Edição Nº 3 - Rio de Janeiro, 1996

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ISSN-Ol 03-6963

A Revista Brasileira de Literatura Comparada (lSSN-0l03-6963) é uma publicação anualda Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. DIRETORIA DA ABRALIC - 1994-1996 Presidente: Eduardo F. Coutinho (UFRJ); Vice-Presidente: Beatriz Resende (UFRJ); Secretária: Angela M. Dias (UFRJ); 2 Secretária: Heloísa Toller Gomes (UERJ); Tesoureira: Pina Coco (PUC-RI); 28 Tesoureira: Lídia do Valle Santos (UFF). 8

CONSELHO DA ABRALIC - 1994-1996 Benjamin Abdala Júnior (USP); Edson Rosa da Silva (UFRJ); Eduardo A. Duarte (UFRN); Eneida Leal Cunha (UFBA); Laura C. Padilha (UFF); Leyla Perrone-Moisés (USP); Regina Zilberman (PUC-RS); Rita T. Schmidt (UFRGS); Vera Lúcia Andrade (UFMG); Suplentes: Danilo Lobo (UNB); Sérgio Prado Bellei (UFSC). CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevre!.

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© 1996. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editoração Eduardo F. Coutinho Beatriz Resende Angela M. Dias Heloísa Toller Gomes Pina Coco Lídia Santos Produção gráfica Rodrigo Rocha Coutinho Composição Carlos Alberto Herszterg Produção editorial e gráfica In-Fólio - Produção Editorial, Gráfica e Programação Visual Ltda. Rua das Marrecas, 36 - grupos 40\ e 407 - Rio de Janeiro Te!.: (021) 533-0068 e 533-2337 - Fax: (021) 533-2898 Tiragem 1.200 exemplares Apoio CNPq/FINEP

CIP·BRASIL. CATALOGAÇÃO·NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R349 Revista brasileira de literatura comparada. - N. I (1991) - Rio de Janeiro : Abralic, 1991 - v. Anual Descrição baseada em: N. 3 (1996) ISSN 0103-6963 1. Literatura comparada - Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.

96-1200

CDD 809.005 CDU 82.091(05)


Apresentação

Com o intuito, já visível em seus números anteriores, de instaurar um verdadeiro intercâmbio entre os diversos centros nacionais e estrangeiros onde se estuda a Literatura Comparada e de interferir de modo mais eficaz no debate cultural da atualidade, a Associação Brasileira de Literatura Comparada lança o terceiro número de sua revista. Este volume reúne ensaios que fornecem um retrato das diretrizes tomadas pela disciplina em seu momento mais recente e buscam desencadear uma reflexão aprofundada sobre as questões que a vêm ocupando. Além do debate em torno de problemas teóricos do comparatismo, publicamos textos voltados para temas como o do nacionalismo, da identidade cultural e do diálogo de culturas. assim como outros interessados na discussão sobre novas formulações e um novo estatuto para a Historiografia e a Teoria Literárias. O debate sobre o papel do Brasil no contexto latino-americano. bem como sobre a produção cultural do continente, também ocupa boa parte das atenções. A diferenciada procedência e os múltiplos campos de pesquisa dos colaboradores comprovam a amplitude e a importância da ABRALIC. A disposição dos ensaios, procurando respeitar a diversidade dos interesses, resulta numa seqüência relativamente aleatória. As associações e enlaces ficam por conta do leitor. A Comissão Editorial


Sumário

Does Eyptology Need a "Theory of Literature"? Hans Ulrich Gumbrecht

Encontros e desencontros narrativos Eduardo Portella

Hacia una historia literaria postmoderna de América Latina Mario Valdés

Literatura e nação: esboço de uma releitura Luiz Costa Lima

As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada: o (des)encontro de Marinetti e Mário de Andrade em 1926 Jeffrey T. Schnapp e João Cezar de Castro Rocha Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil Tania Franco Carvalhal

Literatura comparada. literaturas nacionais e o questionamento do cânone Eduardo F. Coutinho

09 23

27 33 41

55 67

o romance latino-americano do pós-boom se apropria dos gêneros da cultura de massas lrlemar Chiampi

Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada Benjamin Abdala Júnior

75 87


La creatividad artística de la mujer: Como agua para chocolate María Elena de Valdés

o leitor, de Machado de Assis a Jorf!e Luis Borf!es R;gina Zilber:wn

o histórico e o urbano: sob o sif!no do estorvo Renato Cordeiro Gomes

Teoria da literatura: instituição apátrida Heidrun Krieger Olinto

Romance e História Letícia Malard

97

107 121 131

143

o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução: rasura de limites? Célia Maria Magalhães

Transcodificação e metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues Fred M. Clark

Identidade nacional e sociedade multicultural Silvano Peloso

A nação e as narrações híbridas: literatura hispânica dos Estados Unidos Sonia Torres

As sombras da nação Luís Alberto Brandão Santos

A passante e o "choque": a experiência da fugacidade no cinema e na literatura Suzi Frankl Sperber

EI Síndrome de Merimée o la espafiolidad literaria de Alejo Carpentier Luisa Campuzano

151

159 165

171 179 187 199


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

Hans Ulrich Gumbrecht

Would Egyptology as a discipline (or, more precisely, would a part of the discipline called "Egyptology") fare better if it intensified its intellectual exchange with the "theory of literature"? The question is more complex than it may appear at first glance - and this is true for a number of different reasons. Above ali, it is far from being obvious, at least it is far from being obvious to me, what the scholarly community of the Egyptologists needs or wants, and it is equally difficult to say what exact!y the heterogeneous enterprise of literary theory can offer today. Secondly, as both Egyptology and literary theory are institutions (or "discourses") with their particular histories, there is no guarantee that these two institutions/discourses will converge in that kind of dialogue or exchange whose possibility is already taken for granted in the question of whether Egyptology needs a theory of literature. A naNe approach would presuppose that Egyptology and theory of literature are nothing but the absorption of phenomenal fields (Ancient Egyptian culture and Literature) by scholarly discourses which, somehow inevitably, belong to the same categoricallevel. In reality, however, an infinity of possible perspectives and functions may shape the mediation between any field of objects and the scholarly discourses referring to it (a scholarly discourse, for example, could conceive of itself as offering the interiorization of [more or less] practical skills, or as a contribution towards the constitution


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of a national identity, or as participating in the exploration of possible functions of the human mind) - so that an unproblematic encounter between discourses like those of Egyptology and literary theory (on the basis of an identical or at least similar relationship to their objects) is very unlikely. This is why, if we are serious about finding an answer, we must begin by contextualizing the question of whether Egyptology needs a theor)' of literature. We will therefore take a closer look at the historical circumstances that accompanied the emergence and the development of both Egyptology (I) and of literary theory (2) in order to identify possible epistemological and discursive asymmetries (3) between them, asymmetries which ma)' potentiaUy complicate their dialogue. While such a contextualization wiU indeed enable us to come up with an answer or, ralher, with a series of answers to our key question, these answers will remain obliqlle because. as we wiU see, the relationship between Egyplology and literar)' theory proves to be not a particularly easy one. The contemporary slale of Egyptological research offers highly interesling results to lhe disciplines in its scholarly environment (4) but, on the other hand, literary theory has a tendency today, stronger perhaps than ever before, of suggesting a thorough historization of the concept of "literature". Once we know which specific varieties of literature literary theory is actuaUy dealing with, this may generate serious scepticism about the applicability of results coming from literary theory to a culture as remote from the occidental tradition as that of Ancient Egypt. (5) But, then, turning around the initial question, should one not at least say that literary theory needs Egyptology? The answer is, once again, complex (6) - for it depends on how we determine the tasks and functions of literary theory. One expectation, however, remains stable within and despite such considerable complexities. With literary theory or withoUI it, Egyplologists wiU find fascinated readers inside and outside of the academic world.

1 It is almost uncanny to read that, several centuries ago, lhe sites of lhe pyramids were "a favorite riding, hunting and tournament ground for lhe social and military elites of Muslim Egypt" and that, for the longest time. the worldview of Islam attributed dangerous magic int1uences to the remainders of that remote culture which nobody could understand because nobody could decipher its writing. Even those Ancient Greek authors who had accumulated such an impressive body of knowledge about the history and the institutions of their neighboring empire gave Egypt a "marginal position" within their own mappings. From the angle of the Christian tradition, final1y, the pyramids and their world were, so to speak, in a relation of half distance because, on the one side, motifs from Egyptian narratives, mediated through


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

I. See the entry "Mummies", in: GUMBRECHT, Hans UIrich. In 1926. An Essay on Historical SimuItaneity. Cambridge, Ms., 1997, XX-XXX.

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Coptic texts, found entry into many apocryphal stories but, on the other side, these motifs never reached the canon of the Gospel. At no other moment since its final disappearance during the times of the Roman Empire, have Ancient Egypt and its texts indeed been as close and, even on a popular leveI, so well explained as during our century within western culture. If the obsession with looking into Tutankhamen's face and the egyptomania of the 1920s were perhaps the most intense moments of this presence,I the volume of knowledge made available and the intensity of our historical understanding have dramatically increased over the past decades, while the place of Ancient Egypt within educational curricula and publishing programs seems to be as stable as ever. There is no need to insist that alI of this would not have been possible without the stunningly successful history of "Egyptology" as an academic field of research. For it belongs to our general cultural knowledge that the origins of Egyptology (with more irrefutable evidence than those of most other disciplines) go back to an initial event and to an initial achievement, i,e" to Napoleon's expedition to Egypt between 1798 and 1801, which led to the disco\'ery of the stone of Rosette and to the deciphering of the hieroglyphs. in 1822. by Champollion. In contrast. it is much less evident than for the disciplines focussing on national cultures what really motivated the Egyptologists of the first generation in their heroic labor of transcribing, translating, and editing texts. Occasionally, we can reconstruct an individual reason for such enthusiasm, like Charles Wycliff Goodwin's and FranรงoisJoseph Chabas' ambition to prove wrong the interpretation of certain papyri as a testimony for the Israelites' exodus from Egypt. On the whole, however, it appears to be symptomatic that early Egyptologists, in their large majority, were amateur scholars. During several decades, there was no obvious need nor interest on the States' side to institutionalize Egyptology as an academic discipline. It is not untypical, in this respect, that, towards the end of the 19th century, the University of Berlin became a center for the systematization (mainly consisting in writing grammars and dictionaries) of the work produced by the first generation of Egyptologists. Nowhere was the academic ideal of "covering" the full horizon of known cultures and of all the available cultural materiaIs more rigorously pursued, even in the absence of an immediate political interest, than in Prussia and, since 1871, in the Germany of the Second Empire. By 1927, it probably was quite a normal expectation that an ambitious editorial project like the Handbuch der Literaturwissenschaft (which in fact was rather a manual of literary history than of literary studies in general) would contain a chapter on Ancient Egyptian literature. This chapter in the Handbuch der Literaturwissenschaft, written by Max Pieper and published under the title "Di e aegyptische Literatur", together with a review article by Alfred Herrmann, illustrates an important bifurcation


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within the history of Egyptology. While Pieper used texts labeled as "Iiterature" with the mere intention of gaining access to the history of Ancient Egyptian culture, Herrmann insisted on the task of analyzing the complete corpus ofEgyptian literature from the angle of a form-oriented reconstruction of Iiterary genres. This divergence between Pieper and Herrmann might be long forgotten, if it were not for the publication, in 197.t. and for the success of an essay in which Jan Assmann proposed a recourse to the then mueh debated (but already more than fifty years old) theones of the Russian Formalists. The intention was, once again, to de'-elop a concept of "literature" compatible with a specific sub-group within the total corpus of Aneient Egyptian texts. 2 What particularly fascinated Assmann in this context was the Formalists' idea of purely relational definitions for the "Iiteratures" within each specific culture and each historical period. definitions of literature that were meant to depend entirely on the difference between the "literary" texts and their particular discursive environments. The discussion of Assmann's proposal within Egyptology seems to have led to a much less theoretically conscious concem with "literariness", to a concern also that has not always resisted the temptation of using substantialist (non-historicized) sets of criteria in order to determine which Old Egyptian texts should be regarded as "literary". Altogether, it was surprising for me to discover such an intense debate about textual classifications and about textual forms generally referred to as "aesthetic" within a discipline whose broad success has always been based on its contributions to our knowledge of cultural history. 8ut what is surprising must not necessarily be problematic or even illegitimate.

2 Der literarische Text im al-

ten Aegypten. Versuch einer Begriffsbestimmung_ In: OIZ 69:117¡26,1974.

2 Different from Egyptology, the field of !iterary studies (as an assembly of academic disciplines that inc1ude, each, the historiography of a national literature in an European language, the practice of literary interpretation. and debates about a theory of literature) does not have a clear-eut. consensual reference when it comes to narrating its historical origino On the other hand, it is easier for literary studies than it is for Egyptology to understand why the disciplines gathered under its umbrella found strong support from the State's side and why they were thriving all over the 19th century in most European countries. 3 A point of departure for narrating the history of Iiterary studies could be the then new divergence and the fast widening gap between normative conceptions of society and gap brought in to being, as a new cultural space to which, at least theoretically, every citizen had access, the sphere of leisure. Leisure was constituted by activities that either fostered the iIIusion of enjoying those privileges which the normative image of society promised to everyone (without fulfilling this promise in everyday life), or it offered

J. See GUMBRECHT, Haos UIrich. Un souffle d'Allemagoe ayaot passĂŠ. Friedrich Diez, Gaston Paris, and lhe Origins of National Philology. In: Romance Philology 40:1-37, 1986; Idem The Future of Literary Studies? In: New Liferary History 26:499-519 (Summer 1995); REAnINGS, BiII. The Uoiversity in Ruins. Cambridge, Ms., 1996.


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

.. See GUMBRECHT, Hans UIrich. Medium Literatur forthcoming in: FASSLER, ManfredJ HALBACH, W u If I KONITZER Ralph, eds.: Mediengeschichte(n). M端nchen 1997, XXXXXX.

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forms of experience suggesting that the perceived gap between everyday-life and the self-glorifying image of society did not "really" exist. During the decades of European Romanticism, the writing and the reading of literature became a part of this sphere of leisure. Reading literature was regarded as a kingsway towards the interiorization of the normative image of society, and literary studies were created as an institution that supported the discourses of literature in fulfilling their new function of mediating between everyday experience and the official social utopia. This occurred under two different modalities. Wherever the bourgeois Reforms were reactions to a situation of defeat and of national humiliation (like in Gemlany), the normative conception of society drew its values, its images, and its metaphors from a glorified, mostly medieval past which, from a (for us problematic) 19th century perspective. appeared almost naturally to be a national past. Under such circumstances. literary history and the editing of texts from the "national" past became a concem, in addition to the production of textual interpretations for the orientation of non-professional readers. In those cases, however, in which the bourgeois Reforms or Revolutions occurred without a nationally humiliating event, like in England or in France (at least before 1871), the normative image of society consisted in an ideal notion of Makind which presented itself as universal - but which, today, we can easily identify as composed by specifically European (and often even: nationally specific) values. A crucial condition for this framing of an academic discipline was an - again - historically specific concept of "literature" which literary studies, in their early beginnings, projected indiscriminately to the different periods of literary history.4 This concept presupposed that any literary text was the product of an inspired individual author's intention and agency (i.e. the emanation of a "genius"); that literary authors, without personally knowing their readers, were always close, in the texts they wrote, to the reader's most intimate thoughts and desires; that neither the writing nor the reaeling of those texts was informed by any concrete interest anel that, therefore, their generalized semantic status was that of fiction; that phenomena ofform played a more important role for literary texts than within any other type of discourse. Later, it became an increasingly accepted - and often feareel - expectation that literary texts had a criticai or even a "subversive" potentiaL Three important contrasts between the disciplinary development of literary studies and the early stages of Egyptology have become evident from this short description. Firstly, no specific concept of literature, neither implicitly nor explicitly, plays a foundation for Egyptology. Secondly, as claims for a continuity between Ancient Egyptian culture and the present of the western nations have never been made, Egyptology, unlike literary studies, does not participate in any functions of social or political legitimation. This,


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thirdly, must have been a main reason why, despite the complexity of the tasks implied and despite the ear1y date of its foundational events, the process of professionalization and the academic institutionalization of Egyptology occurred with a considerable delay compared to literary studies. From the point of view of the unquestioned status and the social impact of the discipline, the 19th century was probably the great age of literary studies, in particular of literary history. The discipline underwent a first serious crisis, especialIy in those countries which had folIowed the German model of academic institutionalization. during the first decades of our century - and the emergence of the subfield called "literary studies" was a direct reaction to this crisis. What became problematic. in a changing epistemological environment and under the traumatic impact of the first World War, were those idealized concepts of the nation and of Mankind which. fram their beginning, had been the most important horizons of reference for the literary disciplines. As these horizons began to vanish, literary scholars saw themselves confronted with a number of questions that had been implicitly answered (or should one rather say: that had been successfulIy silenced) by the disciplinary practice during the 19th century. These questions have ever since constituted the field of literary theory - and what has guaranteed their survival was the fact that they never found definitively satisfying answers. The first of these questions concerned the function of literary studies (now that this function could no longer consist in its contribution towards the mediation between the everyday experience and the normative image of society). The second new question carne fram the need for a metahistorical definition of literature with which to circumscribe the field of literary studies (previously, the romantic notion of literature had been taken for granted in this context and, in addition, there had been a tendency to attribute the status of "literature" to any text that could be used in the function of mediating between the normative image of society and everyday experience).5 FinalIy, it was now no longer obvious how the history of literature would relate to other lines of historical development (before, alI different histories had been seen as converging in the one normative concepts of the nation or of Mankind). These three questions were primordial, for example, within Russian Formalism which is generalIy regarded as the first "theory of literature" deserving this name. But there was another new form of practice emerging within literary studies which reacted to the crisis of the discipline. This practice, particularly influential among some of the most outstanding German scholars of the 1920s,6 did not develop a self-referential discourse as programmatic as that of Formalism and is theret"ore more difficult to identify. It presupposed a shift from discourses presenting national histories of literature as linear developments towards a paradigm ot" comparison between chronologicalIy parallel segments within different nationalliteratures. Such

5 This is the reason why the medieval corpora wi thin the different European national literature always incJude texts. such as prayers. recipes, contracts etc., that we can by no means associate with our modern concepts of "literature".

". See

GUMBRECHT,

Hans UI-

rich. Karl Vosslere noble Eineamkeit. Über die Ambivalenzen der 'inneren Emigration'''. In: GEISSLER, R./Popp. W., eds.: Wissenschaft und Nationalsozialismus. Essen, 1988, 275-298; id: Pathos of the Earthly Progress'. Erich Auerbach's Everydays. In: LESeth, ed.: Literary History and the Chalenge of Philo-

RER,

logy. Stanford, 1996, 13-35. Regarding the emergence of the discipline of Comparati ve Literature, see PALUMBO-LIu, David: Telmos da (in)diferença: Cosmopolitismo, Política Cultural e o Futuro dos estudos da Literatura. In: Cadernos da Pás/Letras. Rio de Janeiro, 14:46-62, 1995.


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

In this regard, it is interesting to know that the editor of the above/mentioned Handbueh der Literaturwissensehaft was Oskar Walzel, one of the most influential representatives ofthe eomparative (and eultural-historieal) approaeh in literary studies. See e.g. his: Vom Geistesleben des 18. und 19. J ahrh underts. Lei psi g, 1911 (trans. into English in 1932.) AndrĂŠ Jolles' extraordinary book, Einfache Formen, (Halle, 1930), whose impact on Egyptology is mentioned by Schenkel, belongs ioto the same historieal eontext. 7.

R. This, I suppose, must be the main reason for the sceptieism, artieulated by Wolfgang Schenkel, regarding the possibility for Egyptologists to wrĂ?te a "History of Egyptian Iitefature".

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comparing become a way of reconstructing certain features that characterize specific periods within European culture. Literary history, in this context, turned into cultural history. It seems that Egyptology responded to both of the new paradigms which carne out of the crisis of literary studies, to literay theory and to the new discourse of cultural history. But the moments of highest intensity in these responses inverted the order in which the new paradigms had emerged. While the model of cultural history probably reached its greatest influence within Egyptology during the 1920s, (contemporary to its culminating moment in literary studies),7 the broad reception of the Formalists began only fifty years later, simultaneous to their enthusiastic rediscovery within literary studies. But it is perhaps less important for us to reconstruct the details of similar historical filiations than to emphasize those insights resulting from our brief juxtaposition of the histories of Egyptology and of literary studies (including literary theory) which directly concern the key problem oftheir epistemological compatibility. Without always taking it into account, literary studies have been based, since their beginning, on a highly specific concept of literature, a concept which is unlikely to have any more than rough parallels within Ancient Egyptian culture. 8 Emerging from chronologically close but culturally very different contexts, it is not surprising that the academic disciplines of Egyptology and of literary studies have developed different political concerns, different intellectual paradigms, and different discursive models. Literary theory, in specific, is an academic subfield whose questions and whose accomplishments depend direct1y on a particular moment in the history of literary studies. There is no guarantee, to say the least, that the results of literary theory can ever be successfully transferred and applied to any disciplinary field outside literary studies.

3 Such very general considerations about possible asymmetries between Egyptology and literary studies become more concrete as soon as one compares some of the specific conditions and difficulties under which Egyptologists do their work with the practice ofthe historian of western literatures. One of the most striking contrasts is that between an extreme scarcity of documents available for Ancient Egyptian culture and, on the other hand, an abundance of primary texts with which even the medievalists among literary historians are struggling today. If Egyptologists must ask the question, for example, whether any equivalent to a literary discourse existed during the Ancient Kingdom, if a specialist counts a total of between twenty or thirty distinguishable traditions for literary texts during the Middle Kingdom, and


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if the work of editing and translating in a field as important as that of the demotic texts is still in its initial stage, then the observation of any kind of historical development within Ancient Egyptian literature, due to such scarcity of sources, has a highly hypothetical status - and the reconstruction of any intertextual networks is perhaps simply impossible. Egyptologists are certainly aware of the consequences which this situation has for the status of their discourses - up to the point where such awareness has become a key-component in the intellectual identity of their discipline. This challenge coming from the discipline's precarious documentary basis is aggravated both by the lack of any meta-commentaries and concepts, within Ancient Egyptian culture, regarding the texts characterized as "literary", and by the fragmentary character of most of the textual sources that we possesso The state of the discipline's archive and the distance that separates us, on different leveIs, from Ancient Egypt confront the Egyptologist with hermeneutic challenges that could hardly be any tougher - and any more elementary. At the same time and for the same lack of centextualizing knowledge, the highest leveIs of hermeneutic sophistication often remain inaccessible for the Egyptologist. As long as it is unclear whether or not a specific textual passage must be read as a metaphor and whether another one is a euphemism for a sexual detail or a phrase without any sexual connotations, as long as the Egyptologist's task is often reduced to "translating what he does not understand", concerns like those, for example, of deconstruction or of critique gĂŠnĂŠtique are quite secondary. Other limits and problems of Egyptology havc to do with the multiple writing systems which Ancient Egyptian culture developed and with the materiality ofthe media which it used. Given the strictly consonantic character of these writing systems, there is no hope for us to ever imagine the sound qualities of Ancient Egyptian texts, which of course makes particularly precarious the analysis and even the identification of lyrical texts. On the other hand, one may suppose that the role played by the form of graphemes in the construction of texts, including the constitution of their content, must have been quite different from the reduced importance typically attributed to graphemes within our - logocentric - western culture. But above all the multiplicity of the writing systems and of the material media belonging to Ancient Egyptian culture makes highly problematic the assumption that Ancient Egyptian literature constituted a unity. We know that, at least statistically, certain relationships of preference existed between determinate textual genres and the different writing systems (i.e. monumental hieroglyphs, cursive hieroglyphs, hieratic writing, and demotic writing). The picture becomes even more complex - and even more potentially heterogeneous - if one takes into account, as a third leveI of reference, the different materiaIs on which texts (in different letters) were written - such as walls, papyri, wood


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

From a similar perspective, !iterar) slUdies have discussed. during recent years, whether the emergence of the concept and of the forms of Iiterature to which we are used in westem cultures was flot a result of the institutionalization af the printing press. See SMoLKA-KoERDT,Gisela/ SPAN路 GENBERG, Peter-Michaell TILL路 MANN.BARTYLLA, Dagmar, eds.; Der Urspring van LiteraY.

ture. Medien/Rallen/Kammunikationsituationen zwischen 1450 und 1650. M眉nchen,

1988.

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tablets, and ostraka. Finally, at least during the New Kingdom, situations of diglossia introduced the simultaneous existence of historically different layers of language as a further complexifying dimensiono Of course Egyptologists thematize all these problems, with special emphasis given, it seems, to the functions and generic restrictions of monumental hieroglyphs. But two overarching questions - highly interesting questions from the perspective of contemporary literary studies - still remain to be addressed. The first of these questions - the one emphasizing historical difference - is whether a more systematic approach to the phenomenal leveIs of the writing systems and of the material media would not generate new insights into the institutionalization of and the distinction between different communicative forms, especially between those communicative forms that remain without self-reference in Ancient Egyptian culture and must therefore be recuperated inductively.9 Which are the gemes, for example, that only materialized in monumental writing? The second question is a self-reflexive question regarding the present state of lhe Egyptological debates. If we make an association between the western concept of literature, logocentrism, and a lack of attention dedicated to what Derrida calls the "exteriority of writing", could we then say that the Egyptologists' fascination with the (inevitably homogenizing) concept of "literature" necessarily implies the risk of losing out of sight the dimensions of the writing systems and of the media?

4 To emphasize, as the previous section did, that Egyptogists are confronted with difficulties and tasks unknown to literary critics and historians of Iiterature, with tasks also that sometimes seriously Iimit their possibilities of understanding and of historical reconstruction, does of course not mean that Egyptology has nothing to offer to its neighboring disciplines. The contrary is the case. Whenever Egyptologists, in their analytical practice, have not been relying on the universal validity of certain patterns generalized within western cultures, they have produced insights that are the more important for the historians and theorists of literature as they are all highly counterintuitive. In their majority, these insights focus on the pragmatic conditions for lhe production and reception of texts in Ancient Egypt. Of particular interest are the manifold and complementary observations regarding the status of writing and of writing competence. Based on the fact, trivial for Egyptologists, that the quantitatively most important source for texts from Ancient Egypt are indeed tombs, the logical consequence that texts not having to do with tombs constitute the exception has made questions about the functions of these "other texts" particularly productive. These questions drew new attention to the - only vaguely institutionalized - social situation


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of Aneient Egyptian sehools and generated the thesis that knowing how to read and how to write (and, with it, the eapacity of "inhabiting" a eertain number of highly eanonized texts) was synonymous with "being an Egyptian". As soon, however, as we aecept this suggestion, the historie aI reference of "being an Egyptian" is reduced to a smalI elite within that culture, more precisely to "the titled and official classes". If papyri were the most frequently used material medium facilitating this process of socialization, it is obvious that the royal inscriptions in monumental hieroglyphs fulfilled different functions. Above alI, they were meant to impose a specific impact on the beholders and their behavior, and they thus became part of "the state's memorial of elite values". In the context of similar reflections and reconstructions, Egyptologists rely on the concept of "genre", especially on an interpretation of "genre" coming from Protestant theologylO which presents each recurrent textual form as shaped by a specific "Sitz im Leben". Such attention given to the frame conditions under which texts were produced and used has greatly differentiated the understanding of the relationship between power and religion in Ancient Egypt. The knowledge of certain texts and their content was indeed an essential condition for the pharaoh's power. To read those texts meant to reenact a set of ideological models. Within Egyptian culture, such constant commemoration of certain values constituted a necessary function that was covered by the broad corpus of didactic texts. For, typically, Egyptian gods were not expected to provide cIear-cut distinctions between sins and virtues, and they therefore left a void regarding ethical orientation - which theology in and by itself could not easily filI. A particularly interesting genre, a genre with a very different - but also religious - origin is that of autobiography. Without any exceptions, its early manifestations were dedicated to what was the central project in every Egyptian's life: the reassurance of aspiritual and, in a certain sense, also material - survival after one's physical death. This wish, which transcended the mere hope of being remembered by one's posterity, this wish for "real presence" (and the allusion to a key-motif ofmedieval theology is deliberate here) explains why we find early autobiographies as hieroglyphic inscriptions carved into widely visible stelae that were erected in public places. While such early examples of autobiography always render a highly conventional and highly idealized image ofthe person in question, the genre ended up coming much cIoser to our modern expectations of an individualized and individualizing account. This historical development culminates in the fictional narrative about the life of Sinuhe, the perhaps most unusual and (according to our modem criteria) the most "literary" text within Ancient Egyptian culture. That such changes on the leveI of genre-typical content went along with a development of the generic functions appears from certain changes, occurring over the centuries, in the mediatic presentation of autobiographical writing. But as c10se as the forms and

10. See JAUSS. Haos Robert. 1beorie der Gattungen und Literatur des Mittelalters. In: DE!.BoUIU.A, Maurice, ed. Grundiss der rornanischen Literaturen des Mitte1alters. Heidelberg, 1972. Vol. I, 107138. esp. 129-134.


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

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functions of certain Egyptian genres may come to certain patterns of the western tradition, important and interesting differences remain. A particularly striking case is the concretization of the function of entertainment within the Egyptologists' debates. Often, "entertainment" seems to have responded to the need of calrning the pharaoh's temper - which, at the Egyptian court, meant much more than just pleasing or flattering the ruler. For the pharaoh's temper, perhaps even his melancholy (if we may use this word despite its historically very specific meaning), constituted situations of concrete danger for the courtiers and even for the members of the royal family. Being interpreted as part of a cosmologícal disorder, the pharaoh's temper was never reduced to just being the symptom of an unp1easant individual disposition. One of the most fascínating aspects within the pragmatics of Ancient Egyptian texts (a topíe that hterary historians should more systematically explore) regards the question of authorship. While most texts are not related to any name at alI. Egyptologísts are certain that. in the cases of those two genres whose texts are quite regularly attributed 10 individuaIs, i.e. in the case of didactic Iiterature and in that of autobiography. the name-references do not correspond 10 our modem criteria of authorship. Regarding the autobiographies, there is no reason to believe that those in whose name they were written - in the first person - were those who actually composed the texts. If it is characteristic for didactic texts that they present themselves as the work of individuaIs (mostly of individuaIs that had lived in a chronologically remote age), we tend to believe that, with a few exceptions, these attributions were invented because they gave the texts that specific aura of dignity which we associate with wisdom. The sum of such observations regarding the question of authorship suggests that we need to rethink the entire problem for the context of Ancicnt Egyptian culture. This rethinking has indeed already begun. Egyptologists have thus come to postulate that, from the point of view of authorial agency, the pharaoh may have been regarded as the only and universal author of ali texts - not unlike the god of the Christian Middle ages for whom the Latin word "auctor" was reserved. Others think that the role of authorship may have corresponded, at least for the majority of the texts transmitted, to the owners of monumental tombs.

5 The topic, predominant within the pragmatics of Ancient Egyptian culture, of the intricate and seemingly ubiquitous relationships between those texts which Egyptologists define as "literature" and the different forms of religious practice brings us back to the main question with which this essay is confronted. It is the question (now more abviaus in its complexity) af whether ane can successfuly apply certain definitians af "literature" and


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other results of Iiterary theory to Ancient Egyptian culture. Let us discuss one more example. Together, literary and theological texts constitute "the majority of our evidence" for the existence of myths during the Middle Kingdom. This precisely explains the impression that aesthetic functions and functions of magic were often intertwined, and that, although any kind of magic implies strong claims of referentiality, fictional texts could be used in contexts of magic practice. In the case of this interesting discursive configuration, too strong an emphasis on the "literariness" of certain texts and, as its consequence, an isolation of these "literary" texts from the rest of the Egyptian corpus could imply the risk of missing - or even of losing - insights into those phenomena of cultural alterity by which the neighboring disciplines of Egyptology and the non-academic readership are so particularly fascinated. Conversely, a not sufficiently skeptical application of the concept of literature may also run the risk of producing effects of homogenization and impressions of homogeneity that are as problematic as the effects of isolating literature from its discursive environment. Therefore, Egyptologists who seek a dialogue with the most recent debates in literary studies should pay specific attention to its present tendency of developing distinctions between different leveIs of mediality, to a tendency, that is, which has opened up new perspectives of internaI differentiation and historization within the field of western literatures. 1l For it is Iikely that the application of this aspect to Ancient Egyptian culture could, in turn, generate insights of paradigmatic value for Iiterary studies. The functional differentiation between different writing systems in Ancient Egypt, for example, appears to be more complex and, at the same time, more systematized than in any of the western Iiteratures. In contrast, analyses about the degrees of "poeticity" represented by certain Egyptian texts or investigations regarding their status as "artworks", as impressive as their argumentations may sometimes look, will always be accompanied by doubts about their historical and cultural appropriateness. At the end, an outsider cannot quite repress the question what is at stake in the Egyptologists' contemporary fascination with a concept of literature adopted from literary theory - if so much seems to be at risk. Doubtlessly, this fascination must be motivated and guided by some intuitions which the outsider, for a sheer lack of reading competence, is not capable of sharing. In the interest of a fruitful intellectual exchange between the disciplines, it would certainly be helpful to make more explicit these intuitions which have led to the be\ief that \iterature, in the western sense of the word, was a part of Ancient Egyptian culture. But is it too simplistic to go one step further and ask whether, in addition, the concern 01' a small group of specialists not to lose the contact with the ongoing debates in the neighboring disciplines may have played a role in Egyptology's shift to "literariness"? On the one hand, it can only be in the interest of the scholars of modern Iiteratures that Egyptologists

11 See, as evidence for this concern. a number of the contributions to GUMBRECHT, Hans Ulrich / PFEIFFER, K. Ludwig, eds.: Materialities of Communication. Stanford,

1994.


Does Egyptology Need a "Theory of Literature"?

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have and foster such concems. On the other hand, however, literary scholars would be disrespectful of their colleagues in the field of Egyptology if they did not openly and (if neeessary) critically react to the results which their interest for literary theory has produced_ From the point of view of the ongoing discussion in literal)" studies. theorists of literature are under the obligation to wam Egyptologists against the possible emergence of what one may call "epistemological anefaets"_ against historical reconstructions, that is, which are visibly shaped by problematie asymmetries between the theoretical concepts used and the cultural phenomena analyzed. At the same time, we should insist that the intellectual tradition of literary theory has far more to offer than just definitions of literature that pretend to be of metahistorical and transcultural value. If, as I would argue. there is nothing wrong with the traditional Egyptological habit of reading texts primarily as historical documents, then we can conclude that the development of cenain motifs which dominated in the Egyptologists' dialogue with liter~ studies during the 1920s would have a greater intellectual potential than the continued insistence on the Formalist and Structuralist agenda_ After alI. this agenda is not as modem as it may look. What was rediscovered and partly re\Ă?sed by literary studies - and by Egyptology - during the 1970s goes back. in its epistemological origins, to the turning of the century.

6 12. See After Leaming fiom History, lhe introductory chapter to my forthcoming book: In 1926. An essay on Historical SimuItaneity, Cambridge. Ms., 1997.

13. See, for a complex discussion, \sER, Wolfgang. Key ConceplS of Currrenl Lilerary

Theory and lhe Imaginary, and

Toward a Lilerary Anthropology, in: Prospecting. From Reader Response lo Literary Anthropology. BaItimore, 1989,215-35,262-84. 14. See GUMBRECHT, Hans UIrich. Everyday-World and "Life-World" as Phi1osophical Concepts. AGenealogical Approach, in: New Uterary History 24:745-61, 1993/94.

Ancient Egyptian cuIture is so remote from our present-day concerns that we cannot easily hope or even claim to "learn" anything immediately useful from it. 12 Becoming familiar with Egyptian eulture will nOl pro\"ide us with solutions for everyday problems nor contribute to the legitimation of institutions existing in the present. This lack of a primarily e\Ă?dent "usefulness" may be one reason why it has become a temptation, especially within the European academie contexto to integrate the results of Egyptological research into the larger framework of a "historical anthropology". Historical anthropology (if I understand the eoncept correctly)13 seeks to juxtapose and to systematize a broad variety of historically and culturally different forms of human behavior and its manifestations, with the ultimate goal of rendering a picture of the potential and of the limits implicit to the human mind - and perhaps also to the human body. From this perspective, the notion of a "historical anthropology" comes close to Edmund HusserJ's concept of "lifeworld" - especially to its sociological interpretations. 14 While historical anthropology as a possible context thus offers a function to Egyptological research - however vague and purely academic this function may be - one should not completely repress, at least within the contemporary epistemological situation, a c.ertain dose of skepticism: Does historical anthropol-


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ogy not inevitably imply the problematic presuppostion that something like a common denominator of "the human" must exist? And do we not run the risk of reducing the fascinating alterity of a culture like that of Ancient Egypt if we oblige ourselves to constantly compare and compatibilize it, under the pressure of such an "anthropological" framework, with phenomena belonging to different cultures? While such reservations are hard to eliminate, there is of course also the danger, on the other hand, of endlessly indulging in the exotic otherness of Egyptian culture. This would be the danger of "orientalizing"15 Ancient Egypt, the danger of an attitude as inacceptable, from an epistemological point of view, as the tendency towards uncritical and boundless totalization which is inherent to the paradigm ofhistorical anthropology. In cultural moments like ours, where the validity of the most venerable forms of practice, with their under1ying presuppositions and values, is no longer self-evident, we are condemned (or should we rather say: we are blessed with the opportunity) to speculate about possible preconscious fascinations that condition our choices and our behavior. In this .sense, it has been said,16 that what we call "historical culture" may be driven by a desire to speak to the dead. There is no other field which illustrates this thesis more convincingly than the institutionalized relationship between contemporary culture, academic and popular, and the culture of Ancient Egypt. If we are only ready to admit that, at least for the time being, we have no better - honest - reason for our fascination with Ancient Egypt (and for our fascination with so many other cultures of the past) than the desire to speak to the dead, then it becomes evident that our view of Ancient Egypt relies on a strong aesthetic component. Such an insight - or has it more of a confession? - causes a remarkable shift in the significance of our initial questiono For the answer to this question, the answer to the question whether Egyptology needs theory of literature, would then no longer depend on our inclination- or reluctance to identify the texts of Ancient Egypt as "literary". Rather, we would have to deal with the problem of whether we want to acknowledge "as literary" the texts produced by the discipline of Egyptology. If wc do so, we inevitably transform the question about the usefulness of literary theory for Egyptology from an object-related question into a self-reflexive problem. And there is certainly reason to believe that some of the very best texts written by Egyptologists manifest and facilitate such an aesthetic approach towards the past.

15. Despite ao exuberaol variety of interpretations aod appli-

cations, one Slill feels obliged lO refer lo lhe genealogical origin of lbis concepl, SAID, Edward W. Orientalism. New York.I978.

1<. See. for example. Stephen Greenblatt's contribulion lO VEESER. H. Aram. ed.: The New Historieism. New York. 1989


Encontros e desencontros narrativos Eduardo Portella

Edward W. Said montou um sistema comparativo de considerável teor crítico, que desdobra contrastes e confrontos, disjunções e confluências, no interior de uma opção pluridisciplinar promissora. Isto vem acontecendo mais declaradamente, e com maior amplitude, desde o seu controvertido livro Orientalism (1978). E se acentua e se desgarra no universo narrativo de Culture and Imperialism (1992). O autor aparece como o comparatista escrupuloso que, mediante cortes transversais criteriosamente programados, confronta representações nacionais e transnacionais, recorrendo a referências éticas e estéticas conhecidas, mas a todo instante revisitadas. Despreconceituosamente. Said compara literaturas, inscrevendo a sua vontade comparatista no interminável horizonte da cultura. E assim ele igualmente coteja culturas e civilizações. O seu Oriente-Expresso, jamais desativado, percorre diferentes províncias textuais, tanto ao Norte quanto ao Sul. Com o firme propósito de desprovincianizar. A premissa é a de que o "cânone orientalista" por nós adotado não oculta nunca a sua procedência absorventemente ocidental. A lente bifocal de Edward W. Said o permite enxergar, com razoável precisão, os desenlaces e os enlaces que ao longo da história, escrita enviesadamente por ocidentais e não-ocidentais, vem reunindo, mesmo que de forma inamistosa, a cultura e o imperialismo. Ele põe a própria biografia, a sua


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diáspora pessoal, o discernimento ágil, a serviço de reconstruções possíveis, desde que elaboradas para além dos reducionismos persistentes, das colisões inúteis, das polaridades monolíticas. Começa por constatar que "o vínculo entre cultura e política imperial é assombrosamente direto". Por isso deve ser entendido em toda a sua pluralidade. Edward Said, no seu livro Cultura e Imperialismo (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), desloca o eixo habitual, ou apenas explícito, desse sistema de trocas desiguais, e passa a considerar, e explorar criticamente, o fervor e a febre colonizadora de certas instâncias que, do ponto de vista da dominação, vinham sendo subestimadas ou simplesmente esquecidas. É o caso da narrativa, do relato romanesco, de Joseph Conrad a Rudyard Kipling, a Graham Greene, a Albert Camus, a V.S.Naipaul, a García Márquez, a Salmon Rushdie, e dos discursos edificantes, acompanhados de alguma ressonância proveniente de Jean-François Lyotard e Michel Foucault. Said não esconde nem censura o desempenho expansionista da alta literatura. Obras emblemáticas das relações crispadas entre império e cultura são convocadas a testemunhar. Edward Said prioriza o romance como espaço interpretativo. Sem deixar de recorrer a Verdi, a Yeats, a Césaire, a Amilcar Cabral, a Fanon, a Lukács. Talvez os seus mais assíduos companheiros de viagem, certamente os mais próximos de nós. Ele utiliza textos de temperaturas sensivelmente contrastivas, permanecendo longe, bem longe, da "lista de Schindler" às avessas, que Harold Bloom, em hora menos feliz (The Western Canon, 1994) resolveu nos impor. A experiência imperial, no ângulo da crítica da cultura e da criação narrativa, parece ganhar uma transparência jamais alcançada pelas disciplinas isolacionistas, que se dedicam a dividir o conhecimento em compartimentos estanques, e se mostram insensíveis à ambivalência das situações simbólicas. Edward Said, recorrendo a uma espécie de razão narrativa, combina, mescla, reprograma, abordagens aparentemente distantes. Até mesmo conceitos como o de "imperialismo" - idéia-chave do seu livro -, ele o discute no interior do paradoxo, por acreditar na força da contrapartida, na ida e volta profícua de vencedores e vencidos. Sem deixar de denunciar a estupidez e a ilusão da superioridade excludente, marca identitária dos impérios ascendentes, Said chega a uma conclusão que, se retirada do contexto mais amplo do seu longo ensaio, seria certamente chocante e inaceitável: "O imperialismo consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala global". As visões separatistas ou nativistas se esgotaram porque nunca souberam entender essa complexidade. A dominação ultramarina dispunha dessa dupla face, desse espelho partido, que a narrativa colonizadora deu forma, em meio a intermináveis contradições. Com uma sutileza que afasta a exasperação, Said aponta igualmente as derrapagens graves de críticos do colonialismo como Tocqueville e Gide. O colonizador bárbaro, para esses libertários tão estimados, é


Encontros e desencontros literários

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sempre a nação, ou o império, concorrente. A voracidade dos conquistadores não poupa sequer os parceiros da aventura ocidentalizadora. A argumentação de Edward Said privilegia o papel do romance na empresa e consolidação dos impérios ocidentais modernos, destaca a narrativa como elemento determinante no processo de decisão imperial. Jane Austen, a silenciosa cartógrafa de Mansfield Park, mapeia, com rara nitidez, os limites excludentes do império. O rolo compressor da ficção européia da opulência passa por cima das frágeis aspirações independentistas. A avalanche da cultura metropolitana, à medida que se propaga, na África, na Ásia, na América Latina e Caribe, procura apagar qualquer vestígio da ancestralidade local, rica e perturbadora. É uma história muito conhecida, e nem sempre bem sucedida. Essa história ainda não terminou. Porque nem o declínio moral do império, nem as suas promessas paradisíacas, devem ser confundidas com o precipitado "fim da história". O implacável exercício da razão narrativa, na palavra mais irônica de Conrad, ou mais descontraída de Kipling, em ambos os casos tendenciosas, expõe, com semelhante vulnerabilidade, o dispositivo da dominação. Os slogans que Conrad difundiu, como "a insolente cabeça negra", faziam parte da carta de princípios do poder imperial. A absolvição de Conrad, pela tolerância estética de Said, nem sempre se revela convincente. Como o seu Marlow, Conrad "nunca é direto": ironiza as práticas metropolitanas, porém sem se chocar diante da crueldade, e sem jamais conceder aos "nativos" o direito à liberdade. O elogio imperturbável do imperialismo confirma o seu eurocentrismo congênito, sem precisar onde começa e termina a narrativa do poder e o poder da narrativa. É verdade que o percurso de Cultura e Imperialismo passa pelo reconhecimento de que "a própria narrativa é a representação do poder, e sua teleologia está associada ao papel global do Ocidente". As representações abertas, e por isso mais sinceras, de Conrad, e as mais dissimuladas, e talvez menos sinceras, de Flaubert, apontam nessa direção. Mas a questão está mal colocada. A questão é saber o que fizeram eles de suas respectivas sinceridades. E só a linguagem pode responder a essa interpelação. Edward Said não consegue conviver com as simplificações do "nacionalismo redutor" e, ainda segundo as suas palavras, com as "polaridades reificadas do Oriente versus Ocidente". Nem por isso se entrega à mera impugnação do nacionalismo, preferindo levar em conta alguns desempenhos específicos. Nenhuma amnésia pode esquecer a função de alavanca histórica, exercida pelo nacionalismo nos povos não-ocidentais, e na hora da descolonização. O que fica difícil é ad!TIitir-se que o cânone nacional, conduzido através do território minado do imperialismo, esteja autorizado a entrar no jogo perigoso do nacionalismo insular e revanchista. De modo algum. O caminho que se abre terá de ser radicalmente integrador. O programa que


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fixou culturas superiores, raças inferiores, diferenças torturadas, "o mito do nativo indolente", e depois do trabalhador "desorganizado", é o mesmo que feriu de morte civilizações milenares, e que vem bloqueando a passagem de alternativas culturais plausíveis. O "estudo das histórias" (o plural aqui é deliberado), proposto por Said, e acompanhado evidentemente de possibilidades argumentativas atentas à dinâmica da alteridade, estaria habilitado a retirar a identidade da prisão, mesmo que somente domiciliar, na qual foi encerrada pelas filosofias da consciência. Sob este aspecto o imperialismo e o nacionalismo parecem falar o mesmo idioma. Ambos deixaram que tomasse corpo, ao redor deles, o contra-senso ou a perversão identitária. Cresceu um tipo de identidade compacta, fechada e avessa a qualquer modalidade de contatos e, mais ainda, de permutas. No primeiro movimento desse dissídio, onde agem imposições e transferências indesejáveis, encontra-se, segundo Cultura e Imperialismo, "a noção fundamentalmente estática de identidade que constituiu o núcleo do pensamento cultural na era do imperialismo". Já não é impossível surpreendê-Ia envolvida pelo falso moralismo de discursos disfarçados e contudo beligerantes. Na segunda vertente do desacordo, irrompe o nacionalismo heróico, agora bastante extenuado, incomodamente circunscrito nas autopistas da nova ordem global. O quadro de proscrição do outro, da diferença, da alteridade, permanece quase inabalável. Talvez um pouco mais sofisticado. A degeneração da diferença ignora que quem se perde do outro, perde-se de SI mesmo. Edward Said, americano-árabe, árabe-americano, está situado em um posto de observação muito especial. Ele está situado na sua condição cultural, divergente, convergente - enfim, intercultural. Ainterculturalidade é o óbvio, o modo de ser próprio da cultura, híbrida, plural. Desbarbarizada. Já houve tempo em que bárbaros eram aqueles que desconheciam a língua do outro. Bárbaro agora é o que ignora a cultura do outro. É neste sentido que os imperialistas, de todos os sotaques, todas as cores, todas as geografias, são os novos bárbaros. Espera-se que os seus serviços venham a ser dispensados, até a entrada do terceiro milênio.


Hacia una historio literaria postmoderna de America Latina Mario J. Valdés

Cada época cultural se autodefine aI buscar una redescripción deI pasado que tenga sentido como explicación deI presente. La nuestra se distingue por su escepticismo radical sobre los valores recibidos; se ha manifestado por un rechazo completo de la historia oficial, de la narrativa de fundamento. No me interesa aquí entrar en una discusión sobre la postmodernidad en todos sus múltiples aspectos sino sólo y únicamente sobre las características de la historiografía Ilamada "la nueva historia", es decir, la historiografía postmoderna. Como punto de partida podemos afirmar que ninguno de nosotros se encuentra en la posición extrema de crear un mundo nuevo. Un aspecto ineludible de nuestra condición de seres humanos consiste en haber nacido en un mundo ya formado por las decisiones, por los actos y, principalmente, por la expresión de nuestros predecesores. El pasado es un conjunto de narraciones de datos, acontecimientos y hechos que han sido altamente valorizados y, por lo tanto, como narraciones valorizadas, siempre se tienen que rehacer y, más que nunca, cuando se ha pretendido reconstruir el pasado objetivamente. La segunda observación fundamental es que nunca reconciliamos valores de la misma manera en que organizamos y utilizamos a las cosas deI mundo. Las cosas llevan una mediación práctica mientras que los valores se


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manifiestan por mediación ideológica, por lo tanto, la supuesta objetividad historio gráfica no sólo carece de fundamento sino que encubre la relación hermenéutica entre el historiador y el pasado, es decir, la mediación de valores. Como he dicho, nuestra época ha demostrado un gran interés en la emancipación de los valores recibidos. En términos filosóficos tal interés contiene no poca ingenuidad, y aunque esa hermosa ilusión deI punto de vista objetivo está perdida, en su lugar ha surgido la idea también insostenible de um relativismo absoluto. Estoy de acuerdo que nada sobrevive deI pasado salvo a través de una reinterpretación en el presente, pero esta reinterpretación se apodera de la objetivación y distanciamiento y los hechos se elevan por medio de los valores vivientes aI rango de ser un texto. De este modo la distancia valorativa se convierte en una distancia productiva como un factor de mediación en la reinterpretación deI pasado. La historia en general, y la historia literaria en particular, es un proceso de mediación por el cual se supera incesantemente la antinomia deI pasado y el presente. La historia literaria presenta un caso ejemplar para realizar nuestro interés en la emancipación de los valores culturales y a la vez nos permite cuestionar la identidad que hemos también recibido. EI conflicto entre valores Iiterarios recibidos y valores nuevos puede exponerse sin duda en un relativismo ilimitado el cual sería antihistórico y haría imposible toda tarea de reinterpretación deI pasado. Pero, aI contrario, si el conflicto de valores se sitúa dentro de la realidad material de la producción cultural histórica, se establece un marco de explicación. Estos valores por medio de su encarnación en el marco empírico de la vida se nos presentan como acción vital, acción que fue, modos de ver y sentir que se han consumado. La obra literaria, en contraste aI documento de archivo, siempre es actualidad que invita allector/historiador a revi vir las experiencias y acontecimientos figurativos. He aquí el gran valor de la historia literaria como laboratorio de la historiografía. En el meollo de la historia literaria está la antinomia deI acontecimiento de producción original y el acontecimiento de recepción contemporánea. La historia literaria postmoderna abarca ambos acontecimientos y los relaciona dialécticamente dentro de un marco común a ambos, el cuadro material de producción que fija la distancia. Sin embargo, esta solución de las condiciones materiales hace más severo el problema perenne de selección y enfoque de datos, ahora enormemente ampliado. Si se van a tomar en cuenta las condiciones económicas, sociales y políticas dentro de una geografía y demografía determinada, no corremos el riesgo de ahogarnos en un mar de datos y perder de vista la obra literaria? Está claro que es necesario tener esquemas de focalización sobre la obra cultural más altamente valorizada que es la literatura.


Hacia una historia !iteraria postmoderna de America Latina

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La historia literaria es una transacción perpetua entre el proyecto de narrar el pasado a través de su situación material y el de constituir una comprensión que tenga sentido en el presente. Nuestra respuesta es la de enfocar a la obra literaria dentro de la comunidad de producción y de recepción. Esta transacción es delineada aI enfocarse el historiador en los centros culturales y sus instituciones. Si rompemos este círculo viviente entre la literatura y la comunidad y sus instituciones culturales, toda postulación deI acontecimiento literario de producción y recepción está condenado a seguir siendo una impresión vacía o una exigencia ideológica, aun cuando el historiador anuncia que participa en esa búsqueda común de nuestra época de la emancipación de los valores hechos. La narración deI acontecimiento literario seguirá siendo una historia parcial, limitada y reductiva mientras se limite a reafirmar los valores deI pasado que mejor se acomoden con los valores deI historiador. Buscamos una narratividad histórica abierta. Nuestro proyecto de una historia literaria de América Latina tiene que desenvolver múltiples explicaciones, intercambios que apunten singularmente hacia la comprensión parcial y que, en conjunto, emprendan el diálogo múltiple que lleva la comprensión hacia la intersubjetividad. Esta multiplicidad de explicaciones narrativas produce una dialéctica de diversas voces en intercambio que mantiene la historia literaria en un estado dialogal abierto. Bien se puede observar que es esto lo que ocurre dentro de la comunidad de comentaristas y es verdad. Sin embargo no ocurre en la historia literaria por falta de coordinación y de colaboración. La mediación de la historia literaria abierta es una mediación práctica ya que se hace manifiesto lo que se logra en la crítica contemporánea, es decir, un campo contestatorio sobre los valores literarios con la diferencia que en este caso se hará sobre siglos de creación cultural y su presencia actual. Reesumiré ahora el plan de una historia literaria abierta; tiene tres grandes componentes: l. la deI marco material de producción cultural; 2. los esquemas de comunidades e instituciones culturales; 3. el intercambio narrativo de explicaeión. Este proyecto histórico es el resultado de afios de trabajo por un equipo dirigido por Djelal Kadir y yo. Hemos empezado con las ideas de la escuela de Annales en Francia y, en especial, con la obra de Fernand Braudel; el segundo paso ha sido participar en la discusión filosófica que mantuvo Paul Ricoeur sobre la historiografía francesa y que posteriormente se publicó en el segundo tomo de Temps et récit. A la vez, habíamos llevado una nutrida discusión con Angel Rama hasta su muerte en 1983. Rama insistía en la necesidad de leer el texto literario en su contexto social y político para poder realizarIo en toda su complejidad de producción. Yo le daba la razón, per o sin dejar de insistir que no podíamos encerrar aI texto en una prisión circunstan-


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cial de nuestra hechura, y así es como nacióla idea dei hipertexto histórico partiendo de la historiografía de Braudel con su marco material, las premisas de contextualización de Rama y la crítica de Ricoeur sobre la narratividad histórica. Si se puede marcar un principio claro de este proyecto fue en la reunión que tuvimos ocho colegas y yo en Bellagio en 1993 (Lisa Block de Behar, Daniel Chamberlain, Beatriz Garza Cuarón, Vlad Godsich, Djelal Kadir, Mary Louise Pratt, Silviano Santiago y Maria Elena de Valdés) y discusiones con muchos más desde entonces como Georges Baudot, Claude Fell, Miguel León Portilla, etc. A continuación presentaré el esquema de nuestro proyecto de historia literaria de América Latina. El primero de los tres volúmenes lo titulamos "La formación de culturas literarias en América Latina". Este volumen está dividido en dos partes: primero, "Fondo empírico de la cultura literaria", y, segundo, "Lo excluído o marginalizado en las historias literarias". La primera parte recoge las coordenadas de geografía, lingüística, demografía y accesibilidad social a la cultura literaria. La segunda parte entabla las grandes exclusiones de las historias literarias de América Latina que son las culturas prehispánicas, la cultura africana, la participación de la mujer y la cultura popular. Ambas partes, juntas, establecen el marco de todo el proyecto y, a la vez, afiaden las variantes demográficas y sociales ausentes en quinientos afios de historiografía. EI segundo volumen se titula "Estructuras y modalidades de las literaturas en América Latina" y si el primer volumen llevó el peso de fijar el marco material, éste, segundo volumen responde a la diversidad social de nuestra América. Está subdividido en cinco partes: 1. Instituciones culturales, 2. Modelos literarios transnacionales, 3. La literatura y las otras formas culturales, 4. Los centros culturales de América Latina, y 5. La representación de fundamento en América Latina. En conjunto las cinco partes reúnen los esquemas sociales de producción literaria a través de la historia. Las instituciones que han facilitado y perturbado la creación literaria dentro de las comunidades que reflejan, todas tienen su propia historia, a veces abiertas hacia otras culturas pero también con sus épocas de relativo aislamiento. Estas historias que suelen ser de consumo local o de especialización, pero aI estar contextualizadas y coordinadas en un atlas de producción literaria despliegan sus puntos de contacto y de diferencia y, especialmente, sus relaciones en los proyectos grandes de identidad cultural, fundamento nacional y transnacional. El tercer volumen contiene las narraciones de historia !iteraria. Consiste de tres partes colaborativas también: 1. Cinco siglos de transculturación literaria: textos como acontecimientos históricos; 2. La cultura !iteraria de


Hacia una historia \iteraria postmoderna de America Latina

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América Latina en el siglo veinte; y, finalmente, 3. una apreciación de América Latina como construcción de su literatura. Un texto literario, como ya he dicho, no es un objeto sino un acontecimiento histórico tanto de producción como de recepción y este acontecimiento, como todo acontecimiento histórico, se hace y se rehace por sucesivos historiadores, pero en nuestro caso la historia que se narra es la historia de la identidad cultural en dos continentes, puntualizada por los éxitos y los fracasos de la aventura humana que se refleja en su creación imaginativa. El segundo ensayo histórico, también colaborativo, de este volumen toma una perspectiva de plazo más breve; se concentra en las obras de mayor impacto en el siglo veinte que es el siglo de la globalización de las comunidades latinoamericanas y también el de la cuantificación masiva de la cultura popular. Las normas de comunicación, de producción y recepción de la obra literaria que habían sido leyes de los sistemas expresivos desde el siglo dieciseis, en poco menos de medio siglo han cambiado completamente. El siglo veinte es el siglo de la modernidad y de su desengano. El último ensayo de esta historia literaria responde a la pregunta sobre la validez deI conjunto. i,Qué es América Latina, ya que no responde ni a geografía ni política ni historia común? La respuesta, como ha dicho Cornejo Polar, Iris Zavala y otros, es que América Latina es una ficción. Primero fue una fantasía etnocéntrica y eurocéntrica y ahora, a quinientos anos después deI encuentro, empieza a ser una reinvención propia que también es ficción, pero ficción propia como lo es una autobiografía. La historia literaria de América Latina es una autobiografía. La narración histórica en este proyecto se distingue por ser un itercambio coordinado de diversidad enfocada. Este procedimiento mantiene tanto aI compromiso reflexivo hermenéutico como aI texto abierto. Y el sistema de marco y esquema en que se encuentra la narración histórica ofrece la posibilidad de poder leerse como un hipertexto empezando de múltiples puntos y forjando líneas narrativas nuevas debido aI procedimiento de múltiples referencias entre el marco, los esquemas y las narraciones.



Literatura e nação: esboço de uma releitura

Luiz Costa Lima

Tradução da comunicação apresentada ao Colóquio "Petits récits. Identités en questions dans les Amériques", realizado na Université de Montréal (11-13 de abril, 1996). '. KANTOROWICZ, E. H. The KinX :\. two Bodies. A Study in Medieval Political Theo!o!:y 6' ed. Princeton, N.J.: Princeton Univ. Press, 1981 (I' ed.: 1957). 2 BOUHOURS, D. Entretiens d'Artiste etd'Eux'me. Ed. cil.: Paris: Éd. Bossard, 1920 (l" ed.: 1671).

'. SCHMllT, C. L'ldée de raison d'État selon Friedrich Meinecke. Trad. Franc. in trad. de Carl Schmitt: Parlamentarisme et démocratie, Paris: Seuil, 1988 (I' ed.: 1926).

Os termos "Estado-nação" e "literatura", na acepção moderna do segundo, são temporalmente desiguais: no século XVI, já estava constituído o dispositivo simbólico, jurídico e político, que se preparava desde o XII,I justificador do poder do Estado, ao passo que o conceito moderno de literatura, como exploração e expressão do infinito contido na subjetividade individual, só se formula nas décadas finais do século XVIII alemão, sobretudo por Friedrich Schlegel e Novalis. Esse décalage contudo não impediu que os Estados nacionais soubessem, bem antes do fim do XVIII, desde que se enfrentassem com outros Estados nacionais, esgrimir a literatura como uma de suas armas. Assim, do mesmo modo que os ingleses exaltavam sua literatura face ao modelo francês, na França, o teórico barroco Doménique Bouhours, ao afirmar "nossa língua só muito sobriamente usa hipérboles, pois estas são figuras inimigas da verdade; nisso ela se atém a nosso humor franco e sincero, que não pode tolerar a falsidade e a mentira",2 contrapunha o verso francês "legítimo" à cornucópia do barroco castelhano. Na competição pela hegemonia européia, primeiro França e Espanha, depois Inglaterra e França, usavam das armas de que pudesem dispor para retirar do adversário a primazia. E, assim, muito embora "a velha razão de Estado pensasse abstratamente [... ] (e) postulasse uma natureza humana sempre idêntica a si mesma",3 o Estado nacional começou a se apropriar da literatura antes mesmo de ela se apresentar como o território próprio e por excelência do sujeito individual.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

As conseqüências dessa apropriação seriam demasiado ricas para que fossem exploradas em curto espaço. Estendamo-nos apenas sobre uma das conseqüências, ainda não bastante concretizada. Ela concerne ao que temos chamado o "controle do imaginário". Sumariamente, haveria de se considerar que a relevância concedida pelo Estado à literatura nacional não implicava apenas que as belas-letras devessem seguir a prática geral das leis senão que ainda deveriam obedecer uma legislação especificamente a elas referente. O que vale dizer: havia uma legislação geral, dirigida a todos os vassalos, portanto especificamente política, e uma legislação particularizada, uma política poética. Da primeira se encarregavam os juristas, da segunda, os autores dos tratados de poética. A importância da distinção estará em, diferenciando os dois corpos de leis, evitar que se entenda o controle do poético como mera decorrência da vigência de uma legislação centralizada, que, em conseqüência, exigisse do pesquisador e do analista apenas um conhecimento histórico geral. No caso da política poética, entravam em cena categorias - a questão do tempo na peça teatral, o uso da linguagem, com as restrições não só ao popular como ao uso regional e/ou dialetal, o privilégio de certos recursos em detrimento doutros, a obediência aos limites da verossimilhança. etc - que não eram do interesse e competência dos juristas. A leitura dos poetólogos italianos, franceses e ingleses dos séculos XVI e XVII nos leva a dizer que, bem antes de a literatura assumir sua caracteri::.ação moderna, já estavam modelados seus critérios de controle. Acrescente-se marginalmente: embora o termo "controle" seja empregado no sentido negativo de restrição e mesmo de exclusão, ele não se confunde com censura. Explícita, a censura serve de mediação entre as duas legislações. Melhor dito, a censura constata a plena atualização de uma norma política no campo do poético. O controle ao invés implica uma interdição extra; como se dissesse: não basta ser um bom e leal vassalo para que já se tenha um digno poeta. Essa dupla legislação se mantêm quando o Estado-nação se apropriar da literatura em sua acepção moderna, i.e., quando o romantismo, no período da restauração européia, conseqüente à queda de Napoleão, deixar de ser alemão para se tornar europeu. Essa passagem não se define como a de uma mera propagação. Muito ao contrário. Nos Frühromantiker, mormente em Friedrich Schlegel, notava-se a copresença de dois critérios, não totalmente superponíveis, de caracterização do poético. O primeiro mais rico, revolucionário e de mais curta duração, é sintetizado no fragmento 206 dos Athendum Fragmente: "Semelhante a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser totalmente separado do mundo em volta e pleno em si mesmo como um ouriço".4 A obra poética é considerada por um ponto de vista a ela exclusivo, independente de qualquer serviço que se lhe emprestasse; armada de espinhos, comparável a um ouriço, plena em si mesma, ela recusa se legitimar por

..

SCHLEGEL,

Fragmente, in

F.: Athenaum EICHNER, Hans,

org. Friedrich Schlel!el. Kritische Ausf,:ahe seiner Werke. vol. lI: Charakterisken und Kritiken /. Munique, Paderborn, Viena: Verlag F. Sehoningh e Thomas Verlag, 1797.


Literatura e nação: esboço de uma releitura

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qualquer culto, religioso ou político, a que então se dobrasse. Dentro dessa acepção, a obra de arte corresponderia, sem que Schlegel expressamente o reconhecesse, à "finalidade sem fim", ao interesse sem interesse que, na 3" Crítica kantiana (1790), designava a experiência propriamente estética. O segundo critério, ao invés, ressalta o que a obra poética diz das pessoas e das relações interpessoais. A obra poética era então indicativa, para utilizarmos a expressão irônica que Hegel empregava contra os românticos, da "bela alma" ou ainda, nos termos de Schlegel, da "intuição intelectual da amizade" (AF, fragmento 342), i.e., de alguém que soube empregar seu talento explorador dentro de si mesmo. Ao passo que o primeiro critério destacava a propriedade interna do poético, sua altiva autonomia, o segundo acentuava a capacidade auto-modeladora do criador. Não superponíveis, mesmo desarmônicos entre si, esses dois critérios sofrerão destinos opostos no romantismo normalizado, i.e., aquele que se difunde sob a restauração. O romantismo normalizado pode ser definido como aquele que ajusta a idéia de expressão individual ao espírito do povo, nele incluindo o poeta, cuja obra refletiria o estágio de civilização alcançado por seu país. Sob ele, não há lugar para que se tematize o poema-ouriço. Em troca, identificando o poema como efeito da fonte "sujeito individual", o romantismo normalizado legitima a indagação que considera o poema efeito de uma causa chamada nação. Para tanto, se impunha apenas uma fácil operação lógica: o sujeito individual, no caso o poeta, era tomado como parte do todo a que pertencia, a nação, cujo modo de ser refletiria. Eis então asseguradas as condições de prestígio da literatura nacional, daí a legitimação universitária da literatura, enquanto nacional. A literatura então se torna, ao longo do XIX, o veículo por excelência da Bildung, no duplo sentido da palavra: formação e educação. O Estado-nação que se preza exibe entre seus títulos um elenco de escritores, difundido por antologias e apreciações biográfico-interpretativas. É um das tarefas do Estado a propagação da literatura enquanto nacional. Esse retrospecto é particularmente interessante à reflexão contemporânea na América Latina. E isso por uma série de razões: (a) no sentido moderno do termo, a literatura que se introduziu tanto na América Hispânica como na Portuguesa teve como estímulo e ponto de partida o romantismo normalizado. Por isso, de imediato, a idéia do poemacomo-ouriço ou era desconhecida ou veio a ser confundida com o princípio posterior do "l'art pour l'art", considerado, como enfatizam os críticos latino-americanos do XIX, algo próprio de nefelibatas, de desenraizados, algo em suma nocivo sobretudo para as nações nascentes; (b) no início de nossa autonomia política, a literatura esteve preocupada em exprimir um estado nacional, ou seja, o estado de coisas da sociedade do país e em servir de porta-voz da peculiaridade de seu povo. Ora, e aqui vale a pena que nos estendamos um pouco, como as realizações humanas eram


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pouco salientes e dada a importância que em toda a América Latina teve a divulgação das pesquisas do naturalista Alexander von Humboldt, especialmente a sua palavra teve especial ressonância. Destaque-se a respeito passagem do Voyages aux régions équinoxiales du Nouveau Confinent: A natureza agreste ou cultivada, risonha ou majestosa, apresenta em cada zona um caráter individual. As impressões que nos deixa variam ao infinito, como as emoções que produzem as obras de gênio, segundo os séculos que as engendraram e a diversi· dade de línguas a que devem uma parte de sua formosura. Só se compara com justeza o que depende das dimensões e das formas exteriores: pode-se pôr paralelamente o cume colossal do Monte Branco e as montanhas do Himalaia, as quedas d'água dos Pirineus e as Cordilheiras; mas estes quadros comparativos, úteis no que se refere à ciência, mal dão a conhecer o que caracteriza a natureza na zona temperada e na zona tórrida. À beira de um lago, em uma vasta selva, ao pé destes cumes cobertos de neves eternas, não é a grandeza física dos objetos o que nos infunde uma secreta admiração. O que fala à nossa alma, o que nos causa emoções tão profundas e tão variadas evade-se de nossas medições tanto como as formas da linguagem. Cuando as belezas da natureza são sentidas ao vivo, teme-se entorpecer essa fruicão comparando aspectos de diferente caráter".5

A extensa transcrição se justifica porque nela se formula com toda clareza onde se poderia nuclear a procurada particularidade das novas literaturas: a natureza é capaz de produzir impressões semelhantes às obras dos gênios; a comparação das cenas da natureza tropical com a doutros continentes apenas cientificamente é válida e justificada. Do ponto-de-vista do sujeito-que-sente, a comparação prejudica sua fruição. Em palavras diretas: Humboldt, o naturalista, justifica a saliência que a descrição da natureza terá para o escritor latino-americano. Tendo sempre por pressuposto o leitor de alma sensível, o realce das cenas da natureza asseguraria às literaturas latino-americanas a condição para que pudessem ter um lugar ao lado das literaturas maduras. Se estas se particularizariam pelos gênios que pudessem convocar, as latino-americanas se diferenciariam pela singularidade de sua natureza. A descrição da natureza ensinaria ademais aos autores, em um tempo em que avançam as ciências descritivas, a privilegiar a observação. Se esta falta, é o conjunto da obra que desmorona. Assim, por exemplo, o influente Sílvio Romero demolia a obra de Machado de Assis sob o argumento de que: (é) "um autor para quem o mundo exterior não existe de modo algum em si, que não lhe procura reproduzir nem os acontecimentos usuais, nem o aspecto pitoresco, ou os agregados sociais, ou os seres vivos, tais quais esses todos e esses indivíduos se apresentam ao conhecimento normal".6 Seu pretenso humorismo seria uma mera imitação e seu pessimismo, falso porque "nós, os brasileiros, não somos em grau algum um povo de pessimistas" (idem, 104). Menos importa saber se Romero adquirira esse pressuposto da leitura de Humboldt ou dos contemporâneos de sua preferência. Em qualquer dos

5. HUM BOLDT,

A. von. Voya,!,'es

aux ré,!,'ions équinoxiales du

nouveau continent, fait en 1799,1800,1801, /802, 1803 ef 1804. Trad. ao castelhano de Lisandro Alvarado, Viaje a las regiones equinociales dei nucvo continente. 5 tomos. Caracas: Monte Ávila Editores,

1985 (I' ed.: 1816-31).

