ITACOATIARA VOL. 1 N. 1

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VOL.1 - N.1 | OUTUBRO - 2011 ISSN 2237-9282

ITACOATI AR A Uma Revista Online de Cultura ARTIGOS

|

ENSAIOS

|

RESENHAS

|

LITERATURA

EDIÇÃO DE LANÇAMENTO 40 ANOS DO MOVIMENTO ARMORIAL DOSSIÊ: Antropologia das Ciências e das Técnicas

UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE



Maria Aparecida Lopes Nogueira | PPGA; NASEB/UFPE

Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim | NASEB/UFPE Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE

Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto Carlos Newton Junior | UFPE Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência de Literatura Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de Nanterre/Paris/França Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE

Mabel G. Guimarães


Maria Aparecida Lopes Nogueira

Por Edgard de Assis Carvalho

Fรกtima Branquinho

Ricardo Roque


Por Guilherme José da Silva e Sá

Carlos José Saldanha Machado

Lilian Krakowski Chazan

Por Maria das Graças Vanderlei da Costa.

Texto de apresentação de Carlos Newton


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | Recife | VOL.1 – N.1 | Outubro - 2011 | P. 4

carta do editor No ano de 2007, no âmbito das comemorações dos 60 anos da UFPE e dos 80 anos de Ariano Suassuna, foi criado, na Universidade Federal de Pernambuco, o

Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros, com a finalidade de congregar pesquisadores com interesse na cultura brasileira, de um modo geral, e na obra suassuniana, em particular.

Após três anos de atividade, o Núcleo lança, agora, a sua revista online,

Itacoatiara, destinada a pesquisas voltadas para a cultura, numa perspectiva interdisciplinar e com periodicidade semestral. A Itacoatiara será um importante meio de divulgar os resultados dos trabalhos e pesquisas vinculados ao Núcleo

assim como de colaboradores externos, desde que tenham seus trabalhos referendados pelo seu conselho editorial.

Aproveitamos o ensejo para agradecer a Mariana Fernandes da Cunha

Loureiro Amorim, Normando Jorge de Albuquerque Melo e Maria das Graças Vanderlei da Costa por comporem a Comissão Editorial da revista. Somos

4

igualmente gratos a Carlos Newton Júnior, Lourival Holanda Barros, Roberto

Mauro Cortez Motta, Edgard de Assis de Carvalho, Luis Assunção, Idelette Muzart

Fonseca dos Santos, Fátima Branquinho, Jesana Batista, Marcelo Burgos, Heloísa

Arcoverde de Morais e Arnaldo Saraiva por aceitarem o convite para compor o nosso Conselho Editorial.

É com imensa satisfação que colocamos a Itacoatiara na rede, na intenção

de que tenha vida longa e agrade a todos os que a ela tenham acesso.

O lançamento da revista coincide com os 40 anos do Movimento

Armorial, lançado oficialmente no Recife, a 18 de outubro de 1970, como uma

bandeira em defesa da cultura brasileira de vertente nacional-popular. É por isso

que, na sessão Literatura, publicamos três poemas de Ariano Suassuna em que o

autor e criador do Movimento se utiliza da palavra armorial, enquanto adjetivo, pelo menos vinte anos antes de 1970, demonstrando, assim, que o caminho em

direção ao Armorial começa a ser traçado a partir da vivência de Suassuna como

acadêmico de Direito, na Faculdade de Direito do Recife, com o grupo do Teatro do Estudante de Pernambuco.

No mais, também agradecemos aos colaboradores desse primeiro número

e desejamos uma boa leitura a todos e deixar, aqui, o nosso convite para que participem conosco da criação do próximo número.

Recife, 5 de outubro de 2011.

