIMA, 2008)

Efetivamente, as mais conhecidas histórias literárias brasileiras, como a de Antonio Cândido (Formação da Literatura Brasileira), a de Alfredo Bosi (História Concisa da Literatura Brasileira), ou a de Nelson Werneck Sodré (História da Literatura Brasileira), não fazem nenhuma referência a este romance, escrito por Lourenço da Silva Araújo Amazonas e publicado em 1857. Embora não haja qualquer referência ao autor ou ao livro na historiografia literária tradicional, a obra recebeu duas novas edições no século XXI, uma em 2003 e outra em 2011. Se isso não chega a constituir um sucesso de vendas, chama a atenção o fato de um livro passar 146 anos sem ser editado e, em seguida, receber duas edições em 8 anos. É este pequeno mistério que este texto tentará examinar: quais foram os caminhos que levaram uma obra desconhecida e praticamente desaparecida a voltar a circular e, mais do que isso, a ocupar um papel relevante tanto nos estudos de literatura amazônica quanto na identidade intelectual da região. Para desvendar este pequeno mistério, o texto está dividido em três partes: na primeira, há uma apresentação do romance e das condições de sua primeira circulação em 1857; em seguida, descreve-se a situação em que se deu seu ressurgimento no campo das letras a partir da década de 1970; e, finalmente, tecem-se considerações sobre concepções de história literária (nacional e regional), a fim de tentar entender o papel que Simá desempenha na identidade intelectual amazônica. 1 Simá no século XIX Assim como se sabe pouco sobre o romance Simá, poucas são as informações sobre seu autor, Lourenço da Silva Araújo Amazonas. Os escassos registros bibliográficos


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_____________________ 1 O texto de Joaquim Manuel de Macedo publicado no Anno Biographico foi reproduzido no jornal A Constituição: orgão do partido conservador, de 8 de novembro de 1877, na coluna “Brasileiros Illustres”, pp. 1 e 2. Em ambas as publicações o título do romance é erroneamente grafado como Limá – romance historico do Alto-Amazonas. 2 Segundo Silva, ali se publicou o primeiro folheto de cordel de que se tem notícia: Testamento que faz um macaco especificando suas gentilezas, gaitices, sagacidade, etc. Recife: Tipografia de F. C. Lemos e Silva, 1865. (SILVA, 2010

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disponíveis informam que ele nasceu na Bahia, em 1803, e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1815 para estudar na Academia da Marinha. Como militar, participou da Guerra do Prata, que opôs o Brasil e Uruguai à Argentina entre 1851 e 1852. Em sua bem sucedida carreira, chegou ao posto de capitão e recebeu três importantes honrarias (o hábito de S. Bento de Avis e as comendas da Imperial Ordem da Rosa, e da Ordem de Cristo por Portugal). Produziu três obras: Diccionario topographico, histórico, e descriptivo da comarca do Alto Amazonas (1852), Memória sobre uma marinheira de guerra para guarnição da armada imperial (série de três artigos publicados no Jornal do Commercio em fevereiro de 1854) e Simá, romance histórico do Alto Amazonas (1857). Estes trabalhos o credenciaram a se tornar membro do Instituto Histórico e Geográfico, instalado no Rio de Janeiro. (MACEDO, 1876)1. Seus dois livros foram publicados no Recife: o dicionário pela Typographia Commercial de Meira Henriques e o romance pela Tipografia de F. C. Lemos e Silva. O fato de os livros serem publicados por tipografias e não por editores (ou livreiros-editores, como era comum à época) sugere que ele próprio tenha custeado a impressão. Como meras tipografias, estes estabelecimentos não mereceram a atenção de pesquisadores, de modo que pouco ou nada se sabe sobre elas. Entretanto, pelo tipo de publicação saída de seus prelos, é possível supor que a tipografia de Meira Henrique fosse um estabelecimento de relativo porte, tendo em vista sua capacidade de publicar o dicionário de Araújo Amazonas, com 363 páginas, e um comentário sobre o “Código penal do Império do Brasil”, escrito por Cunha Azevedo, com 325 páginas. (AZEVEDO, 1851) Já a tipografia de Lemos e Silva abria suas portas para diversos tipos de publicação, inclusive folhetos populares.2 A qualidade de seu trabalho de composição não era das melhores, como se vê pelos vários erros tipográficos presentes na edição de Simá. Um dos raros exemplares da primeira edição do romance, conservado na Biblioteca Guita e José Mindlin, na Universidade de São Paulo, traz diversas correções de erros, como a ausência da indicação de nota de rodapé, troca de letras, troca de palavras, diligentemente corrigidas a tinta, muito provavelmente pela mão do autor, que seria um dos poucos capazes de perceber, por exemplo, o local exato em que faltava a indicação de uma nota


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(AMAZONAS, 1857). Mas as gralhas tipográficas não são o maior dos problemas do livro. Na verdade, seus grandes problemas são a concepção do enredo, o emprego da linguagem e o manejo da convenção romanesca. O romance narra a história de uma família de índios, composta pelo pai Marcos e sua filha Delfina. Eles vivem em 1738 seguindo o modo de vida europeu em uma rica propriedade, na qual são servidos por criados e na qual trabalham numerosos empregados. Tudo vai bem até que recebem em casa um mercador que embriaga pai e filha, ao mesmo tempo em que seus serviçais embebedam todos os empregados da propriedade. No dia seguinte, Delfina desperta e estranha o fato de não se lembrar de ter ido para seu quarto. Seu pai ainda dorme, assim como todos os empregados. Ela caminha pela propriedade e descobre que haviam sido roubados pelo mercador, que desaparecera junto com os empregados que o acompanhavam. Quando o pai acorda percebe que o mercador armara um embuste, deixando sobre a mesa um punhado de moedas e um suposto contrato de venda das mercadorias que ele havia roubado. Percebe também que a filha trazia no pescoço um cordão de outro do qual pendia um anel sobre o qual estava incrustada uma lâmina. A filha não sabe explicar como aquela corrente foi parar em seu pescoço. Para evitar o vexame de ter sido ludibriado, Marcos põe fogo na propriedade e desaparece com a filha. No capítulo seguinte, ambientado em 1748, apresenta-se Simá, uma menina de nove anos que caminha para sua primeira comunhão numa igreja carmelita. O narrador interrompe a narrativa para apresentar as tensões entre indígenas e portugueses, fomentada por acordos entre Portugal e Espanha acerca dos limites de suas posses americanas, e para enfatizar o contraste entre os pérfidos jesuítas e os confiáveis carmelitas. Anos se passam e a ação avança para 1754, quando Simá já tem 15 anos e está prometida em casamento ao índio Domingos. Ela é assediada por Régis, o mercador que roubara Marcos (que agora usa o nome de Severo). Régis tornara-se Diretor de Índios e tinha grande autoridade. Embora Marcos reconheça o mercador, mantém-se em silêncio, mesmo quando percebe que ele assedia Simá. Novo avanço temporal, conduz a narrativa para em 1757, quando Régis e seu comparsa Loiola, aliados dos jesuítas e dos espanhóis, insuflam os índios contra os portugueses. Severo


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___________________ ____________ 3 Para uma detalhada análise das inúmeras falhas de elaboração presentes em Simá, ver FURTADO, 2012.

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e Domingos são aliados dos portugueses e dos carmelitas e se opõem à rebelião armada pelos dois. Simultaneamente, o apaixonado Régis e seu amigo Loiola planejam sequestrar Simá. Como resultado da revolta, os indígenas atacam Lamalonga e a incendeiam. Simá é ferida e agoniza, quando Régis vê que ela traz no pescoço um cordão com um anel no qual há uma lâmina incrustada. Só então, Severo revela que Simá é, na verdade, sua neta (e não sua filha, como ela supunha até ali). Ela era filha de Régis, que havia abusado de sua mãe na noite em que embebedara a família. Simá morre em função de ferida que recebera, não sem antes perdoar seu pai Régis. Morrem também Régis e Marcos, pois o teto da igreja onde estavam desaba e eles são consumidos pelo fogo. Estaria aí o fundo histórico do romance, que teria por objetivo apresentar os verdadeiros motivos que levaram à revolução de Lamalonga de 1757, que, segundo Araújo Amazonas, era apresentada pela historiografia como sendo fruto da revolta de indígenas indignados pelo fato de um sacerdote ter pretendido separar um índio de sua amante. Esse enredo, que pode parecer relativamente consistente depois de grande esforço feito para ordená-lo, é atravessado por inúmeras digressões (acerca da história, sobre ocomportamento de portugueses e indígenas, sobre a ação de jesuítas e carmelitas), é atrapalhado pela intromissão de personagens sem serventia para o enredo, pelo desaparecimento de outros sem qualquer explicação, sem mencionar a duplicação de identidade de uma das personagens centrais (Marcos / Severo) e a falta de explicitação de elementos essenciais do enredo (o estupro de Delfina, a identidade de Simá, o silêncio de Marcos / Severo sobre essa identidade, o potencial incesto advindo da atração entre Régis e Simá). A compreensão do enredo é prejudicada também pela redação do texto, que torna impossível seguir frases intermináveis e incompletas, parágrafos que ocupam diversas páginas, diálogos em que não se pode saber quem fala. 3 Os contemporâneos parecem ter percebido esses problemas já que o romance permaneceu em sua primeira edição e não recebeu sequer um comentário crítico na época, ao contrário do que aconteceu com o dicionário elaborado por Araújo Amazonas, sobre o qual há comentários na imprensa e em livros. Da mesma forma, o dicionário está presente em diversos acervos, mas o mesmo não acontece com o romance que sequer estava presente na Biblioteca Pública do Amazonas, onde, entretanto, havia um exemplar do


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dicionário. 4 A única referência ao romance parece ter sido feita no Anno Biographico Brasileiro de 1876, em que se informa que dos “trabalhos e lidas [de Lourenço Araújo Amazonas], de seus exames e de suas lucubrações resultarão para a litteratura e historia da pátria: Lima [sic], romance histórico do Alto Amazonas, em que se aprecião principalmente algumas informações de costumes”. O erro no título (Lima por Simá) e a vaga menção ao retrato de costumes permitem supor que o responsável pelo verbete não conhecesse a obra ou que, se a conhecesse, não tivesse encontrado meios de elogiá-la. Já o dicionário é apresentado como “requissimo, precioso, e de consulta indispensável para quem quer que se ponha á estudar a historia e a chorographia da província do Amazonas” – o que dá bem a dimensão da insignificância do comentário sobre Simá. (MACEDO, 1876) Assim, tendo em vista a qualidade do texto e sua pequena difusão, não é difícil entender por que este romance permaneceu desconhecido. Mais difícil é entender por que voltou a ser publicado no século XXI e por que vendeu o suficiente para que dele se fizesse uma terceira edição pouco tempo depois. 2 Simá nos séculos XX e XXI A trajetória do romance Simá rumo à sua incorporação à história da literatura do Amazonas parece ter se iniciado com o livro Fatos da literatura amazonense, de Mário Ypiranga Monteiro, publicado em Manaus, em 1976, pela Universidade do Amazonas, onde Monteiro era professor. Ele apresenta o romance como sendo “o primeiro romance amazonense que valorizou ao mesmo tempo o espírito nativista e o choque das culturas européiaamazoníndia” (MONTEIRO, 1976, p. 38) e afirma que “cronologicamente” é “o primeiro romance ruralista amazonense” (MONTEIRO, 1976, p. 176). Diz ter tomado conhecimento da existência deste romance por meio de um artigo publicado no Jornal do Comercio de Manaus, de 15 de agosto de 1923, por Agnello Bittencourt, que teria sido “o primeiro a lembrar o romance após sessenta e seis anos de esquecimento” (MONTEIRO, 1976, p. 176). O livro permaneceu no olvido por mais 53 anos, até que Ypiranga Monteiro saiu no encalço da obra, “inacessível a muitas gerações de intelectuais” e encontrou apenas três

______________________________ 4 Cf. BRAGA, 1957. A Biblioteca foi fundada em 1870. Nesse momento, talvez o romance de Amazonas já tivesse se tornado uma raridade bibliográfica. Entretanto, a biblioteca adquiriu (ou ganhou) um exemplar do Dicionário Topográfico, publicado em data anterior à do romance


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exemplares: um em posse do dr. Artur Reis, que o teria tomado emprestado de Agnello Bittencourt, outro com o dr. Mário Barroso Ramos e o terceiro em posse da Biblioteca Nacional, onde Monteiro obteve uma fotocópia. O autor não faz longo comentário sobre a narrativa, mas deixa entrever seu desagrado ao dizer que Lourenço Amazonas “re-produziu uma série de histórias (fatos notórios), recoseu-as mais ou menos habilidosamente” e ao reclamar que o texto “se distancia do razoável pelo apego do autor ao depoimento individual, fazendo concorrência aberta às personagens” (MONTEIRO, 1976, p. 252) – o que talvez seja a maneira como Ypiranga percebeu as intermináveis falas do narrador sobre história e política. Entretanto, o que mais importa não parece ser a qualidade da obra e sim o fato de ela permitir erigir um marco inicial para prosa de ficção amazonense: “é a partir de Simá (1857) que a literatura ficcionista amazonense procura acomodar-se a uma orientação netamente regional”. (MONTEIRO, 1976, p. 181) Escrito ao mesmo tempo que o livro de Ypiranga Monteiro, o trabalho de Márcio Souza – A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo – foi publicado um ano depois, em 1977, em São Paulo, pela Editora Alfa Ômega. O romance de Lourenço Amazonas não é mencionado neste livro, o que demonstra sua raridade e desconhecimento nos meios intelectuais, como afirmara Ypiranga Monteiro. Embora nada diga sobre Simá, o livro de Márcio Souza também é importante para a compreensão da sobrevida do romance, pois ele contribuiu para a criação de um discurso a favor da “amazonidade”, que se perpetuará no final do século XX e entrará com força pelo XXI. Segundo ele, sobre a região pesaria uma “tradição de silêncio”, fruto da “insignificante participação do Amazonas na cultura nacional”, situação que cumpria reverter pela localização e estudo de obras literárias produzidas por amazonenses ou que tivessem a região como tema central. (SOUZA, 1977, pp. 27, 18 e XV). Estava dado o enquadramento necessário para a valorização do romance de Lourenço Amazonas. Cinco anos depois, em 1982, o livro ganhou centralidade ao ser tomado como objeto de estudo em Dissertação de Mestrado defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul por Neide Gondim, sob a orientação de Regina Zilberman


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(GONDIM, 1982). A interlocução com os trabalhos de Mário Ypiranga e Márcio Souza está evidente já nos paratextos da Dissertação – na introdução a autora agradece (GONDIM, 1982). A interlocução com os trabalhos de Mário Ypiranga e Márcio Souza está evidente já nos paratextos da Dissertação – na introdução a autora agradece o primeiro pela oferta de fotocópias (provavelmente do romance Simá, sem edição disponível no momento) e na epígrafe cita trecho de Márcio Souza. Intitulada A representação da conquista da Amazônia em Simá, Beiradão e Galvez e Imperador do Acre, a Dissertação pretende compreender “a história da conquista da Amazônia” (GONDIM, 1982, p.1) por meio do estudo dos três romances mencionados no título do trabalho. A autora reconhece que, no romance Simá, “o prazer do texto é anulado pelos períodos longos, a má colocação das vírgulas, os inúmeros erros tipográficos e o uso de vocábulos hoje anacrônicos o e mesmo incompreensíveis para o leitor contemporâneo” (GONDIM, 1982, p.70), mas o toma como objeto de análise tendo em vista considerá-lo como “o primeiro romance produzido na Amazônia” (GONDIM, 1982, p.2). A análise do texto ocupa um dos capítulos da Dissertação, que se centra na observação das relações entre índios e brancos com o propósito de desvendar o ponto de vista do romance sobre o sentido da colonização. Dez anos depois, a autora preparou uma tese de Doutorado sobre a região, intitulada A invenção da Amazônia, defendida em 1992, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação de Fernando Segolin (GONDIM, 1992). Neste trabalho, o romance Simá aparece apenas em uma breve nota, em que ocaráter primordial do romanceé novamente afirmado, acrescentando-se, entretanto, um elemento que faria fortuna nos estudos posteriores: o fato de ser “possivelmente o primeiro na história literária brasileira a ter uma índia como personagem-título” (GONDIM, 1994, p.215). Este seria, assim, não apenas o primeiro romance sobre a região, uma obra em que se criticam os colonizadores europeus, mas também uma narrativa em que uma mulher é tão relevante a ponto merecer dar título ao livro. A tese de Doutorado de Neide Gondim foi publicada em 1994, pela editora Marco Zero, de São Paulo, e a dissertação de Mestrado, em 1996, pela Universidade do Amazonas, onde ela era docente (GONDIM, 1996). A professora e seu trabalho tiveram relevância não apenas entre os intelectuais de Manaus, da Amazônia ou do Brasil. Por meio dela, ao menos dois estudos ingleses, preparados na década de 1980, abordaram o romance


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__________________________________ 5 Nos agradecimentos, Brookshaw menciona Neide Gondim e agradece Regina Zilberman (que, à época, orientava o trabalho de Gondim). 6 David Treece agradece a Neide Gondim “for bringing Simá to my attention and for providing me with a copy of her study of the novel” 7 Tradução livre de “a distinctly Amazonian product of very specific local experiences and conditions. Consequently, it does not figure in nineteenth-century histories of Brazilian literature and has only recently been examined in critical studies of Brazilian Indianism”. 8 Tradução livre de “the novel itself is imperfectly constructed and suffers from flaws in technique which one might expect from an author who was not by vocation a writer of creative fiction”. 9 Tradução de “regional identity

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Simá: o primeiro deles escrito por David Brookshaw (BROOKSHAW, 1988, pp. 129-134)5 e o segundo por David Treece (TREECE, 1987)6.Ambos citam explicitamente o contato com Neide Gondim e agradecem as informações e dados disponibilizados por ela. Certamente, não teriam conhecido o romance se ele não fosse objeto de estudo da dissertação de mestrado de Gondim, preparada ao mesmo tempo em que eles realizavam seus trabalhos. Ambos citam Ypiranga Monteiro e Márcio Souza e seguem a interpretação do primeiro sobre o lugar do livro na história da literatura. David Treece compartilha da ideia de que o livro é “uma produção genuinamente amazônica fruto de experiências e condições locais muito específicas. Consequentemente, não figura nas histórias da literatura brasileira do século XIX e apenas recentemente tem sido examinado em estudos críticos do indianismo brasileiro.” 7 David Brookshaw considera que "o romance em si é construído de forma imperfeita e sofre de falhas técnicas, o que se poderia esperar de um autor que não era por vocação um escritor de ficção" 8 (BROOKSHAW, 1988, p. 129). Como nos demais casos, seu propósito não é a análise da fatura romanesca e sim a consideração do romance como representação das relações entre índios e europeus, visando observar o processo de constituição de uma “identidade regional” 9(BROOKSHAW, 1988, p. 133). Assim, ainda sem leitores no Brasil e sem edição acessível, o romance e um certo modo de entendê-lo tornouse conhecido para os leitores de inglês por meio destes trabalhos, o primeiro publicado em 1988 e o segundo defendido como tese de doutorado em 1987 e publicado em 2000. O livro de Treece foi traduzido para o português em 2008 (TREECE, 2008), o que colaborou para chamar a atenção dos leitores brasileiros para o romance de Araújo Amazonas. Desta forma, o pequeno mistério da sobrevivência do romance Simá começa a ser elucidado. Mencionado por intelectuais de renome e objeto de estudo em Dissertações e Teses, o romance ganhou vitalidade na cultura intelectual. Mas, até o início do século XXI, estes intelectuais tratavam de um romance que ninguém podia ler. Faltava, portanto, recolocá-lo em circulação. Isso foi feito em 2003, quando a editora Valer, de Manaus, em associação com o Governo do Estado do Amazonas, reeditou o romance depois de 146 anos.