S. Machado de Assis. 2' ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936 (I' ed.: 1897).

". ROMERO,


Literatura e nação: esboço de uma releitura

No caso específico do Brasi!. este papel legitimador foi exercido por Ferdinand Denis, conforme ROUANEr, M. H. Esplendidamente em berço esplêndido. A fundação da literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991.

7

'. HENRIQUEZ URENA,

P. Confe-

rencias, in Horas de estudio

(1910), inc!. em Obra crítica. México: Fondo de Cultura Económica, 1981

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casos, foi Humboldt quem legitimou na América Latina o destaque da natureza e, daí, o privilégio reservado para a observação;7 (c) privilegiada era a expressão literária que então fosse descritiva, realista e, ao mesmo tempo, sentimental e altissonante. Note-se, ademais: esses valores se mantêm muito além da vigência do romantismo normalizado. Sílvio Romero, por exemplo, já escreve fora da ambiência romântica e, no entanto, mantém uma curiosa comunidade com os valores de procedência romântica. Não parece exagerado chamar-se a atenção para a continuidade dos valores com que se tem apreciado a literatura na América Latina. Henríquez Ureiia tinha razão, no início do século, em destacar os hábitos de nossos públicos para essa continuidade. Seriam eles "tan lentos para darse cuenta dei valor de un serio empeno como rápidos para dejarse deslumbrar por el esplendor sonoro".8 Na verdade, porém, essa é apenas uma parte da razão. Da outra parecem responsáveis os professores de literatura, que ou incorporam e transmitem valores distintos como simples modismos ou conseguem estabelecer um estranho hibridismo desses outros valores com os que já inoculara a tradição, neutralizando-os e mantendo permanente o tradicional; (d) como também viria a suceder na Europa do XIX, privilegiado dentro destes parâmetros, o texto literário rompia o intercâmbio com a filosofia e, em troca, privilegiava a história e a sociologia nascente. Radicaliza-se assim o fosso que separava as duas concepções do poético, presentes nos Fragmentos de Schlegel: ao passo que elas próprias eram contemporâneas do intercâmbio intenso entre os Frühromantiker e o idealismo alemão - não esqueçamos que Schelling e Hegel foram companheiros de Holderlin e, durante certo tempo, privaram com os Schlegel, que, de sua parte, junto com Novalis, através da admiração por Fichte, estavam próximos de Kant - a concepção que se difunde com o romantismo normalizado e assegura a aproximação da literatura com a nação não só privilegia a história, a diacronia factualmente traçada, e logo depois a sociologia, como exclui o investimento filosófico, salvo a estética, matéria contudo reservada para os estudantes de filosofia; (e) o descritivismo resultante da ênfase na história literária e estimulado pelo rompimento do intercâmbio com a filosofia, incentivado na América Latina pela razão analisada em (c), ao se associar, na segunda metade do século, ao evolucionismo de raiz biológica (darwinista), motiva entre nós a busca de essencialismos nacionais (a mexicanidade, a argentinidade, a brasilidade, etc), que reforçam as visões homogêneas da cultura. Não ser reconhecido por sua respectiva "essência" parecia não só provar que se estava diante de um imitador, como justificar a exclusão do panteão da nacionalidade. Tal essencialismo demonstra por si só a continuidade e então o conservadorismo dos valores com que se tem julgado a literatura na América. Sem tal continuidade, não se explicaria que Borges ainda fosse oportuno ao ironizar o culto


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nacionalista: "El culto argentino deI color local es un reciente culto europeo que los nacionalistas deberían rechazar por foráneo";9 (f) o privilégio que o século XIX latino-americano reservou à literatura e que foi mantido pela primeira metade do século atual estabeleceu pois, para ela, limites bem restritos. A boa literatura era aquela que, conforme ao padrão descritivo-realista, se revelasse acessível a interpretações alegorizantes - a obra literária como ilustração de um estado de coisas - e, como tal, utilizáveis, para empregar a expressão do agora esquecido Althusser, pelo "aparelho ideológico" do Estado. Os críticos mais recentes poderão discordar face à configuração efetiva dos Estados de que são cidadãos; poderão portanto ser de direita ou esquerda, sem que isso afete sua disposição alegorizante. São estas as linhas básicas do quadro histórico que hoje nos cabe repensar. Digo hoje porque as núpcias entre o Estado nacional e a literatura deixaram de existir. O próprio afã teorizante que tem marcado os estudos literários, a partir dos anos de 1960, não s~ explica sem a ruptura das condições que condicionaram aquelas núpcias. Enquanto dominou a cadeia "sujeito individual - criador, sujeito nacional-Estado", sendo o Estado, de sua parte, tomado como a cabeça do corpo nacional, julgava-se a literatura não precisar de teorização. A teorização estava de antemão assegurada e seus instrumentos eram o fato histórico, os condicionamentos sociais, se não a evolução nacional. A condição de "ouriço" da obra poética fora desarmada e a linguagem tomada como simples meio que, bem indagado, mostraria a transparência das coisas. Qualquer questionamento da linguagem enquanto tal era identificado com o formalismo - não por acaso um termo que, na crítica literária, se impusera a partir da repressão stalinista. E isso não se dava apenas entre latino-americanos ou entre críticos de estatura mediana. Mesmo em um ensaísta da extrema qualidade de Erich Auerbach a relação entre sociedade e literatura era vista como uma rua de mão única: a obra representa o que a sociedade mostra. Identificar-se, como fazem alguns, a resistência à teorização com o esforço de descolonização do Terceiro Mundo é apenas manter a cadeia retórica em que se formula o extremo conservadorismo de nossos estudos literários. Ao invés de aderir a esse programa, seria fecundo aprofundar-se a via aberta pelo comparatista Wlad Godzich. Em ensaio de há poucos anos, Godzich demonstrava o quanto as "literaturas emergentes" poderiam contribuir para a superação de impasses que sufocam os estudos literários metropolitanos. Seria para tanto indispensável que, a partir da Terceira Crítica kantiana, fosse reindagada a questão do sujeito. Ao passo que a história literária tradicional parte do suposto de um sujeito individual constituído e metaforicamente identificável com o sujeito nacional, o juízo estético antes permite "a delimitação de um campo de experiencialidade - ou seja, de constituição do sujeito - não redutível à mesmidade (sameness) [ ... ]".\0 Isso, acrescente-se de passagem, não se confundiria com reiterar a

9.

BORGES, J. L. EI Escritor ar-

gentino y la tradición. in Discusión, ine!. em Prosa comple-

ta. 2 vols. Barcelona: Bruguera,

1980 O' ed.: 1932).

lO. GODZICH, W. Emergent Lileralure and lhe Field of Com-

paralive Lileralure, in The Culture of Uteracy. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994.


Literatura e nação: esboço de uma releitura

11 SCHWAB, G. Suhjects without Selves. Transitional Texts in Modern Fiction. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1994.

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"morte do homem" mas sim em trabalhar em favor de uma concepção plástica do sujeito. ll Os discursos que, a exemplo do literário, não trabalham com conceitos são, por isso mesmo, privilegiados quanto à verificação de como se forma um campo, i.e., uma particularidade expressiva (particularidade que não se confunde com uma unidade que reuniria os eleitos e justificaria a exclusão dos prófugos). Em vez de uma relação de monocausalidade, em que a sociedade nacional funciona como causa que determina o efeito-autor, o campo ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto e, portanto, a via de mão única que também marca a tradição dos estudos históricos e sociológicos. Desse modo a recusa do essencialismo nacionalista não suporia a adesão a uma prática "cosmopolita"; implicaria sim o repúdio de uma idéia de Estado-nação e de literatura que traz consigo a manutenção de uma concepção hegemônica, decorrente de uma "conceitualização hegeliana de acordo com a qual as novas literaturas são Yistas como representatiovas de estágios menos maduros das literaturas canônicas" (Godzich. 291). Em suma. não se trata de repudiar o essencialismo porque particularista ou porque politicamente comprometido. O elogio da heterogeneidade também supõe o privilégio de uma particularidade. Mas de uma particularidade plural e não da que unifica sob o manto do Estado-nação. É ademais explicitamente um programa político. Se este não se contenta em manter implícita a teoria que o respalda é porque considera que toda teoria pronta se converte em dogma. Por fim, particularmente na América Latina, a teoria não é contra a História, embora não se confunda, nem a seu objeto, com ela e tampouco permaneça "iluminista", na proposição de normas universais, ou "romântica", na exaltação do infinito individual. Pois esta História que não se dispensa mantém próxima a si o questionamento próprio à filosofia. A tão propalada globalização do mundo, na verdade equivalente à centralização do poder em alguns instituições bancárias, é contemporânea à redução do poder dos Estados-nacionais. Isso, por um lado, se correlaciona à reconhecida perda de prestígio da literatura. Por outro, entretanto, permitiria que se repensasse a literatura fora de caminhos que foram traçados a partir de uma conjuntura já não existente (o prestígio da cultura nacional pelo Estado, a concepção factualista da história, a idéia da sociologia como ciência das causalidade sociais, a inquestionabilidade do próprio modelo da ciência clássica). O que nos falta para isso? A pergunta se impõe porque na reflexão latino-americana raríssimos são os ecos de um requestionamento do fenômeno literário. Ao que parece, temos preferido esperar que outros respondam por nós. Rio, março, 1996



As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada

o (des)encontro de Marinetti e Mário de Andrade em 1926 Jeffrey T. Schnapp João Cezar de Castro Rocha Sucesso illcrÍ\'el cachecol do Marinetti para ,'enda em lojas dança do Marinetti roupas do Marinetti colares e bastiies do Marinetti impermeável do Marinetti Repercuss6es em todas as cidiuies brasileiras. I Triunfal explosão do futurismo na América do Sul com minhlLf 35 conferências-declamaçiJes (.. .) O escritor Antonio Salles concluiu na Revista do Brasil: "Precisamos esquecer mesmo 1I0SS0S melhores escritores. Como Jeová, o futurismo cria um novo mundo a partir do nada. Devemos recontar o Tempo, começando a história no alIO da graça da aparição de Marinetti. "2

Gostaríamos de agradecer a Yasushi Ishii e a Sylvia Saítta por valiosas informações referentes à passagem de Marinetti na Argentina. A Heloísa Toller Gomes agradecemos o interesse pelo texto e por ter tornado possível a sua publicação em português. '. li banchetto futurista di Tunisi, in MARIA, Luciano de, org. Una sensibilità italiana in Egito. Milão: A. Mondadori,

1969,325. MARIA, Luciano de, org. Marinetti e il Futurismo in Teoria

2.

e invenzione futurista. Milão: A. Mondadori, 1983,619.

Em

registros semelhantes, o fundador do futurismo preservaria a memória da primeira fase da viagem que o conduziu à América do Sul. Aliás, uma ambiciosa viagem comercial que, no curso de quase dois meses, levou Marinetti e sua esposa, Benedetta, do Rio de Janeiro a São Paulo e Santos, sem contar com o ciclo de conferências realizado em Buenos Aires e Montevidéu, Encenada em grandes teatros, divulgada como um espetáculo, representada como uma campanha militar, inspirada no modelo das lendárias serate futuriste, as "conquistas" da turnê eram comunicadas ao público de todo o mundo e, em especial, ao italiano na forma de exaltados telegramas, enviados como notícias de um campo de batalha imaginário: Marinetti obteve extraordinário triunfo sendo delirantemente aplaudido, noitada culminação espiritual propagandística triunfo Marinetti, Marinetti fala futurismo aplaudido êxito completo retransmitir a Paris ... A realidade da viagem, contudo, foi muito mais complexa, pois Marinetti se viu no centro de debates políticos e culturais cujas sutilezas e idiossincrasias necessariamente escapavam ao seu controle e, sobretudo, à sua com-


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

preensão. Ora recebido com inesperado entusiasmo, ora rejeitado com estudada indiferença tanto pelo público quanto pelos intelectuais; celebrado como um herói cultural e denunciado como um incômodo passadista; ubíquo na imprensa, ao menos no Rio de Janeiro, onde teve presença constante até no rádio; o futurista foi, por fim, um alvo fácil para manifestações favoráveis ou contrárias ao fascismo. A onipresente visibilidade de Marinetti terminou por precipitar divergências já então evidentes no movimento modernista. Além das cicatrizes que a viagem de Marinetti ajudou a expor no meio intelectual brasileiro, traços mais permanentes podem ser surpreendidos na própria obra do italiano. Antes de 1926, a geografia imaginária de Marinetti permanecera circunscrita aos limites do exotismo oitocentista francês. No entanto, o futuro reservaria um lugar especial às suas impressões de viagem. Afinal, como o futurista sempre fez questão de repetir, ele possuía "uma sensibilidade italiana nascida em Alexandria, Egito". Nesta cartografia particular, Marinetti representava a si mesmo como a materialização das fantasias técnico-primitivas que informam seus textos "africanistas" - Mafarka le futuriste (1910), Gli indomabili (1922), Il tamburo difuoco (1922). O ideal de fusão do primitivo com o moderno e do africano com o europeu na invenção de um paraíso tropical e modernista convertia o Brasil num território perfeito para um imaginário colonizador. Território colonizado por Marinetti em Velocità brasiliane, um poema composto por palavras-em-liberdade e até agora inédito, embora Marinetti o tenha parcialmente apresentado na primeira conferência realizada no Rio de Janeiro. 3 Neste ensaio, apresentamos uma versão preliminar (e muito reduzida) das pesquisas que estamos desenvolvendo sobre as viagens de Marinetti à América do Sul em 1926 e 1936, com especial destaque para a primeira delas. 4 Estimulados pelos trabalhos pioneiros de Annateresa Fabris e de Sylvia Saítta, buscamos reconstruir o contexto, a estrutura e o conteúdo destas viagens, utilizando, além de fontes já conhecidas, documentos inéditos. 5 Na década de 20, a cena intelectual latino-americana mantinha uma relação ambígua com o futurismo. 6 Num primeiro momento, o termo sintetizava um conjunto indiscriminado de fenômenos associados à modernidade. Sentido reforçado pelo próprio Marinetti, ao imaginar que sua chegada ao Rio de Janeiro provocaria a explosão de produtos com uma nova marca: "Marinetti" - cachecóis, roupas, colares, bastões e casacos. Com a aproximação dos anos 30, a ambigüidade progressivamente se reduziu a um sentido mais rígido e quase sempre negativo. De um lado, novas correntes culturais desafiavam o posto de vanguarda ocupado pelo futurismo desde 1909. De outro lado, sua crescente identificação com o fascismo e o ultra-nacionalismo engendrava fortes restrições, como Marinetti pôde experimentar na reação do público em São Paulo, Santos e Buenos Aires. Por fim, no próprio cenário latino-americano, a década de 20 presenciou a disputa entre o impulso cos-

3.

No espaço deste ensaio, não

poderemos reproduzir o poema. No livro que estamos preparando, contudo, Velocità brasiliane ocupará um lugar central. 4 Para uma versão mais deta·

Ihada da viagem ao Brasil, com breves referências aos desdobramentos argentino e uruguaio. o leitor pode consultar nosso ensaio "Brazilian Ve10C/t1e.\: On Marinetti's 1926 Trip to South America", no número especial sobre o futmismo in Sowh Central Review / Fali, 1996. Neste ensaio, apresentamos uma edição crítica do poema de Marinetti. Sobre a viagem de Marinetti ao Brasil em 1926, ver FABRIS, Annateresa. O futurismo pau/i.~ta. Hipóteses para () estudo

5.

da cheliada da vanliuarda ao Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1994,217-259. De Annateresa Fabris, o leitor deve também consultar Futurismo; uma poética da modernidade, São Paulo: Perspectiva. 1987. Sylvia Saítta reconstruiu o impacto (e o não-impacto) da presença de Marinetti em Buenos Aires in Marinetti enBuenos Aires. Entre la política y el arte, Cuadernos Hispanoamericanos 539/540: 161-69, Maio-Junho 1995. 6.

Nelson Osorio Tejada des-

creve a recepção inicial do futurismo na América-Latina. La recepcián deI Manifiesto Futurista de Marinetti en América Latina, in Revista de Crítica Literaria Latinoumericana 15: 25-37,1982.


As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada

Marinetti realizou esta proeza no célebre manifesto Le Futurisme mondial, in Le Futuris me. Revue Synthéthique Il/ustrée, 11 de janeiro de 1924, 1-2.

7.

Martín Fierro, 8 de julho de 1926,5.

8.

43

mopolita das primeiras vanguardas e a orientação autóctone na busca de modelos autônomos de modernização. Estes fatores transformaram o sempre ansioso espírito cooptador de Marinetti numa ameaça cada vez mais inconveniente_ Por exemplo, na década de 20, o futurista tentara caracterizar como seus "seguidores" autores tão diversos como Blaise Cendrars, Jean Cocteau, Drieu la Rochelle, Jorge Luis Borges, Vicente Huidobro, Mário de Andrade, Yan de Almeida Prado e muitos outros'? Para recontar a viagem de Marinetti, estaremos questionando tanto a versão triunfalista do futurista quanto os mitos defensivos elaborados por escritores contemporâneos ao evento e críticos literários. No contexto brasileiro, escritores e críticos têm sido unânimes em considerar a visita de Marinetti um autêntico fracasso_ Contudo, uma análise mais detida de documentos disponíveis em arquivos até agora pouco pesquisados ou desconhecidos sugere uma história muito distinta. Uma história que esclarece o papel central desempenhado pelas circunstâncias da vida literária local na criação da memória, logo, na percepção futura da visita de Marinetti. Em alguma medida, esta história "despolitiza" a reação à presença de Marinetti, revelando que, em boa parte das críticas suscitadas pelo italiano, o que estava em jogo era sobretudo a definição da persona pública que um escritor deveria assumir. É claro que não pretendemos negar ou mesmo camuflar as implicações políticas da aproximação do futurismo com o fascismo; ora, na viagem de 1936, por ocasião da reunião do Pen Club, em Buenos Aires, Marinetti foi expulso do encontro devido ao seu agressivo proselitismo. Entretanto, os problemas de ordem política têm servido aos críticos literários como um autêntico passe-partout: basta evocá-los e todas as interrogações logo encontram uma resposta "satisfatória". Para formular perguntas novas, precisamos situar a questão política numa dimensão apropriada. A única forma de fazê-lo consiste em resgatar a concretude do cotidiano dos lugares visitados por Marinetti. Esta concretude tanto se relaciona aos eventos comuns do dia-a-dia quanto às relações entre os homens de letras e suas conexões com a imprensa e com os ambientes mais formais, como as academias ou associações similares. Por fim, os documentos consultados em nossas pesquisas revelam que, do ponto de vista comercial, a viagem de Marinetti foi um grande êxito. Êxito também em outra esfera, como foi reconhecido pelos editores da revista argentina de vanguarda, Martín Fierra: "o simples fato de que Marinetti tenha insistido em anunciar ao grande público e aos jornais populares a beleza da vida moderna - para nós um lugar comum que praticamos há muitos anos - é em si mesmo uma inovação".8 Uma inovação cujo êxito popular tanto gerou novas alianças quanto destruiu antigas, contribuindo para a eventual rejeição do futurismo no cenário latinoamericano. Principiaremos nossa análise com uma breve menção a um aspecto jamais examinado com o cuidado necessário: o lado financeiro da viagem.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Afinal, o motivo determinante da visita de Marinetti foi, em primeiro lugar, puramente comercial. Mas privilegiaremos o relacionamento entre Marinetti e Mário de Andrade, sem dúvida o motivo "secreto" tanto da recepção tumultuada que esperava o italiano em São Paulo quanto da chave de interpretação que Mário criou e que os críticos literários têm fielmente reproduzido.

I. O grande circuito .. .foi-se o tempo em que Marinetti era milionário. Ele poderia chegar de Tóquio e de imediato partir para Madri. Os ingressos para o teatro eram gratuitos. Agora, ao contrário, Marinetti necessita produzir 9

9. GOBElTI,

Eu tive a satisfação de empreender uma grande turnê na América do Sul com um empresário que pagava um salário e lucrava com a minha voz, permitindo ao mesmo tempo que eu também lucrasse. 11)

/O MARINETII, F.T., Per la inaugurazione de lia Esposizione Futurista della Casa dei Fascio in Universifà Fascista - Lezioni, Bolonha: Casa dei Fascio, 1927,4. Este discurso foi proferido em 20 de janeiro de 1927 e representa um importante (ainda que hiperbólico) testemunho de Marinetti sobre a viagem à América do Sul.

Na década de 20, Marinetti enfrentava sérias dificuldades financeiras resultantes de fracassos editoriais e de uma série de batalhas legais iniciadas com o processo contra o Mafarka le futuriste (1910). Ao mesmo tempo, o futurista lutava para manter a visibilidade de seu movimento. já na segunda década de existência. Os desafios a serem vencidos eram muitos. A Primeira Guerra Mundial provocara a morte de importantes colaboradores - Boccioni e Sant'Ellia. Além disto, dissenções significativas se multiplicaram - Palazzeschi, Folgore, Papini, Carrà, Severini e Sironi. Novas correntes culturais passaram a disputar o espaço artístico europeu - a ascensão de novos objetivismos, purismos e classicismos. Por fim, a progressiva hegemonia de nacionalistas conservadores no governo de Mussolini representou uma potencial ameaça ao caráter inicialmente disruptivo das idéias futuristas. No entanto, o Congresso Futurista, realizado em Novembro de 1924, assim como as homenagens prestadas a Marinetti em toda a Itália marcaram a renovação do movimento e sua reabsorção pela ordem fascista. Esta reabsorção foi consolidada em publicações como Futurismo e fascismo (1924), I nuovi poeti futuristi (1925) e ainda na mudança realizada por Marinetti e Benedetta, em 1925, de Milão a Roma. Era esta a situação de Marinetti quando ele foi abordado pelo empresário brasileiro Niccolino Viggiani com uma proposta tão inesperada quanto prometedora. Afinal, se o amanhã do futurismo parecia incerto no cenário europeu, na América Latina ele continuava sendo um importante ponto de referência, embora extremamente polêmico. Ademais, países como Brasil e Argentina pareciam ideais para receber o futurista, pois o claro interesse pelos debates sobre modernização cultural se associaria à presença de uma expressiva comunidade italiana, em geral um bom público para espetáculos teatrais e para companhias de ópera compostas por artistas

Pira, Marinetti, il precursore in Il Lavom di Genova, 31 de janeiro de 1924.


As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada

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italianos. O próprio Viggiani era um especialista neste tipo de promoção. Em 16 de dezembro de 1925, Marinetti assinou o seguinte contrato: 11. Yale Beinecke - Arquivo Marinetti, série m, caixa 53, pasta 1978.

12. Ver: KOIFMAN, Georgia, org. Literatura de idéias. Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes Neto./924/36. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, 193. Na verdade, o livro foi lançado após a partida de Marinetti e contém onze manifestos previamente publicados e urna série de reproduções de trabalhos futuristas. Neste livro, o manifesto que mencionava Mário de Andrade e Yan de Almeida Prado, "Le Futurisme mondial", foi republicado. Graça Aranha apenas escreveu o prefácio do volume - uma reprodução do discurso de recepção que o brasileiro fez a Marinetti em sua primeira conferência no Rio de Janeiro, em 15 de maio de 1926. Este prefácio - "Marinetti e o futurismo" - está republicado in Cou· TINHO, Afrânio, org. Graça Aranha. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968,863866. \3

Duas exceções podem ser

encontradas no Jornal do Co-

mércio. Em 9 de maio, o anúncio esclarecia o título da conferência: "Futurismo"; em 16 de maio, o leitor encontraria mais informações: "Amanhã - Segunda-feira, 17, A despedida de MARINETII. Preços usuais". (De fato, a conferênca foi realizada em 18 de maio).

o poeta F T. Marinetti compromete-se a empreender uma turnê de conferências (minimum de oito conferências), incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos

Aires, com início previsto para Junho de 1926. O Sr. Viggiani compromete-se a organizar as mencionadas conferências nos melhores teatros daquelas cidades C.. ) estando implícito que sete dias é o período mínimo de permanência em cada cidade (para assegurar o êxito das conferências através de entrevistas, etc ... ). O Sr. Viggiani compromete-se a pagar a FT. Marinetti 20% do lucro líquido obtido com a venda de ingressos .11

Portanto, além de lucrar com a voz dos outros, Viggiani também permitia aos outros lucrar com a própria voz. Neste sentido, os 20% prometidos a Marinetti parecem ter sido a quantia geralmente oferecida em turnês organizadas por empresários como Viggiani. De um lado, tal sistema estava baseado na habilidade do empresário em obter o máximo de visibilidade para seu artista. De outro lado, caberia ao artista entreter o público e criar fatos capazes de atrair a atenção da mídia. O empresário também se responsabilizou pelas despesas de viagem em primeira classe do casal Marinetti, assim como por todos os detalhes organizacionais necessários para o sucesso da iniciativa, além das despesas de hospedagem e a concessão de um generoso per diem. Mas, afinal, quem era exatamente Niccolino Viggiani? Ao contrário do que Antonio Candido imaginou, Viggiani não foi "o editor do livro de Graça Aranha, Futurismo - Manifestos de Marinetti e seus companheiros", uma antologia apontada equivocadamente como a razão da visita do italiano. 12 Viggiani era o diretor de uma companhia teatral que levava o seu nome e cujas apresentações tinham lugar no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Ele era um importante empresário teatral, conhecido por organizar visitas de artistas europeus, especialmente, italianos. Para compreender a importância dos eventos promovidos por Viggiani, basta consultar a seção de espetáculos, por exemplo, do Jornal do Comércio. Os anúncios da "Companhia Niccolino Viggiani" ocupavam quatro ou cinco vezes o espaço dedicado aos eventos das demais companhias. Baseado nestes anúncios, Viggiani buscou fixar um padrão idêntico para as conferências de Marinetti, divulgadas como mais uma entre as promoções do empresário. Num mesmo espaço, o leitor encontraria o anúncio de atrações musicais e teatrais ao mesmo tempo em que saberia das conferências do italiano. Aquelas, apresentadas em tipos destacados e com razoável minúcia descritiva; estas, apresentadas em tipos mais discretos, incluindo apenas o nome do poeta e a data da conferência. A diferença gráfica, contudo, não implicava uma distinção qualitativa, na verdade, ela apenas sugeria uma diferença quantitativa. Para o poeta e para o empresário

°


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o recital de uma famosa cantora lírica e a conferência do futurista podiam ser anunciados no mesmo espaço pois representavam formas similares de espetáculo. A diferença realmente significativa dependeria do número de ingressos vendidos, isto é, do lucro obtido. De fato, Viggiani não poderia reclamar do lucro proporcionado por Marinetti. As seis conferências realizadas no Brasil- duas no Rio de Janeiro, três em São Paulo e uma em Santos - renderam para o empresário a soma de trinta contos e quinhentos e quarenta e três mil-réis, dos quais perto de seis contos destinaram-se a Marinetti. 14 Embora o salário mínimo brasileiro tenha sido oficialmente estabelecido em 1941, segundo cálculos de A Classe Operária, um jornal militante da década de 20, a média do salário, em 1925, correspondia a 250 mil-réis. Ou seja, em seis conferências, Marinetti produziu o equivalente a dois anos do salário de um trabalhador comum. 15 Ao que tudo indica, o futurista pensava nesta quantia ao declarar à imprensa argentina que tinha ficado "muito satisfeito com [sua] estada no Brasil, cujos resultados ultrapassaram todas as expectativas".16 Não é nosso objetivo detalhar o aspecto financeiro da viagem, contudo, vale a pena registrar que, em sua segunda fase, Marinetti realizou ao menos doze conferências - onze na Argentina, das quais nove em Buenos Aires, e apenas uma no Uruguai. Do total arrecadado com a venda de ingressos, Marinetti obteve 1.373 pesos. Uma soma inferior à obtida no Brasil em um número menor de conferências, mas ainda assim uma quantia razoável se considerarmos que, em 1926, o salário anual de um professor de escola secundária no mais alto nível de qualificação equivalia a 3.300 pesos.1 7 De qualquer modo, em carta enviada a seu irmão, Alberto Cappa, Benedetta reconhecia que a segunda fase da viagem não podia ser comparada com a estada no Brasil, ao menos no que se refere aos lucros de seu marido: "Grande successo. gloria. gloria. Come sempre pocchissimo successo finanziario".18 Inversamente. este comentário revela um aspecto fundamental da viagem de Marinetti. sistematicamente negligenciado ou ignorado pelos críticos literários.

11. Uma inimizade desvairada Volto encantado do Brasil. O Rio de Janeiro, sobretudo, suscitou-me impressões vivas e extremamente agradáveis, Senti nesta cidade minha sensibilidade despertada física e intelectualmente, da forma mais amena e festiva ( ... ) Intelectualmente surpreendeu-me encontrar no Rio um intenso movimento literário e artístico, tendo a seu serviço formosas inteligências e capacidades muito acima do comum. O futurismo é compreendido e defendido por uma legião de escol, igualmente brilhante na prosa e no verso. Graça Aranha e Ronald de Carvalho primam entre esses precursores da arte nova ( ... ) Malgrado a tempestuosa recepção que recebi em São Paulo, esta cidade deixou-me também excelentes impressões ( ... )

14 A documentação referente ao número de ingressos vendidos e à porção correspondente a Marinetti pode ser consultada in Yale Beinecke - Arquivo Marinetti, sélie m, caixa 53. pasta 1978. 15 Uma situação invejável, A C/asse Operária 12, 18 de ju-

lho de 1925. Apud PINHEIRO, Paulo Sérgio & HALL, Michael M., orgs. A C/asse operária no Brasil. 1889-/930. Documentos. Vo!. 11. Condiç"es de vida e de trabalho, relaç"es com os

empresários e o Estado. São Paulo: BrasBiense, 1981, 131. Desde ayer es nuestro hués-

16.

ped Felipe T. Marinetti, La Prensa, 8 de junho de 1926,

14. 17 Liliana Pascual, San José de Flores /920-/930. La Educacirin, Buenos Aires: CIS -

Instituto Torcuato di Tella, 1977, 19 ff. Devemos esta informação a Yasushi Ishii. IX

Carta a Alberto Cappa. Get-

ty Center - Arquivo Marinetti, acesso # 850702, série 111, cai-

xa 8. pasta

160.


As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada

O Jornal, II de julho de 1926. Apud BARBOSA, Fmncisco de Assis, org. Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, 7919.

83. 20. Em especial, Da Montevideo a Buenos Aires con F.T. Marinetti, Giornale d'Italia, Buenos Aires, 8 de junho de 1926. Nesta entrevista, Marinetti sintetizam suas impressões sobre os intelectuais brasileiros, retomando-as parcial-

mente na entrevista com Sérgio Buarque. O relacionamento de Manuel Bandeira com o casal Marinetti foi mais próximo do que em geral se reconhece. Presente em quase todas as ocasiões públicas importantes durante a permanência de Marinetti no Rio de Janeiro, Bandeira ainda levou o casal para longos passeios de automóvel na cidade, em especial ao Jardim Botânico. Marinetti dedicou quatro páginas de seu diário a esta visita (516-519). Mário de An21.

drade reagiu com rapidez ao encantamento de Bandeira. Em cana a Prudente de Momis Neto, enviada em 31 de maio de 1926, Mário não procurou disfarçar sua contrariedade: "O que não compreendo nada é o entusiasmo e a paciência do Manú, desconfio que foi por vontade de carregar nos sonhos eróticos dele a benedetta (sic) Croce tão pouco cristã", in Georgina Koifrnan (ed .. 195.). Adiante, citaremos uma outra cana, agora enviada a Luís da Câmam Cascudo em que o entusiasmo de Bandeira é uma vez mais condenado. 22. Telegrama enviado em 23 de maio de 1926. VaIe Beinecke - Arquivo Marinetti, série m, caixa 7, pasta 76.

2.1. MARINETI1, ET.,

Taccuini.

1915/1921, org. Alberto Bertone (ed.), Bolonha: li MulillO, 529.

47

Encontrei em São Paulo uma vanguarda de intelectuais que muito honram as letras brasileiras. Conservo grata recordação da cintilante grei de futuristas paulistanos. Destaco. sobretudo. Guilherme de Almeida e a Sra. Olívia Penteado. 19

Esta foi a última entrevista concedida por Marinetti em 1926, na véspera do seu regresso à Itália. Entrevista menos concedida do que produzida, pois coube ao italiano a iniciativa de procurar Sérgio Buarque na redação de O Jornal. Com uma última aparição pública, Marinetti encerrou suas atividades de auto-promoção, previstas no contrato assinado com Viggiani e, na verdade, marca registrada do futurista. Se houve uma surpresa não foi quanto às observações, próprias de qualquer turista e que Marinetti já fizera na imprensa argentina,20 mas quanto aos nomes destacados .pelo futurista como representantes da vanguarda brasileira. Graça Aranha e Ronald de Carvalho como "precursores da nova arte" no Rio de Janeiro? Por que não? Marinetti nunca descuidou do ritual da reciprocidade, buscando deste modo construir uma vasta rede de "aliados", capaz de assegurar o futuro de seu movimento. Graça Aranha foi um perfeito anfitrião, brindando o italiano com um discurso encomiástico no Teatro Lírico e facilitando todos os seus contatos para uma maior divulgação das conferências de Marinetti. Por exemplo, Ronald de Carvalho apresentou a conferência radiofônica que, na noite de 22 de maio, reuniu no estúdio da Rádio Sociedade personalidades como o vice-presidente Estácio Coimbra, inúmeros deputados, Manuel Bandeira21 e Graça Aranha, entre outros literatos. Na descrição de um telegrama pontualmente enviado na manhã seguinte: "público seleto considerável ( ... ) brilhante discurso inaugural poeta ronaldcarvalho (sic) sobre grande impacto artístico político do futurismo italiano marinetti (sic)."22 É, pois, compreensível a última homenagem prestada por Marinetti a seus novos "aliados" no Rio de Janeiro, local onde ele teve a melhor recepção de toda a viagem. A verdadeira surpresa, contudo, estava reservada à "cintilante" menção a Guilherme de Almeida e Olívia Penteado. Considerá-los como os legítimos representantes da vanguarda paulista parece equivocado mesmo para os que desconhecem o diário que Marinettimanteve durante sua turnê à América do Sul. No dia 29 de maio, por exemplo, o futurista foi recebido na casa de Olívia Penteado para conhecer seu famoso "salão modernista". Marinetti descreve algumas das telas "da senhora Penteada Telles (sic) ... apaixonada pela vanguarda e pelo futurismo", sem esquecer de mencionar os personagens que ali se encontravam: "um Russo que imita Delaunay e Leger. Nas outras paredes, quadros vanguardistas de Tarsilla de Amar (sic) De Garro (italiano) e Reis. Encontro Mário de Andrade, Guilherme de Almeida".23 Além de declamar poesias, Marinetti assistiu a performances dos dois poetas brasileiros, Guilherme de Almeida foi retratado em seu diário de uma forma nada brilhante: "delicado, refinado, elegantíssimo, rosto e corpo de


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uma velha símia equipada com parisianismo e Mallarmé declama com ardor e virilidade de gestos sua poesia sobre a Aurora".24 Como os erros de ortografia e a referência ao decadentismo dos versos terão esclarecido, Marinetti não viu grandes atrativos em Guilherme de Almeida e Olívia Penteado. Portanto, o destaque que eles ganharam na entrevista mencionada tem um alvo secreto. Um alvo que o futurista tentava acertar com a arma que ele manejava melhor: a publicidade. Marinetti buscava atingir Mário de Andrade, excluindo-o da seleção dos vanguardistas, do mesmo modo que, em 1924, ele tentara seduzir o brasileiro, mencionando-o na improvável lista do "futurismo mundial". Nesta batalha de bastidores reside o pano de fundo das observações de Marinetti. Na entrevista concedida a Sérgio Buarque, o italiano agiu como um perfeito "passadista". O fundador do futurismo escolheu como aliados personagens que os historiadores literários terminariam por considerar secundárias no cânone do movimento modernista. No entanto, Marinetti intuiu muito bem que, em 1926, a questão principal era a escolha de margens. Por exemplo, no dia 26 de maio, Marinetti anotou em seu diário: Menotti dei Picchio (sic), literato futurista atualmente deputado diretor do Correio Paulistano. ( ... )

Del Picchio há dois anos (si c) fez com Aranha Carvalho Bandeira Andrade de Almeida Prado a semana modernista futurista no Teatro Municipal. Hoje está brigado com Andrade atacou o último livro de Almeida. Chega Mário de Andrade 25

Apesar dos erros de ortografia e cronologia, estas linhas revelam um atento observador. Em 1926, o movimento modernista estava prestes a assumir faces tão diversas quanto o número de facções que estiolariam a unidade responsável pela eclosão da semana de 1922. Grupos de tendência esquerdista, grupos de inclinação fascista e até apolíticos então emergentes encontrariam expressão em revistas que divulgariam suas plataformas. Além da disputa ideológica, outras lutas eram travadas. Disputava-se o exíguo público com o mesmo interesse com que, muito em breve, boa parte da geração modernista encontraria respaldo em cargos oficiais. Este processo aprofundou uma ruptura semântica cujas primeiras manifestações antecedem 1922. Então, a fórmula a que Marinetti recorreu para definir a Semana de Arte Moderna ("semana futurista modernista"), embora já problemática, poderia ter sido empregada para efeitos propagandísticos. No entanto, em 1926, tal fórmula apenas criaria constrangimentos. Esta mudança atesta anos de esforços por parte de alguns membros do movimento para a superação da imagem de iconoclastas que a Semana impusera. Guilherme de Almeida optou pelo caminho mais fácil, ingressando, em 1930, na instituição preferencialmente visada pelas críticas dos modernistas, a Academia Brasileira de Letras. Ou-

24

Idem. ibidem.

25

Idem. 524.


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49

tros participantes da Semana, mais sutis ou menos inclinados aos rituais da Academia, apostaram no modelo do intelectual como arquiteto da modernidade da nação. Neste contexto, a ruptura semântica cristalizou-se. O termo

''futurismo'' passou a designar uma condenação indiscriminada, logo, superficial, contra toda e qualquer manifestação do passado. O termo "modernismo ", entendido como a face positiva da reação contra estruturas arcaicas, passou a designar formas novas de identidade cultural, profundamente identificadas com a essência da nacionalidade. Esta ruptura constituiu um dos elementos determinantes da acolhida que Marinetti teve. Com efeito, ela pode ser observada tanto em debates intelectuais quanto em charges e inúmeras paródias em verso e prosa publicadas na imprensa diária. Nos debates, a ruptura é explicitada formalmente. Nas charges e inúmeras paródias de palavras-em-liberdade com descrições satíricas das conferências de Marinetti, a penetração popular daquela ruptura se esclarece. Por exemplo, um leitor do Jornal do Comércio que consultasse a seção de espetáculos, em 9 de maio de 1926, encontraria um anúncio de meia-página, cujo mote prometia: "A EPIDEMIA DO JAZZ: UM FILME FUTURISTA - UMA HOMENAGEM AO ESPÍRITO MODERNO. Asupremaciado absurdo! Do ilógico! Do incoerente!" Embora a

carga semântica dos termos ainda não esteja diferenciada com nitidez, o absurdo, o ilógico e o incoerente são atributos do filme "futurista", adjetivo que resume uma parte do "espírito moderno", mas que não o esgota. Em palavras diretas, Marinetti, o criador do futurismo, desembarcou na América do Sul após a consumação do tempo: tivesse ele chegado em 1924, como seu equívoco sugere (Há dois anos [realizou-se] a semana modernista futurista"), 2ó.

Ver FABRIS, Annateresa, op.

266-68; NUNES. Benedito. OSlVald Canihal. São Paulo: Perspectiva. 1979.

cit.,

27.

Sobre o diálogo de Oswald

com Cendrm's, CAMPOS. Haroldo de, Uma poética da radicalidade. in OSlVald de Andrade. Poesias reunidas. São Paulo: D/FEL. 1966.32-35; AMARAL. Aracy. Rlaise Cendrars no Brasil e os modernista.\'. São Paulo: Livraria Mattins Editora, 1968.85-95. 2R.

ANDRADE. Oswald de. O

meu poeta futurista, in Boi\, VENlURA. Maria Eugenia, org. Estética e política. São Paulo: Editora Globo. 1991. 22-25. Este texto foi originalmente publicado no Jornal do Co-

mércio (São Paulo) em maio de 1921.

21

de

provavelmente o rumo de sua viagem teria sido outro. Ao menos vale a pena imaginar uma possibilidade: se a viagem realmente tivesse ocorrido em 1924, o autor de Zang Tumb Tumb poderia então ter encontrado quem talvez desempenhasse um papel mediador fundamental. Durante a permanência de Marinetti no Brasil, Oswald de Andrade estava no exterior, tendo apenas retornado no mês seguinte ao da partida do italiano. As afinidades de Oswald com o futurismo remontam a 1912, em sua primeira viagem a Europa, quando ele leu com interesse o Fundação e Manifesto do Futurismo, publicado pelo Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909; um texto cujo impacto sobre suas concepções não deve ser ignorado. 26 Em seu período formativo, o principal diálogo de Oswald de Andrade foi com as vanguardas francesas e, sobretudo, com Blaise Cendrars. 27 No entanto, entusiasmado com a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, Oswald não encontrou maior elogio que considerar seu autor, "o meu poeta futurista".28 A afinidade realmente importante diz respeito à compreensão oswaldiana da natureza auto-promocional da indústria cultural contemporânea. Oswald, na melhor tradição futurista, provocava abertamente seus adversários, inspirando críticas semelhantes às que foram endereçadas a Marinetti em 1926. Na visão de Oswald de Andrade, a


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, na 3

prática artística dos modernistas se completava na encenação de seu papel social e este poderia, se exercido com a dose necessária de artifício, tornar-se uma outra forma de apresentação da arte moderna. Por isto, um encontro de Marinetti com Oswald de Andrade, ainda que fictício, teria chances reais de oferecer ao futurista um importante e fecundo interlocutor. Num outro plano, a presença de Mário de Andrade deve ter parecido a Marinetti uma desagradável surpresa. Mário construiu sólidas alianças através de uma minuciosa e quase obsessiva correspondência que deve ter incluído a maior parte dos jovens promissores da geração de autores pós-1922. Os efeitos práticos deste sistema epistolar eram múltiplos. Para compreendê-los, precisamos privilegiar os possíveis vínculos institucionais nele implicados, em lugar de limitar nossa interpretação às vicissitudes pessoais dos missivistas. 29 Através de sua correspondência, Mário pôde coreografar e mesmo coordenar eventos, além de praticamente modelar o horizonte intelectual de escritores iniciantes. Por fim, nas cartas pontualmente enviadas, e que recordam os inúmeros telegramas expedidos por Marinetti, Mário assumiu o papel de cronista da literatura brasileira. Este papel foi o mais importante, pois permitiu a Mário estabelecer-se como uma espécie de criador da memória da cultura nacional, uma ponte entre a idade heróica do modernismo e as gerações posteriores. Portanto, não teria sido apenas um gesto inconseqüente o que levou Mário de Andrade a enviar para Marinetti uma cópia de Paulicéia Desvairada com a dedicatória: "A F.T.Marinetti / com (sic) viva simpatia e ammirazione".30 Marinetti, com um olho posto numa futura aliança, respondeu com rapidez e no já citado manifesto "Le Futurisme mondial" alinhavou numa lista ecumênica de "futuristes sans savoir, ou futuristes déclarés" ( ... ) De Andrade, D' Almeida Prado (sic)".31 O alcance do gesto dependia do axioma fundamental da lei da reciprocidade: "só me interessa o outro como um outro aliado". Deste modo, um pouco antes da chegada de Marinetti em 1926, Yan de Almeida Prado recordou que "um belo dia chegou-me comunicação de outro empresário com aviso que Marinetti ia empreender turnê na América do Sul e contava naturalmente com o meu auxílio".32 Mário de Andrade também recebeu mensagens de Viggiani, mas com ele a causa do empresário estava perdida desde o começo. O gesto de Marinetti desagradou a Mário de Andrade. Além disto, sentimentos antifascistas e uma crescente inclinação nacionalista, associados a simples ansiedade sobre a repercussão da visita do italiano na cena intelectual brasileira tornaram Mário abertamente hostil à presença de Marinetti. Hostilidade que transparece sob a face irônica de uma breve nota enviada a Prudente de Moraes Neto: Chego no Rio a bordo do Zelandia. Vá me esperar no cais pra combinar tudo. Não sei pra que Hotel vou. Arranje pois pra estar no cais e me abraçar. Vou buscar o Marinetti.

Silviano Santiago, em palestra realizada na Universida-

29.

de de Stanford, destacou esta perspectiva.

lO. Apud FABRIS, Annateresa, op. cil.• 218. li.

MARINETTI. F.T.. Le Fututis-

me mondial, in Le Futurisme. Revue Synthéthique Illustrée, 11 de janeiro de 1924, 2. As dúvidas referentes à identidade do "De Andrade" foram satisfatoriamente resolvidas por Annateresa Fabris, OI'. cit.,

217-18. PRADO, J.F. de Almeida, O Brasil e () colonialismo eu-

12

ropeu. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1956, 392, nossos itálicos.


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D

KOIFMAN,

Georgina, org.,

191.

51

Quá! Quá! Quá! O Viggiani é que paga. Quá! Quá! Quá! Sinão eu não ia. Quá! Quá! Quá! Buscá o Marinetti. Quáquá! Quá! Quá! (Isto é fia modinha).33

A reserva inicial de Mário com vanguardistas europeus que vinham conquistar eldorados é bem conhecida. Por exemplo, na Revista do Brasil, na edição de março de 1924, por ocasião da primeira visita de Blaise Cendrars ao Brásil, após escrever um longo e favorável ensaio, Mário não resistiu a um duvidoso jogo de palavras. Cendrars quase foi impedido de ingressar no país, pois, em virtude das novas leis de imigração, sua condição física o tornava incapacitado para o trabalho. O braço que o suíço perdera na Primeira Guerra Mundial o tornou alvo da sugestão: na verdade, Blaise Cendrars seria SansBras. O artigo de Mário explicitava a equivalência: ANDRADE, Mário de, Blaise Cendrars, Revista do Brasil, março, 1924, in EULÁLIO, Ale-

14

xandre, org., A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars. São Paulo: Edições Quíron, 1978, 160. Jj.

MARINElTI, F.T., Le FutUlis-

me mondial, in Le Futurisme. Revue Sv1lthélhique Illustrée, 11 de janeiro de 1924, I. lO. PRADO, J.F. de Almeida, op. eit., 396.

17 Mário de Andrade publicou a "Carta aberta a Graça Aranha" em 12 de janeiro de 1926, em A Manhã. Nesta carta, Mário contestava a pretensa liderança de Graça Aranha e chegava a duvidar do modernismo do autor de Espírito moderno, insinuando que Aranha apenas

aderira ao movimento modernista movido por interesses pessoais. VERISSIMO DE MEU), org., Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte, Vila Rica, s/d, 63. A carta foi escrita em 4 de junho de 1926. 18

As autoridades de Santos quiseram impedir-lhe o desembarque, por que era mutilado. Tudo se arranjou, Felizmente para nós, que possuiremos o poeta por algum tempo. Mas o ato policial me enche de sincero orgulho. Que vem fazer entre nós os mutilados? O Brasil não precisa de mutilados, precisa de braços. J.I

A fonte de Mário pode ter sido o manifesto do "Futurisme mondial", publicado em janeiro de 1924. Nele, Marinetti anunciava o "futurista" Cendrars inaugurando o duvidoso jogo: "Voici le Sans Fil Blaise Cendrars, filmeur de rêves negres, émetteur des Radios, écraniste solaire du monde entier".35 Na imagística futurista, o Sans-Fil equivale à explicitude da sugestão andradina. Igualmente direto, Yan de Almeida Prado creditou o incidente a determinada característica de Mário, "ao qual aborrecia o aparecimento de outro pontífice no seu arraial".36 No caso de Marinetti, não se tratava de um outro qualquer, mas do próprio criador do futurismo. Por isto, a reação de Mário foi imediata e o debochado "quá! quá! quá!" anunciou a calculada frieza com que Marinetti seria tratado. Mário ironizava tanto a "generosidade" de Viggiani quanto a ingenuidade do italiano que esperava encontrar um "De Andrade" e um "D' Almeida Prado" prontos para o papel de fiéis escudeiros do futurista. Afinal, por que o empresário pagaria as despesas de Mário? Certamente porque sua participação asseguraria à chegada de Marinetti um considerável valor no marketing das conferências. Sobretudo após a "Carta aberta a Graça Aranha" que tanta polêmica ocasionara. 3? Reunir os dois líderes do modernismo brasileiro na recepção ao criador do futurismo representaria um verdadeiro evento. Aliás, um evento cujo interesse fez com que criativos jornalistas incluíssem um Mário de Andrade virtual em suas narrativas. Antes que tal versão se transformasse em fato, Mário se viu forçado a reagir: "Os jornais falaram que fui no Rio esperá-lo. É mentira, não fui não. Pretendi ir depois desisti e estou convencido que fiz bem" ,38 pois o inimigo maior da performance futurista era tanto a indiferença hostil quanto o aplauso educado. Em "La voluttà di esser fischiati", este princípio já havia


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sido tematizado: as apresentações futuristas são batalhas que convidam à vaia, à reação violenta por parte do público. 39 Quanto maior a violência desta reação, maior o êxito da se rata futurista. Talvez porque durante muitos anos tenha convivido com Oswald de Andrade, Mário compreendia tal estratégia com perfeição. Estava, portanto, preparado para a disputa. Faltava apenas o encontro com o adversário. Numa carta a Luís da Câmara Cascudo, Mário descreveu o confronto:

39 MARINETII, F.T., La voluttà di esser fi schiati. in MARIA. Luciano de, org., Guerra sola igiene dei mondo (1915). Teoria e invenzione futurista, Milão: A. Mondadori, 1983.

Depois dele estar já três dias em S. Paulo é que fui visitá-lo. Não podia deixar de ir embora esse fosse meu desejo porque desde a Itália e desde muito que tem sido gentil pra comigo. Fui e a primeira coisa que falei pre ele é que tinha deixado de ir à conferência porque discordava dos meios de propaganda que estava usando. Ficou sem se desapontar e pôs a culpa no empresário. E falou falou dizendo coisas que eu já sabia e me cansando. Me despedi e espero que se tenha desiludido de Mário que ele imaginava futurista ( ... ) A segunda vez que o vi foi num chá no salão moderno de Dona Olívia Penteado. Esteve absolutamente chato. Não o procurei mais e meio que banquei o indiferente. Me contaram que ele foi embora indignado conosco. É milhor assim. No Rio foi apreciadíssimo dos modernos e teve as honras que não me parece merecidas de ser apresentado no teatro pelo Graça e na conferência do rádio pelo Ronald. Não posso compreender o entusiasmo que tiveram por ele. principalmente o Manuel Bandeira."411

VERfsSIMO DE MELO, org., 63-64. Para apresentar os dois encontros de Mário com Marinetti em ordem cronológica, alteramos a ordem original dos parágrafos da carta de Mário de Andrade. 40.

Como resposta ao interesse demonstrado pelos cariocas, Mário encontrou a fórmula adequada para neutralizar o italiano: a indiferença. Por fim, num esforço adicional para diminuir o entusiasmo de Bandeira, Mário enviou uma carta ao amigo, na qual anunciava a estratégia que empregaria em seu duelo com Marinetti: Inda não vi o homem e parece que de despeito ele afirmou no teatro que os futuristas do Brasil estavam todos no Rio de Janeiro (. .. ) mas amanhã, quarta, irei visitá-lo. Si não quiser me receber, milhor, porque evitará a discussão que havemos de ter, pois vou disposto a falar sinceramente o que penso do procedimento dele aqui e que não fui ao teatro porque não estou disposto a assitir espetáculo de vaias mais ou menos preparadas. 41

Num primeiro momento, Mário reagiu à presença de Marinetti deixando de comparecer aos eventos públicos organizados por Viggiani, evitando assim sua identificação com o líder futurista. Vale dizer, para Mário pouco importava se as vaias eram ou não combinadas, o importante era cercar o evento com um eloqüente silêncio. Num segundo momento, através de uma correspondência enviada a todo o Brasil, ele tomou a si a responsabilidade de descrever e avaliar a visita de Marinetti. Deste modo, além de reforçar sua posição de liderança, Mário construía a memória de futuras gerações. Por fim, Mário procurou desacreditar o papel fundador de Marinetti através de uma sutil armadilha lógica, expondo o paradoxo que cedo ou tarde toda

BANDEIRA, Manuel, org., Cartas a Manuel Bandeira. Mário de Andrade, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sld, 135.

4'.


As velocidades brasileiras de uma inimizade desvairada

42. ANDRADE,

Mátio de. Táxi e

crlJnicas no Diário NaciofUlI. Org. Telê Porto Ancona Lo-

pez, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976, 192. A crônica de Mário de Andrade foi publicada pela primeira vez in Diário Nacional, II de fevereiro de 1930. 43. FABRIS,

Annateresa, op. cit.,

219. 44

ANDRADE, Mário de. A Es-

crava que não é [saura, in

Ohra Imatura (Ohras completas de Mário de Andrade), São Paulo: Livrmia Martins Edito-

ra, 1960,215, nossos itálicos.

45

Idem, 260-62.

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vanguarda deve enfrentar. No caso de Marinetti, o paradoxo pode ser assim enunciado: o criador do futurismo exigia o reconhecimento de seu gesto fundador, ou seja, o criador do futurismo buscava legitimar sua posição presente por meio de um evento passado. Logo, se Marinetti afirmara que os verdadeiros futuristas brasileiros estavam no Rio de Janeiro, segundo Mário, os verdadeiros futuristas italianos eram todos ex-futuristas. No primeiro encontro dos dois, ocorrido em 26 de maio, no Hotel Esplanada de São Paulo, Mário sugeriu este ponto duas vezes. "Ficamos assim meio sem vida, ele respondeu com certa má vontade às perguntas que eu fazia sobre Folgore e Palazzeschi, meus carinhos italianos do momento".42 Pelo visto, o gosto de Mário era bastante seletivo e, neste caso, privilegiava autores que se afastaram de Marinetti. O italiano, se conhecesse melhor a cena brasileira, poderia ter respondido à altura insinuando uma possível predileção por Menotti deI Picchia e Graça Aranha ... Como último golpe, Mário presenteou Marinetti com um exemplar de A Escrava que não é [saura (1925), acrescentando uma dedicatória "Para FT. Marinetti / o agitador futurista". Annateresa Fabris considerou a atitude incoerente: "Para alguém que discordava dos métodos de atuação do homenageado L .. ) os termos da dedicatória não podem deixar de soar surpreendentes".~·; ~o entanto. o conteúdo do Ii\TO contém uma série de provocações diretamente dirigidas contra Marinetti. Por exemplo, Folgore é descrito como "porventura o maior e certo o mais moderno do grupo futurista italiano" .44 Além de exaltar as qualidades poéticas de Palazzeschi, Mário transcreve integralmente "La Fontana Malata".45 O golpe decisivo, contudo, é a seguinte avaliação da obra de Marinetti: Marinetti criou a palavra em liberdade. Marinetti aliás descobriu o que sempre existira e errou profundamente tomando por um fim o que era apenas um meio passageiro de expressão. Seus trechos de palavra em liberdade são intoleráveis de hermeticismo, de falsidade e monotonia. 4fi

46

Idem, 239-40.

47.

GRAÇA ARANHA, Mminetti e

o futurismo, in COUllNHO, Afrânio, org., Graça Aranha. Ohra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1968,863-866.

A dedicatória do livro deve pois ser lida pelo avesso. Ao escrever "FT.Marinetti / agitador futurista", menos do que um elogio, Mário estava de fato recusando a opção: "FT. Marinetti / poeta futurista". Para concluirmos nosso argumento, devemos ressaltar que, neste refinado jogo de xadrez, Marinetti pode ter sido um simples instrumento. Na verdade, o verdadeiro alvo dos ataques de Mário era Graça Aranha. Denunciado na "Carta aberta" como um "passadista" disfarçado em trajes modernos, Aranha buscou recuperar sua posição de liderança no papel de anfitrião do criador do futurismo. No discurso inaugural da primeira conferência de Marinetti na América do Sul, em 15 de maio, Aranha teceu seus argumentos com cuidado: "Marinetti iniciou e organizou a ação libertadora ( ... ) Diante desta grandeza, como é pueril discutir-se se o futurismo de Marinetti já é passadismo."47 Nos próxi-


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mos parágrafos, Aranha analisou a cena brasileira, sugerindo um padrão idêntico para a avaliação de seu papel histórico de organizador da Semana de Arte Moderna. Mário respondeu de imediato a este astuto lance, aceitando a primeira parte do raciocínio, porém invertendo suas conseqüências. Graça Aranha bem poderia ser o Marinetti brasileiro. No entanto, dado o princípio de "tal pai, qual filho", se Marinetti era menos moderno que Folgore e menos futurista que todos os ex-futuristas, logo, Aranha era inevitavelmente um "passadista". Na esfera pública, Mário evitou contatos com Marinetti. Na esfera privada, ativou seu sistema epistolar para contar uma versão própria dos fatos e, assim, diminuir a importância do italiano. Com esta dupla estratégia, Mário neutralizou as ações planejadas por Graça Aranha. Um inesperado peão num jogo de xadrez cujos verdadeiros mestres eram Mário de Andrade e Graça Aranha e cujo prêmio era a liderança simbólica do movimento modernista, Marinetti optou pelas alianças possíveis numa situação difícil. Ele excluiu Mário da seleção de vanguardistas brasileiros, substituindo o poeta de Paulicéia Desvairada por Guilherme de Almeida e Olívia Penteado; além de reforçar seus laços com Graça Aranha e Ronald de Carvalho. Podemos agora retornar ao segundo encontro de Mário e Marinetti, desta vez escutando a versão do italiano: "Declamo Bombardamento. Mário de Andrade um tipo rude alto com aspecto de bom negro branco declama suspirosamente e leitosamente um de seus llOflImos".-t8 O "ex-aliado" do manifesto do "Futurisme mondial" reaparece como um poeta decadente, uma antítese do espírito moderno. Depois deste segundo encontro, Mário e Marinetti não se viram em nenhuma outra ocasião. O brasileiro não foi mais convidado para as aparições públicas do italiano e, claro, ele não compareceu às duas últimas conferências de Marinetti. No entanto, a vitória final coube a Mário de Andrade. Graça Aranha nunca recuperou a posição de liderança por ele desempenhada em 1922. Marinetti apenas retornou ao Brasil em 1936 e mesmo assim sem maiores conseqüências. Por fim, através de um perfeito sistema epistolar e de uma constante colaboração jornalística, Mário de Andrade transformou sua versão dos fatos na memória das futuras gerações. Uma conquista que Marinetti, o criador do futurismo, não poderia senão desejar para o seu movimento.

F. T. Taccuini. 1915/1921, org. Alberto Berlone org., Bolonha: 11 Mulino,

48 MARINETII,

529.


Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil Tania Franco Carvalhal

Uma primeira versão deste texto constituiu palestra que fiz no Curso de Pós-Graduação em Língua e Literatura Inglesa do Departamento de Letras da USP, São Paulo, em abril de 1995. 1 CANDIDO, Antonio. Palavras do homenageado In: 1" Con-

liressoABRAUC: Anais. Porto Alegre: UFRGS. 1989. Texto reproduzido In: Recortes. São Paulo, 1993.

Nas palavras iniciais que proferiu ao ser homenageado no I Congresso da ABRALIC, em Porto Alegre(1988), Antonio Candido, ao dizer que a "organização associativa dos especialistas era sinal de maturidade e com certeza ajudaria a Literatura Comparada brasileira a entrar na era do funcionamento sistemático", observou que até aquele momento ela tinha sido "uma atividade universitária ainda discreta e frequentemente marginal, quase sempre subproduto das disciplinas de literaturas estrangeiras modernas".l Interessa-nos pensar a que aludiria Antonio Candido ao final do parágrafo quando identifica, no início da institucionalização acadêmica da prática comparatista no Brasil, uma estreita vinculação entre ela e as literaturas estrangeiras modernas. Certamente estaria a lembrar de trabalhos pioneiros em literatura comparada que foram desenvolvidos no âmbito universitário sob forma de teses acadêmicas e não mais como resultado de um comparatismo "espontâneo e difuso" que, segundo ele, teria caracterizado os estudos críticos brasileiros, dotados em geral de "ânimo comparatista". Ânimo concretizado na referência constante a modelos externos, tomados inclusive como critério de valor, como se sabe, pois os estudos de literatura nacional (como aliás a própria produção literária brasileira) caracterizavam-se por manifestar através da constante referência ao estrangeiro, ainda no dizer de Candido, "uma espécie de comparatismo não intencional, elementar e ingênito".