Maria Aparecida Lopes Nogueira Editora-chefe


Maria Aparecida Lopes Nogueira

Por Edgard de Assis Carvalho


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Maria Aparecida Lopes Nogueira1 - UFPE “O tempo irreversível não anula este desejo de eternidade que nasce da contemplação das estrelas” (Michel Cassé)

Mais de 100 anos de Claude Lévi-Strauss. Mais de 20 livros; mais de 300 artigos. Mais de 600 comentadores e críticos da obra, oriundos de múltiplos pertencimentos como da política, da literatura, da antropologia, da arte, da psicanálise, da história, da filosofia, delineiam um autor que ultrapassa fronteiras disciplinares e forja o diálogo entre ciência e arte, ciência e mito, cultura científica e cultura das humanidades. Ao posicionar-se criticamente contra as explicações difusionistas, funcionalistas e evolucionistas, Lévi-Strauss propõe uma Antropologia contornos de uma construção universalista da cultura, capaz de amenizar as

interpretações

danosas

que,

ainda,

infelizmente,

teimam

em

considerar o Outro como mero objeto. Ao longo de sua trajetória o autor, enquanto observador das constelações humanas, tem religado – de forma emblemática – vida e ideias. Desde o início da carreira, quando a obstinação por uma Antropologia de caráter formal, nos moldes das ciências duras, era bastante clara, sua pretensão é conferir inteligibilidade à palavra Homem. O título deste trabalho é inspirado nas semelhanças explicitadas, por Lévi-Strauss, entre o ofício do etnólogo e o do astrônomo, convertem 1

Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Coordenadora do Núcleo

Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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o primeiro em observador das constelações humanas. Essas reflexões do autor foram elaboradas no início da década de 50; confirmam o imbricamento entre o tempo linear-histórico e tempo rotativo-mítico, de acordo com as formulações do astrofísico Michel Cassé, integrante da Comissão para a Energia Atômica e Investigador do Instituto de Astrofísica de Paris. Mais do que isso: reiteram a atualidade do ideário lévi-straussiano. Em 2009 celebra-se o Ano Internacional da Astronomia. Também delineiam seu movimento em direção à sutura com a Astrologia, a partir das descobertas mais recentes que retomam a religação antropo-cosmos; religação já presente na seguinte afirmação de Lévi-Strauss: “o homem faz parte da vida, a vida da natureza, e a natureza do cosmo”. (1998:70). Nessa formulação, sua idéia de universal se amplia; extrapola as bordas do dizível e alcança o cosmo. É nessa magnitude que os saberes das alteridades são expressões de um universal, simultaneamente, em nós e fora de nós. Todos submetidos à finitude. Que sentidos subjazem à pulsação humana de eternização? Do mesmo modo, também as estrelas lutam contra a morte, a entropia. Há uma tendência para esquecer a irreversibilidade do tempo e desenvolver tentativas e/ou estratégias constantes para abrandar, corrigir, subverter, transgredir as grandes leis que regem o universo. Tal pulsação traz consigo a importância da sabedoria perene dos itinerários mítico-imaginários; “caixas de promessas irreais”, no dizer de Lévi-Strauss, recheadas de esperança. No livro As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado em 1949, o autor - impregnado de esperança - reconhece na Linguística um campo de pertinência fecundo para a análise dos sistemas simbólicos. Por isso, a 1a. fase da obra é denominada de Pregnância Linguística. É ela que lhe possibilita entender a sociedade como linguagem. Há, portanto, uma semelhança entre os atos linguísticos e os fatos sociais, que ressoa na demarcação do sistema das diferenças e das oposições binárias que escapam da percepção de quaisquer agentes sociais. É por meio da Regra da Proibição do Incesto, passagem lógica – e não histórica – da natureza para a cultura, que Lévi-Strauss opera a sutura dos elementos formadores desse par de opostos. Tal sutura é compreendida em termos de um equilíbrio instável, pois a passagem não é definitiva, e permite o diálogo entre o universal e o particular, o ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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inconsciente e o consciente, o caos e a ordem, a objetividade e a subjetividade. A noção de Estrutura, pedra angular de sua proposta, extrapola a rede empírica das relações sociais, mas diz respeito a modelos construídos de acordo com elas. Ou seja, há algo inconsciente, recalcado; nem tudo é cintilação e objetividade. Existem mistérios, sombras, ocultidades situadas nas profundezas da alma humana que impedem o conhecimento total de como os homens percebem e vivem o mundo dos acontecimentos. Ao dialogar com a Psicanálise, a Geologia e o Marxismo, LéviStrauss