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Fundada em 1990, a Editora Valer tem propósitos semelhantes aos dos intelectuais que defendem a “amazonidade”. Segundo informação de sua página na internet, seu acervo concentra-se sobre produções da região e seu público alvo é o leitor amazonense. Ainda segundo sua página, a editora “relança as obras mais expressivas do pensamento amazônico, que estavam fora do mercado, e, ao mesmo tempo publica estudos sobre a realidade regional Amazônica”.10 Sendo também uma livraria, ela torna acessíveis aos leitores da cidade (e do mundo, por meio das vendas que faz pela internet) os livros que publica sobre a Amazônia, assim como os produzidos por outras editoras. A proximidade entre os intelectuais e a editora não é apenas ideológica. Parte deles é membro do conselho editorial e por ela publica seus livros. Ali foi editada a segunda edição do livro de Neide Gondim, A invenção da Amazônia (2007). Ali também saiu a terceira edição do livro de Márcio Souza, A Expressão Amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo (2009). Ambos faziam parte do conselho editorial que aprovou a publicação de Simá, como se vê nos créditos da edição de 2011 do romance. Esta edição traz uma série de paratextos que o inserem na discussão sobre a importância de se preservar esta narrativa do esquecimento promovido pela historiografia literária nacional. Assim principia a “Apresentação” de Neide Gondim ao romance, que se abre com a frase “a História da Literatura Brasileira não registra obras importantes do extremo norte do país, lançadas no século XIX. Essa omissão inicia-se com Simá ” (AMAZONAS, 2011, p. 7). O posfácio, assinado pelo escritor Tenório Telles, que se apresenta como “membro da Academia Amazonense de Letras”, bate na mesma tecla, reivindicando para o romance de Lourenço Amazonas o lugar de “precursor” da “reflexão sobre a questão da construção da identidade nacional” (AMAZONAS, 2011, p. 307). Na orelha do livro, o professor da Universidade Federal do Amazonas Giancarlo Stefani, insiste uma vez mais na tópica da ancestralidade: “o primeiro romance amazônico foi publicado oito anos antes da edição de Iracema, de José de Alencar”. Com uma tradição crítica interpretativa consolidada, com um lugar marcado como romance primordial e com uma edição moderna em circulação, a narrativa de Lourenço da Silva Araújo Amazonas despertou o interesse de diversos estudantes e professores

_________________ 10 “Os dois empreendimentos [a livraria, inaugurada em 1980] surgiram para atender as necessidades latentes dos leitores amazonenses. Atualmente a Editora Valer concentra em seu acervo mais de 600 títulos em livros sobre a Amazônia. A Valer também relança as obras mais expressivas do pensamento amazônico, que estavam fora do mercado, e, ao mesmo tempo publica estudos sobre a realidade regional Amazônica e permite e consolida o surgimento de novos autores.”https:www.facebook.co m/livrariavalermanaus/info? tab=page_info. Acesso em 14 de março de 2015.


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universitários que sobre ele preparam seus trabalhos (dissertações, artigos e comunicações em eventos) ou o mencionaram em capítulos introdutórios destinados a historiar a trajetória da ficção amazonense. Estes trabalhos não comentam os problemas de composição evidentes no romance, com exceção do estudo elaborado por Marlí Furtado, que compara O Guarani e Simá e conclui que este último desapareceu da vida cultural brasileira devido aos inúmeros problemas na fatura do texto. Os demais estudos repetem a tópica do apagamento da historiografia literária nacional, tomam o romance como marco inicial da literatura amazonense e destacam seu viés ideológico contrário à ação dos colonizadores europeus. Está desvendado, assim, o pequeno mistério da sobrevivência de Simá. Para que ele chegasse ao século XXI, foi preciso um problema (a constituição de uma identidade amazônica), um grupo de intelectuais, um sistema de pós graduação em expansão, o apoio do governo do Estado, bem como o interesse ideológico e comercial de uma editora e livraria. Mas, como todo bom mistério, este tem um lado obscuro: a ocultação de uma série de elementos que tornou possível criar a ideia de uma literatura amazônica e de um romance primordial. 3 Nação e região

___________ 11 Ver memoria.bn.br/ hdb/periodico.aspx

A concepção de que Simá seja o marco inicial da ficção amazonense e de que tenha sido injustamente excluído da história literária nacional apresenta vários problemas. A suposição de que Lourenço da Silva Araújo Amazonas fosse um legítimo porta voz da região e ali tivesse permanecido por longo tempo não resiste a uma pesquisa mais minuciosa. Nos últimos anos, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tem empreendido esforço em digitalizar periódicos publicados no Brasil desde o início do século XIX, tornando possível realizar buscas por palavra chave. 11 A consulta a esses periódicos permite um conhecimento sobre a trajetória de Lourenço Araújo Amazonas muito diverso do que está assentado na bibliografia disponível. As notícias sobre ele começam em 1825, quando Portugal ainda não havia reconhecido a independência do Brasil. Aos 22 anos, já era marinheiro e atuava como


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“voluntário d’armada nacional e imperial” navegando entre Pernambuco e Rio de Janeiro, segundo informa o Império do Brasil: Diário Fluminense, de 20 de junho de 1825. Dois anos depois, era segundo tenente do “corpo da armada nacional e Imperial”, segundo o Almanach do Rio de Janeiro, de 1827. Na década de 1830, passou praticamente todo o tempo embarcado, navegando, entre o Maranhão, a Bahia, o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro, como se vê em informes publicadas no jornal Império do Brasil. Diversas notícias publicadas pelo Diário do Rio de Janeiro, na década de 1840, avisam sobre sua presença no Rio de Janeiro e sobre a existência de correspondência à sua espera nos correios da cidade, onde possivelmente ele ou sua família morasse. A hipótese de que seus familiares vivessem no Rio de Janeiro se reforça com um informe, publicado em 20 de dezembro de 1845, no Diário do Rio de Janeiro, segundo a qual o estudante Joaquim da Silva Araújo Amazonas (talvez seu filho, talvez seu irmão) destacava-se na arte do desenho – “especial menção pelo grande adiantamento que mostrarão em dezenho, desempenhando a copia de bellos quadros”. Na década de 1840, o Diário do Rio de Janeiro noticia suas viagens a bordo do navio de guerra que fazia o trajeto Rio de Janeiro – Maceió – Pernambuco e, na mesma época, já como comandante de navio, o trecho Rio de Janeiro – Montevidéu. No início da década de 1850, sua família vivia na Bahia e para lá deveria ser enviado seu salário, segundo adverte o Diário do Rio de Janeiro de 21 de março de 1851. Nessa década, suas navegações concentramse entre o Rio de Janeiro e Lisboa, passando por Recife, Madeira e S. Vicente, conforme se vê em anúncios publicados no Diário de Pernambuco. Em 1855, provavelmente sua família se mudou para o Recife, onde deve ter montado casa, tendo em vista a notícia publicada no jornal Diário de Pernambuco, de 18 de janeiro de 1855, segundo a qual recebera “2 camas, 1 toalhete, 1 lavatorio, 2 moxos (sic), 1 piano, 2 caixões com objectos de cuzinha (sic)”, transportadas pelo “Hiate nacional Amelia, vindo da Bahia”. Nesse momento, ele já havia publicado seu Diccionari topographico, histórico, e descriptivo, sem que uma palavra houvesse na imprensa sobre sua estadia no Amazonas. O dicionário, entretanto, era conhecido e bem avaliado, já que foi um dos elementos levados em consideração pela Companhia de Vapores Pernambuco, que o convidou para ali trabalhar em 1854, afim de que ele


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organizasse “navegação de cabotagem desde Alagoas até o Ceará”, conforme O Liberal de Pernambuco, de 9 de outubro de 1854. Segundo o jornal, a escolha da Companhia havia sido acertada, uma vez que a publicação do dicionário “havia creado a reputação de escriptor” e colocara seu nome “no catalogo dos escriptores, que teem concorrido com o seu contingente para realçar a historia do Brasil.” A resposta de Lourenço Amazonas ao convite da Companhia de Navegação não foi imediata, pois ele encontrava-se “nessa época em Inglaterra em commissão do governo”, como se vê em relatório da Companhia de Vapores Pernambucana aos acionistas, publicado no Diário de Pernambuco, em 1 de fevereiro de 1855. Assim que obteve licença, regressou ao Brasil, tornando-se “encarregado de visitar os portos intermedios para o Sul, e os situados ao Norte”. A primeira referência na imprensa à sua estadia no norte do país aparece neste relatório da Companhia de Navegação, publicado em 1855, informando que já havia recebido relatos de Lourenço Amazonas sobre a situação dos portos do Sul e aguardava notícias sobre os demais portos, pois ele não os havia enviado, “por se achar ainda occupado na exploração dos portos do Norte”. No mesmo ano de 1855, recebeu da Companhia o convite para tornar-se gerente, tendo em vista “seu conhecimento da costa do Brasil, desde Santa Catharina até o Pará”, segundo documento da Companhia publicado no Diário de Pernambuco de 21 de fevereiro de 1855. Aceito o convite, Lourenço Amazonas instalou-se no Recife. Neste mesmo ano e cidade, fez publicar Simá, pela Tipografia de Lemos e Silva. Nesta época, a imprensa noticiava sua viagem para a corte e sua participação na oitava sessão do Instituto Histórico e Geográfico no Rio de Janeiro, “a que assistio S.M.I.”, segundo o Correio Mercantil, de 13 de setembro de 1857. Para esta reunião, a “presidência do Ceará” remeteu “alguns documentos sobre a história do Brasil”, João Manoel Pereira da Silva ofertou oito obras, e “foi também offerecido pelo Sr. Dr. Lourenço da Silva Araujo Amazonas um exemplar impresso do seu romance historico do Alto Amazonas, intitulado Simá”. Na mesma sessão, “o Sr. Dr. Filgueiras propõe [Lourenço Amazonas] para socio correspondente”, o que só foi aprovado em junho de 1859, em sessão que também contou com a “augusta presença de Sua Magestade Imperial”, como informou o Correio Mercantil de 5 de junho de 1859.


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No ano de 1858, ele voltou à carreira militar, como Capitão de mar e guerra, o que o conduziu a uma estadia no Havre (França), onde, no final do ano, participou na organização “um esplendido banquete aos principaes representantes da autoridade no Havre”, ao qual compareceram não apenas diversas autoridades, mas também “alguns brasileiros vindos de Paris”. Segundo matéria publicada no 4 de janeiro de 1859, no Correio Mercantil, o banquete, ocorrido em 2 de dezembro, homenageava o aniversário do imperador, que também foi celebrado em Paris, com diversas festas, “como se fôra um dia de gala ao mesmo tempo nacional e internacional”, já que 2 de dezembro era também o dia em que fora proclamado, em 1852, o Segundo Império Francês por Luís Bonaparte. Durante os festejos houve “toasts” ao imperador Pedro II e ao imperador Napoleão III e discursos feitos por autoridades francesas sobre “as magnificencias da natureza physica do Brasil” e votos “á sua prosperidade e á extensão de suas relações commerciaes comnosco” (franceses). De volta ao Brasil, segundo o Correio Mercantil de 5 de junho de 1861, Lourenço Amazonas tornou-se “inspector do arsenal de marinha da provincia da Bahia”, onde fixou residência até sua morte, em 1864. Quando morreu, aos 61 anos, deixou um manuscrito de um “Diccionario Tupico-Portuguez”, que foi oferecido por sua família ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A obra foi mal avaliada, em 1866, por Braz da Costa Rubim, parecerista encarregado pelo Instituto de examinar o manuscrito. Mas, anos depois, foi fortemente elogiado por Ramiz Galvão que o considerou “mais amplo do que o Diccionario da lingua tupy de Gonçalves Dias” (GALVÃO, 1881), o que não é pequeno elogio. Como se vê, a imprensa da época pouco informa sobre sua permanência na Amazônia, sobre as condições em que conheceu a região e sobre o período em que recolheu informações tanto para o Diccionario topographico, histórico, e descriptivo quanto para o romance Simá – ainda que a imprensa informe sobre coisas tão insignificantes quanto o desempenho escolar de um parente ou o local para onde deveria ser enviado seu ordenado. Na primeira vez em que seu nome foi mencionado na imprensa, em 1825, ele já era referido como Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. Não se sabe se ele adotou esse


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__________________________ 12 Ver, por exemplo, interessante anúncio publicado na Gazeta Pernambucana, de 27 de novembro de 1822, que indica os novos nomes adotados, como, por exemplo, “Evaristo Teixeira de Sousa previne ao público que não será mais a sua firma Teixeira de Sousa, mas sim Evaristo José Gabiroga [sic]”; “O Padre João Evangelista Leal, como já preveniu o público, acrescentou ao seu nome o de Piriquito [sic]” etc. Gazeta Pernambucana, de 27 de novembro de 1822. Apud. LOURENÇO, 2010. O tema da mudança de sobrenomes foi trato também por AlenCastro, 1999.

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sobrenome no momento da independência, como o fizeram tantos outros que tomaram para si nomes indígenas, designações de árvores ou de pássaros brasileiros. 12 Se o fez talvez sua família fosse de origem amazônica ou talvez ele já admirasse a região, mas certamente não foi uma “homenagem daquele estudioso à terra onde desempenhou funções oficiais”, como supôs Mário Ypiranga Monteiro (MONTEIRO, 1976, p. 177), já que, em 1825, ele era um jovem de apenas 22 anos e atuava como “voluntário d’armada nacional e imperial”. Sua vinculação principal parece ser com a Bahia e com Pernambuco, onde fixou residência por longos períodos. Entretanto, como membro da Marinha, passou a maior parte da vida navegando pela costa do Brasil, fez viagens a Portugal, Inglaterra e França, na maior parte do tempo atuando em “commissão do governo”. Sua preocupação, como era próprio à sua época, parece ser nacional e não regional. Assim é que esteve envolvido em iniciativas militares e comerciais para consolidação do território brasileiro, como em seu envolvimento na Guerra do Prata e em sua atuação para estabelecer a navegabilidade costeira de norte a sul, “desde Santa Catharina até o Pará”. Realizou esforços para consolidação do conhecimento sobre o país e do sentimento de nacionalidade, sendo valorizado por seus contemporâneos como alguém que contribuiu para “realçar a historia do Brasil”. Sua preocupação com a nação é evidente também em seu interesse em atuar como correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em Pernambuco e no Mato Grosso, bem em trabalhar junto do corpo diplomático brasileiro em Paris na organização de festejo comemorativo do dia natalício do imperador. No contexto de todas essas atividades é que deve ser entendida sua preocupação em publicar trabalhos sobre indígenas do Norte. O fato de ele ter oferecido o romance Simá ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na presença do Imperador, poucos meses após sua publicação, permite supor que ele acreditava que aquela obra contribuiria para a consolidar a nação e não uma de suas regiões. Assim foi compreendido seu esforço por parte dos homens de letras de sua época, como se vê em matéria publicada pela Revista Guanabara de 2 de dezembro de 1854, na qual o autor comenta:


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“é assim, com o trabalho de muitos homens, com o seu amor pela pátria, que as nações chegam a possuir uma literatura, que a nossa ainda está muito verde (...) Somos ainda colonos da França, e mais depressa queremos ler as impressões de qualquer dos seus proscritos, ou um romance da cética, perigosa e talentosa Sand, do que o novo Dicionário do Alto Amazonas, ou a Revista do Instituto Histórico.” (Apud ANDRADE, 2008, p. 262)

A publicação do Diccionario topographico, histórico, e descriptivo (e, possivelmente a do romance Simá, que ocorreria anos depois) foi entendida como contribuição para a literatura brasileira, cujo maior adversário, no momento, parecia ser a literatura francesa, que tanto interesse despertava. A produção de Lourenço Amazonas era conhecida pelos principais homens de letras da época, que se reuniam no IHGB ou em torno a publicações como a Revista Guanabara. Portanto, seu romance deixou de ser incorporado às histórias literárias nacionais, muito provavelmente, em função dos graves problemas de elaboração de que padece e não por um deliberado silenciamento das produções do Norte. Pelo mesmo motivo, como bem observa Marlí Furtado, não passou da primeira edição, tendo tido que aguardar o aparecimento de questões regionalistas, surgidas quando a ideia de nação e o sentimento nacional estavam já consolidados, para voltar aos prelos e às prateleiras das livrarias. Conclusão Transformar o romance Simá em marco inicial da literatura amazonense participa da mesma lógica que erigiu a carta de Caminha em marco fundador da literatura brasileira. Assim como Lourenço Amazonas nada tinha de amazonense, Caminha evidentemente não era brasileiro e pouco viu do Brasil, mas a publicação de sua carta – que, efetivamente, só ocorreu em 1817 (CASAL, 1817) – teve papel importante na criação da ideia de que a nação brasileira e sua literatura começaram em 1500. Da mesma forma, as iniciativas realizadas no século XX para publicação e venda de livros de temática amazonense, com apoio do governo do Estado, equivalem ao que foi feito por editoras e revistas do Rio de Janeiro, no século XIX,


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que favoreceram a publicação de obras escritas por brasileiros e com temática nacional, algumas das quais sob os auspícios do imperador – que patrocinou, entre outros, Gonçalves Dias e Gonçalves de Magalhães, cuja missão era transformar a figura do índio em símbolo do país. No século XIX, era preciso criar uma nacionalidade brasileira, para a qual a existência de uma literatura e uma história próprias era essencial. Na segunda metade do século XX, era preciso criar uma identidade amazônica e reivindicar sua importância no cenário nacional; para isso era essencial forjar uma história e uma literatura próprias. Hoje já podemos questionar essas construções e prescindir de ficções historiográficas sobre a origem da literatura, seja ela nacional, seja regional. Podemos entender que o livro de Lourenço Amazonas não teve importância nem para a cultura nacional nem para a regional. E podemos deixar de ler Simá, um romance ruim como poucos. Referências ALENCASTRO, Luis Felipe de. “Vida privada e ordem privada no Império”. História da Vida Privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia das Letras, 1999. AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Diccionario topographico, histórico, e descriptivo da comarca do Alto Amazonas. Recife: Typographia Commercial de Meira Henriques, 1852. Disponível em http://babel.hathitrust.org/cgi/ptid=coo.31924 020008623;view= 1up;seq= 287;size= 75. Acesso em 01 de abril de 2015. AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. “Memória sobre uma marinhagem de guerra para guarnição da armada imperial”. Jornal do Commercio, fevereiro de 1854. AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Simá –romance histórico do alto amazonas. Manaus: Editora Valer, 3a edição, 2011. AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Simá – romance histórico do alto amazonas. Manaus: Editora Valer, 2a edição, 2003. AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Simá – romance histórico do alto amazonas. Recife: Tipografia de F. C. Lemos e Silva, 1857.


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Re(leitura) do romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: o aborto voluntário de G. H. simbolizado na morte de uma barata1 Rereading the novel Passion According to GH, Clarice Lispector: voluntary abortion GH symbolized the death of a cockroach Maria de Fatima do NASCIMENTO* RESUMO: Este trabalho propõe uma revisão das leituras consagradas do romance de Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. (1964), cuja protagonista, embora os estudiosos não tenham atentado para isso, interrompeu voluntariamente, em tempos passados, uma gravidez indesejada. Anos depois, ao matar, com requinte de crueldade, uma barata na porta de um guarda-roupa, a questão do aborto induzido vem à tona e G.H. passa a relatar o acontecido, encarado agora por ela como um crime de assassinato. G.H. compara a morte da barata à de seu filho/embrião, fato que, no presente, passou a atormentá-la. Por isso, a protagonista sente necessidade de desabafar com alguém. Tal narrativa clariciana desenvolve-se inteiramente de maneira fragmentária, o que talvez tenha dificultado ao cânone crítico a percepção do fato aqui apontado. PALAVRAS–CHAVE: Revisão crítica. A paixão segundo G. H.. Romance brasileiro. Aborto. Clarice Lispector.

_______________________________ 1 Este artigo é um desdobramento de estudos desenvolvidos para minha Tese de Doutorado, defendida na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2012 e intitulada Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1969). * Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Pará (UFPA).

ABSTRACT: The objective of this work is to review the acclaimed reading of the novel “Passion per G. H.” (1964), by Clarice Lispector. The protagonist, although not noticed by scholars, had an unwanted pregnancy voluntarily interrupted in the past. Years later, the induced abortion matter surfaces when the protagonist cruelly kills a cockroach on the door of a wardrobe. G. H. starts, then, to relate the matter, which she now sees as murder. G.H. compares the cockroach death to death of her child / embryo. This has started tormenting her and that’s why she feels the need to talk about it to someone. The narrative is fragmented which might have made it difficult for the critical canon to perceive the fact. KEYWORDS: critical review. The Passion According to G. H.. Brazilian novel. abortion. Clarice Lispector.