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Entre os trabalhos oriundos da experiência com literaturas estrangeiras estão aqueles que o próprio crítico menciona no mesmo texto: o de Keera Stevens, sobre viajantes ingleses em Portugal, o de Carla de Queiroz em Literatura Italiana sobre Metastásio e os árcades brasileiros. o de Marion Fleischer, em Literatura Alemã, sobre obras publicadas nessa língua no Rio Grande do Sul, o de Onédia de Carvalho Barbosa. em Literatura Inglesa, sobre traduções de Byron no Brasil, e o de Maria Alice Faria. em Literatura Francesa, sobre Musset e Álvares de Azevedo. Como se vê, aparecem já nessa breve referência de Antonio Candido cinco literaturas estrangeiras que. na USP. motivaram estudos comparativos sistemáticos entre a nossa e aquelas literaturas. sobretudo no campo da recepção literária ou de análises pontuais entre dois (às vezes mais) autores de duas literaturas. Eis, portanto, numa perspectiva histórica. o quadro que desenha com nitidez a inclinação dos estudiosos de literaturas estrangeiras no Brasil para estudos que propiciem um aproveitamento simultâneo de dois campos de trabalho: o da literatura brasileira (que integra a formação do pesquisador brasileiro) e o da literatura estrangeira, na qual ele se especializa. Esse quadro, que poderia ser apenas inicial, se tem confirmado desde então por inúmeros trabalhos em diferentes universidades brasileiras, particularmente naquelas em que há mestrados e doutorados em literatura comparada: na própria Universidade de São Paulo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesta última, por exemplo, tive a oportunidade de orientar a tese de Doutorado em Literatura Comparada (a primeira a ser defendida no Doutorado em Letras da UFRGS, em dezembro de 1993) de Maria Marta Laus Pereira Oliveira, professora de francês da Universidade Federal de Santa Catarina, sobre a recepção da obra de Proust na crítica brasileira e também a tese de Maria Luíza Brandão da Silva, professora de literatura francesa na UFRGS, sobre a leitura de intertextos franceses no simbolismo sul-rio-grandense. Tive igualmente a ocasião, no recente concurso para Professor Titular de literatura norte-americana da UFMG, de apreciar o excelente estudo de Ana Lúcia Gazolla sobre as viajantes anglo-americanas no Brasil no século XIX, intitulado "Mulheres à deriva". Os exemplos poderiam se multiplicar e eles são aqui mencionados para identificar a origem desses trabalhos e a tendência geral e permanente dos professores de literaturas estrangeiras na universidade brasileira a se ocuparem com pesquisas de natureza comparatista. Tal incidência aponta para uma "inclinação natural" dos estudiosos de literaturas estrangeiras aos estudos comparatistas. Devido a essa inclinação natural (ou habilitação natural), a ABRALIC, desde sua constituição, pôde contar entre seus associados com expressivo número de professores de literaturas estrangeiras, pois habituado a lidar com duas ou


Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil

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mais línguas, literaturas e culturas, adquire esse pesquisador uma dupla competência, necessária a estudos dessa natureza. Essas rápidas considerações nos permitem dizer que tais estudos não podem, hoje, ser mais considerados como subprodutos das disciplinas de literaturas estrangeiras modernas, como os designou Antonio Candido, tendo por base o quadro histórico inicial. Na verdade, oriundos do trato com literaturas estrangeiras, eles se têm convertido em parte essencial não só das atividades de ensino e pesquisa das literaturas estrangeiras no Brasil como dos estudos de literatura comparada aqui desenvolvidos. Tendo em vista as orientações comparatistas mais recentes, eles assumem uma importância decisiva. Sobretudo quando se ocupam com as análises de produção/recepção literárias a partir de uma concepção de polissistema, tal como a definiu Itamar Even Zohar I In: Papers in Historieal Poeties, Tel Aviv, 1981), e com estudos intra e interculturais nos quais a tradução tem um lugar central, sem falar das investigações que se caracterizam como "cross cultural studies" e que incluem os estudos sobre viajantes e cronistas. Nesse contexto, os estudos interliterários e interculturais ganham uma grande relevância. Trata-se, pois, não só de sensível acréscimo de uma incidência numérica em trabalhos dessa natureza mas de um avanço certamente qualitativo nos estudos realizados nesses campos e que se identificam, particularmente, pela adoção de novos pressupostos teóricos e metodológicos, antes não disponíveis. Mas, cabe indagar, por outro ângulo embora ainda no mesmo contexto, o que faz com que um professor de literatura estrangeira entre nós adote, com tanta frequência, a orientação comparatista. A resposta pode vir rápida, pois não é difícil perceber que se trata, ainda e sempre, de peculiarizar uma atuação a partir do lugar onde o pesquisador se situa (ou seja, o loeus da enunciação). Quer dizer, um professor de literatura estrangeira no Brasil, por mais especializado que seja em períodos, tendências, gêneros ou autores estrangeiros (Shakespeare ou o drama burguês francês, por exemplo) sabe que, em lugar de restringir-se apenas àquela literatura estrangeira, poderá contribuir decisivamente para o conhecimento que desenvolve se tomar uma perspectiva que lhe é particular e que só um pesquisador com a dupla formação que possui (em literatura brasileira e estrangeira) pode assumir. Assim, estudar a recepção de Shakespeare ou de Proust no Brasil significa contribuir para o conhecimento desses autores num ângulo diverso dos estudos empreendidos por pesquisadores europeus, quer dizer, examinálos sob o ângulo da reação que eles provocaram em contextos diversos ao de suas origens e da multiplicidade de leituras que eles são capazes de suscitar. Mas significa também observá-los com uma visibilidade particular e colaborar para um entendimento mais eficaz da literatura/cultura que os acolhe. Significa, ainda, indagar sobre as razões pelas quais determinado autor (seja ele importante ou não na literatura de origem) repercute e se difunde em outro


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contexto literário e cultural,com maior ou menor sucesso. Estudos comparativos dessa ordem, que levam em conta a produção/recepção das obras, respondem a uma necessidade contextual, a urgências específicas de cada espaço determinado. A estratégia que define "o lugar de onde se fala" é tão significativa que se converteu em objeto de reflexão para muitos estudiosos e, poder-se-ia mesmo dizer, em uma espécie de categoria crítica. Em texto publicado na Revista de Crítica Literária Latinoamericana n° 40, 1994, pp. 363-374, e elaborado como instrumento de trabalho para a JALLA 95 (realizada em Tucumán, Argentina, em agosto de 1995). Walter Mignolo, ao tratar dos processos de globalização, indaga como esses processos afetam as práticas culturais. E pergunta: " De que maneira as línguas ligadas aos impérios (Espanhol, Português, Francês, Inglês), e as práticas culturais nessas línguas impõem formas de pensamento que tratamos de impor a práticas culturais em outras línguas (Aymara, Quechua, Hebreu, Árabe, Chinês, etc)?" É certo que o autor está ocupado com espaços e línguas muito específicas e não similares às dos povos colonizadores mas, de qualquer modo, sua reflexão valoriza a noção de contexto, "o lugar desde onde se pensa, fala e escreve". Por isso, indaga: "De que maneira viver e pensar nos Andes é distinto de pensar e viver em Manhattan? Como articular o lugar de onde se é (falo de processos educativos, não de processos biológicos e administrativos) e o lugar onde se está na produção cultural?" Enfim conclui que "pensar a produção, a literatura, o discurso (colonial ou nacional) nesses termos, nos convida a repensar fundamentalmente as categorias com que temos estado trabalhando, nos últimos 30 anos, nos estudos literários." Ana Lúcia Gazolla. em dois estudos intitulados respectivamente "Perspectivas em estudos comparativistas de literatura brasileira e americana" e "Decentering Narcissus: Comparing Literature In (and From) the Third World" observa que "no trabalho de crítica literária e em nossos cursos na Universidade, o caminho parece ser o estudo comparativo das várias literaturas e da brasileira, quando se afirmarão simultaneamente - por contraste características peculiares a cada uma, mitos nacionais, diferenças e semelhanças", para concluir que se deva "buscar no confronto das estratégias e dos sentidos por elas projetados, via comparação e contraste dos textos, nosso entre-lugar (Ana Lúcia adota a expressão usada por Silviano Santiago em artigo conhecido) cultural, nossa marca, nossa cicatriz". 2 Os estudos de recepção literária, como o de Munira Mutran sobre Joyce no Brasil ou os que se ocuparam de autores como Whitman ou Baudelaire em nosso país, são exemplares nesse caso, bem como aqueles que tomam o caminho inverso, quer dizer, centram suas análises na obra de autor nacional examinando como nele repercutem os influxos estrangeiros. Estou a pensar nos trabalhos reunidos por Leyla Perrone-Moisés no número 1 da Coleção Documentos da série Estudos Brasil-França sobre as "Relações culturais

GAZOLLA, Ana Lúcia. In: Quarta Semana de Estudos Germânicos. Anais. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, I 986,p.25.

2


Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil

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França-Brasil: influências e convergências" (novembro de 1991). Trata-se de "Osman Lins, marinheiro de primeira viagem", de Sandra Nitrini, de "Bilac em Paris", de Antonio Dimas, "Veredas do indianismo: a contribuição de Denis", de Maria Cecília de Moraes Pinto, e de "Leituras Francesas de Manuel Bandeira", de Davi Arrigucci Jr., por exemplo. De certo modo, esses estudos mais recentes substituem os tradicionais estudos de influências (vindo mesmo a inclui-los) e aqueles que se ocupam com a fortuna crítica de uma obra. Como se sabe, com a ênfase teórico-crítica desviada do autor e do texto em si mesmo para o leitor, os estudos de recepção/transmissão ganharam outra relevância. De um lado, a história literária tende a ser construída, nO futuro, pelos significados e/ou interpretações dadas aos textos por diferentes leitores e públicos, tanto sincrônica como diacrônicamente, nOS termos das condições que produziram as modificações de significados. De outro, a recepção literária tende a ser estudada no contexto da recepção simultânea de outros textos, não literários, verbais como não-verbais, além dos códigos culturais e sistemas de valores sob os quais os leitores basearam sua recepção dos textos. Já H.R. Jauss, em seu ensaio "Estética da recepção e comunicação literária", apresentado no Congresso da AILC em Innsbruck, 1979, e publicado em 1980, apontava para o fato de que a estética da recepção - Escola de Constanza - foi se transformando, a partir de 1966, em uma "teoria da comunicação literária". Quer dizer, a noção de recepção passa a ser entendida em duplo sentido: 1. de acolhida (ou de apropriação) e 2. de intercâmbio. A recepção define-se, então, como ato duplo que inclui o "efeito produzido pela obra de arte" e "o modo como o público a recebe". Assim, conforme Jauss, a tarefa de representar a história das literaturas como um processo de comunicação implica em reconstruir "o repertório ativo" da compreensão nas relações de recepção e de intercâmbio literários. Admitir a possibilidade de constituição de um repertório ativo, por sua vez, implica reconhecer que todo ato de recepção pressupõe uma escolha, e uma parcialidade com relação à tradição. Uma tradição literária formada necessariamente em um processo que supõe duas atitudes opostas: a apropriação e a rejeição, isto é, a COnservação do passado e sua renovação. Em outros termos, uma tradição construída pelos procedimentos de memória e esquecimento. Esses pressupostos, que correspondem a uma alteração de paradigma nOS estudos comparatistas, têm certamente consequências metodológicas. A falência da concepção linear nO processo construtivo da tradição nega a causalidade stmples de filiações, antes atribuidas à fonte e ao modelo. Além disso, a concepção dialética da historiografia literária leva à descoberta de relações comunicativas ocultas e à constituição de um repertório de tipos e formas de recepção extremamente diferenciados: a reminiscência, a sugestão, o empréstimo, a imitação, a adaptação e a variação. Nessa linha de reflexão, encontra-


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

mos as propostas de organização tipológica dessas apropriações elaboradas pelo eslovaco Dioniz Durisin desde 1975, as categorias gerais, ou transcendentes - tipos de discursos, modos de enunciação, gêneros literários, etc. das quais resulta cada texto singular, expostas por Gérard Genette, em Palimpsestes - La littérature au second degré (1982), ou a análise das apropriações textuais feita por Antoine Compagnon em La seconde ma in ou le travail de la citation (1979), ou ainda a teoria hermenêutica de Harold Bloom, que substitui o mito literário dos precursores por um registro de categorias, em sua perspectiva do "mal entendido criativo", o "creative misreading", de A Map of Misreading, até a elaboração ensaístico-ficcional de Jorge Luis Borges, em "Kafka y sus precursores", "Pierre Ménard, autor deI Quixote" e outros textos borgesianos. Para a prática comparatista, as repercussões dessas novas concepções são evidentes: desvalorizam-se as relações de fato (identificadas e comprováveis) substituindo-as por relações de valor; ocorre a falência dos paralelos, pois toda a comparação necessita de um "tertium comparationis", isto é, de uma norma teórica que cabe descobrir via reflexão hermenêutica; enfatiza-se menos a "fonte" e mais o processo de apropriação/transformação a que o novo texto a submete; neutralizam-se as noções de originalidade, de precedência, de antecipação; equilibram-se, no juízo valorativo, os textos, dandose maior importância à rede de relações que eles estabelecem entre si e com os demais, anteriores ou simultâneos. Atualmente, a literatura comparada vale-se dos avanços das várias teorias literárias para repensar critérios e noções consideradas básicas a esse tipo de estudo.'

3,

Procurei examinar a

at1icu-

lação entre as diversas teorias

e as práticas comparatistas em artigo intitulado "Teorias em Literatura Comparada" e pu-

blicado na Revista Brasileira

de Literatura Comparada, n°

Recepção e tradução na prática comparatista

2. editada recentemente. Tratei de apontar, naquele texto, as

diversas tentativas nos anos 80

Aproximar, por exemplo. as concepções da hermenêutica às da literatura comparada poderia parecer. à primeira vista, exagerado. Suas gêneses são efetivamente diferentes. Sabe-se que a Iitératura comparada é um dos frutos do positivismo de Comte e da concepção do universo como sendo uma sequência de fatos positivos. Daí a incidência, no paradigma comparatista tradicional, do determinismo tainiano, do primado das relações causais, da tendência à classificação científica. Por outro lado, a hermenêutica moderna tem suas origens justamente na reação anti-positivista. Dilthey, tanto quanto Scheiermacher, concebeu as diferenças entre os métodos das ciências naturais e os métodos da história, contrastou a explicação da compreensão e, sobretudo, considerou essa última como um processo individual e subjetivo. Mas é justamente no campo dos estudos de recepção literária, freqüentes no

de formular "teorias em litera-

tura comparada" (H.G. Ruprecht. 1985. Adrian Marino, 1988. E.Miner. 1990) além do pensamento mais disperso de

uma literatura "planetária", tal

como o formula Etiemble. Ali, procuro acentuar que as diversas teorias repercutiram também diversamente na prática da literatura comparada mas todas contribuiram para o afinamento de noções, para a eficiência do instrumental ,malítico e para que a literatura comparada permanentemente


Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil

se indague sobre sua própria

definição. Do mesmo modo, no n° 114/115 da Revista Tempo Brasileiro (1993), procurei analisar a articulação do conceito teórico da intertextualidade com as relações interliterárias que têm sido um campo de atuação tradicional dos comparatistas. Explorei, inclusive, a leitura de Claudio Manuel da Costa feita por Sergio Buarque de Holanda em Capílulos de Literatura Colonial (1991 l, obra organizada por Antonio Candido, na qual as noções de fontes e modelo são exemplarmente entendidas e aplicadas. Vale aqui retranscrever urna de suas observações. Ao comentar as repercussões do tipo de estudo de "fontes", B. de Holanda observa: "Não são as 'influências' recebidas, através de sua evolução, por um detenrunado escritor, o que importa verificar num esforço dessa natureza, nem saber as razões particulares que o teliam levado aescoIher este ou aquele 'antecedente literário' - pois a verdade é que tais escolhas se prendiam tanto quanto possível, naqueles tempos, a convenções e padrões comumente aceitos e dependiam, em muito menor grau do que hoje, de um critério pessoal -, nem ainda chegar a um julgamento inequívoco de valor. Mas justamente pelo fato de nos apresentar a existência quase obrigatória daqueles 'antecedentes' uma escala de referências mais ou menos fixa. temos maiores probabilidades de, partindo dela, ganhar acesso ao que constitui mais propriamente a parte do autor em sua obra e ao que h~a, nesta, de verdadeiramente orgânico e intrínseco." Ressalta nas palavras de Sergio Buarque de Holanda aqui recortadas uma compreensão da noção de influência que já é moderna. Isso por-

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comparatismo contemporâneo, que a dimensão hermenêutica dada pelo leitor/receptor interessa e aproxima as duas orientações. Se as relações entre emissor-receptor estão hoje praticamente alteradas, é o receptor agora que é o sujeito determinante, fundamental e seletivo de todo o processo interliterário, A função da recepção em literatura comparada tem entretanto seus aspectos específicos, o que faz com que a noção mesma de recepção seja aí determinada de forma um pouco diferente. Em primeiro lugar, a recepção integra os estudos comparatistas como elemento das relações interliterárias, Assim, os estudos pontuais de recepção podem (e devem) ser integrados para que se obtenha o conhecimento global das relações interliterárias em diferentes momentos. Caberia, pois, converter esses estudos em objeto de reflexão comparatista, ou seja, articular as recepções de Byron, Whitman, Joyce (para ficarmos em autores de expressão inglesa) na indagação do que nos dizem sobre a crítica e o polissistema literário brasileiros. São muitas as propostas de trabalho nesse campo. Além da que mencionei, devese evocar a de "recepção comparada", que analisa a repercussão de um dado autor em contextos culturais diversos. Além disso, há que distinguir nos estudos de recepção em literatura comparada aqueles que se ocupam da análise das formas explícitas da recepção (levando em conta as edições, as críticas, as resenhas, as traduções, etc.) e assim tendo sua atenção centrada nas condições de compreensão e de interpretação da obra, e os que tendem às formas implícitas, quer dizer, mais complexas e criativas que são tratadas como processos intertextuais de produção literária. As orientações mais atuais e correntes nesse campo são analisadas por Yves Chevrel no trabalho "Les études de réception", inserido em Précis de Littérature Comparée (Paris, PUF,1989) organizado pelo autor e por Pierre Brune!. Nesse ensaio, y'Chevrel ocupa-se com questões de métodos, indagando se haveria uma especificidade nos estudos comparatistas de recepção que os distinguiriam de estudos não comparatistas? Em outras palavras, ele estaria respondendo a R.Wellek que no capítulo 5 de sua Teoria da Literatura (1949) afirmava não haver diferença metodológica entre analisar "Shakespeare na França" e "Shakespeare na Inglaterra do século XVIII". Para Chevrel, "os métodos comparatistas partem da hipótese (que não exclui outras perspectivas) que uma obra não pode ser considerada como um absoluto, mas também em suas diferentes concretizações e em suas relações possíveis; por outro lado, uma perspectiva comparatista pressupõe que um encontro de duas culturas permite colocar em evidência certos elementos que não apareceriam se o estudo fosse conduzido no interior de uma só cultura." Daí retirar ele dois argumentos, que marcariam a especificidade dos estudos comparatistas de recepção: 1. toda uma parte da documentação será constituída por transformações de textos (que é necessário estudar com uma metodologia apropriada): traduções, adaptações ... ; 2. a recepção de um texto estrangeiro se verifica também, em boa


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parte, através do discurso crítico que ele motiva. Ora, esse discurso, confrontado precisamente ao estrangeiro que se trata de introduzir, de tornar acessível (mesmo que seja eventualmente para combatê-lo) não se pode servir dos mesmos meios que aqueles de que dispomos para falar de uma obra homogênea à tradição cultural do público ao qual ela se dirige. Chevrel usa como exemplo: "Quando Fontane reage, a propósito de Schiller ou de Storm, ele procede, parcialmente, a uma investigação de sua própria herança; quando ele se interessa por Zola, é antes de tudo para compreender como uma outra literatura é possível" (p. 190). Temos aqui, portanto, enfatizada a perspectiva mencionada antes de que a atitude comparatista pressupõe não só meios mas objetivos diferentes daqueles utilizados para o estudo desenvolvido no interior de uma única literatura. Ao final do ensaio de y'Chevrel é ainda acentuada a relação entre estudos comparativos de recepção e interdisciplinaridade, sendo mencionadas a sociologia, a psicologia, as teorias da informação e da comunicação, além da história tout court, como possibilidades de encontros metodológicos em estudos comparatistas de recepção. Certo é que igualmente os estudos da estética da recepção incidem em outras tradicionais orientações dos estudos comparatistas como a imagologia, pois recepção literária e representação do Outro não podem ser estudadas separadamente. Também incide no estudo dos mitos. que permite, como diz o autor, "aux études de réception, qui n' excluent ni la minutie des recherches, ni les vastes perspectives, de se situer à leur place dans l' exploration de l'imagerie des hommes". É nesse contexto que também os estudos de literatura em tradução - cujo desenvolvimento tem sido crescente - se incluem na prática comparatista. Na verdade, a reflexão sobre a teoria da tradução - escassa durante muito tempo - colaborou decisivamente para essa aproximação. Durante muito tempo considerada a "prima pobre" ou "les belIes infideles", a tradução custou a ser considerada não só uma atividade possível como também a adquirir importância na constituição do polissistema literário. A expressão bem conhecida de Itamar Even Zohar identifica a literatura como um sistema de sistemas no conjunto dos quais a literatura em tradução se integra como um fator relevante de transformações. Assim, várias questões tornam-se possíveis: por que algumas culturas traduzem mais do que outras? por que se traduz mais em certos períodos e menos em outros? Que tipo de texto consegue ser mais traduzido? Qual a relação entre o estímulo à tradução e a produção literária de uma literatura dada? Parte-se do princípio de que o ato de traduzir realiza uma ação mobilizadora do polissistema literário que a acolhe, sendo também um gesto responsável. Como observou Yves Chevrel no item "Littérature en traduction et systeme d' accueil" de seu pequeno mas utilíssimo La Littérature Comparée (Paris, PUF, 1989): "traduire, éditer une traduction, n'est pas

que refere-se ao modelo como antecedente, julgando-o necessário e natural, e, além disso, ocupando-se mais com "a parte do autor na sua obra" ou com as assimilações nela produzidas com as repercussões do antecedente. É nisso, pois, que autores como ele - que foi professor de literatura comparada - ou como Augusto Meyer ou Olto Maria Carpeaux, que também exploraram os estudos de "fontes" de forma criativa e atual em muitas passagens, podem nos fornecer subsídios para uma perspectiva de análises desse tipo que sejam adequadas e próprias à nossa maneira de olhar e de ver. Inclino-me, portanto, a associar a leitura de nossos críticos, naquilo que eles nos podem dar em sua prática comparatista e nas reflexões que sobre ela fizeram, com os conhecimentos fornecidos pelo avanço do pensamento teórico, dominante a partir dos anos 60.


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seulement envisager une opération d' ordre linguistique, c' est aussi prendre une décision qui met en jeu un équilibre culturel et social: traduire la Bible a été, et reste, une opération d'ordre idéologique et politique" (p. 18). Arguida por uns como prática desejável e possível, na qual a noção de "fidelidade" foi por muito tempo defendida, a tradução custou a se libertar dos estigmas que lhe destinavam um papel secundário na produção literária. A metáfora feminina de "les beBes infideles" é sintomática de uma posição subalterna. Lori Chamberlain chamou a atenção para a sexualização da terminologia que envolve a tradução: fidelidade é uma noção implícita em casamentos, contratos que se celebram entre a tradução (como mulher) e o original (como o marido, o pai ou o autor).(y'''Gender and the Metaphorics ofTranslation", In: Lawrence Venuti (ed) Rethinking Translation, 1992). Daí também a expressão "tradutore traditore" que se difundiu amplamente aludindo à idéia da tradução como transformação negativa, traição da fidelidade devida ao original. Atualmente, a tradução, reconhecida em seu valor intrínseco e como elemento de difusão literária e prática legitimada, tem sido um elemento essencial aos estudos comparatistas, como também os estudos de cartografia e de relatos de viajantes. Contribuem todos para a construção de uma história cultural que se escreve em diferentes dimensões e modulações, as quais podem ser contrastivamente comparadas e que ocultam, muitas vezes, dados substantivos sobre uma época. Assim o entende Susah Bassnett que, em seu recente Comparative literature - A CriticaI Introduction (1993), enfatiza a importância do estudo das traduções na prática comparatista, querendo mesmo quase que reduzir essa última a esse procedimento produtivo, ao qual atribui a designação de "IntercuItural Studies". Para ela, "mapear, viajar e traduzir não são atividades transparentes. São atividades bem definidas e localizadas, com pontos de origem, de partida e de destinação." Portanto, não só interessa analisar os textos traduzidos em si mesmos, como procedimentos literários e manifestações culturais, mas também na interferência que provocam no polissistema que os acolhe. A tradução de um texto, observa Yves Chevrel na obra já citada, "est rarement indépendante du systeme qui est destiné à I' accueillir." O comparatista ilustra sua afirmação com os fatos de que Desdêmona não morre no Othelo montado em Hamburgo em 1776 e que as discussões que Goethe descreve, em Wilhelm Meister (1795-1796), sobre as maneiras de interpretar Hamlet testemunham que um texto estrangeiro é suscetível de ser manipulado sem pudor. Para ele, o tradutor oscila entre duas possibilidades: a da tradução "adequada" (que respeit;l ao máximo a natureza estrangeira do texto original e que pode ir até à transcrição pura e simples) e a tradução "dinâmica", que integra ao máximo o texto traduzido na tradição do polissistema de chegada.


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As considerações de Chevrel encontram perfeita complementação no ensaio de Antonio Candido sobre os tradutores de Baudelaire ("Os primeiros baudelairianos") em A Educação pela noite & outros ensaios (1987) no qual ele identifica "uma certa deformação" nas primeiras traduções brasileiras, justificando-as ao dizer que elas agem "como as que em toda influência literária tornam o objeto cultural ajustado às necessidades e características do grupo que o recebe e aproveita" (p. 25). Assim, a "deformação", que seria um critério negativo de avaliação, passa a ser entendida como natural e necessária, pois ela "funciona de maneira construtiva, dadas as condições locais" (p. 37), segundo ainda o autor. E continua: "a exacerbação de sexualidade que os moços efetuaram a partir do texto d'As flores do mal foi umafelix culpa." Isso explica que toda tradução seja resultado de uma escolha, opção consciente diante de uma necessidade do polissistema que se decide, voluntariamente, nutrir. O sub-sistema da literatura em tradução concretiza, por sua vez, o conjunto dessas necessidades e das escolhas que as exprimem. Estudálas, pois, no sentido da contribuição que prestam ao polissistema, é tarefa do comparatista. Ele estará contribuindo para o conhecimento das literaturas postas em confronto e, por isso, deverá ter presente características que as especificam. Pode-se ilustrar esse fato com uma observação de José Paulo Paes em ensaio sobre a tradução de Tristram Shandy. o famoso romance de Laurence Sterne de forte repercussão em Memórias Póstllmas de Brás Cubas, de Machado de Assis, como se sabe. Ao tratar dos pronomes de tratamento e suas implicações na tradução que elabora. Paes contrasta o texto de Sterne com outros de mesma época (1728) e observa. em "Sob o Signo de Judas ou Digressões de um Tradutor de Sterne", que. "na questão da comparatividade de textos contemporâneos de diferentes línguas, há um outro ponto a ser considerado numa estratégia de tradução, qual seja o desigual ritmo de desenvolvimento das várias literaturas nacionais. O romance inglês do século XVIII, pelo vigor do seu realismo, pela agilidade da sua linguagem narrativa e pelo amplo público ledor que conseguiu aliciar para as suas produções, estava indubitavelmente na vanguarda da literatura européia. Perto dele, a apoucada ficção portuguesa da mesma época, mofina e retardatária, fazia triste figura, já que a prosa de ficção propriamente dita, como estilização do sermo vulgaris, só iria começar a surgir em língua portuguesa no século seguinte. Portanto, apesar de publicado quase à mesma altura d'As Aventuras de Diófanes e do Peregrino da América, o Tristram Shandy tinha no mínimo dois séculos de avanço sobre eles, para nos limitarmos ao ritmo de desenvolvimento histórico da prosa de ficção, sem cogitar, por absurdos, de quaisquer juízos de valor". (In: Tradução & Comunicação, n° 4 19-30, julho, 1984). Como se percebe, o movimento é dialético: do texto traduzido ao texto original permeia urna série de questões que o conhecimento literário escJare-


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ce. Pelo que permite de lisibilidade mesmo na operação que a origina, a tradução é fator não apenas de difusão de textos em processos interliterários mas é também um elemento iluminador dos procedimentos criativos e receptivos. Vale lembrar que os estudos comparativos binários caracterizavam-se por excluir as traduções, preconizando sempre a leitura no original. Reintegrá-las significa admitir um outro fator na comparação ou o seu desdobramento não exclusivamente atento a apenas dois polos da indagação mas a outros mais como as alterações textuais, introduzidas na tradução como leituras possíveis daqueles textos. Como se percebe, dilatam-se os campos de atuação do comparatista e, nessa ampliação. pelo menos nas formas que aqui foram enfatizadas, a contribuição do especialista em literaturas estrangeiras se torna substantiva. Tendo em vista essas duas dimensões - a formação de uma dupla competência (pelo menos dos que seguem uma licenciatura dupla) e a necessidade inerente de falar de um determinado lugar, de um "horizonte" próprio e específico - esse especialista é um comparatista por excelência. Porque, na verdade, ser comparatista não é atitude que se assuma no começo mas no fim de um percurso de formação: não nascemos comparatistas mas nos tornamos comparatistas, aproveitando nesse campo de estudo as experiências múltiplas adquiridas no trato com mais de uma literatura e a inclinação manifesta para trabalhos que exijam largas perspectivas e análises transnacionais. É nesses trabalhos que iremos formular novas categorias críticas que nos permitam caracterizar como nosso o comparatismo que praticamos.



Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do "'" canone Eduardo F. Coutinho

Qualquer revisão crítica da Literatura Comparada em seu desenvolvimento histórico leva de imediato à percepção de que a disciplina sofreu, de meados dos anos 70 para o presente, considerável transformação, que poderíamos sintetizar, sem riscos de reducionismo, na passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado, situado historicamente, e consciente das diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo da comparação. Embora essa transformação se tenha originado dentro do grande eixo dos estudos comparatistas, formado pela Europa Ocidental e a América do Norte, e se deva em boa parte à voga da Teoria Literária nesse período, máxime pela importância que adquiriram correntes do pensamento como o Desconstrutivismo, a Nova História e os chamados Estudos Culturais e Pós-Coloniais, ela teve como corolário o deslocamento do foco de atuação da disciplina para pólos até então tidos como marginais nesta seara, como a China e a Índia - na Ásia -, a África e a América Latina. É esta transformação verificada no seio do comparatismo tradicional e as implicações daí decorrentes, sobretudo no que diz respeito ao contexto latino-americano, que serão investigadas neste trabalho. Marcada no início por uma perspectiva de teor historicista, calcada em princípios científico-causalistas, decorrentes do momento e contexto históri-


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co em que se configurara, e em seguida por uma óptica predominantemente formalista, que conviveu, entretanto, com vozes dissonantes de significativa relevância, a Literatura Comparada atravessou seu primeiro século de existência em meio a intensos debates, mas apoiada em certos pilares, de tintas nitidamente etnocêntricas, que pouco se moveram ao largo de todo esse tempo. Dentre estes pilares, que permaneceram quase inabalados até os anos 70, é impossível deixar de reconhecer a pretensão de universalidade, com que se confundiu o cosmopolitismo dos estudos comparatistas, presente já desde suas primeiras manifestações, e o discurso de apolitização apregoado sobretudo pelos remanescentes da chamada "Escola Americana", que dominou a área nos meados do século XX. O primeiro expressa-se pelo anseio de que, a despeito da diversidade e multiplicidade do fenômeno literário, é possível constituir-se um discurso unificado sobre ele e de que a Literatura é uma espécie de força enobrecedora da humanidade, que transcende qualquer barreira; o segundo condensa-se em afirmações como a de que a Literatura Comparada é o estudo da Literatura, independentemente de fronteiras lingüísticas, étnicas ou políticas, e que não deve portanto deixar-se afetar por circunstâncias de ordem, entre outras, econômica, social ou política. Conquanto estes dois tipos de discurso apresentem, na superfície, variações, eles encerram, no íntimo, um forte denominador comum - o teor hegemônico de sua construção - e foi sobre este dado fundamental que se baseou grande parte da crítica empreendida a partir de então ao comparatismo tradicional. Em nome de uma pseudo-democracia das letras, que pretendia construir uma História Geral da Literatura ou uma poética universal, desenvolvendo um instrumental comum para a abordagem do fenônemo literário, independente de circunstâncias específicas, os comparatistas, provenientes na maioria do contexto euro-norte-americano, o que fizeram. conscientemente ou não, foi estender a outras literaturas os parâmetros instituídos a partir de reflexões desenvolvidas sobre o cânone literário europeu Ce por europeu entenda-se o cânone constituído basicamente por obras literárias das potências econômicas do oeste do continente). O resultado inevitável foi a supervalorização de um sistema determinado e a identificação deste sistema - o europeu - com o universal. Do mesmo modo, a idéia de que a literatura deveria ser abordada por um viés apolítico - fato hoje sabidamente impossível - o que fazia era camuflar uma atitude prepotente de reafirmação da supremacia de um sistema sobre os demais. O questionamento dessa postura universalizante e a desmitificação da proposta de apolitização, que se tornaram uma tônica na Literatura Comparada a partir dos anos 70, atuaram de modo diferente nos centros hegemônicos e nos focos de estudos comparatistas que poderíamos chamar de periféricos, mas em ambos estes contextos verificou-se um fenômeno similiar: a aproximação cada vez maior do comparatismo a questões de identidade


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nacional e cultural. No eixo Europa Ocidental/América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou sexual, cujas vozes começaram a erguer-se cada vez com mais vigor, buscando foros de debate para formas alternativas de expressão, e nas outras partes do mundo clamava-se um desvio de olhar, com o qual se pudessem enfocar as questões literárias ali surgidas a partir do próprio [oeus onde se situava o pesquisador. A preocupação com a Historiografia, a Teoria e a Crítica literárias continuou relevante nos dois contextos mencionados, mas passou-se a associar diretamente à praxis política cotidiana. As discussões teóricas voltadas para a busca de universais deixaram de ter sentido e seu lugar foi ocupado por questões localizadas. que passaram a dominar a agenda da disciplina: problemas como o das relações entre uma tradição local e outra importada, das implicações políticas da influência cultural, da necessidade de revisão do cânone literário e dos critérios de periodização. Este descentramento ocorrido no âmbito dos estudos comparatistas, agora muito mais voltados para questões contextualizadas, ampliou em muito o cunho internacional e interdisciplinar da Literatura Comparada, que passou a abranger uma rede complexa de relações culturais. A obra ou a série literárias não podiam mais ser abordadas por uma óptica exclusivamente estética; como produtos culturais. era preciso que se levassem em conta suas relações com as demais áreas do saber. Além disso, elementos que até então funcionaram como referenciais seguros nos estudos comparatistas, como os conceitos de nação e língua, foram postos por terra, e a dicotomia tradicionalmente estabelecida entre Literaturas Nacionais e Comparada foi seriamente abalada. A perspectiva linear do historicismo cedeu lugar a uma visão múltipla e móvel, capaz de dar conta das diferenças específicas, das formas disjuntivas de representação que significam um povo, uma nação, uma cultura, e os conjuntos ou séries literárias passaram a ter de ser vistos por uma óptica plural, que considerasse tais aspectos. Categorias como Literatura Chicana, Literatura Afro-Americana ou Literatura Feminina passaram a integrar a ordem do dia dos estudos comparatistas e blocos, como Literatura Oriental, Africana ou Latino-Americana, instituídos pelos centros hegemônicos, revelaram-se como constructos frágeis, adquirindo uma feição nova, oscilante em conformidade com o olhar que o enformasse. O desvio de olhar operado no seio do comparatismo, como resultado da consciência do teor etnocêntrico que o dominara em fases anteriores, emprestou novo alento à disciplina, que atingiu enorme efervescência justamente naqueles locais até então situados à margem e agora tornados postos fundamentais no debate internacional. Nesses locais, onde não há nenhum senso de incompatibilidade entre Literaturas Nacionais e Literatura Comparada, o modelo eurocêntrico até então tido como referência, vem sendo cada vez mais posto em xeque, e os paradigmas tradicionais cedem lugar a construções


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alternativas ricas e flexíveis, cuja principal preocupação reside na articulação da percepção dos produtos culturais locais em relação com os produtos de outras culturas, máxime daquelas com que a primeira havia mantido vínculos de subordinação. O desafio levantado por críticos como Edward Said e Homi Bhabha ao processo sistemático instituído pelas nações colonizadoras de "inventar" outras culturas alcança grande repercussão, ocasionando, em locais como a Índia, a África e a América Latina, reivindicações de constituição de uma História Literária calcada na tradição local, cujo resgate se tornara indispensável. O elemento político do comparatismo é agora não só assumido conscientemente, como inclusive enfatizado, e surge uma necessidade imperativa de revisão dos cânones literários. Central dentro do quadro atual da Literatura Comparada, a "questão do cânone", como tem sido designada, constitui uma das instâncias mais vitais da luta contra o eurocentrismo que vem sendo travada nos meios acadêmicos, pois discutir o cânone nada mais é do que pôr em xeque um sistema de valores instituído por grupos detentores de poder, que legitimaram decisões particulares com um discurso globalizante. Um curso sobre as "grandes obras", por exemplo, tão freqüente em Literatura Comparada, quase sempre esteve circunscrito ao cânone da tradição ocidental (na realidade, à tradição de alguns poucos países poderosos do oeste europeu, que mantinham uma política cultural de cunho hegemônico), e sempre se baseou em premissas que ou ignoravam por completo toda produção exterior a um círculo geográfico restrito ou tocava tangencialmente nessa produção, incluindo, como uma espécie de concessão uma ou outra de suas manifestações. As reações a esta postura têm surgido de forma variada, e com matizes diferenciados dependendo do local de onde partem. Nos países centrais, é obviamente mais uma vez da parte dos chamados "grupos minoritários·' que provêm as principais indagações, e, nos contextos periféricos, a questão se tornou uma constante, situando-se em alguns casos na linha de frente do processo de descolonização cultural. Ampla, complexa e variada, a questão do cânone literário extrapola nossos objetivos neste trabalho, não podendo ser apreciada com o cuidado que requer, mas mencione-se que ela se estende desde a exclusão de uma produção literária vigorosa oriunda de grupos minoritários, nos centros hegemônicos, e do abafamento de uma tradição literária significativa, nos países que passaram por processos de colonização recente, como a Índia, até problemas relativos à especificidade ou não do elemento literário, dos padrões de avaliação estética e do delineamento de fronteiras entre constructos como Literaturas Nacionais e Literatura Comparada. Com a desconstrução dos pilares em que se apoiavam os estudos literários tradicionais e a indefinição instaurada entre os limites que funcionavam como referenciais, o cânone ou cânones tradicionais não têm mais base de sustentação, afetando toda a


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estrutura da Historiografia, da Teoria e da Crítica literárias. Como construirem-se cânones, seja na esfera nacional, seja na internacional, que contemplem as diferenças clamadas por cada grupo ou nação (entendendo-se este termo no sentido amplo utilizado por autores como Homi Bhabha), e como atribuir a estas novas construções um caráter suficientemente flexível que lhes permita contantes reformulações, são perguntas que se levantam hoje a respeito de terreno tão movediço. E é possível, se indagaria também, instituirem-se cânones com margens de flexibilidade, que não viessem a cristalizarse, tornando-se novas imposições? Seriam estes ainda cânones? Perguntas como estas encontram-se quase sempre sem resposta na agenda do comparatismo, sobretudo após o desenvolvimento dos chamados Estudos Pós-Coloniais e Culturais, que atacaram, com força jamais vista, o etnocentrismo da disciplina. A crítica a este elemento, expresso por meio de um discurso pretensamente liberal, mas que no fundo escondia seu teor autoritário e totalizante. já se havia iniciado desde os tempos de Wellek e Etiemble, e se lançarmos uma mirada ao espectro de atuação da Literatura Comparada, veremos que ela sempre aflorou de maneira variada ao longo de sua evolução. Contudo. na maioria dos casos. essa crítica se manifestou à base de uma oposição binária. que continuava paradoxalmente tomando como referência o elemento europeu. Conscientes de que não se trata mais de uma simples inversão de modelos, da substituição do que era tido como central pela sua antítese periférica, os comparatistas atuais que questionam a hegemonia das culturas colonizadoras abandonam o paradigma dicotômico e se lançam na exploração da pluralidade de caminhos abertos como resultado do contacto entre colonizador e colonizado. A conseqüência é que ele se vê diante de um labirinto, hermético, mas profícuo, gerado pela desierarquização dos elementos envolvidos no processo da comparação, e sua tarefa maior passa a residir precisamente nessa construção em aberto, nessa viagem de descoberta sem marcos definidos. Marcados profundamente por um processo de colonização, que continua vivo ainda hoje do ponto de vista cultural e econômico, os estudos literários na América Latina sempre foram moldados à maneira européia, e basta uma breve mirada a questões como as que vêm sendo consideradas aqui de Historiografia, Teoria e Crítica literárias para que tal se torne evidente. No caso da primeira, é suficiente lembrar a periodização literária, que sempre tomou como referência os movimentos europeus, e mais recentemente também norte-americanos, e encarou os latino-americanos como meras extensões ou adaptações dos primeiros. No caso da Teoria, cite-se a prática dominante de importação de correntes emanadas do meio intelectual europeu, que adquiriam caráter dogmático e eram aplicadas de modo indiscriminado à realidade literária do continente, sem levar-se em conta em momento algum as diferenças de ordem histórica e cultural que distinguiam os dois contextos. E,


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finalmente, no âmbito da Crítica, mencionem-se os parâmetros de avaliação, que sempre se constituíram à base das chamadas "grandes obras" da tradição ocidental (leia-se "européia"), e miraram as nossas como manifestações menores, cópias imperfeitas dos modelos instituídos. O cânone ou cânones literários dos diversos países latino-americanos eram constituídos por critérios estipulados pelos setores dominantes da sociedade, que reproduziam o olhar europeu, primeiramente ibérico, à época da colônia, e posteriormente, após a independência política, de outros países, mormente a França. Embora, como contrapartida à sua própria condição colonial, a América Latina já tivesse desenvolvido, ao longo de todo esse tempo, uma forte tradição de busca de identidade, tanto na própria literatura quanto na ensaística, o comparatismo que se produzia no continente continuava, de maneira geral, preso quer ao modelo francês de fontes e influências, quer à perspectiva formalista norte-americana, que lhe imprimia esterilidade e ratificava sua situação de dependência. Com as mudanças, entretanto, efetuadas dos anos 70 para o presente, ele parece ter renascido das cinzas, e é hoje um dos focos de maior efervescência nos estudos latino-americanos. Associando-se à preocupação com a busca de identidade, agora já não mais vista por uma óptica ontológica, mas sim como uma construção passível de questionamento e renovação, a Literatura Comparada na América Latina parece ter assumido com firmeza a necessidade de enfocar a produção literária a partir de uma perspectiva própria, calcada na realidade do continente, e vem buscando um diálogo verdadeiro no plano internacional. Assim, questões como a do cânone e da história literária adquirem uma nova feição e os modelos teórico-críticos relativizam-se, cedendo lugar a uma reflexão mais eficaz. A reestruturação do cânone ou cânones das diversas literaturas latinoamericanas vem ocupando a cena com grande intensidade no meio acadêmico latino-americano, onde se clama cada vez mais a necessidade de inclusão de uma quantidade de registros até então marginalizados pelo discurso oficial: o das línguas indígenas ainda vivas, como o quíchua e o guarani, o da produção em créole do Caribe francês, o chamado popular, presente. por exemplo. no corrido mexicano ou no cordel brasileiro, e a tradição oral ou compilada. como a das lendas indígenas dos maias. Além disso, vem sendo argumentado que não podem ficar à margem produções como a das minorias hispânicas radicadas nos Estados Unidos, como os chicanos e os portorriquenhos e cubanos, ou os franceses do Québec, nem muito menos as vozes das "minorias de poder" dentro do próprio continente, como as dos grupos feministas, que têm desempenhado papel de relevo no processo de releitura crítica da cultura latino-americana. Do mesmo modo, a necessidade de constituição de uma nova historiografia literária, isenta das distorções tradicionais, em que a noção de "grande literatura" ou até mesmo de "literatura" tout court, seja problematizada, se faz cada vez mais premente, bem como a urgência de se


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desenvolver uma reflexão teórica, que tome como ponto de partida ou de referência o corpus literário do continente. Todas estas questões, que abordam as diferenças latino-americanas, revelam a ineficácia da transferência de paradigmas de uma cultura para outra. A própria idéia de "literatura nacional", concebida no meio acadêmico europeu com base em noções de unidade e homogeneidade, não pode ser aplicada, de maneira desproblematizada, à realidade híbrida do continente latino-americano, onde, por exemplo, nações indígenas. como a Aymara, vivem divididas por fronteiras políticas instituídas arbitrariamente. Qualquer concepção monolítica da cultura latino-americana vem sendo hoje posta em xeque e muitas vezes substituída por propostas alternativas que busquem dar conta de seu caráter híbrido. Estas propostas, diversificadas e sujeitas a constante escrutínio crítico, indicam a pluralidade de rumos que o comparatismo vem tomando no continente, em consonância perfeita com as tendências gerais da disciplina, observáveis sobretudo nos demais contextos tidos até recentemente como periféricos. A Literatura Comparada é hoje, máxime nesses locais, uma seara ampla e movediça, com inúmeras possibilidades de exploração, que ultrapassou o anseio totalizador de suas fases anteriores, e se erige como um diálogo transcultural, calcado na aceitação das diferenças.



o romance

latino-americano do pós-boom se apropria dos gêneros da cultura de massas Irlemar Chiampi Para Antonio Dimas

A primeira versão deste texto

foi apresentada em agosto de 1994 no XIV Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (Edmonton, Canadá), como palie do projeto do grupo de pesquisa interdisciplinar sobre "Recylcages culterels". Ao coordenador desse GP, Walter Moser (Univ. Montréal), agradeço as sugestões de sua leitura crítica.

Quem diria, os gêneros espúrios invadiram a seara da alta literatura. Tudo começou com Manuel Puig, com a publicaçao de Boquitas pintadas (1969), título tirado da letra de um fox-trot cantado por Carlos Gardel para uma narração povoada de lances melodramáticos e oferecida em "entregas" ao leitor, como um folhetim, cada uma delas epigrafada com versos de tango. Puig havia criado não só um epitáfio para o grande romance do boom, mas uma koiné estética mediante a promiscuidade do nobre trabalho experimental com a breguice do discurso emotivo veiculado pela música popular. Desde então, a ficção latino-americana vem desenvolvendo uma bem sustentada apropriação dos gêneros que os meios massivos consagram, o povo consome e a elite abomina: foto e radionovela, zarzuela, romance sentimental ou "cor-de-rosa", histórias de detetive, musicais, cinema B, filmes policiais; e o repertório inesgotável da música popular, em cujos sub-gêneros o Caribe é campeão: guaracha, bolero, danzón, rumba, cumbia, salsa ... Mais reconhecíveis pelos termos despectivos de "música brega", "filmeco", "subliteratura", "bolerão", "dramalhão", esses gêneros massivos aparecem reutilizados ou reciclados en La tía lulia y el escribidor (1977), do peruano Mario Vargas Llosa; El beso de la mujer arana (1976), Pubis angelical (1979) entre outros romances do argentino Manuel Puig; Sólo cenizas halla-


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rás (1980) do dominicano Pedro Vergés; Bolero (1983), do cubano Lisandro Otero; La guaracha deI Macho Camacho (1976) e La importancia de llamarse Daniel Santos (1989), do porto-riquenho Luis Rafael Sánchez; Celia Cruz, reina rumba (1981) do colombiano Umberto Valverde.

O lixo cultural, cuja presença a cultura hegemônica foi tolerando na época moderna desde que se mantivesse em territórios bem definidos - onde o contágio não ameaçasse a pureza das expressoes culturais genuinas e nobres, as do Folclore e da Arte, o popular e o erudito -. parece experimentar dias de glória que transcendem sua condição de resíduo. Reciclado por narradores pertencentes ao cânone literário. seu reaproveitamento e refuncionalização em obras prestigiadas lhe outorga um novo status dentro da cultura pós-moderna da América Latina. Os tópicos dos gêneros massivos não são utilizados como meros temas, ou vistos com distância ou visão de fora, mas como referências culturais enraizadas na mentalidade dos personagens; a estrutura melodramática dos relatos sentimentais é recuperada em complexas situações de registro experimental; os tics obsessivos do gosto massivo pontuam os diálogos, os sonhos e o fluxo de consciência dos personagens; os clichês, a cafonice, os convencionalismos discursivos de baixa extração são "naturalizados" no discurso da narração que remete a uma voz autorial da alta cultura. Tudo leva a crer que a reciclagem desses sub-produtos, surgidos com o impacto da modernização no continente, significa muito mais do que alguma nostalgia parasitária ou modismo retrô. Os romancistas latino-americanos dos anos 70-90, ao fazerem uma leitura seletiva e interessada desses discursos que acompanharam o desenvolvimento urbano e as grandes mudanças socioeconômicas da América Latina, descobrem que por trás da simplicidade de uma trama melodramática, do machismo de um tango ou da ingenuidade de uma letra de bolero, há mensagens subliminares que atestam as crises e os conflitos sociais da modernidade no momento mesmo do seu surgimento. Mas essa explicação insinua apenas o contorno socio-histórico mais geral da reciclagem do repertório melodramático. Para dar conta da trama de relações interculturais que permeiam a tendência a reciclar os gêneros massivos no romance latino-americano atual, é preciso reconhecer pelo menos quatro aspectos que asseguram o seu perfil de produto pós-moderno: 1. Trata-se de um fenômeno característico do postboom, isto é, ocorre na ficção do continente depois da experiência moderna de renovação e ruptura dos anos 50 e 60 que teve no realismo maravilhoso o foco privilegiado de sua invenção poética. Compenetrado pelo ideologema da mestiçagem, isto é, a compreensão de que a não disjunção dos elementos contraditórios é o que caracteriza a cultura latino-americana, o realismo maravilhoso (de um Carpentier, um Asturias, um Rulfo) desenvolveu, numa linguagem de alta expe-


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1 CHIAMPI, Irlemar. El realismo maravilloso. Forma e ideo[of.:ía en la novela hispanoumericana. Caracas: Monte Avila, 1983 (I' ed.: 1980). GARCIA CANCLlNI, Néstor. Culturas híbridas: estragegias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 1989.

2

1. BOURDIEU,

Pierre. La Jistinc-

tion. Critique social du jugement. Paris: Minuit, 1979.

rimentação com as formas narrativas, uma interpretação totalizante da identidade latino-americana; I o entendimento dessa identidade consistia em perceber que a multitemporalidade da nossa cultura favorecia uma lógica binária (tradicional vs moderno), na qual a mestiçagem cultural produzia-se pela não disjunção do moderno/urbano com os mitos de origem e a tradição autóctone. Não se tratava de uma visão estanque do culto e do popular, como pretende a mais recente teoria da arte ao contrapor a cisão moderna à hibridação posmoderna,2 mas de um conceito de hibridação articulado pela mencionada matriz binária (isto é só podiam misturar-se o erudito e o popular autóctone), numa perspectiva americanista que excluia a cultura de massas. A alta modernidade do romance realista-maravihoso tentava remeter, pois, à genuinidade da cultura popular. cuja pureza tentava se salvar às pressas ante o impacto da modernização acelerada já nos anos 50. o fator de originalidade e legitimidade do nosso modo de ser na História. 2. Os narradores do postboom fazem a crítica dessa modernidade literária, já pelo fato de assumir a cultura de massas como expressão legítima do imaginário social; colocam-na, na verdade, no lugar antes ocupado pela cultura popular, posto que nela identificam um capital simbólico} cuja representatividade socio-cultural se traduz nos discursos e saberes que os grupos subalternos detêm e nos quais expressam o seu imaginário. 3. O trabalho de apropriação dos gêneros massivos não supõe o abandono da expressão erudita ou "alta" e muito menos da experimentação formal; não se trata tampouco de "rebaixar" a sua proposta estética, na tentativa de conquistar o consumidor desses gêneros para a leitura da obra literária. Os romances do postboom têm a prosa tão elaborada quanto a dos seus congêneres modernos e suas narrativas têm estruturas tão complexas quanto às do boom. 4. As reciclagens pós-modernas na AL recusam a perspectiva centralizante e autoritária que a mirada da alta cultura projetava sobre a popular. Se o sujeito interpretante moderno era quem conferia valor, legitimidade e sentido ao discurso popular, o sujeito (se é que esta entidade ainda existe) pós-moderno recusa a postura totalizante para operar conexões, promover zonas de contato, indicar mestiçagens do massivo com o erudito sem estabelecer hierarquias de valor estético. Mesmo considerando que a mentalidade politicamente correta (pouco arraigada na AL) tende a legitimar socialmente o diferente e excluído, é certamente uma tarefa bastante delicada a operação de resgate e inserção do repertório melodramático na linguagem narrativa do romance com destinatário culto. Trata-se, não simplesmente de citar ou criar um pastiche dos materiais existentes, mas de operar a mixagem de linguagens, de modo a


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tornar verossímil e aceitável, do ponto de vista estético para o consumidor de textos literários, a apropriação do resíduo e sua transferência para o circuito alto de produção cultural. Pode-se dizer que essa tarefa inverte aquela que os meios massivos sempre realizaram para tornar digeríveis para o consumidor popular as obras do circuito alto. 4 Os textos que realizam esse efeito de maneira convincente adotam claramente estratégias experimentais de hibridação de discursos, mediante a tomada de fragmentos que ora se justapõem, superpõem ou mesclam, desencadeando um curto-circuito das temporalidades e culturas que se expressam nas linguagens convocadas. É nesse sentido de níveis de consumo cultural (alto x popular-massivo) que falaremos aqui de relações interculturais e de multitemporalidade no romance latino-americano. Quero ilustrar esse processo com o exemplo da reciclagem do repertório melodramático do subgênero musical "bolero", operada no romance La importancia de llamarse Daniel Santos. 5 O trabalho experimental do porto-riquenho Luis Rafael Sánchez nos servirá para indicar como duas estratégias básicas de transcodificação são acionadas para expor os materiais - da alta literatura e da canção popular - ao que descreveremos com o conceito de despragmatização: produção textual em que os materiais reciclados são despojados de seu contexto original para serem inseridos em um novo contexto, no qual ganham outra função, mediante a alteração da relação destinador/destinatário. 6 Se consideramos que os materiais disponíveis à reciclagem existem de modo sistêmico numa dada cultura,7 isto é, como partes de um código ou sistema de signos específico (cinema, pintura, música, publicidade, etc)com suas regras e convenções que fixam as relações entre o significante e o significado e que são comuns ao emissor e ao receptor - a despragmatização supõe sempre uma transcodificação. Logo, as perdas e ganhos processadas pela transcodificação é o que nos mostrará até que ponto a reciclagem literária altera a percepção dos códigos originais, valendo-se da memória inscrita nos resíduos reaproveitados para gerar, com a infonnação estética nova, o ideologema que se propõe a desconstruir a cultura latino-americana.

A despragmatização do bolero Luis Rafael Sánchez apresenta o seu romance como "narrativa híbrida y fronteriza, mestiza, exenta de las regulaciones genéricas" (DS:16), na qual se narra a lenda de Daniel Santos, famoso cantor porto-riquenho, falecido recentemente e de grande projeção no âmbito hispânico do continente, desde os anos 40. A forma do romance é reivindicada, assim, como a de um "pósgénero" (DS: 16) e bem compenetrado com a técnica do videoclip (imagens rápidas, ausência de história, presença da música): uma série de fragmentos

Em, Umberto. Apocalípti· cos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970 (I' ed.:

4.

1964).

S. SANCHEZ, Luis Rafael. La importancia de llamarse Daniel Santos. México: Diana, 1989. Daqui por diante, como OS. 6

Formulamos esse conceito a

partir de uma anotação de Wolfgang Iser relativa à dupla deformação, no texto que cita e no que é citado, criada por Joyce no Ulysses: "The very fact that the Iiterary allusions are now stripped of their context makes it clear that they are not intended to be a mere reproduction - they are, so to speak depragmatised and set in a new context." (IsER, Wolfgang. The Acl of Readinl!. A Theory o(Aeslhetic Response. Baltimore: John Hopkins Univ. Press, 1978). 7 L01MAN, IUli. Semirítica de la cultura. Madri: Cátedra, 1979.


o romance latino-americano do pós-boom... 79 distribuídos em três partes, sendo a primeira os relatos-reportagem com indivíduos de diferentes cidades da América Latina, que teriam conhecido o ídolo popular; a segunda se compõe de reflexões\comentários do narrador sobre a sua fama artística e sua mitologia como grande Macho latino-americano; a terceira contém historias diversas das vivências sentimentais dos ouvintes de Daniel Santos que aguardam ser "bolerizadas". Todas as partes estão tematizadas e musicalizadas pelo bolero - o "bolerão" tradicional- que integra uma faixa significativa de consumidores de música popular, aquela que o mote do romance repete e repete: "La América amarga, la América descalza, la América en espanol". A performance do narrador - que obviamente inventa as entrevistas, as reportagens e as histórias ouvidas (cf DS: 15) para parodiar as chamadas "novelas-testimonio" - é a de um virtuoso: por um lado, forja a fala popular dos supostos entrevistados com notável verossimilhança, ao ponto de imitar a entoação das vozes regionais, os tics da elocução, as gírias e modismos peculiares de uma geografia que vai de Guayaquil e Cali a Caracas, do México e Managua a Santo Domingo e San Juan, do Panamá a Manhattan; por outro, nos comentários que sucedem às pseudo-entrevistas, exercita-se como um narrador culto, de vanguarda, com a erudição adequada a um conhecedor do ofício da escritura moderna e da experimentação literária. É a reciclagem das letras de boleros clássicos da musicologia popular latino-americana que faculta a hibridação dessas linguagens distanciadas socialmente. A passagem do código musical para o literário está tão bem ajustada ao propósito de transcodificar as linguagens culta e popular, que às vezes tornam-se imperceptíveis as junções dos materiais heterogêneos. Vejamos as modalidades que realizam esta despragmatização do bolero: a) deslocamento o código musical-melodramático do seu contexto popular-massivo para inseri-lo no código culto da enunciação do romance.

O uso da letra do bolero como epígrafe dos fragmentos que formam a narrativa usurpa o lugar privilegiado da citação de grande autoria nas obras modernas. Em vez de um verso de um põeta ou filósofo reconhecido, o relato dos amores desordenados de Daniel Santos vem, convenientemente, encabeçado pelos versos de "Obsesión" de Pedro Flores, um dos quais diz: "Amor es el consuelo de la vida\ la única, magnífica ilusión" (DS:20). Os versos, retirados do seu contexto original, procuram enobrecer as muitas "anarquías genitales" que caracterizam a vida de Santos. A transcodificação, neste caso, supõe que o "contexto original" seja composto de uma série de subcódigos anulados ou neutralizados pela escritura novelesca: a voz do cantor\cantora que o som da "vellonera" - a vitrola ou fonógrafo reproduz e que é obtido pela ficha que aciona o aparato eletrônico; junto a este, desvela-se a mulher\homem abandonado ou solitário, que traz a alma em frangalhos; o espaço público urbano que o som da "vellonera" invade (abun-


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dam os nomes desses lugares no continente: boliche, toldo de carnaval, paganías, hostería, taberna, cevecería, cantina, ratonera, cebichería, burdel, hotelitos, entre outros; cf DS: 14-15 e 18-(9); os destinatários típicos das letras tristes dos boleros, os proletários e marginais (a nomenclatura para os pobres é generosa na AL: hampones, gentuza, gentucilla, plebe, chusma, morralla, broza, "el inefable lumpen" DS:90-91). Isentos dos sub códigos da emissão e da recepção que a matéria "cantada" supõe, os versos bolerescos funcionam como filosofemas que pontuam as conexões dos relatos, para sugerir significados nobres e engrandecer as paixões, tornando a sedução e a perdição pela sensualidade verdadeiros movimentos anímicos que transcendem a mera carnalidade. Em outros casos, trata-se de usar a epígrafe boleresca de modo inverso, para "rebaixar" a excessiva dignidade da linguagem literária. Dois fragmentos que invocam as profundas reflexões de um "bardo inglês" e de um "bardo argentino" sobre a importância do nome aparecem intercalados por versos da patética letra de "EI preso" (DS:94-95). Se com Shakespeare e Borges o leitor permanece no plano da metafísica, com as lamúrias do prisioneiro é arrojado para o universo mais banal dos sentimentos como a solidão e a culpa. Pode-se notar por esse exemplo que a despragmatização, ao reorientar o leitor na percepção dos conteúdos, dissolve a oposição entre o objeto aurático e não aurático;8 essa oposição, que pôde sustentar a concepção moderna dos objetos artísticos e não artísticos, foi-se neutralisando cada vez mais na era pós-industrial desde que a reprodutibilidade técnica tornou secundária a demanda da unicidade. São numerosos os exemplos da transcodificação que despragmatiza a percepção convencionalizada do bolero como expressão banal ou ridícula. As letras de bolero, sempre retiradas do seu contexto pragmático, adquirem nova função no enunciado narrativo, em um processo de incorporação que podemos denominar como REPRAGMATlZAÇÃO. Elas podem servir, dessa maneira, para predicar um personagem ("Besaba como si fuera esta noche la última vez"; "chupaba el lunar que una y Cielito lindo tienen junto a la boca" DS:34); figurar um estado psicológico ("su alma sangrante tefiÍa el aguardi ente dei Cauca con oscuros desenganos") etc. É, no entanto, em certas mixagens dos códigos popular e culto onde se pode observar como o deslocamento do resíduo melodramático descondiciona a percepção: EI asuntito con Salira lo redujo a borracho de oficio. Migas lo hizo. Mas miga enamorada, De eso sabrá Dios. (DS:44)

Aqui, um fragmento do memorável bolero "Sabrá Dios" é reciclado em um sintagma criado pela paródia dos versos finais e solenes ("polvo serán, mas polvo enamorado"), do soneto barroco de Quevedo "Amor constante

K. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. J.P. Rouanet, em Ohras escolhidas. 3' ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Vol. I, 165-96.


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más alIá de la muerte". Neste caso, temos o duplo movimento de perda e ganho na economia da reciclagem: os "restos" do soneto são rebaixados de sua dignidade de alto modelo literário, ao tempo que o resíduo do bolero, que pontua emoções baratas, é elevado em seu significado. Evidentemente, a operação de repragmatizar esses resíduos requer a afinidade intrínseca dos códigos nivelados: ambos, o musical e o literário, inscrevem-se na cultura dos sentimentos. cujas cifras a memória dos hispano-americanos retém. Os deslocamentos dos signos bolerescos vão além da despragmatização de suas unidades informativas. O trabalho da reciclagem apropria-se também das estruturas melódicas e tonais características por suas repetições e recorrências para imprimir à prosa a sensualidade de um ritmo dançável: Como paloma inofensiva, como huella huérfana de pasos. como melindre y reticencia - símil con símil insinuándola. (DS:1l3)

Beber, beber, beber en los calibres de Cali la cálida. (DS:34)

Le digo Narciso en un ojo de agua, las hojas junto ai ojo enojándolo, el enojo equivocándolo. Le digo Eros erogenándose. (DS:76)

Aqui, a bolerização da prosa tem o toque paródico de outro aspecto da pragmática do bolero (a dança pelo par amoroso), mas não deixa de ser notável que a experimentação com a linguagem da prosa narrativa em nada se diferencie do que seria um típico produto de vanguarda. Por isso, o fato de estetizar o relato mediante o uso das paronomásias - tão caras à invenção poética da alta modernidade - revela, uma vez mais, a proposta de dignificar a música popular e de abrir o seu território para novas explorações. b. deslocamento do código culto da literatura para inserir-lo no enunciado melodramático do romance

Esta modalidade de reciclagem consiste em aproveitar diversos resíduos da tradição literária para transcodificá-Ios na narrativa, mediante a despragmatização do seu efeito estético "alto". Temos, claro está, uma inversão da apropriação dos materiais residuais da cultura popular-massiva anteriormente descrita. Porém, deve-se assinalar que essa reciclagem inclui-se no projeto amplo de despragmatização do sub-gênero melodramático, ou melhor, supõe que a experimentação de deslocamento do bolero já tenha condicionado o leitor para que este possa absorver o rebaixamento das referências cultas. Neste ponto, cabe perguntar: o que pretenderia oferecer como experiência de leitura (e consumo) um texto que cita fragmentos de obras e autores canônicos como se fosse material espúrio? Vejamos se podemos ensaiar uma resposta a partir de alguns exemplos dessa modalidade de reciclagem, nos


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quais indico pelas cursivas os resíduos literários e entre colchetes os autores e obras de onde foram extraídos: el bolero que acoge su garganta obtendría los ribetes de la fonua ideal, la fundición perfecta, los pausados giros de un aire suave. (OS:18-19) [Rubén Oario, do põema

"Era un aire suave..." de Prosas profanas] El pasó por mi vida sin saber que pasaba y le labrâ cerco y prisitin mifantasía. (OS:33) [Sor Joana Inés de la Cruz, do soneto "Que contiene una fantasía contenta con amor decente"]

estaban filmando una épica con hombres necios que acusais a la mujer sin razón para ellucimiento de Maria Antonieta Pons o Rosa Carmina( ... ) (OS:50) [idem, da sátira filosófica "Hombres necios ... "]

piei que un día se otoõó; piei otoõaI que se atareó en la compra de torsos embadumados con el verso azul y la cancilÍn profana( ... ) (DS:58) [Rubén Oarío, do põema "Yo soy aquél que ayer no más decía", de Cantos de vida)' esperanza]

requetepeor, se camavaliza con falsos silogismos de colores (OS:82) [Sor Juana lnés

de la Cruz, do soneto "Procura desmentir los elogios que a un retrato de la põetisa inscribió la verdad, que se lIama pasión"].

los boleros son corrientes puras, aguas cristalinas. (OS:99) [Garcilaso de la Vega, da "Égloga primera"]

para revi vir la cita que parece una violeta ya marchita en ellibro de recuerdos dei ayer ( ... ). Para que puedan escribirse los versos má.v tri.vtes esta noche. (OS:IOI) [Pablo Neruda, de um põema de Veinte poemas de amor y una cancilÍn desesperada].

Macho es Oaniel Santos que cuanta mujer paIpó vive quemada por el no se sabé clÍmo de sus besos, dice el sensacionalismo. (OS: 123) [Tirso de Molina, da obra teatral Don Juan Temirio o EI convidado de piedra).

Otra vez Marisela está vestida ( ... ) Contra el oro brunido de su cabello el sol relumbra en vano ( ... ) (OS: 156) [Góngora, do soneto "Mientras por competir con tu cabello")

Esta seleção requer alguns comentários: as citações não são fidedignas, pois apresentam várias alterações dos textos originais; todas são familiares para o leitor de cultura média da literatura em língua espanhola; as escolhas recaem em autores consagrados e obras de tema amoroso; todos os fragmentos da alta literatura são inseridos em enunciados narrativos nos quais os personagens, as situações, os objetos e comportamentos, expressões verbais ou fatos referidos provêm do universo popular-massivo, no qual a não-genuinidade e mesmo a marca do Kitsch estão presentes.


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A despragmatização a que são submetidos os textos literários neste caso - como a que se efetua pela tomada sinedóquica de suas partículas - evidencia até que ponto o seu uso contínuo ou consumo excessivo desgastam a sua aura e facultam o seu nivelamento com outros restos e resíduos culturais, Ora, nessa disposição dos códigos literário e musical, torna-se irrelevante preservar a diferença do erudito e do popular; sua identidade e legitimidade ficam comprometidas pelo contágio, Por isso, a reciclagem despragmatizadora já não admite que os fragmentos enxertados retornem para seu estrato original, sem estarem afetados, contaminados um pelo outro. A reciclagem, em outras palavras, torna irreversível a bolerização da literatura, como tornara literárias e modernas as letras arcaicas e kitsch dos boleros. Aliás, o próprio sujeito-reciclante, ao intitular um dos fragmentos iniciais do romance, parece ter insinuado a generalização da disponibilidade dos materiais da cultura de elite e de massas para ingressar em um sistema híbrido de signos: "Trozos y restos aprovechables de los materiales descartados" (DS:33).

Melodrama: catarse do moderno JAMESON, Fredric, Reification and Utopiain Mass Culture, SiKnatures oI' lhe Visihle, New York: Routledge, Chapman and Hall, 1979, p, 9-34,

"

Se o colapso da distinção entre a cultura de elite e cultura de massas é o fenômeno mais marcante da pós-modernidade,9 as reciclagens dos gêneros melodramáticos por autores latino-americanos treinados em técnicas sofisticadas de narração, oferece um campo privilegiado para observar a crise da concepção modernista de arte e a nova reordenação dos capitais culturais pela hibridação, para usar aqui a linguagem econômico-sociológica (CANCLINI, 181). Nessa crise e reordenação, as culturas mestiças e pós-coloniais, que tiveram que conviver ao longo de sua história com a dualidade opressora hegemônico\ subalterno - e que tiveram, portanto, que desenvolver estratégias "antropofágicas" de sobrevivência, de ambos os lados, diga-se - querem reivindicar, juntamente com a valorização do popular-massivo, o direito ao melodrama, a legitimidade do sentimentalismo ou, como diz Luis Rafael Sánchez, a "Iegalización de la cursilería" [a legalização da cafonice]. Mas o que, afinal, torna aceitável que materiais desde sempre considerados espúrios, alienantes, adulterados (em nossos países pela intelectualidade de esquerda e direita) possam, de repente, reverter o seu conteúdo? Em outras palavras, que razão estética e que forma de adesão ideológica são demandados pela reciclagem? Sem poder avançar aqui uma resposta geral, válida para expressões não-literárias, penso que são necessárias duas condições para a aceitabilidade desses resíduos na reciclagem. Uma é que a reciclagem se apresente como operação crítica na combinatória dos materiais, de modo a selecioná-los de acordo com as conveniências políticas e éticas pós-modernas. Exemplarmente: o bolero tem que aparecer


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destituído daquele relaxamento alienante ou hedonismo apolítico, de modo que à sua dignificação literária (que lhe dá status literário, corno vimos) corresponda o compromisso com algo nobre e maior, ainda que dentro da cultura dos afetos. Em outras palavras, exige-se que a repragmatização se dê corno novo contrato entre destinador e destinatário, no qual subentende-se que o papel das emoções deriva da falência do projeto utópico da esquerda na América Latina.1° Nesse sentido, é notório que romancistas corno Manuel Puig ou Luis Rafael Sánchez reciclam os gêneros massivos em oposição à teoria frankfurtiana sobre a indústria cultural no capitalismo, segundo a qual, os bens culturais são sistemática e programadamente explorados com fins comerciais para induzir ao relaxamento, à distração, à diversão. I I Para esses escritores latino-americanos, um bolero ou um filme B (corno os que Puig utiliza em El beso de la mujer arafía) são sim produtos dessa indústria e, corno tais, portadores do elemento kitsch; mas eles parecem estar longe de ser urna resposta à mecanização capitalista ou à mercantilização ou, ainda, urna compulsão desesperada para escapar da mesmidade das coisas por urna "promesse de bonheur". Se mesmo na esfera socialista da América proliferam as atitudes apologéticas ao Kitsch, segundo a fina análise de Desiderio NAVARRO,12 isto significa, talvez, que eles são capazes de produzir plenamente a catarse no leitor. Quando Sánchez compara as reações de um ouvinte hipotético dos anos 30 - ante urna emissão radial com discursos políticos de Lázaro Cárdenas, no México, ou Haya de la Torre, no Peru com as que ele experimenta ante a "vel\onera" onde explode um bolero na voz de um "negrito sabrosón" (DS:121) - seria injusto dizer que a emoção que este suscita possa equiparar-se àquela "paródia da catarse" que Adorno viu no kitsch. O marginalizado social que nesta situação libera a sua sentimental idade vive "el drama dei reconocimiento y la lucha por hacerse reconocer, la necesidad de recurrir a múltiples formas de la socialidad primordial (el parentesco, la solidaridad yecinal. Ia amistad) ante el fracaso de las vías oficiales de institucionalización de lo social. incapaces de asumir la densidad dê las culturas populares.'·!.1 A segunda condição tem a Yêr com a nê":êssidade - já no âmbito dê uma política do texto - de reciclar resíduos culturaIs. abandonados pela modernidade estética e reconhecidos corno integrados ao conceito de identidade cultural latino-americana. Os melodramas que pcrmeiam os relatos de Puig, de Otero ou Vergés não seriam reutilizáveis se não fossem passíveis de constituir um ideologema da integração ou unificação da América Latina. Nessas reciclagens não há divertimento, pura experimentação de laboratório estético para verificar a reação dos componentes. É preciso que os resíduos iluminem de alguma maneira as contingências do presente político e aportem traços diferenciais da cultura latino-americana. Nisto é paradigmático o caso

In SANTOS, Lídia. Des héros et des larmes. Le Kitsch et la culture de mas se dans les romans des Cara'lbes hispanophones et le Brésil. Éludes littéraires, vol. 25, 3, Hiver 1993.

11. HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor. Dialectic ot Enli!(htenment. Trad. John Cumming. New York: 'lbe Seabury Press, 1972 (I' ed.: 1957). 12

NAVARRO, Desiderio. EI

kitsch nuestro de cada día.

Uniôn [Havana], 2:22-28, abr.-jun. 1988. lJ MARTIN BARBERO, Jesús. De los medias a las mediaciones. Comunicaciôm, cultura y he!(emonía. México: G. Gili, 1987.


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[Havana], 9:58-76, jul.-set., 1988. 15

CASTILLO ZAPATA, Rafael.

Fenomeno!ol{Ía dei holero.

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16. SARLO,

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nes de ôrc;ulaciôn periódica enArlientina 1917-1927. Buenos Aires: Catálogos, 1995.

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do bolero, cujo capital simbólico, ao ser manuseado pelos pesquisadores, revela a categoria da genuinidade "popular", 14 incompatível, a meu ver, com as formas da sua difusão como fenômeno de massas. Resgatado como popular, o bolero já não é mais Kitsch; passa a ser "originário", anterior à internacionalização e comercialização, próprio dos meios proletários e sub-proletários. Sua origem mestiça é reconhecida por seu legado verbal e melódico de raiz hispânica - e por seus ritmos e instrumentações, de herança negróide. 15 Outra categoria que o legitima na constituição da identidade cultural provém da sua estrutura dramática, na qual se narra um conflito amoroso e se elabora a dor pela ausência\ abandono do(da) amante. Por sua rede de símbolos que tece modelos da relação amorosa, torna-se um rito coletivo, uma "práctica estética comunitaria", cuja função pragmática principal é a de consolar os amantes, amparar e confortar pelas penas de amor. (IDEM: 33). Como "almacén simbólico", pois, o bolero traduz, por suas raízes autóctonas, por sua ritualidade coletiva, a experiência sentimental latino-americana. Tornase, enfim, identitário pela neutralização de sua própria historicidade. Mas há ainda um fator identitário que torna mais ainda atraente o repertório melodramático para as reciclagens do escritor latino-americano pós-moderno. A busca de figuras arcaicas, de formas marginalizadas pelo progresso e pelas grandes utopias, a reivindicação do ex-cêntrico e periférico responde a uma necessidade de elaborar o luto pelo fim da modernidade. Tanto os filmes B de Hollywood, como os folhetins radiais, a difusão do bolero e do tango, como os romances sentimentais em grandes edições - tudo o que contribuiu, enfim, para construir na América Latina o "império dos sentimentos"16 são testemunhos do impacto da modernização e da expansão do capitalismo no continente. O surgimento dos meios massivos (o rádio, o registro fonográfico, o cinema) com a expansão urbana: o cosmopolitismo e a vida noturna dos cabarés, dancings. casinos e teatros foram acompanhados pela necessidade de refúgio contra a fúria destrutora do presente. Reciclar permite (re lexperimentar os desajustes e os fracassos que os Grandes Relatos provocaram em sua implantação nos mundos periféricos. Não por acaso, o primeiro bolero que se compôs no continente foi em 1885, a mesma data que a historiografia literária reconhece como início modernismo hispano-americano. Intitulava-se "Tristezas".



Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada Benjamin Abdala Junior

1 Desde sua publicação, em 1612, A tempestade, de William Shakespeare, tem sido objeto de interpretações contraditórias. Na efabulação dessa grande parábola da colonização, Próspero, o sábio duque que se asilou numa ilha centro-americana, ali encontrou Caliban, personagem grosseira e disforme. O duque - com comportamento similar ao de um "déspota esclarecido" -, ao se apropriar de suas terras e o escravizar, aculturou-o nos valores da "civilização". Ensinou-lhe a sua língua ... Depois, Caliban - um ingrato, na perspectiva de Shakespeare - vai-se valer do conhecimento dos valores veiculados pela língua para colocar-se contra o colonizador. Como se sabe, "Caliban" é anagrama de "Canibal" - um antropófago. "Canibal", deriva de "Caribe", que, por sua vez, vem de "Caraíba". Os caraíbas foram os habitantes da região que se opuseram à colonização européia, estigmatizados, por isso, como bárbaros. Shakespeare, ao se apropriar do ensaio "Dos canibais", de Montaigne, de 1580 (traduzido para o inglês em 1603), distorceu sua fonte iluminista. Montaigne afirmava nesse texto que "nada há de bárbaro nem de selvagem nessas nações ( ... ) o que sucede é que cada um chama barbárie o que é estranho a seus costumes". Shakespeare, ao associar anagra-


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maticamente sua personagem com o canibal, um escravo selvagem e disforme, não deixou de adotar, ele próprio, uma atitude canibalesca. Entre as muitas releituras de A tempestade, figura a de Renan, que em seu texto Caliban, seqüência de A Tempestade (1878), identifica de forma negativa Caliban com o povo da Comuna de Paris - uma imagem estigmatizada. Em oposição à matização negativa do Caliban de Renan, vieram as leituras de latino-americanos e africanos que. no decorrer do século XX, identificaram simbolicamente essa personagem. de forma positiva, com os valores emergentes do povo. Próspero. nessas novas leituras. seria então um déspota esclarecido europeu, como apontamos acima: Miranda. sua linhagem; Caliban, o povo colonizado: Ariel. o intelectual sem laços com a vida, a serviço de Próspero. A imagem de Caliban. além disso. veio a se aproximar da perspectiva teórica do cubano José Martí, que enfatizava a condição mestiça da América Latina. Se toda cultura é mestiça, nas terras de Caliban essa situação é ainda mais essencial pelo fato de a mesclagem cultural ser mais recente. Na América Latina, há uma maneira de ser mestiça que envolve as culturas ameríndias, africanas e européias. Essa mestiçagem essencial, mas não sintética, traz-nos um estatuto crioulo - a crioulidade -, uma forma plural de nos imaginarmos, com repertórios de várias culturas. A partir dessa potencialidade subjetiva e objetiva - a possibilidade de nos imaginarmos numa bacia cultural onde a crioulidade é essencial - podemos fazer figurar em nossos horizontes uma comunidade cultural ibero-afro-americana. Logo, não uma figuração utópica em abstrato, mas como um "sonho diurno", na expressão de Ernst Bloch - uma potencialidade objetiva e que pede o concurso de nossa subjetividade, isto é, de nossa potencialidade subjetiva, de nosso desejo, para nos situar dentro dessa perspectiva crioula. Não há futuro, em termos de identidade, figurarmo-nos como espelho de Próspero, imitando sua imagem. Mais: para o europeu, a América e a África começam na Ibéria, igualmente marcada pela mestiçagem cultural das ex-colônias dos países peninsulares. Na Ibéria certas elites desconsideram sua maneira de ser mestiça para se espelharem em Próspero, como também tem ocorrido na América Latina e na África. A situação de dependência envolve a todos nós e precisamos desenvolver estratégias para reverter esse quadro que se agrava a todo momento. É necessário, pois, que descentremos perspectivas: vamos observar as nossas culturas a partir de um ponto de vista próprio. Teríamos assim um descentramento de ótica de Caliban, afim da perspectiva antropofágica do Modernismo brasileiro, para morder as culturas de Próspero e as culturas africanas e ameríndias. Inversão de perspectivas, exemplificada pelo cubano Roberto Fernandes Retamar da seguinte forma: quando um europeu quer ser simpático aos centro-americanos, ele chama o "Mar das Caraíbas" de "Mediterrâneo americano", algo semelhante se nós


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chamássemos - a partir de um descentramento de perspectiva - ao Mediterrâneo de o "Caribe Europeu". Esse descentramento solicita uma teoria literária descolonizada, com critérios próprios de valor. Em termos de literatura comparada, o mesmo impulso nos leva a enfatizar estudos pelos paralelos - um conceito mais amplo que o geográfico e que envolve simetrias socioculturais. Assim, os países ibéricos situam-se em paralelo equivalente ao de suas ex-colônias. Ao comparatismo da necessidade que vem da circulação norte/sul, vamos promover, pois, o comparatismo da solidariedade, buscando o que existe de próprio e de comum em nossas culturas. Vemos sobretudo duas laçadas, duas perspectivas simultâneas de aproximação: entre os países hispano-americanos e entre os países de língua (oficial) portuguesa. Voltando à imagem de Caliban, podemos nos valer do romance Caetés, de Graciliano Ramos, para exemplificar processos de apropriação dentro das literaturas de língua portuguesa. Nessa narrativa, Graciliano (em cujo horizonte de expectativas estava Eça de Queirós), calibaniza a estrutura de A ilustre casa de Ramires, do ficcionista português. Apropria, entre outros, o procedimento narrativo do romance embutido dentro do romance. Como em A ilustre casa de Ramires, o romanCe que João Valério (a personagem narradora de Caetés) escreve é, na verdade, a história vivenciada por ela, analogicamente. Essa estrutura será retomada por Graciliano Ramos ainda depois, em São Bernardo. Os índios caetés, por sua vez, são recorrência histórica antropofágica: eles devoraram o Sardinha português. Uma boa parte da maneira de ser de Portugal está em nós, sob matização tropical. É por isso que Portugal, por sua vez, irá se apropriar do repertório literário do Modernismo brasileiro, em especial no romance, como ocorreu com o chamado Neo-Realismo português. Na literatura brasileira, os escritores desse país descobrem um Portugal que não existe na literatura além-Pireneus. Um olhar simétrico ocorreu com os escritores africanos dos países de língua (oficial) portuguesa. Ao reimaginarem suas nações - um projeto político e cultural-, encontraram em nossa literatura uma maneira de ser em que eles próprios Se viam. Isto é, descobriam as marcas da crioulidade cultural que nos envolvem e o descentramento de ótica que interessava aos seus projetos político-culturais. Ao buscarem a identificação simbólica com a Mátria (a "Mamãe-África", profanada pelo colonialismo), dão as costas à simbolização da Pátria (o poder paterno colonial), encontrando algumas de suas marcas na Frátria brasileira.

2 O romance A jangada de pedra, de José Saramago, presta-se para a discussão do caráter nacional português, em faCe de uma dupla solicitação: a


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recente integração na Comunidade Econômica Européia (ao que tudo indica, como nação periférica) e a singularidade que leva o país a identificar-se, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias. O romance de José Saramago serve-nos igualmente de núcleo simbólico, por envolver temas como o da imaginação utópica, da memória e das relações culturais entre os países de língua portuguesa e de língua castelhana. A jangada de pedra proporciona uma "viagem" que permite, assim, que se sonhe com uma comunidade não apenas dos países de língua portuguesa, mas dos países ibero-afro-americanos. Organizado em torno de estratégias geopolíticas e associado à situação histórica pós-Abril, esse romance permite repensar a cultura portuguesa em face da dupla solicitação apontada: a integração européia e a singularidade peninsular. Esta singularidade liga-se às perspectivas que marcaram a história de Portugal: a atlanticidade, a ibericidade e a mediterraneidade. Tais horizontes históricos, no centripetismo e no centrifugismo de suas formas de apropriações e de difusões, acabaram por estabelecer uma comunidade cultural ibero-affo-americana. Numa sociedade internacional atraída pela dinâmica dos comunitarismos entre os povos que os leva para novos reagrupamentos determinados por afinidades culturais. creio que é importante a efetiva implementação de estratégias político-culturais que nos permitam (re )imagimar essa constelação de países. Nessa comunidade (previsão de 645 milhões de falantes do português e do castelhano para o início do século XXI), Portugal, Brasil e os países africanos de língua oficial portuguesa constituiriam assim um pólo da paridade histórica que nos envolve em relação aos países hispânicos - uma paridade similar, mas que pretende menos conflituosa, do que aquela que marcou a história de Portugal e da Espanha. Vejamos a simbologia de A jangada de pedra, de José Saramago, que aponta para o imaginário que nos singulariza em relação à Europa - um imaginário simbolicamente "infernal", mestiço, crioulo, no sentido que estamos desenvolvendo, e que se opõe à pureza das imagens "celestiais" da tradição cultural dos centros hegemômicos europeus. Em epígrafe a esse romance, o ibero-americano Alejo Carpentier opõe ao ceticismo a perspectiva de que "Todo futuro es fabuloso". Tão fabuloso na efabulação desse romance que esse futuro, na vida como na arte, torna-se avesso ao pragmatismo cético da Europa. Um "futuro fabuloso" próprio de um momento de fratura, onde "principia a vida" (p. 18), que por natureza calibânica opõe-se à convenção, à rotina e ao estereótipo de Próspero. Viver, nessa perspectiva, é criar, desenredando fios de velhas meias, como as de Maria Guavaira. "Todo futuro es fabuloso", diz Carpentier. Tão maravilhoso, diríamos, que permite uma efabulação - fabula ficcional de ação política que, num direcionamento temporal inverso, permite a atualização, na jangada de Saramago, de matéria sonhada para amanhã ou depois.


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Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artístico não nos traz imagens literárias à deriva, mas imagens-ação que aportam no presente da escrita literária, impulsionando-a por "mares nunca dantes navegados". São imagens-ação políticas que motivam uma nova épica, agora social, num movimento dialético que é, ao mesmo tempo, partida e encontro. Desprendese a península de uma situação convencional de apêndice europeu para, no faz-de-conta ficcional, encontrar-se consigo mesma. Quando se encontra em sua identidade, a jangada ibérica é capaz de movimentos surpreendentes, já que não se (con)forma ao cais europeu, para ela "cético" e "rotineiro", onde aportou há muito tempo. "Mudam-se os tempos" e a "vontade" (Camões) aponta para outras perspectivas, para driblar, pelas laterais do jogo ficcional, um outro jogo, geopolítico, que acaba por nos enredar a todos. A matéria geopolítica, em torno da qual se processa a estratégia discursiva dominante de A jangada de pedra, constitui, assim, um espetáculo artístico. Mostra-nos Saramago, mais uma vez, que o poético não está nas coisas, no objeto, como observou Carlos Drummond de Andrade. O poético instaura-se pelo trabalho artístico do referencial político. Vem dele a imagemação (e a imaginação) política capaz de concentrar séculos num único momento - momento mítico que chama a si devir histórico e raízes nacionais. Tal concentração do tempo no momento da criação ficcional fratura o imaginário convencional a ponto de a calosidade dos Pireneus não impedir o deslocamento espacial da península - um deslocamento, na certa ... "vagabundo", aos olhos rotineiros que a enunciação atribui aos franceses. Como diz o filósofo popular José Anaiço, o que conta ao final das contas é o momento, e este, no sonho diurno de José Saramago, é ibérico. O excepcional da ficção subverte padrões de referência e critérios de verdade. O momento é de ruptura e reencontro, repetimos, para que o tempo rotineiro não prossiga em suas mesmices. A concentração fantástica do tempo - própria das concretizações utópicas - provoca novas ondas internas compelindo a viagem de Dois Cavalos, automóvel e parelha, e seus ocupantes. São eles levados pelas vagas invisíveis do s(c)isma da terra a uma estranha viagem de autoconhecimento e de reconhecimento da península. Ao nível de pressupostos virtuais, as vagas exteriores, no Atlântico, devem sensibilizar os novos mundos ibero-americanos, mundos que também emergem das regiões abissais. Talvez o mensageiro dessas regiões infernais, o misterioso cão Cérbero, ao não explicitar suas intenções, queira enredar, na verdade, o leitor, tal como escolheu ao acaso as personagens do romance. A perspectiva de nova unidade que ele procura trazer como expressão do vir-a-ser imaginado, não se circunscreve apenas à Ibéria, abrange também a América Latina e as nações africanas de língua oficial portuguesa. Dado o recado, a península estaciona, aguardando a contrapartida dessas nações atlânticas.


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Dentro da nova lógica do maravilhoso infernal sonhado, o negativo emerge e se torna positivo. E Cérbero, que também pode ser chamado de "Cão Constante", salta do romance Levantado do chão para A jangada de pedra. Na verdade, ele está em múltiplos lugares para exercer com eficácia sua ação demoníaca. "No reino deste mundo", do lado de cá do risco de Joana Carda, não nos pintamos com colorações negativas. talvez porque menos com menos, como dizem, dá mais. Nós nos assumimos. Não ocorre assim a predicação ética negativa do registro do inferno. como acontece na mitologia clássica ou na Divina comédia. de Dante. A no\a viagem pelas terras infernais à procura de uma nova identidade nacional nada tem de divina, embora seja maravilhosa e profundamente humana. Em seu horizonte. a velha ética religiosa da referência clássica ou italiana. monoteísta ou politeísta. acaba por ser comutada pela nova ética político-social. A estratégia discursiva dominante do romance leva a península a girar sobre si mesma, em movimentos misteriosos que escapam à lógica estabelecida. Uma tática, certamente, para fugir dos centros catalizadores europeus e norte-americanos. São movimentos que eles não dominam, misteriosos. Esses movimentos escapam ao racionalismo tecnocrático de curto horizonte. Entretanto, ao nível do destinatário, esse jogo criativo conforma um espaço de reflexão pelo efeito da mensagem que se "levanta do chão". Essa manifestação do futuro fecunda a todos e a tudo, não só as personagens femininas. Em gestação está a própria península ibérica que, como criança prestes a nascer, também dá suas cambalhotas. E, com traquinagens dessa natureza, que escapam ao senso comum, começa a operar em seu interior ampla transformação política, econômica e cultural. Cria-se, assim, na ficção de A jangada de pedra, imagens-ação identificadas com o devir emergente no útero aquático. Tudo, repetimos, por obra da concentração do tempo histórico num único momento - "momento principal" - que permitiu a expressão do futuro desejado. Importa, qualitativamente, esse momento estranho, que escapa à compreensão do conjunto das nações européias. Aí o inferno ibérico só consegue sensibilizar, subversivamente, os jovens, logo sufocados em sua rebeldia pela autoridade paterna. No útero aquático, o "novo" ibérico estaciona numa região geopolítica que não é de calmarias. Como a jangada se alimenta de matéria temporal, a parada é estratégica, como indicamos. Envolvida no útero, ela espera onde aportar, sem calosidades como as das regiões pirenaicas. Para tanto, países infernais da condição mestiça, da mesma forma que os da Ibéria, também precisam jogar suas pedras no oceano comum, como o fez Joaquim Sassa. Na água esbatida, terão origem círculos concêntricos de vagas, em expansão. Os vários círculos nacionais, por certo, deverão se encontrar, transformando regiões de turbulências em novos círculos mais amplos, para dessa forma o


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conjunto confluir para a nossa maneira de ser mestiça - nós: ibéricos, africanos, ibero-americanos. Como se vê, a fantasia de Joaquim Sassa - uma das personagens do romance - tem uma dimensão maior. Um lance aparentemente fortuito é realçado, pela força do imaginário político, numa onda fabulosa. Fruto da concentração do tempo, ela procura propagar-se como um mar vital mais amplo, que pode envolver, em especial, também brasileiros e africanos de língua oficial portuguesa. São espaços abertos que ficaram do lado de cá do risco de Joana Carda, enfatizamos. Se para o europeu tradicional a África começa nos Pirineus, a jangada aponta para uma situação mais infernal ainda para o pensamento preconceituoso: aí começam também as Américas e a Ásia. Apropriando-nos, a nossa maneira, de Fernando Pessoa, em cujas águas também navega subversivamente a jangada como contexto, o contexto de Própero, invertendo perspectivas, podemos afirmar, finalizando, que em oposição ao que o europeu considera miticamente como "nada", podemos nós, infernais. historicizar/dialetizar o mito, situando-o como "tudo". O que para ele é "nada", para nós é "tudo". Isto é, a nossa própria identidade, não apenas imaginada como um rito mítico, mas conquistada na práxis. Como uma jangada num mar vital, a utopia, da mesma forma que na efabulação maravilhosa de Saramago, também aqui deve aportar - o futuro se fazendo presente - a comunidade cultural ibero-afro-americana.

3 A identidade crioula permite-nos assim sonhar com uma comunidade ibero-afro-americana. Ao nível oficial, já foram realizados dois encontros de presidentes da República, o último realizado na Bahia. Como sempre, ao final dos eventos. surgem documentos que são cartas de boas intenções. Contra a implementação de medidas mais concretas colocam-se os dois pólos hegemônicos de atração: os Estados Unidos e a C. E. E. É sintomático que os jornais e demais mídias têm procurado ridicularizar esses encontros antes mesmo de suas realizações. Faz parte da ideologia dos Prósperos neoliberais descartar como ultrapassado tudo aquilo que escapar ao controle supranacional do liberalismo. Se o texto de Shakespeare foi escrito no momento em que o liberalismo era um sonho burguês, agora os Prósperos tornaram-se os donos do mundo. E a utopia neoliberal é colocada como ponto de chegada, não só para a burguesia como para o conjunto da sociedade. Para a ótica neoliberal é chegado assim o momento (o seu momento) de paralisar a história. Dessa forma, por decreto indeterminado e não sabido dos meios de comunicação, respaldados pelas expectativas dominantes da intelectualidade dos países situados ao norte do Equador e, como sempre, reproduzidos ao sul


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- o espelho de Próspero -, tem-se enfatizado, a convicção de que no mundo atual já não há mais espaço para o pensamento utópico. A vida contemporânea, reduzida à ênfase na esfera do privado, já seria manifestação de uma liberdade plena e ponto de chegada da democracia. Ainda mais, a nova situação descartaria sonhos de plenitudes, situadas como abstrações sem sentido real. Pior, esses figurinos procuram imbricar os sonhos de plenitudes que percorrem a história de nova civilização com o autoritarismo. Os sonhos de plenitude, para essas formulações, além de quimeras, seriam avessos à liberdade individual. Na verdade, entendemos que o próprio postulado de hipertrofia do privado não deixa de ser utópico, pois aponta para um mundo sem fronteiras para oindivíduo, no domínio da vida econômica, social, política e cultural. Neste momento de abolição de fronteiras, em que se esboroam os estados nacionais, o indivíduo emerge como espetáculo, um espaço individualista. A própria história não mais teria razão de existir, já que o momento presente - diríamos nós, como espaço de configuração utópica, que a ideologia neoliberal não reconhece enquanto utopia - traria em si um repertório cultural a-histórico, podendo associá-lo em combinações de objetos ao gosto dos indivíduos, libertos, assim, da preocupação com o devi r. A vida seria um eterno presente - liberal e democrático. Como qualquer utopia, essa aspiração é ideológica - um conjunto de idéias-força, no sentido genérico de ideologia -ligado aos sonhos do liberalismo. Um sonho libertário, entendemos, associado à perspectiva de um grupo social. Nesse sentido, a ideologia é manifestação cultural de "falsa consciência": a materialização desse sonho não seria apenas uma aspiração de grupo liberal, mas de todos os indivíduos - o sonho de um grupo espraiando-se para toda a sociedade. A essa perspectiva, podemos opor uma outra, no campo de nossa competência - uma outra idéia-força que não se situa apenas num depois. São virtualidades comuns aos países localizados ao sul do Equador da nuestra américa mestiza e que nos permitem participar do sonho diurno da integração ibero-afro-americana. Em termos de literatura comparada, este sonho se materializa no comparatismo da solidariedade, que, na situação brasileira, se concretiza em laçadas dirigidas à América Latina e aos países de língua portuguesa. Esse comparatismo da ordem da solidariedade deve levar a uma circulação mais intensa de nossos repertórios culturais. Se circunstâncias históricas têm-nos colocado à evidência da necessidade do comparatismo norte-sul para o estudo de nossas apropriações calibanescas, o momento atual - em face da ênfase universal na procura de afinidades culturais - direciona-nos para o contrapolo dialético da tendência globalizadora.


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Talvez fosse o caso de irmos um pouco além (não muito, para que a dialética seja operacional). Os repertórios culturais de nossa condição mestiça (crioula) têm, na sua maneira de ser, uma universalidade cosida de dentro, que dá vez ao diferente. A globalização massificadora, ao contrário, é unidirecional e procura paralisar o outro, inclusive nos centros de hegemonia. É em razão dessa tendência que o comparatismo histórico norte-sul, ao sul do Equador, da ordem da necessidade, tem dado lugar, ao comparatismo da solidariedade. As afinidades sociais de grupos minoritários têm permitido uma circulação transnacional que não segue os parâmetros da globalização estandardizada. Entretanto - e para fecho desta exposição -, entendemos que o momento solicita a marcação de nosso solo crioulo, com a universalidade de sua maneira de ser. Essa mesma maneira de ser, aberta, sem xenofobismo, convida os outros, ao norte do Equador, a descobrirem o que em nós existe como marcas de suas identidades - uma identidade historicamente também modelada a partir desses centros. Enfatizamos nosso descentramento de perspectivas - descentramento equivalente ao reivindicado pelo grupos de resistência à estandardização dos países não periféricos -, convidando-os também a se imaginarem, de forma equivalente, dentro da universalidade crioula - uma universalidade que se faz para frente, enlaçando carências, mais do que por referência exclusiva ao passado.



La creatividad artística de la mujer: Como agua

para chocolate Maria Elena de Valdes Para Tânia Franco Carvalhal y Maria Lúcia Rocha-Coutinlw

I. ESQUIVEL, Laura. Como agua para clUJco/ate. Nt1\Ie/a de entregas mensuales con recetas, amores, y remedios cu· sem.l" México: Planeta, 1989.

_ _ _ , guionista. Como agua para chocolate. Dir. Alfonso Arau. Prod. Alfonso Arau. Con Lumi CavalOS, Marco Leonardi. México, 1991. 114min.

Los libros de cocina mexicanos dei siglo diecinueve a menudo eran escritos y cosidos a mano y pasaban de una generación a otra. Yo tengo la suerte de haber heredado uno. Las recetas y los remedios casems están presentados en una narrativa junto con historias que vienen ai caso a causa de la receta de turno. En los Estados Unidos la primem edición de 2

The foy of Cookinl! (New

York: Bobbs, 1931) de Irma S. Rombauer seguía esta Iradición. Desafortunadamente, su hija, Marion Becker (I 963), ha descontinuado la narrativa. 3.

GALVÁN, Mariano. Calenda-

rio para las senoritas mexica· nas. México: Imprenta de Mariano Murguía, 1838.

Como agua para chocolate es la primera novela de la escritora mexicana Laura EsquiveI (1950-). Publicada en 1989 en espafíol, para 1992, aI estrenarse la película deI mismo título, ya se había traducido a casi todas las lenguas europeas. 1 Como el guión cinematográfico también fue escrito por Esquivei, tanto la novela como el film ofrecen una excelente oportunidad para examinar el juego entre la representación visual y verbal de la mujer. El estudio de las imagénes visuales y verbales debe comenzar con el entendimiento que tanto la novela y, en menor grado, la película trabajan como parodia de un género. El género es la versión mexicana de literatura de mujeres publicada en entregas mensuales, junto con recetas, remedios caseros, patrones de costura, poemas, exhortaciones morales, ideas para decorar el hogar y el calendario de fies tas religiosas. En breve, este género en el siglo diecinueve es el precursor de lo que se conoce como las historias de amor de revistas de mujeres. 2 Alrededor de 1850 estas publicaciones en México se conocían con el nombre de "Calendarios para sefioritas."3 Ya que la casa y la iglesia eran el espacio privado y público de toda seiíorita educada, estas publicaciones representaban la contraparte escrita para la socialización de la mujer y, como tales, son documentos que conservan y transmiten la cultura de la mujer mexicana en un contexto social y un espacio cultural particular para mujeres por mujeres.


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Fue alrededor de 1850 que la narrativa empezó a tomar una parte prominente; primero, con descripciones de excursiones para la familia, narraciones morales, o recetas de cocina. Para 1860 la novela en episodios seguía a la receta de cocina o a la excursión recomendada. Historias de amor de mayor elaboración empezaron a aparecer con regularidad hacia 1880. El género no era considerado como literatura por la crítica literaria debido a las tramas por episodios, el sentimentalismo y los personajes estereotipados. Para el principio deI siglo toda mujer que leía, era o había sido lectora ávida deI género. La cultura literaria mexicana, dominada por hombres, no ha prestado atención a la realidad de que estas novelas estaban narradas con palabras propias de inferencias y referencias a la cocina y la vivienda, desconocidas de manera completa por los hombres. Más alIá de las tramas sencilIas había una intrahistoria de la vida cotidiana con las múltiples restricciones impuestas a la mujer de esta clase social. La caracterización seguía la forma de vida de estas mujeres y no su individualidad, con las resultas que las heroínas eran las sobrevivientes, las que habían tenido una vida lIena a pesar de la institución deI matrimonio que, en teoría si no en práctica, era una forma de esclavitud perpetua donde la mujer pasaba de servir a su padre y hermanos a servir a su marido e hijos, junto con sus hijas y las mujeres deI servicio. La narrativa de esta esfera de mujeres se concentraba en cómo transcender estas condiciones de vida y expresarse en relaciones amorosas y con creatividad. 4

4.

La crítica feminista estadou-

nidense Elaine Showalter reconoció hace quince anos que la situación cultural de la mujer tiene que ser el punto de partida para cualquier consideración estética de su obra. Escribe que las mujeres han sido consideradas como "camaleones sociológicos" que aceptan la elase, estilo de vida y cultura de sus familiares varones, pero que se puede discutir que las mismas mujeres constituyen una subcultura dentro deI marco de la sociedad y que han estado unidas por valores, convenciones, experiencias y conductas que afectan a cada individuo (V SHOWALTER, Elaine.

A Lilerature

oI' Their Own.

Princeton: Princeton Univ. Press, 1982, 3-36. 5.

EI esfuerzo de la artista esta-

dounidense Judy Chicago de concientizar a las mujeres sobre el trabajo estético que producen en

8US

propias casas ha

sido revolucionaria. La novela de Laura EsquiveI está escrita

Las posibilidades creativas para la mujer mexicana eran a través de la cocina, la costura, las labores bordadas y, por supuesto, la conversación, contar historias y dar consejos.5 Había algunas mujeres para las que escribir era una extensión natural de la conversación; si se conocen los códigos sociales de estas mujeres se puede leer estas novelas como un modo de vida dei siglo diecinueve en México. EI reconocimiento que Laura Esquivei hace de ese mundo y su lenguaje es parte de la herencia de mujeres con coraje que crearon una cultura de y para la mujer dentro de la reclusión social dei matrimo ni 0. 6

sadas de generación a genera-

Como agua para chocolate es una parodia de la literatura popular de mujeres dei siglo diecinue\'e. dei mismo modo que DOIl Quijote es una

tritiva y estéticamente agradable. Una cena donde las mujeres logran que los invita-

parodia dei género conocido como novela de caballerías. Ambas eran expresiones de cultura popular y creaban un espacio único para una parte de la población. La definición de parodia que uso es la de la representación de una realidad modelo, que es en sí una representación particular de una realidad. La representación paródica expone las convenciones dei modelo y pone en evidencia sus mecanismos a través de la coexistencia de los dos códigos en el mismo mensaje.7 Por supuesto que para que la parodia funcione a su más alto nivel de representación doble, tanto la parodia como el modelo paródico deben estar presentes en la experiencia de lectura. Esquivei crea esa dualidad

como un reconocimiento mexicano de esta forma artística de mujeres. Judy Chicago escribe: "Una cena donde las tradiciones de la familia son pación como el mantel hecho por la amada abuela y guardado con cuidado. Una cena donde las mujeres proveen un ambiente de comodidad. un arreglo elegante. y una comida nu-

dos estén cómodos y facilitan la comunicación entre todos. Una cena, una obra tradicional de mujeres, que requiere tanto de generosidad como de sacrificio personal" (V CHICAGO, Judy. Emhmiderinl! Our Heri-

talle. Garden City, NJ: DOllbleday, 1980,8-21; mi trad.). 6.

La novela y la película han

recibido numerosas resefias al-


La creatividad artistica de la mujer

rededor dei mundo. Cada crítico encuentra puntos de com· paración a la cultura local y, de modos diversos, expresafascinación o desrnayo a lo que él o ella lIama el realismo mágico de la novela o la película. Claro que realismo mágico es una categoría inventada por críticos que no son de nuestra América Latina. Las di mensiones de la realidad latinoamericana son parte de la tradición oral y la ereación híbrida de extrema heterogeneidad. La mejor reseiía latinoamerieana que yo he leído es la de Carmen Ramos Eseand6n (Receta

y femeneidad en Como al:ua para chocolate. fem.15.102 (1991): 45-48. BEN-PORAT, Ziva. Method in Madness: Notes on the Strueture of Parody, Based on MAD TV Satires. Politics Toda)' 1:245-72, 1979. 7

". SOUSTELLE, Jaeques. La vida

cotidiana de los aztecas. Tr. Carlos Villegas. México: Fondo de Cultura Económiea, 1970.

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de diversas maneras; primero, intitula su novela, Como agua para chocolate, que es no sólo en sí parte deI código lingüístico que quiere decir agua aI punto de hervir, y que se usa en México como símil para describir una ocurrencia o una relación que es tan tensa, caliente y extraordinaria que sólo se compara aI agua ardiendo que se necesita para la preparación de esa mexicanísima bebida que data deI siglo trece: chocolate. 8 Segundo, el subtítulo, tomado directamente deI modelo: "Novela de entregas mensuales con recetas, amores y remedios caseros." EI título y el subtítulo cubren el modelo y la parodia. Tercero, la lectora se encuentra aI abrir el Iibro, no con un epígrafe de una autoridad culta sino que con un proverbio tradicional mexicano: "A la mesa y a la cama, una sola vez se llama." EI grabado que decora la página es la tradicional estufa de cocinar deI siglo diecinueve. La cuarta y más explícita técnica paródica es que EsquiveI reproduce el formato de su modelo a través deI texto. Cada capítulo lleva el mes, la receta deI mes y la lista de los ingredientes. La narración que sigue es una combinación de instrucciones directas de cómo preparar el plato deI mes, mezclada con una relación de los amores en los días de la tía abuela de la narradora. La narración pasa de primera persona a la voz de tercera persona de la narradora omnisciente. Cada capítulo termina con la información que la historia continuará y un anuncio de cuál será la receta deI mes siguiente, es decir, el siguiente capítulo. Estos elementos que siguen aI modelo no son mera decoración. Las recetas y su preparación así como los remedios caseros y su aplicación son parte intrínseca de la historia. Por lo tanto, hay una relación simbiótica entre la novela y su modelo en la experiencia de lectura. Cada una se nutre de la otra. En este ensayo me interesa profundizar sobre la forma de vida deI sujeto humano, específicamente cómo se desarrolla el sujeto femenino en y a través de la lengua y su significación visual en el contexto específico de lugar y tiempo. Las imágenes verbales de la novela utilizan un elaborado sistema significativo de la lengua como un mundo hecho, una vi vencia. La imagen visual que expande la narrativa aI principio deI film, pronto toma su propio lugar como un sistema significante, no lingüístico, nutriéndose de su propio repertorio de referencialidad, y establece un modelo diferente deI sujeto humano que aquel elucidado sólo por la imagen verbal. Mi intención es examinar el sistema significante novelístico y el modelo así establecido y luego seguir con el sistema significante cinemático y su modelo. La voz narrativa o el sujeto hablante en la novela, se caracteriza a sí misma, como Emile Benveniste ha sefíalado, como la presencia viva que habla. La voz narrativa comienza en primera persona, hablando en el espafíol mexicano de conversación coloquial de una mujer deI norte de México, cerca de la frontera de los Estados Unidos. Como toda habla mexicana, está claramente marcada por un registro e indicadores socioculturales de la clase


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media. mezclando el uso coloquial con el espano!. El punto de entrada es siempre el mismo, una mujer dirigiéndose a otras, diciéndoles cómo preparar el platillo que está recomendando. Mientras cocina, es natural que la cocinera haga interesante la sesión contando una historia inspirada por la preparación previa de esta receta. Sin esfuerzo pasa de instructora culinaria en primera persona a narradora de historias, cambiando a tercera persona y, gradualmente, se apropia deI tiempo y lugar y refigura un mundo social. Surge una imagen verbal de la mujer perteneciente a la clase media rural: debe ser fuerte y más inteligente que los hombres que se supone la protegen. Debe ser piadosa, esposa y madre. Tiene que tener sumo cuidado en sus relaciones sentimentales y, de gran importancia, debe de estar en control de todo en su casa, lo cual quiere decir, esencialmente, la cocina y el dormitorio, es decir, comida y sexo. Hay cuatro mujeres en la familia: Elena, la madre, y sus tres hijas: Rosaura, Gertrudis y Josefita, llamada Tita. La manera de vivir dentro de los límites de este modelo está demostrada primero por la madre que se piensa la reencarnación deI modelo. La interpretación de Elena deI modelo es de control y dominio completo de toda su casa y de todos en su casa. Está representada a través de un filtro de asombro y temor, ya que la fuente narrativa es el diario-recetario de cocina de Tita, que lo empezó a escribir en 1910 cuando tenía quince anos, y que ahora nos es transmitido por su sobrina nieta. Las imágenes visuales que caracterizan a Mamá Elena deben entenderse como las que tiene de ella su hija menor, Tita, quien desde pequena ha sido transformada en su sirvienta persona!. Mamá Elena está presentada como una mujer autosuficiente. fuerte, con autoridad absoluta sobre sus hijas y sirvientes. especialmente Tita, quien desde su nacimiento ha sido destinada a la soltería porque tiene que cuidar y dedicarse totalmente a su madre mientras ésta viva. Mamá Elena cree en guardar las regIas, sus regIas. Aunque sigue las normas de su sociedad e iglesia, secretamente ha tenido una relación adúltera con un mulato y su segunda hija, Gertrudis, es el fruto de esa relación. Esta transgresión de las normas de conducta permanece escondida de todos, aunque hay rumores, pero Tita sólo descubre que Gertrudis es su media hermana después de la muerte de su madre. La tiranía impuesta sobre las tres hermanas es el modelo rígido, disenado sin clemencia por Mamá Elena y cada una de las tres hijas responde a su manera. Rosaura, la mayor, nunca duda de la suma autoridad de su madre y la obedece a ciegas; después de su matrimonio con Pedro se convierte en una insignificante imitación de Mamá Elena. Le falta la fuerza y la determinación de Mamá Elena y trata de compensar esta falta invocando el modelo de su madre como la autoridad absoluta. Por lo tanto, trata de vivir su vida reme-


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dando a Mamá Elena, pero no logra más que una débil imitación ya que ella misma no tiene autoridad alguna, Gertrudis, la segunda de las tres hijas, no reta a su madre pero responde a sus propias emociones y pasiones de una manera directa, no apropiada a su situación social. Esto la lleva a fugarse de su casa y de la autoridad de su madre. Después escapa deI prostíbulo donde había ido a dar y se une aI ejército revolucionario llegando aI grado de general, toma un subordinado como amante y después marido. Cuando regresa aI rancho de su familia va vestida como hombre y da órdenes como un hombre. Tita.la más jo\"en de las tres. se queja de las regIas arbitrarias de su madre pero no puede escapar hasta que temporalmente pierde la razón. Tita puede sobrevivir ya que transfiere su amor. alegría. tristeza e ira a la preparación de la comida. Las emociones y pasiones de Tita son el ímpetu para su expresión y acción pero no a través de las normas acostumbradas de comunicación sino que a través de la comida que prepara. Por lo tanto, puede consumar su amor con Pedro a través de su arte culinario: Tal parecía que en un extraiío fenómeno de alquimia su ser se había disuelto en la salsa de rosas, en el cuerpo de las codornices. en el vino y en cada uno de los olores de la comida. De esta manera penetraba en el cuerpo de Pedro, voluptuosa, aromática, calurosa, completamente sensual (57).

Está claro que esto es mucho más que comunicación a través de comida, o un afrodisiaco, ésta es una especie de transubstanciación sexual por la cual la salsa de pétalos de rosa y las codornices se han convertido en el cuerpo de Tita. Es así como la lectora, o ellector, lIega a conocer a estas mujeres como personas, pero sobre todo se involucra con el sujeto deI pasado que habla, representada por la sobrina nieta que transmite su historia y su arte culinario.

EI trabajo previo de Laura EsquiveI había sido como guionista cinematográfica. Su guión para la película Chido Guan, el Tacos de Oro (1985) fue nominado para un Ariel en México, premio que ganó acho afios después por Como uKua para chocolate. 9

La lectora recibe comida verbal para la refiguración imaginativa de la respuesta de una mujer aI modelo que se le ha impuesto por un accidente de nacimiento. EI cuerpo de estas mujeres es el lugar habitado. Las cuestiones esenciales de salud, enfermedad, prefiez, parto y sexualidad están atadas directamente en esta novela a las necesidades físicas y emocionales deI cuerpo. EI preparar y comer es la representación simbólica deI vivir y ellibro de cocina de Tita da a su sobrina Esperanza, y a la hija de ésta, la creación de un espacio propio de mujer en un mundo hóstil. La adaptación fílmica no sólo ha sido escrita por la autora de la novela, sino que en este caso el escribir este guión de la película representa un regreso de Laura EsquiveI aI género más practicado por ella antes de escribir la novela. 9 Hay muchas indicaciones de factores cinematográficos en la novela sobre todo de numerosos cortes y fade-outs de la historia que dan prominen-


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cia a la preparaci6n de comida. Ellenguaje visual de la cámara es intruso y puede envolver a su sujeto en un lenguaje visual que es el de un voyeur, o puede reemplazar la referencialidad verbal y envolver aI vidente por completo en una corporalidad concreta. Por ejemplo, la prirnera escena aI comenzar la película llena la pantalla con una cebolla que se está cortando y que sumerge ai vidente en la preparaci6n de comida de una manera que ninguna palabra hablada puede igualar por su efecto inmediato. De igual manera, las numerosas escenas enfocadas en preparar, servir y comer los alimentos, elevan el dominio de la presentaci6n de preparar comida y comerIa tanto a una de consumo y ritual social. Podemos hacer un contraste de estas imágenes y este énfasis en la alegría, sensualidad y hasta lujuria de comer la comida mexicana de la cocina de Tita con las escenas de los monjes comiendo en El nombre de la rosa de Annaud lO o con la carne cru da en el refectorio deI monasterio donde el énfasis reside en la negación deI cuerpo a través de moritificaciones. Por otra parte, la película La fiesta de Babete de Gabriel Axel ll contiene los dos polos opuestos entre gratificaci6n y mortificaci6n deI cuerpo. Las dos hijas deI pastor protestante substituyen a la vida con la práctica religiosa y comen para castigar aI cuerpo; de repente, están expuestas ai refinamiento de comida como arte, placer y gratificaci6n. En el film Como agua para chocolate la preparaci6n de la comida está expresada visualmente y el consumo de la comida se ve en la cara de los que comen, pero hay que enfatizar que hay una gama completa de efectos aquí que van deI extasis a la nausea. Quizás la diferencia más grande entre la novela y el filmo está en que hay en la película un intertexto que evoca el cuento de hadas de Cenicienta aI usar las apariciones fantasmales de la madre y aI hacer que su muerte sea el resultado deI as alto aI rancho por los revolucionarios. En la novela ella muere mucho después deI ataque y languidece en una casi Iocura, convencida de que Tita la está tratando de envenenar. AI recortar en el film la muerte de Mamá Elena a un episodio violento y hacer que su espectro regrese a amenazar a Tita hasta que Tita pueda renunciar su herencia, el film hace de Tita una especie de Cenicienta, víctima de abuso personal. En la novela la rigidez y frialdad de Mamá Elena es ante todo sociocultural y no especialmente dirigido a Tita como víctima. El intertexto visual en lenguaje de cuento de hadas crea un subtexto efectivo en la pelicula subrayando la opresión de la protagonista y su transcendencia mágica. En vez de la madrina hada, Tita tiene la voz de Nacha, la cocinera de la familia que la ha criado desde su nacimiento entre los aromas y sonidos de la cocina. En lugar de la transformación deI vestido de gala y carroza para ir aI baile deI principe, Tita puede hacer el amor a través de la comida que prepara; sin embargo, también puede provocar tristeza y una aguda incomodidad. Tita logra que Pedro no tenga relaciones sexuales con

10. The Name of lhe Rose. Dir. Jean-Jaeques Annaud. ltaliaAlemania-Francia, 1986. 130 mino 11. Babená Feast. Dir. Gabriel Axel. Dinamarca, 1987.

102min.


La creatividad artistica de la mUJe~

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Rosaura aI asegurarse que ésta esté gorda, tenga mal aliento y expida olores nauseabundos. La primera aparición fantasmal de Mamá Elena ocurre una hora después deI principio de la película y Mamá Elena tiene aquí la ventaja aI amenazar maldecir aI hijo que se supone Tita espera. La confrontación final entre Tita y el fantasma ocurre diez minutos después de la primera aparición. Tita vence aI fantasma aI revelar que sabe que Gertrudis es ilegítima y aI declararle a Mamá Elena que la odia por todo lo que no ha sido para el1a. EI lenguaje visual deI film logra invocar imágenes de provocación, desprecio y abuso que no están en la novela. A media película hay cinco minutos en que vemos a Tita servir personalmente a Mamá Elena. Tita es la única que debe asistirla en su bafio y en su aseo personal. EI abuso despótico de Tita por Mamá Elena está claramente invocando la imagen de la madrastra cruel. La intermediaria mágica no es la bel1a hada en traje de gala sino que es la viejecita arrugada, Nacha, que dió a Tita el amor que Mamá Elena le negó. La cara y voz de Nacha guian a Tita. Es Nacha la que le dice que use las rosas que Pedro \e regaló para preparar la salsa de pétalos de rosa para las codornices. Y es Nacha quien prepara la a\coba para la consumación deI amor entre Tita y Pedro aI fin de la película. Las fuerzas mágicas de Tita están todas relacionadas con la preparación de los alimentos, la excepción siendo la kilométrica cubierta de cama que el1a teje en sus largas noches de insomnia. La cocina de Tita controla el modo de vivir de los habitantes de su casa porque la comida que el1a prepara como una extensión de el1a misma se consume por todos. La culminación de este proceso de comida como arte y comunicación es comida como tomunión. La transubstanciación de las codornices en salsa de pétalos de rosa en el cuerpo de Tita es aI mismo tiempo parte de la doctrina de la iglesia católica romana en que la hostia de comunión se convierte en el cuerpo y sangre de Cristo pero, a un nivel más profundo, es la realidad psicológica de todas las mujeres que han alimentado a un bebé. Cuando el bebé Roberto pierde a su nodriza, es Tita quien lo alimenta aunque no ha parido. Sus pechos se l1enan de leche no sólo porque el1a hubiera querido ser la madre de este bebé de Pedro, pero porque la criatura necesita comer y el1a es la proveedora de alimentos. La vidente deI film desarrolla su capacidad expresiva aI mismo tiempo que aumenta su experiencia afectiva. Las mujeres mexicanas que ven la película y, hasta cierto punto, las mujeres latinoamericanas reviven una historia de familia. Esto pasa no sólo por los fuertes lazos culturales entre las mujeres de América Latina en este siglo, que tanto la novela como la película presentan, sino que también y quizás principalmente por el uso mesurado deI modelo paródico. EI intertexto de revistas de mujeres y los amores, pruebas y tribulaciones narradas en las historias que publicaban son utilizadas por Laura EsquiveI como un código discursivo que trasciende diferencias regionales. Los registros sociales, las formas de dirigirse a otros, ellenguaje de las


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mujeres, se pierde un poco en la traducción a otras lenguas, ya que como aI cocinar el substituir ingredientes cambia el sabor. La representación de las mujeres en esta novela y película toca esa reserva de significado que es el cuerpo humano descrito, visto y, en un nivel más profundo, comprendido como el origen de la identidad. Las ideas de Giles Deleuze sobre ellenguaje de represión sexual aumentan considerablemente el peso de una segunda lectura de la relación entre Mamá Elena y Tita. La dominante imposición de la madre de una rotina y trabajo contínuo en la casa, tiene el resultado superficial de desexualizar la situación tan cargada que se crea cuando Pedro y Rosaura comienzan su vida de casados en el rancho con Mamá Elena y Tita. La obsesión de Pedro por el cuerpo de Tita y el sentimiento de Tita de ser una mujer castrada, crea la tensión sexual. La sexualidad nunca está reconocida, denotada o manifestada. Es sólo una alusión, una chispa de deseo aI pasar cerca el ser amado, pero en esta casa toma un lugar más importante que en otra casa donde estuviera reconocida. Lo más que se niega la sexualidad, lo más que la energía de desexualización tiene que aplicarse. Lo más que las actividades de Tita se visten con una febril sexualidad simbólica lo más que la lectora se fija con atención en todos los gestos, todas las indicaciones que sefialan la atracción sexual, deseo, pasión, obsesión y, finalmente, fuego. Por lo tanto, se puede proponer que Mamá Elena, muy a su pesar, es la incitadora de la sexualización de las acciones de Tita y lleva la atracción primordial de un joven hacia una jovencita a convertirse en obsesión. Por su parte, Tita trata de escapar de la condena de castración impuesta por su madre. Lucha por escaparse aI sublimar su deseo a través de su cocinar, de alimentar con su pecho a su sobrino Roberto y, cuando esto le es negado, a fugarse temporalmente a través de la locura. Puede salir de la maldición castrante después de la muerte de su madre y comprender la represión sexual de Mamá Elena de la cual ella fue la infeliz víctima. La separación de la comida de la fisiología deI cuerpo humano tiene su paralelo cuando se niega la sexualidad cuyo resultado es negar que las funciones sexuales deI cuerpo también son naturales. Este rechazo deI cuerpo es el hilo que une a la novela. Desde su nacimiento Titaha sido predestinada por su madre a ser negada las funciones sexuales normales: no podrá hacer el amor, tener un hijo, alimentarlo, sentir afecto íntimo y, mucho menos, placer. Las razones de Mamá Elena son en parte conveniencia propia y en parte, se puede suponer, venganza por su propia frustración sexual. Desde su adolescencia hasta su muerte Tita se revela contra esta condena. Transmite la sensualidad de una joven enamorada a la comida que prepara, aI ambiente que crea alrededor de sí. La preparación de la comida está directamente ligada a su sexualidad negada. Cuando descubre que sus pechos se han llenado de leche, en contra de la fisiología deI cuerpo, no comprende cómo es que puede alimentar a la criatura, pero sí sabe que ha tenido uno de los más profundos


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placeres, sólo sobrepasado por el acto sexual. Cuando prepara el banquete para el bautizo de su sobrino lo hace con tanto amor que la comida llena a todos los que la comen eon un sentido poderoso de alegría, La fragancia deI cuerpo de Tita no es sólo el rico olor deI jazmín sino que está mezclada con los aromas de la comida,

12.

Un reciente estudio de Gas-

tón Lill sobre la película ofrece una interesante interpreta~ ción neomarxista. Aunque las generalizaciones que hace sobre la muy particular configuración de la estructura de las elases sodales mexicanas. y de las relaciones raciales, son obvias factores demográficos, Lillo ignora tres puntos básicos acerca de la película que, creo yo, por completo mitigan su opinión negativa: 1) el guión cinematográfico es una adaptación de la novela y usa técnicas narrativas cinematográficas para presentar una historia de vida y no una épica de la revolución mexicana; 2) la novela es una parodia de la literatura de mujeres deI sigla diecinueve aI mismo tiempo que da un ímpetu a la recuperación de un espacio para la mujer; y 3) el modo de vida en la frontera entre México y los Estados Unidos desde el período de 1850 hasta el tiempo de la narrativa (1895-1934) era uno de constante ir y venir entre los dos lados de la frontera por las miles de familias que habían sido arbitrariamente separadas por la frontera y por muchos nuevos residentes de ambos países. Es sólo en los anos posteriores a la segunda guerra mundial cuando la frontera se ha convertido en una barrera. (Ver LILLO, Gastón. El recielaje deI melodrama y sus repercusiones en la estratificación de la cuJtura.

Archivo.l' de la filmoteca. 16:65-73,1994.

Por último, aI fin de la película, Tita se da cuenta que Pedro muere de la emoción deI orgasmo sexual que acaba de sentir y deI que ella no había participado por haberse frenado ante la poderosa sensación y siente remordimiento. Entiende entonces que comiendo los fósforos que lohn Brown le había dado y pensando de cada momento sensual en que su cuerpo ha tocado el de Pedro. podrá reconstruir el orgasmo que había resistido. Uno por uno se come los fósforos y recuerda un beso, una caricia y, lentamente, el acto sexual da a su cuerpo sensaciones hasta que el orgasmo explota en ella. Esta masturbación que enlaza la memoria sensual con comer, culmina en una especie de climax amoroso. Mujeres de otras culturas ~ otras lenguas pueden tener una relación de empatía con Tita, su cocina. su amor y su vida. Hombres de otras culturas, y sobre todo mexicanos y latinoamericanos en general, tendrán la mayor dificultad en sentir la experiencia de la película. y son los que más tienen que aprender. Tienen que ganar acceso aI código expresivo de las imágenes verbales y visuales que son los códigos intrahistóricos de sus madres, esposas e hijas. Si no pueden lograr acceso aI sistema expresivo no tendrán acceso a la experiencia afectiva de estas vidas. La imagen de alimentar el cuerpo, tanto en la novela como en la película, nos provee con los medi os de articular la experiencia de cocinar, comer, hacer el amor, dar nacimiento, etc. en modos antes insospechados y, por lo tanto, permite a los hombres vislumbrar la realidad de la mujer. La recuperación feminista de creatividad artística dentro de los límites de la casa, y especialmente la cocina y el dormitorio, no está presentada por Laura Esquivei con un argumento ideológico, pero más bien como un palimpsesto intertextual que es la marca dei arte postmodeno.1 2 Quiero concluir con tres observaciones deI arte feminista postmoderno: I) éste no es un movimiento de protesta sino que es una celebración deI espacio propio de la mujer que puede haber estado escondido en el pasado pero ahora está abierto a todas y todos; 2) aI centro deI postmodernismo está la constatación de creatividad en la lectora y lector y és to hace de la intertextualidad el medi o de proveer un contexto interpretativo, en el caso de EsquiveI es la cocina y el dormitorio de nuestras abuelas; 3) la crítica feminista ha trascenpido la necesidad de ir de cacería entre los numerosos misóginos dei patriarcado, en nuestra etapa postfeminista el reto es celebrar la creatividad de la mujer en el dominio completo de la aventura humana, desde las llamadas artes decorativas a las bellas artes y la ciencia.



o leitor, de Machado de

Assis a Jorge Luís Borges

Regina Zilberman

Estudo ou romance, isto é simple.'~ntl' um livro de verdades, um episódio singelamente contado, na confabulação ínmrw dos espíritos, na plena confiança de dois coraçíies que se estimam e se merecem. Machado de Assisl Que otros se jacten de las páginas que hall escriro; a mi me ellorgullecen las que he leído. Jorge Luis Borges 2

1. MACHADO DE ASSIS. Confissões de uma viúva moça. In: Contos fluminenses. São Paulo: Mérito, 1959. p. 187.

BORGES, Jorge Luis. Um lector. Elogio de la sombra. In: Borges, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. p. 1016. 2.

JAUSS, Hans Robert. Literatur;:eschichte ais ProvokaÚon. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e HistlÍria da Li-

3.

teratura. São Paulo: Ática,

1989. [SER, Wolfgang. Der Akt des Lesens. Theorie ãsthetischer Wirkung. München: Fink, 1976. 4.

A

ascensão da Estética da Recepção, ao final dos anos 60 e durante os anos 70, conferiu maior transparência teórica ao exame dos processos de leitura pressupostos pelos textos literários, Numa de suas vertentes, aquela liderada por Hans Robert Jauss, a Estética da Recepção encarou o problema da leitura desde o ponto de vista das repercussões que uma dada obra alcança ao longo do tempo, seja enquanto impacto sobre o público, seja enquanto ação sobre a criatividade de outros escritores, Com isso, propiciou a emergência de novas teses sobre a História da Literatura e a Literatura Comparada, pois deixou de ver a primeira como seqüência ininterrupta de fatos estéticos ordenados cronologicamente e a segunda como influência de uma tradição artística sobre outra) Noutra vertente, que tem Wolfgang Iser como seu principal porta-voz, a leitura constitui o modo de ser de uma obra literária, que só se realiza quando absorvida e decrifrada por seu destinatário; eis por que ela trata de prever seus modos de compreensão e interpretação, delineando o leitor implícito que tem em vista, papel transferido ao leitor real, a quem compete concretizá-lo na prática,4 De um modo ou de outro, a Estética da Recepção alterou a perspectiva com que se passou a encarar as relações entre narrador e leitor e forneceu novos elementos para se refletir sobre o caráter comunicativo da obra literária, Mais importante é que ela relativizou compartimentações tradicionais, ao


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liberar as obras de suas determinações de época ou de lugar. Em outras palavras, propôs que, ao invés de se pensar as criações literárias na sua relação com seu período ou espaço geográfico de produção, como faz a História da Literatura ao associar as obras às regiões onde foram escritas ou ao momento quando foram publicadas, procure-se examiná-Ias enquanto resposta a uma questão fundamental: como pressupuseram elas a comunicação com seu interlocutor principal, o leitor? Aresposta a essa pergunta supera as condições de produção de um texto, pois todos supostamente querem dialogar com o público; e supera igualmente as delimitações de época e lugar, porque outra ambição da obra literária é permanecer válida. quer dizer, legível, para além de seu tempo e do espaço geográfico em que foi concebida e realizada. Machado de Assis e Jorge Luís Borges foram dois escritores que se depararam com essa questão e tematizaram-na em seus textos. Concebem uma imagem do leitor, mas também introduzem-na na tessitura do texto. Ao fazê-lo, revelam que estavam interessados em manter vivo e aceso o diálogo com o leitor, o que aponta para o caráter social de suas obras. Com isso, desfazem a crítica de que muitas vezes foram alvo, acusados de se afastarem de questões políticas marcantes no tempo em que viveram ou até de assumirem posições conservadoras. Ao fertilizarem seus textos com uma proposta criativa e multifacetada de comunicação com o leitor, propõem outro modelo de participação social. Simultaneamente, resolvem um problema candente da cultura latino-americana, que, por decorrer do processo de colonização européia e tender a reproduzi-Ia, pesquisa de modo obsessivo sua originalidade, Eles revelam que o encontro da autenticidade da literatura não consiste na representação da nacionalidade ou das peculiaridades locais, contrapostas às que migraram do Velho para o Novo Continente. Consiste, isto sim, na proposta de um confronto com o leitor. agudizando suas percepções e fazendo-o entender a literatura, por extensão. o mundo que o circunda, independentemente do representado no texto ser conhecido ou ter componentes realistas. Eis por que se analisam duas criações desses escritores. o poema "Pálida Elvira", de Machado de Assis, e o conto "Tema dei traidor y dei héroe", de Jorge Luís Borges, que têm em comum não apenas a tematização da relação entre o leitor e a obra ou o leitor e a vida. mas também o fato de que rejeitam os princípios da mimese nativista. Lidando com figuras fictícias de tempos e espaços distantes, estão próximos porque seu objeto somos nós mesmos, seus leitores reais. O poema "Pálida Elvira", publicado em 1870, no livro Falenas, constitui-se de 97 estrofes, cada uma contendo oito versos decassílabos, num total de 776 linhas. 5 Nele, um escritor, misto de poeta e pesquisador de manuscritos antigos, apresenta a história de Elvira, moça que, com o tio, o velho Antero (p. 184), habita numa casa, junto à encosta de um outeiro (p. 181), à beira de

5 MACHADO DE ASSIS. Pálida Elvira. Falenas. In: Machado de Assis. Poesias. São Paulo: Mérito. 1959. p. 180-212. To-

das as citações provêm dessa edição; indicaremos apenas as páginas onde se encontram. O poema foi publicado originalmente em 1869. no Jornal das Famflias, revista patrocinada pela editora Garnier; no ano de 1870, Machado de Assis incluiu-o no volume de poesias que denominou Falenas.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 109

um lago. O poema é narrativo e, ao longo dos seus versos, conta o romance da moça e de Heitor, poeta que aparece em casa de Antero, promete casar com a sobrinha, seduz a jovem e foge. Depois de muito vagar pelo mundo, Heitor retoma, para descobrir que Elvira morrera, mas lhe deixara um filho. Desconsolado, o rapaz se atira às águas do lago e morre. A última estrofe, logo após referir o suicídio de Heitor, é interrompida, porque o manuscrito, fonte de informações do narrador, termina abruptamente. Diz a estrofe: Pouco tempo depois ouviu-se um grito, Som de um corpo nas águas resvalado; À flor das mgas veio um corpo aflito. Depois ... o sol tranqüilo e o mar calado. Depois ... Aqui termina o manuscrito, Que ora em letra de fôrma é publicado, Nestas estrofes pálidas e mansas. Para te divertir de outras lembranças. (p. 212)

Esta estrofe, a de número CVII, encerra um diálogo encetado no primeiro verso do poema. Aqui, o narrador se dirige à leitora amiga (p. 180), em que supõe de imediato uma série de sentimentos e sensações, pois situa a abertura no texto no horário crepuscular, quando (... ) no ocidente / surge a tarde esmaiada e pensativa e vem apontando a noite, e a casta diva / [sobe] lentamente pe lo espaço.(p. 180) Que o cenário se apresente nesses termos é importante, porque determina as condições para a leitora entender a interioridade de Elvira, protagonista da narrativa a seguir. Porque essa é uma hora de amor e de tristeza, a leitora pode voar às lúcidas esferas, e então entender Elvira Que assentada à janela, erguendo o rosto, O V()o solta ti alma que delira E mergulha IlO azul de um céu de agosto; Entenderás então porque suspira, Vítima já de um íntimo desgosto, A meiga virgem, pálida e calada, Sonhadora, ansiosa e namorada. (p. 181)

Assim, a última frase do poema encerra o diálogo começado na primeira; mas, ao mesmo tempo, dá-lhe outro sentido. O narrador invoca de início uma leitora amiga que, diante da natureza sugestiva, divaga e se alça a vôos poéticos, as lúcidas esferas citadas na segunda estrofe, razão pela qual pode compreender Elvira e se comunicar com a personagem, estabelecendo uma ponte com ela, condição primeira para o acompanhamento e leitura da história subseqüente, apresentada pelo narrador amistoso. Este, porém, ao final, apresenta outra faceta de sua amizade: ele deseja distrair o leitor, afastando-o de outras lembranças. Confessa ter composto um texto ilusionista, que, se faz


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voar, como fazem a leitora e Elvira, também retira-as do contato com a realidade imediata, talvez menos desejável, porém mais dura. Eis a contradição aparente do poema de Machado de Assis, nascida da proposta do texto, qual seja, o diálogo entre o narrador e o leitor. Este tipo de interlocução não é exclusivo desta obra, estando presente em outros escritos de Machado de Assis, autor que amplia as possibilidades de representação de situações de leitura numa obra literária. Uma dessas possibilidades diz respeito à apresentação de cenas de leitura, como ocorre em vários dos Contos fluminenses,61ivro coetâneo de "Pálida Elvira". Nesse, ou nas novelas publicadas no período e não aproveitadas naquela coletânea, as personagens, se não são leitoras exemplares, têm suas preferências demarcadas, Paulo e Virgínia sendo a mais constante e mais característica, como se verifica no trecho abaixo, extraída de um dos textos mais antigos de Machado de Assis, o conto "Questão de vaidade", de 1864: Na sala. sobre a mesa. estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia Um lenço marcado com a.firma de Sara. atirado sobre aspllhas abertas. para marcar a página. indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre. 7

Outra técnica de Machado de Assis leva-o a seguidamente invocar o leitor de seu próprio texto, estabelecendo com ele afinidade e parceria, segundo um companheirismo que coloca a ambos, narrador e leitor, acima da média das personagens e, por conseqüência, acima da situação concreta representada no texto, que, pelo seu realismo, está muito próxima da experiência existencial do público do escritor. Essa familiaridade pode ser verificada no mesmo "Questão de vaidade", em que o narrador imagina uma cena em que ambos, ele e o leitor, este um indivíduo perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio afim, compartilham um ambiente comum, íntimo e qualificado para a apresentação de histórias, ficcionais ou verídicas: Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro paredes de uma sala; o leitor assentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa. à moda americana. eu a.fio comprido em uma rede do Pará que se balouça voluptuosamente. à moda brasileira. ambos enchendo o ar de leves e capriclwsasfumaças. à moda de toda gente. Imagine mais que é Iloite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do jardim. por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte. Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água parafazer uma tintura de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa .fiJlha da Índia. Se não. pode mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção. Ora. como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda a planície do passado, apanhando afolha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.

Contos fluminenses reúne contos que Machado de Assis publicou no Jornal das Famílias, da Garnier, entre 1865 e 1869. O livro foi lançado em 1870.

6.

7 Machado de Assis. Questão de vaidade. In: Machado de Assis. Histrírias românticas. São Paulo: Mérito, 1959. p. 30-31.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 111 Do passaiÜJ vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam com aquela abundância de coração própria dos m()Ços, dos namorados e dos poetas. Finalmente, nem o futum nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperanças e da nossa confiança. Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar a nossa viagem pelo tempo. é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos sono. mas cada qual de nús. a\'ivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja estar acordado. Então o leitor. que é perspica: e apto para sofrer uma narrativa de princípio a .fim. descobre que eu também me entrego {UJ5 contos e novelas. e pede que IheflJrje alguma coisa do gênero. E eu para ir mais ao encontro iÜJS desejos do leitor imaginoso. não lhe forjo nada. alinhavo alguns episódios de unia histôria que sei. história verdadeira. cheia de interesse e de vida. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em papel amarelado. e antes ck começar a narrativa. leio-as. para orientá-lo no que vou lhe contar. O leitor arranja as suas pernas. muda de charuto. e tira da algibeira um lenço para o caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E. feito isto. ouve as minhas cartas e a minha narrativa. Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que mi ler como uma conversa à noite. sem pretensão nem desejo de publicidade. (p. 7-9)

"Pálida Elvira" e "Questão de vaidade" partem da mesma situação inicial: narrador e leitor estabelecem uma relação amistosa e igualitária, condição para a audição da história. Além disso, o leitor está posicionado num ambiente apropriado ao entendimento da narrativa, o que, somado ao privilégio de se equiparar ao narrador, confere-lhe superioridade. "Questão de vaidade", contudo, não se encerra pela ruptura indicada a propósito de "Pálida Elvira". Depois de encerrar a história, diz o narrador à guisa de conclusão: CONCLUSÃO

Depois de contar e.vta história. o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou café. e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto. Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as idéia.v. porventura melancólica.v. que a minha narrativa tenhafeifo nascer. (p. 89-90) .

Eis aí a primeira razão para a ruptura: enquanto que o narrador de "Questão de vaidade" faz o relato para um ouvinte masculino, o de "Pálida Elvira" escreve para uma leitora amiga. Além disso, ele vai aos poucos desfazendo essa amizade por estabelecer mediações que o distanciam da destinatária do texto. A primeira dessas mediações foi referida: decorre da divisão de papéis sexuais, sendo que leitores homens e leitoras mulheres comportam-se de modo diferente, e a leitura conforme o modelo feminino não aparece como aconselhável.