também

circunscreve

seu

trabalho,

juntamente

com

os

pensadores dessas áreas do saber, para além do visível. Afinal, de acordo com as premissas de Gastón Bachelard, não devemos nos deixar seduzir pelo que nos revelam os primeiros dados. Sem negar a importância do pensamento marxista na formulação do seu ideário e o papel fundamental das infra-estruturas, Lévi-Strauss discorda do messianismo e prometeísmo subjacentes na proposta, alegando que a luta visível travada pelos homens reais não trouxe apenas progressos, ela também engendrou tristes regressões culturais, como a intolerância que estamos testemunhando na contemporaneidade. Por isso, nem mesmo os processos históricos conseguem dar conta do grande empreendimento que é conhecer o Homem. Em 1962, com a publicação do livro O Pensamento Selvagem, escrito sob forte influência da Filosofia, o autor inicia outra fase da obra, denominada de Pensamento Unitário. Seu interesse primordial se volta para as operações do pensamento. Partindo do pressuposto de que razão e sensibilidade se retroalimentam, critica de forma veemente a utilização da dicotomia primitivo e civilizado. Para ele, todo e qualquer sapiens sapiens pensa de forma semelhante, com o mesmo aparato neuronal e as mesmas possibilidades cognitivas, apesar dos avatares da história. O pensamento selvagem não diz respeito ao pensamento do selvagem. Trata-se de um modo específico que todos os humanos possuem para operar o pensamento a partir de uma visão mais totalizadora, usando a intuição e os processos de bricolagem. O outro modo de pensar – o pensamento domesticado requer, sobretudo, a fragmentação e o exercício da razão. Portanto, os dois modos co-existem e dizem respeito à condição humana. ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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Como bem alerta Zigmund Bauman, a cultura não se reduz a fábricas de ordens; ela expressa uma “luta incessante entre ordem e caos (...). Está diariamente envolvida com o que Lévi-Strauss deu o nome memorável de bricolagem” (1998:174). Essa formulação constitui uma ruptura epistemológica de grande repercussão em todos os campos do conhecimento científico, pois implode de uma vez por todas com as fronteiras existentes entre primitivo e civilizado, razão e desrazão, lógica e ilógica, ao mesmo tempo que propõe novos sentidos aos desatinos humanos e resiste ferozmente ao olhar hierarquizado do Mesmo em relação ao Outro. Uma maior aproximação com esse Outro, para usar uma feliz expressão de Bachelard, pode ocorrer se trabalharmos, simultaneamente, com a lógica do sensível e a lógica do inteligível. O papel da cultura é forjar novos rearranjos e reorganizações; ou seja, criar novos signos e significações a partir de resíduos acabados da cultura. A bricolagem expressa, portanto, a maior especificidade do homo

sapiens sapiens: sua infinita capacidade de criar e recriar. Com a publicação dos 4 volumes das Mitológicas, a partir de 1971, tem início a 3a. fase da obra de Lévi-Strauss, denominada de