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A paixão segundo G. H., quinto romance de Clarice Lispector, narrado em primeira pessoa pela protagonista, denominada apenas com as iniciais de seu nome, é constituído de 33 fragmentos, espécies de capítulos/ fragmentos, relativamente curtos. Observa-se que, em cada novo fragmento/capítulo, numa prática do “leixa-pren” (soltaapanha) (CAMPEDELLI e ABDALA JR, 1981, p. 42), é retomado o último parágrafo, ou última frase, ou expressão do fragmento/capítulo anterior. Tal obra é considerada, por um dos principais estudiosos da escritora brasileira, Benedito Nunes (1988, p. XXIV), como: “O livro maior de Clarice Lispector”, não só porque “amplia os aspectos singulares de sua obra”, mas também porque, na observação do crítico, é “um dos textos mais originais da moderna ficção brasileira”. Benedito Nunes (1965, p. 3), desde seu primeiro artigo, “A náusea em Clarice Lispector”, de 24 de julho de 1965, publicado no jornal O Estado de São Paulo, observa que a autora de Laços de família aborda temas que se inserem “no contexto da filosofia da existência”, mais precisamente, o existencialismo proposto por Jean-Paul Sartre. Após este artigo de Benedito Nunes, verifica-se que tal leitura é reiterada por ele em dois livros: O mundo de Clarice Lispector (ensaio) (1966) e O dorso do tigre (1969). E, de certo modo, com exceção de Luiz Costa Lima (1966, p. 110-111), que, em crítica coetânea, diverge daquela análise no que tange à náusea sartriana, a leitura que Nunes faz da obra clariciana, na época, continua sendo compartilhada por muitos estudiosos até a atualidade. Na presente análise, demonstra-se outra possibilidade de leitura do romance de Clarice Lispector A paixão segundo G. H. (1964)2, que, pela sutileza de sua estrutura fragmentária, encobre em seu enredo um “assassinato”, ou seja, o abortamento voluntário praticado pela protagonista G. H., que posteriormente o encara como “crime”, isto é, como uma transgressão religiosa e ética, lutando interiormente em busca das palavras certas para narrar sua história. Nos seres ficcionais claricianos, o impulso homicida é recorrente. Geralmente, eles odeiam alguém e sentem vontade de matá-lo, até por motivos fúteis, como é o caso de uma personagem sem nome, do conto “O búfalo”, de Laços de família (1960), “a mulher de casaco marrom”, que

__________________ 2 Doravante “APSGH”. Todas as citações são extraídas de: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


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deseja matar um homem apenas por não ser amada por ele. Em outros casos, há a simulação de um homicídio, como ocorre com Martim, protagonista de A maçã no escuro (1961). Contudo, o aborto feito por G. H., conforme sua visão religiosa, especificamente seguindo o 6ª mandamento bíblico, “Não matarás”, configura um “assassinato”, o qual, não obstante tantos outros verificados em obras da literatura brasileira, a exemplo de “O enfermeiro”, conto de Várias histórias (1896), de Machado de Assis; Angústia (1936), de Graciliano Ramos, e Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, parece apresentar um agravante para ela, já que resulta na morte de um filho, provocada pela própria mãe, aquela que, segundo uma tradição antiga, deve preservar a vida. Berta Waldman, em Clarice Lispector: a paixão segundo C. L., traz o ensaio “’Não matarás’: um esboço da figuração do “crime” em Clarice Lispector”, crime este aqui entendido, no trucidamento da barata, ou seja, segundo o referido texto: Em verdade, G. H. (como também Ofélia) não comete crime, pois matar uma barata não se constitui como tal. Mas, ao se aproximar tanto da barata, ela se separa dos homens e de suas leis que permitem que se mate uma barata, pondo-se diante de outra lei onde seu impulso de matar o inseto pode ser chamado crime, pois matar a barata é reavivar, em G. H., seu impulso assassino mais fundo voltado contra a matéria viva (WALDMAN, 1992, p. 164-165).

Embora reconhecendo o impulso homicida da protagonista clariciana, Waldman também não percebe o aborto praticado por G. H simbolizado na morte da barata. No entanto, a própria protagonista, conforme se demonstra adiante, revela o fato no romance. De onde o trucidamento da barata por G. H. não ser a questão principal que a protagonista deseja exprimir. Por simbiose, a personagem revela o aborto em seu discurso sobre o inseto, em um esforço “sobre-humano” para contar sua história, uma história-tabu e de dor, ou seja, a confissão de ter feito um abortamento voluntário, que fica, por ela, muito tempo esquecido. Todavia, ao entrar no quarto de empregada de seu apartamento “semiluxuoso”, para limpá-lo, em uma cobertura onde vive sozinha, após Janair, sua última


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doméstica, ter deixado o emprego no dia anterior, a protagonista vê uma “barata grossa” e a mata. Neste gesto de trucidamento do inseto, o aborto induzido vem à tona. G. H. só vê a barata no quarto fragmento/capítulo da obra. Porém, desde o primeiro, ela vai recordando o ocorrido, disseminando pistas do aborto, dando mesmo a impressão de que ela está falando somente da barata. No primeiro fragmento/capítulo, G. H. começa sua confissão do aborto, como que tentando captar o acontecido; “confessar para compreender”3, redizendo o interdito, um dia após ter visto a barata que suscita todo um passado que até então ela guarda em segredo. Mas, quando ela mata o inseto, o que, pelo seu relato, só acontece no fragmento/ capítulo seis (APSGH, 1998, p. 53), relembra com sofrimento o aborto provocado e com ele uma experiência a dois, bem como a vida livre que passa a manter depois de uma separação e após a interrupção da gravidez. G. H., ao contar sua história, vai entremeando, de forma fragmentária, muitas outras histórias sobre sua vida, conforme se pode perceber desde o primeiro parágrafo do livro, em que G. H. demonstra o conflito vivido, desejando entender o ocorrido, e compartilhar seu sofrimento com um interlocutor, isto é, confessar o aborto por ela praticado, em busca da redenção. Então, compara o passado com o presente e vê sua vida anterior como que organizada. Na sequência de seu relato, encontra-se a referência a uma convivência a dois (terceira perna), que a “plantava no chão”, e que ela chama “organização” (a fase antes da separação conjugal e do abortamento do filho). Já “desorganização profunda” é como ela denomina a fase da separação e do aborto. G. H. insistentemente quer contar a alguém sobre o aborto, mas, nesse reconto, vai retardando informações a partir de muitas repetições e indagações, em que a discussão do abortamento induzido é relacionada a questões como infância, costumes, tradições, criação verbal, moral, religião e a outros temas, tanto metafísicos quanto mundanos, da vida dela mesma, numa técnica narrativa pontuada por muitas dúvidas da protagonista; por afirmações e negações simultâneas que desnorteiam o leitor. O aborto, tema matricial do romance A paixão segundo G. H., é confessado com minúcias pela protagonista, em quem a culpa, o sofrimento, a angústia e a

__________________ 3 Expressão de Valéria de Marco, empregada em uma análise sua do romance Lucíola (1862), de José de Alencar, 1999, p. 7.


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náusea parecem não refletir somente “o sentimento da existência humana”, ou seja, “a descoberta da liberdade desconfortante do ‘ser-no-mundo’”, ou noutras palavras, o existencialismo pregado por Sartre e apontado neste romance por Benedito Nunes. Na verdade, todos os sentimentos experimentados por G. H. refletem, também, a consciência de ela ter praticado um aborto voluntário, ato que na juventude pareceu normal para a personagem, porém depois, já adulta, ela verifica não ter estado preparada para fazer o que fez, isto é, viver em total liberdade, estando, portanto, a sua angústia e náusea relacionadas principalmente ao abortamento do filho. Por sua vez, tudo isto está intimamente ligado às questões religiosas e morais da protagonista. Neste contexto literário canônico-nacional, existem outros romances que enfocam casos efetivos de aborto, como Lucíola (1862), de José de Alencar; Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, e O mulato (1881), de Aluísio Azevedo; ou tratam de ameaças de aborto, como Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis. As protagonistas destas obras– talvez com exceção da amante de Brás Cubas, Virgília – são acometidas de abortamento involuntário. Já no caso de G. H., trata-se de uma interrupção de gravidez voluntária e com acompanhamento médico. Ela conta que, na época, pensava em não interromper a gravidez, mas ao final decidiu fazê-lo. Todavia, anos depois, mostra-se como que arrependida. Assim sendo, o início do romance é importante para compreender o que G. H. conta quando sugere seu relacionamento amoroso, que a coloca num lugar socialmente confortável. Neste, ela não precisa pensar e resolver tudo sozinha, como agora no presente da história, em que ela está solteira e só. Por isso, sente medo e precisa de coragem para contar a interrupção induzida de gravidez, a qual no passado ela acreditava ser uma decisão acertada para sua vida. Porém, agora no presente, tal ato se revela como problema de consciência, trazendo-lhe muita tristeza e receio de narrar a vida que é rememorada a partir da visão da barata e não é fácil de ser contada. G. H., ao mesmo tempo em que vai construindo seu discurso em torno da barata, revela sua vida meio que em ziguezague, aparentemente com medo de contar sua história, porque ela sabe que pode ser incompreendida. Tal protagonista, como que num ato seu de contrição, prepara o


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leitor para o momento da confissão do aborto por ela concretizado, demonstrando que necessita de um esforço para dizê-lo. Para tanto, precisa que alguém segure sua mão. Então, simula um relato em forma de carta, conforme se pronuncia: “Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém” (LISPECTOR, 1998, p. 15). O fato de G. H. só se referir à barata depois de muitas páginas do início do livro leva o leitor a pensar que ela está falando apenas do inseto, mas, quando é chegado o sexto fragmente/capítulo, percebe-se que a rememoração está relacionada com tudo o que ela vem confessando ao longo de seu discurso: Não compreendo o que vi. E nem mesmo sei se vi, já que meus olhos terminaram não se diferenciando da coisa vista. Só por um inesperado tremor de linhas, só por uma anomalia na continuidade ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido da vida. É proibido dizer o nome da vida. E eu quase disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de minha época (LISPECTOR, 1998, p. 15-16).

G. H., na sequência, declara: “...Só que agora,agora sei de um segredo. Que já estou esquecendo...” Ora, este segredo não é a morte da barata, que está explícita em seu discurso a partir do fragmento/capítulo quinto, e que ocorre no dia anterior ao momento em que ela relata o fato. Este segredo é o aborto, o qual ela reconhece que está esquecendo, porque rememorar é sofrer, percebendo que pode ser julgada negativamente: Para sabê-lo de novo, precisaria agora re-morrer. E saber será o assassinato de minha alma humana. E não quero, não quero. O que poderia me salvar seria uma entrega à nova ignorância, isso seria possível. Pois ao mesmo tempo que luto por saber, a minha nova ignorância, que é o esquecimento, tornou-se sagrada. Sou a vestal de um segredo que não sei mais qual foi. E sirvo ao perigo esquecido. Soube o que não pude entender, minha boca ficou selada, e só me restaram os fragmentos incompreensíveis de um ritual. [...] Não quero que me seja explicado o que de novo precisaria da validação humana para ser interpretado (LISPECTOR, 1998, p. 16).


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A personagem G, H. reconhece que, mesmo com toda a liberdade que ela possa ter, a sociedade na qual vive é conservadora, tem modelos ou parâmetros religiosos e sociais para a chamada boa convivência entre as pessoas. Então, percebe que aquilo por ela feito não é aceito pela coletividade da qual faz parte. Mas o principal problema é ela mesma, que precisa compreender por que fez o aborto. Ela, como mãe, podia optar pela vida, e não o fez. É disso que a princípio ela não consegue se perdoar. Porém, como o romance é narrado em primeira pessoa, tendo G. H. como protagonista, o leitor deve ficar atento, porque esta personagem-narradora pode, com seus argumentos, procurar envolvê-lo, já que ela agora se culpa e quer o perdão. Veja-se o que ela diz sobre si mesma: Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. [...]. Até que por horas desisti. E, por Deus, tive o que eu não gostaria. Não foi ao longo de um vale fluvial que andei – eu sempre pensara que encontrar seria fértil e úmido como vales fluviais. Não contava que fosse esse grande desencontro (LISPECTOR, 1998, p. 17).

Esta passagem do relato de G. H. tem sua complementação no décimo quarto fragmento/capítulo (p. 92), quando ela à noite se questiona sobre o aborto que vai fazer e que, segundo ela, já está resolvido por outra pessoa. Sobre tal questão, ainda no primeiro fragmento/capítulo, G. H. faz a seguinte confissão: [...] Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isso, eu bem queria ter visto outra coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil. Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão (LISPECTOR, 1998, p. 17).

A protagonista do romance em foco adia sua confissão com longas discussões que revelam sua situação pessoal e quem ela é. Portanto, tem-se o antes e o depois, o que é o presente desa personagem, fato observado no segundo fragmento/capítulo, em que G. H está à mesa do café, sozinha, e se esforça para esboçar uma espécie


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de memorial dela própria para poder compreender quem ela é. Depois vai se distanciando do presente próximo para falar mais amiúde de como ela própria se vê e, desta visão de si mesma, se refere a um relacionamento amoroso dissolvido. A personagem G. H insiste em afirmar ser tranquila, realizada, a ponto de ter seu nome grafado nas valises e que consegue forjar em torno de si uma reputação ilibada, “uma máscara ou persona”, quando diz: “Também para a minha chamada vida interior eu adotara sem sentir a minha reputação: eu me trato como as pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros veem”. Porém, quando fica sozinha, G. H. demonstra ser uma persona bastante dissimulada. Logo em seguida, fica-se sabendo que G. H. é uma escultora, isto é, uma artista plástica e, com esta atividade profissional, reclama que há certa crítica sobre o trabalho dela: “a mim se referem como alguém que faz escultura que não seriam más se tivesse havido menos amadorismo”. Pode-se ver aí um alter ego de Clarice Lispector escritora? Pergunta-se por se observar que a crítica é feita por G. H., personagem feminina, mas mesmo assim ela acha isto positivo, porque, de certo modo, esta profissão a situa dentro daquela sociedade: “Para uma mulher essa reputação é socialmente muito, e situou-me, tanto para os outros como para mim mesma, numa zona que socialmente fica entre mulher e homem”. A profissão que a protagonista reconhece como masculina é fundamental para ela exercer a liberdade, ou seja, uma independência financeira que propicia também uma independência sexual e das atribuições reservadas às mulheres, como casar, ter filhos e cuidar do marido e da casa, conforme diz a protagonista nas entrelinhas: “O que me deixava muito mais livre para ser mulher, já que eu não me ocupava formalmente em sê-lo” (LISPECTOR, 1998, p. 26). Mais uma vez, G. H. indicia o que vai confessar depois (o aborto), porquanto, ao falar de sua vida íntima, observa que a escultura também é responsável por “um leve tom de pré-clímax”, ou seja, por aquilo que ela vem a se tornar, pois de tanto “[...] desgastar pacientemente a matéria, até encontrar sua escultura imanente” ou “por ter tido, através ainda da escultura, objetividade forçada de lidar com aquilo que já não era eu”, G. H. em seu monólogo vai convencendo o leitor de que ela não é culpada por tudo que lhe tem acontecido. Relacionando a


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atividade de escultora com suas fotografias, reforça-se o silêncio daquilo que fica guardado durante tanto tempo, que ela considera como pré-climax sobre si mesma, o que permite à personagem G. H. sentenciar que: “Talvez tenha sido esse tom de pré-climax o que eu via na sorridente fotografia mal-assombrada de um rosto cuja palavra é um silêncio inexpressivo, todos os retratos de pessoas são um retrato de Mona Lisa” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Nas reflexões que G. H. trava consigo mesma a respeito de verdades e mentiras que podem surgir do relato de sua vida íntima, ela afirma: “[...] Tenho medo daquilo a que me levaria uma sinceridade: à minha chamada nobreza que omito, à minha chamada sordidez, que também omito”. Porém, G. H. dá mais um passo sobre sua vida íntima e para o principal fato que ela quer contar, desenvolvendo todo um raciocínio sobre seu relacionamento amoroso e reconhecendo que, naquele momento de sua vida, ela não está preocupada em ter filhos por ser uma mulher emancipada. A história de G. H. não pode ser desvinculada de seu drama pessoal com relação ao aborto, estreitamente relacionado com o estilo de vida dela. A partir da revelação e encobrimento de sua interioridade, ela vai deixando perceber nuances do que a leva à interrupção de sua gravidez. O segundo fragmento/capítulo do livro em estudo é um nos quais G. H. mais fala de si mesma. Ali está a chave do enigma. G. H., nestas reflexões, reconhece que ela não é o que pensa: “e essa imagem do ‘não-ser’” traduz o que ela chama de “negativo” nela própria, o “oposto”, “o lado avesso’, num reconhecimento de que, não sabendo qual é seu bem, “então vivia com algum pré-fervor o que era” o seu “Mal”. G. H., para completar seu raciocínio, declara que: “[...] e vivendo o meu ‘mal’, eu vivia o lado avesso daquilo que nem sequer eu conseguiria querer ou tentar. Assim como quem segue à risca e com amor uma vida de ‘devassidão’”. Ao final, acrescenta que: “Só agora sei que eu tinha tudo, embora de modo contrário: eu me dedicava a cada detalhe do não. Detalhadamente não sendo, eu me provava que – que eu era” (LISPECTOR, 1998, p. 32). Todavia, quase ao final do segundo fragmento/ capítulo, G. H afirma que: “Esse modo de não ser era mais


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agradável, tão mais limpo”. Mas, no último parágrafo, põe em dúvida tudo o que foi dito antes, porque parece haver uma mudança no comportamento de G. H. depois que ela reflete sobre o que acontece com ela para praticar o aborto, não se encarando mais como aquela pessoa de antes, tendo ainda um peso na consciência, que só ela pode resolver, como insinua: Esse G. H. no couro das valises, era eu; sou eu ainda? Não. Desde já calculo que aquilo que de mais duro minha vaidade terá de enfrentar será o julgamento de mim mesma: terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária (LISPECTOR, 1998, p. 32)..