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A leitora feminina, a quem se dirige o narrador. é aquela capaz de entender Elvira. Mas, ao contrário do leitor perspicaz e apto de "Questão de vaidade", que, junto com o narrador, analisa personagens e situações relatadas,8 a leitora de "Pálida Elvira" só pode entender a protagonista por se identificar a ela, por ter vivido situações semelhantes, portanto, por experimentar o assunto pelo lado emocional. Essa concepção de leitura é tão forte no texto, que se reproduz na sua interioridade: também Elvira é leitora, e leitora de Lamartine, o mesmo que amou uma Elvira e escreveu o poema "Le Lac", inspirador dos sentimentos manifestados pela personagem do poema de Machado de Assis: Sobre uma mesa havia um livro aberto; Lamartine, o cantor aéreo e vago, Que enche de amor um coração deserto; Tinha-o lido; era a página do Lago. Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto, Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago; Chorava aos cantos da divina lira ... É que o grande poeta amava Elvira! (p. 182)

A trajetória posterior de Elvira é determinada por essa circunstância: admiradora de Lamartine, apaixona-se por um poeta, o jovem Heitor que aparece em sua casa e conquista seu coração. A situação é prevista antes de que o rapaz apareça, pois a atitude da moça perante o amor é determinada pela sua leitura predileta: Elvira! o mesmo nome' a moça os lia. Com lágrimas de amor, os versos santos. Aquela ete'f"l e lânguida harmonia Formada com suspiros e com prantos; Quanto escutava a musa da elegia Cantar de Elvira os mágicos encantos, Entrava-lhe a voar a alma inquieta, E com o amor sonhava de um poeta. Ai, o amor de um poeta! anUir subido! Indelével, puríssimo, exaltado, Amor eternamente convencido, Que vai além de um túmulo fechado, E que através dos séculos ouvido, O nome leva do objeto amado, Quefaz de Laura um culto, e tem por sorte Negrafoice quebrar nas mãos da morte. (p. 183)

A identificação é a atitude que pauta a leitura de Elvira, criando-lhe expectativas para o futuro e fazendo-a entender o mundo e as pessoas a partir

8. No conto Questão de vaidade, são comuns expressões do narrador dirigidas ao leitor, como a que se encontra na p. 37: Perguntará o lei/or como é que um homem de tão bom senso como Pedm Elói parecia tão amigo de Eduardo.


o leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges 113 dos livros consumidos. Não é outra, porém, a atitude da leitora de Machado: também ela, conforme previa a abertuda do poema, continua compreendendo o desenrolar da história de Elvira desde suas experiências pessoais, facultando a aproximação entre as duas criaturas, a protagonista e a leitora, com a conseqüente identificação. Sem esse tipo de afinidade, não há meios de se decifrarem os acontecimentos presenciados no texto, só assim pode-se saber por que, visto pela primeira vez o poeta Heitor, a jovem por ele se apaixone perdidamente: E trava-lhe da mão, e brandamente Leva-o junto d'Elvira. A moça estava Encostada à janela, e a esquiva mente Pela extensão dos ares lhe vagava. Voltou-se distraída, e de repente, Mal nos olhos de Heitor o olharfitava, Sentiu ... Inútilfllra relatá-lo; Julgue-o quem não puder exp 'rimentá-lo. Entra a leitora numa sala cheia; Vai isenta, vai livre de cuidado: Na cabeça gentil nenhuma idéia, Nenhum amor no coração fechado. Livre como a andorinha que volteia E corre loucamente o ar azulado, Venham dois olhos, dois. que a alma buscava. Eras senhora? ficarás escrava' (p. 189-190)

Tanto a leitora de Machado, interlocutora do poema "Pálida Elvira", quanto a leitora de Lamartine, a Elvira do poema, não estabelecem o devido distanciamento entre o lido e o vivido. O leitor masculino age de modo diferente, e a definição dessa segunda atitude de leitura corresponde a outra das mediações entre o narrador e a leitora amiga, determinantes da ruptura verificada ao final do texto. Igualmente o leitor masculino atua nos dois planos construídos pelo poema, um deles sendo o do diálogo entre o narrador e seu destinatário, o outro sendo o das personagens, elas igualmente leitoras. Portanto, "Pálida Elvira" pressupõe também ser lido por representantes do sexo masculino; estes, todavia, não são genéricos, como a leitora amiga, mas primeiramente profissionais da leitura, vale dizer, críticos literários. Eis por que quando o narrador se dirige ao leitor homem refere-se à sua atividade, como no trecho a segUIr: Não me censure o crítico exigente

O ser pálida a moça; é meu costume Obedecer à lei de toda a gente Que uma obra compije de algum volume. (p. 182)


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ou ao fato de dominar as regras de poética, circunstância própria ao leitor mais qualificado como é o leitor profissional:. (... ) Perdão, leitores. Eu bem sei que é preceito dominante Não misturar comidas com amores; Ip. 1851

o mesmo se passa no âmbito da história narrada: Antero, o tio de Elvira, em casa de quem vive a moça e onde chega o jovem Heitor. é Erudito etilôsofo pn!fundo, Que sabia de cor o vel/w Homero, E compunha os anais do Novo Mundo; Que escrevera uma vida de Severo, Obra de grande tomo e de alto fundo; Que resumia em si a Grécia e Lácio, E num salão falava como Horácio; (p. 184)

É O mesmo Antero quem diz a Heitor que um bom poeta é hoje quase um mito (p. 189), frase que o coloca no mesmo paradigma do leitor-homem sisudo, que rejeita obras como a que o narrador lhe oferece agora: (... ) Neste lance Se o meu leitor é já homem sisudo, Fecha trallqüilamente o meu romance, Que niio sen'e a recreio nem li estudo; (p. 183)

Homens sisudos, críticos exigentes. eruditos não são leitores de "Pálida Elvira". Aproximam-se do texto por exigência da profissão ou do gosto. mas se afastam dele porque a obra não corresponde às suas expectativas. Não serve para o estudo, é demasiadamente fiel ao cânone do gênero. falta-lhe a densidade dos clássicos - preocupações, todas essas. da leitura mas.::ulina. Aqueles não são parceiros para um texto dessa natureza. par.::eria a ser transferida para a mulher, mas, ao fim e ao cabo, indesejada pelo narrador. A presença da ironia é a última das mediações empregadas. a que deixa a leitora amiga fora do campo das pretensões do narrador. Que a ironia recorta o texto sugerem-no as citações anteriores, onde se verificam o uso exagerado da linguagem empolada do Ultra Romantismo, o excesso de exclamações e a presença de personagens estereotipadas, como a virgem pálida, o sedutor leviano e depois arrependido e o tio severo, porém acolhedor. Porém, ela se aplica com mais intensidade, sobretudo quando o narrador desconstrói as regras de composição de narrativas sentimentais. Procedimentos diferentes possibilitam a realização dessa tarefa, como o fato de o narrador conferir chão materialista à história e às personagens:


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(. .. ) Eu não vi, nem sei se algum amante Vive de orvalho ou pétalas deflores; Namorados estômagos consomeml Comem Romeus, e Julietas comem. (p. 185)

Ou a confissão de que apenas segue a nonna da poética do gênero escolhido para desmascará-la, confonne acontece na cena em que, logo após ter aureolado o poeta Heitor, comenta: Demais, era poeta. Era-o. Trazia Naquele olhar não sei que luz estranha Que indicava um aluno da poesia. Um morador da clássica montanha, Um cidadão da terra da harmonia, (. .. ).

Um poeta! e de noite! e de capote! Que é isso, amigo autor? Leitor amigo, Imagina que estás num camarote Vendo passar em cena um drama antigo. Sem lança não conheço D. Quixote Sem espada é apócrifiJ um Rodrigo; Herói que às regras clássicas escapa, Pode não ser herói, mas traz a capa. (p. J88)

Ou ainda a observação de que precisa controlar seu discurso para não perder a atenção do leitor, sinal evidente de que tem pleno domínio sobre a matéria ficcional: Resumamos, leitora, a narrativa. Tanta estrofe a cantar etéreas chamas Pede compensaçüo, musa insensiva, Quefatigais sem pena o ouvido às damas. Demais, é regra certa e positiva Que muitas vezes as maiores famas Perde-as uma ambição de tagarela; Musa, aprende a lição; musa, cautela! (p. 198)

Todos estes são sintomas de que o escritor conhece as regras do fazer literário e pode desarticulá-las, sem perder de vista os objetivos de sua escrita, Ao mesmo tempo, indicam que, embora ele represente, dentro e fora do relato, leitores possíveis, não espera que seu leitor implícito se identifique com esses modelos, Com efeito, nem a leitora amiga, nem o homem sisudo parecem se situar no horizonte das expectativas de leitura de "Pálida Elvira", Da primeira o narrador se despede antes de a história terminar, porque, quando isto acontece, ele já tem outro sujeito leitor em mente; do segundo o narrador espera o


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abandono, pois, como o romance (. .. ) não serve a recreio nem a estudo, o "homem sisudo" condena tudo; / Abre um volume sério, farto e enorme, / Algumasfolhas lê, boceja ... e dorme. (p. 183) "Pálida Elvira" não se dirige nem a um, nem a outra, e sim àquele que, conhecendo as regras do gênero ultra-romântico sentimental e de aventuras, não mais acredita nelas, podendo então se distanciar o suficiente para se divertir com os efeitos obtidos por quem as critica e desconstrói. O poema foi efetivamente escrito para divertir de outras lembranças, como proclama o último verso. isto é. para afastar do conhecido e abrir caminho para novas experiências. Com isso, Machado contradiz igualmente a norma de leitura que está na base do comportamento da leitora amiga e de Elvira: a leitura não está aí para facultar a identificação e, assim, impedir o distanciamento que diverte e conscientiza. Leituras daquela espécie são virtualmente condenáveis, e não é para leitores desse tipo que Machado deseja escrever. Mas, como também não pode evitar os leitores disponíveis, sintetizados na leitora amiga, no homem sisudo e no crítico exigente, mostra que quem o lê - seja que for - não segue esse caminho, estando, pelo contrário, na direção certa desejada pelo escritor. A identificação é substituída pela pedagogia, e o leitor converte-se no bom aluno que vai acompanhar as pegadas designadas pelo mestre de leitura. Outra é a proposta apresentada por Jorge Luís Borges em "Tema dei traidor y dei héroe", conto, pertencente à coleção de Ficciones, publicada em 1944, em que se discute, por outro percurso, o lugar da leitura na vida das sociedade. O narrador se apresenta em primeira pessoa no parágrafo inicial do relato, para indicar que está imaginando escrever um texto com o argumento que resume a seguir. Conforme o plano ainda em esboço, um outro narrador, Ryan, bisneto do conspirador, mas heróico, Fergus Kilpatrick, quer escrever a biografia do bisavô. Aexecução do plano depende do deciframento do enigma relativo ao assassinato de Kilpatrick, eliminado en la víspera de la rebelión victoriosa que había premeditado y sofíado. 9 Ryan se detém nos eventos que precederam o assassinato de Kilpatrick, ocorrido num teatro, como os anúncios para não estar presente naquele local, os indícios de que seria traído, os presságios inexplicáveis racionalmente. O narrador crê encontrar aqui um paralelismo entre a história do bisavô e a de César, sendo induzido a supor una secreta forma dei tiempo, um dibujo de líneas que se repiten (p. 497). À teoria de que a história se repete a si mesma acrescenta outra: a história copia a literatura, pois outros eventos ocorridos na noite do crime reproduzem cenas de tragédias de William Shakespeare. Ryan conclui: Que la historia hubiera copiado a la historia ya era suficientemente pasmoso; que la historia copie a la literatura es inconcebible ... (p. 497). A investigação, contudo, não encerra nesse ponto: Ryan se volta à biografia de James Alexander Nolan, el más antiguo de los compafíeros del

'. BORGES, Jorge Luis. Tema deI traidor y deI héroe. Ficciones. In. Borges, Jorge Luis. Obra.l· completa,. Buenos Aires: Emecé Editores, 1974. p. 496-498. Todas as citações provêm dessa edição; indicaremos apenas as páginas onde se encontram.


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héroe (p. 497), e descobre que ele fora intérprete de Shakespeare e tradutor de Júlio César para o gaélico. Por ocasião da morte de Kilpatrick, havia sido incumbido de descobrir e revelar o traidor que se escondia entre os rebeldes irlandeses. Nolan denuncia o próprio Kilpatrick com provas irrefutáveis, e Kilpatrick não nega que tenha traído seus companheiros; pede apenas que seu castigo não prejudique a pátria. A solução surge de uma idéia de Nolan, que concebe o assassinato de Kilpatrick num teatro, para que o traidor, até aí figura idolatrada pelos irlandeses, morresse como um herói e não prejudicasse a rebelião. Para executar a idéia. Nolan precisa de um roteiro, encontrado no enemigo inglés William Shakespeare (p. 498): Repetió escenas de Macbeth, de Julio César. La pública y secreta representación comprendiá varios días. El condenado emrá en Dublill. discutiri, obrá, rezá, reprobá, pronunciá palabras patéticas y cada UIIO de esos actos que refZejaría la gloria, habia sido prefijado por Nolan. Centenares de actores colaboramn con el protagonista; el rol de algunosfue completo; el de otros. momentâneo. Las cosas que dijeran e hicieran perduran en los libros históricos, en la memoria apasionada de Irlanda. Kilpatrick, arrebatado por ése minucioso destino que lo redilll{a ." que lo perdia, lilás de una vez enriquecúi con aclOS y palabras improvisadas el texto de su juez. As{fue desplegándose en el tiempo el populoso drama, haSIll que el 6 de agosto de 1824, en un palco de .funerarias cortinas que prefiguraba el de Lillcolll. 1111 balaZl! anhelado entrá en el pecho dei traidor y dei héroe, que apenas pudo articular. entre dos efusiones de brusca sangre, algunas palabras previstas. (p. 498)

As investigações de Ryan não o levam apenas a descobrir que a morte de Kilpatrick consistia numa soma de punição e consagração, fornecendo à revolução emergente as personagens imprescindíveis ao sucesso: o herói vitimado e o criminoso não identificado, fator fundamental para incendiar a revolta contra o povo opressor, o inglês. Aprofundando a pesquisa, verifica que um lugar fora deixado para ser preenchido no futuro, o do próprio investigador que se deparasse com a verdade: Ryall sospeclw que el autor los intercalá para que una prsona, en el porvenir, diera con la \·erdad. Compreellde que él tambiénfárma parte de la trama de Nolafl ... (p. 498)

Talvez por essa razão resolva contrariar o roteiro e silenciar el descubrimiento, publicando un livro dedicado a la gloria dei héroe (p. 498); mas o narrador conclui, encerrando o relato: también eso, tal vez, estaba previsto. (p.498).

À semelhança do poema de Machado de Assis, o conto de Borges constrói-se sobre dois planos. Em "Pálida Elvira", os dois planos dividiam-se entre os leitores, o da leitora amiga, com quem dialogava o narrador, e o de Elvira, admiradora de Lamartine. No "Tema dei traidor y dei héroe", os planos repartem-se entre dois narradores; um emprega a primeira pessoa e


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confessa estar projetando um argumento que ya de algún modo me justifica, en las tardes inútiles (p. 496); o segundo é 'Ryan, mais comprometido que o outro, porque ambiciona redigir a biografia do heróico bisavô e resolver os enigmas que cercam seu assassinato. O primeiro narrador deixa claro que seu argumento lida com dados fictícios, tanto que, no início do segundo parágrafo, ainda não decidiu onde e quando situará a ação; escolhe a Irlanda e a data de 1824 para comodidad narrativa (p. 496). Ryan. por seu turno, está convencido de que lida com um fato histórico, verídico, empanado por um enigma cujo deciframento lhe cabe, deixando-o ainda mais nítido para seus leitores, patriotas como ele e admiradores da sorte de seu país. A descontinuidade entre os dois narradores repete um processo de "Pálida Elvira", não ao nível da leitura, mas ao nível da narração: ambos os narradores anônimos, o do poema de Machado e o do conto de Borges, tal como se apresenta no parágrafo inicial, desacreditam o fato relatado a seguir, gerando a intranqüilidade do leitor, que, por isso, se distancia do narrado. O segundo narrador do conto de Borges, o bem intencionado Ryan, se propõe, contudo, a interpretar a história, reexaminando o passado de seu país desde o ponto de vista dos heróis. A revelação surpreende-o duas vezes: descobre que o roteiro veio da literatura, mais especificamente de Shakespeare, comprovando até a veracidade da famosa frase do dramaturgo inglês, extraída do mesmo Macbeth que serviu de inspiração a Nolan: Life 's but a walking shadow, a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And then is heard no more: its a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing. IO E descobre que mesmo o papel, que desempenharia mais de cem anos depois, estava previsto. tanto ao tentar recusá-lo enquanto pesquisador da verdade, quanto ao render-se à sua execução. ajudando a propagar o mito.

10 SHAKESPEARE. William. Macheth. In: Shakespeare, William. Tral!edies. Londres: Dent Everyman's Library, 1964. p. 477.

O conto lida com um tema caro às histórias nacionais para desmascarálo. Como Machado, Borges está desconstruindo um enredo conhecido, armado pelo Romantismo. Em "Pálida Elvira", trata-se de desmontar clichês sentimentais; no conto de Borges derruba-se o mito do herói, sobretudo àqueles que servem às causas libertárias e patrióticas. O escritor argentino vai até mais longe, pois não é difícil constatar no trecho citado acima, relativo ao projeto de Nolan, o pano de fundo oferecido pelo mito de Jesus de Nazaré, que, como Kilpatrick, entra na cidade sagrada, Jerusalém, para ser aclamado e, depois, sacrificado, procedimento que colaborou sobremaneira à deificação do herói do Cristianismo. II

de Nolan contém traços holywoodianos, conforme o cine-

O processo como os escritores procedem à desconstrução é igualmente significativo: Machado e Borges revelam como se forjam os mitos, indicando que sua fonte é a literatura. Seja ao seguir regras da poética dos gêneros sentimentais, seja ao buscar na tragédia um modelo de comportamento a

las cosas que dUeron e hicieron, a referência se estende aos Evangelhos, supostamente reprodutores fiéis e confiáveis, mas igualmente endeusadores, das palavras de Cristo.

li,

Se quiséssemos, podería-

mos ir ainda mais longe: a cena que Borges põe nas mãos

ma narrou a história de Jesus, ao se referir a cenfenares de aclores que coluhoramn OJn el protagonista (p. 498). Quando o naITador indica que os livros históricos repetiram


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seguir, de um modo ou de outro é da ficção que provêm as referências necessárias à organização da sociedade. Em "Pálida Elvira", a identificação determinava o comportamento das duas leitoras indicadas no texto: tanto a leitora amiga como a protagonista retiravam das leituras exemplos de atitudes e visão de mundo, através dos quais pautavam suas relações com a sociedade. Em "Tema deI traidor y deI héroe", é a sociedade como um todo que regula seu comportamento desde as leituras feitas. Não apenas isso: um grande leitor - no caso, Nolan - organiza a sociedade para que ela se reconheça como tal. Não houvesse ele forjado um mito, a revolução nem aconteceria, muito menos seria bem sucedida. A história enquanto sucessão de eventos é caótica ou traiçoeira, a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing. É preciso que um sentido lhe seja atribuído, e este é buscado na ficção, único lugar onde os fatos têm ordem e significação. Não é, pois, a história que rege nossas ações, e sim a fantasia, berço da literatura. Igualmente esse roteiro está previsto no conto de Borges: o narrador primeiro, ao contrário de Ryan, não pesquisa o passado, e sim in venta um argumento, que, diz ele, escribiré tal vez (p. 496). A observação inicial, que a princípio, parece contrariar a veracidade do relato, acaba, conforme uma leitura circular, por reafirmá-Ia, pois, a se acreditar no relato, a imaginação é que fornece os fatos históricos e dá-lhes substância. É por criar o que vai acontecer que o acontecido mostra-se verdadeiro. Mas o texto que leremos ainda não redigido, porque o narrador no momento apenas cogita escrevê-lo no futuro. Tal como Nolan, o narrador não lida com o passado, mas projeta o futuro; entretanto, o porvir não consiste num vir-a-ser, e sim numa nova compreensão do que aconteceu, descoberta que, da sua vez, não altera a versão dos eventos já consagrada pelo tempo. Tanto o narrador primeiro quanto Nolan sabem o que acontecerá: aparecerá Ryan, cujas investigações propiciarão conhecer o que verdadeiramente sucedeu, mas que não ousará contrariar o mito, não apenas deixando-o como está, mas ainda corroborando-o. Outra vez a narrativa confirma pressupostos que aparentemente negava. Enquanto investigava, Ryan chegou a suponer una secreta forma deI tiempo, um dibujo de líneas que se repiten (p. 497). A seqüência do relato parece desmentir essa suposição, pois a repetição se devia à apropriação do roteiro sugerido pelas tragédias de Shakespeare. A conclusão do conto, contudo, leva o leitor a retomar a abertura, e, nesse revisão, verificar que o futuro é unicamente escrita, escrita que se debruça invariável e incansavelmente sobre o passado. As linhas do tempo dão voltas contínuas, e o porvir consiste na eterna retomada, para endossá-los, dos mitos cristalizados pelo tempo.

É enquanto planejadores do futuro que Nolan e o narrador se confundem e se identificam. Nolan é, porém, também o leitor que extraiu da ficção


120 modos de comportamento para os homens e formas de organização para a sociedade. Como a leitora amiga e Elvira, encontrou na arte possibilidades de experiência traduzidas em atos concretos. Ao contrário dele, o leitor do "Tema deI traidor y deI héroe" fica sem alternativas de ação, embora consciente de que o fluxo da história pouco lhe diz, em contraposição à literatura, de onde retira tudo, a começar pela desconfiança perante o mito e os relatos do passado. Machado e Borges estão empenhados em desarticular as convicções de seus leitores; mas fazem-no confiando em que a leitura exerça seu papel, o de estabelecer o diálogo primordial sem o qual a literatura não subsiste, muito menos sua produção poética e ficcional. Eis aí a aposta que lançam, que os aproxima no tempo e que assinala a afinidade de ambos diante do universo do leitor.


o histórico e o urbano Sob o signo do estorvo duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea

Renato Cordeiro Gomes

I. BARRÉ, François. Préface. In: La ville: art et architecture en Eurol'e, 1870-1993. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994. p.12.

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SARLO, Beatriz. Modernidad

y mezcla cultural. El caso de

Buenos Aires. In: BELuzzo, Ana Maria de Moraes, org. Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial da América Latina: UNESP, 1990. p.32.

À maneira de epígrafe, evocam-se dois textos que servem de baliza para uma reflexão sobre duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea. São eles o "Prefácio", assinado por François Barré, do magnífico catálogo da exposição La ville: art et architecture en Europe, 1870-1993, realizada em 1994, no Centre Georges Pompidou, em Paris; e o ensaio "A geração pós-perdida", de Ivana Bentes, publicado no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, em 1991. A apresentação de Barré afirma, em forma de síntese, o que a exposição revelou: a cidade e suas questões determinam nosso cotidiano e dá forma aos nossos quadros de vida; é nosso presente turbulento e nossos velhos medos. Tornou-se ela, para a maioria de nós, o estabelecimento humano, nossa morada incerta. 1 É uma grande questão desde a abertura dos tempos modernos. Um problema, uma paisagem inevitável, uma utopia e um inferno, a cidade é pensada enquanto espaço físico, mito cultural, condensação simbólica e material de mudança, e constitui-se, hoje, um debate pós-modeno, pois sabe-se que a era das cidades ideais caiu por terra. 2 As megalópolis contemporâneas em crise levam a colocar sob suspeita as certezas da modernidade. Morada incerta e inevitável, o mundo moderno, ainda mais quando visto da periferia em relação aos centros hegemônicos, é representado ficcionalmente sob o signo do estorvo. De tal maneira se adere à armadura urbana que mal se sabe o que é cidade e o que é indivíduo. A cidade conjuga-se ao impasse: identidades instáveis circunscritas pela história em turbulência.


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\"0 ensaio "A geração pós-perdida",3 Ivana Bentes traça um difícil retrato da situação atual do Brasil, em que o lugar da nova geração é "uma verdadeira zona de limbo, num purgatório que é a cara do país". Entre o apocalipse iminente e algo de novo, essa geração corre o risco de ver abortados os seus projetos ainda em gestação. Aborto. aliás. que não é novidade, pois vem sendo marca indelével em nossa história. Pela dificuldade trazida pelo não distanciamento histórico. a ensaísta constrói o seu "instantâneo", mapeando questões "desse momento em que estamos atolados". Emblematicamente, abre sua exposição com uma epígrafe do poeta Augusto dos Anjos (1884-1914): "Um urubu pousou na nossa sorte".4 A simbologia da ave agourenta atravessa o texto e aponta para o pessimismo que reveste nossas expectativas. E corrói as esperanças do futuro. onde estariam as possibilidades das utopias que criamos do Modernismo dos anos 20 às eleições diretas de 1989 e que "preduziram obras significativas dentro de um regime de mal-estar secular e exuberante miséria". Sempre definido pelo que não é, o Brasil "nunca teve passado, nunca formamos uma 'civilização', e no presente sempre esteve meio mal, entretanto já teve futuro. Só teve futuro aliás, que agora está ameaçado de perder" dizia Ivana Bentes, em 1991. Embora esperanças sejam renovadas com o Plano Real, estes tempos de economia e culturas globalizadas não neutralizam nossa perpétua crise de identidade o que é agravado, no presente ainda precário desta era pós-moderna, pela perda dos projetos totalizantes e dos grandes récits legitimadores. Se nossas utopias do século XX tentaram dar conta de uma definição de Brasil, ufanista ou crítica, o esvaziamento das certezas de que "o destino do homem era colonizar o futuro" ,5 permite. antes. falar de distopia. No seu artigo, Ivana Bentes emprega o conceito numa acepção médica: "situação anômala de um órgão, em geral congênita", nos diz o dicionário do Aurélio: e re\'este-o ainda com a perda da capacidade de crer o que seria uma doença que destrói as imunidades de nosso "romântico e saudável delírio de onipotência". tentativa de totalização, portanto. Essa distopia, acrescento. é. antes. "o lugar. estado ou situação hipotética em que as condições e as qualidades de vida são penosas", nos diz o dicionário Webster. As hipóteses negativas, entretanto, concretizaram-se nas circunstâncias brasileiras condicionadas pelas transformações radicais na configuração mundial, que confirmam nosso lugar na periferia do capitalismo. Globalização e neoliberalismo não acabaram com as noções de "centro" e "periferia", como se pode crer apressada e acriticamente. Nessa zona de penumbra, a identidade nacional com seus traços híbridos fica ainda menos delineada. E parece coincidir com o retorno de Macunaíma derrotado, na rapsódia de Mário de Andrade, mas sem mitificação possível. Sem retorno aos modelos modernistas, é desses escombros, porém, que a

'. BENTE.~. Ivana. A geração pós-perdida. Jornal do Brasil: Idéias Ensaios. Rio de Janeiro. 6 out 1991, pA-6. As citações deste texto vêm indicadas

en~

tre aspas, sem qualquer outra

referência.

4

O verso foi adaptado ao con-

texto do artigo. O OIiginal é: "Ah! Um urubu pousou na mi-

nha sorte!" e refere-se à

~'Mi­

nha singularíssima pessoa" (Y.

2) do eu-poético. Pertence ao soneto "Budismo moderno". Ver: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 30 a ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1965. p. 84 A I' ed. é de 1912.

Octavio. Os filhos do harro. Rio de Janeiro: Nova

5. PAZ,

Fronteira, 1984. p. 191.


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literatura, hoje, procura retirar os elementos que dramatizam a situação de impasse, "vasculhando entre os detritos de utopias passadas, tentando não uma reconstituição de ilusões perdidas já que não chegou a vivê-Ias plenamente, mas catando nesse monte de ferro velho ainda incandescente, e que não pára de crescer, algumas peças que possam ser reaproveitadas" segundo as palavras de Ivana Bentes que realoco, aqui, estendendo-as à narrativa de ficção. Neste contexto, duas linhas parecem se intensificar na prosa de ficção dos anos 90, dando prosseguimento a tendências que despontaram nos anos 80: o romance histórico e o romance urbano, ambos ligados ao momento de crise, para dramatizar o presente precário_ 6

Citado na reportagem O

grande salto para a história. Jornal do Brasil: Idéias Livros. Rio de Janeiro, 21 seI. 1991. p. 6-8.

A Editora Lê, de Belo Horizonte, criou a coleção "Romances da História", em que publicou, em 1991, entre outros, os livros F()~{) verde, de Duílio Gomes; A harca dos amantes, de Antônio BalTeto; A dança da serpente, de Sebastião Martins. Outras editoras como a Companhia das Letras, a Siciliano, a Rocco, a Rio 7

Fundo vêm investindo no gênero.

". Citado na reportagem "O grande salto para a história" indicada na nota 6. (). SANTIAGO,

Silviano. Apesar

de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1992, p. 17: "O intelectual brasileiro, no século XX, vive o drama de ter

de reCOlTer a um discurso histúrico que o explica mas que o destmiu, e a um discurso antropo!ô/?ico, que não mais o explica, mas que fala do seu ser enquanto destruição ( ... ).

O romance histórico, que vem ganhando fôlego a partir da publicação de Boca do inferno (1989), de Ana Miranda, afasta o olhar do complexo presente do País e volta-se para o passado, a fim de detectar aí mitos, heróis, traços característicos, que nos ajudem a ver-nos, hoje, Temos uma tradição a ser resgatada e preservada e que, em sua continuidade, pode fornecer elementos de (re)construção de nossa identidade abalada, num momento em que não estamos coincidindo com nós mesmos. O mineiro Paulo Amador, autor de Rei branco, rainha negra em que retoma a saga de Xica da Silva, enfatizando o papel da mulher na Diamantina do século XVIII, afirma que um país em crise precisa procurar seus mitos de moralidade e reencontrar seus heróis. 6 Neste revival, que tem tido boa acolhida da crítica e do público, levando as editoras, de olho no mercado consumidor, a aumentar o número de títulos do gênero,7 vê-se o resgate da memória nacional ligado a uma certa desesperança quanto ao futuro do país, na opinião de Luiz Schwarz, da prestigiosa Editora Companhia das Letras, que praticamente inaugurou a onda com o primeiro romance de Ana Miranda. Esta escritora conheceu sucesso imediato e lançou, em 1991, seu segundo livro, O retrato do rei, dramatizando a Guerra dos Emboabas entre mineiros e paulistas, nas Minas Gerais do século XVIII, episódio minimizado pela história oficial. Desprezando os limites rígidos do romance histórico, a autora declara que "ideologicamente, só tenho um limite: escrever sobre temas brasileiras, Sinto-me participando de um processo de busca da identidade nacional", 8 Essa busca se dá, portanto, pela força da ficcionalização, tentando não apag'ar as diferenças que foram abolidas pelo discurso dos vencedores. Recorre-se ao discurso da história, para ficcionalizá-Io, na investida de explicar a nossa constituiçã0 9 (nossa identidade). Resgatar pela memória o que o esquecimento apagou parece ser a pedra de toque desses romances que, pós-modernamente, desconfiam das utopias e dos mitos gerados pelo progresso_ Se o futuro se vai esvaziando, corroído pelo presente agourento do "urubu", não se trata de reconstruir as ilusões perdidas, mas recolher do passado algumas peças que possam ser reinventadas. Reinvenção que rima


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com ficção, que ganha força na medida em que "a história como ciência perdeu a credibilidade, em decorrência do refluxo do marxismo e do materialismo histórico", 10 afirma o historiador Joel Rufino dos Santos, também ele autor do romance histórico Crônicas de indomáveis delírios (Ed. Rocco, 1991 ).

Certa ou não a declaração pouco nuançada de historiador, a verdade é que revela um momento de crise da sociedade brasileira que não pode mais contar com esse grand récit que legitimasse aquela credibilidade. Certamente, tem razão Teresa Cristina Cerdeira da Silva. quando constata que "o modelo do que hoje ainda podemos chamar de romance histórico, ou de romance que tem na história o seu outro, seu objeto de desejo. se alterou muito, até porque a História se modificou. O fasCÍnio da leitura da Ilollvelle histoire é um fator que influencia a vaga do gênero". Desta forma, o viés que essas narrativas elegem, são as ligações. os nós. entre a literatura e a mímesis da História, tentando ler os claros que a História oficial deixou. Tecem uma história outra de que não exclui os vencidos e o cotidiano até então desprezado. De maneira muitas vezes alegórica, lêem as ruínas do passado na mira do olhar do presente. Lêem no passado as ruínas do agora. História e memória imbricam-se. Os relatos extraem um momento do passado, para perturbar a sua tranqüilidade, para redimi-lo, desreca1cando-o através da lembrança. E ainda mais: frente a um presente esfacelado nas cidades ilegíveis, onde o homem fragmentado pelas vivências de choque fecha-se no individualismo exacerbado, perdida a possibilidade da experiência válida para a comunidade, II voltam-se esses relatos para o passado em busca da possibilidade da narrativa. Nostalgia da história, da estória, de ter o que contar parece ser o signo com o qual pretendem preencher o vazio do presente. Se este é anunciado pelo "urubu". que se torne pelo menos "mobilizado", para a citar a imagem de João Cabral (poema "0 urubu mobilizado". de A educação pela pedra, 1965). É sintomática, deste ponto de vista, a retomada da fabulação que. nesses romances, se concretiza numa narrativa concatenada em continuidade e quase sempre em linha reta, emprestando sentido aos fatos. Privilegiando a ação, estabelecem relações de causa e efeito e ainda relações de contexto (social, econômico, político etc.).12 O romance histórico, assim, revela-se como uma tendência da narrativa brasileira contemporânea, dramatizando episódios mais pontuais, mais circunscritos, de nosso passado, em busca de traços da identidade nacional, problemática em momento de crise. Reinventa-se o passado, fonte da fabulação, procurando-se articular sentidos capazes de explicar o País. Enquanto esse gênero afasta seu olhar da arena do presente, a outra a do romance urbano dirige seu foco central justamente para o agora, para o espaço urbano que revela, de maneira mais clara, os impasses da crise. A

Somos explicados e destruídos. somos constituídos, mas já não somos explicados". 10 Esta declaração, bem como a de Teresa CIistina Cerdeira da Silva foram lidas na reportagem. "O grande salto para a história", indicada na nota 6.

11. BENJAMIN,

Walter. O narra-

dor. Considerações sobre a obra de Nikolni Liskov; A crise do romance. Sobre Alexanderplatiz, de Doblin; Experiência e pobreza. In: Ohras escolhidas I: magia e técnica, arfe e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

:~. SA"'TIAGO. Silviano. A gar-

galhada imprevista diante da morte. Jllmal da Tarde. São Paulo, 8 abril 1989.


o histórico e o urbano 125

13. Ver a respeito da cultura neo-individualista no contexto pós-moderno os seguintes tex-

tos de Gilles Lipovetsky, de que aproveito aqui formulações: LIPOVETSKY, Gilles. Espace privé, espace public à l'âge postmoderne. In: BAUDRILLARD, Jean et a!. Paris: Esprit, 1991. _ _ _ _ . L'àe du vide: Essais sur l'individualisme contemporain. Paris: Gallimard,1983. 14 A título de exemplos, ver as seguintes obras que dramatizam essas questões: de João Gilberto Noll (Bandoleiros;

Rastros de verão; Hotel Atlântico; O quieto animal da esquina, Harmada); de Sérgio Sant' Anna (A Senhorita Simpson; Breve histária do e,\1Jírito; O monstro); de Caio Fernando Abreu (Onde andará Dulce Veiga:; Os draglies não conhecem o paraíso); de Rubem Fonseca (A grande arte; Vastw' emoçtJes e pensmnentos imperfeitos, O romance negro). 15

TORRES, Antônio. Um táxi

para Viena d'Áustria. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. As ci tações deste romance indicadas entre aspas, com as páginas entre parênteses, remetem a esta edição.

sociedade brasileira, hoje eminentemente urbana (75% da população vivem nas cidades), em processo acelerado de massificação e pauperização, vê-se refletida no mundo caótico e violento das grandes cidades. Os romances dramatizam a crise da cidade e suas marcas sociais e cuturais. Aí, o homem urbano contemporâneo. num universo cada vez mais rarefeito, busca a identidade individual. numa sociedade de trânsito engarrafado. Se, por um lado. assistiu-se. em nível internacional, a mudanças radicais e velozes. que puseram em xeque as '"verdades" da modernidade; por outro lado, no Brasil. verificou-se. sobretudo a partir dos anos 70, o desenvolvimento da sociedade de consumo, que condicionava valores e comportamentos sociais ligados ao modo de vida impulsionado pelo reino dos objetos, de conforto e de lazer de massa, pano de fundo para o surgimento de uma nova cultura individual." Em meio ainda aos embates de um projeto moderno com que o discurso oficial pretende vencer o nosso perpétuo atraso, ao mesmo tempo que se ancora em estruturas arcaicas, vivemos, em contraste (continuamos a "terra de contrastes" como nos viu Roger Bastide, no seu clássico livro dos anos 50), com marcas do neo-individualismo das sociedades pós-modernas: a fragmentação individualista do corpo social, que redunda no consumismo privado, na retração individualista, na atomização dos seres, no hedonismo, no narcisismo, na esterilização das crenças e dos dogmas comuns. Ao lado da miséria, acentuam-se, nas cidades sobretudo, a imprecisão sistemática da esfera privada, a erosão das identidades sociais, a desestabilização acelerada das personalidades, a desconfiança e o desinteresse pelo ideológico e pelo político. Num espaço-entre, na interseção, num ponto de encontro, vive o Brasil a crise que se arrasta e reflete-se contundentemente na cacofonia das cidades. 14 Essa tela, aqui ligeiramente esboçada, parece oferecer os núcleos de tensão que as narrativas urbanas contemporâneas dramatizam. Neste sentido, é sintomática a imagem central do último romance de Antônio Torres, Um táxi para Viena d'Áustria (1991).15 O protagonista, Watson Rosavelti Campos, o Veltinho, migrante nordestino que veio para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro em busca de sonho da modernidade, enfrenta, como publicitário desempregado, a situação-limite, a crise, na realidade precária da grande cidade. O livro abre-se com "um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício n° 3 da rua Visconde de Pirajá, Ipanema, aqui no Rio de Janeiro" (p. 7). Ele acabara de assassinar um amigo, o escritor decadente Cabralzinho, que não via há 25 anos. Está fugindo; "( ... ) foi salvo da curiosidade pública e privada por um caminhão da Coca-Cola que capotou há instantes ali na esquina, justinho onde a rua Canning desemboca na Gomes Carneiro, bem no calcanhar desta nossa Visconde de Pirajá". (p. 11). Caos; rua bloqueada por engradados, garrafas, cacos. Entra num táxi, cujo rádio toca a "Missa em dó maior", de Mozart. Sente-se cansado. "Toca em frente" diz. Para Viena


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d' Áustria, onde há música nas ruas. Adormece. Mas está literal e metaforicamente numa encruzilhada. A situação inicial que poderia gerar um romance policial, não se cumpre como tal. Funciona, antes, como núcleo complexificador que metaforiza o Brasil engarrafado. Adotando um narrador móvel que transita entre primeira e terceira pessoas, a narrativa centra-se no personagem encurralado dentro do táxi, simultaneamente réu e investigador, que busca as raízes perdidas, ao mesmo tempo que tenta dar um rosto ao país. Mais do que uma escolha espacial, Antônio Torres optou por uma situação de inércia. em contradição com o progresso da modernidade que atraía o personagem publicitário (identidade agora corroída pelo desemprego). Inércia de trânsito parado que provoca uma escolha de ordem existencial ligada à vivência do tempo. Nesta inércia, o que dinamiza o personagem, na falência de seu projeto burguês. é a mistura de vozes do passado e do presente. Busca, por aí, "saídas transversais para si e para o mundo da cidade". A descontinuidade entre passado e presente passa, então, a reger a dinâmica do mundo interior do protagonista, projetando-se na estrutura fragmentada da narrativa que real oca citações, efetua colagens e procede por cortes, num universo impossível de totalização. O herói, ou antes o anti-herói, vencido, um eu à deriva, desenraizado na grande cidade, está tragicamente só. Vê esgarçaram-se os laços familiares, do clã (seu passado, como lugar de origem, na província, é apenas uma lembrança partida e vazia, sem dimensão no presente), perde os amigos, perde o emprego. E acabara de matar um homem. "Um urubu pousou na sua sorte"'. "Não chegamos porque não partimos". diz o motorista do táxi, quando o personagem acorda. Acorda para a realidade imediata. Caótica. A busca e a fuga ficam aí sem resposta. Viena d' Áustria é o sonho impossível: "longe é qualquer lugar perto do paraíso". (p. 117). Mas ele está ali, no encontro de Copacabana e Ipanema. Aí, está o homem brasileiro exilado na urbanidade. É um sobrevivente que assimilou a destruição urbana produzida pelas metrópoles, onde sua personalidade está desestabilizada, gerando uma retração individualista que esteriliza os projetos coletivos e utópicos. Embora tenha memória e nostalgia e busque através delas dar um sentido à História e à sua historia, ele está encurrulado no agora, nas dobras do cotidiano dificílimo. Ele tornou-se um assassino, e o "assassinato é a metáfora mais adequada para o impulso aniquilador e predatório da cultura contemporânea". 16 Resta-lhe, romanticamente, na situação de impasse, o sonho individualista de fuga para um lugar imaginário, "para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica" (p. 180) que é como se fecha a narrativa. Não desconfia que "o indivíduo em busca de um lugar imaginário termina em cenários erguidos em meio a ruínas". I? Já que ruínas articulam o personagem, a cidade e o país, só daquele lugar imaginário e improvável, ele pode vislumbrar um horizonte. Este momento final sintetiza o individualismo do protagonista, única ética possível

16 PEIXOTO.

Nelson Brissac.

Cenário,\' em ruínas: a realidade imaginária contemporânea. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.220. 17

Idem. ibidem, p. 225.


o histórico e o urbano

1".

Idem, ibidem, p. 25.

19. BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. As citações deste

romance indicadas entre aspas, com as páginas entre parênteses, remetem a esta edição.

20.

CARONE, Modesto. Entre-

vista à FolluJ de S. Paulo: Le-

tras, I fev, 1992, p. 4, em que tece considerações sobre a obra de Kafka, aqui estendidas ao romance de Chico Buarque.

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num mundo em ruínas, num mundo de suspeitos e traições, 18 num mundo que perdeu as coordenadas éticas. Neste mesmo paradigma, situa-se Estorvo (1991 ),19 o romance de Chico Buarque, lançado com eficiente estratégia de marketing, permanecendo meses nas listas dos mais vendidos. Deste ângulo, frustou a expectativa de grande parte do público que esperava encontrar uma história facilmente digerível, como pensa serem as canções do famoso compositor da música popular brasileira. O livro funciona como um verdadeiro estorvo em relação à cultura de massa, como acontecera em 1969 com peça Roda viva que, através da montagem revolucionária do diretor José Celso Martinez Correa, rompeu com a imagem de "bom moço" que vinha se criando, no início da carreira do compositor, sobretudo com o sucesso da canção "A banda". Sua obra, entretanto, com incursões também pelo teatro, traz as marcas de sua geração que amadureceu sob a truculência da ditadura militar e que pretendeu intervir, alterar os rumos da história do país. O recente romance, neste diapasão, é também desejo de denúncia, contudo não mais no sentido das soluções totalizadoras e utópicas, apontando para o cumprimento pelo menos satisfatório dos destinos da Nação. É, antes, a denúncia de nossas impossibilidades, do encurralamento em que estamos metidos, da crise brasileira vista de dentro, através de um "olho mágico". "Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico" (p. 11) assim se abre a narrativa, com o protagonista tentando, do lado de dentro, regular a vista para identificar um homem estranho que lhe bate à porta. Tematizando de saída a questão da identidade e do olhar, a narrativa coloca em cena um personagem "fugindo ao contrário" de alguém que ele não sabe quem é e nem por que foge. Instalado no presente, este personagem-narrador em primeira pessoa centra a narrativa no que está vivendo. Seu olho-câmera capta o que' está no seu campo de visão, ou a partir do que vê, o que supõe, presume, hipoteticamente (cf. os verbos no futuro do presente ou do pretérito e os modalizantes: talvez, parecer, presumir, dever, poder, como se fosse etc). Supõe-se perseguido pelo estranho homem de barba que o procura. "Esse narrador anti-onis-ciente ou melhor, insciente, é a formalização de um estado do mundo onde o indivíduo perdeu a noção de totalidade".2o Dá-se, em consequência, o rebaixamento do horizonte da narrativa que se torna obscura. As fantasmagorias do personagem sinalizam a perda de clareza do indivíduo em relação ao rumo da existência nas tramas do mundo administrado, para usar a expressão de Adorno. Este mundo é aqui representado emblematicamente pelo homem de barba, o delegado de polícia revelado no final da narrativa, símbolo de um superpoder que determina a existência individual de maneiras invisíveis. O personagem-narrador mescla, assim, realidade e imaginário e, porque perde a capacidade de totalização, trabalha com recortes, fragmentos, ditos por uma


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fala que não é afirmativa, que abdica de toda certeza, de todo projeto utópico. O relato que dramatiza uma falta, vive de uma falta de lógica, de mudança, de transformação o que corrói a causalidade de uma possível linha horizontal produtora de sentido. Na trama sempre falta alguma coisa, falta chão que lhe dê sentido (nesta ótica, é exemplar a imagem dos pés do amigo que o protagonista não consegue visualizar em sua memória, a que se sobrepõe os pés mortos e, portanto, inúteis, do professor de ginástica assassinado (cf. p. 76-77). O campo de visão, concretizado na linguagem pela redundância dos verbos ver e olhar, elimina o horizonte, ausente até a lembrança ("na lembrança não entra o horizonte" p. 76). O personagem cola-se aos fatos, sem distanciamento. A abertura do ângulo de visão indica a intensidade dos sinais dos estranhamentos que o acaso lhe apronta no circuito da fuga. Neste circuito, busca entender o que está acontecendo, mas não é um narrador detetive, não investiga pistas, vestígios, não é aquele que descobre. Se assim fosse, a partir do enigma estampado na cena inicial, se instauraria uma linha de romance policial que, afinal, não se cumpre (o que é deceptivo para o leitor imbuído dessa expectativa). Os fatos que vão compondo o (des)enredo, tornam-se cada vez mais rarefeitos, perdem a densidade e encaminham-se para a indeterminação, que, sem dúvida, é o signo que circunscreve o protagonista. É um personagem sem nome, em processo de desagregação. Todos lhe perguntam quem ele é. Se se pode recompor traços de sua biografia (classe média urbana, carioca, pai militar autoritário, mãe viúva, irmã com casamento milionário, um casamento desfeito, o rompimento com o amigo, etc), o passado não se dimensiona no presente, como conseqüência, e perde a densidade, vira barulho, ruído, a exemplo do que diz quando procura a ex-mulher: "tudo o que falamos antes virou barulho, fica difícil retomar a conversa" (p. 36); ou quando relembra o amigo: "ouço puramente a sua voz, lisa de palavras" (p. 42). Fica entre a ordem burguesa e a marginalidade, entre o desequilíbrio psicológico progressivo e o desajuste social. "Não pertencendo a nenhum setor da sociedade, o protagonista é definido existencialmente e socialmente; ele é um bosta, um estorvo", como afirmou Augusto Massi. 21 A fuga, sem causas determinadas, é o que movimenta o entrecho. Ela se dá no labirinto da cidade, em suas margens, nos seus arredores. A cidade do Rio de Janeiro tem sua presença implícita, implicada, na fonte ou na base da mensagem, antes que em seu conteúdo. Embora não seja nomeada, aparece numa cartografia dinâmica, ligada às necessidades da trajetória do personagem, sem as referências topográficas e geográficas de cartão postal que tradicionalmente marcam o Rio. São essas "necessidades da fuga, com suas pressas e vagares, que filtram o sentimento da cidade", como observou Roberto Schwarz. 22

21. MASSI, Augusto. Resenha sem título do romance de Chico Buarque publicada na revista Novos Estudos CEBRAP São Paulo, 31 out, 1991; 193198.

22 SCHWARZ, Roberto. Sopro

novo. Veja. São Paulo, 7 ago. 1991, p. 98-99.


o histórico e o urbano 129

23. GENETlE, Gérard. Vértige fixé. In: Figures. Paris: Seuil, 1966, p. 89. 24. BENJAMIN, WaIter. Paris, capitale du XIX' .•iec/e. Le livre des passages. Paris: Cerf, 1989. p. 536.

A maneira com que o personagem se relaciona com o espaço é provisória, indicando a não-permanência. Instala-se ele no campo cambiante do provisório, num jogo sempre recomeçado. Caminha em círculos, sempre entrando e saindo de algum lugar, indo e vindo da cidade e do sítio da família, na região serrana próxima ao Rio; vaga pelas ruas. Experimenta as aventuras da desordem, buscando os caminhos de antigamente, que nada resolvem: são sem saída. Vaga em labirinto (pela cidade e pelos discursos): "esta região desorientadora do ser em que se reagrupam, numa espécie de confusão rigorosa, os signos reversíveis da diferença e da identidade".23 Signos, que caem, aqui, na indeterminação. Enquanto o personagem busca, é obrigado a proceder a mudanças súbitas de direção, a retomadas, retornos. O labirinto é paradoxalmente a cidade aberta com sua flexibilidade, sua imprevisibilidade; e, ao mesmo tempo que lhe é familiar, torna-se sob seus olhos desconhecida, obscura, numa palavra, labiríntica. Principalmente, para ele que foge, que hesita, que perdeu os fios das certezas: "o labirinto é a pátria daquele que hesita" e cai numa errância monótona, já dissera Walter Benjamin. 24 Este jogo paradoxal do aberto e do fechado anula as oposições entre o campo e cidade: o sítio da família é uma espécie de "waste land", onde penetrou a violência através de grupos organizados, do tráfico de drogas, da tecnologia de sucata, conforme se lê no texto de Augusto Massi. Nesta mesma perspectiva de indefinição, de contornos não nítidos, "a tônica do romance não está no antogonismo, mas na fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias sociais" (observação de Roberto Schwarz), diferente, por conseguinte, da linha de força que vincou o romance dos anos 30 e foi retomada nos anos 70, ou no teatro do próprio Chico Buarque.

NUNES, Benedito. Estorvo é o relato exemplar de uma falha. Folha de S. Paulo: Ilustrada. São Paulo, 3 ago. 1991, p.3. - SANT' ANNA, Sérgio. Narrativa tensa. Jornal do Brasil: Idéias Livro.•. Rio de Janeiro, 3 ago. 1991, p. 3. 25.

26. ScHWARZ,

Roberto. Op. cil.

Do texto de José Cardoso Pires que apresentou o livro, 110 lançamento em Lisboa, nov 1991. A citação foi recolbida na Folha de S. PaultJ: Ilustrada. São Paulo, 1600v. 1991, p. 3.

27.

Como o romance citado de Antônio Torres, Estorvo quer captar também o homem brasileiro exilado na urbanidade, encravado no agora, num tempo de crise, que anula o passado e corre o risco de perder o futuro, que aponta par'a o pior, O protagonista, emblema de uma sociedade desagregada e sem projetos, busca a si mesmo, sua identidade, mesmo sendo seu movimento inconsequente. 25 Acena final do suicídio-assassinato revela sintomaticamente "a disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis",26 como metáfora do Brasil contemporâneo. O romance de Chico Buarque, "uma peregrinação alucinada em demanda de raízes perdidas através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão",27 em que tudo dá errado para o protagonista, não veio para explicar o Brasil; funciona, antes, como um estorvo que num solo histórico, aponta para a perturbação de uma identidade, Parece demonstrar que, em tempos "pós-modernos", para além dos populismos, já não há lugar para a "ópera do malandro", para o urubu macunaimicamente malandro da festa no céu. Demonstra que a instabilidade urbana determina nosso cotidiano: o presente turbulento por onde campeia a violência circunscreve a cidade


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enquanto nossa morada incerta. Morada incerta que é um "agora" precário a ser substituído por outro agora igualmente precário, quando a modernidade perde fé em si mesma; o presente faz a crítica do futuro e passa a desalojá-lo, e ganham força os conflitos de ordem cultural.


Teoria da literatura: instituição apátrida

Heidrun Krieger Olinto

o

artista plástico coreano Nam June Paik, figura emblemática das contradições radicais na cena atual da produção cultural da vídeo-arte, precisou de uma década para realizar um projeto de dimensão grandiosa e de efeito mágico e perturbador. A sua obra de vídeo-arte Hight Tech Allergy, exposta pela primeira vez em 1995, na retrospectiva do artista organizada pelo museu de arte de Wolfsburg, não só emprestou brilho especial ao evento, mas marca de forma fascinante uma espécie de point of no return para o processo de criação artística e para os hábitos de compreender e apreciar obras de arte contemporâneas em geral. Uma parede gigantesca de três metros de altura e de dez metros de largura, montada com mais de duzentos aparelhos de televisão ligados, ocupou o salão central do museu, oferecendo-se ao espectador como janela monumental e fantasmagórica para o mundo. Uma visão de simultaneidades velozes - de imagens, cores, movimentos, luzes e sons. Alucinantes. Essa instalação caleidoscópica de seqüências instantâneas de microfragmentos superpostos, substituídos em frações de segundos e imperceptíveis ao olhar atento, fascina pela possibilidade de estimular ao extremo percepções intelectuais e impressões sensoriais, tanto no instante pontual quanto na sucessão prolongada, por mais paradoxal que isso possa parecer. Fenômenos sem contornos, maleáveis, num fluxo cambiante, ganhando vida pela mescla


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impressionante de ofertas mediáticas, nomeáveis apenas pelo artifício da interrupção do movimento. Dizíveis, em suma, pelo falso gesto de congelar o ímpeto seqüencial no tempo. Mas é justamente essa impossibilidade de captar e cristalizar a experiência e, ao mesmo tempo, o desejo de integrá-la numa construção de sentido sem minimizar o seu efeito de inapreensível complexidade que mobiliza o fruidor contemporâneo em sua aflição de compreender. High Tech A lle rgy , neste conjunto, se presta de modo exemplar para situar o difícil e fascinante circuito comunicativo daqueles que transitam nos espaços de produção, transmissão; recepção e análise crítica dos fenômenos ainda chamados de artísticos. Hoje ninguém sabe de que se trata e, não obstante - ou por causa disso -, se multiplicam escolas. teorias, métodos, hipóteses interessantes e plausíveis (ou não), na ânsia de ofertar quadros, instrumentos e conceitos para cercear algo oscilante que escapa à descrição de valor estável.

No âmbito da teoria da literatura a motivação temática de parte considerável de estudiosos gira em torno da construção de teoremas do múltiplo e do heterogêneo, desalojando o interesse por identidades a favor de diferenças, paradoxias, contingências. Uma das várias coletâneas publicadas em 1995, de "textos fundamentais para a compreensão sistemática e propedêutica de categorias imprescindíveis para o estudo atual da literatura", inicia-se com uma afirmação sintomática e contundente dos organizadores. Segundo Fohrmann e Müller, o objeto da ciência da literatura não existe simplesmente. Ao contrário, ficou evidente para a disciplina que a sua tarefa básica devia ser o constante processo de redesenhar o(s) campo(s) do(s) objeto(s) de sua reflexão. Uma tarefa de risco que alterna sentimentos de "felicidade e pavor".! A promessa de encanto pela constante inovação reflexiva assusta pelo impossível desenvolvimento de um saber cumulativo, linear. Desde os anos 70, a consciência aguda da falta de confiança em fundamentos está, para uns, associada à insuportável sensação de perda e provisoriedade. Já outros, militantes no cenário dos estudos da literatura, sentem-se estimulados pela oportunidade de infindáveis observações e auto-reflexões acerca das práticas de uma disciplina que. de modo geral, ainda se entende como teoria da literatura, ciência da literatura, literary criticism, de acordo com os lugares geográficos, nacionais e culturais de sua atuação. As dificuldades situam-se, assim, entre o discurso oscilante sobre literatura, os pressupostos epistemológicos, metateóricos, teóricos e metodológicos, e a necessidade simultânea de parar o fluxo e propor classificações, construções de sentido, pelo menos para pequenos momentos de duração. Os novos acentos mostram de modo claro que as alternativas propostas no mercado teórico, ainda que não permitam homogeneização, favorecem o

I. FOHRMANN, Jürgen e

MÜL-

Harro, orgs. Literaturwissenschaji. Munique, Fink, !995.

LER,


Teoria da literatura: instituição apátrida

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entendimento do fenômeno literário como convenção comunicativa e/ou ação social específica, A multiplicidade das questões sugeridas desafia práticas tradicionais a partir do instante em que o comportamento sensocomunal da disciplina se afasta da idéia de que o seu campo possa ser definido exclusivamente a partir de objetos precisos ou propriedades substanciais, Segundo os autores citados - e não só eles - o universo da teoria da literatura, transferido para a unidade fundante texto-contexto, torna-se especialmente desafiante quando ensaia definições de fronteira entre arquivos próprios e alheios. Construções de sentido dependem dessas opções momentâneas cristalizadas por convenções consensuais que esboçam possíveis limites (Fohrmann e Müller, 9). Enquanto teóricos, estamos à procura de teorias - uma superteoria? - que saiba lidar com soluções efêmeras e de alta complexidade e que saiba circular com desenvoltura entre o campo de categorias arquivadas e o espaço de processos móveis, inacabados. Nada fácil. A contracapa da coletânea permite uma antevisão do que está por vir. As já mencionadas "categorias indispensáveis para o estudo da literatura" apontam sintonias com teorias sistêmicas, desconstrutivistas e pós-estruturalistas, apropriando-se de conceitos e termos do campo da comunicação, da evolução de sistemas artísticos, da mídia; menciona questões relativas à função autoral, diferença, forma e retórica, seleção e processo, auto-referência, metalinguagem, psicanálise, gender, observação de segunda ordem e ética. O que esperar de tudo isso? 2

PECHLlVANOS,

Miltos,

RIE.

GER, Steffen, SlRACK e WEITl,

Michael. EinJuhrung in die Literactunvissenschaji. Weimar: Metzler, 1995.

Outro exemplo, uma coletânea também publicada no ano passado, ilustra uma situação dramática semelhante. Einführung in die Literaturwissenschaft (Introdução à teoria da literatura), organizada a quatro mãos, dedica-se, no prefácio, à demarcação de possíveis fronteiras para literatura, ciência e teoria. Nas páginas iniciais, lêm-se afirmações como estas: ciências são determinadas pelo seu objeto e pelas técnicas de adquirir e transmitir conhecimento sobre ele. Além disso, são determinadas pela sua função social e por seu lugar institucional; no caso da ciência da literatura, em instituições como universidades, além de editoras, revistas especializadas e bibliotecas, sem esquecer dos seminários e congressos. Mas o que será o seu objeto? Dele fazem parte apenas as belas letras ou também as letras triviais? Apenas literatura ficcional ou também literatura específica? Seu campo de interesse abrange só os textos clássicos ou os mais recentes? E o que dizer sobre meios como o teatro, cinema, televisão e vídeo? Ou, colocando o problema em nível diferente: para que serve tudo aquilo que se ensina e aprende a respeito? Será que uma prática cultural (em fase de extinção?) encontra nesse espaço a sua última reserva? Será que um pensamento crítico oferece indispensáveis motivações para a ret1exão, ou será que as tecnologias da sociedade informatizada e voltada para o lazer se preparam para ocupar o seu lugar?2


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Uma mescla de indagações - esboços de esclarecimentos que confundem. Problemas que, em sua maior parte, tocam questões de debate constante na esfera da cultura. Nos anos 70, ainda era possível que um manual de teoria da literatura em forma de antologia, como Issues in Contemporary Literary Criticism,3 se áuto-apresentasse, em seu prefácio, como "an iiltroduction ... designed to help the student become aware of what is at stake in a criticaI discussion, oI what issues are in play, so that he may better be able to engage in that process of colaboration which, as several critics included here affirms, is singular to the activity of literary criticism" (pp. vii). Duas décadas depois, essa mesma expectativa não fundamenta o horizonte dos que militam profissionalmente nos campos dos estudos literários.

3 POLlETIA, Gregory T., org. [ssues in Contemporarv Literary Criticism. Boston: Little Brown and Company, 1973.

O livro Compara tive Literature in the Age of Multicllltllralism, editado em 1995 por Charles Bernheimer,4 e idealizado como relatório encomendado pela American Comparative Literature Association para situar a disciplina Literatura Comparada nos anos 50, 60 e 70, oferece uma ante visão da cartografia atual a partir do próprio e sugestivo título. Enquanto os relatórios anteriores creditavam o conceito de literatura comparada na era pós-guerra a uma nova perspectiva internacionalista que abrangia contextos mais amplos tanto na articulação de motivos, temas e tipos, quanto na compreensão de gêneros e modos (pp. 39), na verdade, segundo Bernheimer, a ótica ampliada não ia além da Europa e da linhagem da alta cultura européia. Neste sentido, o estudo comparado da literatura tendia a fortalecer uma identificação entre estados-nação e comunidades imaginadas em função de identidades nacionais e lingüísticas. Essa noção de literatura comparada, de vocação tradicionalmente internacionalista, sustenta paradoxalmente o domínio de algumas poucas -literaturas nacionais européias. É a Europa vista como lar de originais canônicos e as "outras culturas" ocupando territórios periféricos. Uma segunda e deliciosa ambigüidade. detectada por Bernheimer. revela-se na conduta cautelosa "we must be alert!" (pp. 40). face ao crescimento de programas interdisciplinares. Se, por um lado. esse desenvolvimento é bemvindo, por outro, teme-se o excesso. "The crossing of disciplines involve a relaxing of discipline" (pp. 40). Na avaliação de Bernheimer. esses estudos se deitaram em berço contraditório. "Just as comparative literature serves to define national entities even as it puts them in relation to one another, so may also serve to reinforce disciplinary boundaries even as it transgresses them"

4 BERNHEIMER, Charles. Comparative Ui/erature in the Al.'e of Multiculturalism. Baltimore: Johns Hopkins UP, 1995.

(pp.41).

Uma terceira ameaça aos valores fundantes da literatura comparada foi sentida na transformação progressiva dos Departamentos de Literatura Comparada - e dos Departamentos de Inglês e de Francês em geral - em arenas para o estudo "of (literary) theory". O tom ansioso que transparece no relatório de 1975 sinaliza simultaneamente a reação assustada e uma evidência:


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"the field was coming to look disturbingly foreign for some of its eminent authorities" (41). Numa retrospectiva de hoje, esses horizontes ampliados se tornaram quase imperceptíveis e ingênuos os perigos entrevistos. Para o relatório dos anos 90, um empreendimento "exciting and instructive", foram escolhidos "top scholars" variados de diversas instituições, cujos interesses e campos de pesquisa abrangiam desde teoria e estudos literários do século XIX, crítica feminista com ênfase em narrativa e genealogia do renascimento a partir da ótica do feminismo e dos estudos culturais, black studies e teoria crítica, estudos étnicos e literatura americana nativa, história intelectual e literária, literatura latino-americana, literatura medieval com ênfase em iconografia e música, até questões referentes a colonialismo e pós-colonialismo (pp. ix). O objetivo declarado: levantar controvérsias e não tentar encontrar "a confortable middle ground" neste processo de auto-análise da disciplina em busca de uma identidade "at the end of the century" (pp. x). Se o resultado final oferecia um painel de diferenças, pelo menos havia um consenso surpreendente quanto às direções a serem escolhidas pela disciplina. Uma análise do perfil do estudioso no espaço das letras revela, no mínimo, uma conduta repleta de ansiedades. As suas leituras privilegiadas situam-se hoje, provavelmente, no campo da sociologia, antropologia, psicanálise, história e filosofia e os debates mais incandescentes travam-se em torno de questões teóricas e não de textos literários. A própria identidade da literatura como objeto de estudo virou um problema e se transformou em questão política. Quando, em 1969, aconselhava-se aos estudantes de Harvard que substituíssem a bíblia de seus estudos literários, até então o livro Theory of Literature, de Warren e Welleck, pela leitura de Nietzsche, Freud e Marx, iniciava-se, nos Departamentos de Letras, nos Estados Unidos, um processo responsável pela mudança dos estudos retóricos, intrínsecos da literatura, para a investigação de sua situação contextualizada, seja do ponto de vista psicológico, histórico ou social. Desde então, não pára de crescer um repertório de questões relativas às relações entre literatura e experiência, estética e ideologia, gender e poder. Um conjunto de discursos variáveis sobre diferenciação social e interação conflitante e sobre a inserção de formas literárias em histórias coletivas e estruturas ideológicas contribuiu, entre outros, para o desenvolvimento de uma nova área - a de estudos coloniais e pós-coloniais. No presente momento, o campo se apresenta tão fragmentado numa multiplicidade de perspectivas teóricas diversas que o termo "contextualização" se transformou em senha para os discursos mais influentes sobre literatura. "History, culture, politics, location, gender, sexual orientation, class, race - a reading in the new mode has to try to take as many of these factors as possible into account" (pp. 8). A política atual do multiculturalismo,


~6 Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3 1 _'

pleiteando uma revisão do cânone em vista do reconhecimento de grupos culturais marginalizados e de tradições expressivas e da inclusão tanto de culturas étnicas minoritárias quanto de culturas não ocidentais de um modo geral, supõe, ainda, a construção de cânones não apenas representativos da cultura européia elevada, mas igualmente da diversidade de produções literárias "throughout the world" (pp. 8). Essas questões, em seu conjunto, demandam posturas atentas e flexíveis do observador num cenário de extrema contextualização e globalização por um lado e, por outro, num espaço que estimula a curiosidade pelo miúdo. Em todo o caso, a situação favorece um pensamento dinâmico cosmopolita, transcultural. Um conselho de Bernheimer: "we don't need to be experts in everything we teach, as long as we don't pretend to be and our effort to understand is in good faith. But neither should we act as tourists, having read a few guidebooks to faraway places" (pp. 13). Em tese, é uma afirmação sem dúvida aceitável; na prática, contudo, seria viável? Pessoalmente creio que o estudioso da literatura tropeça hoje feito bêbado numa paisagem vulnerável, sem horizonte à vista, a mochila carregada de boa fé e má consciência. A disciplina, representada hoje por uma comunidade científica de tamanho incalculável, inventa e redistribui em caráter permanente os nós da imensa rede-cenário onde perambulam os seus membros, em trânsito. Uma parte da desordem gigantesca da casa se auto-expressa de modo palpável na forma, na organização e no estilo privilegiados dos manuais de teoria da literatura, que se transformaram, cada vez mais, em coletâneas de ensaios de autoria e temática múltiplas. Trata-se de produtos que sinalizam previa e simultaneamente o descompromisso com filiações duradouras. atestando a substituição da voz autoral particular pelo consenso/dissenso de subgrupos de uma comunidade sem identidade. Por outro lado, circulam exemplos de autoria explícita e assumida sem que o discurso teórico se tornasse menos apátrida e sem que perdesse a sua feição de "shifty or sloppy ecletism", como diria Jonathan Culler ao tentar caracterizar o "normal criticism" atual, indefinível por paradigmas precisos e fora da matriz disciplinar. 5 Dois exemplos podem ilustrar essa situação. O primeiro refere-se a Halo Calvino, que estava preparando seis conferências, a convite da universidade de Harvard, para o ano letivo de 1985-86. O título em inglês dado por ele ao ciclo de palestras era Six memos for the next millennium. As palestras nunca chegaram a acontecer; Calvino morreu antes e a última sequer foi escrita. Feitas de divagações, memórias, trechos autobiográficos, essas conferências tematizam a crise contemporânea aguda da linguagem e identificam as qualidades que orientam as atividades dos escritores e da literatura pela leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. Em uma perspectiva superficial, são vistas como precioso legado do milênio do livro

5.