Pensamento Aberto. Regido por uma ciência reencantada, sua escrita rigorosa e sofisticada ganha leveza, oscila entre a metáfora e a metonímia, trata de temas diversos, seduzido pela melodia mítica presente – sobretudo – no campo das artes. As Mitológicas são constituídas de mais de 800 narrativas míticas. Podem ser lidas de forma não-sequencial; afinal os mitos são espécies de máquinas de supressão do tempo linear; linguagens da imaginação que religam natureza e cultura, linearidade e ciclicidade, visível e invisível. É no território circular dos mitos que podemos encontrar respostas para algumas das intermináveis indagações sobre a existência humana. Trata-se, de acordo com Lévi-Strauss, de um esboço confuso do Teorema de Gödel, aquele que denuncia a existência do paradoxo no âmago da lógica. No âmbito das narrativas míticas todos os seres ganham alma e interagem, as contradições se exacerbam, os impasses são ressaltados; o infortúnio, a dor e o inacabamento forjam a indissociabilidade entre a Vida e a Morte. ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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Por isso os mitos convencem pela repetição; nas palavras de LéviStrauss, “dizem todos a mesma coisa” (1996:406). Recorrem a memórias involuntárias no afã de desvendar enigmas e contradições, que desde sempre têm acompanhado o homem na sua breve passagem pela Terra. Os mitos são operadores cognitivos que nos convidam a experimentar as coisas do mundo: a olhar, escutar, cheirar, sentir, lamber... São melodias, por isso devem ser contados e ouvidos: unem som e imagem.

São, antes de tudo, bons para pensar e constituem

patrimônio universal da cultura. Para Octávio Paz, “os mitos se comunicam por meio dos homens e sem que estes o saibam”. É como se todos nós estivéssemos recontando ad infinitum uma mesma história, ou “narrativa serva”, de acordo com as formulações de Michel Serres, aquela que permite o reconhecimento da integração de todos os humanos, por mais diferentes que sejam, numa mesma e única espécie. Para restabelecer a unidade da e na diversidade, cada recontação adquire

a

marca

do

seu

tempo

e

lugar;

ou

seja,

atualiza-se,

contextualiza-se. Tem como inspiração a abertura para o Outro, por isso requer a refundação do humanismo, dissolvendo o homem na natureza, inserindo-o na teia da vida. Essa contraposição ao antropocentrismo, condição fundamental para a sustentabilidade do planeta, pode subsidiar a criação de políticas que estimulem a colaboração e a tolerância entre os mais diferentes povos; já preconizadas no famoso texto Raça de História, ainda na década de 1950. A obra magistral de Lévi-Strauss nos convida a navegar no “Oceano Fios de Histórias”. Tal Oceano fica próximo do pólo sul da Lua, de acordo com as informações de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, contidas no Dicionário de Lugares Imaginários, e baseadas na obra de Salman Rushdie intitulada Haroun e o Mar de Histórias. Penso que foi lá onde Lévi-Strauss descobriu que o livre curso dos mitos pode ocorrer; para isto, basta removermos - como qualquer outro viajante - a rolha que impede seu fluxo. Até mesmo as narrativas mais antigas podem recuperar seu sabor e fluidez. Sejamos, pois, viajantes; cuidadores da limpidez e do fluxo das águas da Vida. Lévi-Strauss

continua

navegando

nesse

“Oceano

Fios

de

Histórias”, tomado pelas águas instáveis de impossíveis universos contidos nas narrativas míticas. Mesmo reconhecendo as incertezas e os ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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mistérios do devir, segue enfeitiçado pelo canto da sereia que teima em entoar a reconciliação entre o homem e a natureza, a ciência e o mito. Como astrônomo das constelações humanas, Lévi-Strauss torna presente a dimensão da invisibilidade; ao mesmo tempo que reconhece a mútua solidariedade existente entre as sociedades e o cosmos.

Recife, 9 de agosto de 2009. Aniversário de Jarbas Araújo, meu marido. Por isso este trabalho é dedicado a ele.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS BACHELARD, G., Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. BAUMAN, Z., O Mal-Estar da Modernidade. Tradução de Mário Gama e Cláudia Martinelle Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. LÉVI-STRAUSS, C., As Estruturas Elementares do Parentesco. 2ª. ed. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1982. ______, Antropologia Estrutural. 4a. ed., Tradução de Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s./d.. ______, Raça e História In: Antropologia Estrutural Dois. 4ª. ed. Tradução e Coordenação de Maria do Carmo Pandolfo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1993. ______, O Pensamento Selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989. ______, O Cru e o Cozido (Mitológicas). Tradução de Beatriz PerroneMoisés. São Paulo: Brasiliense, 1987. ______, Do Mel às Cinzas (Mitológicas V. 2). Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura e Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ______, A Origem dos Modos à Mesa (Mitológicas V. 3). Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ______, Olhar, Escutar, Ler. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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MANGUEL,

A.