No terceiro fragmento/capítulo, G. H. planeja a limpeza do apartamento. Esta atividade parece estar intrinsecamente associada a suas descobertas sobre si mesma, uma vez que, quando a protagonista conta sua história, ela o faz um dia depois de tal limpeza. G. H. rememora os passos dados em direção à compreensão dela própria. Esta questão vai sendo desenvolvida aos poucos, a partir de suas observações, quando declara “... Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira”, porque para ela “arrumar é achar a melhor forma” e a melhor forma também de contar sua história. G. H. conta todos os passos que segue a partir do momento em que decide começar o trabalho pelo “[...] quarto da empregada que devia estar imundo”. Este quarto tem “[...] a função dupla, dormida e depósito de trapos velhos, malas velhas, jornais antigos...”. O cômodo parece ser também a vida interior de G. H., tendo em vista o planejamento da limpeza, trabalho a começar do “quarto” para o living, o que equivale ser dos fundos para frente, ou seja, do interior para o exterior, sugerindo a rememoração, porque, antes de G. H. entrar no quarto, ela já começa a pensar, ou seja, a “ver”; já começa a refletir sobre a questão do aborto e de sua vida passada, problema latente que está sempre indo e voltando em sua memória, porque o lembrar suscita o sofrimento. No quarto fragmento/capítulo, G. H. se dirige à dependência de empregada de seu apartamento, passando por um “corredor escuro que segue a área”, mas antes de entrar, ela para à porta, momento em que observa longamente o cômodo, verificando com surpresa que ele


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está limpo. Vai entrando devagar (assim como é devagar sua rememoração do aborto). Antes de G. H. ver a barata, ela pensa em fazer uma limpeza geral, como que destruindo tudo que se encontra no cômodo com muita água. Só depois de todas estas observações, G. H. entra no quarto e é neste local que ela percebe que alguma coisa em si muda, que ela não é mais a mesma, mas ainda não consegue a melhor forma de dizer. Os indícios da visão da barata e do aborto vão se correlacionando. G. H. revela ter nojo de baratas e nunca pensa que numa casa desinfetada como a dela possa existir inseto. Em tal fragmento, G. H. faz uma longa discussão sobre as baratas, falando também de sua infância pobre, tempo em que convive com os primeiros bichos da terra como “...percevejos, baratas e ratos...” (APSGH, 1998, p. 48). G. H. percebe que está com medo, tenta sair do quarto, mas não consegue, porque, a cada tentativa, a barata se move e G. H. recua. Nesta tentativa de saída fracassada é que G. H. faz a seguinte afirmação: “Foi então que a barata começou a emergir do fundo” (LISPECTOR, 1998, p. 51), como que relacionando a barata àquilo que ela vem a contar sobre o aborto. G. H. demonstra ter medo da barata, mas de repente é investida de uma coragem e passa a matar a barata, fechando a porta do guarda roupa, esmagando o inseto. A coragem de G.H. para matar a barata parece ser a mesma que teve ao praticar o aborto, bem como para contar sua história depois de tantos anos. Vê-se que G.H. vai indiciando, em quase todos os fragmentos/capítulos, que a principal história que ela precisa contar não é a da morte da barata,mas outra história que vai sendo contada de forma cifrada, como se pode observar na seguinte passagem em que, após dar o primeiro golpe na barata, G.H afirma: “ Já então eu talvez soubesse que não me referia ao que eu fizera com a barata mas sim a: que fizera eu de mim?” (LISPECTOR, 1998, p. 53). Depois do primeiro golpe desfechado contra o inseto e começado no sexto fragmento/capítulo, G. H., como que num surto de loucura, mistura várias informações sobre a barata e sobre ela própria. Nas entrelinhas, percebe-se que o inseto massacrado lembra toda a história dela quando faz o aborto, como se pode ver no seguinte excerto do oitavo fragmento/capítulo, ao dizer que “a matéria da barata, que era o seu de dentro, a matéria grossa, esbranquiçada, lenta,


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crescia para fora como de uma bisnaga de pasta de dente” (APSGH, 1998, p. 62). G. H., daí em diante, mistura seu sofrimento ao da barata. Ambos parecem ser a mesma coisa, retardando a revelação principal de sua história, que só vai ocorrer no décimo quarto fragmento/capítulo. Entretanto, a partir deste momento, G. H. se esforça para pedir perdão pelo seu ato de comer a barata, considerado um ser vivo imundo segundo os livros bíblicos “‘Levítico” e “Deuteronômio”, em que se encontram “A pureza legal” (lei proibindo determinados alimentos) e a “Proibição dos ritos pagãos”, respectivamente. Deste último, que ela tem conhecimento, G. H. cita partes de seu aprendizado religioso, mas, ao mesmo tempo, pede perdão. Todas estas informações, aparentemente desconexas, possibilitam a G. H. demonstrar aquilo que ela chama de seu primeiro gesto de desumanização, ou seja, a morte de seu filho, o que ainda não é dito, mas fica subentendido, conforme passagem do décimo fragmento: Eu lutava porque não queria uma alegria desconhecida. Ela seria tão proibida pela minha futura salvação quanto o bicho proibido que foi chamado de imundo – e eu abria e fechava a boca em tortura para pedir socorro, pois então ainda não me havia ocorrido inventar esta mão que agora inventei para segurar a minha. No meu medo de ontem eu estava sozinha, e queria pedir socorro contra a minha primeira desumanização (LISPECTOR, 1998, p. 74).

G. H., de certo modo, mata a barata com requinte de crueldade. Isto porque, por causa de suas reflexões, ela vai matando lentamente, mas tal morte possibilita a recordação de outra. Por isso, G. H. reza a “Ave Maria”, começando pelo final da oração e chegando a dizer: “Santa Maria, mãe de Deus”, ao que acrescenta, com suas próprias palavras, “ofereço-vos a minha vida em troca de não ser verdade aquele momento de ontem” (APSGH, 1998, p. 76). No décimo quarto fragmento/capítulo, a protagonista G. H., depois de tantas elucubrações sobre a barata e sobre ela mesma, ainda reluta em contar o que realmente acontece, até que confessa: De vez em quando, por um leve átimo, a barata mexia as antenas. Seus olhos continuavam monotonamente a me olhar, os dois ovários neutros férteis. Neles eu reconhecia meus dois anônimos ovários neutros. E eu não queria, Ah, como eu não queria!


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Eu havia desligado o telefone, mas poderiam talvez tocar a campainha da porta, e eu estaria livre! A blusa! a blusa que eu tinha comprado, eles haviam dito que a mandariam, e então tocariam a campainha! Não, não tocariam. Eu seria obrigada a continuar a reconhecer. E reconhecia na barata o insosso da vez em que eu estivera grávida (LISPECTOR, 1998, p. 91, grifos nossos).

A partir de sua confissão, G. H. narra também como é feito o aborto e quais os sofrimentos e consequências para sua consciência: - Lembrei-me de mim mesma andando pelas ruas ao saber que faria o aborto, doutor, eu que de filho só conhecia e só conheceria que ia fazer um aborto. Mas eu pelo menos estava conhecendo a gravidez. Pelas ruas sentia dentro de mim o filho que ainda não se mexia. Enquanto parava olhando nas vitrines os manequins de cera sorridentes. E quando entrara no restaurante e comera, os poros de um filho devoravam como uma boca de peixe à espera. Quando eu caminhava, quando eu caminhava eu o carregava (LISPECTOR, 1998, p. 91).

G. H., ao reconstituir a morte da barata, reconstitui também seu drama pessoal: a consecução do aborto, num texto heteróclito. E toda sua angústia, seu nojo e náusea estão relacionados ao abortamento que ela considera como crime e desamor. Desde o início da narrativa, ela se condena por isso e, principalmente, por ter decidido em favor da morte. O inseto barata, nesta história, sugere que G. H. tem sangue de barata, ou seja, ela se vê como uma pessoa de personalidade fraca, que pensa muito mais nela e nas conveniências sociais, pois prefere viver de aparência a assumir quem ela é realmente, a encarar sua própria verdade: Durante as intermináveis horas em que andara pelas ruas resolvendo sobre o aborto, que no entanto já estava resolvido com o senhor, Doutor, durante essas horas meus olhos também deviam estar insossos. Na rua eu também não passava de milhares de cílios de protozoário neutro batendo, eu já conhecia em mim mesma o olhar brilhante de uma barata que foi tomada pela cintura. Caminhara pelas ruas com meus lábios ressecados, e viver, doutor, me era o lado avesso de um crime. Gravidez: eu fora lançada no alegre horror da vida neutra que vive e se move (LISPECTOR 1998, p. 91-92).


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O sofrimento de G. H. coincide com o resultado de estudos como os de Faúndes e Barzelatto (2004, p. 78) sobre os problemas psicológicos em mulheres que praticam o abortamento induzido. Este ato torna-se mais grave naquelas mulheres que não decidem abortar por si mesmas, mas são obrigadas por outras pessoas, particularmente pelos seus companheiros. No caso de G. H., influenciada pelo namorado/amante, ela parece também tomar uma decisão final, temendo a reação da família e de uma sociedade conservadora, mas não sem que ela sofresse por tal atitude: Quando chegara a noite, eu ficara resolvendo sobre o aborto resolvido, deitada na cama com os meus milhares de olhos facetados espiando o escuro, com os lábios enegrecidos de respirar, sem pensar, sem pensar, resolvendo, resolvendo: naquelas noites toda eu aos poucos enegrecia de meu próprio plantum assim como a matéria da barata amarelecia, e meu gradual enegrecimento marcava o tempo passando. E tudo isso seria amor pelo filho? (LISPECTOR, 1998, p. 92)

G.H. rememora um tempo de sofrimento e dor, que, por não ter sido reelaborado por ela nos devidos termos, na devida época, fica sem sentido. Contudo, o ato praticado continua marcado no corpo e no espírito. Talvez, por isto, ela fale inúmeras vezes no “Medo do neutro”. O neutro parece ser algo anterior à linguagem, antes que esteja formado, ou antes que se dê um sentido para esta coisa, isto é, o caos da memória, relacionado também à interrupção de vidas ainda embrionárias, como as que ela interrompe, a do seu filho no passado e agora a vida da barata. Depois de confessar a morte da qual é responsável, G. H. reza e fala como se tivesse contando o fato para a mãe. G. H. continua rezando. Reza o final da oração “Santa Maria”, mas usa outras palavras, pedindo perdão e proteção à “mãe de Jesus Cristo”, como que dizendo “agora, e na hora de nossa morte, amém”. Após o aborto, G. H. reconhece que “está fruindo de um inferno manso”. Naquelas circunstâncias, livrar-se do filho parece ser bom para a sua vida: “O inferno me era bom, eu estava fruindo daquele sangue branco que eu derramara. A barata é de verdade mãe. Não é mais uma ideia de barata” (LISPECTOR, 1998, p. 94). Mais adiante, ainda


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falando com uma mãe que parece dar um sentido maior para seu discurso, falando de filhos, acrescenta: - Mãe eu só fiz querer matar, mas olha só o que eu quebrei: quebrei um invólucro! Matar também é proibido porque quebra o invólucro duro, e fica-se com a vida pastosa. De dentro do invólucro está saindo um coração grosso e branco e vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata joia (LISPECTOR, 1998, p. 94).

Após confessar a morte da qual é responsável, de rezar e de pronunciar a palavra “mãe”, G. H. tem um alívio. Depois desta calma, como num pós-aborto, do décimo quinto ao décimo sétimo fragmentos/capítulos, G. H., lembrando uma espécie de alucinação, admite: “Eu havia vomitado meus últimos restos humanos” (LISPECTOR, 1998, p. 95); ou ainda que: “A alegria de perder-se é uma alegria de sabath. Perder-se é um achar-se perigoso” (LISPECTOR, 998, p.102). No décimo nono fragmento/capítulo, G. H. começa novamente seu diálogo com a barata, com a vida e o acasalamento deste tipo de inseto, sentindo-se também uma barata, quando relembra o mural da parede com o desenho dela e de um homem, feito por Janair, ao que G. H. liga a história de um grande amor de sua vida e declara: “Somente à luz da barata, é que sei que tudo o que nós dois tivemos antes já era amor. Foi preciso a barata me doer tanto como se me arrancassem as unhas – e então não suportei mais a tortura e confessei e estou delatando” (LISPECTOR, 1998, p. 114-115). Todas as pistas identificadas pela autora deste trabalho são dadas pela própria personagem G. H., que relembra seu tempo de convivência com um companheiro a partir de outra vida que leva depois da separação. Por causa do aborto e de tudo que ocorre com ela, em especial a solidão vivida por G. H., que sofre por carregar nos ombros uma paixão (aqui no sentido de martírio de Cristo e dos santos), sendo necessário que alguém a escute para amenizar sua dor, não só da carne, mas também a da consciência, pois todas as questões sobre o aborto discutidas por G. H. sugerem a fragilidade da condição humana, especialmente da condição da mulher, tendo em vista a culpa que ela sente, encarando o ato praticado como monstruoso, desumano, o seguinte trecho parece ser bastante alusivo:


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“Escuta, diante da barata viva, a pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos” (APSGH, 1998, p. 69). Vê-se que, mesmo depois de ter revelado o aborto, G. H., no vigésimo nono fragmento/capítulo, continua a dizer que precisa contar, e vai contando várias passagens de sua vida com reflexões sobre Deus, a beatitude, e demonstrando a mudança que se opera na vida dela. Porém, usa de sutilezas, sempre relacionando o aborto com a morte da barata. G. H., que em vários momentos afirma querer poupar seu interlocutor sobre o que ela vai dizer, em face de todo seu sofrimento, não hesita, num ato de confissão, em declarar, perante Deus e os homens, o seguinte: “É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata” (LISPECTOR, 1998, p. 163-164). A partir deste momento, G. H. faz a primeira tentativa de pôr a massa branca da barata na boca, “Só com a ideia”, fechando os olhos, mas não o consegue e termina por dizer: “minhas entranhas diziam não, minha massa rejeitava a da barata”. G. H. demonstra que não é fácil viver e aceitar determinadas coisas como aquelas que têm acontecido com ela, sugerindo que o ato de comer a barata também pode ter o mesmo significado da expressão popular “engolir sapo”. Para conseguir colocar a barata na boca, segundo G. H. , faz-se necessário “um comando hipnótico”, agindo “... sonambulamente – e quando abrisse os olhos do sono, já teria ‘feito’, e seria como um pesadelo do qual se acorda livre porque foi dormindo que se viveu o pior”. Outrossim, G. H. sabe que não é desta forma que tem que agir, para poder atravessar “uma sensação de morte”. Levanta-se e tenta novamente, dizendo: “com a determinação não de uma suicida, mas de uma assassina de mim mesma” (LISPECTOR, 1998, p. 164). Nestas tentativas fracassadas de deglutir a barata, G. H. chega a dizer: “Não, meu amor, não era bom como o que se chama de bom. Era o que se chama de ruim. Muito, muito ruim mesmo” (LISPECTOR, 1998, p. 165). Na terceira tentativa, G.H. vomita o leite e o pão do café da manhã. Decepcionada devido à sua falta de forças para consumar o tão desejado ato, ou, nas próprias palavras de G. H., aquele gesto, que é “o único a reunir meu corpo à minha alma” e, G.H. pela quarta vez, avança, mas ela sofre um desmaio, ou,


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melhor dizendo, uma vertigem, durante a qual, “alguma coisa se tinha feito”. E ainda declara ter medo de procurar vestígios do acontecido, por vergonha, e porque, diz ela: “antes de fazê-lo eu havia retirado de mim a participação. Eu não tinha querido saber”. Em seguida, G. H. declara: “Pois mesmo ao ter comido a barata, eu fizera por transcender o próprio ato de comê-la. E agora só me restava a vaga lembrança de um horror, só me ficaria a ideia” (LISPECTOR, 1998, p. 166). Um dado importante no discurso de G. H. é que no livro não fica claro que ela realmente come a barata. Todos seus gestos nesta direção são frustrados. No último, ela passa por uma vertigem, que assim ela descreve: “Uma vertigem que me fizera perder a conta dos momentos e tempo” e, quando acorda, afirma que comeu a barata. Nesta história, fica a seguinte dúvida: será que G. H. de fato come a barata? De acordo com o cotexto da obra, a resposta é não. Tudo indica que ela na verdade está falando é do aborto e de como foi feito, enfim, de todo o sofrimento que ele lhe causa no momento em que ela o pratica e os posteriores sofrimentos. Depois, G. H. compreende que “... não precisava ter tido a coragem de comer a massa da barata (...) e a lei é que a barata só será amada e comida por outra barata; e que uma mulher, na hora do amor por um homem, essa mulher, está vivendo a sua própria espécie” (LISPECTOR, 1998, p. 169), acrescentando que o sofrimento é próprio da condição humana. G. H., antes de começar a contar que vai comer a barata, declara que, se chegar ao fim de seu relato, no mesmo dia, vai sair e se divertir. Vê-se que G. H., em sua história, relata o aborto, para isolar este seu fantasma, esquecê-lo e voltar para sua vida anterior à interrupção induzida de sua gravidez. Noutras palavras, para retornar à vida de mulher liberada, que pode escolher o homem que bem quiser, a exemplo de Carlos, Antônio, ou ambos. Nos últimos fragmentos/capítulos, trinta e dois e trinta e três respectivamente, G. H. reconhece que “o golpe da graça se chama paixão”, percebendo na barata viva que ela, G. H. também é um ser vivo e que tudo passa, inclusive a paixão. G. H., no penúltimo fragmento/capítulo (p. 173), novamente se reporta à vida livre que ela escolhe viver (reflexo do contexto histórico mundial, 1964, em que o livro é produzido?), afirmando ter “avidez pelo mundo” e “desejos


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fortes e definidos”, reiterando, com suas palavras, que "... hoje de noite irei dançar e comer, não usarei o vestido azul, mas o preto e branco”. Ao mesmo tempo em que reconhece, após a reelaboração de sua vida por meio do episódio com a barata, que não precisa de nada para viver. Relacionando sua vida com a da barata, declara: “Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as mulheres”, ou ainda: “... quem se atinge pela despersonalização reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação ao outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens”. Reconhecendo também que “a vida é uma missão secreta” (LISPECTOR, 1998, p. 174). Nota-se que G. H., no início do livro, afirma ter medo de uma “desorganização” (separação), sentindo-se sem coragem para relatar o aborto e a vida dela pós-separação. Porém, ao término de seu relato, revela-se uma mulher mais amadurecida e segura em relação a suas escolhas existenciais, ao contrário do que se verifica no início da obra. Ao se dar conta de sua capacidade de viver independentemente, sendo o sujeito de sua própria história, após o sofrido aprendizado trazido pelo aborto, pela reelaboração das sequelas morais causadas pelo “ato ínfimo”, anti-heroico para ela, enquanto mulher, perante sua sociedade conservadora e “pretensamente cristã”, sente-se, como que num romance de formação, “batizada pelo mundo”. G. H. revela, ao final da narrativa, especialmente nos três últimos fragmentos/capítulos, uma “confiança” capaz de mudar sua visão de mundo, quando anuncia: “Eu me aproximava do que acho que era - confiança. [...]. Senti que meu rosto em pudor sorria. Ou talvez não sorrisse, não sei. Eu confiava” (LISPECTOR, 1998, p. 178). A protagonista de A paixão segundo H. G. convence-se de que “o mundo independe” dela e passa também a se aceitar como ela é, compreendendo que sua vida “não tem sentido apenas humano, é muito maior”. Finalmente, G. H., numa espécie de êxtase, por ter entendido e confessado um problema que até então a atormentava, ou por ter se refeito dele, como que desconversa, reconhecendo que as palavras, às quais ela tanto recorre em busca de um sentido para sua vida, são insuficientes para expressar tal sentido, mas compreendendo


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que somente com a linguagem foi possivel contar sua história. Referências ALENCAR, José. Lucíola. São Paulo: FTD, 1992. ASSIS. Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1985. _____Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 1977. _____O Enfermeiro. In. Várias histórias. São Paulo: Ática, 2000. AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Ática, 1988. CAMPEDELLI, Samira; ABDALA, Benjamin Jr. Clarice Lispector: Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981. DE MARCO, Valéria. “Confessar para compreender”. In. ALENCAR, José. Lucíola. São Paulo: FTG, 1992. FAÚNDES, Aníbal; Barzelatto, José. O drama do aborto: em busca de um consenso. Campinas: Komedi, 2004. LIMA, Luiz Costa. Por que literatura. Petrópolis: Vozes, 1966. LISPECTOR. Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. _____A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. NASCIMENTO, Maria de Fatima. Benedito Nunes e a Moderna Crítica Literária Brasileira (1946-1969), v. 1, 2012, 343 p. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguage, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2012. NUNES, Benedito. O mundo de Clarice Lispector (ensaio). Série Torquato Tapajós. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1966. _____O dorso do tigre. São Paulo: Ática, 1969. _____O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989. _____A náusea em Clarice Lispector. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 jul. 1965, Suplemento Literário, p. 3.


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RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Record, 1990. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Waldman, Berta. “’Não matarás’: um esboço da figuração do “crime” em Clarice Lispector. In. Clarice Lispector: a paixão segundo C. L. São Paulo: Editora Escuta Ltda, 1992.


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Enredos plásticos em diálogo: Portinari devora Hans Staden Plastic plots in dialogue: Portinari devours Hans Staden Maria Zilda da CUNHA* Maria Auxiliadora Fontana BASEIO**

RESUMO: As experiências de Hans Staden, que envolvem seu cativeiro em uma aldeia indígena no século XVI, foram registradas por meio de uma crônica e de um conjunto de xilogravuras. O registro tornou-se mundialmente reconhecido, ora pela importância das informações referentes à cultura do povo que habitava o território brasileiro, ora pela forma exótica e realista com que traduzia a experiência vivenciada. Esse texto foi traduzido para diferentes idiomas, migrou para vários suportes, assumindo configurações nas mais diversas linguagens. Busca-se, neste trabalho, pela via da Literatura Comparada, perscrutar diálogos que se estabeleceram entre a crônica e sua tradução intersemiótica realizada por Portinari. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada.Tradução intersemiótica. Antropofagia. Hans Staden. Cândido Portinari

____________________ * Doutora em Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas, São Paulo, SP. ** Doutora em Letras – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, SP.