CULlER, Jonalhan. Criticism

and its Instilutions: the American University. In: AlTRIDGE,

D. el aI. Post-Srructuralism and the Quesrion ol History. Cambridge: Cambridge Univ. Press. 1987, p. 82-98.


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6. CALVINO,

ltalo. Seis propos-

tas para () próximo milênio.

São Paulo: Compauhia das Letras, 1990.

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para a geração do ano 2000. Assim pelo menos o querem orelha e contracapa que apresentam o livrinho de cento e poucas páginas como testamento artístico de um dos protagonistas literários desse fim de milênio. 6 Sendo o primeiro escritor italiano a ser convidado a participar desse ciclo tradicional, Calvino preparou-se para a tarefa com a responsabilidade especial de representar uma tradição literária de séculos. Assim, a primeira das seis - ou melhor, cinco - propostas, com o título de "Leveza", baliza-se em figuras consagradas da filosofia, da ciência e da literatura, fazendo desfilar, desordenadamente, em vinte e seis páginas, nomes tais como Ovídio, Lucrécio, Kundera, Boccaccio, Cavalcanti, Dante, Emily Dickinson, Henry James, Shakespeare, Cervantes, Rabelais, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift, Newton, Giordano Bruno, Luciano de Samósata, Ludovico Ariosto, Leopardi, Galileu, Voltaire, Leibniz, Pitágoras. A conferência explora caminhos novíssimos ou antigos, estilos e formas no universo infinito da literatura, articula o imaginário da literatura com diferentes ramos da ciência, destacando mensagens do ADN, impulsos neurônicos, quanta, neutrinos e informática, fazendo com que realidades físicas coexistam ao lado de fábulas mitológicas. Desliza para terrenos da antropologia e da etnologia, incluindo mulheres, bruxas e a Santa Inquisição. Aponta, ainda, a Morfologia do conto de Propp e oferece o resumo de uma história curta de Kafka, O cavaleiro da cuba. Matéria misturada confusamente ao sabor do acaso, como o próprio Calvino classifica o conteúdo de Voyage dans la lune, de Bergerac: Há demasiados l/os illlrillcalldo-se em um discurs01 Qual deles devo puxar para ter em IIUlos a cOllclusão' Há o .fio 'lue elllaça a lua, Leopardi, Newton, a gravitação univerSal e a lnitação .... Há o fio de Lucrécio, o atomismo, a filosofia do amor de Cavalcanti, a magia do Rellascimmto, Cyrano ... E há o fio da escrita como metáfilra da substância l'ull'erulellta dOl/lundo (1990: 3íi e 39).

7 Eco, Umberto. Seis passeios pelo.\' bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

o segundo exemplo diz respeito a Seis passeios pelos bosques da ficção de Umberto Eco (1994),7 outro conferencista convidado por Harvard. Se dermos crédito à orelha do livro, ainda que sem assinatura, trata-se de um pensador "inteligente" do mundo contemporâneo, examinando-o de diversos ângulos com incrível mobilidade de pensamento. Um pensador capaz de retroceder até às origens da narrativa ocidental para, em seguida, comentar o uso do tempo num filme pornográfico ou a maneira como o consumo de Coca-Cola afeta nossos hábitos de ler e pensar. Com uma erudição repleta de humor, Eco discorre sobre modos de recepção nos contos de fada, nos romances policiais, nos noticiários de jornais, em cartas de leitores, na literatura dos séculos XIX e XX, com o fascínio de quem está contando uma história. Pensador original, em busca de parâmetros coerentes para dimensionar o mundo, ele sabe, também, estimular o interesse do grande público, casando a rigorosa formação acadêmica com


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a experiência de romancista. O autor consegue traduzir questões "delicadas" em termos que nos tocam diretamente, transformando-nos em viajantes pelos caminhos do bosque da ficção. A metáfora do bosque para o texto narrativo coloca em destaque o papel do leitor e do teórico profissionais, compelidos a tomar atitudes perante opções infindáveis. numa alusão direta ao "Jardim dos caminhos que se bifurcam" de Borges. Nas vinte e cinco páginas do primeiro capítulo. "Entrando no bosque" (1994: 7-31), tropeçamos novamente na parada descontrolada de nomes e assuntos ligados à linguagem e à literatura que alinham - em torno da figura do leitor e do processo de leitura - E.A.Poe, Julio Verne, Lawrence Sterne, Carolina Invernizio, Kant, J ane Austen, Fernando Pessoa, Dostoievski. Salinger, Nerval, Swift, Wittgenstein, Joyce, Iser, Calvino, Melville, Agatha Christie, Georges Poulet, Homero, Perrault, Grimm, Shakespeare, Flaubert, Eliot, Wayne Booth, Barthes, Todorov, E.D. Hirsch, Riffaterre, Genette, Foucault, Chatman, Fillmore, Pagliatti. Ainda que Eco admita que o formato preciso do repertório do saber solicitado pela leitura de um texto permaneça no campo da conjetura, ele próprio, não há dúvida, aprecia o leitor de "competência enciclopédica" máxima (pp. 120). Ou seja, o profissional da academia, de quem se cobra uma cultura de dois milênios de tradição ocidental. Esse estudioso institucional não se permite encontros desarmados. As perguntas que se impõem, em função dos exemplos dados, podem ser formuladas da seguinte forma: afinal, que produtores e consumidores são esses, que se comportam com tamanha voracidade e obsessão? Que compulsão é essa, que obriga a desfraldar no espaço exíguo de poucas páginas uma cultura de dois milênios de tradição. sequer compreensível, nessa forma compactada, para os próprios companheiros acadêmicos - ainda que esse fato permaneça na esfera dos segredos inconfessáveis entre pares? Diga-se de passagem, parceiros que militam, como se supõe, em campos de interesse pelo menos parcialmente comuns. O mais escandaloso, nessa situação, é que esses livrinhos se transformaram em citação quase obrigatória para estudantes e profissionais de letras, fascinados com as sínteses ofertadas por belas figuras metafóricas e pelas paisagens exóticas que circulam nessas páginas, em que o encanto se estende à leitura da miscelânea de nomes e textos velozmente citados. Em outras palavras, as nossas práticas intelectuais aproximam-se perigosamente dos hábitos de turistas apressados, referidos por Bernheimer como "having read a few guidebooks to faraway places", em busca de pequenos souvenirs palpáveis e, ao mesmo tempo, suficientemente curiosos e em moda, para merecer um olhar fortuito quando passam a coabitar as nossas estantes, ao lado de livros nunca lidos porque disponíveis na forma sintética de dois, três parágrafos em nossos "guias turísiticos", repletos de citações oblíquas.


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Por outro lado, o que fazer? O que fazer, quando, diante do número cada vez maior de opções, desaparece no horizonte das possibilidades do intelectual a faculdade de julgar, de situar-se no equilíbrio justo entre o excesso de dados e o desejo por algum tipo de racionalização? Volto a afirmar, portanto, que o profissional da área de letras não se pode permitir encontros desarmados. A sua investigação requer compromissos com a elaboração de sistemas categoriais e demanda, ainda, um grau elevado de conhecimentos arquivados de forma ordenada e hierárquica, articulados em sistemas conceituais coerentes. Esse acadêmico que transita no espaço da curiosidade científica aproxima-se do seu objeto de estudo acompanhado por determinada competência, avalizada pelos pares em função da dimensão do seu repertório de conhecimentos arquivados, tanto em relação a textos ficcionais quanto em relação a textos teóricos e textos acerca de textos literários. Neste sentido, o leitor especializado - distinto do amador que passeia pela literatura de modo distraído - enxerga na paisagem da ficção vizinhos intelectuais, preferências filosóficas, escolas, querelas estéticas, paixões políticas. Ele homenageia com a escolha a sua própria curiosidade profissional de querer conhecer técnicas narrativas singulares, propostas temáticas inovadoras, a inserção do livro na produção conjunta de uma autor, ou na tradição vigente. O especialista produz comentários sobre textos literários, em outras palavras, cria o texto variorum. Todos os textos são percebidos na companhia de outros, incontáveis. Nesta ótica, o romance do século XVIII não se entende como sistema que produzia romances escritos no espaço daquele século, mas como objeto variorum, como megatexto que abrange tanto os romances daquele período, quanto os comentários produzidos a partir de então. No caso dos clássicos o cenário abrange séculos de explicações, análises e controvérsias críticas e teóricas que, de algum modo, são cobrados e validam, ou não, a competência do crítico e do teórico que milita na esfera institucional do profissional acadêmico. X. ROBERTS, T. J. An Aesthetics ol1unk Fiction. Athens: Georgia U.P., 1990.

Esse cenário não tem transparência para o leigo. Não faz parte de suas expectativas aprofundar o conhecimento de trabalhos críticos clássicos sobre Shakespeare, por exemplo, tais como explicações sobre alusões bíblicas, análises das condições de produção e recepção das obras, dos gêneros e estiros e conceitos de época; análises que nos últimos anos ofereceram perspectivas novas sobre suas peças; os diferentes instrumentos metodológicos usados; manuais, monografias sobre direito, medicina e botânica; obras de historiografia, livros sobre precursores e contemporâneos de Shakespeare, tratados sobre a estrutura de seu teatro, biografias; o conhecimento dos próprios textos em diferentes edições, formatos e combinações, com ou sem comentários, prefácios, introduções, apêndices, posfácios. Em resumo: "material para satisfazer a gulodice de uma vida inteira".8


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Esse hipertexto composto por, virtualmente, tudo que se escreveu e se escreve "acerca" de Shakespeare e a sua obra permanece invisível ao olhar amador. Quando este, por exemplo, conversa com um especialista sobre King Lear, os dois falam, certamente, de textos diferentes. Para o acadêmico o texto "palimpsesto", um caleidoscópio de todas as variantes da peça, incluída a cadeia interminável de enunciados seculares sobre ela pelos mais considerados - e até obscuros - comentaristas, pode transformar-se em deleite que supera, talvez, o interesse pela leitura da própria peça teatral. Não deveria espantar, então, que, segundo levantamento estatístico, estudiosos americanos de literatura inglesa publicaram, em um ano, 544 trabalhos sobre Shakespeare. 9 Mas espanta! Ainda que, certamente, não seja suficiente para saciar o apetite do crítico e do teórico. Se articularmos essa informação com um dos anuários das atividades profissionais na área dos estudos literários, publicados regularmente pela Modem Language Association, teremos uma idéia do tamanho e da complexidade desse campo. O relatório assinala, em cinco volumes, quase três mil Ítens diferentes, distribuídos entre notas, edições, artigos, coletâneas, monografias e livros, reconhecendo, em ordem alfabética, a vigência das seguintes abordagens teóricas da literatura: estruturalista, feminista, filosófica, hermenêutica, lingüística, marxista, narrativista, neo-historicista, pós-estruturalista, pós-modernista, pragmática, psicanalítica, psicológica, reader-response criticism, recepcional, retórica, semiótica e sociológica (Roberts, 1990: 235). Consensual ou não, essa profusão de etiquetas, supostamente compondo a cartografia atual dos estudos de literatura, perturba. Ao menos o leigo. O especialista, em estado de graça, delira. Será? Gostaria de acreditar que não. Se por um lado este novo espaço multiopcional mobiliza o teórico institucional para travessias interdisciplinares e transdisciplinares, por outro, não só o próprio objeto de estudo mas, igualmente, o campo da sua investigação tornou-se opaco. Ele não sabe mapear e arquivar a hiperabundância de ofertas e torná-las disponíveis para uma atuação eficaz. A questão pode então ser formulada mais ou menos da seguinte forma: como esse profissional das letras se comporta - e deveria, ou poderia se comportar - no cenário da nossa cultura mosaica diante da informação em excesso e da sua própria falta de tempo. da incapacidade de assimilação e construção de sentido, de algum modo, compreensível? A pergunta refere-se tanto ao produtor quanto ao leitor teórico dessa cultura e à sua circulação num espaço profissional particular: a academia. Será que ainda existe alguma possibilidade, algum compromisso ou sequer desejo de querer transformar essa produção cultural em conhecimento arquivável e disponível em nossa memória, quando solicitada, conferindo-lhe deste modo alguma utilidade?

9 RESCHER. N. The State Df Northamerican PhiJosophy Today. Review o{ Methal'hysics. 46, Jun., J993.


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Se ainda acrescentarmos às tendências interdisciplinares a internacionalização e globalização quase total dos bens culturais, estaremos diante de uma situação de intransparência radical. Portanto, a questão urgente que se impõe para o intelectual - e, de modo geral, para o produtor, leitor e teórico desse repertório cultural enciclopédico - será a seguinte: que tipo de socialização e profissionalização seria necessário para permitir o equilíbrio entre desdenhado generalismo e desprezível minimalismo, ou dito de outro modo, para evitar o ridículo entre os extremos de saber nada sobre tudo ou conhecer tudo sobre nada? É nesse ponto e nesse momento de hipercomplexidades extremas que se deveriam atualizar as discussões sobre os estudos da literatura, procedendose a uma ret1exão renovada sobre as relações entre escrita, leitura, teoria e práticas de vida.



Romance e história

Letícia Malard

1 NINA, Marcelo Della. O grande salto para a História. Jornal do Brasil. Idéias. Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1991. p. 6-8.

Em

urna reportagem intitulada "O grande salto para a História", Marcelo Della Nina entrevista algumas pessoas - professores de literatura, escritores e editores - sobre o boom, na década de 90, de romances pautados em fatos históricos. I Meus propósitos neste texto são, com o objetivo de ampliar o diálogo quatro anos depois, comentar o que disseram essas pessoas, e, corno desdobramento, especular sobre relações, tanto as perigosas quanto as seguras, entre Literatura e História. Paulo Amador, autor de Rei branco, rainha negra, romance que narra a vida de Chica da Silva, declarou que o novo romance histórico tem três razões de ser: a necessidade de se procurarem mitos de moralidade e de se reencontrarem heróis num país em crise; o comportamento do leitor - que entende o romance histórico, gosta dele e não tem vergonha de dizer que o está lendo; a saída do impasse entre a chatice do nouveau roman e o best-seller americano de baixa qualidade. A questão da crise do País apontada por Amador - o Brasil do empeachment de Fernando Collor - poderia ser estendida para o mundo da globalização pós-queda do Muro de Berlim, urna vez que a atual corrida a fontes históricas para transformação em matéria romanesca é universal. A literatura reproduziria, dessa maneira, o que se passa na vida político-social em suas tentativas de buscar mitos de moralidade no passado e reencontrar heróis.


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Sem entrar no mérito dos acontecimentos, nota-se que, por esse caminho, tanto na Literatura quanto na Vida, ao invés de se construir o novo está-se tentando reconstruir o velho. Ou, em muitos casos. o velhíssimo. Vejamos um exemplo universalista: A cidade russa de São Petersburgo, que já se chamou Petrogrado e depois Leningrado, volta a ter o nome cristão primitivo. Apagouse-lhe não só a memória urbanística, das mais belas do planeta (edificada por Pedro, o Grande, de quem herdou o nome em 191.+). como também a política (recebeu Lenin na volta do exílio, nela se iniciou a Revolução de Outubro e foi palco da resistência popular antinazista durante a Segunda Guerra Mundial). No que se pretendeu voltar às raízes identitárias atrayés da restauração do nome primitivo, acabou-se por trazer para a atualidade. junto com o nome, todos os signos nele inscritos: São Petersburgo, nome que eyoca a era de esplendor dos czares e da nobreza - em especial a do sanguinário Nicolau II - era em que grassava a miséria entre o povo, a níveis insuportáveis. Nesse talvez falacioso reencontro da identidade perdida, Leningrado passa a ser. dentro de São Petersburgo, aquele resíduo de infelicidade referido por Marco Polo ao Grande Khan. No imaginário dos petersburgueses, os símbolos de Leningrado foram recalcados. Dela só restam cinzas recolhidas por algum Marco. Jamais poderá ser reconstruída nem recordada, diria ele. 2 E a editora Ars Poética não perdeu tempo: em 1992, traduziu para o português o romance então de vanguarda Petersburgo, de Andrei Biéli, cuja última edição em russo era de 1928. Essa reconstrução do velho é uma faca de dois gumes e tem seus reflexos na literatura. Reencontrar heróis do passado (que passado?), visando a esquecer crises, pode corresponder não só a uma saudável busca de identidade, como também à crença liberal saudosista de que existe uma nação concebida como de todos e/ou para todos. No caso do citado romance de Paulo Amador, de que gosto muito e que foi escrito especialmente com vistas à instituição escolar, teme-se que muitos professores desavisados induzam os estudantes a enxergarem no livro, já a partir do título, uma convivência entre raças idealizada porque sem preconceitos, e, o que é pior: historicamente existente desde o Brasil-Colônia. Quanto ao gosto do leitor graças à clareza do texto (do romance histórico em geral), a seu entendimento e o orgulhar-se de estar lendo episódios ficcionalizados de nossa história, não há o que discutir. Acrescentaria, ainda, outro motivo: A preferência por esse tipo de literatura poderia corresponder à rejeição de narrativas inventadas do nada, (ainda que se tenha como certo que toda narrativa se constitui em transformação das que a antecederam) ou seja: os leitores comuns estariam perdendo o interesse por ficções originárias do imaginário/imaginação de um sujeito individualizado. Na era da mídia e da produção para o mercado altamente sofisticadas, os juízos de valor se pulverizam como nunca, os limites entre a boa e a má literatura estão obscu-

2. Referência ao diálogo entre

o viajante e o imperador. sobre a inexistência das cidades descritas pelo primeiro, em: CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 199 L p. 58.


Romance e história

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recidos. Qualquer um tem o direito democrático de produzir ficções (fazer literatura) e ser bem ou mal sucedido apenas em termos de jogadas mercadológicas e/ou comunicacionais. Os exemplos pululam por aí. Qualquer um de nós tem até o direito de, da nossa residência, por telefone, decidir pelo voto entre alternativas e no instante, como será o final de uma narrativa escrita pelo roteirista de TV. E para vê-l~ no ar minutos após o nosso voto. Assim, a história que qualquer um se julga no direito de inventar ou nela intervir pode estar deixando de ser interessante, de despertar a curiosidade dos outros, pois cada indivíduo acaba sendo "capaz" de produzir ficções (para não dizer poesia) e, nesse aspecto, todos se igualam. O ato de fazer literatura "do nada" se banaliza, e parte-se em busca do consagrado pelo coletivo, com base no real/socialmente mitificado/ historicamente vivido - a História literarizada.

]. Vale a pena mencionar mais alguns desses romances recentes "coloniais" e sua temática:

O retrato do rei, de Ana Miranda (a Guerra dos Emboabas e o desaparecimento do retrato de D. João V); Boca de chafa-

riz, de Rui Mourão (a Ouro Preto da lncontidência contra-

ponteada com a de hoje); A harca dos amantes, de Antônio Barreto (o amor de Tomás Antônio Gonzaga e Maria 00rotéia Joaquina de Seixas);

FO/io verde, de Duílio Gomes (Fernão Dias Paes Leme); A dança da serpente, de Sebastião Martins (Bárbara Heliodora); JoseJa do Furquim, de Vem Telles (a conquista e o povoamento de Minas Gerais no século XVIII); Nassau, sanf.:ue e amor nos trápicos (sobre os antecedentes da invasão Holandesa de 1630 à morte de Maurício de Nassau), Tiradentes (a trama da maçonaria para salvar o herói da forca) e Ville/ia/inon (os franceses no Rio de Janeiro em 1555 e seu vice-almirante Villegagnon) - os três de Assis Brasil;

1591, a Inquisição na Bahia e outras histórias, de Nelson Araújo.

Quanto à preferência do leitor pelo romance histórico como substituto do best-seller norte-americano ruim, creio que deva ser encarada de outra maneira. Em minha opinião, os públicos é que são diferentes. Os leitores de romances históricos tendem mais para o acadêmico, o institucional escolar e o midel/lr. A eSSeS. seguramente o referido best-seller não agrada. José Orlando Pinto da Cunha, da Editora Lê, que tem uma coleção chamada "RomanCes da História", informa que o projeto editorial partiu da verificação de que a biografia tinha boa aceitação e, portanto, a romanceada teria mais ainda. Convém observar que esses romances foram encomendados a escritores de renome, alguns nunca tendo escrito romances. como foi o caso de Paschoal Motta, que publicou na coleção o supertrabalhado Eu, Tiradentes. E quando foram feitas as encomendas? Por ocasião das comemorações do bicentenário da Inconfidência Mineira. Suas temáticas voltam-se preferencialmente para episódios e personagens ligados ao movimento, possuindo uma nítida conotação didático-pedagógica, de celebração, para atingir a uma significativa fatia do mercado. Somente a Editora poderia fornecer dados avaliativos sobre o sucesso do projeto, ontem e hoje, pois já tem romances em segunda edição, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, reconhecendo a internaciona!idade do boom, lembra que, no Brasil, foi o Boca do Inferno de Ana Miranda que abriu as portas para essa espécie de romance. Reconhece também que a espécie intenta o resgate da memória nacional, o qual talvez esteja ligado a certa desesperança quanto ao futuro do País. O que se poderia indagar é qual memória nacional tais romances estão resgatando, para vinculá-los à desesperança futura. Via de regra, seus heróis tipicamente brasileiros são heróis fracassados. Dentre os episódios históricos romanceados predominam os do Brasil-Colônia; portanto, fazem parte da opressão/repressão política, e muitos de seus personagens são agentes do poder repressor. 3 Nesse sentido, o romance viria ratificar e historicizar a


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desesperança e, ao invés de resgatar a memória nacional, serviria de consolação à desesperança do presente e até mesmo a do futuro. No final das contas, talvez se esteja, mais uma vez, reconstruindo o velho ao invés de construir o novo ... AProfa. Teresa Cristina Cerdeira da Silva. pesquisadora de José Saramago, diz que o romance histórico se liga ao fascínio pela leitura da Nova História, que tem nesta o seu Outro, o seu objeto de desejo.4 E também por razões políticas: O Brasil passou por épocas em que pensar a História seriamente foi impossível. Agora, o resgate está sendo feito. tanto pela História quanto pela Arte. A fala de Cristina da Silva relaciona psicanálise e política. O nosso Outr%bjeto desejante é imune a juízos morais porque vivido no imaginário, na fantasia. Nesse campo, tanto posso viver a infeliz noiva pré-romântica Marília de Dirceu quanto a rainha louca Maria L Entretanto, esse encantamento pela Nova História apreendida na leitura de romances corre o risco de conduzir o leitor a equívocos, na medida em que ele possa tomar como reais, e documentadamente acontecidos, fatos ou suas interpretações que não passam de ficções literárias que recheiam os episódios históricos. Esquecendo-se de que historiador é uma especialização profissional que não se confunde com a atividade do escritor que pesquisa. Do ponto de vista político, a plena democracia permite hoje pensar a História através de diferentes manifestações culturais e artísticas, sem patriotadas ufanistas como nos regimes anteriores. Nesses, o obscurantismo não somente confundia o factual com o ficcional, tomando romances e contos como retratos fiéis da realidade que não podia ser (d)enunciada, como também determinava os limites dos enunciados e enunciações literários através da censura prévia. Hoje, na democracia plena, corre-se o mesmo risco da mistura. Contudo, sem qualquer censura. O historiador e autor de um romance histórico, Ioel Rufino dos Santos,5 emite uma opinião de destaque. Diz ele que a História como Ciência perdeu a credibilidade, dado o refluxo do marxismo e do materialismo histórico no mundo, bem como a falta generalizada de estudos precisos de sociologia sobre o Brasil. Daí as pessoas procurarem narrativas "verdadeiras", que preencham as lacunas deixadas pelas Ciências Humanas. Sem discordar da avaliação de Rufino dos Santos, não vejo como vinculá-la ao sucesso do romance histórico, pois somente uma parcela mínima de seus leitores tem consciência de perceber as relações de causa e efeito apontadas pelo historiador-romancista. Da mesma forma, a falta de estudos sociológicos não atinge à quase totalidade dos leitores. Portanto, eles não estariam trocando leitura científica por ficção que aborda o mesmo tema. Do exposto, pode-se perceber que os entrevistados revelam ter um ponto comum: o alto cacife do romance histórico se justifica na busca da identidade

4. Lembro que, segundo Peter

Burke, não é fácil definir cate· goricamente a Nova História. Entretanto, ele a distingue da antiga história por seis pontos. A Nova História: I. Interessa· se por toda a atividade humana, e não apenas pela política; 2. Preocupa-se com a análise das estruturas, e não dos acontecimentos; 3. Oferece uma visão de baixo, isto é, das pessoas comuns e suas experiências das mudanças sociais, em contraposição à visão de cima da antiga história, que só privilegia os grandes homens; 4. Examina outros tipos de evidência, e não somente os documentos; 5. Enfatiza a pluralidade causal; 6. Valoriza a subjetividade em detrimento da objetividade. (BuRKE, Peter. Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro. In: _ _ _ , org. A escrita da

História, São Paulo: UNESP, 1991. p. 7-37.

SANTOS, Joel Rutlno dos. C/1)nica de indomáveis delírios. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. O romance tematiza Napoleão exilado na Ilha de Santa Helena influindo na Revolução Pernambucana de 1817 e na Rebelião Malês da Bahia.

5,


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6

Os romrulces estudados

to-

':ill1: Uhirajara, de José de

.... Iencar: Caetés, de GraciJiano Ramos; Eu. Tiradentes, de Poschoal Motta; A dança da ,c'1}(!1l1e, de Sebastião Maruns; A descoberta da América

"elos turcos, de Jorge Amado. Outros textos literários que serviram de apoio: Iracema, de José de Alencar; Boca do Inferno, de Ana Miranda; Rei hmnco, rainha ne~ra, de Paulo Amador; A harca dos amantes, de Antônio Barreto; Bernahé, Bernahé!, do uruguaio Tomás de Mattos e Ruhaiayat, de Omar Khayyam.

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nacional. Como essa identidade é construída nesses textos, na ótica do autor. e como ela é recebida pelo leitor, é coisa que está à espera de pesquisas. Essas questões opinativas sobre as causas do novo romance histórico conduzem necessariamente a um desdobramento no âmbito da Literatura Comparada: as relações entre Literatura e História. Ou, por outra: como, porque e para que os romancistas transformam o factual em ficcional. Em curso que ministrei na pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais no segundo semestre de 1994, foram analisados cinco romances, com a perspectiva de detectar os procedimentos pelos quais os escritores se apropriaram de situações concretas do possível no terreno da micro-história, ou de fatos registrados pela macro-história do Brasil-Colônia, para produzirem romances onde se articulam História e Ficção, com efeitos e funções bem delineados. 6 Esses efeitos e funções foram definidos da seguinte forma: • A recuperação histórico-antropológica do Brasil ágrafo pré-cabralino em José de Alencar, visando à fixação dos pilares da construção da nacionalidade no período imediatamente posterior à Independência Política. • A permanência de um eu indigenizado no ofício de um sujeito-escritor, nas Alagoas dos princípios do século XX, em Graciliano relendo Alencar, com a intenção de retratar a fixação do primitivismo indianista nas mentalidades regionais.

7.

Outras questões relativas

ao tema estão esboçadas em MALARD, Letícia. Tiradentes, o Super-Homem. In: _ _ _ , org. A ficção mineira hoje: Romances da Inconfidência. Belo Horizonte: Cadernos de Pesquisa do NAP'I.lFALE/UFMG, n° 18,

novo 1994, p. 7-20.

• A celebração histórico-literária da vida do herói máximo da História do Brasil- Tiradentes - em Paschoal Motta, com vistas ao didatismo da História através da Literatura, como parte de um projeto editorial comemorativo do bicentenário da Inconfidência Mineira.? • A construção da figura de Bárbara Heliodora, amante/esposa do inconfidente Alvarenga Peixoto, integrada no mesmo projeto do anterior e também visando ao didatismo do "bom" feminino: a perfeição da filha, da amante, da esposa, da mãe e da companheira política, • A invenção de Adma, "turca" feia, matriarca e castradora de toda uma família, porém comerciante - objeto do desejo matrimonial de dois imigrantes árabes que buscam o enriquecimento fácil na zona cacaueira, mulher que se transforma após a entrega amorosa. O "romancinho", conforme o designa Jorge Amado, também faz parte de um projeto editorial coletivo de celebração do quinto centenário da chegada de Colombo à América. Tendo sido escrito para tradução em várias línguas e para leitura em vôos internacionais, a narrativa trata de nova descoberta/conquista da América, pela via da paródia, da comicidade e do erotismo. Observamos como a construção de uma identidade nacional perpassa pela constante presença do indianismo, de que todos "descendemos"; pela frustrada conjuração mineira, na medida em que se renega o português que nos descobriu e explorou; e pela imigração, que nos ensinou a trabalhar e contribuiu com o aumento de nossa riqueza. O discurso dessa identidade


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coloca a etnologia a serviço da política e do expansionismo de outros mundos sobre nossa terra e nossa gente, fazendo com que o Brasil, com os primeiros e os últimos brasileiros, esteja em eterno processo de "descobrimento". 8 Vejamos, a título de exemplo, o caso do indianismo via síntese crítico-analítica dos romances de Alencar e de Graciliano. No caso de Ubirajara: Apesar de não ter designado o seu romance de "histórico" e sim de "lenda", talvez pelo fato de reconhecer a impossibilidade de se fazer romance histórico stricto sensu focalizando sociedades ágrafas, Alencar inventa uma narrativa intermediária entre a História e o Mito, utilizando-se dos estudos antropológicos à disposição em sua época. 9 Literarizando os antecedentes da História do Brasil, incorporando linguagens e arquétipos das comunidades primitivas da América, o escritor constrói uma narrativa em que, além de mitificar o elemento autóctone que participará mais tarde da constituição da "raça" brasileira, prepara o terreno para o estabelecimento pacífico da colonização, culminando com a união harmoniosa das três raças formadoras da Nação.

Só falta aparecerem romances "econômicos", de descoblimento do paraíso dos juros para os capitais especulativos, como se está presenciando nesta metade de década 90. S.

9.

Viu-se a influência de O

Brasil e a Oceania, de Gonçalves Dias. na configuração dos índios.

O herói Ubirajara conquista e pacifica o território inimigo, unindo duas nações indígenas mediante a aliança matrimonial com duas mulheres, uma de cada nação.Essa inventividade histórica anterior ao achamento da terra acaba por legitimar ideologicamente a colonização iniciada de imediato, em que o herói português, simbolizado em Cabral, conquista a terra achada e lhe impõe a sua cultura mediante a aliança da miscegenação, para dar origem a uma "raça" sem a marca da violência do colonizador nem do colonizado. 10

lO. Para uma análise nessas coordenadas comparada com Iracema, aindaquernuito marcada pelo estruturalismo, ver MALARD. Letícia. Relações entre o homem e a tena no ro-

No caso de Caetés: relendo os carapetões de Alencar e Gonçalves Dias aprendidos na escola primária, Graciliano/João Valério, nos primórdios do modernismo antropofágico em suas repercussões no Nordeste. desvela a permanência da mentalidade caeté na sociedade brasileira. A micro-história possível da cidade de Palmeira dos Índios corre entrecruzada com o romance histórico impossível dos Caetés. Ao tentar. inutilmente, escrever a história dos índios que habitaram a região desde o período pré-cabralino, Valério, o escritor frustrado, acaba escrevendo a versão moderna desses índios - os habitantes da cidadezinha - da qual é protagonista incapaz de assumir a alteridade caeté, ainda que a anteveja em outras personagens. ll

11. A configuração das personagens do romance dentro do

Na leitura de Luiz Costa Lima, Graciliano se coloca na encruzilhada do imaginário com o documental. Há poucas passagens em Caetés em que o escritor ultrapassa a mera documentação das aflições do medíocre narrador (a da náusea e do grotesco da procissão, p. ex.), diz Costa Lima. Se o romance (de Graciliano e de Valério) fracassa, é devido ao veto ao ficcional, à incompetência para vi ver a alteridade do caeté. 12 Assim, a miscegenação idealizada pacificamente, porque através de alianças (que ficará mais evidenciada em Iracema, apesar de preparada me-

mance de Alencar. In Escritos de literatura hrasileira. Belo Horizonte: Comunicação. 1981. p. 99-113.

romance como índios caetés está em MALARD, Letícia. Ensaio de literatura hrasileira: Ideologia e realidade em Graeiliano Ramos. Belo Horizontel São Paulo: ltatiaia/EDUSP. 1976. p. 30-41.

12

LIMA, Luiz Costa. Gracilia-

no Ramos e a recusa do caeté. In: Sociedade e discurso .fieeional. Rio de Janeiro: Guanabara. 1986. p. 220-42.


Romance e história

149

taforicamente em Ubirajara, com a união das tribos sacramentada pelo matrimônio com as duas mulheres, uma de cada tribo) é desconstruída por Graciliano. Sua personagem/escritor, mesmo incompetente para viver a alteridade do caeté conforme Costa Lima, reconhece a tatuagem do selvagem inscrita indelevelmente na "alma" do palmeirense (do brasileiro), tal como as digitais de sua identidade. João Valéria, que no final do romance se reconhece como um caeté de olhos azuis, que fala um português ruim, é a metáfora do brasileiro vivenciando na fantasia, plenamente, sua identidade: "civilizado" na aparência e "selvagem" (indianizado) na essência. Logo, no grau zero da miscegenação, se se entende ser esta muito mais que um mero ultrapasse da união sexual procriativa. É claro que o dito acima não passa de construções/desconstruções ficcionais da ciência (antropológica), pois essa é uma das funções da Literatura. Se é certo que. nos parâmetros da realidade, somos seres absolutamente "civilizados". os Tupis estão para nós como os Vikings estão para os escandinavos. Só a Literatura é livre para dizer isso.



o enigma da fusão

ficção/crítica sobre tradução: rasura de limites? Célia Maria Magalhães

Podemos começar seja com aficção, seja com o documentário. Mas, com qualquer um que se comece, inevitavelmente vamos nos deparar com o oatro. (Jean-Luc Godard)

I. BORGES, Jorge Luis. Fifç"es. Trad. Carlos Nejar. 5' ed. São Paulo: Globo, 1989. '. SIMON, Sherry. Rites of Passage: Translation and its Intents. In: The Mussudassets Review. Springl Summer, 1990.

É

uma característica dos textos literários pós-coloniais, especificamente os romances e contos, a reflexão teórica sobre tradução, Só para dar dois exemplos, entre tantos, podemos nos referir ao conto de Borges, "Pierre Menard, autor do Quixote", I já bem explorado pelos teóricos como fonte de teorização sobre tradução, e ao romance da escritora canadense, Nicole Brossard, entitulado Le désert mauve, sobre o qual há uma análise recente feita por Sherry Simon,2 da qual o resultado é uma teoria de tradução, que se afasta dos modelos tradicionais globalizantes e se aproxima de um recorte metonímico no pensamento sobre tradução literária.

V S. The Enigma ofArrivul, New York: Vintage Books, 1987.

'. NAIPAUL,

MURRAY, David. Forked Tangaes: Speech, Writing & Representation in North American Indian Texts. London: Pinter Publishers, 1991.

..

Enquanto o texto ficcional parece caminhar em direção à reflexão teórica, parece haver, do lado do texto teórico, um movimento inverso, em direção à ficção. Os textos de teoria de tradução têm apresentado, assim como os prefácios da tradução literária brasileira, características próprias ao texto literário. Para abordar esta questão, meus pontos de partida serão o romance de V. S. Naipaul, The Enigma of Arrival,3 e o texto introdutório do livro de David Murray.4 No romance de Naipaul, o narrador só se insere como personagem principal após descrever com riqueza de detalhes e nuances de cores não apenas o jardim de Jack, que dá o título ao primeiro capítulo, mas também toda a paisagem e a vida de uma pequena área rural no Condado de Wiltshire.


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próxima a Salisbury. No segundo capítulo, ele ganha a força de personagem principal do romance, descrevendo uma longa viagem, cujo passageiro é ele enquanto sujeito pós-colonial, em seus deslocamentos entre a Índia, onde nasceu, a ilha de Trinidad onde cresceu e foi educado sob a colonização inglesa, e a Inglaterra, para onde foi, ainda jovem, estudar para ser escritor. Um fato importante, logo no início do segundo capítulo, impulsiona o narrador/escritor a escrever sobre a sua experiência de vida: uma nova forma de escrever, sem deixar de se colocar enquanto sujeito desterritorializado, ou como ele próprio diz, sem "esconder-me da minha experiência", ou sem "esconder minha experiência de mim mesmo" (p. 288). Ao examinar livros numa biblioteca da cidadezinha rural onde vive na Inglaterra, depara com um livreto de reproduções das pinturas de Giorgio de Chirico; entre elas, uma lhe chama mais a atenção, talvez por causa de seu título, que de uma maneira poética se referiria a alguma coisa em sua própria experiência. É a reprodução da tela O enigma da chegada, cujo título foi dado pelo poeta surrealista Apollinaire e sobre a qual o narrador nos diz:

o que era interessante na pintura. (... ). era que - de novo. talvez por causa do títuloela mudava na minha memória. O original (ou a reprodução no Livreto da Pequena Biblioteca de Artes) era sempre uma surpresa. Uma cena clássica, mediterrânea, na Roma antiga - ou, pelo menos assim eu a via. Um cais; ao fundo, por trás dos muros e portões (que parecem figuras recortadas), o alto de um mastro de uma embarcação antiga; numa rua deserta do outro lado, em primeiro plano, duas figuras, ambas indistintas, uma talvez a pessoa que chegou, a outra talvez um nativo do porto. A cena é de desolação e mistério: fala do mistério da chegada. Falou disso para mim, como também para Apollinaire. (p. 98)

o quadro de Chirico faz o narrador lembrar-se imediatamente de sua própria chegada à área rural em Wiltshire, os quatro dias de brumas e chuvas em que tudo ainda era muito nebuloso para ele. Ele passa a imaginar a história que poderia escrever inspirando-se no quadro de Chirico. O tempo da história seria o período clássico; o local, o Mediterrâneo, e a narrativa não teria preocupações com estilo de período ou com a explicação histórica deste. O narrador chegaria a esse porto clássico, por um motivo ainda a ser definido, passaria pela figura embaçada no cais, através de toda a desolação, vazio e silêncio, e entraria, por um dos portões, numa cidade que logo o engoliria, com seu barulho e movimento de vida; na sua imaginação, como uma cena de bazar indiano. Ele teria vindo numa missão que lhe traria aventuras e encontros, mas, gradativamente, se apossaria dele um sentimento de pânico, de ter vindo para nada, sem missão alguma, de estar perdido. Ele tentaria voltar para o cais, mas não saberia como, até que, num momento de crise, ele entraria por um dos portões e chegaria ao porto da chegada, sentindo-se a


o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução

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salvo, num mundo familiar à sua memória. Mas a vela e o barco já não estariam mais lá e não haveria mais como retornar. O narrador, com sua leitura do quadro de Chirico, está nos falando de sua própria experiência como sujeito pós-colonial, em busca de sua própria identidade, dividida entre sua cultura de origem e a cultura que lhe foi imposta. Esta cultura, por sua vez, o faz construir uma imagem idealizada do seu espaço e do espaço do outro, o que lhe dá a sensação de que nunca está no lugar adequado, ou que tal espaço, uma vez apreendido, deveria ser imutável. Por exemplo, quando ele, aos dezoito anos, sobrevoa pela primeira vez a ilha de Trinidad, rumo à Inglaterra, a imagem que tem da ilha é totalmente diferente daquela que ele tinha antes: de uma imagem de pobreza e desorganização, a ilha, para usar suas próprias palavras, é "como uma paisagem num livro. como a paisagem de um país de verdade". Por outro lado. quando ele reconhece na paisagem da área rural onde, vinte anos depois, vive na Inglaterra. a paisagem das pinturas de John Constable, seu desejo, a princípio. é que essa paisagem se mantenha imutável para que ele possa ter, em sua memória, uma imagem do porto seguro. 5 ALEXANDRIAN, Sarane. O Surrealismo. Trad. Adelaide Penha e Costa. São Paulo: EDUSP, 1976.

Naipaul se inspira em um dos "enigmas" de Chirico para escrever a sua obra. Segundo Sarane Alexandrian: 5 Chirico é o pintor do silêncio; descreve o momento da espera "em que tudo se cala" e se paralisa, diante de um presságio ou de uma aparição que se anunciam. O seu universo está no limiar do acontecimento. Encerra nas suas linhas calmas e harmoniosas o medo e a curiosidade do que vai acontecer. (p. 60)

René. Histoire de la peinture surréaliste. Libra-

6, PASSERON,

rie Générale Française, 1968.

É por isso que, ainda de acordo com Alexandrian, a Chirico, para conceber seus "enigmas", bastam elementos simples, tais como "um relógio, uma estátua vista de costas, uma sombra furtiva e os cheios vazios de uma arquitetura para a composição de quadros assombrados". Para autores como René Passeron,6 apesar de os títulos de seus quadros terem sido dados por seus amigos poetas, especialmente Apollinaire, "( ... ) como negar que eles convenham ao mundo de expatriação através do qual Chirico coloca suas questões sem resposta? A ausência de resposta é simbolizada pelos personagens-fantasmas de muitas composições que convidam à análise psicológica.". (p.45)

CAVALCANTI, Carlos. Como entender a pintura moderna. S' ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981.

7

É ainda de acordo com o mesmo autor que Chirico, como Rimbaud e muitos outros, "não conseguiu fazer face ao absurdo, naquele ponto onde todas as contradições se resolvem no vazio da interrogação sem resposta". Chirico inspirou os surrealistas franceses que, segundo Carlos Cavalcanti: 7 "( ... ) também conferiram aos simples objetos quotidianos significação estranha, mergulhando-os numa atmosfera de mistério e absurdo". (p.I78)


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Chirico também inspira o narrador de Naipaul para contar sua história, pois como desterritorializado, ele também se vê sempre no limiar dos acontecimentos, no limiar dos espaços geográficos. mas. paradoxalmente. ele não se cala; ao contrário, procura respostas para a sua identidade pós-colonial híbrida. Ele também procura resposta para sua identidade dividida entre o homem e o escritor. Conforme observa Suzana Schild: 8

8. SCHILD,

Suzana. Um autor

procura seu porto seguro. In: Idéias/Livros. Jornal do Brasil.

12/3/94, p.5.

Com a identidade dispersa entre a formação por rituais indo-asiáticos. a vIvência na ilha caribenha, e a Inglaterra adotada, V. S. Naipaul debatia-se também entre os contornos mal delimitados entre o homem e o escritor, entidades sentidas como separadas, e que apenas vez por outra se intercomunicavam".(. .. ) "Apesar da angústia. Naipaul não tem pressa na chegada: chega devagar descrevendo com minúcias caminhos, vegetação e paisagens."

Diferentemente de Chirico, Naipaul procura encontrar a resposta para seu problema de identidade dispersa entre múltiplos espaços, Ele faz isso, usando para escrever, as técnicas que John Constable usava para retratar as paisagens inglesas: descreve, com ricos detalhes de cores a vegetação e a paisagem da área rural perto de Salisbury, Conforme considerações de vários autores, Constable introduz, na pintura da paisagem, uma técnica nova, a de aquarela e pintura ao ar livre, rompendo com os padrões acadêmicos anteriores, com o objetivo de retratar cada mudança provocada pelos efeitos de luz e sombra na natureza: "Do ponto de vista sensorial, ele (Constable) exprimirá rigorosamente as afinidades do artista com a natureza, suscitará também a criação de uma técnica própria; enfim, ele sugerirá problemas específicos que, ao longo de todo o século XIX, vão se opor às tradições acadêmicas", ( .. ,), ele prova a necessidade de fixar a mobilidade essencial que aí (na natureza) descobre. Uma existência melancólica o leva a comover-se sobre

\J.

LES GRANDS SIECLES DE LA

le dix-neuvieme si eele. Geneve/Paris/N. York: Edilions Albel1 Skira, 1951.

PEINTURE:

a fuga do tempo, com o propósito de o eternizar. Estas são as inclinações que pennitirão a Constable fazer viver uma paisagem. e então descobrir uma técnica nova para servir uma estética que inauguraria na pintura uma das fonnas de Romantismo" 9 (p.

45)

Diz ainda Gina Pischel lo sobre a obra de Constable: Em Constable, existe um espírito quase caseiro, de submissão humilde à natureza; espírito que, num breve trecho de área rural inglesa ou de suas praias o levará a descobrir "motivos" infinitos de inspiração, "Dois dias, ou duas horas, nunca se assemelham. A partir da criação em diante, nunca existiram duas folhas idênticas", dizia ele. E, úmida e fresca, sob céus luminosos e com as distãncias que a atmosfera torna diversas umas das outras, esta mobilidade da Natureza é aquilo que ele apaixonadamente retratará, esquecendo o mundo. Cp. 134)

10. PrsCHEL, Gina. História Universal da Arle. 2' ed. V. 3. Trad. Raul de Polillo. São Paulo: Cia Melhoramentos de SP. 1966.


O enigma da fusão ticção/crítica sobre tradução

li. SÉRULLAZ, Maurice et a!. Enc.:yclopédie de l'lmpressionnisme, Paris: Somogy, 1974.

15)-

Parece que fica claro que a nova técnica que Constable introduz na arte da pintura tem como fundamento a participação intrínseca do sujeito/pintor no registro das mutações inerentes à natureza: o pintor observa, ao ar livre, todas as nuances de cores e luz e as retrata de acordo com uma sensibilidade que lhe é própria, Constable é considerado por autores, tais como Maurice Sérullaz ll et ai, como um dos precursores do impressionismo que, no dizer desses autores: É um "sistema de pintura que consiste em traduzir puramente e simplesmente a impressão tal qual ela é experimentada materialmente". O artista impressionista "propõe-se a representar os objetos a partir de suas impressões pessoais sem se preocupar com as regras geralmente admitidas." (p.7)

12

SCHILO, Suzana. Opus Cit.

É a resposta que Naipaul encontra para resolver a questão da identidade dispersa entre espaços e entre o homem e o escritor: deixar Huir o seu sujeito, com todo o hibridismo de culturas, na sua experiência de vida, retratando de acordo com impressões multi facetadas, os espaços miscigenados das culturas pós-coloniais. E se ele encontra o porto seguro que procura, este porto é um espaço. no meio da Inglaterra. onde ele "entrelaça. ( ... ), presente e passado, Trinidad. Índia e Inglaterra ( ... I". conforme nos diz Schild. 12 O resultado do romance de ~aipaul é que. para os "sujeitos traduzidos", nas palavras de Salman Rushdie. não é possível a volta à origem pura, nem o encontro de um espaço/alvo imutável. Uma das provas disso é que, em Trinidad, no ritual de despedida da irmã morta, o pândita que conduz a ceriminônia "( ... ) equaciona o Hinduismo - especulativo, multifacetado, de raízes animistas - com as fés reveladas do Cristianismo ( ... )" (p. 348). Ou o fato de ele usar um Gita com traduções inglesas, e nos intervalos do ritual e das canções de alguns versos famosos em Sânscrito, ele fazer uso dessas traduções inglesas, sendo explicada a sua atitude da seguinte forma pelo narrador: "( ... ), usando uma palavra ecumênica (assim penso eu), ele disse que "compartilhava" Gitas. As pessoas lhe davam Gitas; ele dava Gitas para as pessoas". (p.349). O porto seguro de Naipaul é esse espaço compartilhado, ambivalente, de Gitas em Sânscrito e em inglês e de equacionamentos de religiões. Este também é o espaço em que melhor se coloca a tradução: num espaço ambígüo entre o mesmo e o outro, numa "interzona" em que se misturam identidades e culturas. Há várias outras ligações entre a narrativa da obra de Naipaul com a pintura, entre elas, destacarei apenas mais uma, apenas para reforçar o ponto de que o estilo da pintura paisagística de Constable torna-se um meio de comunicação com o mundo exterior. O senhorio da área rural onde vive o narrador/escritor de N aipaul, que nunca é visto claramente por este, pois sofre


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de acedia, comunica-se com o primeiro através de poemas que escreve e que representariam uma forma de boas-vindas. Ele deixa crescer no jardim das casas de campo uma hera que recobre, especialmente a sua casa, simbolizando o seu afastamento do mundo exterior. Entretanto, ao se curar, ele passa a se comunicar com o narrador através de desenhos ( ... ) estranhamente fluentes, praticados, fáceis, como se tivessem sido feitos muitas vezes antes, como se viessem de um segmento daquela vida passada da qual meu senhorio tinha acabado de se recuperar: desenhos do tipo de Beardsley, de outra época, com linhas longas e encaracoladas e pequenas áreas pontilhadas enfatizando as grandes áreas brancas. (p. 254)

Todas as ligações com a pintura apontadas na obra de Naipaul permitemnos dizer que se trata do gênero de romance denominado künstlerroman que, de acordo com Solange Ribeiro de Oliveira,13 abrange: ( ... ) qualquer narrativa onde uma figura de artista ou uma obra de arte (real ou fictícia) desempenhe função estruturadora essencial, e, por extensão, obras literárias onde se procure um equivalente estilístico calcado em outras artes ( ... ) (p. 5).

A autora reforça essa mesma idéia quando conclui que "a "leitura" de um quadro, C.. ,), pode resumir toda a estruturação de um romance C... )" Cp. 9), acrescentando que: ( ... ) o esforço da leitura - da própria obra ou da alheia - pode indicar também a busca do conhecimento, a elaboração do mundo pela mente. Ou, alternativamente, a obra de arte transforma-se em metáfora do romance. (p. 9)

A obra de Naipaul parece encaixar-se, introduzindo algumas alterações de sinais, em todas as alternativas de künstlerroman apontadas pela autora: a tela de Chirico inspira o narrador/escritor na escritura da história de sua vida, viagem em busca da identidade e espaço dispersos, e que, segundo ele, tem muitos pontos em comum com a leitura que ele faz do quadro do pintor. Podemos dizer, então, que a pintura serve como ponto de partida para o romance; ponto de partida que será refletido e mudado ao longo da narrativa. Conseqüentemente, usando, para escrever, a técnica paisagística que Constable usava para pintar no século XIX, ele está também procurando, na narrativa, um equivalente estilístico de outra arte, ao mesmo tempo que sugere, como resposta para o enigma homem/escritor, o impressionismo mais que o surrealismo como fonte de iluminação, Ao mesmo tempo, a tarefa de ler a obra dos pintores mencionados está estreitamente ligada ao processo de auto-conhecimento, de busca de identidade e espaço pelo narrador. Por fim, a tela de Chirico, procurando traduzir o mistério que circunda momentos de

13. OLIVEIRA.

Solange Ribeiro

de. Literatura e Artes Plásticas: o künstlerroman na ficção contemporânea. Ouro Preto: UFOP, 1993.


o enigma da fusão ficção/crítica sobre tradução 157

nebulosidade e indefinição de impressões, tais como a chegada a um lugar distante, pode ser considerada não como metáfora, mas como metonímia do romance, Para tal consideração, é interessante uma análise da capa do romance. Se, no caso de O quarto fechado, de Lya Luft, Oliveira sugere que a tela imaginária lida pela personagem principal, transforma-se na metáfora do romance, portanto constituindo o espaço integral da capa deste, no caso do romance de Naipaul, há apenas uma reprodução pequena da tela de Chirico, à direita da capa. Em parte, talvez, tentando "reproduzir" a pequena reprodução que o narrador viu no livreto da biblioteca, mas também, certamente, para mostrar o papel apenas parcial que essa obra e os preceitos filosóficos subjacentes a ela têm para o narrador na busca de sua identidade. 14 MURRAY,

David. Opus Cit.

Partindo das várias alternativas de tipos de künstlerroman, levantadas por Oliveira, vamos chegar também ao texto introdutório de Forked Tongues: speech, writing and representation in North American Indian Texts, de David Murray.14 O autor faz a leitura de um quadro de Frederic Remington O intérprete acenou para o jovem, que ilustra um relato, entitulado O caminho de um índio, no qual as relações entre Índios e brancos são retratadas de forma característica, apagando-se a figura mediadora do intérprete, a respeito do qual sabemos apenas que se trata de um mestiço e nada mais. O quadro é insólito, continua o autor, pois ao mesmo tempo que faz do intérprete o centro de atenção, desloca o ponto de interesse do intérprete para o jovem para o qual o primeiro acena. Murray equaciona essa leitura da tela de Remington com a curiosa postura do intérprete que, só a custa do apagamento de sua identidade, consegue ser o centro das atenções. Um dos objetivos principais do seu livro é: ( ... ) demonstrar as formas complexas e vmiadas pelas quais o processo de tradução, cultural e lingüístico, é obscurecido ou apagado numa ampla variedade de textos que dizem representar ou descrever os índios, e que pressupostos culturais e ideológicos subjazem tal apagamento. (p. I)

A partir disso, a proposta de Murray é focalizar o mediador ou o intérprete e não quem ele aponta, ou seja, é concentrar-se nas várias formas de mediação cultural ou lingüistica que permeiam os encontros de culturas, reduzindo o perigo de tornar o espaço que há entre os dois lados num abismo intransponível, em outras palavras, de transformar as diferenças em outridade. Assim, o autor se propõe a analisar as várias vozes presentes nos textos que objetivam a representação da cultura indígena norte-americana, rejeitando a obliteração da diferença e da mediação, ênfase de um universalismo etnocentrista, e procurando analisá-la dentro de um constante jogo com as unidades e continuidades interculturais.


158

Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Talvez ainda seja prematuro concluirmos que a obra de arte, no texto de Murray, tenha tidO função estruturadora essencial ou que resuma a estruturação do livro, mas pode-se constatar que é um elemento básico, cuja leitura serve como ponto de partida para suas reflexões sobre os vários tipos de representações da cultura indígena e os pressupostos ideológicos que as permeiam. Ademais, o texto de Murray pode estar lançando as sementes para uma escritura de textos teóricos nos moldes de uma escritura que pretende a rasura de limites entre o poético e o científico. Oliveira l5 observa a respeito do künstlerroman:

15. OLiVEIRA, Solange Ribeiro de. Opus Cit.

A presença marcante do künstlerroman na literatura brasileira e européia contemporânea certamente se relaciona com o confronto, no mundo moderno, entre a arte e a ciência. Dois modos de ver o mundo parecem travar um diálogo - e um duelo - na obra de alguns dos mais eminentes escritores do século: a visão do artista e do cientista.

No caso do texto de Murray, parece-nos não apenas a tentativa de estabelecer um diálogo entre os dois mundos, mas ta~bém de mostrar o caminho de mão dupla que pode haver entre ficção e teoria: se é possível teorizar ficcionalizando, também o é ficcionalizar teorizando. As palavras de Liliane Papin,l6 que estuda a importância da metáfora para a arte e a ciência, entre outros temas, também são esclarecedoras da questão e nos remetem às palavras de Jean-Luc Godard,l7 em epígrafe neste texto: "A lingüística, a pintura, a crítica literária, a literatura e a física estão se encontrando

numa encruzilhada, enquanto, antes, tinham seguido caminhos paralelos. C.. ) Como disse Roger Jones em Physics as Metaphor (Minneapolis: University of Minnesota Press. 1990, -: "somos todos poetas e o mundo é nossa metáfora". (p. 9)

16 PAPIN, Liliane. Apud: OLi· VEIRA, Solange R. de. A tradução intersemiótica: a questão da representação. Trabalho apresentado no I Congresso de Ciências Humanas das Universidades Mineiras, São João deI Rey, maio de 1993. (no prelo) 17 GODARD, Jean-Lue. Apud: TRIGO, Luciano. Vampiro. São Paulo: Iluminuras, 1993. p. 5


Transcodificaçãoe metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues Fred M. Clark

o

dramaturgo concebe e constrói seu mundo ficcional com palavras, isto é, dentro do código verbal. A representação teatral, a concretização pelo diretor do texto escrito em espaço e tempo determinados, constitui uma transcodificação, uma vez que é uma transferência (ou tradução) de signos do código verbal (escrito) para um conjunto complexo e complicado de múltiplos códigos ou subsistemas de signos teatrais. Desta transcodificação nascem os mundos possíveis do palco. I. ELAM, Keir. The Semiolics oI Theatre and Drama. Londres & N. York: Methuen, 1980. 2 HONZL, Jindlich. A mobilio dade do signo teatral. In GUINSBURG, J., COELHO NETTO. J. Teixeira e CARDOSO, Reni Chaves, orgs. São Paulo: Pers· pectiva, 1988, p. 125-47. (O artigo foi escrito em 1940).

Dentro da própria representação podem operar outras transcodificações. São estas transcodificações teatrais que interessam aqui, essas associadas ao "fator da mobilidade" (ou "a regra transformacional" da representação teatrai, 1 noção caracterizada pelos estruturalistas do Círculo de Praga. Honzl (1940)2 explica que qualquer veículo sígnico no palco (acessório, iluminação, movimento, etc.) pode significar qualquer classe de fenômeno, i.e., no signO' teatral as relações entre veículo sígnico e referente não são fixas, são variáveis: " ... no teatro ... a transformabilidade é a regra, e seu caráter específico" (Honzl, 141). O mundo possível do palco pode ser construído através do fator espacial, arquitetural ou pictorial, ou pode emergir por meio dos gestos e/ou do código verbal. Segundo Elam (15), a transcodificação ocorre no espetáculo quando "uma unidade semântica específica (uma porta, por exempio) é evocada através do sistema lingüístico ou gestual e não através do


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

sistema arquitetural ou pictorial". Quer dizer, uma informação que é geralmente veiculada por um código é repassada para os espectadores através de outro. Kowzan (1968)3 formulou uma taxonomia para o signo teatral composta de 13 sistemas, entre os quais a linguagem verbal, o tom, a mímica facial, o gesto, o movimento, a maquilagem, o penteado, o vestuário, o acessório, o cenário, a iluminação, a música e o ruído. O teórico refina a sua tipologia, classificando esses signos em termos de auditivos e visuais, de tempo e espaço, e em relação ao ator, i.e., se são localizados no ator ou fora dele. A sistematização de Kowzan dos fenômenos semi óticos teatrais ainda é a mais fundamental no estudo dos sistemas sígnicos do palco. Mas, como no caso de qualquer redução de uma unidade complexa a categorias específicas, há problemas inerentes ao seu estudo. Outros teóricos. percebendo as falhas da classificação de Kowzan, acrescentam outros sistemas sígnicos, para incluir a arquitetura da própria casa de espetáculo (Elam 1980: 50; Esslin)4 e o próprio espectador (Van Zyl).5 Segundo Issacharoff,6 um dos problemas no trabalho de Kowzan é a inobservância do fenômeno da interrelação simultânea dos signos dos vários sistemas do espetáculo. A representação teatral, através do dinamismo criado pela mobilidade do signo, faz do palco um conjunto intersemiótico ("uma verdadeira polifonia informacional", como diz Barthes7 em que uma multiplicidade de signos dos vários sistemas existem e coexistem simultaneamente, com signos significando não só dentro de seu próprio sistema mas também dentro de outros. Para ilustrar a noção da transcodificação teatral usarei a taxonomia elaborada por Kowzan e buscarei exemplos concretos da peça Bonitinha mas ordinária (1962) de Nelson Rodrigues. 8 Neste texto o dramaturgo retoma vários temas prediletos de seu teatro, especificamente a decadência e desintegração da família patriarcal. Como diz uma personagem em certo momento da peça: Toda família tem um momento, um momento em que começa a apodrecer ... Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo.

Nelson focaliza a fragilidade desta instituição monolítica da sociedade brasileira para explorar temas mais abstratos e universais que sempre definem suas obras dramáticas: a instabilidade da percepção humana que resulta em uma realidade cheia de ironias e caracterizada, no mundo textual, por um contraste constante entre o real e o imaginado. Daí o elemento metateatral que sublinha seus mundos ficcionais: o seu teatro tira a máscara e se mostra como teatro, ao mesmo tempo em que Nelson tira a máscara da família patriarcal e revela sua hipocrisia e instabilidade.

3 KOWZAN, Tadeusz. Signos no teatro - Introdução li semiologia da mle do espetáculo. In GUlNSBURG, 1., COELHO NETTO, 1. Teixeira e CARDOSO, Reni Chaves, orgs. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 93-123. 4

ESSLlN, Martin. Tlle Fie/d oi

Drama. Londres: Methuen. 1987.

VAN ZYL, John. Towards a Socio-Semiotic of Performance. Semiofic Serne, 3 (2): 995

111,1979. Michael. Drama and the Reader. Poelics To-

6. IssAcHAROFF,

da)', 2 (3):

255-63, 1981.

BARTHES. Roland. Criticai Trad. Richard Howard. Evanstone: Northwestem University Press, 1972.

7

Essa.l's.

8.

RODRIGUES, Nelson. Teatro

completo. Vol. IV. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.


Transcodificaçã0 e metateatralizaçãe no teatro de Nelson Rodrigues

161

o mundo ficcional do texto focaliza o mundo de ilusões de duas mulheres (Ritinha e Maria Cecília) que vivem atrás da máscara imposta pela sociedade tradicional. Ambas vivem uma mentira; Ritinha ostenta a fachada pública de uma pobre professora que trabalha para que as suas irmãs possam se casar virgens. Maria Cecília vem de uma família rica que insiste em que ela, mesmo tendo sido violada, se case. Criando um triângulo relacional, entra a personagem Edgard, que trabalha para o pai de Maria Cecília (o Df. Werneck). Edgard é selecionado (comprado) para se casar com Maria Cecília, mas é Ritinha a quem ele adora. O dilema de Edgard é o seguinte: ou se casa com Maria Cecília, sabendo que é comprado, ou se casa com Ritinha, sabendo que ela é prostituta. No final, ele foge com Ritinha, ao saber que a violação de Maria Cecília é uma mentira, que foi planejada por ela mesma, que ela não corresponde à imagem de menina pura projetada pelo pai. O desmascaramento das duas mulheres é realizado através de um recurso bastante comum no teatro rodrigueano: o flashback que constitui uma representação dentro da representação, com um espectador textual - aqui, Edgard - chegando a saber a verdade ao mesmo tempo que o espectador extratextual. Esses recursos são realizados em parte pela transcodificação que enfatiza sobremaneira a metateatralidade do texto. No Ato I1I, Edgard observa a cena em que Maria Cecília é violada. Uma porção do palco é transformada em outro palco enquanto o espaço é usado para a narração visual do estupro, a partir da perspectiva de Maria Cecília. O dramaturgo usa a luz em vez de acessórios para definir o espaço físico-temporal: Maria Cecília encaminha-se para uma área de luz. Peixoto aparece. Evocação do episódio. (298).

Pouco depois Edgard e o espectador sabem> que a versão é puro teatro, que não passa de mentira. A verdade sobre a vida de Ritinha é revelada da mesma maneira. Um espaço do palco é aproveitado para uma narração em que o espectadcu vê que Ritinha foi explorada pelo chefe de sua mãe e que esta se torna, logo em seguida, prostituta com o objetivo de sustentar a família. Edgard fica em um lugar no palco enquanto Ritinha se afasta para outro espaço onde represental o passado. O fato de que o espaço dela constitui uma representação é afirmado duas vezes quando Ritinha, sem sair do lugar demarcando o passado, abandona a ação daquele espaço temporal e fala com Edgard no presente: "Sem sair do lugar, Ritinha vira-se e começa a falar para Edgar" (304); "Vira-se então para Edgard sem sair do lugar" (305). Neste caso o espectador percebe Edgard como espectador dentm do texto, e os dois aprendem nova informação sobre a vida de Ritinha.


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A transcodificação define dois recursos específicos que são usados na representação, recursos que, ao mesmo tempo, revelam o statlls ficcional do texto: a construção da cena pelos atores e o uso de projeções em uma tela no palco. Os dois são usados várias vezes, constituindo uma cadeia através do texto que constantemente rompe qualquer ilusão realista no palco. manipulando o espectador entre dois códigos nem sempre opostos: o código teatral (que o leva para mundos imaginários, i.e., o ficcional) e o metateatral (que leva para o real, i.e., o mundo extratextual). Emerge no texto um realismo não visto em obras tradicionais, um realismo mais amplo para capturar as complexidades da realidade caótica e ambígua do século XX. Em vários momentos do texto, o dramaturgo abandona o cenário naturalista e a representação realista (cf. Elam 13: "A representação dramática realista ou ilusionista limita rigidamente a mobilidade da relação sígnica: no teatro ocidental geralmente presumimos que a classe de objetos é significada por um veículo sígnico reconhecível, de alguma maneira, como membro da classe"), criando o mundo ficcional com acessórios imaginários através da pantomima. O movimento cênico do ator e o cenário, que constituem sistemas sígnicos independentes na classificação de Kowzan, substituem os sistemas - o pictorial e/ou o arquitetural - que geralmente seriam colocados na cena. No Ato I, os atores representando Ritinha e Edgard criam a cena em que as duas personagens viajam em um jipe: Ritinha e Edgard se dirigem para duas cadeiras. que vão funcionar como se fossem o jeep. Os dois vão mover as cadeiras para dar ilusão de velocidade. curva, solavancos, etc. O suposto jeep parte aos trancas. (261)

As duas cadeiras pertencem ao sistema do cenário. mas aqui perdem o seu valor representacional normal quando os atores as arranjam lado a lado como as poltronas dum automóvel, e fazem os gestos de entrar nele. Com seus corpos simulam os movimentos do carro. O código verbal é usado para completar a cena. As personagens discutem a velocidade do jipe: Ritinha: P'ra que essa velocidade? Edgard: Gosto de correr. (261)

Na estréia da obra no Rio em 1962, o diretor usou um jipe verdadeiro no palco, o que levou um crítico a notar que teria sido melhor seguir as instruções originais do dramaturgo. Como disse Fausto Wolff: "Não vi necessidade de colocar um jipe, que mais parece um carro alegórico, em cena, quando poderia ter resolvido o problema com duas cadeiras e mímica".9 O uso do objeto real destruiria em parte o efeito metateatral realizado através da mímica, modificando a perspectiva do dramaturgo sobre a realidade, e assim o

9. MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrig ues: DramaturK ia e encenaç"es. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1987.


Transcodificação e metateatralização no teatro de Nelson Rodrigues

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realismo particular criado aqui e em outros textos rodrigueanos. Parece que Antunes Filho, diretor da produção em São Paulo em 1974, entendeu isso quando obedeceu a didascália do texto. Sábato Magaldi comentou o seguinte sobre a produção de Antunes: "O propósito da montagem era dinamizar o texto. Na encenação original. no Rio, por exemplo, usava-se um jipe para o passeio dos protagonistas. Aqui, como o ator era o senhor do palco, ele usava o que estava a mão - duas cadeiras" (Magaldi, 153). O outro recurso é aquele que cria uma fusão e contraste entre o teatro e o cinema (e não estou considerando aqui as características cinematográficas da peça já comentadas por vários críticos: cf. Magaldi, 43; 154). A resenha de Bárbara Heliodora sobre a produção de 1962 critica o uso de projeções; Heliodora insinua que o recurso foi imposto no texto pelo diretor e que, neste caso, não realizou o efeito usual: Nelson Rodrignes usa o método característico do expressionismo, as cenas muito curtas, pulando de um lugar para outro etc., etc., e Martim Gonçalves usa o outro método comum ao expressionismo, ou seja, as projeções devem ser ligadas a um certo critério, geralmente o de intensificar (dramaticamente) certas ações de maior significado ... O resultado dessa confusão é que o filme não se integrou totalmente com a ação. (in Magaldi 1987: 147)

10 BRECHT, Berto1d. Brecht on Theatre. WIUET, John, org. N. York: HiII and Wang, 1964.

Kowzan associa a projeção ao sistema de iluminação, mas diz que seu papel semi ótico ultrapassa aquele da luz, e ele indica que o filme realmente pertence a outro código artístico: "O emprego da projeção no teatro contemporâneo toma formas bastante variadas: ela se tornou um meio técnico de comunicar signos pertencentes a sistemas diferentes, e mesmo situados fora deles" (1978: 113). O recurso constitui um experimento interessante no teatro de Nelson Rodrigues; não serve simplesmente para intensificar a ação, mas também para criar o estranhamento, o que possivelmente explica a confusão de que fala Heliodora. Este efeito, ao distanciar o espectador do palco, enfatiza o status ontológico do texto, descobrindo o palco como espaço ficcional, i.e., como teatro. Brecht usou projeções na sua primeira produção de Mãe coragem, com a intenção de criar essa distância que romperia qualquer identificação pessoal entre espectador e o que acontecia no palco: "As projeções não são simplesmente recursos mecânicos ... não servem para ajudar o espectador mas para dificultar a sua percepção; impedem a sua empatia completa, interrompem o seu envolvimento automático. Transformam o impacto em um impacto indireto",1o Brecht queria que seu espectador pensasse, que meditásse sobre o texto, especificamente sobre os aspectos políticos. O texto rodrigueano insiste em que os espectadores reconheçam o status ficcional do palco, fazendo com que estes meditem sobre o mundo extratextual, sobre a sua complexidade e sobre as fronteiras frágeis entre o real e o


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imaginado. Nelson focaliza essas fronteiras quando visualiza a história através da ação viva e das projeções de uma maneira muito sutil: ele contrasta o recurso cinematográfico, que na 'Sua única dimensão plana na tela parece ficcional, com a multidimensionalidade da ação viva do palco, com pessoas vivas em ações fisicamente verdadeiras. Por exemplo, há uma cena em que as personagens são representadas na tela enquanto os atores representando as personagens aparecem no palco: "Projeção de D. Ivete e Edgard no tanque. Na frente da tela os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque" (271). Produz-se uma situação irônica na medida em que os dois aspectos - filme e ação viva - são parte de uma estrutura ficcional, i.e., a representação." A projeção metateatraliza o texto, mas ao mesmo tempo funciona como parte integrante da representação de uma maneira prática, servindo à evolução da história. Através das projeções, o diretor cria o cenário em termos de espaço, e.g., "Projeção do edifício de Edgard" (271); dentro da cena cria-se a sensação de movimento: "Na tela, sucessão de paisagens, como se o carro é que estivesse em movimento" (296). A projeção significa deslocamento da ação de um lugar para outro, e, às vezes, envolve um outro código, e.g., na cena citada acima onde D. Ivete e Edgard representam a cena que está projetada na tela ("os dois vão viver, com gestos, a cena do tanque"), e na seguinte onde o filme na tela cria o cenário do cemitério e a pantomima cria um acessório (o jipe): "Na tela o portão do Cemitério São Francisco Xavier. Edgard e Ritinha saltam do jeep" (288). As projeções servem para dramatizar certos momentos da ação, como na cena do suposto estupro de Maria Cecília, e na cena em que os espectadores vêem Maria Cecília e Peixoto mortos: "Na tela, o rosto ensangüentado de Peixoto. Maria Cecília corre pelo palco com os crioulões atrás. Na tela, a cara de Maria Cecília desfigurada pelo pavor. E, no palco, o negro alcança e domina Maria Cecília" (299); "Projeção - No assoalho Maria Cecília e Dr. Peixoto mortos" (323). A projeção se torna signo simbólico no final da representação quando os protagonistas, Edgard e Ritinha, fogem para o futuro: "Na tela, o amanhecer no mar" (326). O uso da transcodificação retoma uma tentativa iniciada em Vestido de noiva, de 1943, de criar um realismo bastante amplo para capturar as realidades do século XX. Através dos vários recursos que transcodificam os signos teatrais, o dramaturgo rompe com a representação realista tradicional. O espectador não recebe passivamente o mundo ficcional do texto. O palco se torna um espaço em que espectador e ator coparticipam ativamente na criação do mundo ficcional. Ao enfatizar o aspecto metateatral na representação, a transcodificação faz com que o espectador oscile entre os códigos que definem o teatro como arte e aqueles que definem a realidade extratextual, realidade nem sempre definível em termos concretos e específicos, e nem sempre separada facilmente da realidade textual.


Identidade nacional e sociedade multicultural

Silva no Peloso

Texto preparado para a mesaredonda "Globalização, Identidades Nacionais e Culturas", do "Encontro de Cultura Brasileira", realizado em Brasília de 5 a 11 de novembro de 1995.

Na

Itália, o conceito de multiculturalismo está presente no debate cultural e político há pouco tempo, como conseqüência das mudanças em curso numa sociedade que se está tornando cada vez mais multiétnica e multirracial. Isto não significa, porém, que ela se esteja tornando automaticamente multicultural. O adjetivo, que não é sinônimo obviamente dos precedentes, indica uma sociedade em que as culturas de raças e etnias diversas possam ser consideradas igualmente dignas e possam interagir entre si para produzir novos resultados culturais. A palavra portanto alude, mais do que a uma realidade de fato, a um objetivo ainda difícil de se alcançar, e não só na Itália. As Américas no conjunto, e o Brasil em particular, onde a vida mesma da sociedade se realiza como simultaneidade de civilizações, culturas e tradições diferentes, constituem, há quatrocentos anos, um extraordinário laboratório multicultural, que nos últimos anos foi objeto de estudos importantes, desenvolvidos com metodologias e fontes de pesquisa inovadoras e originais. O ponto de partida comum será o reconhecimento de que a sociedade moderna cada vez mais se configura, por um lado como um conjunto de mercados e de técnicas culturalmente neutras e, por outro, como um conjunto muito diversificado de orientações culturais. Neste sentido, não haverá um risco intrínseco na aceleração tipicamente moderna dos intercâmbios entre as culturas, na multiplicação dos contactos, na superabundância de comunica-


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ções? Da complexa interação entre homens e máquinas que elaboram informações parece delinear-se uma espécie de Super Ego (não num sentido psicanalítico, mas no sentido da física moderna mesmo) determinado pela profunda e contínua extensão das conexões eletromagnéticas, das redes telemáticas e dos pacotes de informações. Este cenário prefigura, num futuro não muito distante, o surgimento de um "cérebro planetário", um Ego total, rico, sem dúvida, de contradições e de conflitos que caracterizam a nossa existência individual e de grupo, mas configurado também como uma espécie de autoconsciência global que, segundo um jovem físico e matemático americano, Frank J. Tipler,1 poderia representar "um momento da evolução de Deus". É a teoria do "ponto ômega": um modelo físico de Deus, a descrição de uma divindade que não contradiz as leis da física e da biologia, mas, pelo contrário, representa o coroamento final delas. O universo, segundo Tipler, não é imóvel; transforma-se continuamente, evolui, passa da matéria inanimada à vida, e esta se torna sempre mais complexa até produzir os seres humanos. Ao mesmo tempo, esta evoulução consiste num aumento contínuo de informação, ou seja, numa entidade imaterial, enquanto os seus substratos materiais (entre os quais os seres humanos) se modificam de acordo com as condições físicas do universo. Cada espécie, segundo a teoria de Tipler, vem sendo substituída por outra capaz de codificar mais informações, e a história do nosso planeta representa apenas uma minúscula porção da futura história da vida no universo. Cada um de nós, portanto, seria somente uma molécula de um deus que está nascendo. Se o universo é infinito, também o é a sua construção, e, portanto, aquela do deus que com ele se identifica. Trata-se de um incessante aumento de informação sempre mais desmaterializada. Se existe uma conclusão, teoriza o modelo matemático elaborado por Tipler, talvez esta corresponda a uma singularidade final, ao fim do universo. É um ponto além do espaço e do tempo que representará a definitiva autorrealização de Deus: o Ponto Ômega, justamente. Mas além da solução apresentada como hipótese nesta singular mistura de física, filosofia e religião, um pouco à Orwell, resta o problema de uma dicotomia, aparentemente insolúvel, entre identidade cultural e cosmopolitismo, entre defesa intransigente dos valores absolutos do etnocentrismo e um multiculturalismo geral e sem limites, que acaba, por isso mesmo, por relativizar toda experiência cultural, limitando as potencialidades de cada uma. Já em 1955, Claude Lévi-Strauss, no seu Tristes tropiques,2 falava de "entropologia", fundindo os dois termos antropologia e entropia para representar uma realidade em que, à multiplicidade dos contactos e das relações entre etnias, civilizações e culturas diversas, corresponde uma perda do potencial inovador ocasionada pela diversidade e por um nivelamento de situações culturais muito diferentes. Em poucas palavras, o reino da Coca-Cola, do hambúrger e do McDonald's convive, em todo o mundo, com o desaparecimento progres-

I

TIPLER, Frank 1. The Omega

Point Theory: a Model of an Evolving God. In: Phvsics,

Philosophy and Theolo~y. RUSSELL, Robert J., STOEGER, Williarn R. & COYNE, George v., orgs. Vaticano: Vatican Observatory, 1988.

C1aude. Tristes fropiques. Paris: Plon, 1955.

2 LÉVI-STRAUSS,


Identidade nacional e sociedade multicultural

167

sivo das etnias menos protegidas (as últimas tribos de índios na América do Sul) e com as várias diferenciações culturais no interior de uma mesma sociedade (cultura popular, arte, tradicões locais). Hoje, há quarenta anos de distância, não se pode dizer que a questão levantada por Lévi-Strauss tenha perdido a atualidade; muito pelo contrário, ela se impõe dramaticamente como um dado fundamental ainda por resolver na perspectiva de um desenvolvimento equilibrado das relações mundiais. Como preservar uma diversificação cultural que se mantenha no contexto de princípios universalmente aceitos, defendendo, ao mesmo tempo, as várias identidades nacionais e culturais? Eis o verdadeiro desafio da sociedade multicultural, o principal problema que o milênio em término entrega ao futuro. ~. TODOROV, Tzvetan. Nous et

le" au!re". La réJlexion Jeançaise sur la diversité humaine.

Pmis: Seuil, 1989, p. XVIl.

.. LE PICHON, Alain & CARONIA, Letizia, orgs. SMuardi venuti da lontano. Milão: Bompiani,1991. 5.

Idem, Prefácio de Umberto

Eco, p. 7-10.

6 LÉVI-STRAUSS, Claude. Op. cit., p. 466.

Com certeza será preciso, antes de tudo, pôr em prática aquele "diálogo" de que fala Tzvetan Todorov em Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité humaine 3 e que se configura simultâneamente como um diálogo com os contemporâneos e, através da história, da literatura e da arte, com autores de outros tempos e de outras as latitudes. O objetivo só poderá ser, evidentemente, o aprofundamento da própria tradição, da própria identidade cultural, em suma, da própria "diversidade", numa relação constante com todos os outros contextos. Não só porque para participar do diálogo precisamos de uma "língua nossa", mas também porque o "olhar do outro" é fundamental para nos identificarmos, para a definição da nossa própria identidade. É numa perspectiva como esta que se situa uma experiência realizada na Itália, em Bolonha, no ano de 1988, quando uma organização internacional, "Transcultura", convidou estudiosos chineses e africanos para desenvolver uma pesquisa sobre hábitos e costumes daquela cidade. Os resultados foram depois discutidos no âmbito de um congresso internacional e publicados em 1991 no volume Sguardi venuti da lontano. 4 No prefácio, Umberto Eco fala dessa experiência como exemplo de "antropologia recíproca", realizada no momento em que ela é verdadeiramente possível. Ultrapassando a aventura exótica ou a provocação, que parecem constituir antecipações desse tipo de antropologia, como a ficção científica ou as Lettres persannes de Montesquieu, o projeto de um conhecimento e de uma descrição recíproca só agora pode concretizar-se. Os diversos povos do mundo, por estarem mais próximos, estão verdadeiramente em estágio de compreender a própria diversidade recíproca. 5

Não sabemos se as palavras de Umberto Eco são demasiadamente otimistas. O que realmente parece é que a experiência, além de algumas divertidas observações (a descrição das adegas de Bolonha como grutas em que se bebe água vermelha; o estranho costume dos europeus de ficarem nus na proximidade do mar, etc.) levanta questões interessantes. Será finalmente possível superarmos aquela antropologia que Lévi-Strauss definia como "remorso do Ocidente"6 numa perspectiva nova que aceite o desafio da especu-


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laridade? E sobretudo confrontarmo-nos com modelos etnográficos diversos dos nossos: por exemplo, com esquemas de representação radicalmente diferentes, como aqueles nascidos no âmbito da tradição oral? Além das soluções parciais e incompletas dadas a problemas que não podem ser resolvidos a curto prazo, esta é com certeza uma das perspectivas que mais será preciso desenvolver nos próximos anos. Nesta direção, situamse algumas iniciativas que se vêm destacando no âmbito dos estudos ítalobrasileiros. Aludo, por exemplo, ao importante volume Novamente retrovato. Il Brasile in ltalia 1500-1995,7 fruto de uma pesquisa de mais de dez anos realizada por uma equipe coordenada por Luciana Stegagno Picchio, e de que eu mesmo participei. Ela consistia na pesquisa e catalogação, em diferentes disciplinas, de tudo o que foi publicado na Itália sobre o Brasil, num panorama que se estende das cartas de Américo Vespúcio ao Modernismo, ao futebol e às telenovelas. O volume representa, portanto, um grande repertório do que tem sido a imagem do Brasil na Itália ao longo dos séculos, reunindo, ao mesmo tempo, contribuições de especialistas de áreas diferentes num trabalho comum, baseado numa metodologia, que, utilizando uma definição recente, poderíamos chamar de "complexa". Tendo investigado pessoalmente, no âmbito deste trabalho, os primeiros documentos que se referem ao Brasil, 8 as cartas de Américo Vespúcio, através das quais o imaginário europeu e não só o italiano conheceu o Brasil- observe-se que a Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada um segredo de Estado, ficou confinada por três séculos nos arquivos portugueses -, tive a possibilidade de considerar a importância deste "olhar outro" para uma realidade que foi recriada e reinventada por meio de estereótipos destinados a perpetuar-se até os nossos dias.

7. STEGAGNO PICCHIO, Luciana et alii. Novamente retrovato. II

Se é verdade, como escreveu Oswald de Andrade,9 que, com as cartas de Vespúcio (de que há um testemunho direto na Utopia -1516 -de Thomas More) se inicia o que ele designa de "ciclo das utopias", importante tanto para a Europa quanto para o Brasil, é por isso mesmo fundamental voltar a investigar aquele período com uma metodologia inteiramente renovada, sobretudo em vista das comemorações do quinto centenário do descobrimento do Brasil, que coincide com a abertura do novo milênio. Será preciso antes de mais nada evitar as duas maiores falhas evidenciadas nas recentes comemorações sobre Cristóvão Colombo: a exaltação acrítica e a condenação indiscriminada. Acima de tudo, deve-se evitar o uso de critérios interpretativos vinculados à contemporaneidade e à sua lógica de política cultural baseada em esquemas generalizadores. Continuar a falar, por exemplo, em colonização européia, tomando por base a oposição Europa vs. Novo Mundo, ou em viajante europeu, etc., só tem sentido na medida em que se opera uma delimitação de campo. Numa etapa posterior, tal delimitação deverá ser substituída por análises bem mais articuladas e aprofundadas, uma vez que a colonização portuguesa é bem diferente da espanhola ou da holandesa e que

". ANDRADE, Oswa1d de. A marcha das utopias. In: Do Pau-Brasil e a utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 147.

Brasile in Italia. 1500-1995.

Roma: Presidenza deI Consi· glio dei Ministri, Dipartimento per l'Infonnazione e I' Editora,

1995. 8. PELOS O, Silvano. 11 Mondo Nuovo di Amerigo Vespucci. In: Idem, p. 18-21.


Identidade nacional e sociedade multicultural

169

o viajante italiano trabalha com modelos mentais e culturais diferentes dos utilizados pelo viajante alemão ou inglês, O panorama histórico, cultural e literário só tem a ganhar com uma análise que leve em consideração o multiplicar-se das situações e dos pontos de vista, expressões de um contexto cada vez mais variado e complexo: uma metodologia multicultural, que pressupõe, por sua \'ez, um trabalho intedisciplinar realizado por equipes formadas por especialistas de diferentes áreas. 10 PELOS O, Silvano. 11 viaggio a Roma come evocazione e

metafora nella tradizione brasiliana. In: Ejjetto Roma: il Vhlf.a?io. Roma: Bulzoni, 1995, p. 83-100.

11 TOURAINE,

Alain. La società

delIe mille etnie. In: L' Uni/à. Roma, 23 jan. 1995, p. 2.

É neste âmbito e visando a estes objetivos, bem como calcada neste horizonte teórico, que a Associação Cultural Italo-Luso-Brasileira, dirigida por Sonia N, Salomão e com sede em Viterbo, a cidade de Pedro Hispano, está coordenando uma pesquisa voltada para o estudo e a catalogação de documentos brasileiros de cunho histórico-literário sobre a Itália, Trata-se de uma iniciativa na linha do que já chamamos de transcultura ou de antropologia recíproca, Os primeiros resultados deste tipo de trabalho estão sintetizados num ensaio que publiquei este ano em Roma, em colaboração com o Istituto di Studi Romani, intitulado "Il viaggio a Roma come evocazione e metafora nella tradizione brasiliana",lo que reúne os mais variados testemunhos: desde o do padre Antônio Vieira, que viveu e pregou em Roma, passando pelos da corte do papa Clemente X e da rainha Cristina da Suécia, nos anos de 1669 a 1675, e pelos de Gonçalves de Magalhães, que lá morreu em 1882, até os de Cecília Meireles, que nos deixou belos poemas sobre os munumentos da cidade, produtos de uma viagem realizada em 1953, e finalmente os de Murilo Mendes, que em Roma morou por quase vinte anos, Vale a pena tornar a sublinhar, mais uma vez, que a construção de uma sociedade verdadeiramente multicultural passa pela solução do falso dilema que obriga a escolher entre um etnocentrismo autoritário e um multiculturalismo sem limites. O cerne da democracia consiste, hoje, no reconhecimento de que é possível redescobrir alguns conceitos universais comuns, mesmo possuindo-se valores culturais muito diferentes, com a condição de que seja reconhecida esta diversidade, isto é. o direito à existência de coletividades culturais, étnicas, religiosas. morais. diversas umas das outras, A realização da própria identidade nacional e cultural, construída através da valorização da memória histórica no sentido amplo da palavra, portanto, não só não constitui obstáculo ao processo de aproximação ao "outro", ao "diverso", mas, muito pelo contrário, representa o único caminho para chegar até ele. Vale a pena concluir com as palavras de Alain Touraine: "A integração só tem sentido se é totalmente associada ao reconhecimento do outro, não na sua diferença, mas na sua igualdade comigo mesmo, enquanto capaz, tanto como eu, de dar sentido a uma experiência que associa a razão científica e técnica à memória de uma cultura e de uma sociedade",ll



A nação e as narrações híbridas Literatura hispânica dos Estados Unidos Sonia Torres

wasfun runnin' 'round descalza playing hopsco!ch correr sin pisar líneas Evangelina Vigil

1 GARCIA CANCLlNI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Conflitos multi culturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995, p. 120.

Neste breve espaço, desejo discutir o modelo de "nação", baseado no conceito de unidade, em contraposição às práticas discursivas empregadas na produção literária, que desconstroem o discurso totalizante por meio de textos híbridos, Embora a tendência a se narrar o multiculturalismo das nações seja crescente, ainda podemos observar que nos conflitos interétnicos e internacionais, encontramos tendências que se obstinam em conceber cada identidade como um núcleo sólido e compacto de resistência; por isso, exigem lealdades absolutas dos membros de cada grupo e satanizam os que exercem a crítica ou a dissidência. A defesa da pureza se impõe em muitos países em oposição às correntes modernas que buscam relativizar o específico de cada etnia e nação afim de construir formas democráticas de convivência, complementação e governabilidade multiculturaf.! 'Como ponto de partida para minha discussão, pincei dois exemplos de doutrina fundamentalista de "nação", no discurso de dois porta-vozes de países do centro, O primeiro deles é um artigo recente, publicado no jornal inglês The Sunday Times. Nele, seu autor lamenta a corrupção da língua inglesa pelos jargões tecnológicos, pela linguagem de computador e, last but not least, pelos norte-americanos, através do cinema e da mídia de uma maneira geral. Ele transcreve, ainda, as palavras de um representante da


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

hegemonia inglesa, o Príncipe de Gales, em apoio à campanha English 2000 do Conselho Britânico: We must act now to ensure thal English, and Ihat to my way ofthinking means English English, maintains its position as the world language well into the next century2

2. MILLAR. Peter. Why we will soon be lost for words. Tile Sundav Times. 2 abro 1995. p. lO e 12.

A insistência em defender uma língua-pátria "pura" e inadulterada surge quando as discussões sobre identidade nacional encontram-se ancoradas à idéia de unidade, que, por sua vez está diretamente associada à preocupação com a supremacia. O referido artigo revela (embora não "diga" explicitamente) que, uma vez dissolvido o Império Britânico, e perdida a hegemonia conseguida através da colonização, os ingleses passam a perceber que sua língua-mãe tornou-se "vítima de seu próprio sucesso". O que - significativamente - não é abordado uma única vez é a própria situação interna da Inglaterra: a presença de uma população cada vez mais numerosa de sujeitos pós-coloniais que, lançando mão da língua inglesa para se expressarem, subvertem-na, no entanto, com interferências de sua cultura de origem. A questão nacional e o próprio conceito de nação adquirem contornos interessantes neste caso, porque o conflito parece surgir do fato de a Inglaterra querer proclamar sua exclusividade hegemônica.O que parece subjazer ao lamento pelo triste destino da língua de origem (já em si um conceito complexo, visto que ele se encontra fortemente ligado ao mito de "autenticidade") é um sentimento de ansiedade ante o deslocamento do poder econômico para outra nação que não seja a Inglaterra. No caso, o que causa ruídos nos ofendidos e reais ouvidos ingleses é o poder dos EUA - um impérialismo sem colônias, dirigindo fluxos de capital, mercadorias, armamentos e a mídia em escala global. O último recurso que sobra para o antigo império é agarrar-se ao que lhe aparece como tábua de salvação - a língua inglesa "autêntica" na tentativa de assegurar o mito de unidade da nação como força simbólica. Mas pensar a nação como totalidade homogênea revela-se complexo e problemático, uma vez que a Inglaterra hoje se encontra "invadida" por uma vasta onda de "imigrantes" pós-coloniais. Nas palavras de Stuart Hall, .. .in this very moment of the attempted symbolic restoration of the great English identities Ihat have mastered and dominated the world over three or four centuries, there come home to roost in English society some other British folks ( ... ) Just in the very moment when they decided they could do without us, we ali took the banana boat and carne right back home. We turned up saying "You said this was the mothercountry. Well, I just carne home". We now stand as a permanent reminder of that forgotten, suppressed, hidden history ( ... ) There we are, inside the cuIture, going to their schools, speaking their language, playing their music, walking down their streets, looking like we own a pari of the turf, looking like we belong.3

HALL, Stuart. Ethnicity: Identíty and Ditlerence. Radical America, 23 (4): 9-20, 1991. p. 17-18. ]


A

nação e as narrações híbridas

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Paralelamente, podemos observar fenômeno parecido ocorrendo nos EUA, o país que está sendo atacado como sendo o culpado pela última coisa que ainda poderá garantir a posição hegemônica do English English "até o próximo século". A fim de garantir a posição hegemônica do American English até não se sabe quando, os norte-americanos atacam o uso do espanhol, que, já considerado segunda língua em nível nacional, constitui ameaça constante à segurança e unidade dos EUA, As palavras de Terry Robbins, ex-chefe de "English operations" na Flórida atestam esta afirmativa: .. ci!. por J. Ca!it,,, Declaring Eng!ish the Otlieia! Language: Prejudice Spoken Here. Harvard Civil Ri"hls-Civil Liher-

ties Law RevielV, 24:321 (1989). Al'ud FLORES, Juan & YúDICE, George. Living Borders/buscando America. Social Text, 24 (2): 8, 1990. S. BHABHA,

Homi, org. Nafion

IInd Narrarion. Londres: Routledge, ! 993. •. id., ihid., p. I.

There are misguided persons, specifically Hispanic immigrants, who have chosen to come here to enjoy our freedoms, who would legislate another language, Spanish, as co-equal and co-legal with English ( ... ) If Hispanics get their way, perhaps someday Spanish could replace Engish entirely ( .. ) We ought to remind them, and better still educare them to the fact that the Cnited States is 11111 a n/olllirelnatiof/4 (o grifo é meu)

Ao afirmar que os EUA não são uma nação mestiça, Robbins parece preferir ignorar que os mexicano-americanos, por exemplo, da mesma forma que os imigrantes pós-coloniais ingleses, sentem-se "em casa" ao atravessarem a fronteira entre o México e os EUA, visto que, para a maioria, trata-se de um retorno às suas terras ancestrais, conquistadas pelos norte-americanos. Ele também fecha os olhos, oportunamente, para o fato de que inúmeros dos imigrantes que lá se encontram, "gozando de (suas) liberdades", fogem de suas terras natais em conseqüência da política externa neocolonialista norteamericana. A fim de tentarmos compreender melhor essas contradições internas das nações liberais modernas, gostaria de referir-me, neste ponto, à obra de Homi Bhabha, Nation and Narration. 5 Nela, o autor observa que as nações, da mesma forma que as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e apenas realizam seus horizontes no nível do imaginário (Bhabha baseia-se fortemente na obra de Benedict Anderson, lmagined Communities, mesmo quando discorda dela). Acrescenta ainda que, embora tal imagem da nação aparente ser romântica e excessivamente metafórica, é dessa tradição de pensamento político e linguagem literária que surge a nação como idéia poderosa no Ocidente. 6 Assim, "nação" seria apenas um espaço de significação cultural. Espreitando por trás desse espaço existe uma ambivalência entre dois níveis de discurso: o pedagógico e o performativo ("performative"). No primeiro, o povo é visto como presença histórica a priori, como mero objeto pedagógico; no segundo, o povo como imagem de totalidade sofre a interferência da sua significação como signo diferenciador, do sujeito enquanto distinto do outro, ou do espaço de fora. Apesar da certeza com que os historiadores tradicionais falam das "origens" da nação como sinal de "modernidade" de sua sociedade, a tamporalidade cultural da nação inscreve uma realidade social muito mais complexa: ao mesmo tempo em que a nação é


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construída, ela vai sendo desconstruída por interpretações sucessivas, cujas contradições mútuas demonstram a ausência de qualquer "centro originário". A nação toma-se um espaço marcado internamente pela diferença cultural e pelas histórias heterogêneas de povos conflitantes, autoridades antagonistas e espaços culturais em constante tensão. 7 Examinemos um trecho do conto "Bien Pretty",8 da autora chicana Sandra Cisneros, em que duas amigas discutem a decisão de uma delas (a narradora) de ir morar no Texas, um estado emblemático da conquista territorial, da expansão de fronteiras e de conflitos sangrentos pela posse de terras norte-americanas - um estado que outrora pertenceu ao México, tendo sido independente durante um breve período, e, finalmente, incorporado ao território dos EUA; uma verdadeira fronteira em perpétuo movimento, por onde sempre transitaram os mexicanos, em um movimento incessante de ir-e-vir, e que deu origem ao mito e à popular balada de fronteira sobre Gregório Cortez, aquele que teria combatido os Texas Rangers, los Rinches, "com apenas uma pistola na mão".9 "TEX-as, whal are you going to do there?" Beatriz Soliz asked this, a criminallawyer by day, an Aztec dance instructor by night, and my c\osest comadre in ali the world. Beatriz and I go back a long way. Back to the grape·boycott demonstrations in front Df the Berkeley Safeway. And I mean thefirst grape strike. "I thought l'd give Texas a year maybe. At least that. !t can't be lhat bad." "Ayear!!! Lupe, are you crazy? They stilllynch Meskins down there. Everybody's got chain saws, gun racks and pickups and confederate flags. Aren 't you scared?" "Girlfriend, you watch too many John Wayne movies". To tell the truth, Texas did scare the hell out of me. Ali I knew about Texas was it was big. It was hol. And it was bad. Added to this, was my mama's term teja-NO-te for tejano, which is sort oflike "Texcessive", in a redneck sort of way. "!t was one Df those teja·NO·tes that started it", Mama would say. "You know how they are. Always looking for a fight". (p. 141-142)

o diálogo das duas comadres modernas parodia "remember the alamo", oferecendo uma versão chicana e feminina da historiografia do mexicanoamericano desde os conflitos de fronteira até as greves dos trabalhadores rurais, os braceros, sugerindo uma longa história de resistência, que iria desaguar no Movimento pelos Direitos Civis dos anos 60. O imaginário das personagens está povoado de imagens que subvertem a história oficial, abrindo, desta forma, um espaço para que a margem possa narrar sua versão da nação. Se o povo de determinada nação é a articulação do movimento ambivalente entre o pedagógico e o performativo descrito por Bhabha, a própria nação deixa de ser o signo de modernidade sob o qual as diferenças culturais são homogeneizadas, em uma visão horizontal da sociedade. A nação, ao contrário, revela, em sua representação ambivalente e vacilante, a etnografia

1.

ido Ihid., p.

X. OSNEROS,

298-299.

Sandra. In: WII-

man Hollerinl( Creek (and Other Stolies). N. York: Random HOllse, 1991, p. 137-165. ". Refiro o leitor à obra de Américo Paredes, With His Pistol in His Hand: a Bordel' Ballad and its Hero. 8' ed. Austin: U of Texas P, 1990 onde o antropólogo chicano analisa a popular balada de fronteira.


A nação e as narrações híbridas

lO BHABHA,

OI'. cit., p. 300.

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de sua própria historicidade e a abre a possibilidade para outras narrativas de seu povo e suas diferenças - o que Bhabha chama de "dissemi-nação".1O Sendo assim, as narrativas produzidas por culturas em oposição ao cânone não somente assinalam como apagam as fronteiras totalizadoras, tanto reais quanto imaginárias, de discursos essencialistas como os que foram apresentados como exemplo na abertura deste estudo. A obra de Bhabha nos ajuda a pensar de que forma, ainda, a língua, utilizada como estratégia neoconservadora, a fim de garantir uma suposta homogeneidade cultural, pode também servir de instrumento para criticar concepções monolíticas de "nação". No caso específico da população hispânica dos EUA, que emprega o Spanglish como prática cultural, observamos que a identidade do sujeito de origens hispânicas da América do Norte é buscada dentro do double bind gerado pela tensão entre duas culturas das quais ele/ela faz parte - uma anglo-americana, outra latino-americana. Sendo assim, sua linguagem dissemina-se em línguas e tradições híbridas que determinam seu lugar de fala como sendo outro, em oposição ao do espaço monocultural. O code-switching, mudança de código lingüístico, praticado ao longo das narrativas dos chamados latinos assinala a heterogeneidade sócio-histórica da própria América do Norte. No mesmo conto de Sandra Cisneros, podemos observar, além do espanhol mesclado com o inglês, a função de duplo da narradora: Ay! to make love in Spanish, in a matter as intricate and devout as la Alhambra. To have a lover sigh mi vida, mi preciosa, mi chiquitita, and whisper things in that language crooned to babies, that language murmured by grandmothers, those words that smelled like your house, like flour tortillas, and the inside of your daddy's hat, like everyone talking in the kitchen at the same time ( ... ) That language. (p. 121)

A duplicidade da narradora demonstra sua própria ambivalência em relação à sua cultura de pertencimento: ela se encontra dentro, e ao mesmo tempo fora da cultura mexicana, fato que marca tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de identificação total com a cultura de origem. Somente através da compreensão dessa ambivalência, do "desejo do Outro", poderemos evitar a adoção fácil da noção de um outro homogêneo, como quer a culltura hegemônica. O momento vivido pela narradora de "Bien Cute" coincide com o que Homi Bhabha descreve como o momento de interrogação da identidade: 11. BHABHA,

Homi. IntelTOga-

ting ldentity. ICA Documents 6. Londres: Institute of Contemporary Arts, 1987, p. 6.

( ... ) the encounter with Identity occurs at the point at which something exceeds the frame of the image, eludes the eye, evacuates the self as site of identity and autonomy and - most importantly - leaves a resistant trace, a stain of the subject, a sign of resistence. We are no longer confronted with an ontological problem of being but with the discursive strategy of the 'moment' of interrogation; a moment in which the demand for identification becomes, primarily, a response to other questions of signification and desire, culture and politics. 11


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Ao fazer com que sua narradora interrogue a identidade, através da referência ao espanhol - uma das línguas que (in)formam sua história, e portanto uma das formas possíveis de identificaçãolidentidade. Cisneros traz para a esfera pública precisamente o momento descrito acima. em que "a necessidade de identificação torna-se. primeiramente. uma resposta a outras questões de significação e desejo, cultura e política". Juan Flores e George Yúdice observam que Language ( ... ) is the necessary terrain on which Latinos negotiate valuc and attempt to reshape the institutions through which it is distributed. This is not to say that Latino identity is reduced to its linguistic dimensions. Rather, in the current sociopolitical structure ofthe United States, such matters rooted in the 'private sphere', like language ( ... ), sexuality, body, and family definition ( ... ) become the semiotic material around which identity is deployed in the 'public sphere',12

Sem sacrificar o hibridismo de tradições que constitui sua identidade, o sujeito latino procura inscrever-se como um norte-americano cujo lugar de fala possui elementos lingüísticos e culturais que ainda não foram ouvidos. No poema "AmeRícan",13 Tato Laviera não somente afirma sua condição como americano de origem porto-riquenha, como também abre uma nova perspectiva, através do jogo com a palavra "American", para o conceito de americano. Sua visão de "americano" não é uma proposta de fechamento, como quer o modelo monocultural do centro; ela propõe, antes, uma América "sendo inventada":

12 FLOR'"

&:

YÚDrCE.

n. LAvrERA, Tato. AmeRícan. Houston: Arte Público Press. 1.981. p. 94-95.

( ... )

we gave birth to a new generation AmeRícan salutes ali folklores, european, indian, black, spanish, and anything else compatible:

C.) AmeRícan,

AmeRícan, AmeRícan,

defining myself my own way any way many ways Am e Rícan, with the big R and the accent on the í' like the soul gliding talk of gospel boogie music! speaking new words in spanglish tenements, fast, tongue moving street comer "que corta" talk being invented at lhe insistence of smile!

Em seu poema intitulado "Asimilao",14 Laviera demonstra que o sincretismo lingüístico-cultural não é uma forma de integração (assimilação) ao espaço hegemônico, e sim uma estratégia de ressignificação, através de articulações outras, sistematicamente ignoradas pelo mainstream norteamericano:

O". á/.,

P 61

14

id.. ihid., p. 54.


A nação e as narrações híbridas

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assimilated? Qué assimilated" brother, yo soy asimilao, así mi la o sí es verdad tengo un lado asimilao .. you see, they went deep ........... Ass oh . ........ they went deeper ....... SEE oh, oh ......... they went deeper ..... ME but the sound LAO was too black for LATED, LAO could not be trans/med, assimilated" no, asimilao, mela0, it became a black spanish word but we do have asimilados perfumados and by the last count even they were being asimilao how can it be anal yzed as american? ( ... )

Jogando com o som das palavras asimilado/assimilated, Laviera mostra a impossibilidade de integração ao centro, pois para este ele é invisível: SEE ME. Como o Homem Invisível de Ralph Ellison, ele escapa ao olhar de uma sociedade que teima em não vê-lo. Nas palavras de Laviera, "o som LAO foi negro demais para eles". Seu "lado asimilao" é seu lado negro: graças à intluência africana em Porto Rico, a pronúncia da palavra espanhola "asimmilado" passou a ser pronunciada "asimilao", Portanto, como "assimilated/asimilao", com seus diversos "lados", pode ser analisado como (norte )americano, dentro de uma tradição que concebe a identidade como um objeto da visão acabado, totalizante? É esta a pergunta que o poeta nuyorican parece se fazer. Vimos, nas obras selecionadas como exemplo, que os escritos dos norteamericanos de origem hispânica freqüentemente lançam mão do embricamenta de elementos culturais, históricos e lingüísticos norte-americanos (EUA) com os de seus países de origem, rearticulando-os de forma a narrar uma nação outra, que sugere contextos histórico-culturais que incluem tanto a experiência indígena ou de povo conquistado em sua própria terra (no caso dos chicanas) quanto a africana (no caso de autores e autoras do Caribe). A utilização de "padrões de interferência", como o emprego do Spanglish como prática discursiva torna-se um mecanismo poderoso de resistência ao atual apego neo-imperial com a etnicidade monoglóssica, como pudemos observar nos exemplos de discursos dos "guardiães" dos países do centro, para quem o "outro" representa ameaça constante à suposta experiência "comum" da nação. O outro - assim como a "nação" - não constitui, no entanto, um todo homogêneo. E, assim, para concluir, gostaria de lembrar a existência de um paralelo a ser assinalado entre as vozes contra-hegemônicas trazidas para este


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estudo e os discursos literários dos países periféricos. Porque apontam a crise das centralidades, tanto os textos produzidos dentro das margens do chamado Primeiro Mundo, quanto aqueles produzidos no (ainda) chamado Terceiro Mundo, desestabilizam a tentativa de se estabelecer uma idéia monocultural de nação, em um novo contexto globalizado, onde as nações já não são espacialmente delimitadas, e tampouco seus cidadãos compartilham uma mesma experiência ou identidade nacional. Ao contrário, acredito terem nossas nações periféricas um diálogo a ser travado com o Terceiro Mundo que habita, hoje, os países do centro. Nos escutando uns aos outros, e unindo nossas vozes "outras" talvez possamos desobstruir o caminho que aponta uma perspectiva de via única gerada pela tradição etnocêntrica e pelo rumo neoconservador que vem tomando a globalização, com a disputa dos responsáveis pela manutenção do status quo do centro por quem vai ser o "primeiro" no próximo milênio.


As sombras da nação

Luiz Alberto Brandão Santos

I. Cf. TABUCCHI, Antonio. Noturno indiano. Trad. Wander Melo Miranda. Rio de Janeiro: Roeco, 1991, p. 7. Daqui por dhmte como NI.

Na nota introdutória de Sotumo indiano, Antonio Tabucchi afirma que, em seu livro, procura-se uma sombra. 1 Essa procura se dá através da viagem do narrador que cruza, com seus inúmeros deslocamentos, uma paisagem desconhecida e misteriosa: a paisagem da Índia. A Índia surge como um espaço onde todas as referências - sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, culturais e simbólicas - são imprecisas e fugidias. Buscar uma sombra, mover-se nesse espaço indefinido significa, assim, instaurar uma discussão sobre as possibilidades de delineamento de uma identidade. No presente texto, também procuro uma sombra. Elejo também a Índia como um espaço de deslocamento, um espaço teórico para a investigação de uma concepção de nação. Seguindo a trilha de estudiosos como Benedict Anderson, Eric Hobsbawm e Homi Bhabha, que questionam o conceito de nação enquanto um conceito uno, homogêneo, totalizador, inserido numa visão histórica linear e contínua, me proponho a pensar a nação a partir de suas margens. Investigar não apenas a luminosidade grandiloqüente que emana dos discursos que estabelecem a identidade nacional como uma essência atemporal e originária, mas também as sombras que emergem, nos interstícios da luz, quando se passa a conceber a nação exatamente como uma construção discursiva, como uma comunidade imaginada.


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Entre a luz e a penumbra, inicio minha viagem, juntamente com o narrador de Noturno indiano, penetrando na paisagem dessa estranha Índia:

o ônibus atravessava uma planície deserta e uns poucos vilarejos adormecidos. Depois de um trecho de estrada nas colinas, cheio de curvas fechadas, que o motorista tinha enfrentado com uma desenvoltura que me parecera excessiva, agora percorríamos retas enormes, tranqüilas, na silenciosa noite indiana. Tive a impressão que era uma paisagem de palmeiras e arrozais, mas a escuridão era muito profunda para dizê-lo com segurança e a luz dos faróis atravessava rapidamente o campo apenas durante alguma sinuosidade da estrada. (Nr, p. 55)

Assim como os faróis do ônibus que corta a paisagem indiana, o olhar do narrador, que conduz nosso olhar de leitor, percorre dois espaços distintos. Há um espaço iluminado, de visibilidade plena e nítida, onde a luz se difunde de modo uniforme e retilíneo. Nas grandes retas, o caminho trilhado e o caminho a trilhar apresentam-se enquanto unidade de \'Ísão. O passado, o presente e o futuro da viagem se encadeiam no mesmo desenho, na mesma linha que os interliga. Esse espaço pode ser associado à concepção tradicional de que os movimentos da História se efetuam sempre enquanto continuidade, enquanto teleologia, enquanto relação imediata e direta de causa e efeito. Dentro dessa concepção, a idéia de nação aparece imersa naquilo que Benjamin denominou de tempo homogêneo e l'azio,~ um tempo horizontal no qual a um presente pleno corresponde uma visibilidade eterna e total do passado e uma perspectiva progressiva e progressista do futuro. Nesse tempo, o presente surge sempre como forma-mãe, em torno do qual se reúnem e se diferenciam o futuro e o passado. Passado e futuro seriam, assim, meras modificações de um presente essenciaJ.3

É a idéia de um tempo homogêneo e vazio que permite que a nação seja concebida, por um discurso pedagógico, enquanto uma realidade imemorial (a nação ou, pelo menos, o sentimento do nacional, sempre existiu) e ilimitada (a nação, como fronteira concreta ou como força simbólica, sempre existirá, projeta-se para um futuro infinito). Entretanto, há um outro espaço que margeia o percurso retilíneo da luz, há uma outra paisagem que se esquiva à visibilidade pretensamente absoluta. Esse espaço de penumbra vem à tona quando a linearidade do deslocamento cede espaço à sinuosidade da estrada. Nesses momentos fugidios e rápidos, fragmentos de uma outra História se iluminam. Imagens que só emergem através de lampejos, de vislumbres, exatamente porque devem sua existência à descontinuidade da visão. A esse universo de sombras que se recusa à totalização da plenitude da luz corresponde uma outra temporalidade. Deslocado o historicismo, explodido o continuum da História,(Benjamin, p. 230) a temporalidade surge como

2.

BENJAMIN, Walter. Sobre

o conceito da História. In: _ _ _ . Magia e técnica,

arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouane!. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.229. '. Cf. DERRIDA. Apud BHABHA, Homi K. DissemiNation: Time, Narrative and tbe Margins of lhe Modero Nation. In: _ _ _ , org. Nat;on and

Narrat;on. Londres, N. York: Routledge, 1990, p. 293.


As sombras da nação

181

uma forma disjuntiva de representação, sem uma lógica causal centrada. Passa-se a pensar a História com um conjunto de temporalidades diferenciais. Desse modo, rompe-se a pressuposição de que há um momento em que as histórias culturais se unem em um presente imediatamente legível. Nessa perspectiva, a cultura nacional se articula como uma dialética de várias temporalidades - moderna, colonial, pós-colonial, nativa, etc.(Bhabha, p. 303). No esgarçamento do tempo linear, coloca-se em xeque o caráter homogêneo da nação e o discurso da coesão social moderna. Observando "a orla escura da vegetação à margem da estrada" (N/, p. 63) ou "o escuro da vegetação que crescia atrás do hotel" (N/, p. 97), o mundo de sombras deixa entrever as características de uma outra concepção de nação. Assim como os faróis do ônibus criam um caminho de visibilidade retilínea, a nação é uma comunidade política imaginada - imaginada não no sentido de falsa, mas de uma construção discursiva. Assim como os faróis delimitam um campo de luz que se opõe a uma faixa de penumbra, a nação é imaginada como limitada e soberana, com fronteiras finitas e bem demarcadas. Porém, as curvas do caminho provocam desvios de luz, e as fronteiras se cruzam, se indeterminam, se interpenetram. 4

Cf.

Na~'ii(}

ANDERSON.

Bencdict.

e consciência nacional.

Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática. 1989. r 14-6.

Assim como o trajeto tranqüilo do ônibus, nas longas retas, sugere uma homogeneidade de percurso, a nação é imaginada como uma comunidade harmônica, como o exercício de um companheirismo profundo e horizontal. 4 No entanto, a inevitabilidade das curvas, que introduzem na luz a descontinuidade das sombras, revela relações conflituosas. Na incongruência dos caminhos tortuosos, o linear e o sinuoso se conjugam agonisticamente. No capítulo final de Noturno indiano, presenciamos o seguinte·diálogo: - Pensei que uma pessoa como você achasse que na vida é preciso ver o mais possível. - Não - ela disse convicta -. é preciso ver o menos possível (N/, p. 89).

Um olhar que vê menos. que se subtrai da luminosidade preestabelecida para penetrar no universo difuso. mas sempre presente, das sombras. Talvez seja esse o olhar necessário para se observar a nação a partir de suas margens. Obser\'ar de que modo é a partir da negação das sombras que a luz impera e, simultaneamente. obser\'ar de que modo as sombras continuamente se insinuam nas minúsculas frestas da luz. Verificar, enfim. as diversas maneiras de luz e sombras mutuamente se traduzirem. Ou, ainda, segundo Bhabha, como se articulam o caráter pedagógico - no qual os povos são apresentados enquanto objetos históricos de uma pedagogia nacionalista - e o caráter perjormático da nação - no qual os povos se apresentam enquanto sujeitos de um processo de significação nacional. Verificar como se dá o embate entre a temporalidade contínua, acumulativa do pedagógico (o ver mais) e a estratégia recursiva, repetida, infiltradora do


182

Revista Brasileira de Literatura Comparada, nO 3

performático (o ver menos)(Bhabha, p. 297). A cultura nacional passa a ser entendida, assim, como um espaço litigioso, performático da perplexidade dos vivos no meio das representações pedagógicas da plenitude da vida (Ibid.,

p.307). Em O fio do horizonte, de Tabucchi, uma massa de nuvens subitamente envolve o farol e as gruas do porto, dissolvendo-os em névoa. 5 A mesma e ligeira névoa que cobre, em certos momentos. o mar e a costa. Da cidade, entretanto, essa névoa não é notada. Só é possível percebê-la deslocando-se até a periferia (FH, p. 35).

Antonio. O fio do horizonte. Trad. Helena Domingos. Lisboa: Difel, s.d., p. 21. Daqui por diante como

5. TABUCCHI,

FH.

Entre o enigma e o óbvio "A Índia é misteriosa por definição". afirma o narrador de Noturno indiano. Assim, a busca do delineamento de uma identidade, pessoal e nacional, nesse espaço desconhecido que é a Índia, configura-se enquanto tentativa de resolução de um enigma. Entretanto, à medida que as pistas vão sendo seguidas, os rastros sendo trilhados, toma-se cada vez mais aguda e presente a consciência de que tal enigma é um enigma sem solução. Também em O fio do horizonte, a personagem central, procurando recompor uma história obscura, tentando reconstruir um passado que assegure existência para um morto de identificação impossível, somente pode seguir indicações precárias e levantar hipóteses não comprováveis. O caráter detetivesco desse empreendimento tende a patentear, exatamente, que nenhum ponto final pode ser atingido, que nenhuma verdade essencial pode ser revelada. O que se torna nítido é que a "arte do enigma" (N/, p. 42) não é o forte desse narrador e dessa personagem. Que o mundo das sombras jamais pode ser completamente iluminado. Da mesma forma, pode-se afirmar que o conceito de nação também é um conceito enigmático. Qualquer pista que, a princípio, parece levar a uma delimitação precisa do significado do termo nação acaba por se revelar, numa análise mais minuciosa, cercada de incertezas. Segundo Francesco Rossolillo, "o conteúdo semântico do termo, apesar de sua imensa força emocional, permance ainda entre os mais confusos e incertos do dicionário políticO".6 Essas imprecisões derivam do fato de também serem imprecisas as idéias comumente arroladas como determinantes da concepção de nacionalidade. É o caso da idéia de "laços naturais", intimamente associada à idéia de "raça". Como assinala Rossolillo, "não é preciso demorar muito para demonstrar que o termo "raça" não possibilita a identificação de grupos que possuem limites definidos e que, de qualquer forma, as classificações "raciais" tentadas pelos antropólogos - mediante critérios que variam para cada

ROSSIOILILLO, Francesco. Nação. In: BOBBIO, Norberto et a!. Dicionário de político. 2' ed. Brasília: UNB, 1986, p. 795. 6,


As sombras da nação

183

pesquisador ou estudioso - de maneira alguma coincidem com as Nações modernas" (Ibid., p. 796). '. Cf. RENAN, Ernest. What is a Nation'I In: BHABHA, Homi K.,

org'. NlItion and Narration. Londres, N. York: Routledge, 1990,p.19.

Também é insuficiente a associação entre nação e língua, pois basta lembrar que "muitas Nações são plurilingües e muitas línguas são faladas em várias Nações, que além disso, o monolingüismo de determinadas Nações, como a França ou a Itália, não é algo original nem espontâneo, e sim, pelo menos em parte, um fato político, fruto da imposição a todos os membros de um Estado" (Ibid. p. 796). Esse caráter de imposição - que também se aplica à noção de uma homogeneidade de costumes - coloca em dúvida a concepção de uma nacionalidade espontânea, como a de Ernest Renan quando fala de uma "vontade de viver juntos", de um "plebiscito diário".7 Assim sendo, procurar desvendar o enigma que envolve o termo nação através da crença em um parâmetro fixo e absoluto significa enredar-se em outros enigmas insolúveis. Ao se lançar um fecho de luz sobre uma região obscura, novas sombras se insinuam. Isso porque, como propõe Bhabha, a nação deve ser pensada enquanto narrativa, enquanto uma forma de representação da vida social. A verdade que se esconde sob o conceito de nação revela-se, fundamentalmente, como uma verdade ideológica, em que a ideologia é entendida a partir de uma concepção discursiva. Apesar de não menos concreta e atuante, é uma verdade sempre mutável e escorregadia. Se a nação, enquanto poderosa idéia histórica, possui uma inegável força simbólica, é preciso lembrar que essa força se assenta em uma "unidade impossível" (Bhabha, p. 1). É dentro dessa perspectiva de impossibilidade de decifração de uma verdade essencial ou de revelação plena de uma identidade nacional e pessoal que se pode ler a citação, em Noturno indiano, do trecho do poema "Natal", de Fernando Pessoa. Possuindo, significativamente, alterações em relação ao texto original, significativamente traduzido, já que é recitado, em inglês, por um indiano, e apresentado na língua do narrador - o italiano -, o trecho citado diz: "A ciência cega lavra inúteis glebas, a fé louca vive o sonho do seu culto, um novo deus é só uma palavra, não creias nem procures: tudo é oculto" (NI, p.5'+).

X. PESSOA, Fernando. Ohra poética. 9' ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 73.

No questionamento da pretensão de um conhecimento absoluto, seja através da racionalidade da Ciência seja através do fervor religioso da Fé, revela-se a imprecisão do próprio sentido de Verdade. Em outro trecho do mesmo poema, lê-se: "A Verdade nem veio nem se foi: o Erro mudou".8 Entretanto, pelo fato de os discursos de nação se constituírem enquanto discursos pedagógicos, enquanto ideologia, o conceito de nação freqüentemente se apresenta como um conceito natural, como um conceito óbvio. Afinal, pode-se dizer, todos nós sabemos o que é uma nação. Nessa afirmativa, o caráter enigmático da nação, ou seja, a impossibilidade d~ se ter acesso à essência do sentido de nacional se rende à pressuposição dessa essência.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Decretada a obviedade do nacional, estabelecida a crença de que tudo possui uma "evidência definitiva", (FH, p. 20) torna-se desnecessário investigar o modo como se constrói a sua significação. Em Noturno indiano, a conjugação entre luz e sombra, entre a sensação de enigma e a sensação de obviedade na percepção do espaço da Índia - e, conseqüentemente, do próprio espaço de uma identidade nacional e individual - se dá em diversos níveis. Em alguns momentos, o que se ressalta é o sentido de exotismo da paisagem. Vivenciando um tipo de "turismo de luxo",(NI. p. 87) em que a cabine do trem é "quase um aquário",(NI, p. 36), o narrador pode lançar seu olhar apenas como um olhar distanciado, um olhar de fora. Através desse olhar, o que há de enigmático na paisagem reveste-se de uma luminosidade predeterminada. A Índia que se vê é a Índia que se quer I'e,-: uma Índia opaca, uma Índia já vista. O exotismo funciona como uma operação teatral que garante a segurança de mistérios programados, que simula o enigma através de recursos óbvios, como o porteiro, no Taj Mahal. "travestido de príncipe indiano, de faixa e turbante vermelhos" e "outros empregados também fantasiados de marajá" (NI, p. 31). Porém, para além das "pesadas cortinas de veludo verde" que "deslizavam doces e macias como um pano de boca de um teatro" (NI, p. 31), para além das luzes enganosas do exotismo. a presença incômoda e obscura dos corvos anuncia outras Índias. Com seus bicos sujos que carregam e espalham pedaços de cadáveres, os corvos "não respeitam o 'direito de admissão' vigente no Taj Mahal". Desafiando a vigilância dos polidos empregados do hotel, revelam a Índia dos problemas higiênicos, dos ratos, dos insetos, das infiltrações dos esgotos:(NI, p. 30) a Índia das sombras. Para um olhar mais atento, o que a presença insistente dos corvos sinaliza é que o Taj Nahal não é somente um hotel. É, na realidade, "uma cidade dentro da cidade" (NI, p. 31). O espaço da nação passa a ser visto, dessa forma, não mais apenas como a delimitação de fronteiras externas, mas como um espaço marcado, fundamentalmente, pela "liminaridade interna" (Bhabha, p. 300). O caráter uno da identidade cinde-se pela diferença que se instala internamente. As margens da nação não estão do lado de lá de suas fronteiras, mas no seu próprio cerne. As narrativas pedagógicas que se fundam enquanto limites totalizadores se vêem confrontadas a contranarrativas que explicitam e rasuram esses limites. Assi.m, a ameaça da diferença deixa de ser apenas uma questão relativa a um outro povo (ou a uma outra identidade, a uma outra nação) e passa a ser uma questão relativa à própria "outridade" do povo-enquanto-um (ibidem, p. 30 I), da identidade enquanto heterogeneidade, da nação enquanto conjunto antagônico de significações. Na paisagem óbvia, plenamente iluminada,


As sombras da nação

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emergem, subrepticiamente, paisagens residuais e enigmáticas. Sobre o cenário límpido do Taj Nahal, sobrevoa a sombra dos corvos.

A coruja que voa no crepúsculo Em Noturno indiano, a percepção de que a identidade se estabelece em um espaço situado entre o narrar e o ser narrado se dá, exatamente, na Índia - esse lugar em que os homens se confundem com o pó, com meros nomes que se perdem na quantidade infinita de papéis de um arquivo morto. Esse lugar que exige, como adverte o médico do hospital de Bombaim, que se abandone o "luxo excessivo" das "categorias européias",(NI, p. 20) que se pare de conceber "o Ocidente cristão como o centro do mundo" (NI, p. 65). O que é necessário para se repensar o conceito de nação é, portanto, uma mudança de categorias. Tal mudança se efetua quando se percebe que o controle da narrativa que constitui o sentido de nacional não é monológico, quando a nação passa a ser encarada enquanto conjunto heterogêneo de significações ambivalentes. Instalando-se a identidade enquanto jogo de narrativas, a Índia - esse país feito de propósito para se perder (NI, p. 20) - deixa vir à tona, sobretudo, a ambivalência particular que assombra a idéia dc nação: as certezas da narrativa-pedagogia daqueles que escrevem e postulam a seu respeito e a perplexidade das narrativas-performances daqueles que efetivamente a vivem (Bhabha, p. I). Investigar a nação a partir de sua margem implica a quebra do binarismo que opõe dentro e fora, identidade e alteridade. nacional e estrangeiro. Ao se pensar que "o 'outro' nunca está fora ou além de nós", mas que "emerge forçosamente dentro do discurso cultura]"' (ibid. p. 4), inaugura-se uma perspectiva internacional. Ao se considerar a nação enquanto espaço de circulação de narrativas, uma perspectiva trallsnacional é criada. Em certa passagem do li\To. o narrador de Noturno indiano se lembra de suas antigas aulas dc astronomia. Nelas, aprendeu que "quando a massa de uma estrela agonizante é superior ao dobro da massa solar, não existe mais estado de matéria capaz de deter a concentração, e esta procede ao infinito; nenhuma radiação sai mais da estrela, que se transforma assim em um buraco negro" (SI. p. 79). Se no estado de adensamento absoluto as estrelas nada irradiam, desembocando em buracos negros para onde converge toda a luz, talvez seja mais interessante pensar a nação não mais como concentração de significações que se agregam ou que se anulam, mas como negociação dinâmica de sentidos, Como dispersão de sombras, divergência de significações, Como dissemiNação.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Hobsbawm sugere que não é impossível se pensar no declínio do nacionalismo e do Estado-nação. A partir desse declínio. "o 'ser' inglês, ou irlandês, ou judeu, ou uma combinação desses todos" passa a ser sentido como "somente um dos modos pelos quais as pessoas descrevem suas identidades, entre muitas outras que elas usam para tal objetivo, como demandas ocasionais".9 O próprio fato de os historiadores estarem fazendo progressos nesse campo de estudos indica que o fenômeno já passou de seu apogeu. Nesse sentido, Hobsbawm lembra que "A coruja de Minerva que traz sabedoria. disse Hegel, voa no crepúsculo. É um bom sinal que agora está circundando ao redor das nações e do nacionalismo" (ibid. p. 215). Como um "amante de percursos incongruentes" (NI, p. 7), é esse vôo e esse sinal que o leitor de hoje pode rastrear no universo da literatura contemporânea.

Eric J. Naç"es e nacionalismo desde 1780; programa, mito e realidade. Trad. Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 215.

9. HOBSBAWM,


A possante e o "choque" A experiência da fugacidade no cinema e na literatura

Suzi Frankl Sperber

1.

Citizen Kane é filme de Or-

son Welles de 194 I, considerado um dos melhores filmes de todos os tempos. Tem cinco narradores (o narrador propriamente dito; o noticioso "News an the March", com seu olhru' jornalístico neutro e

sensacionalista; e os entrevis-

tados pelo jornalista Thomp-

J acques Bourgeois compara Citizen Kane,1 de Orson Welles a A la Recherche du Temps Perdu, de Proust e sugere que Welles consegue exprimir mais do que a ação, no cinema: que ele realiza o tour de force de visualizar uma sensação.

50n, que procura o sentido se

"Rosebud", palavras do leito de morte de Kane, na esperança de encontrar uma chave re-

Il semble que cette voie de la visualisation de la sensation puisse donner au cinéma I 'indépendance artistique.

veladora do sentido da exis-

tência de Kane. São: Thatcher, o tutor-banqueiro de Kane; Bemstein, amigo de Kane e colaborador do jornal "'The Inquirer"; Leland, amigo de infância e colaborador de Kane, com o qual Kane briga quando da crítica feita a Susan Alexander enquanto cantora lílica e

Uma sensação será mesmo visualizável? Compararei a visualização com a verbalização da sensação. Proust descreve a sensação do hábito: Et ti partir de cet instant, je 11' avais plus un seul pas li júire, le sol marchait pour moi dalls ce jardin ou depuis si longtemps mes actes avaient cessé d'être accompagnés d'attention v%ntaire: l'habitude veflait de me I'rendre dans ses bras me portait jllSqll' au li! comme lln petit enfúnt 2

atliz; Susan Alexander, segunda mulher de Kane; e Raymond, o mordomo de Kane. 2 Proust, MareeI.

À la recher-

cite du ternl'.\·l'erdu. Texte établi et presenté par Pierre Clarac et André Ferré. Palis: Gallimard, 1960. VaI. I, p. 115.

Tentarei visualizar cinematograficamente esta sensação. A imagem do solo que corre diante dos olho~, velozmente, me produz não a sensação do hábito, mas a da velocidade, porque a câmara tenderá a apresentar um movimento real registrado tecnicamente pela câmara, em que a fugacidade do objeto adviria do movimento. A imagem proustiana é poética. Sua concepção


188

Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

do hábito é lírica e acalanta, enquanto que a imagem de hábito que ficou para o intelectual que leu Benjamin, Adorno, Marcuse e Eco é do costume como deletério, destruidor quase que de neurônios, capaz de transformar o ser humano em uma massa amorfa. A anestesia da atenção voluntária deixou de ser vista como fenômeno normal da consciência humana. para ser rejeitada com horror. O estopim foi o horror diante do obnubilamento ideológico oCOITido durante o nazismo e fascismo. A continuação do medo diante dos efeitos negativos do hábito e da repetição decorreu de se ter considerado o ser humano como fundamentalmente bom, num passado definido como referência, e a doutrinação nazista e fascista exxcencialmente como fenômeno de manipulação das vontades. Quando Proust indica as modificações de visão de uma mesma personagem no tempo, referindo-se a Albertine, aproxima seu rosto e tem diante de si não uma, mas dez Albertines que beija. Cinematograficamente possíveis, ainda que talvez seu valor metafórico não seja facilmente decodificável pelo espectador, as imagens diferentes da mesma pessoa deveriam, no entanto, a fim de serem entendidas como mudanças, ser bem diferentes uma da outra, se representadas no cinema em montagem feita de superposiçoões (o que a maquilagem e o penteado permitem). A metáfora, que precisa de seu tertiunz comparationis, se proliferaria em um efeito cumulativo de função metafórica reduzida, pelo menos mais reduzida do que no texto literário. Tomarei outro exemplo para prosseguir na comparação entre cinema e literatura, este longo porque tem sua unidade e não pode ser truncado. Tratase do momento em que Charles Swann ouve uma peça de Vinteuil, no salão dos Verdurin. 3

Et (avait déjà éré Ulllirand p/aisir quando au des."'us de /lI petite ligne du vio[on, minee, résistante, dense et directrice, il avait vu tout J'un COU!, cher-

J.

cher à s'élever en un clapote-

O trecho indica as sensações de Swann e faz concomitantemente uma descrição musical precisa da partitura ouvida. Et (avait déjà été

IUI

grand plaisir quand, au dessous de la petite ligne du violol!.

mince, résistante, deTLfe. directrice ...

ntellr liquide. {li masse de {li partie de piano, l1lu[t(torme, indivise. plane ef entrechoquée comme la I1l11UVe a~itll­ !ion des .flor,\' {jlfe charme e! hémo/ise le dai,. de {filie. Mais cl Ull mamellf l/(}lIllé. salts pIJU\"oir IJettemellf disfinj{uer un

As sensações de Swann são descritas como podem dar-se na mente humana: imagens misturadamente concretas e abstratas, de detalhes precisos ou de contornos imprecisos, sempre fragmentárias, às vezes vagas: Il avait vu tout d'un coup chercher à s'élever en un clapotelllem liquide. la lIlasse de la partie de piano, multifilrme. indivise, plane et entrechoquée colI/me la mauve agitation desflots que charme et bémolise le c/air de [une. Mais â III! I/loment donné. sans pouvoir nettement distingue r un contour, dOllner 1lI1 I/om â ce qui Iui plaisait. charmé tout d'un coup, il avait cherché à recuei/lir la phrase 011 l'harmonie - il ne savait lui même - ... "

("ontmo; Jonner un nom à ce

qui lui plaisait, charmé (ou! d'l/11 coup. il avait cherché li recuei/lir la I'hrase ou /'hur· monte - il ne sava;! lui-même - qui passai! et qui lui avait ouvert plus lar;.:emen! ['âme, comme certa ines odeurs de 1"0-

ses circulant dans l'air humide du sOlr ont la proprié!é de di· later nos narines, Peut·être

est-ce paree qll'il ne silvai! pas la musique lJU 'il avait pu


A passante e o "choque"

189

Mais les note.\' sont êVllnouies

É talvez possível comparar cinematografia à massa musical ou ao marulho líquido. A comparação seria um tanto forçada, porque a imagem cinematográfica pode ser apreendida como uma realidade mais contundente que a imagem literária. ainda que a imagem literária possa despertar outras associações, diluidoras da nitidez da imagem formada em nosso cérebro. Além de que a cena imaginada acima levaria o espectador de um filme a supor que a associação entre música e marulho líquido estaria sendo feita pela personagem e não pelo narrador; que ela estaria pronta, acabada, e não provocaria o mesmo tipo de associações no espectador. E como comparar uma massa musical à "agitação malva das ondas"? que "encanta o luar"? e, sobretudo, que "bemoliza" o luar?? O equivalente cinematográfico para a tomada de consciência da personagem no momento de uma percepção depende de um tempo mais longo que o fluxo normal do cinema, limitado, apesar de tudo, por leis mais rígidas de audiência e de mercado, e limites mais estreitos de tempo e custos de realização,

avant que ces senslltions soient as.\'ez .f()rmêes en nous pour ne pas être suhmerKêes

Ou ainda, como descrever uma impressão sine ma teria por meio de imagens?

éprouver une impression aussi umfuse, une de ces impressions qui sont peut-être pourtant les seule.\' purement musicales, inatendues, entierement oriKitwles, irréductihles à tout autre ordre d'impress;ons. Une impression de ce Kenre, pendant un instant. est pour ainsi dire sine materia. Sans doute les notes que naus entendol1s alors. tendent dêjà, selon leu r hauteur et leur quantité, à couvrÉr devant nos yeux des surfaces de dimenstons variées, à tracer des arahesques, à nou.\' donner des sensa!ions de larReur. de té-

nuité, de stahilité, de CIlprice.

par celles qu' éveillent déjà les notes suivantes ou même simultanées. Et ceUe impressiol1 continuerait à envelopper de

Sans doute les notes que

flOUS

entendons alors, tendent déjà, selofl leur hauteur et leur

quantité, à couvrir devant nos yeux des Sllrfaces de dimeflsions variées, à tracer des

sa liquidité et de son ':frmdll"

arabesques, à nous donner des .sensations de largeur, de ténuité, de stabilité, de

les motilv qui par instant en émerRent, à peine discerna-

caprice.

hles, pour plonl(er aussitôt ef disparaitre, connus seulement par le plaisir particulier qu 'ils donnent, impossihles à décrire, à se rappeler, li nommer,

ineJlahles - si la mémoire, comme

Ur!

ouvrier qui lravail-

le à étahlir desfándatiol1s duruhles ali milieu des .flo!s, en fahriqllant pour nous desfacsimilés de ce.\' phrases .fi/Ritives, ne nous permettait de les comparer à ceiles qui leur suc-

Ao descrever emoções com palavras, partindo do mais abstrato para o mais concreto, Proust prepara-nos para aceitarmos a imagem mais concreta em contraste com a sua imaterialidade, levando-nos a perceber música através da imagem literária. Quando Proust diz: "à naus danner des sensatians de largeur, de ténuité, de stabilité, de caprice" nossa alma se expande, se atenua, se inquieta e salta - e ouvimos uma frase vaga, sem sabermos de que compositor - e não temos imagens diante dos olhos. A descrição dos motivos, apesar de indicada como impossível, nos é sugerida por Proust:

cédent ef de les difjerencier.

impossibles à décrire, à se roppeler. à nommet: ine{fables - si lamémoire, comme un

Ainsi. à peine la sensatlon dê{icieuse que Swann avai! ressentie était-elle expirée, que sa mémoire lui en ava;t jt)/~rni

pour nous defac similés de ces phrasesfugitives, ne flOUS permettait de les comparer

séance tenante une transcription sommaire el provisoire.

mais sur laquelle il avait jeté les yeux tandis que le morceau continuait, si hien que, quand la même impression était tout d'un coup revenue, elle n'était

ouvrier qui travaille à étabfir desf,mdations durables au mifieu desflots, enfabriquant à celles qui leur succedent et de les di{ferencieJ:

Tais cenas só são possíveis porque filtradas pela memória, A memória serviria para fixar o inefável, através da comparação com outros estados d'alma. Como reage o cinema?

déjà plus insaisissahle. 11 s' en

Ainsi, li peine la sensatjon délicieuse que Swann avait ressentie était elle expirée, que

représentllit I'étendue, les

sa mémoire lui en avaitfóurni séance tenante une transcription sommaire et provisoi-


190

Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

re, mais sur laquelle il avait jeté les yeux tandis que le morceau continuai!, si bien que quand la même impression était tout d'un coup revenue, elle fl'était déjà plus insaisissable. Il s' en représentait l' étendue, les /?roupements symétriques, la /?raphie, la valeur expressive; il avait devant lui ceUe chose qui n 'est plus de la musique pure. qui est du dessin, de l' arehitecture, de la pensée, et qui permet de se rappeler la musique.