ABSTRACT: The experiences of Hans Staden involving his captivity in an Indian village in the sixteenth century were recorded by a chronic and a set of woodcuts. Such registration has become recognized around the world, sometimes by the importance of information concerning cultures who inhabited Brazilian territory, sometimes the exotic and realistic way that reflected the lived experience. Such text has been translated into different languages, migrated to various media, and in several languages. This paper discusses, according to the perspective of Comparative Literature, the dialogue established between the chronic and its intersemiotic translation performed by Portinari. KEY WORDS: Comparative Literature. Intersemiotic translation. Anthropophagy. Hans Staden. Cândido Portinari

Introdução É premente, no nosso século, redefinir inter-relações das diversas áreas do conhecimento. A despeito da singularidade de cada uma delas, urge criar possibilidades de múltiplos diálogos. Compartilhando sistemas de pensamento e preocupações, temos sido motivados a compreender como as diversas linguagens engendram sistemas semióticos que regulam


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nossas relações de ser e estar no mundo. Nessa ordem de ideias, entendemos que, se toda arte é manifestação de caráter dialogal, torna-se importante perscrutar como os diálogos entre as diferentes formas de representação e de linguagem operam para que o homem, suas experiências, paixões, aspirações e ideologias possam tomar forma. O intuito, neste trabalho, é fomentar reflexões, na perspectiva de um estudo comparativo, sobre o diálogo interartístico que se faz com aproximações e distanciamentos da obra realizada por Hans Staden, por meio da qual ele relata sua aventura vivida entre os índios no Brasil. Tomando como premissa a ideia de obra aberta defendida por Umberto Eco, entendemos ser possível a aproximação dos textos aqui apresentados Das estruturas que se movem até aquelas em que nós nos movemos, as poéticas contemporâneas nos propõem uma gama de formas que apela à mobilidade das perspectivas, à multíplice variedade das interpretações. Mas vimos também que nenhuma obra de arte é realmente "fechada", pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de leituras possíveis. (ECO, 1969, p.40)

Vale destacar que, no movimento de aproximação da literatura com outras artes, nosso modus operandi baseia-se nas transposições intersemióticas, apreendidas a partir da forma como se estabelece a relação entre os textos, observando “como, repetindo-o, o segundo texto ‘inventa’ o primeiro” (CARVALHAL, 2006, p. 57-58), redescobrindo-o, dando-lhe outros significados, resultando no trabalho de construção poética de absorção e transformação. Nesse sentido nos distanciamos da perspectiva comparativista tradicional, em que se buscavam fontes e influências de maneira a supervalorizar uma arte em relação à outra. Diferentemente, este trabalho busca investigar a maneira como se processam as traduções intersemióticas ao colocar em diálogo a crônica de Hans Staden, acompanhada das xilogravuras, e os desenhos de Portinari.


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1 Crônica de Hans Staden O relato das experiências de Hans Staden, as quais envolvem seu cativeiro em uma aldeia indígena no século XVI, teve seu registro por meio de uma crônica e de xilogravuras, tornando-se mundialmente conhecido com traduções para diferentes idiomas e adaptações para os mais diversos suportes e linguagens. Editado em Marburgo, 1556 - em duas partes – Viagens e aventuras no Brasil (Wahrhaftige Historia), o texto revela excelente poder de observação de Staden diante dos perigos em que se encontrava. É na segunda parte do livro – “Breve Relato sobre os modos e costumes dos Tupinambás” – que consta a narrativa sobre a vida dos indígenas, com quem o alemão partilhou, por nove meses, hábitos e costumes, cheiros, humores e impudores. Vale ressaltar que o descrédito que circundava as narrativas de viagem na época mobilizou Staden a conferir maior verossimilhança a seu relato, evitando sobremaneira a alusão a animais exóticos e fantásticos, comuns em outras narrativas de aventuras. O cronista, em seus escritos, consegue transmitir ao leitor uma permanente sensação de horror, pelo fato de entender-se como uma possível vítima do canibalismo; além disso, sua história é muito acolhida em razão da força religiosa que continha, posto que o náufrago, ao retornar, revela-se como alguém que escapara miraculosamente das garras do demônio, graças à sua fé protestante. Ao longo do livro, Staden reproduz as orações que fez. A narrativa servirá, ainda, como arma na guerra travada ao longo do século XVI entre protestantes e católicos. A Nova Fé, derivada da rebeldia de Lutero, era também capaz de provocar milagres. Para o seu contexto de produção, essa história era verídica e bastante elaborada no que se refere à técnica narrativa. No Brasil, constituiu-se como leitura fundamental para compreender aspectos da nossa formação colonial. É fato que, em nosso país, passou por diferentes traduções, mas nenhuma capaz de retratar a linguagem coloquial de Staden. POR ISSO PEÇO AO LEITOR Que preste atenção no que escrevo. Pois não faço esse esforço porque me apraz escrever algo de novo, mas unicamente para trazer à luz do dia as benfeitorias que Deus me concedeu. (STADEN, 1998, p. 50)


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É possível identificar na crônica de Hans Staden alguns recursos que auxiliam na construção de um ponto de vista ao longo da obra. Os elementos de literariedade, passagens marcadas pela metalinguagem, em que o narrador, em primeira pessoa ou em pessoa expandida, dirige-se ao leitor, a forma de divisão dos capítulos, orientando a abordagem dos assuntos, o detalhamento das cenas, a referência à religiosidade, são alguns dos meios expressivos de que o autor faz uso para construir a narrativa a partir do seu “olhar”. Vale destacar que a crônica, apesar de se apresentar como um registro jornalístico-documental da época, foi produzida com uma distância temporal e física, dentro de um determinado contexto sociocultural. Desse modo, ao relato dos fatos vividos e rememorados – “Tudo isso eu vi e estive presente” (STADEN, 1981, p. 78)– entrelaçam–se, seguramente, enclaves imaginativos, horizontes de expectativas, os quais tecem as reminiscências e o registro. Tais aspectos modificados apenas pela maior ou menor personalidade individual do autor do testemunho (COUTINHO, 1996, p. 246) deixam suas marcas ao longo da obra, tanto na linguagem verbal quanto na não-verbal. Figura 1: Tubinambás com pilão, arco e ornamento de penas.

Fonte: STADEN (1998, p.62)

As imagens atribuídas a Staden e que acompanham a crônica são rudimentares, mas apresentam muitos detalhes, o que pode denotar o contato físico do artilheiro alemão com o objeto representado, bem como o poder de observação de seu autor.


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Fig. 2 Dança em volta da ibira-pema que será usada para matar o prisioneiro

Fonte: STADEN (1998, p.77)

Figura 3: A cabeça é preparada para ser comida

Fonte: STADEN (1998, p.78)

Observa-se, na primeira figura, o caráter descritivo da cena, com destaque para a arte plumária, os corpos bem feitos. Nas segunda e terceira figuras, verifica-se a inscrição da narratividade, uma vez que a leitura é movida pela contiguidade. Revela–se uma hierarquização pela perspectiva ao representar distâncias (primeiro plano e os segundos planos), impondo, assim, ordem ao olhar. Flagra-se no visual o momento da transformação do homem em alimento, com associações de causa e efeito. Evidencia-se o movimento e a dinâmica do ritual antropofágico, destacando a condição selvagem dos Tupinambás. Nas palavras de Staden:


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.27, 2015 Não fazem isso para saciar sua fome, mas por hostilidade e muito ódio, e, quando estão guerreando uns contra os outros, gritam cheios de ódio: debe Mara pá, Xe remiu RAM beguê, sobre você abata-se toda a desgraça, você será minha comida. (STADEN, 1981, p. 74) Nde roo, Xe mokaen será kuarasy ar eyma riré, etc, tua carne será, ainda hoje, antes que o sol se ponha, o meu assado. Tudo isso, fazem-no por grande inimizade. (STADEN, 1981, p. 74)

Verificam–se vistas panorâmicas das cena– sintoma do domínio do olhar do autor-testemunha e de sua exaltação. Ao mesmo tempo e paradoxalmente, o espectador/leitor fica igualmente aprisionado, posto que o seu olhar abarca o espaço revelado - um espaço limitado a esse horizonte e reservado ao espectador privilegiado. Espectador este que experimenta pelo gesto do olhar esse dispositivo que lhe fecha a visão: “com a perspectiva calculada para um único olho, o do soberano, realiza com perfeição esse paradoxo do olhar a um só tempo mestre e escravo.” (AUMONT, 2011, p. 57) Ao ser capturado, Staden foi dado como presente a Ipirú-guaçu – o referido Tubarão Grande - e tratado como animal doméstico que deveria acompanhar a qualquer instante os seus captores. Desse modo, além da ameaça constante, o alemão presenciava cerimônias antropofágicas, como ele relata no capítulo 36, quando anuncia que: “Os selvagens comeram um prisioneiro e me levaram para a festa”: Alguns dias depois quiseram comer um prisioneiro numa aldeia chamada Ticoaripe, acerca de seis milhas de Ubatuba. Da minha própria aldeia acorreram vários e me levaram junto. Fomos num barco. O escravo que queriam comer pertencia à tribo dos maracajás. Como é costume deles, quando querem comer um homem, preparam uma bebida de raízes que chamam de cauim. Somente depois da festa da bebida é que o matam.[...] Continuei dizendo-lhe que devia consolar-se, pois eles comeriam apenas a sua carne, mas que seu espírito iria para um outro lugar, para onde vão os nossos espíritos, e que lá havia muita alegria.


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Ele perguntou, então, se isso era verdade. Eu disse que sim, e ele retrucou que jamais tinha visto Deus. Terminei dizendo que ele veria Deus na outra vida e afastei-me, uma vez que a conversa estava encerrada. (STADEN,1998, p. 47)

Narra-se, aqui, o testemunho da selvageria dos Tupinambás e da fé, na medida em que o cronista relata, humildemente, à Sua Alteza, como viajou “com a ajuda de Deus por entre terra e pelos mares” (STADEN,1998,p. 10) – estratégia discursiva de que o autor lança mão desde a apresentação de seu livro, como se pode notar em princípio na folha de rosto.

Fonte: STADEN (1998)

2 Portinari devora Hans Sabe–se que a expressão plástica foi fundamental para concretizar o ideário modernista. No Brasil dos anos 40 do século passado, Portinari elaborou um conjunto de 26 desenhos para ilustrar uma nova edição das memórias de Hans Staden jamais realizada. Vale lembrar que os textos foram recusados pelo editor americano por serem fortes e impressionantes, tanto nas cenas de canibalismo, quanto na destruição dos costumes dos indígenas. Os desenhos estão catalogados pelo projeto Portinari, coordenado por seu filho, João Candido Portinari.


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Hans e índios IV 18,4x 23,4

Fonte: FOUQUET; TRAUTVETTER; FICHER NACHF (1998)

Nota-se que, com esses retratos, Portinari invalida aspectos anteriores, obrigando-nos a reorganizar a percepção em face da angulação, da perspectiva sem hierarquização de planos e com a dispersão dos corpos. É possível dizer que há um transbordamento emocional, uma força expressiva que não procura racionalidade, são linhas quebradas em múltiplas direções, análogas a garatujas infantis, que, distantes de protótipos mecânicos, estão mais próximas da mão, das marcas do gesto que as produziu. Caracterizam-se esses desenhos pelo crescente poder das linhas, movidas pela categoria do dinâmico e necessitam, para a construção de um diagrama relacional de compreensão, do movimento do olhar do espectador. São as linhas uma espécie de traço que analisa, investiga, protótipo de execuções futuras. Nessa ordem de ideias, levam-nos a novos modos de olhar possibilidades de estrutura espacial, como formas expressivas de nossa cultura, de outras culturas e valores. Índio Roendo osso 21, 5 X 24, 5

Fonte: FOUQUET; TRAUTVETTER; FICHER NACHF (1998)


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Restos de Homem 23, 3X 27,5

Fonte: FOUQUET; TRAUTVETTER; FICHER NACHF (1998)

Observa-se como o pintor, nesses desenhos, recorre a traços nervosos que fraturam a imagem do humano, deformam–na. A deformação ocorre pelo próprio material pictural e artístico, com o dilaceramento das linhas, como o seccionamento das formas. A plasticidade monumental conseguida pela habilidade e domínio com a matéria é que vai retraçando metonimicamente o diagrama de significação. Devora–se pela forma o conteúdo. Constróise outro modo de olhar para uma humanidade alquebrada pelos desajustes e pela dor. Em seus gestos artísticos de refinada elaboração, motivados a romper com a carga de representação mimética do academicismo, observa-se a permanente preocupação com o humano, retratado com marcas visíveis do expressionismo – traços–denúncia de uma expressão plástica voltada ao social – com intuito de trazer consciência histórica e, ao mesmo tempo, criar resistência às imposições de todo e qualquer sistema que ideologicamente se imponha em desfavorecimento do humano. Portinari solidariza-se com Hans, mas, diferente do cronista–que traz em suas ilustrações as cenas em perspectiva, rica em detalhes (com um olhar onisciente, de quem vê de fora e traz o único ponto de vista possível) –, o artista plástico apresenta as imagens de antropofagia de


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forma trágica e grotesca, fazendo uso do close, revelando a cena de perto, com forte carga dramática: são os pedaços humanos (ossos, vísceras etc.) os elementos resgatados pelo artista para narrar o horror da devoração. Tal forma de apresentar a cena leva o questionamento da antropofagia para além do ritual: denuncia-se a fome do homem pelo homem, a reificação humana. Sabe-se que Portinari opera com um novo realismo na representação das personagens, que pressupõe – como as imagens cinematográficas numa tradição que veio de Eisenstein – a tendência de desvelar o fenômeno pela distorção de seus aspectos visíveis - deformações que vêm da práxis social. Os atores são também antropófagos. A alienação também os atinge. A distorção opera-se modelando caracteres físicos com psicológicos. Portinari individualiza a cena, o close modifica o ponto de vista, investiga procedimentos próprios da arte: linhas e tons dão dramaticidade e movimento à cena; não recupera o passado como fantasma nostálgico, retoma a antropofagia, de forma atemporal. Isso talvez dê força ao ato de devoração (do homem pelo homem) e não ao ritual, e confere a este ato um status de espetáculo. Os traços expressionistas, que marcam sua arte e rompem com a mimetização característica da figuração realista, sugerem um estranhamento que se desdobra em vários âmbitos de significação, passíveis de análise interpretativa, desde o pictórico ao histórico e cultural. Desse modo, o artista brasileiro interfere intencionalmente na conjuntura representacional e, com alusões e traços irônicos, subverte o discurso historiográfico oficial. Ao dialogar com a história de Hans Staden, subverte um imaginário que, por séculos, gerou conceitos, valores e padrões de conduta hegemônicos. Sua leitura criativa e crítica do passado – leitura-deglutição – evidencia o processo intertextual e dialógico que nos faz problematizar a condição histórica: quem comeu quem? Quem foi devorado? Esse questionamento faz-se possível pelo caráter polifônico como realiza sua expressão artística, tantas vezes recorrendo a uma gramática cinematográfica, que serve de instrumental para consubstanciar os múltiplos pontos de vista. Ao produzir seus desenhos em um contexto histórico, social e político posterior aos acontecimentos


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narrados, mantém seu olhar antropofágico, porquanto se volta ao passado, com um ponto de vista posterior, que, com consciência, seleciona elementos e os combina de uma nova maneira. Há uma instância que pensa a história contada e a constrói pelo diálogo intertextual marcado pela ironia: elabora-se uma meta história. Há a deglutição do narrador historiográfico e ficcional (um deglute o outro). Portinari devora a História, estabelecendo um novo ponto de vista – de quem aqui está – o dos índios. O diálogo com a crônica de Hans Staden realiza-se como uma releitura da História e materializa-se como uma tradução em nova linguagem. Com um olhar das artes plásticas para a literatura, ironicamente, o desenhista–pintor constrói um contra-discurso, um outro olhar que fratura o imaginário colonial, recuperando o passado com intenção explícita de efetivar um diálogo estético e também político. O olhar perceptivo do artista, movido por fina sensibilidade, orienta–se pela desautomatização. Suas inquietações e visão de resistência engendram uma criação estética desalinhada (mas nunca alienada), com a experiência histórica que busca retratar. Nesse diálogo, o trabalho artístico de Portinari modifica nossa concepção de passado, assim como há de modificar a de futuro. O diálogo com a história – admitido como uma releitura crítica e polêmica frente à História – recupera para pôr a descoberto, para subverter um imaginário que se fez dominante. A ocupação com o passado é também um ocupar-se com o presente. O passado não é apenas lembrança, mas sobrevivência como realidade inscrita no presente[...] é a visão da história como linguagem e a visão da linguagem como história que nos ajudam a compreender melhor estas relações.(PLAZA, 2003, p.2)

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens que o artista opta por fazer cria fissuras no pensamento hegemônico, abrindo caminhos para novas possibilidades de verdade. Vale considerar o que Alfredo Bosi (2004) aponta a respeito do caráter plural do trabalho artístico, “que passa pela mente, pelo coração, pelos olhos, pela garganta, pelas mãos: e pensa e recorda e sente e observa e escuta e fala e experimenta e não recusa nenhum momento do processo poético”.


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Um dos desafios do artista, diz Lucia Santaella (2003, p.151), é dar corpo novo para manter acesa a chama dos meios e das linguagens que lhe foram legados pelo passado. Por isso mesmo, é sempre possível continuar a fazer escultura, pintura a óleo, fotografia, reinventando essa continuidade. Ao considerarmos o caráter histórico da arte diante da confraternização de todas as expressões artísticas em nossa era, temos de atentar para o fato de que: o artista pode dar a qualquer um desses meios datados uma versão contemporânea. Mas cada fase da história tem seus próprios meios de produção da arte. Vem daí o outro desafio do artista, que é o de enfrentar a resistência bruta dos materiais e meios do seu próprio tempo, para encontrar a linguagem que lhes é própria, reinaugurando as linguagens da arte (SANTAELLA, 2003, p.13).

Seguramente, como afirma Julio Plaza (2003, p. 34), cada autor, operando com aquilo que sintoniza como “afinidade eletiva”, ou seja, com aquilo que se projeta como eleição da sensibilidade para seu projeto estético e político, captura a realidade à sua maneira e cria uma verdade que pode fazer perdurar um sentido ou modificá-lo tanto na direção do passado quanto na do futuro. Considerações finais Entende-se que o trabalho com a literatura comparada como estudo crítico, analítico e interpretativo de fenômenos estéticos é capaz de propiciar reflexões interdisciplinares profícuas no que diz respeito à formação de uma consciência crítica acerca de condições históricas e culturais. A partir das concepções semióticas, que possibilitam a construção do diálogo de diferentes sistemas de códigos e linguagens, incoerente seria pensar relações de influências, de dependência ou de dívida de um texto em relação a outro. Os procedimentos que incitam os deslocamentos orientados pela releitura e, muitas vezes, pela desleitura dos textos denotam reinvenções, criações motivadas intencionalmente por novos contextos de produção. Observa-se que o diálogo nem sempre é pacifico, em nosso caso, um tanto complexo, conflituoso e áspero, mas sempre aberto a novas atualizações.


Enredos plásticos em diálogo: Portinari devora...

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Cumpre assinalar que igualmente complexo é o olhar do comparatista, cuja tarefa é devorar os dois universos criativos, assimilando traços de semelhança e de diferença, deglutindo–os com as substâncias teóricas e devolvendo em forma de exercício reflexivo e crítico em novo sistema de signos – uma outra tradução. Referências AUMONT, Jacques. O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac Naify, 2011. BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 2004. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 8.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. v.1. CARVALHAL, Tânia Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São Leopoldo, RS, Unisinos, 2003. _______. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. _____ (org.). Literatura comparada no mundo: questões e métodos. Porto Alegre, L&PM/VITAE/AILC, 1997. COUTINHO, E.; CARVALHAL, T.F. Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. ECO, U. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1969. MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEUAX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à teoria da literatura. Portugal, Edições 70, 1988. PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. PARIS, M. L. (Org.) Portinari devora Hans Staden. Trad. Angel Bojadsen. São Paulo: Terceiro Nome, 1998. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.


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A revisitação do texto bíblico no evangelho saramaguiano The revisiting of the |Biblical text in the Saramago’s gospel Patricia Conceição Silva SANTOS* RESUMO: O presente artigo tem como finalidade abordar a importância do recurso paródico como ferramenta essencial na conservação das fontes primárias, ao se propor em revisitá-las. No caso específico deste artigo, o texto bíblico constitui-se na fonte primária que, por sua vez foi revisitada pela obra ficcional O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. A intenção é demonstrar através de um levantamento de passagens bíblicas as semelhanças e diferenças entre as duas abordagens a do texto bíblico e a do romance. O recurso paródico aqui abordado deve ser entendido numa perspectiva dialógica, ou seja, no momento em que o texto bíblico é revisitado, a tradição é retomada e ao mesmo tempo reescrita. PALAVRASCHAVE: Evangelhos sinóticos. Revisitação. Evangelho saramaguiano. Paródia. Diálogo ABSTRACT: This article aims to address the importance of parodic resource as an essential tool in the conservation of primary sources, when proposing to revisit them. Specifically in this article’s case, the biblical text constitutes the primary source, which in turn was revisited by the fictional work O evangelho segundo Jesus Cristo, by José Saramago. The intention is to demonstrate through a survey of biblical passages the similarities and differences between the two approaches - the biblical text and the novel. The parodic feature discussed here should be understood in a dialogic perspective, i.e. at the time the biblical text is revisited, the tradition is resumed while rewritten. KEYWORDS: Synoptic Gospels. Revisiting. Saramago’s gospel. Parody. Dialogue.

*Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE).

A nossa abordagem visa demonstrar o quanto o texto bíblico, mais essencialmente os evangelhos sinóticos, constitui-se num importante acervo, constantemente revisitado, o que o torna uma fonte inesgotável de pesquisa. Este texto na realidade faz parte de um projeto maior – minha dissertação de mestrado, porém o nosso enfoque aqui dará ênfase a uma das fontes usadas - os evangelhos sinóticos. A nossa intenção com este trabalho é demonstrar a importância do recurso paródico como forma de revisitação de fontes


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primárias (entendemos como texto original), especificamente o texto bíblico. Neste texto abordaremos alguns episódios dos evangelhos sinóticos que retratam a infância e a fase adulta de Jesus e, que são revisitados na obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, o que ressalta a importância do texto bíblico como fonte primária riquíssima, que se mantém viva na atualidade, graças as inúmeras revisitações ao longo do tempo. Como prova disso, podemos citar – além do evangelho saramaguiano, as inúmeras releituras da vida de Jesus feitas até o momento, dentre elas: o romance A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis, no qual Martin Scorcese se inspirou para fazer o filme com o mesmo título, lançando questionamentos sobre os padrões de castidade defendidos pela igreja; o filme Je vous salue Marie, de Jean-Luc Godard; em que o cineasta enfoca o nascimento do menino Jesus no contexto urbano da atualidade, em que o mesmo é destituído de tratamento excepcional, tal como acontece no texto bíblico; Entre todos os nomes, de Frei Beto, em que o autor, aproveitando-se das lacunas deixadas pelo relato dos evangelhos bíblicos, reconstrói a vida de Jesus numa óptica humana, em que os sentimentos de amor, solidariedade e liberdade adquirem força. No caso específico deste trabalho, procuraremos focar em alguns episódios da infância de Jesus e da sua fase adulta tanto nos evangelhos sinóticos – fonte primária, como no romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago e com isto, tentaremos demonstrar a importância do recurso paródico como forma de se resgatar fontes primárias. Para o levantamento da fonte primária, achamos pertinente uma síntese dos evangelhos sinóticos levando em conta a peculiaridade de cada um dos evangelistas, além disso, utilizamos como parâmetro O Evangelho segundo São Marcos, por ter sido o primeiro a ser escrito. No “nascimento” de Jesus concebido nos evangelhos sinóticos, percebemos a relevância do aspecto espiritual, representado pela visita dos pastores a manjedoura, levando como oferendas: ouro, incenso e mirra que podem ser vistas como uma simbologia da chegada do Messias ao mundo. A imagem de Jesus veiculada pelos evangelhos sinóticos possui um caráter espiritual. Os relatos desses textos têm como preocupação elucidar a trajetória da figura de Jesus como aquele que


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deve ser objeto da fé, na crença no sobrenatural de todas as pessoas. Partimos do princípio de que os evangelhos são frutos de “pregações orais”, que “remontam às origens da comunidade primitiva”, e possuem como garantia da sua autenticidade “as Testemunhas oculares”. Apesar dos “sinóticos” não se constituírem propriamente num “relato histórico”, havia a preocupação dos evangelistas em narrar os episódios da vida de Jesus como se fosse história. Mas, o objetivo maior era que eles se constituíssem em relatos de fé e por isso, não havia tanta preocupação com a “precisão material”, o que talvez explique a forma particular como cada evangelista retrata uma mesma mensagem (Bíblia de Jerusalém, 1995; 1985). A figura de Jesus, tal como é tratada pelos evangelhos sinóticos possui um caráter profético e a trajetória da sua vida, é traçada por esses textos de maneira que a predominância recai sobre a realização dos feitos milagrosos e palavras doutrinárias, muitas vezes, expressas, através de parábolas. Além disso, desde o seu nascimento notamos a preocupação dos evangelistas em enfatizar a áurea de espiritualidade que cerca a cena, e que nos leva a acreditar no surgimento do messias. No seu artigo intitulado “Procura-se Jesus Cristo”, Ricardo Arnt afirma que “os estudiosos (muitos deles, homens de fé cristã) sabem que os evangelhos oficiais da Igreja, de Marcos, Mateus, Lucas e João, dão mais testemunhos de fé do que da verdade histórica” (ARNT, 1996, 48). Segundo o mesmo autor, mesmo com os avanços tecnológicos o mistério sobre a vida de Jesus continua: “O problema, incontornável, é que faltam fontes. Do nascimento de Jesus até o seu batismo na fase adulta, não há nada, nem nos evangelhos. Não há nenhuma descoberta arqueológica associada diretamente à vida de Jesus. As historiografias grega e judaica, tão copiosas sobre outros vultos da Antiguidade, simplesmente ignoram Jesus Cristo. As fontes romanas são posteriores à sua morte. E muitas foram adulteradas pela propaganda religiosa” (ARNT, 1996, 49). Para o autor: “A maioria dos pesquisadores está convencida de que os quatro evangelhos oficiais da igreja do Novo Testamento – Marcos, Mateus, Lucas e João – não foram escritos por seus autores. São, muito


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provavelmente, compilações de mensagens anônimas ou atribuídas aos apóstolos, orais ou escritas dos séculos I e II. Os nomes dos quatro evangelistas apenas identificam os conjuntos de ensinamentos (creditados a cada um deles) escritos e reescritos pelas comunidades, sucessivamente” (ARNT, 1996: 50). Nos evangelhos sinóticos temos a representação do mito cristão na figura de Jesus. Ele é o centro das atenções e toda a sua trajetória é demarcada na intenção de veicular a ideia do nascimento do Salvador – aquele que chegou para nos redimir dos nossos pecados e trazernos a salvação. Nesta premissa encontramos respaldo para o caráter profético da figura de Jesus veiculada pelos sinóticos, em que o aspecto divino sobrepõe-se ao humano, conferindo ao texto bíblico um típico discurso da autoridade. Em contraposição a obra O Evangelho segundo Jesus Cristo pode ser vista como uma inversão paródica do mito cristão, pois subverte o sentido puramente espiritual que perpassa a figura do nazareno nos relatos bíblicos. O sentido da paródia que deve ser levado em conta na obra estudada não é o de pura negação, mas o de canto paralelo tal como concebido por Linda Hutcheon, uma vez que, se propõe como uma obra de literatura com sentido e profundidades próprias. Para nossa abordagem da trajetória da infância de Jesus n’Os Evangelhos Sinóticos, nos basearemos nos relatos de Mateus e Lucas, já que esta fase é omitida em Marcos. Entretanto para o enfoque da fase adulta usaremos como referência O Evangelho segundo São Marcos, por ele ter sido o primeiro a ser escrito. O início da trajetória de Jesus1 nos evangelhos sinóticos é marcado pela passagem d’A anunciação em que Maria recebe o aviso do anjo Gabriel de que era a escolhida por Deus para dar a luz ao futuro messias. O seu nascimento, na manjedoura, denota o ambiente de simplicidade, na vinda do profeta ao mundo. N’O Evangelho segundo São Mateus percebemos a preocupação do evangelista em demostrar A ascendência israelita de Cristo, como prova disso tempos a genealogia de Jesus, presente no ínicío do seu relato, enquanto em Lucas a preocupação maior está na defesa de uma ascendência universal de Cristo que remonta ás origens desde Adão (A Bíblia de Jerusalém, 1995; 1837).

_______________ 1 Estamos a nos referir aos evangelhos de Mateus e Lucas nos quais são retratados o nascimento e a infância de Jesus, enquanto o relato de Marcos iniciase com a “Preparação do ministério de Jesus”, na idade adulta.


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No evangelho saramaguiano, Maria recebe a visita de um anjo-pastor que virá como pedinte e que, anunciará sua gravidez, só que no romance este episódio virá acompanhado de um efeito típico dos contos maravilhosos para simbolizar esta figura misteriosa: “Mulher, tens um filho na barriga, e esse é o único destino dos homens, começar e acabar, acabar e começar, [...] Naquele mesmo instante, as roupas resplandecentes voltaram a ser farrapos, o que era figura de titânico gigante encolheu-se emirrou como se estivesse lambido uma súbita língua de fogo, e a prodigiosa transformação foi mesmo a tempo graças a Deus (...) (EJC, 33) No evangelho de Lucas é relatado o recenseamento ordenado por César Augusto, que obrigou José e a sua esposa Maria – que estava grávida, a se locomoverem até Belém – cidade de Davi, a cuja linhagem eles pertenciam. Ao chegarem lá, Maria dá a luz ao seu primogênito numa manjedoura, e lhe dá o nome de Jesus (A Bíblia de Jerusalém, 1995; 1930). No romance em questão, este episódio é retomado só que o nascimento de Jesus é marcado por circunstâncias que humanizam a cena: “Já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça com um berço.”( EJC, 81–82) O episódio d’A visita dos magos relata a ida dos três magos ao local onde nasceu Jesus, levando-lhes oferendas simbólicas. Esta passagem é representada nos textos bíblicos como um sinal de boas vindas. No Evangelho segundo São Mateus, ela está associada ao conhecimento de Herodes do nascimento do “rei dos judeus” (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1839). Outra passagem que remonta à vinda do Messias, veiculada nestes textos, vem expressa na ordem dada por Herodes, para que todas as crianças de Belém, abaixo de dois anos, fossem crucificadas. O Evangelho segundo São Mateus associa a visita dos magos ao conhecimento de Herodes do nascimento do “Rei dos Judeus”, pois é ele quem os envia a Belém e pede-lhes que, ao retornarem lhe tragam notícias sobre o menino. Guiados pelas estrelas, os magos chegam à casa onde estava Jesus e sua mãe, e os presenteia com ouro,


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incenso e mirra (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1839). Em Lucas, os pastores são avisados pelo “Anjo do senhor” do nascimento do Messias, em Belém numa manjedoura e ao chegarem lá, encontram o “menino Jesus”, tal como, foi narrado pelo Anjo (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1930). No evangelho saramaguiano este episódio é narrado de forma humanizada em que os visitantes, dentre eles o anjo-pastor, irão trazer alimentos que remetem a situação de penúria em que se encontrava a família: “O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas [...] com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo [...] Então, O terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com sua grande estatura e disse, [...] com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era” (EJC, 84). O episódio da Fuga para o Egito e o massacre dos Inocentes é relatado em Mateus como um aviso a José pelo “Anjo do senhor” da intenção do Herodes em matar todas as crianças abaixo de dois anos, pois era do seu conhecimento o nascimento daquele que seria o “Rei dos Judeus”, portanto ele deveria partir para o Egito, e aguardar a morte de Herodes (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1839–1840). Este episódio é revisitado pela obra saramaguiana de maneira que, José por acaso ouve dos soldados romanos uma conversa em que é revelada a intenção de Heródes de exterminar as crianças de Belém menores de três anos, o que fará com que José entre em desespero e corra para a cova, procurando esconder-se dos soldados e, justamente por não ter avisado aos pais dos inocentes que serão exterminados é que ele será condenado a carregar esta culpa pelo resto de sua vida: “Que gritos eram aqueles, perguntou, mas o marido não lhe respondeu, empurrou-a para dentro e, em movimentos rápidos, começou a lançar terra sobre a fogueira [...] estão a matar gente [...] Crianças, por ordem de Heródes, a voz quebrou-se num soluço seco.” (EJC, 112). Outro episódio bíblico que retrata a vinda ao mundo do Messias é o da Apresentação de Jesus no Templo após completarem os dias para a purificação da mãe e do filho, a família vai a Jerusalém para cumprir com as obrigações da lei de Moisés, e oferecem como sacrifício


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um “par de rolas”. Quando chegam ao Templo, encontram com o velho Simeão – homem “justo e piedoso”, que esperava ser consolado por Israel e tinha o “Espírito Santo com ele”. A ele fora revelado que não morreria sem antes ver o “Cristo do Senhor”. Ao avistar o menino, “ele o tomou pelos braços e saldou a Deus”, dizendo que estava pronto para morrer em paz, pois já tinha visto aquele que seria “a salvação”, a “luz que iria iluminar todas as nações e a glória do povo de Israel” (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1931). A Apresentação de Jesus no Templo aparece nos textos bíblicos como um reconhecimento da chegada do salvador ao mundo. Está idéia é reforçada pela presença do velho Simeão que abençoa o menino Jesus e saúda os seus pais. O narrador d’O Evangelho segundo Jesus Cristo retoma o episódio dando-lhe uma outra interpretação, na qual, critica a atitude de sacrificar as aves, conforme defende os mandamentos de Moisés: “(...) chegou, enfim, o memorável dia em que o menino Jesus foi levado ao Templo ao colo de sua mãe, cavalgando ela o paciente asno que desde o princípio acompanha e ajuda esta família [...] Deus é tanto mais Deus quanto mais inacessível for, e José; não passa de pai de um menino judeu entre os meninos judeus, que vai ver morrer duas rolas inocentes...” (EJC, 100). A passagem da vida de Jesus no período compreendido entre os doze e os trinta anos é praticamente obscura para a maioria dos estudiosos. Após a sua infância, temos uma grande lacuna até a sua fase adulta. Os sinóticos, com exceção de Marcos tratam da sua infância e da sua fase adulta, a partir dos relatos de habitantes dos lugares que o profeta teria percorrido. Para abordar as passagens bíblicas que retratam a fase adulta de Jesus, adotaremos o mesmo critério da fase do seu nascimento, em que pincelamos alguns dos episódios dos evangelhos sinóticos que apresentam semelhanças com a obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Partimos do princípio que o evangelho saramaguiano tenta dialogar com o texto bíblico através do recurso intertextual. Dentre eles citaremos alguns milagres em que percebemos alguma semelhança com o texto original, enfatizando que no romance a intenção é enfatizar os aspectos mundanos. Vamos a estes episódios:


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O milagre da Cura da sogra de Pedro é relatado de forma semelhante nos sinóticos. Jesus toca na sua sogra, apenas com a mão, e ela fica curada (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1898). Em Lucas, ele inclina-se para a enferma, e conjura– lhe severamente a febre, que a deixa imediatamente (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1937). Na obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, o milagre da Cura da sogra de Simão dá–se da seguinte forma: Ao completar vinte e cinco anos, os sinais dos poderes milagrosos de Jesus se sucediam. O primeiro milagre “doméstico” acontece na cada da sogra de Simão, que estava com febre. Bastou ele tocar–lhe na testa para esta desaparecer: “(...) o que nunca acontecera foi sentir a febre sumir-se debaixo dos dedos de Jesus como uma água maligna que a terra absorvesse (...)” (EJC, 351). O episódio d’O endemoninhado geraseno é retratado pelos evangelhos sinóticos da seguinte forma: Jesus segue com os discípulos para a região dos gerasenos, localizada do outro lado da Galiléia, quando veio até ele um homem, possuído por demônios, o qual ninguém conseguia dominar e, logo que o avistou, começou a gritar: “Que queres de mim, Jesus, filho do Deus altíssimo? Peço-te que não me atormentes”. E Jesus pergunta-lhe o nome, e ele responde: “Legião”, pois eram muitos os que habitavam naquele homem. Ele implorava para que não o mandasse para o abismo, ou para fora daquela região, e sim, para uma manada de porcos que por ali pastava. Jesus consentiu, e quando entrou nos porcos, a manada precipitou–se no mar, afogando–se toda. Os “que apascentavam os porcos fugiram e contaram tudo na cidade e nos campos”, contudo os habitantes do lugar, pediram a Jesus, que saísse do seu território, e ele tomou o barco e partiu. O homem que havia se livrado dos demônios, dirige-se a Jesus, e pede–lhe para segui-lo. Mas ele manda–o para casa, e pede–lhe que anuncie tudo o que ele havia feito (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1904). Em Mateus, este pedido é omitido. O romance narra este episódio de forma semelhante ao texto original, sendo que o objetivo do narrador está em enfatizar a ira dos porqueiros pelo prejuízo com os porcos, como demonstra a citação a seguir: Jesus chama a Tiago e João para juntos se aventurarem na travessia para a “margem ocidental” onde viviam os gadarenos. Estavam a caminho, quando perceberam uma tempestade, que ameaçava cair a qualquer momento, o que provoca o desespero dos filhos de Zebedeu, ao que Jesus interfere e


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ordena “as águas” e os “ares” que acalmassem e eles obedeceram, levando-os para o rumo certo. Ao chegarem ao local, os três desembarcam e, no caminho, cruzam com um “homem coberto de imundícies e cheirando a putrefacção dos túmulos”, que se aproxima de Jesus, revelando-lhe a filiação divina dele, e pede a Jesus que não o atormente. Então Jesus ordena aos espíritos impuros que abandonassem o corpo daquele homem e, feito isso, eles imediatamente saíram e como num “coro de vozes diabólicas” suplicam-lhe que, ao invés de os expulsarem daquele lugar, ele os transportasse para o corpo de uma manada de porcos. Jesus consente. Essa atitude provocará a ira dos “porqueiros” que se mostravam inconformados com a perda de duas mil cabeças de animais, e começam a atirar pedras em Jesus e nos seus companheiros, que se viram obrigados a saírem fugidos do local: “[...] Os espíritos impuros excitadíssimos, esperavam a resposta de Jesus [...] Sim, podem passar para os porcos [...] Fosse pelo inesperado do choque, fosse por não estarem os porcos a andarem com demónios dentro, o resultado foi enlouquecerem todos num repente e lançarem-se do precipício abaixo, os dois mil que eram, indo cair ao mar, onde morreram afogados todos[...] Jesus não queria, mas teve de render-se a argumentos que ganhavam mais poder persuasivo a cada pedra que caía perto. Desceram a correr a encosta para o mar, num salto estavam dentro da barca [...]” (EJC, 356). O relato da cura de um leproso é narrado de forma semelhante pelos sinóticos. Em Marcos e Lucas, o leproso dirige-se a Jesus e implora-lhe de joelhos para que ele o livrasse daquela doença. Isto faz com que se sensibilize e o cure: “Eu quero ser purificado” (A Bíblia de Jerusalém, 1995: 1899 Este milagre na obra O Evangelho segundo Jesus Cristo dáse da seguinte maneira: “Durante a sua caminhada pelos povoados, Jesus ia pregando a “Boa nova” e curando os enfermos, exigindo-lhes como única condição à devoção a fé, tal como, nos mostra o exemplo de um leproso que, pede-lhe desesperadamente a cura, e ele assim o faz: “(...) naquele mesmo instante a carne podre tornou-se sã, o que nela já faltava achou-se reconstituído e onde antes estivera um gafoso horrendo e sujo, de quem todo mundo fugia, viase agora um homem lavado e perfeito (...)”( EJC, 401) .


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O milagre da Cura de um paralítico em Carfanaum é narrado pelos sinóticos de forma praticamente igual. Com exceção de Mateus, os demais evangelhos relatam um paralítico que teve de ser levado até Jesus pelo telhado, pois não havia condições de chegar até ele; grande era o número de pessoas aglomeradas. E Jesus, ao convencer-se da sua fé, cura-lhe os pecados. Diante da intolerância dos escribas e fariseus, ali presentes, que chamam os seus atos de “blasfêmia”, ele dá-lhes uma prova de que o “Filho do homem” tinha o poder de “perdoar pecados”, e ordena ao paralítico que pegasse o seu leito e fosse embora, o que provoca a admiração de todos os presentes (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1899). O episódio da Cura de um paralítico em Cafarnaum no evangelho saramaguiano narra uma aventura vivida por um paralítico que teve de ser suspenso e transportado através de “um buraco do telhado da casa onde Jesus estava, que seria a de Simão, chamado Pedro” (EJC, 402) e tão grande era a sua fé, que Jesus disse: “(...) Meu filho, os teus pecados te são perdoados (...)” (EJC, 402). Neste momento, estavam presentes no local uns escribas, que censuram a sua atitude, chamando-a de “blasfêmia”, pois, somente a Deus era permitido perdoar os pecados. Diante do impasse, Jesus perguntalhes: “(...) Qual é o mais fácil, dizer ao paralítico os teus pecados te são perdoados, ou dizer-lhe Levanta-te, toma o teu catre e anda (...)” (EJC, 402). Como prova de que tinha poderes suficientes para perdoar os homens na terra, ele ordena ao paralítico que levantasse e fosse embora para casa e este assim o fez. A passagem d’Os vendedores expulsos do Templo é contada nos sinóticos praticamente da mesma forma. Jesus e os discípulos chegam ao Templo em Jerusalém, e o mestre começa a expulsar os vendedores, que ali estavam, e dizia para todos, que a sua casa era lugar de orações e não para servir a “covil de ladrões”. Ao ouvirem esses insultos, os “chefes dos sacerdotes” e os “escribas” começaram a tramar uma forma de pegá-lo, mas tinham receio da multidão que o glorificava. Após esse episódio, Jesus segue para fora da cidade (A Bíblia de Jerusalém, 1995,1915). Em Mateus, há menção a curas de cegos e coxos, que se aproximavam dele, além disso, é mencionada uma passagem, em que as crianças exclamavam no templo: “Hosana ao filho de Davi”. Isto provoca a indignação dos sacerdotes que lhe perguntam se ouvia o que diziam a seu


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respeito. Ele prontamente responde, de forma provocativase nunca tinham lido a respeito, de que seria da boca dos “pequeninos e das criancinhas de peito”, que sairiam louvores a sua pessoa, depois disso, segue para Betânia, onde pernoita com os discípulos (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1878).O relato de Lucas faz referência apenas a expulsão dos vendedores do Templo (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1967). No evangelho segundo Saramago, esta passagem é retratada de forma semelhante ao texto original. Ao avistar os cambistas, Jesus começa a “derrubar as mesas, empurrando e batendo a eito nos que compravam e vendiam” e em voz alta proclama: “(...) Desta casa que deveria ser de oração para todos os povos, fizestes vós um covil de ladrões (...)” (EJC, 425). Também os discípulos participavam desses atos em que até “os bancos dos vendedores de pombas eram atirados ao chão”, e as aves saiam voando, livres do sacrifício. Neste momento, aparecem os guardas - “armados de bastão”, prontos para agredirem aqueles que iam contra a autoridade do Templo. Além deles, aparecem mais guardas munidos de “espada e lança”. Quando a situação começava a ficar difícil para o “lado de Jesus e seus discípulos”, aparece “o sumo sacerdote, acompanhado dos seus pares e anciões e escribas”, que clama em voz alta: “(...) Deixa-o ir desta vez, que se voltar cá, então o cortaremos e lançaremos fora, como ao joio quando está em excesso na seara e ameaça afogar o trigo (...)” (EJC, 426). E eles seguem o caminho de volta a Betânia, diante do escárnio da multidão. Nos evangelhos sinóticos, o episódio das Negações de Pedro é apresentado de maneira separada do caminho da cruz. Estes textos possuem algumas particularidades, como veremos a seguir: apenas no relato de Marcos, o galo canta duas vezes, nos demais relatos aparecem apenas um canto. Já as negações de Pedro são em número de três, para todos os evangelhos. Essa passagem relata a recusa de Pedro, em assumir-se como um discípulo de Jesus, quando abordado por uma criada no “Pátio do templo”, que o reconhece e afirma ser ele um dos seguidores de Jesus Nazareno. Ele nega dizendo desconhecer o que ela falava, e o galo canta pela primeira vez. E novamente ela o vê e fala aos presentes, que se trata de um dos seguidores do Nazareno (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1922). Em Mateus, uma outra criada o interpela pela segunda vez. (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1889). Enquanto em Lucas, Pedro é


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interpelado pela segunda vez por um homem. E, na terceira vez, é a multidão que diz ser ele o seguidor do “Filho do Homem”, o que o leva a negar novamente. Quando o galo cantou pela segunda vez, Pedro lembrou das palavras de Jesus e começou a chorar (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1973). O caminho da cruz relata o momento em que Jesus fora levado para ser crucificado e a presença de um homem com o nome de Simão Cireneu que é chamado para carregar a cruz até um lugar conhecido como Gólgota (A Bíblia de Jerusalém, 1995: 1923). Em Mateus, este homem é chamado Simão de Cirene, pois era desse lugar. Após ser sacrificado, suas vestes foram repartidas entre os discípulos, e acima de sua cabeça foi escrito o motivo de sua condenação: “Rei dos judeus”. Junto a ele foram crucificados dois ladrões: “um à direita e outro à esquerda” (A Bíblia de Jerusalém, 1995: 1893). Em Lucas, o relato da crucificação é mais detalhado, ele fala da multidão que segue a cruz, assim como das mulheres, “que batiam no peito e se lamentavam”. E então, Jesus dirige-se a elas dizendo: “Filhas de Jerusalém não choreis por mim, chorai, antes, por vós mesmas e por vossos filhos! Pois, eis que virão dias em que se dirá: felizes as estéreis, as entranhas que não conceberam e os seios, que não amamentaram (A Bíblia de Jerusalém, 1995, 1975). O episódio de Pedro é narrado pelo evangelho saramaguiano, de forma muito semelhante ao texto original, sendo que no romance “as negações de Pedro” e o “caminho do Gólgota” são narrados juntos como veremos a seguir. Jesus é levado ao Gólgota, e no caminho, já sentia as suas pernas fraquejarem “sob o peso do patíbulo”. Além disso, tinha que suportar as vaias da multidão. Neste momento, Pedro é interpelado por uma mulher, que afirmava ser ele um dos seguidores de Jesus, mas ele nega e esconde-se atrás da multidão, e a mesma mulher, novamente o interroga, e ele nega de novo, e pela terceira vez negou. Podemos perceber na obra, outro direcionamento para esta passagem bíblica: a fala de Jesus às mulheres e a descrição do local onde seriam crucificados os três condenados. Ambos os casos, denotam um sentido que visa a destituir à personagem Jesus de qualquer importância, diante das demais. Além de destacar a figura de Maria de Magdala entre as demais mulheres, como veremos nas citações a seguir: “(...) Maria de Magdala deu um grito como se lhe estivesse rompendo a alma, e


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Jesus disse, Chorarás por mim, e vós mulheres, todas haveis de chorar, se for chegada uma hora igual para estes que aqui estão e para vós próprias, mas sabei que, por cada palavra vossa, se derramariam mil no tempo que há-de vir se eu não fosse acabar como é minha vontade” (EJC, 437-438). E, mais adiante: “(...) As mulheres sobem ao lado de Jesus, [...] e Maria de Magdala é a que mais perto vai, mas não pode aproximar-se porque não a deixam os soldados, como a todos e todas não deixarão passar nas proximidades do local onde estão levantadas três cruzes, duas ocupadas já por dois homens que berram e gritam e choram, e a terceira, ao meio, esperando o seu homem, direita e vertical como uma coluna sustentando o céu (...)”(EJC, 444). A seleção destas passagens obedeceu ao critério de aproximação da abordagem do romance com o texto bíblico, porém deve-se considerar que a revisitação do texto bíblico constituise numa forma de dialogar com o presente. Nesta atitude podemos observar a relativização dos preceitos tidos como verdadeiros pela tradição - aqui representada pelo texto bíblico, que se constitui num discurso da fé, no qual existe apenas a preocupação em veicular o caráter profético de Jesus. Referências A BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1995. ARNT, Ricardo. “Procura–se Jesus Cristo”. Super Abril, abril/96. p. 46-59. HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Lisboa: Edições 70, 1985. SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


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(Des)territorialização em Guimarães Rosa: anotações de Sagarana e Primeiras Estórias Deterritorialization in Guimarães Rosa: Notes from Sagarana and Primeiras Estórias Silvana OLIVEIRA * RESUMO: O viés tomado nesse artigo é o de um mútuo esclarecimento entre as dimensões de sentido que a literatura opera sobre os estudos de filosofia e que estes, a seu turno, operam sobre os escritos literários. Sendo assim, propomos a anotação reflexiva da dinâmica de desterritorialização observada na temática e na linguagem da produção de João Guimarães Rosa, com destaque para os contos dos livros Sagarana, de 1946, e Primeiras Estórias, de 1962. A noção de desterritorizalização pensada aqui é a que encontramos em Gilles Deleuze e Felix Guattari (Mil Platôs, Vol. 1 e Vol. 3, 1995 e 1996), associada ao movimento de devir. Desterritorializar, no contexto conceitual em que discutem os dois filósofos-teóricos, tem a ver com o movimento de deslocamento de algo, sempre em uma dinâmica de ação empreendida por uma vontade ativa, de um território previamente estabelecido e sedimentado; desse deslocamento resulta um movimento em direção a um outro território, ainda por conquistar. PALAVRAS-CHAVES: Desterritorialização. Guimarães Rosa. Gilles Deleuze. Felix Guattari.

__________________ * Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp e Pósdoutoranda pela FAPERJ, no Programa de Pós-graduação em Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a supervisão do Prof. Dr. João Cézar de Castro Rocha. Professora associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná.

ABSTRACT: The approach in this article is one of shedding some light upon the dimensions of meaning produced by literature on the philosophical studies and the ones that these studies, on their turn, produce on literary works. Thus, we propose a critical thinking of the dynamical process of deterritorialization observed on both the themes and the language in the literary production of João Guimarães Rosa, especially in the short stories from the books Sagarana, published in 1946, and Primeiras Estórias, published in 1962. The concept of deterritorialization used in this article is the one found in Gilles Deleuze e Felix Guattari (Mil Platôs, Vol. 1 e Vol. 3, 1995 e 1996) related to the movement of becoming. Deterritorializing, accordingly to the conceptual discussion of the two philosophers and critics, has to do with the dislocation of something from an established and settled territory through a dynamic action fostered by an active will. This dislocation results in a movement towards a new territory to be conquered. KEW-WORDS: deterritorialization. Guimarães Rosa. Gilles Deleuze. Felix Guattari.


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Introdução A leitura da produção de João Guimarães neste artigo se dará pela associação a elementos e noções conceituais presentes no pensamento de Gilles Deleuze e Felix Guattari, principalmente nos Volumes 1 e 3 de Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (1995/1996). Propomos uma abordagem dos contos mais conhecidos do autor, marcadamente dos livros Sagarana 2 e Primeiras Estórias 3 sem, contudo, deixar de apontar momentos significativos para a discussão em curso em outras obras de Rosa. Para Deleuze e Guattari, adinâmica da desterritorialização pode ser dita como: “Um traço intensivo começa a trabalhar por sua conta, uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de imagens e a hegemonia do significante é recolocada em questão” (1995, Volume 1, p. 25). Nessa perspectiva, ao pensarmos a linguagem Roseana, o processo aludido configura-se como um movimento de nomadismo capaz de fazer com que os significados fujam e alcancem novos territórios de sentido, pela reterritorialização dos elementos do universo narrado e da linguagem que o expressa. O movimento de desterritorializar e reterritorializar está associado ao conceito de rizoma, na medida em que esses processos são sempre relativos, são sempre ramificações de um movimento maior modelado pela ideia de rizoma: Oposto à árvore, o rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa a ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. (1995, Volume 1, p. 32-33).

A linguagem de Guimarães Rosa propõe um mapa para a língua portuguesa ao promover agenciamentos de sentido em que a língua falada e a língua escrita conectam-se e fazem um movimento de fuga, a fala se desterritorializa do uso literário convencional para reterritorializar-se como nova língua, transfigurada em sentidos que desafiam o significante tradicional, na criação do autor.

___________________ 2 Edição utilizada: ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 3 Edição utilizada: ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


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1 Os territórios de Sagarana Para dar sequência a essa reflexão, lembramos a estranheza que a obra de Rosa provoca quando aparece o livro de contos Sagarana, em 1946, já que as narrativas ali reunidas não cabem, de imediato, no “território” do regionalismo recente. Nos contos do livro vemos que a linguagem, e mesmo as imagens mais recorrentes nas narrativas – o sertão, a boiada, as veredas, o rio – operam pela dinâmica de desterritorialização, como a concebem os dois filósofos já mencionados O autor desterritorializa a linguagem falada ao trazer a sintaxe da oralidade para o ambiente literário e, com isso, desafia a categorização de sua obra no contexto de um regionalismo militante que ainda não havia encarado o desafio da língua falada para além das conquistas de Mario de Andrade em Macunaíma; podemos avançar ainda mais para a compreensão da desterritorizalização operada por Rosa na medida em que compreendemos que a sua linguagem não busca reproduzir apenas a fala de determinado grupo regional e social do país, mas sim expressar a potência discursiva que a língua portuguesa carrega, na sua realização oral e escrita. Nesse caso, interessa ler a linguagem de modo a entendê-la em um processo de deslocamento de sentidos da língua nacional, estratificada pela tradição literária. O movimento de deslocamento se dá no nível da composição, na medida em que há a invenção de uma linguagem não associada exclusivamente ao uso culto, com aproveitamento das variantes linguísticas de várias regiões do país, tanto no plano sintático como lexical. Antônio Candido se reporta ao momento da estreia do autor no gênero conto, com Sagarana, nos seguintes termos: Registrando o aparecimento desta (obra) numa resenha breve, sugeri, sem especificar, esse caráter de invenção baseada num ponto de partida em que tudo estivesse no primórdio absoluto, na esfera do puro potencial. Parecia que, de fato, o autor quis e conseguiu elaborar um universo autônomo, composto de realidades expressionais e humanas que se articulam em relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua pura plataforma.


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(...) A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico – tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares- comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo (CANDIDO, 1991, p. 295).

O crítico aponta o primeiro equívoco em relação à produção de Guimarães Rosa, colocando-o fora da perspectiva unicamente regionalista, incluindo aí o esclarecimento em relação ao aproveitamento da língua regional, sem que se desse propriamente o registro da linguagem falada dessa ou daquela região do Brasil. A linguagem de estreia do autor – mantida até os últimos livros – não se restringe à fala do sertanejo exclusivamente. Pode-se dizer que o autor reconhece, e se apropria, da desterritorialização promovida pelo sertanejo na língua nacional, sem contudo assumir a função de registro exclusivo dessa linguagem. A noção deleuzoguattariana de desterritorizalizção pode ser acionada para dizer a ação do sertanejo sobre a língua nacional, na medida em que a fala não obediente à formalização da norma culta é ativa e produtiva. Esse uso da língua expressa e atua sobre o mundo sertão, num processo de novas conexões associativas, desvios e retomadas de sentidos anteriormente dados pela cultura hegemônica, da qual o sertanejo não participa diretamente. Em O Burrinho Pedrês, o primeiro conto do livro Sagarana, o narrador dá a conhecer, nos primeiros quatro parágrafos, a origem, atual estado e fatos relevantes da vida de Sete-de-Ouros, o burrinho do título. Sem iniciar a ação, priorizando a cena, o narrador apresenta a boiada; primeiro, suas cores – as mais achadas e impossíveis –; depois, o movimento – correntes de oceano, rodando remoinhos –; a forma diversa dos cornos. Neste mundo prenhe de determinações, a linguagem precisa também se potencializar sem regateios; o narrador não se intimida diante dos limites da dicção do mundo e seu discurso espraia-se deleitosamente pelas coisas, como que a propor estranhos contatos entre palavra e coisa. Contato pautado sempre pelo excesso concentrado; esse discurso voraz persegue inexoravelmente o sentido e


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não lamenta a perda; antes se vangloria através da adição de significantes, como a cercar incansavelmente algo que está aí, mas onde? E a perseguição continua: E o Major Saulo indicava, mesmo na beira do estacado, um boi esguio, preto-azulado, azulego; não: azul asa-de-gralha, água longe, lagoa funda, céu destapado – uma tinta compacta, despejada de chanfro às sobre-unhas e escorrendo, de volta, dos garrões ao topete – concolor, azulíssimo.” (Ibid., p. 34).

A ação encadeia-se de modo a conectar eventos que o acaso organiza numa lógica caótica; demoníaca, pois tudo no sertão é redemoinho: o corisco promove o movimento dos bois na manhã noiteira da Fazenda da Mata; o movimento dos bois excita os cavalos; os cavalos desalojam o Burrinho; o Burrinho segue até as proximidades da varanda e é visto e lembrado. Sete-de-Ouros é todo potência e força não usada. Na espiral dos acontecimentos, ele tem a sabedoria de deixar que o movimento do mundo o envolva sem desperdício de vã oposição. A propósito de Kafka, Deleuze e Guattari (1977, p. 124) afirmam que é um único e mesmo desejo, um único e mesmo agenciamento que se apresenta como agenciamento maquínico de conteúdo e agenciamento coletivo de enunciação. Assim como em Guimarães Rosa, a máquina da boiada é um agenciamento de conteúdo e, como todo agenciamento, não tem somente duas faces, ele se compõe de segmentaridades que se estendem sobre vários segmentos contíguos, ou se dividem em segmentos que são por sua vez agenciamentos. A boiada como agenciamento de conteúdo, com seus bois de diferentes cores; movimentos díspares; cornos variados e reações imprevisíveis. Essa máquina tem seus segmentos de poderes e territórios; capta o desejo, fixa-o, territorializa-o. Quando decide mover-se de sua coxia para um espaço de maior tranqüilidade,o Burrinho experimenta o funcionamento dessa máquina: Passa rente aos bois-de-carro – pesados eunucos de argolas nos chifres, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse ainda ao pescoço a canga, e que mesmo disjungidos se mantêm paralelos, dois a dois. Corta ao meio o grupo de vacas leiteiras, já ordenhadas, tranqüilas, com as crias ao pé. E desvia-se apenas da Açucena. Mas, também, qualquer pessoa faria o mesmo, os vaqueiros fariam o mesmo, o major Saulo faria o mesmo, pois a Açucena deu à luz, há dois dias, um bezerrinho muito


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galante, e é bem capaz de uma brutalidade sem aviso prévio e de cabeça torta, pegando com uma guampa entre as costelas e a outra por volta do umbigo, com o que, contado ainda o impacto da marrada, crível é que o homem mais virtuoso do mundo possa ser atirado a seis metros de distância, e a toda a velocidade, com alças de intestino penduradas e muito sangue de pulmão à vista (ROSA, 1984, p. 22).

Interessa-nos dizer que o agenciamento maquínico da boiada, ou a máquina-boiada, tem também suas pontas de desterritorialização ou linhas de fuga, por onde ele mesmo – o agenciamento boiada – foge ou deixa passar suas enunciações ou expressões que desarticulam o funcionamento da máquina, deformando-a ou metamorfoseando-a. No fragmento abaixo, está-se diante da boiada agora metamorfoseada, diríamos até, contaminada, por sentidos outros que escaparam do agenciamento de conteúdo fixo, propondo desterritorializações alucinantes de sentido: Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebéias dos camposgerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanho tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro (Ibid., 19).

As linhas de fuga ou pontas de desterritorialização possibilitam que o agenciamento se estenda ou penetre em um campo de imanência ilimitado (DELEUZE & GUATTARI, 1977, pp. 118-127); nesse campo o agenciamento de enunciação – no caso de Guimarães Rosa, sua linguagem em estado de florescência – age sobre o conteúdo de modo a formar a espiral. É na própria boiada, é no rio mesmo que a máquina do desejo atua. A boiada torna-se cordilheira em movimento e o rio uma serpente


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gigantesca a bater cauda engolindo aquilo que envolve em espiral. A desterritorialização da linguagem lança para além os efeitos do texto, reterritorizalizando novos sentidos que não serão mais alheios ao conteúdo desenvolvido na narrativa, mas serão a eles associados, para grande enriquecimento dos efeitos de leitura. Entendemos que os agenciamentos de linguagem operados pelos processos de desterritorialização de sentidos funcionam como potência da própria literatura, são como demônios que espreitam à espera de que se firme o pacto ou como discursos que pairam sobre os sujeitos da enunciação, à cata de encontros, como se pode verificar, por exemplo, no discurso errante de Riobaldo, quando ele estabelece o ritmo de sua narrativa como sendo o da “matéria vertente”: E estou contando não é vida de sertanejo, seja se for de jagunço, mas a matéria vertente, queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe (ROSA, 1983, p. 74).