Esta última frase lembra o problema da criação de Coleridge: Could I revive within me Her symphony and son/?, To sue h a deep delight 'twould win me, That with musie loud and [ong, I would build that dome in air.

Proust cria imagens que despertam a imaginação e sensibilidade dos leitores, captando o inefável através da intuição - referida a alguma experiência pessoal. A música - evocada através de palavras - suscita um conhecimento vago, desprovido de formas físicas ou pensamentos racionais. Introduz em nossa mente um desenho, forma arquitetônica ou pensamento sugeri dores de música. Nossa imaginação é obrigada, pelas palavras do autor, a fazer ato de criação por nossa parte. Desta forma, Proust realiza um ato social, o de obrigar seu receptor are-criar (e a se rever em sociedade) vivificando e transformando a obra em equivalente sensível para ele. No cinema é possível executar uma partitura como música incidental de um filme. O que não acontece é que esta música e a sensação sugerida se convertam em equivalente verbal imediato para nós, assim como se converte em imagem imaginada pelo leitor o trecho equivalente descrito em A la Recherche du Temps Perdu. Entretanto, tanto a música pode sugerir-nos sensações ricas e profundas, como a imagem e a banda sonora podem estar elaboradas com o cuidado que produz a função poética. Arremedando Jakobson, a função poética no cinema também se define como projeção do princípio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação: as unidades mínimas, colocadas em relação de equivalência, são a imagem estatizada como todo e em seus detalhes; seu movimento e a música e/ou palavras audíveis. Em verdade o poético e o belo permanecem inefá\'Cis e sua enunciação colinda com o silêncio. Lembro-me de 8 1/2. de Fellini. de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. Em 8 1/2 a memória também recupera os momentos de poesia do passado. No presente cita-se Mallarmé: "Ti ricordi delta pagina bianca di Mallarmé?" diz o jornalista ao cineasta que será entrevistado. Até que ponto contribui para o poético a irrealidade, o sonho, a fantasia? A lembrança purifica a imagem lembrada de detalhes desnecessários, carregando-a da sensação revi vida: o que já não é lembrança simples, mas se

;:roupemenfs symétriques, la xraphie, la valeur expressive; il avait devanf lui cefte chose qui n'es! plus de la musique pure, qui esrdu dessin, de I'architecrure, de la pensée, el qui permel de se rappelerta musique, Cette jáis il avair disrin,guée nettement une phrase s 'élevanl pendanr quelques instants au-dessus des ondes sonOrf:s. Elte [ui avait proposé aussrftÍr dex voluptés parficu-

liêres, dom II n 'avaitjamais eu

['idée arwIl de ['enrendre, ti sentai! que ricn arare qu'elle ne IJI!llrraif te.\' [uifaire cOflllaitre, ef li (lI'aif éprouvé pour eiie comme ullamour inconflU, t!Oflt

D'un n'r/Inle lenf elle le dirh:eait iei d'ahord, puis lã,

puis ailleurs. \'ers un honheur nohle, ininrelliRihle et I'récis. Et fou! d'un coup, au point ou elle étai/ arrivéc c/ d 'OLf il sc préparait ã la suirre, apres une pause d'uII illstant, hru.\'quement eile chan~eait de diree/ion, ef

((1I1l

mouvemen/

nouvcau, p/li.\" rapide, menu, mélancolique, incessan/ c! doux, elle i 'entra/nait avcc clle l'ers dn /u:rspectives inPlIi.\" elle disparut. Il souhlllta passionémen/ la re\'oir rOle tmisii:me.fáis. E/ elle

COlllllle.\

repana en elfet, mais san.\' lui /Jti.rler plus claremenf, en tui l

clll.'{lllt même une volup/é Mais, renfré

mOlfls pn~t(}nde,

che:. lu i, II eut hesoln d'elle: il érult comme un homme dan.\' la \'ie de qui une pllssante qu 'da aperçue un nwmcnt vient de faire entrer I'imaxe J'une heauté nouvelle qui donne à sa pmpre sensihilité une valeur plus );rande, sans qu 'il sache seulement s 'U pourra revoir

jamais celle qu 'ir aime déià er dont il if?nore ju.\'qu'au nom. (Prous!: I, 208-210).


A passante e o "choque"

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localiza dentro do campo de relativa irrealidade que é a vida interior. Esta recupera as imagens carregadas de símbolos - sinônimos de irrealidade - para a realidade contingente, imanente, como em 8 1/2 ou O Sétimo Selo, A combinação dos dois elementos, (realidade contingente - e imediata - e irrealidade) conferem uma grande liberdade, permitindo que crie em nós uma unicidade de ordem imaginatiya, a qual nos proporciona uma clareza maior e a consciência das raízes do ser - poesia. O cinema pode despertar em nós o sentimento poético, deixando aos espectadores a tarefa da poetização em si, que na literatura, porque as palanas têm menos força de presente do que as imagens, deve cumprir-se integralmente dentro do texto, sem deixar de exigir da imaginação dos leitores a análise da imagem, sua decomposição em nós, para voltarmos, em seguida, a senti-Ia. D'un r."filme lenr elle le dirigeair iei d'abord, puis là, puis ailleurs, vers un bonileur noble, 11ll1l1elhglble er précis. Et tout d'un coup, au point ou elle était arrivée et d' ou ti se préparair à la suivre, apres une pause d'un instant, brusquement elle changeait de d/recrion, et d'un mouvement nouveau, plus mpide, menu, mélancolique, incessant er dOlLt, elle l'entra/nair avec elle vers des perspectives inconnues, puis elle disparut.

O cineasta polonês Kryszrof Kieslowski, em recente entrevista concedida à revista

4,

Newsweek, diz: Imagine trying to film the sentence: "He began to come to see her leS5 end less, until he stopped coming altogether." This is a phrase that oeeurs often in literature. But you can 't film it. because it speacks 01' time. of a relantionship betwecn two people. Newsweek, 15 de moi o de 1995, p. 56. 5

Vide nota I .

Não só trechos como os que tomamos seriam de difícil representação cinematográfica,4 No restante da obra, a ação efetiva mostra-se insatisfatória para Proust. Os momentos têm um encanto muito menor quando vividos, que quando revistos pela memória, diz ele, Quando Marcel joga o jogo do anel com Andrée, Albertine, Rosemonde e outras jovens, em Balbec, não experimenta encantamento, No entanto, Marcellembrar-se-á mais tarde deste episódio com um fascínio muito superior ao da realidade vivida e representada por palavras, A diferença de formas de apreeensão da realidade é de expressão cinematográfica ainda mais difícil. No entanto, em Citizen Kane, a diferença de ambiente entre as cenas do noticioso e as dos relatos, em Xanadu, por exemplo, é indicativa de que é possível apresentar esta diferença, no cinema, segundo o olhar que lhe é lançado no tempo - pela câmara-narrador propriamente dita, ou por outro espectador, isto é, um dos entrevistados por Thompson,5 Bernstein, em seu relato, apresenta um Kane eufórico, mas em que já pesa uma ameaça de opressão, Evidentemente esta impressão é o resultado de considerações posteriores ao momento vivido, em que não haveria consciência possível, porque a defasagem seria inexistente, Como o relato é posterior ao acontecido, o acontecido, apesar de a imagem cinematográfica ter força de presente, e,stá carregado da análise que lhe é posterior, sendo esta expressa não por palavras, mas pela iluminação, pelas angulações, pela posição da câmara e pelos ambientes já sobrecarregados e fechados, que oprimem a personagem principal. O foco narrativo é capaz de fixar algo, na imagem como todo, que recupera plenamente, para o cinema, as características do


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signo visual (cuja apreensão, quando estático, seria global), mas que cscapam ao espectador quando vê a imagem em movimento, ao mesmo tempo lincarizada e fragmentada pela narrativa. Então recupera a imagem, projetando-a numa série associativa que apreende a consciência dais personagem/ns em uma linguagem de função poética. O foco narrativo, ao recuperar a memória, é fator de poesia, tanto na literatura, como no cinema. E será capaz de representar a experiência. A representação da experiência, ou mesmo da vivência, apresentada como distinta da primeira, sempre precisará de meios diferentes no cinema que na literatura, já que o signo lingüístico é fundamentalmente convencionaI, descontínuo, mediato e heterogêneo, feito de partes combináveis e associadas na descrição de cada cena, enquanto que o singo visual é analógico, contínuo, imediato e homogêneo, isto é, feito de cenas apreendidas globalmente, de difícil análise em bloco, ao contrário da linearidade do signo lingüístico. No cinema encontramos um signo visual híbrido, feito de características do signo visual, modificadas por características do signo lingüístico: a sucessão representada pelo movimento e a expressão dentro de uma narrativa, que, mesmo sendo cinematográfica, segue uma linha de relato que precisa de um cixo mínimo de ordenação, indicativo das relações de causa e efeito, que dependem da cronologia, ou da sucessão. 6 Como o signo visual tende a ser apreendido globalmente, a expressão de uma sensação dependerá de diferentes fatores. Um pode ser a representação de seqüências com características da cena diferentes do resto do filme, como é o caso da primeira seqüência do Cidadão Kane, francamente numinosa, representativa do tratamento da psique humana como misteriosa e sagrada a um tempo - e como que proibida à percepção dos afoitos. Outro exemplo é a representação da fantasia e da lembrança em cenas de 8 112, como a cena da fonte. com a atriz Claudia Cardinale (fantasia), ou as cenas com a personagem Saraghina Ilembrança), ou as da sauna (irrealidade). Outro, ainda, é todo o filme Sonhos. de Akira Kurosawa, em que o universo onírico está na base de todo o relato. De qualquer maneira, algo é certo e inevitável. A literatura sugere associações - mas explicita pela palavra impressões. pensamentos. símbolos, sonhos e fantasias, enquanto que o cinema sugere. sim. também. mas deixará para o espectador a tarefa de conversão das cenas em formas verbais discursivas - a menos que estas apareçam como discurso interior explicitado, o que torna o filme chato, além de empobrecido. Só o nível de relações de personagens entre si fica de decodificação mais fácil - sempre que o pressuposto de interpretação aceite os limites de conhecimento humano, os limites de memória. É que os diálogos permitem a explicitação de emoções e lembranças. Outros níveis de relações são de decodificação mais difícil, a não ser que tematizados na trama. Os problemas que colocam a questão da identidade pessoal podem ser apreendidos, no cinema, através das relações inter-pes-

('. Roland Barthes diz que a Sll~essào

dá a ilusão da crono-

logia. isto é, de que aquilo que antecede é causa do que

sucede


A passante e o "choque"

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soais, como é o caso de filmes de Kurosawa como Ran, ou como Harakiri. Claro que a dimensão metafísica (ou mística) do ser humano é a de representação cinematográfica mais difícil. '. Proust m; 885.

Tel nom lu dans un livre autrelóis, contient entre ses syllabes le vent rapide et le soleil brillant qu'i!faisait quand nous le lisions. De sorte que la littérature qui se contente de "décrire des choses", d'en donner seulement un misérable relevé de lignes et de surlaces, est celle qui tout en s' appellant réaliste, est la plus éloignée de la réalité, celle qui nous appauvrit et nous attriste le plus, car elle coupe brusquement toute communication de notre moi présent avec le passé. dont les choses gardaient I'essence, et I' avenir, ou elles nous incitent à la gouter de Ilouveau. C' est elle que I' art digne de ce Ilom doit exprimer, et s'i! y échoue, on peut encore tirer de son impuissance un enseignement (tandis qu'on n'en tire aucun des réussites du réalisme) à savoir que cette essence est en partie subjective et incommunicable.7

Este é o projeto mais ambicioso da literatura. Os projetos cinematográficos ambiciosos buscarão a representação dos aspectos que, no ser humano, se relacionam com o histórico e o social. A psique humana é representada e se manifesta nas relações com o outro.

A passante e o choque A descrição dos efeitos da música no ouvinte privilegiado que é Swann, em A la Recherche du Temps Perdu, percorre sinestesicamente diversos órgãos de sentidos, até serem todos enfeixados no amor desconhecido, em sentimentos fortes, plenos, mas o seu tanto indescritíveis, indefinidos, vinculados fundamentalmente à experiência estética, ou, em outras palavras, à experiência do belo: D 'UII rythllle lellt elle le d/riRemt ici d·abord. puis là, puis ailleurs, vers un bonheur

nob!e, illilltelligible et précis. Et to//t d'un coup, au point ou elle était arrivée et d'ou il se préparait ti la mi\Te. apres //lIe pause d'un instant, brusquement elle challReait de directioll, et d' lIlI mo//vemellt lIouveau, plus rapide, menu, mélancolique, incessant et dow:, elle I'elltraillait avec elle vers des perspectives inconnues.

Assim é que Proust introduz o topos da passante, topos que recorre em manifestações diferentes e de épocas diversas. Baudelaire dedica um poema a passante, estudado por Benjamin, O mesmo topos aparece no cinema, Tem a ver com a tentativa de fixação do momento fugaz de apreensão da beleza física ou estética, que provoca sentimentos desta espécie de amor deconhecido do qual fala Proust. Como um dos problemas na passagem da literatura para o cinema é a representação da memória, trabalharei mais de perto com


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a evocação de um tema comum à literatura e ao cinema, e do que ele por sua vez evoca. Não é incomum, na ficção, que um tema recorra em manifestações diferentes e de épocas diversas. É o caso da passante. Baudelaire dedica um poema à passante. Proust fala na passante: Mais rentré chez lui, il eut besoin d'elle: il était comme un homme dans la vie de qui une passante qu'i/ a aperçue un moment vient de faire entrer /'image d'une beauté nouve/le qui donne à .Ia propre sensibilité une valeur pias grande, sans qu'j[ sache seulement s'j/ pourra revoir jamais celle qu'U aime déjà et dont il ignore jasqu'au nom.

o mesmo tema é mais desenvolvido pelo próprio Proust, na "splendide jeune filIe inconnue, à la cigarette, de Saint-Pierre-des-Ifs".8 Também aparece em Citizen Kane, nas palavras de Bernstein a Thompson - o jornalista encarregado de fazer a investigação sobre Kane, a fim de descobrir o sentido da palavra pronunciada no leito de morte: Rosebud. Neste trecho do filme, a fim de transmitir a impressão de contornos vagos mas marcantes da experiência, Welles imobiliza a imagem e faz Bernstein evocar a cena através das palavras. A expressão fisionômica de Bernstein serve para salientar a melancolia e pujança da fixação da imagem na memória, carregada dos sentimentos revividos. Para Proust a lembrança da passante não é uma referência de "vivência". Ao contrário, é uma experiência preciosa de amor e de beleza, apesar de fugaz. A fugacidade é circunstancial. A experiência é definitiva. Quando Bernstein lembra a jovem de branco sua voz está comovida; seu olhar intenso transcende o presente e o relato revela como a circunstância fugaz pode dar profundidade e sentido à vida humana. A plenitude não reside nos grandes acontecimentos: "It is easy to make money when all you want is to make money", diz Bernstein. O essencial é invisível aos olhos, já o disse Saint Exupéry... A rememoração do efeito produzido pela visão da jovem de branco, feita com amor, saudade, intensidade, emoção controlada pela mudança radical de assunto e de atitude me lembra um trecho literário de emoção similar, em que o narrador recorda a beleza natural, que trai o amor intenso contido e oculto. É quando Riobaldo descreve a natureza local, traindo seu amor por Diadorim: Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aqui/o. Cheiro de campos com .flores, .filrte, em abril: a ciganinha. roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto - no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! [... l. Lembro. deslembro. Ou - o senhor vai - no soposo: de chuva-chuva. [ .. .] Por esses longes todos eu passei. com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou s{~frido o ar que é slIudmle? Diz

R.

Prous! 11, 883.


A passante e o "choque"

ROSA, João Guimarães. Grande Serfiio: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963: p. 27. 9.

10 BENJAMIN, Walter, HORKHEI. MER, Max, ADORNO, Theodor e HABERMAS, Jürgen, Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 38-9.

!!.

Acumular "impressiJes du-

radouras comofundamento da menu5ria" de processos estlmuladores é reservado, segun-

do Freud, a "outros sistemas". que devem ser tidos como diversos da consciência. Segundo Freud, a consciência como

tal não acolheria traços mnemônicos. Teria, ao invés, uma função diversa e importante: servir de proteção contra os estímulos. "Para () organismo vivo, a defesa contra os estimulos é uma tarefa quase tão importante quanto a sua receprão: o or;:anismo é dotado de um quantum próprio de ener;:ia, e deve fender sobretudo a proteger as formas particulares de enerKia que nele operam do influxo nivelador, e

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que tem saudade de idéia e saudade de coração .. Ah. Diz-se que o governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí. .. Y

A experiência de Riobaldo-narrador distingue a "saudade de idéia e a saudade de coração", Seria o equivalente da diferença entre experiência e vivência? A "saudade de coração" contamina a linguagem do trecho acima, que fala da natureza selvagem como bela, mas não da "beleza" exótica tal como pode ser vista pelo homem urbano e sim da beleza revelada pela pontuação, pela escolha das palavras, pelo tom poético e pela interrupção que revela o sofrimento da saudade. Enquanto isto, a "saudade de idéia" contamina a visão de mundo. Benjamin analisa o poema "La passante", de Charles Baudelaire, "O significado do soneto numa.frase é o seguinte: a aparição quefascina o habitante da metrópole -longe de ter na multidão somente a sua antítese, somente um elemento hostil- é proporcionada a ele unicamente pela multidão. O êxtase citadino é um amor não já à primeira vista, e sim à última .. É uma despedida para sempre que, na poesia, coincide com o instante do enlevo. Desse modo o soneto apresenta o esquema de um choc, ou melhor, de uma catástrofe que atingiu juntamente com o sujeito também a natureza do seu sentimento. O q/Je contrai convulsivamente o corpó - "crispé comme un extravagant" é dito na poesia - não é afelicidade de quem é invadido pelo eros em todos os recantos do seu ser; mas antes um quê de perturbação sexual que pode surpreender o solitário. " 10

Benjamin considera que a passante provoca um choque que não corresponde ao amor. A emoção amorosa, afetiva, teria sido substituída pela perturbação erótica. A experiência da fugacidade - e da perda - tem sido apresentada no cinema por filmes tipo Short Cuts, de Robert Altmann. Esta é uma fugacidade epidérmica, .que repete impressões, mas não deixa senão rastros. É uma seqüência de choques (utilizando um vocabulário benjaminiano ll ) - à maneira de Rastros de Verão, de João Gilberto Noll - que não abre espaço para outro tipo de consciência a não ser o sentimento de perda diante da busca da profundidade e plenitude, da beleza e do amor, decorrente da fugacidade, ~ão níveis diferentes de experiência diante do mesmo fenômeno da fugacidade. O sentimento de perda é profundo, ancestral no ser humano, e ligado ao anseio da plenitude. O sentimento de medo, de dor e o recobrimento do choque provocador da perda podem ser responsáveis pela perda da memória, ou pelo registro de curta duração, Mas isto é outra coisa. Segundo Freud, é origem dos atos falhos, reveladores de que o aspecto oculto, silenciado aparentemente extinto - está em plena ebulição. O que Freud considera sobre a neurose traumática l2 - excepcional e patológica - é levado por Benjamin para o campo da normalidade e da ocorrência habitual, contanto que aplicado à "estupidez das grandes massas" e não ao poeta (ou ao crítico?), que perde-


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ram a auréola, mas não a cabeça. Por medo do novo, da coletividade que Benjamin vê ser manipulada pelo governo nazista de então, Benjamin constrói, como mostra Lowy, uma utopia voltada para o passado. O passado é bom e puro - pleno - sendo o presente perigoso, vazio e pobre. A modernidade passa a ser a cifra investida do susto de Benjamin diante do que vê ocorrer em seu país: a Alemanha de Hitler. A reação dos concidadãos passa a ser vista pelo viés ideológico-político, não havendo espaço para considerar a renovação das formas e linguagens estéticas como uma necessidade da arte, tal como o entende Adorno. É bom lembrar que o fenômeno cultural do qual trata Walter Benjamin independe de características especiais e diferentes de cinema e literatura. E que a análise de Benjamin, da década de 30, volve o olhar impregnado no susto do momento político sobre uma obra publicada 100 anos antes (Fleurs du mal, de Charles Baudelaire), quando tanto a experiência da modernidade como mesmo o volume da "multidão" eram completamente diferentes que os que podemos viver hoje, ou que era possível na Alemanha da década de trinta. Os estados mentais (tipos diferentes de consciência, sentimentos, pensamento, evocação, vida intelectual) são de apresentação cinematográfica possível através de palavras (como na referida cena em que Bernstein lembra a jovem de branco), servindo a imagem do relator para criar uma mediação com o estado mental descrito pelas suas palavras. A imagem apresentada é de outra ordem do que o enunciado e leva o espectador a conhecer, através das palavras, um estado de consciência que não se explicita pela fisionomia (imagem) - suscitando no espectador uma imagem imaginária mais penetrante que a imagem real, como se o espectador tivesse recebido um impacto, com esta imagem, semelhante ao do narrador, algo que corresponde a um choque, mas que leva a percepção para o campo da experiência. Porque, como diz Merleau-Ponty. nenhuma consciência constituinte pode saber da pertença de uma consciência a um mundo "pré-constituído". 13

conseqüentemente destrutivo, das energias demasiado grandes que operam no exterior", A ameaça proveniente dessas enerKülS é uma ameaça de choes. Quanto mais normal e corrente for () re/?istro dos choes. tanto menos explica a

natlfreza dos choes traumáticos pela "ruptura da proteção contra (I.'i estímulos". O xiKni.ficado do espanto é, seRundo essu tf:'oria. a "ausência da predisf1osi~'Ü() pura a angús-

tia ", Al'uJ BE"JAMIN, Walter. HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor e HABERMAS, Jürgen, Textos e,\'CIIlhidlis, São Paulo: Abril Cultural, 1980: p, 33. Enfim, segundo Benjamin a sensação da modernidade leva à "dissolução da aura nu 'experiência', () choc". 12 A investigação de Freud tinha como ponto de pmtida um sonho típico das neuroses trau-

máticas, Ele reproduz a catá-,-

trofe pela qual o paciente foi atingido. Segundo Freud, sonhos desse tipo tentam "realizar a posteriori () controle do estimulo desenvolvendo a angústia cuja omissão foi a causa da neurose traumática", Apud Benjamin (): 33, U, MERLEAU-PONTY, Mamice. Signes. Paris: Gallimard,

1960, pp, 86-7,

Le regard eSI /e dép/oiement d'une IllImllJ/lie /ocalisée Iraduisanl /es liens entre sa localisafion particuliere el sa cible. c 'est-lÍ-dire I 'élendue fonciérement totale de l'univers: "Si je veux m' enf'ermer dans un de mes sem et que, par exemple, je me projette tout entier dans mes yeux et m 'abandonne au bleu du ciel, je n' ai bienfôf plus conscience de regarder ef, au moment ouje voulais mefaire fout enfier vision, le ciel cesse d'êfre une "perception visuelle" pour devenir mon monde du moment, " 14

A citação de Merleau-Ponty indica que a percepção do mundo não depende de um movimento - ou de impulsos - externos, mas antes de uma tomada de consciência pessoal, interna, decorrente da capacidade de doação plena a um dos órgãos dos sentidos. A passagem da percepção visual particular e tópica para converter-se em um todo em si, em mundo, depende de um

14, MERLEAU-PONTY,

Maurice.

Phénomenologv de la percel'tism, Paris: Gallimard, 1989 p, 260,


A passante e o "choque"

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ato de vontade e da consciência do próprio olhar, a fim de suspender a contingência e a singularidade. Uma amplificação destas é mais facilmente transmissível por palavras, do que por imagens, porque as imagens se apresentam ao espectador como realidade - externa à consciência. Mas foi só fazendo a comparação entre literatura e cinema, e tomando como exemplo o filme de Orson Welles, que nos demos conta de que aquilo que parece ser mera vivência, fruto de choque, conforme Benjamin, pode ser vivido como experiência profunda e mesmo fundamental. Os níveis de consciência humana podem ser diretamente afetados por contingências históricas - mas não é obrigatório. Assim, o cinema nos leva a suspender o determinismo na concepção das relações entre ser humano e meio; nos leva a entender que as mudanças e transformações no ser humano são possíveis ao longo de sua existência. Nada é. Tudo está.



EI Sindrome de Merimée o la espanolidad literaria de Alejo Carpentier Luisa Campuzano

'. CABRERA INFANTE, Guillermo. Tres tristes tigres. Barcelona, Sei x-BarraI, 1968, p. 341. 2. NERUDA, Pablo. Confieso que he vivido. Memorias. Bar-

celona: Seix-Barral, 1974, 175-76.

Cuando a fines de los sesenta un personaje de Tres tristes tigres llamó a Alejo Carpentier "eI último novelista francés que escribe en espanol", I o Neruda, a comienzos de los setenta se refirió a él como "un escritor francés",2 en ambas afirmaciones había, sin dudas, mucha mala intención y alguna inquina política, cierta influencia de la lectura aún cercana de El siglo de las luces (1962) y un gran apego a la ficha biográfica - su padre era bretón - y a los defectos, de pronunciación deI autor, quien como Cortázar, arrastraba la erre, y había residido muchos anos en Francia, Pero también eran evidentes un desconocimiento u olvido voluntario de aspectos esenciales de su obra y de su vida - por ejemplo, que había vivido mucho más tiempo en Venezuela -, los que el curso de los anos y la sucesión de novelas y ensayos que publicaría en los setenta, o de distintos textos de otros tiempos puestos de nuevo en circulación, se encargarían de reforzar. Entre estos aspectos. esenciales de sus textos y también de su biografía, uno de los menos desestimables - que de haber sido capaces de distinguirlo sus detractores podría haber contribuido con más agudeza que el prontuario policiaco a la construcCÍón deI presunto "atfancesamiento" carpenteriano es precisamente esa suerte de "síndrome de Merimée" - la "moda espano la" que también padecieran Corneille, Moliere, Lesage -, que lo afecta en casi


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toda su obra, lo que parafraseando un importante estudio de Juan Marinello sobre José Marti,3 tan paradójicamente aquejado deI mismo mal, me gustaría llamar la "espafíolidad literaria" de Alejo Carpentier, demostrable en diversos registros de su hacer y a la que quiero acercarme de un modo forzosamente muy parcial, a través de un inventario comentado de sus escenarios espafíoles y de sus encuentros de todo tipo con el más universal de los hijos de Espafía: Miguel de Cervantes; para luego detenerme, siquiera brevemente, en la significativa presencia de éste en algunos textos deI cubano. Siendo la complejísima dialéctica de las relaciones deI Viejo y el Nuevo Mundo una de las preocupaciones sustantivas de Carpentier. - el motivo deI viaje es uno de los más frecuentes de su narrativa, y Espana. un escenario privilegiado en el constante ir y venir de sus personajes y sus ideas. Campo de batalla donde pelear las guerras más justas contra los franceses. contra los fascistas - y por ello en ocasiones escenario metonímico de los combates que no se dan - guerra de independencia a comienzos deI XIX - o que se han congelado - revolución izquierdista de los anos 30 - en su patria; crisol de razas, de culturas, de credos; espacio alternativo, especular, deI Caribe, su otro Mediterráneo; punto de partida de todas las aventuras posibles e imposibles, Espafía, desde los pasos de los Pirineos hasta el puerto de PaIos, desde la frontera portuguesa hasta las Islas Baleares, de Prudencio a San Juan, de Lope de Vega a García Lorca, de Flandes aI 2 de mayo, de Goya a Picasso, de Antonio Cabezón a Manuel de Falla, desde los emigrados de Bayona hasta las Brigadas Internacionales, es uno de los grandes temas de reflexión de Carpentier. Como amplio escenario y bien documentado contexto temporal, Espana aparece en cinco de sus novelas y dos de sus relatos, con lo que constituye, fuera de Cuba, el más frecuentado de los espacios y los tiempos narrativos de Carpentier. Procediendo cronológicamente, de acuerdo con la fecha de publicación de los textos, me propongo esbozar un somero inventario de su presencia en la narrativa deI cubano, el cual no será más que un indicio superficial de la dimensión profundamente significativa de su alcance, cifrado en un vasto conocimiento de su historia, sus letras y su arte. En "Semejante a la noche" (1952), uno de los personajes que se preparan a partir hacia una empresa bélica, de sangre y rapifía disfrazadas de heroísmo, que en el relato se repite desde los tiempos de Troya hasta los de la Segunda guerra mundial, es un espafíoI de comienzos deI siglo XVI que se apresta a embarcar rumbo a la conquista de América. En "EI camino de Santiago" (1958), un tambor de los tercios de Flandes a quien la peste le ha hecho prometer aI santo patrón de los ejércitos espafíoles que irá como peregrino a Compostela, es desviado de su ruta por las copas; y en Burgos se deja conquistar por el deseo de ir a las Indias, hacia donde sale después de recibir eJ permiso oficial en Sevilla. Tras una desafortunada

l. Cf. sobre este tema MARI· NELLO, Juan. Espanolidad literaria de José Marti. Dieciocho ensa)'os martianos. La Habana: Editora Política, 1980; VITIER, Cintio. Espana en Mar-

tí. Casa de las Américas, 35 (198): 4-13, enero-marzo 1995; y En un domingo de mucha luz. Cultura, historia y literatura espano las en la ohra de José Martí. Salamanca: Ed. Universidad de Salamanca, 1995.


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estancia en la paupérrima Habana de comienzos deI sigla XVI y una temporada no menos desastrosa en un palenque de cimarrones deI interior de la Isla, vuelve el romero arrepentido a Espafia, pasando por las Islas Canarias, y de nuevo en Burgos y en Sevilla, y convertido en indiano, trasmite a otros el deseo de viajar a las nuevas tierras. En El siglo de las luces.la novela de 1962 que tematiza la trayectoria de la Revolución francesa en el Caribe, el desconsuelo y la rabia de Sofía y Esteban, los protagonistas cubanos defraudados por ella, encuentran un espacio de acción en la sublevación de los madrilefios contra los bonapartistas el 2 de mayo de 1808. A manera de epílogo, su capítulo final se desarrolla en un Madrid aI que Ilega Carlos, el hermano sobreviviente, con la intención de indagar por su destino, de descifrar el sentido de sus últimos afios y de recoger sus pertenencias. EI tercer capítulo de Concierto barroco (1974) narra las divertidas andanzas de un rico mexicano hijo de espafioles y de su criado, un negro cubano, por el Madrid de comienzos deI siglo XVIII, y el viaje que los lleva de esta ciudad a Barcelona. La consagración de la primavera (1978), novela en la que Carpentier aborda, después de afias de intentos frustrados, el tema de la Revolución cubana, se inicia en la Valencia de 1937 a la que él concurriera como delegado aI 11 Congreso internacional de escritores antifascistas en.defensa de la cultura, y que ahora transitan sus personajes envueltos en los fragores de la Guerra civil espanola. En El arpa y la sombra (1979), su última novela, la segunda de sus tres partes, que en extensión equivale a las dos restantes, se ocupa de la larga preparación de Cristóbal Colón, moribundo, para enfrentar a su confesor y, en última instancia, a su Hacedor. El escenario es Valladolid en los primeros anos deI sigla XVI, pero el mundo referido por el memorioso recuento deI Almirante recorre sus itinerarios espanoles durante el último tercio deI sigla precedente. AI morir, el24 de abril de 1980, Alejo Carpentier dejó casi terminada una novela, Verídica historia cuyo protagonista también es un personaje histórico, Pablo Lafargue, el mulato de Santiago de Cuba, fundador de la Internacional y yerno de Carlos Marx. Uno de sus capítulos, publicado por la revista Casa de las Américas en su entrega 177, de noviembre-diciembre de 1989, se desarrolla a comienzos de la década de los 70 del sigla pasado y en un Madrid aI que llegan el protagonista y su esposa tras un largo viaje en ferrocarril desde la frontera de Francia. Pero este interés de Carpentier por Espana no sólo se pondrá de relieve en sus tiempos y escenarios espanoles, en los cronotopos estrictamente ibéricos que ocupan tan gran dimensión en su mundo narrado, sino también en otros momentos y espacios de su obra, por las citas, alusiones, parodias y, en


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fin, el gran caudal de intertextualidad de procedencia hispana que en ella se aprecia de modo tan evidente que ha sido motivo de estudios de distintos especialistas, como Frederick A. de Armas, que ha abordado la huella de Lope y de Los trabajos de Persiles y Segismunda en ella; de Sharon Magnarelli y Rita Gnutzmann, que han indagado en torno a sus relaciones con la picaresca; de Daniel Pageaux, que ha trabajado sobre lo que llamó su Espana novelesca; de Ignacio Díaz, que se ha referido a distintos registros de su hispanidad en Los pasos perdidos; de Manuel Aznar Soler, que ha investigado acerca de la experiencia personal deI autor en tiempos de la Guerra Civil Espanola y su transformación literaria; de Julio Rodriguez Puértolas. que ha coleccionado y estudiado sus crónicas espanolas; de Roberto González Echevarría que nombró su gran libro sobre nuestro novelista con un título de Lope de Vega: El peregrino en su patria; y de Rita de Maeseneer, que en un importante Iibro aún inédito, dedicado a las citas en Carpentier, ha cuantificado y analizado el sentido de esta fructífera relación intertextual. 4 Mas entre todos los autores de la lengua espanola el más presente en los textos deI cubano es Cervantes, con quien tiene, a lo largo de toda su vida y en toda su obra, una profunda vinculación que se proyecta y amplifica en el tiempo, esa otra dimensión que obsesivamente recorren los personajes de Carpentier, devanándola en todos los sentidos, intentando reconstruir, recuperar la imposible isocronia de un Continente en que coexisten todas las edades dei hombre. Por eso Alejo Carpentier, tan amigo de viajar a los orígenes, de bucear en el pasado, como de encontrar lo circular, lo cíclico, la eterna espiral en el transcurso humano, decía en 1978, aI final dei discurso con que agradeciera el premio más alto de la lengua, el "Miguel de Cervantes", que había sido el primer hispanoamericano en alcanzar, estas palabras que develan la profecía ai mismo tiempo solemne y lúdrica de un destino marcado con piedra blanca, de un destino cumplido para nuestra común riqueza: "De nino yo jugaba aI pie de una estatua de Cervantes que hay en La Habana [... ] De viejo hallo nuevas ensenanzas, cada día, en su obra inagotable ... "; y esta devoción por el mayor escritor dei idioma - que como veremos, para él tenía timbres de gloria mucho más universales - se manifestó, a 10 largo de los anos, en todos los registros de su vasta obra: composición musical y musicología, periodismo, crítica, ensayística, narrativa, promoción cultural, en los que asumió, por lo demás, los matices y las funciones que su impresionante cultura, su fértil imaginación, su afán de servir y el don supremo deI talento lo Ilevaban a privilegiar en cada ocasión. Casi toda la obra de Cervantes, las figuras más polémicas de la exégesis cervantina, la variadísima gama de manifestaciones artísticas inspiradas por el Quijote - ballets, dfamas, óperas, filmes, poemas sinfónicos - merecen su atención. eon ellas coincide, polemiza, crea; se las apropia o las repudia, de modo tal que no seria hiperbólico considerar que un estudio de la presencia

4. ARMAS, Frederick de. Lope de Vega y Carpentier. Aclas dei Simposio Internacional de ESludios Hispánicos.

Budapest: Ed. de la Academia deCiencias, 1978, p. 363-373. _ _ _ . Metamorphosis as revolt: Cervantes' Persiles y Sigismunda and Carpentier's EI reino de esle mundo. Hispanic Review, 49, (3): 297-3 16, 1981; MAGNARELLI, Sharon. "EI Camino de Santiago" de Alejo Carpentier y la Picaresca. Revista lheroamericana, 40, (86): 65-86. enero-marzo 1976; GNUTZMANN, Rita. Lo picaresco y el punto de vistaen El recurso del mélodo de Alejo Carpentier. In CRIADO DE VAL, org. La picaresca. Oríf.(enes, textos y estructuras. Madrid: Fundación Univ. Espanola, 1979, p. 1151-58; PAGEAUX, Daniel. La Espana novelesca de Alejo Carpentier. In Mélanges ojJens a Maurice Molho. Paris: Ed. Hispaniques, 1988, 11, p. 353-64; DIAZ, Ignacio. Alejo Carpentier y la conciencia hispánica. In Cahrera Infante y otros escritores latinoamericanos. México: UNAM, 1991, p. 99-107; AZNAR SOLER, Manuel. "Alejo Carpentier y la Guerra Civil Espaiíola: hacia La ('onsilKraciôn de la primavera. Escritura, [Caracas] 9, (17-18): 6790, 1984; RODRIGUEZ PUERTO-

LAS, Julio, org. Rajo e/ .úRno de la Ciheles. CrlÍnicas sohre Elpafia v los espalioles. 19251937 [de Alejo Carpentier]. Madrid: Nuestra Cultura, 1979; GONZALEZ ECHEVARRIA, Roberto. Alejo Carpentier: El pereKrino en su patria.

México: UNAM, 1993; MAR,ENEER, Rita. Cervantes y Carpentier: una relectura múltiple. (Capítulo VII de un libra inédito sobre intertextualidad en la obra de Alejo Carpentier, ed. dactilografiada, 1994, pp.88-98).


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de Cervantes en Carpentier, aI margen de su propio valor tendría el de trazarnos un retrato bastante completo deI novelista cubano. Pensando en esto último, seguiremos un orden cronológico en la presentación y comentario que sólo de esto se trata - de nuestro tema, en el que forzosamente habrá que espigar los aspectos o los hechos de mayor interés, remitiendo, para los que sólo hemos podido rozar. a la bibliografía carpenteriana recopilada por Araceli García Carranza y a sus preciosos índices. RAMON CHAO. Alejo Carpentier: una literatura inmensa In CARPENrIER. Alejo. Entrevistas. La Habana: Letras Cubanas. 1985, p. 220-27.

No deja de ser significativo que la primera vez que Carpentier trabaja con Cervantes, lo hace como músico y. ai parecer. con mucho éxito. Es en París, en 1937, es decir. en medio de la Guerra Civil Espanola, cuando el entonces joven actor y director Jean Louis Barrault monta en el "Théatre Antoine" la Numancia. Es en esa ocasión cu ando Alejo Carpentier compone, a lo que sabemos. su única partitura, "escrita [ha dicho él en los setenta] premonitoriamellte. para gran aparato de percusión y voces humanas [... ] como hacen hoy muchas gentes de las nuevas generaciones".5 En agosto de 1937, pocas semanas después dei estreno, decía Carpentier en una de las crónicas que escribía desde Paris para la revista habanera Carteles:

6. CARPElmER. Alejo. Numancia. Carteles. La Habana: 22 ago. 1937. p. 22-25.

Me atrevo a afirmar que con Numancia hemos planteado la cuestión de la música de acompaí'íamiento dramático sobre bases nuevas, con un resultado cuya novedad ha sido seiialada por toda la cótica parisiense ... fi

7. CARPENTIER, Alejo. La música en Cuha. La Habana: Letras Cubanas. 1988. p. 5 I.

Traído de regreso a Cuba por el inicio de la Segunda Guerra Mundial, hace en 1940 una adaptación para la radio dei Quijote, y más adelante será también la música la que lo acerque a su autor, a través de las investigaciones que emprende para la preparación de La música en Cuba (1946), el importantísimo libro que le encargara el Fondo de Cultura Económica de México en 1944. Estas búsquedas lo conducen ai estudio de los cantos y las danzas nacidos en La Habana y otros puertos dei Caribe en los siglos XVI Y XVII, de la mezcla de sones europeos y africanos. Como lo atestiguan muchas de sus páginas, encuentra su rastro en los escritores espanoles de la época: en los entremeses, en Lope de Vega, en muchos otros poetas de los Siglos de Oro, donde descubre los batuques, los zarambeques, las chaconas que "De las Indias a Sevilla/[han] venido por la posta",?

5.

El celoso extremefío, la ejemplar noveleta cervantina, que no dejará de citar, a lo largo de toda su vida, como fuente de su conocimiento sobre aspectos tan importantes de la historia de nuestra música como lo son su diseminación y su recepción en Espana, le proporcionará, además, el modelo de los dos personajes protagónicos de "EI camino de Santiago" (1958) y algunos de sus motivos, los cuales se van a repetir, con insistencia que he subrayado en otra ocasión, en Concierto barroco (1974) y La consagración de la primavera (1978). Tanto en el relato como en las dos novelas hay un


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negro músico y un blanco, que en los dos primeros textos es, además, un indiano: el Indiano con mayúscula y todo. Como Luis, el negro músico de EI celoso extremefío, Golomón, acompanante deI primer Indiano, el de "El c'amino de Santiago", y Filomeno, acompanante deI segundo Indiano, el de Concierto barroco - y acaso descendiente deI primer Golomón, puesto que éste es su apellido -, son también músicos, como lo será Gaspar Blanco, el mulato trompetista de La consagración de la primavera. Ellos y los senores blancos a los cuales acompanan viajan de América a Europa y de Europa a América trazando el mapa de las relaciones temporales y espaciales entre el Viejo y el Nuevo Mundo, ese tema fundamental en Carpentier; y descubriendo ai mismo tiempo, con la perspectiva que ofrece la lejanía, que su identidad ya no es la dellinaje europeo cultivado por sus progenitores, o la deI gueto racial fabricado por sus amos, sino que poseen una nueva identidad, tanto nacional (los blancos), como universal (los negros). Durante los muchos anos en que mantuvo una sección fija, "Letra y Solfa", en EI Nacional de Caracas, ciudad en la que reside desde 1945 hasta 1959, Carpentier se ocupa en numerosas ocasiones de Cervantes. Cronista de cuanto libro se publica sobre su obra, censor de los abominables filmes con que se traiciona la esencia deI Quijote, estudioso de las relaciones de las Novelas ejemplares con el surgimiento de los relatos largos, juez de la música que inspiran las hazanas deI pobre hidalgo, Carpentier es sobre todo el cantor de las glorias dei Quijote, aI que tanto en estas páginas como en las incontables entrevistas en las que dedica amplias y profundas reflexiones a Cervantes, le otorga el sitio cimero entre todas las creaciones \iterarias. En una de esas crónicas compara la recepción que tiene el Quijote en todo el mundo con la que merecen las obras de Shakespeare, Dante, Milton y Goethe, y tras analizar, con detenimiento digno de páginas menos efímeras, "las razones que lo hacen universalmente inteligible", concluye asegurando: "Este es un privilegio que ni siquiera Homero podría arrebatarle".8 Es por eso que, de regreso definitivo a Cuba en 1959, lo recomienda como el primer libro que debe publicar la recién inaugurada Imprenta Nacional, y que cuando salen a la calle los cien mil ejemplares de aquella memorable edición, idea un medio que sólo a él podía ocurrírsele para promover su adquisisción y lectura: la puesta en escena, primero en la Sala Covarrubias dei también flamante Teatro Nacional, y después en todos los escenarios dei país, dei Retablo de Maese Pedro, la ópera de cámara de su amigo Manuel de FalIa, dirigida por el cubano Vicente Revuelta, con un programa cuyo texto redacta y que hasta en las ilustraciones de cubierta y reverso de cubierta, con fotografías de Falia tomadas en Venezuela, evidenciaba que había sido fraguado por Carpentier. La entrada para el espectáculo consistia, por supuesto, en la compra deI Quijote.

8. CARPENTIER. Alejo. El libro sin fronteras. El Nacional, [Caracas], 19 sept. 1956; a la cabeza deI título: "Letra y solta".


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CARPENTIER, Alejo. Don Quijote sale olra vez ai camino para satisfa= deudas no saldadas. México en la Cultura [Mexico I, 19 jul. 1960, p. I, 4. 9.

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La publicación de los cuatro tomos lo entusiasmó de tal modo que envió dos colaboraciones sobre el tema a La semana de México, suplemento cultural de Novedades, y a El Nacional de Caracas. En la primera daba cuenta de la emoción con que se había inclinado sobre galeradas olientes a linotipo, él que desde los diecisiete anos. cuando entró en la redacción deI diario habanero La Discusión. siempre había andado por imprentas de periódicos e imprentas de libros. para ver "salir [... ] de la máquina inteligente inventada por Mergenthaler. metido entre corondeles. pasado a pruebas corrientes, un texto que se iniciaba con [unas] líneas por todos sabidas: En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre 110 quiero acordarme ...".9 La segunda, la crónica de El Nacional. digna de una cita más amplia, relaciona la publicación deI Quijote can la puesta en escena deI Retablo: Una nueva concepción escénica de la ópera de cámara de Manuel de FalIa es ofrecida, actualmente, en esta cervantina Habana dei Quijote pregonado en calles y plazas.

- jEI quijo! ... jEI quijol. .. Alzase el pregón, ininteligible para quien no pueda ver la mercancía pregonada, en todas las calles de La Habana.

\O CARPENTlER, Alejo. Un nuevo Retablo de Maese Pedro. EI Nacional [Caracas], I Sepl. 1960.

- jEI quijo! ... jEI quijo! ... jA veinticinco kilos [centavos]! Sorprendido se asoma el forastem a su ventana y descubre que lo que así se ofrece es nada menos que ellibro donde se narran las andanzas dei ingenioso hidalgo don Ouijote de la Mancha ... iO

EI cuatro de abril de 1978, en el paraninfo de la Universidad de Alcalá de Henares, cuando recibe el premio "Miguel de Cervantes", Carpentier pronuncia uno de los más hermosos y sagaces elogios deI autor deI Quijote. He revisado las páginas de la prensa espafiola y aun francesa en que se reproduce, completo, su discurso; y las frases con las que es presentado o comentado no dejan de subrayar el donaire, la erudición y el saber de un texto evidentemente dictado por la emoción, por el sentir, en el que la sinceridad de lo que se dice rotura el camino de la palabra. Y es que esta palabra viene de ~trás, de sus viejos artículos, de sus ensayos, de toda la papelería propia y ajena en la que por cerca de media siglo ha ido dejando testimonio de su admiración por Cervantes aI tiempo que maduraba juicios y apreciaciones sobre su obra. Juega Carpentier con sus tiempos, con el hoy y el ayer, el entonces y el ahora; baraja sus lugares, éste y todos los demás, el acá y el alIá, para poblar de personajes literarios un mundo que ha nacido con Cervantes, un mundo que le debe aI Quijote esa cuarta dimensión, la de la fantasía, sin la cual ya no podríamas, no sabríamos vivir. Pero, como decíamos aI principio, es en su narrativa, como era de esperar; donde Cervantes y, en particular, el Quijote tienen una importancia y un tratamiento mucho más perdurables.


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En el prólogo famosísimo de El reino de este mundo. novela con la que Carpentier reinicia en 1949 su tránsito por el género que había abandonado hacía cerca de veinte anos, Cervantes encabeza, con un epígrafe tomado de Los trabajos de Persiles y Segismunda, lo que será uno de los documentos más importantes de la nueva narrativa latino americana, la exposición de la teoría carpenteriana de lo real maravilloso americano. En Los pasos perdidos (1953), la gran novela de la selva en que se adentra el protagonista narrador, un latinoamericano que desde hace muchos anos vive en una capital deI Primer Mundo, donde casi ha olvidado su lengua materna y ha ido perdiendo sus contornos, el comienzo deI Quijote. rememorado a duras penas en el trayecto que lo conduce a su destino. comienza a devolverle sus esencias. Con El recurso dei método (1974) se abre un nuevo cicIo en la novelística de Carpentier, y hoy podemos decir que en toda la novelística hispanoamericana - pienso en la narrativa deI I1amado postboom - en el cual el humor alcanza una singular dimensión y la textura literaria, siempre densa, ostenta un dialogismo más evidente, en muchos casos polémico o irónicamente paródico. Por las características que acabamos de apuntar, en casi todas las novelas de este período tendrán el Quijote, sanefa sanctorum de la parodia, y en sentido general, Cervantes, un lugar más importante que el que de modo explícito o implícito ocupaban en el resto de la producción narrativa de Carpentier. En El recurso ... buena parte deI tono, deI "espíritu de la época", deI escenario, de los personajes y hasta de los procedimientos son tomados de Proust - como la crítica no ha cesado de subrayarlo desde los dias de aparición de la novela -; aI tiempo que, invocados por el autor como musa propicia, los manes de la picaresca rondan todas las peripecias de la trama. Pero el Quijote, a su vez, desempena un papel nada desdenable, que he estudiado en un trabajo más amplio que, como prefiero repetirme que citarme, ahora voy a glosar. Comparado el capítulo inicial de El recurso ... con los seis primeros deI Quijote, es posible encontrar cierto paralelismo, ciertos armónicos que constituyen mucho más que meras coincidencias. En sentido general, en ambos textos se presenta la caracterización de un personaje que, de inmediato, se lanzará a la acción en medio de inacaIlable vocerio. "Aquí, aquí, valerosos cabalIeros", grita don Quijote aI comienzo de ese séptimo capítulo que lo lIevará a cargar contra molinos de viento; "jCono de madre! jHijo de puta!", aúlIa el Primer Magistrado, cuando descubre que deberá dejar París para sofocar un nuevo levantamiento. AI igual que la presencia y funciones de dona Tolosa y dona Molinera en la modestísima venta podrían corresponderse con las de las fantasiosas pupilas de Madame Yvonne en el burdel de lujo; y la graciosa manera que tuvo


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don Quijote en armarse caballero podría encontrar remedo en la matinal llegada deI barbero y el sastre a la mansión de la Rue de Tilsitt; no cabe duda de que la paternalista inspección que hace el Ilustre Académico a la biblioteca deI Primer Magistrado es una desternillante y funcional parodia deI donoso y grande escrutinio que el cura y el barbero hicieron en la Iibrería deI ingenioso hidalgo. En ambos casos la revisión de las lecturas de los protagonistas afina en grado sumo su caracterización. Ya sabíamos que Alonso Quijano se había dado a leer libros de caballería con tanta afición y gusto que só 1o se interesaba en ellos; ya conocÍamos. por los cuadros y esculturas que adornaban sus salones, que el dictador lo era de la especie "ilustrada", vale decir, afrancesada. Pero ahora sabremos hasta qué punto son lo que se nos ha venido diciendo y, además, hasta qué punto marchan o no con las letras de su tiempo. Como es de sobras conocido, el escrutinio dei Quijote proyecta la visión de Cervantes sobre la literatura que le es contemporánea tanto más que sobre la precedente; es, junto con los capítulos XLVII y XLVIII de la primera parte, presentación de su crítica y de su poética, aunque estén en boca dei cura o dei canónigo. Mas las opiniones dei Académico y deI dictador no son, en absoluto, las opiniones de Carpentier, sino que representan, en todo el esplendor de su estulticia, los pareceres de dos voceros autorizadísimos de la "cultura oficial" de dos porciones dei mundo en las que los acontecimientos que están por ocurrir - Primera Guerra Mundial, Revolución Rusa -, y que son incapaces de prever, producirán grandes cambios. En estas páginas sería imposible glosar el contenido de ese inefable diálogo. Pero me gustaría afiadir dos cosas que no dije cuando lo estudié, y como tal vez nunca más retome el tema - con los afios una aprende que hay que irse despidiendo de proyectos - debo, por lo menos, enunciarias ahora. Y son, en primer lugar, el dialogismo evidente entre las páginas de El recurso ... , el escrutinio dei Quijote y el escrutinio de esa memorable, inconclusa, enigmática, paródica novela, muy visitada y revisitada por Carpentier, que es Bouvard)' Pécuchet, en la cualla huella de Cervantes es tan ostensible; y, en segundo lugar, la existencia - descubierta por Maeseneer - de una primera versión de este escrutinio carpenteriano, llena, por lo demás, de una notable carga de ese erotismo que nuestro autor comienza a desplegar en los textos de los últimos afios de su vida, en su relato "EI derecho de asilo" (1972), en el que José Emilio Pacheco encontrara también el adelanto de lo que será el estilo y la perspectiva irónica dei novelista cubano a partir de El recurso dei método (1975). EI Embajador que precedió ai titular de la misión donde se aloja el protagonista de "EI derecho de asilo" se había dedicado a demostrar una tesis delirante, según la cual todos los prodigios que aparecen en las novelas de caballería habían sido hallados en nuestras tierras por los conquistadores. Por eso la residencia estaba llena de libros de caballerías a los que la esposa dei


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Embajador llamaba "plomos". AI igual que Cervantes en el escrutinio deI Quijote, el asilado salva a Tirante el Blanco, pero no por las mismas razones que lo hace el cura, es decir, por su realismo, porque en esta novela "comen los caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes de su muerte", 11 sino por su humor y por la presencia en ella de un erotismo tan contagioso, tan singularmente psicagógico, que le consigue el amor de la Embajadora (Maeseneer, 96). Por otra parte, y en un registro totalmente distinto, resulta deI mayor interés el aprovechamiento que hace Carpentier deI Quijote en Concierto barroco, texto que presenta motivos y personajes de El celoso extremeiío como ya vimos -, tiene las dimensiones de algunas de las Novelas ejemplares, y cuyos escenarios extremos, las lacustres ciudades de México y Venecia, de tanta importancia, más que por su paralelismo, por su función especular, en la estructura profunda deI relato, ya habían sido contrastadas de modo admirable por Cervantes en Ellicenciado Vidriera, y antes por Francisco Cervantes de Salazar y Bemal Díaz deI Castillo. Situados en el contexto de la hilarante pero no menos severa requisitoria que exhibe esta noveleta - a la que Carpentier llamaba su Summa theologica, porque en ella había concentrado todos sus barroquismos - contra todo el arsenal temático de las letras europeas, desde los c1ásicos hasta Voltaire - a cuyas disímiles apelaciones intertextuales en distintos textos narrativos de Carpentier me he referido en otros trabajos -, resulta evidente que sólo el Quijote se salva de la chacota universal y que su presencia aquí no só I o va a ser alusiva, irónica, humorística, sino que va a orientar la lectura de la novela en momentos esenciales, lo que se advierte desde los capítulos 11 y 111, cuando, por una parte, el mexicano censura en los mismos términos en que el caballero manchego reprendía ai joven ayudante de Maese Pedro, el modo que tenía Filomeno de contar la historia de su bisabuelo Salvador Golomón; y por otra parte, cu ando el narrador, tras informamos que en su viaje de Madrid aI Levante el seíí.or trató de entretener a su criado narrándole la lucha de un hidalgo loco contra unos molinos - lo que para el negro es un absoluto contrasentido -, nos describe Barcelona siguiendo a Carpentier palabra a palabra. Estas ai parecer jocosas e inocentes citas sin comillas, sin referencia ai autor o ai texto de donde se han tomado, se ven súbitamente actualizadas y justificadas en los capítulos VII y VIII, como lo ha demostrado Maeseneer (91-95), cu ando el mexicano, tras asistir ai ensayo de la ópera Motezuma de Vivaldi y ver todas las modificaciones, escamoteos y falsas interpretaciones a que se somete en ella la historia de su país, asume su condición no ya de criollo, sino de mexicano, y dice a su criado: "De haber sido el Quijote deI Retablo de Maese Pedro, habría arremetido a lanza y adarga, contra las gentes mías de cota y morrión",12 es decir, contra los espaíí.oles, a cuyo linaje se había sentido muy orgulloso.de pertenecer hasta ese momento. En Cervantes,

11.

CERVANTES

Y

SAAVEDRA.

Miguel. Ohras completas. Madrid: Aguilar, 1946, p.

1137.

12

CARPENTIER,

Alejo. Con-

cierfo harroco. México: Siglo

XXI, 1974, p. 76.


El Sindrome de Merimée o la espano!idad !iteraria de Alejo Carpentier

U CARPENTIER, Alejo. Verídica Historia. Casa de las Américas, 30 (I77): 28-46, nov./dic.

1989.

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como se sabe, el retablo de Maese Pedro plantea el problema de la confusión de la ficción y de la realidad por parte dei Quijote, que no sblo protesta por el uso de campanas en un escenario presuntamente moro, sino que confunde los títeres con seres vivos. En Carpentier, como pone de relieve la autora antes citada, la recuperación de la discusión sobre ficción y realidad - en este caso histórica - tiene un sentido muy especial, como hemos visto, ya que conduce ai protagonista no sólo a la impugnación dei estatuto ficcional dei texto que se representa - lo que es muy importante para el autor, para el desarrollo de sus ideas en torno a la visión europea de América, a la manipulación de su historia -, sino también a asumir su nacionalidad, a descubrir el sentido de la historia de su país, presente en el cuadro de las grandezas que exhibe orgullosamente en la sala de recepciones de su palacio de Coyoacán y cuya significación no había podido develar hasta ahora. En La consagración de la primavera la presencia de Cervantes es fugaz, apenas el pretexto para una de las tantas chanzas de Gaspar Blanco, contrafigura de Enrique, el protagonista, en el que no cabe duda de que, como en Filomeno, algo hay de Sancho - su sabiduría popular, sus pies bien puestos sobre la tierra - además de su ya comentado parentesco con el Luis de El celoso extremefío. En El arpa y la sombra (1979), donde hay constantes alusiones a un retablo de maravillas, reaparece Ellicenciado Vidriera, invocado por el Invisible, la sombra de Cristóbal Colón. Per o en la Verídica historia, la novela que Carpentier dejó inconclusa, parece que el Quijote tenía algo importante que decir, o, por lo menos, que insinuar; porque uno de sus personajes secundarios, Anselmo Lorenzo, en el que yo insisto en encontrar a un descendiente de Aldonza Lorenzo, ai contarles a Pablo y a su mujer, Laura, la visita que hiciera unos meses antes a Marx, les dice que Jenny, la mayor de las hijas dei pensador, como él, políglota, ai conocer su nacionalidad, le alcanza un libro de la biblioteca y le pide que lea algunos fragmentos "para oírlos en boca de un espanol y, ai verlo algo vacilante en escoger un pasaje dei Quijote, le puso ante los ojos el Discurso a los Cabreros".13 Di~curso que, como todos conocemos, vuelve a contamos, desde la voz de un loco y para los sordos oídos de unos ignorantes, la historia de esos Siglos de Oro contados por Hesíodo, por Virgilio, por Tibulo y eternamente perseguidos por la humanidad: Dichosa edad y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieron nombre de dorados, y no porque en ellos el oro que en esta edad de hierro tanto se estima, se alcanzase en aquella venturosa sin fatiga alguna, sino porque entonces los que en ella vivían, ignoraban las dos palabras de "tuyo" y "mío". (1151)

Mas esta cita, que ai ser recontextualizada en este espacio connota, proyecta y amplifica el credo político de Carpentier, alcanza resonancia


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mayor si tomamos en cuenta que ya en otra de sus novelas, en El arpa y la sombra, nuestro autor había recordado las primeras líneas deI discurso deI Quijote a los cabreros para identificar esc "más allá geográfico, ignorado aunque presentido por los hombres desde «Ia dichosa edad y siglos dichosos a quien los antiguos pusieron el nombre de dorados»",14 con el vasto mundo descubierto por Cristóbal Colón, escenario propicio para el cumplimiento de todas las utopías.

14 CARPENTIER,

Alejo. EI arp"

.\' la sombra. La Habana: Letras Cubanas, 1985. p. 49.


Colaboradores deste número

Hans Ulrich Gumbrecht, Professor Titular de Literatura Comparada da Universidade de Stanford (EUA). Autor de diversos livros, dentre os quais Eine Geschichte der Spanischen Literatur, Making Sense in Life and Literature e In 1926. An Essay on Historical Simultaneity e organizador de várias coletâneas de Literatura Comparada. Eduardo Portella, Professor Titular de Teoria Literária da Univ. Federal do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros de Teoria e Crítica literárias, dentre os quais Dimensões I,lI e lII, Literatura e realidade nacional, Teoria da comunicação literária, Fundamento da investigação literária, Vanguarda e cultura de massa, O intelectual e o poder, Brasil à vista e A revolução possível. Fundador e Diretor da Revista Tempo Brasileiro. Foi Ministro da Educação e é membro da Academia Brasileira de Letras. Mario Valdés, Professor de Estudos Ibero-Americanos e Literatura Comparada da Universidade de Toronto, Canadá. Foi Presidente da Modem Language Association of America (MLA) e coordenador de diversos projetos na Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC). Tem vários livros publicados, dentre os quais A Ricouer Reader: Rejlection and Imagination e World Making: a Study of the Literary Truth Claim. É também memb~o da Royal Society of Canada e da Mexican National Academy of the Language.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Luiz Costa Lima, Professor Titular de Literatura Comparada da Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros de Teoria e Crítica Literárias, dentre os quais Por que Literatura, Lira e antilira, Estruturalismo e Teoria da Literatura, A metamorfose do silêncio, A perversão do trapezista, Mímesis e modernidade, Dispersa demanda, O controle do imaginário, Sociedade e discurso ficcional, O fingidor e o censor, A aguarrás do tempo, Pensando nos trópicos, Limites da voz e Vida e mímesis. Jeffrey T. Schnapp, Professor de Francês, Italiano e Literatura Comparada da Universidade de Stanford, EUA. Autor de diversos livros, dentre os quais The Transfiguration of History at the Center of Dante 's Paradise e Staging Fascism: 18 BL and the Theater of Masses for Masses. João Cezar de Castro Rocha, Doutorando na Universidade de Stanford (EUA). Organizador do volume Interseções; Imaginação, Materialidade, Redes de Comunicação, no prelo. Tania Franco Carvalhal, Professora Titular de Teoria e Crítica Literárias da Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os quais A evidência mascarada, Literatura Comparada, Um crítico à sombra da estante e Literatura Comparada: textos fundadores(col. Eduardo F. Coutinho). Foi primeira Presidente da ABRALIC (gestão 1986-88). membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC) e Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Lingüística (ANPOLL). Eduardo F. Coutinho. Professor Titular de Literatura Comparada da Univ. Federal do Rio de Janeiro. Autor de diversos livros, dentre os quais The Process of Rel'italizatioll of lhe Language and Narrative Structure in the Fictioll of 1. Cortázar & G. Rosa, The "Synthesis Novel in Latin America, Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas e Literatura Comparada: textos fundadores (cal. Tania Franco Carvalhal). Foi VicePresidente da ANPOLL, e atual membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC) e Presidente da ABRALIC. Irlemar Chiampi, Professora Titular de Literatura Hispano-Americana da Universidade de São Paulo. Suas publicações incluem os livros O realismo maravilhoso, A expressão americana - José Lezama Lima e Barroco e Modernidade (no prelo), além de diversos ensaios. Benjamin Abdala, Professor Titular da Universidade de São Paulo. Autor de diversos livros, dentre os quais Literatura, História e Política, A escrita neo-realista, História social da Literatura Portuguesa e Tempo da Literatura Brasileira. Foi Presidente da ABRALIC (gestão 1992-94).


Colaboradores deste número

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María Elena de Valdés, Professora de Literatura Hispano-Americana da Univ. de Toronto (Canadá). Suas recentes publicações incluem Approaches to Gabriel García Márque: 's One Hundred Years of Solitude, New Visions of Creation: Feminist l/lllo\'atiolls ill Literary Theory e Latin America as its Literature. Regina Zilberman, Professora de Teoria Literária da Pontifícia Univ. Católica do Rio Grande do Sul. Autora de diversos livros, dentre os quais Simões Lopes Neto, São Bernardo e os processos da comunicação, Do mito ao romance, Érico Veríssimo e a Literatura Infantil, A Literatura no Rio Grande do Sul, Estética da Recepção e História da Literatura, Literatura Infantil Brasileira: História & histórias e A literatura infantil na escola. Renato Cordeiro Gomes, Professor de Brasileira da Univ. do Estado do Rio de Janeiro e do Depto. de Comunicação da Pontifícia Univ. Católica do Rio de Janeiro. Autor de diversos ensaios e do livro Todas as cidades, a cidade. Heidrun Krieger Olinto, Professora de Teoria Literária da Pontifícia Univ. Católica do Rio de Janeiro. Suas publicações incluem A palavra culpada, Histórias de literatura, A ciência da literatura empírica e Leitura e leitores. Letícia Malard, Professora Titular da Univ. Federal de Minas Gerais. Autora de diversos livros, dentre os quais Ensaio de Literatura Brasileira: Ideologia e realidade em Graciliano Ramos, Escritos de Literatura Brasileira e Hoje tem espetáculo: Avelino Fósco[o e seu romance. Célia Maria Magalhães, Professora de Língua e Literatura Inglesa da Univ. Federal de Ouro Preto. Suas publicações incluem o livro Filosofia, Ideologia e Ciência Social e diversos ensaios. Fred Clark, Professor Titular e Sub-Reitor da University of North Carolina, Chapel Hill, EUA. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros Impermanent Structures: Semiotic Readings of Nelson Rodrigues' Vestido de noiva, Album de família e Anjo negro e Spectator Character Text: Semiotics Readings of Nelson Rodrigues 'Theater. Silvano Peloso, Professor Titular de Língua e Literatura Portuguesa na Universidade de Roma "La Sapienza". Suas publicações incluem os livros Medioevo nel Sertão, Amazzonia, mito e letteratura deI mondo perduto, La voce e il tempo, O canto e a memória. História e utopia no imaginário popular brasileiro e Pagine esoteriche. Sonia Torres, Professora de Literatura Norte-Americana da Univ. Federal Fluminense. Tem diversos ensaios publicados e foi tradutora do romance de Steven Lukes, The Curious Enlightenment.


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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n° 3

Luís Alberto Brandão Santos, Professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem diversos artigos publicados em revistas e periódicos especializados. Suzi Sperber, Professora de Teoria Literária e Literatura Brasileira da UNICAMP. Suas publicações incluem diversos ensaios e os livros Signo e sentimento e Caos e Cosmos. Luisa Campuzano, Ensaista e Professora da Universidade de La Habana (Cuba). Autora de diversas publicações, dentre as quais os livros Breve esbozo de poética preplatónica, Las ideas [iterarias en el Satyricom (Premio de la Crítica, 1984) e Quirón o dei ensayo y otros eventos. Membro da Diretoria da Casa de Las Américas, onde dirigiu o Centro de Investigaciones Literarias e atualmente coordena o Programa de Estudios de la Mujer.


Aos colaboradores

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A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita trabalhos inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse voltado para os estudos de Literatura Comparada. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos à aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestões de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunicadas previamente aos autores. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto datilografado em espaço duplo, com margem, além de dados sobre o autor (cargo, áreas de pesquisa. últimas publicações, etc.). O original não deve exceder 30 páginas datilografadas; os comentários de livro,. em torno de 8 páginas. As notas de pé de página e referências bibliográficas devem ser restritas ao mínimo indispensável. As notas de pé de página devem ser apresentadas observando-se a seguinte norma: Para livros: a) autor; b) título da obra (sublinhado); c) número da edição, se não for a primeira; d) local de publicação; e) nome da editora; f) data da publicação; g) número da página. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p. 31. Para artigos: a) autor; b) título do artigo; c) título do periódico (sublinhado); d) local de publicação; e) número do volume; t) número do fascículo; g) página inicial e final; h) mês e ano. ROUANET, Sergio Paulo. Do pós-moderno ao neo-moderno. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n° I, p. 86-97, jan./mar., 1986. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são designados como FIGURAS, numerados no texto, de forma abreviada, entre parênteses ou não, conforme a redação. Exemplo: FIG. 1, (FIG. 2) As ilustrações devem trazer um título ou legenda, abaixo da mesma, datilografado na mesma largura desta. Os autores terão direito a 3 exemplares da revista. Os originais não aprovados não serão devolvidos.


E sta revista foi produzida por In-Fólio, Produção Editorial, Gráfica e Programação Visual LIda, na Rua das Marrecas, 36 - grupos 401 e 407, Rio de Janeiro, no terceiro trimestre de mil novecentos e noventa e seis , para a Associação Brasileira de Literatura Comparada.



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