Assim, o autor explora a fala do homem do sertão na mesma medida em que se vê motivado pela fala de qualquer ser humano, em qualquer língua. Podemos também, sem muito esforço, apontar na produção de Guimarães Rosa buscas e registros da expressividade observada nos animais (“Meu tio, o Iauretê”; “Seqüência”; “O burrinho pedrês”; “Conversa de Bois”, entre outras narrativas.). A linguagem ganha, sob a égide do autor, uma dimensão inédita; aqui também é possível dizer que a Linguagem é o Mundo. Em entrevista a Gunter W. Lorenz, Guimarães Rosa abordou a intrincada questão em que se debate a crítica para dar conta do seu estilo: O bom escritor é um descobridor. (...) Considero a língua como meu elemento metafísico: escrevo para me aproximar de Deus, estou sempre buscando o impossível, o infinito. (...) Sou místico: posso permanecer imóvel durante longo tempo, pensando em algum problema e esperar. (...) Nós, sertanejos, somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer (...) Os livros nascem quando a


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.27, 2015 pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras. (...) Faço do idioma um espelho de minha personalidade para viver: como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. (...) Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito, o momento não conta. (...) Existem elementos da língua que não podem ser captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas. (...) Meus livros são escritos em meu idioma próprio, um idioma meu (...). Não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros (Diálogo de Gunter W. Lorenz com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, 1991, p. 62-97).

Ao afirmar um idioma próprio, nascido da sensibilidade para a observação e meditação sobre a língua portuguesa, o autor reafirma a crítica de Antonio Candido que o afastou do regionalismo na linguagem. A língua inventada por Guimarães Rosa não é falada em uma região específica do país; trata-se de um agenciamento de linguagem, por meio da desterritorialização da língua culta, para que os sentidos sejam potencializados em um grau inédito em cada uma de suas narrativas, em processos múltiplos de reterritorialização, por meio dos quais o leitor é exposto a uma outra língua portuguesa, não mais a língua literária da convenção, mas sim a língua roseana. Nelly Novaes Coelho (1991, p. 256-263) identifica no livro Sagarana o narrador procedente do homo ludens, aquele que está presente nos rapsodos, aedos e jograis do mundo antigo, e que permanece encarnado nos cantadores populares, que ainda hoje perpetuam a herança folclórica de cada nação. A autora destaca, ainda, que em Sagarana renasce, portanto, o anônimo “contador de estórias”, o homemcoletivo que vem da alta ancestralidade que arraiga em Homero. Recorde-se, por exemplo, a epígrafe de “O Burrinho Pedrês”: “E, a meu macho rosado, carregado de algodão, preguntei: pra donde ia? Pra rodar no mutirão.” (Velha cantiga, solene, da roça) (ROSA, 1984, p. 16)

O caráter exemplar dos contos de Sagarana, sobretudo de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, confirma a análise de Nelly Novaes Coelho e aproxima o narrador rosiano da narrativa de Walter Benjamin, no


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sentido em que a ideia de coletividade a compartilhar experiências se coaduna muito bem com a democracia exacerbada pela concepção de linguagem de Guimarães Rosa. É importante ressaltar, no entanto, que a exemplaridade presente nos contos de Sagarana e, mais tarde, nas pequenas narrativas de Riobaldo, não pretende estabelecer modelos de bom viver de acordo com as regras mais imediatas de uma ou outra comunidade. De fato, a formação da consciência nas personagens tem um caráter individual e passa, principalmente, pelo exercício radical da liberdade frente a um mundo que precisa ser apreendido a partir dos elementos de que dispõem a personagem: sentimento, fé, esperança, signo e linguagem. 2 O salto mortale em Primeiras Estórias Suzi Frankl Sperber estabelece em Signo e Sentimento (1982) o trabalho comparativo como forma de apreensão da diferencialidade do tecido poético na linguagem de Guimarães Rosa. Para tanto, a autora estuda a abertura do sintagma (Ibid., p. 7) e a estratégia da indefinição de forma a explicitar os efeitos atordoantes do discurso rosiano. A abertura do sintagma e a estratégia de indefinição, apontadas por Sperber, indicam, na composição dos textos rosianos anteriores a 1962, o mesmo procedimento que orienta a organização do enredo nos contos de Primeiras Estórias e que buscamos aqui relacionar à noção de desterritorialização da linguagem: A abertura do sintagma, que abre um hiato entre signo e signo, entre sintagma e sintagma, poderá ser articulada (e, pois preenchida) pela referência a um intertexto explícito ou implícito. Explícito, ele é um tema (como o do centro, em G.S:V). Implícito, ele serve como substrato naturalizado. Como a intertextualidade que atravessa a obra rosiana manifesta a transcendência, é ela que preenche as zonas de silêncio, remetendo este espaço em branco para o inefável, para o indizível, para um espaço em branco e um silêncio por isto mesmo ainda mais ampliados. E mais ampliados, ainda, e também por causa da função poética da linguagem, que remete a busca da transcendência à busca da beleza, de diversas formas diferentes (Ibid., p. 9-10) (SEM GRIFO NO ORIGINAL)(grifo nosso)


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As zonas de silêncio na obra de Guimarães Rosa apontam justamente para a apreensão do invisível, aquilo que a palavra lógica perde de modo irreversível. Ao que importa dizer não corresponde nenhuma palavra do vocabulário homo sapiens. Portanto, no discurso rosiano está prevista uma alteração da linguagem, um movimento de desterritorialização que prevê o aproveitamento máximo da expressão lingüística, mesmo quando os recursos narrativos, aparentemente, poderiam remeter ao sentido de falência expressiva, o autor usa a linguagem com fé absoluta e a potencializa pelo recurso (milagre) da multiplicação de sentido. A linguagem de Guimarães Rosa é um mapa; propõe picadas que o leitor poderá multiplicar, preencher, significar. David Mamet, em texto produzido para o New York Times e reproduzido pela Folha de São Paulo (23 de julho de 2002), discorre brevemente sobre a sua formação em música para mostrar a dificuldade que teve em perceber que era possível omitir, conscientemente e de forma criativa, uma nota musical que “a gente ouve, de qualquer maneira”. A sabedoria do artista está, então, em permitir a participação ativa da consciência do leitor, ouvinte ou espectador: Faz parte da nossa natureza elaborar, estimar, prever – correr antes do evento. Esse é o significado da consciência; todo o resto é instinto. Bach nos permite correr antes, e suas relações, como as de Aristóteles, são tão inevitáveis (como precisam ser, dadas as restrições da forma ocidental de composição) e tão surpreendentes quanto seu gênio complexo. (...) Tanto o moderno drama legítimo (Pirandello, Ionesco) quanto o trash da arte performática constroem sobre a revelação de que a omissão é uma forma de criação – que ouvimos a terça de qualquer maneira, que o público contribuirá com a trama. (...) A pergunta fascinante da arte: o que há entre lá e si? (MAMET, 2002).

Guimarães Rosa, como Bach na música, põe o leitor para correr antes da narrativa, as inferências de leitura preencherão as lacunas deixadas pela abertura dos sintagmas. O texto se comporá a partir de um movimento de desterritorialização que desloca um sentido prévio que o leitor poderia acionar para lançá-lo em busca do novo sentido que a linguagem persegue. Em Primeiras Estórias, as narrativas constroem-se a


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partir de um motor recorrente, a nosso ver: a condição comum a todas as personagens de encontrarem-se numa situação-limite provocada pela expropriação de um lugar primeiramente ocupado. Também no nível temático, parece que estamos diante de experiências de desterritorialização. Desse desterro – simbólico ou literal – resulta a consciência de não pertencer a lugar algum. O indivíduo como que se ausenta para mais tarde superar a condição de expropriado propondo a inserção de um elemento novo – uma linha de fuga – não prevista naquela condição inicial da personagem. Trabalhamos, então, com a perspectiva de busca por novas territorialidades em cada um dos contos do livro. As personagens que passam pelo processo descrito acima são, no geral: crianças, que não sofreram ainda os efeitos do tempo e do espaço sobre si (“As Margens da Alegria”, “Os Cimos”); criança anormal, fora, portanto, das limitações do aqui/agora (“A menina de lá”); velhos fora do juízo, isto é, livres das convenções sofridas ao longo de suas vidas, isentos de responsabilidade devido à alienação de tempo e espaço em que se encontram (“A Terceira margem do rio”); os loucos e outros seres de exceção, vitimados pela excessiva pobreza ou sofrimento (“Sorôco, sua mãe, sua filha”). Essas personagens vivem uma situação inicial de seres extraordinários num mundo regido por regras que lhes são estranhas. Dessa estranheza resulta o conflito – primeiro movimento de desterritorialização – desencadeador da ação no conto; a solução esperada para o conflito das personagens dentro das regras do mundo em que vivem corresponderia à busca por uma integração ao território perdido. É preciso esclarecer que essa reintegração é algo que se pode prever no desenrolar do enredo, mas que efetivamente não ocorre na narrativa, uma vez que o que vemos é algo que não se espera, ou seja, algo que não corresponde à lógica causal. O que acontece e precisa ser visto é o milagre: a desterritorizalização da personagem em relação à sua condição inicial; trata-se, portanto, da conquista de um novo estado de existência, um novo território. A noção de acontecimento em Deleuze e Guattari (1995) liga-se diretamente à idéia de encontro; se há encontro há acontecimento. Acontecimento como evento extra-corpóreo, ou seja, algo que acontece entre os corpos. O encontro pode ser meramente extensivo, e então não haverá potência, ou intensivo, e aí há potência. O processo de desterritorizalização é motivado pelo desejo de encontro; o movimento em direção a um outro da experiência presente lança a personagem – e o


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enredo – para uma abertura de sentidos que dará expressão ao acontecimento como encontro com outra realidade. O processo de desterritorialização vivido no plano do conteúdo, mas também presente na linguagem rosiana, como vimos nos exemplos pensados a partir de Sagarana, busca expressar justamente a potência do encontro que, em última instância, torna possível aos seus elementos, de ambos os lados, o devir-outro. O encontro é que dá ao acontecimento, seja literário ou não, o seu caráter inacabado, seu movimento de desterritorialização. Está-se diante do sentido em fuga; o resultado do encontro não dimensiona o ente em nível absoluto, mas o potencializa em direções imprevisíveis; direções essas que podem determinar a reversibilidade do enredo assim como propor a abertura do desfecho. A potência da narrativa – a instauração de uma nova picada, uma vereda inédita – pode ser dita como desterritorialização, na medida em que caracteriza a experiência da personagem de modo a propor a descontinuidade, a multiplicidade ou, ainda a reversibilidade do enredo, como muito bem apontou Antonio Candido no famoso texto “O homem dos avessos”4. A desterritorialização configura-se como duração. Não é absoluta, pois é também o processo no qual agenciamentos infinitos se atualizam. Num esquema simplificado podemos dizer que a desterritorialização do enredo e da linguagem adensa e potencializa o conflito inicial dos contos e simultaneamente a pretensa solução lógica e causal, por se propor como processo e não como situação de imobilidade. Já que a solução lógica e causal para o conflito não comparece como desfecho previsível nas narrativas de Sagarana e Primeiras Estórias, o que temos é uma agenciamento de sentidos vários, pela abertura do enredo, pelo ganho de um novo território de sentido agenciado pelos processos de composição da linguagem, de cuja construção o leitor participa ativamente. O processo de desterritorialização do enredo e da linguagem de que falamos aqui associa-se ainda à noção do platô rizomático de Deleuze/Guattari (1995, p. 33). Estando o platô no meio, não tem início nem fim e age por contaminação. Os autores citados lembram Gregory Bateson, para quem a palavra platô designa algo muito especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e

_____________________________ 4 CANDIDO, Antonio. “O Homem dos Avessos”. In: COUTINHO, Afrânio. Coleção Fortuna Crítica de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.


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que se desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior. Diríamos que um platô é como um redemoinho no meio da rua, uma vez que produz um gira-rua, e a rua perde seu estado de suporte aquietado para tornar-se elemento dinâmico, agente de desterritorialização. O processo de desterritorialização vivido pelas personagens nos contos de Primeiras Estórias corresponde, nessa perspectiva, a uma potência de virtualização do estado de coisas criado pela narrativa, potência que passa diretamente por certas operações de linguagem que levam a palavra a mágicos desdobramentos. Interessa dizer, também, que as personagens dos contos são, paradoxalmente, levadas a um para além das palavras, no universo mitopoético em que a experiência é tomada a cru, sem a mediação do discurso, num universo ficcional que propõe a volta ao paraíso da absoluta apreensão e compreensão da coisa ela mesma, na imanência anterior ao nome. Podemos tomar de Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia – Vol I, uma indicação metodológica útil para acompanhar os processos de desterritorialização, do ponto de vista tanto do narrador quanto do leitor: “Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 20). E mais: “Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são de raízes, há sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo – com o vento, com um animal, com o homem” (Idem.). O milagre, aqui, consiste em apreender o real a partir de elementos imediatamente sensíveis, sem subordinação prévia a uma organização lógica. É preciso observar o quanto a linguagem em processo de desterritorialização de Guimarães Rosa foge à simples objetivação neste ou naquele ente, seja água, ar ou outro elemento, pois são os procedimentos rosianos de virtualização que vão levando águas, sóis e personagens para a estranheza de um mundo que se percebe todo misturado. Aguinaldo J. Gonçalves (1997/1998, pp. 6-17) fala de um ritmo crespo, associando a linguagem rosiana a certa concepção do barroco que se pode encontrar em Alejo Carpentier (1987). Aponto as palavras do primeiro autor citado:


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.27, 2015 Sua obra consiste numa permanente remissão para a esfera prismática da linguagem poética, engendrada sem se valer da forma convencional do verso, mas determinada por um ritmo crespo, composto de pequenos garranchos, ou de ramos secos que se enviesam e se emaranham em qualquer tentativa de fluência, ficando ali, em cada ponto de seus contornos, matizada pelo próprio nó entre ramagens que obstruem a passagem muitas vezes líquida da prosa e nos mantêm presos no entrefluxo, apesar de manter a aparente horizontalidade como base doplausível (GONÇALVES, 1997-1998, p. 8).

A metáfora do articulista dá conta de uma das sensações mais recorrentes ao leitor de Guimarães Rosa: a sensação de que o discurso pode nos lançar numa reflexão mais profunda e mais complexa do que sugeria a apreciação superficial da narrativa. Essa articulação de sentidos potencialmente alucinatórios torna-se o caminho mais profícuo para a leitura do autor. A compreensão disso seria, então, o instrumento de navegação para os caminhos insinuados pela obra de Rosa, capaz de converter as alucinações potencializadas pelas narrativas em sentido de algo que, no processo de leitura, revela-se essencial. A possibilidade inventada face a um conflito que traz em si a condição extraordinária da personagem que o vive corresponde ao movimento de desterritorialização. Esse estado alternativo equivale a um desafio diante do desenlace lógico; representa a transgressão, o milagre propriamente dito. Considerações Finais Em Deleuze e Guattari (1995, Volumes 1 e 3 de Mil Platôs), o Uno-todo é fundado em uma lógica de relações que definem a existência. No entanto, as relações, por se localizarem entre os seres e não, necessariamente nos seres, remetem à noção de nomadismo, que prevê a ocupação do território, não segundo a lógica da partilha, mas segundo uma distribuição delirante, cujo objetivo é ocupar e não possuir o território. E ainda: Uma tal distribuição é demoníaca, e não divina; pois a particularidade dos demônios é operar nos intervalos entre os campos de ação dos deuses, como saltar por cima das barreiras ou dos cercados, confundindo as propriedades” (DELEUZE, 1988, p. 54).


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As relações entre os objetos e entre os seres definem o caráter perpétuo do devir em constante mudança, pelos processos de desterritorialização, mas a mudança não é normativa (ou sedentária); é nômade, no sentido em que reinaugura de forma imprevisível o Uno-Todo, subvertendo o Mesmo em favor do Novo. Assim é o movimento da boiada em “O Burrinho Pedrês”, ou mesmo a fé ativa do homem em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, primeiro e último contos do livro Sagarana. Riobaldo, ao evocar o passado, o reconstrói num movimento inaugural em que está contida a experiência vivida ao mesmo tempo em que se combina o relato questionador e de organização, em Grande Sertão: Veredas. Nas narrativas de Primeiras Estórias, a morte (manifestação do Mesmo absoluto) pode tornar-se milagre como em “A menina de lá” ou em “Nada é a nossa condição”. A perda do pai e da identidade converte-se em busca – bem sucedida – da essência de si mesmo diante do outro em “A terceira margem do rio”. A dor e o desterro de uns pode salvar outros, como em “A benfazeja” ou “O cavalo que bebia cerveja”. A morte liberta da ira e do ódio ao mesmo tempo em que é experimentada como exercício da ética em “Os Irmãos Dagobé” e “Fatalidade”. Ainda em Primeiras Estórias, o horror do mundo sendo descoberto mistura-se à beleza e à experiência em “As margens da alegria” e “Os Cimos”. Em “O Espelho” a busca através da observação científica torna-se em experiência da espiritualidade. A loucura é a sanidade mais lúcida, porque fraterna, em “Sorôco, sua mãe, sua filha” e em “Darandina”. Uma palavra de ofensa converte-se em suma verdade de elogio em “Famigerado”. O autoritarismo desencadeia a experiência libertária da criação artística em “Pirlimpsiquice”. O medo e a solidão estabelecem o caminho para o amor em “Seqüência” e “Substância”. A coragem pondo sentido na loucura em “Tarantão, meu patrão”. O amor em inusitadas formas de guerra e cataclismas em “Luas-de-mel” e “Um moço muito branco”. A rememoração do passado tornado presente em “Nenhum, nenhuma” e a narrativa do universo infantil, paradigma do livro, em “Partida do audaz navegante”.


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Referências CANDIDO, Antonio. “O Homem dos Avessos”. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Seleção de Textos de Eduardo Coutinho. 2. Ed. Coleção Fortuna Crítica de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 294-309 _______Sagarana. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Seleção de Textos de Eduardo Coutinho. 2. Ed. Coleção Fortuna Crítica de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 243-247. COELHO, Nelly Novaes. Guimarães Rosa e o Homo Ludens. In: COUTINHO, Afrânio (org.). Seleção de Textos de Eduardo Coutinho. 2. Ed. Coleção Fortuna Crítica de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 256-263. Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). São Paulo: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. Kafka: Por uma Literatura Menor. (Trad. Júlio Castanon Guimarães). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977. _______Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. (Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa). São Paulo: Editora 34, 1995. _______Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Vol.3. (Coord. Tradução Ana Lúcia de Oliveira). Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. GONÇALVES, Aguinaldo J. “O legado de João Guimarães Rosa”. Revista USP: Dossiê 30 anos sobre Guimarães Rosa. 36. Dez., Jan., Fev. 97/98. Pg. 6-17. MAMET, David. “Mistério da arte reside na nota que falta”. Trad. De Clara Allai. In: Folha de São Paulo, 23 de julho de 2002, Caderno Ilustrada, pg. 1 ROSA, João Guimarães. Sagarana. 31ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: Signo e Sentimento. São Paulo: Ática, 1982.


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Normas da revista

Normaspara apresentação de artigos • Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: revista@abralic.org.br • Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, endereço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords. • O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo. • Após a Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência: - Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos); - Nome(s) do(s) autor(es) – - Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com maiúscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;


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– Resumo– a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10; –Palavras-chave – dar um espaço em branco após o resumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave; – Abstract – mesmas observações sobre o Resumo; – Keywords – mesmas observações sobre as palavras chave; – Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver; – Parágrafos – usar adentramento 1 (um); – Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração; – Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor; – Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10. – Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico. – Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobrenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e pagina(s).


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As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé. – Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publicação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários. – Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada. ALGUNS EXEMPLOS DE CITAÇÕES

• Citação direta com três linhas ou menos [...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta [...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as consequências de certas linhas da poética drummodiana.

• Citação de vários autores Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, Borges, 1998; Campos, 1969).


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• Citação de várias obras do mesmo autor As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confronto entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992).

• Citação de citação e citação com mais de três linhas Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148).

ALGUNS EXEMPLOS DE REFERÊNCIAS • Livro FURTADO, Marlí Teresa. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

• Capítulo de livro BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.

• Dissertação e tese NASCIMENTO, Maria de Fatima do. Benedito Nunes e a Moderna Crítica Literária Brasileira (1946-1969), v. 1, 2012, 343 p. Tese (Doutorado em Teoria e HistóriaLiterária) – Instituto de Estudos da Linguagem -, Universidade Estadual de Campinas,São Paulo, 2012


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• Artigo de periódico GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma breve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.

• Artigo de jornal TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Maria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O comum e o disperso: história (e geografia) literária na Itália contemporânea. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S1517106X2008000100005&script=sci_arttext>. Acesso em: 6 fev. 2009.

OBSERVAÇÃO FINAL: A desconsideração das normas implica a não aceitação do trabalho. Os artigos recusados não serão devolvidos ao(s) autor(es).


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