&

GUADALUPI,

G.,

Dicionário

dos

Lugares

Imaginários. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. MORIN, E. & CASSÉ, M., Filhos do Céu: Entre Vazio, Luz e Matéria. Tradução de Ana Paula de Viveiros. Lisboa: Instituto Piaget, 2007. SERRES, M., O Incandescente. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

ARTIGOS | CLAUDE LÉVI-STRAUSS: ASTRÔNOMO DAS CONSTELAÇÕES HUMANAS | MARIA APARECIDA L. NOGUEIRA


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Edgard de Assis Carvalho – PUC SP Professor titular de Antropologia São Paulo, abril 2008.

Costuma-se afirmar que o interesse mais amplo da Antropologia reside no inventário de informações sobre um grande número de modos de vida e pensamentos que coexistem atualmente na superfície planetária. Comumente essa massa de dados é apresentada em linguagens específicas dos próprios universos culturais. Aparentemente objetiva, é ela que garante a neutralidade aparente do sujeito cognoscente diante do objeto pesquisado. Daí decorre a afirmação de que a Antropologia é a ciência da diversidade, das diferenças e alteridades que se espalham no planeta. Trata-se de uma modalidade de discurso que o Ocidente construiu sobre si mesmo a partir dos efeitos transfiguradores da dominação. A história linear das teorizações da disciplina sempre conferiu pesos diferenciados a esses jogos de linguagem estabelecidos entre o eu e o outro. Apesar da acumulação dos dados ser mais descritiva do que explicativa, a Antropologia, enquanto campo disciplinar cifrado do poder acadêmico, não criou novas paradigmatologias capazes de enfrentar os desafios de uma ciência social voltada para a explicação da unidualidade e da unidiversidade do sapiens sapiens demens. Alguns obstáculos impedem a Antropologia de entender a cultura como práxis cognitiva planetária gerada pelos humanos pelo menos há 130 mil anos: 1. A hipótese relativista: espécie de complacência moral gerada pelo Ocidente para definir o outro, o estrangeiro; funda-se no pressuposto de que as verdades locais instituem-se como regimes de verdade. A ótica do sujeito teórico que os produz pode considerá-los ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO


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bons e maus, positivos e negativos, desde que a descrição empírica não transcenda o campo local; 2. A alterização acrítica: decorrência da hipótese relativista, baseia-se no pressuposto de que é impossível criticar o código da diferença. Por isso, instalou-se uma dispersão temática de dimensões incalculáveis, que se explicita por meio de uma oposição dualista entre o outros e o mesmo, quer isso ocorra no sentido espacial ou temporal (não é por mero acaso que a 25a reunião da ABA, associação brasileira de antropologia tem 51 grupos de trabalho) ; 3. A identidade

prometeica: mesmo que pensadores de matizes variados tenham se fixado na ética do descentramento como condição inequívoca de acesso às alteridades, a Antropologia voltou as costas para os ensinamentos da Antropologia implícita presente na filosofia, na literatura, na psicanálise e, com isso, contentou-se em construir painéis empíricos de identidade fundados no caráter prometeico do constraste identitário. Mesmo que se entenda as culturas como textos, ao modo de Clifford Geertz, ou que se adira a uma duvidosa Antropologia que se autodenomina pós-moderna, a noção de identidade contrastiva dualiza o real, reifica o outro, decreta que as culturas são conjuntos autônomos ausentes de historicidade, portadores de linguagens específicas. Diante disso, pode-se considerar que o ponto de partida de todos os relativismos seja expresso na constatação de que, em sua globalidade, as culturas não foram feitas para dialogar, e isso porque uma cultura não fala, e nem falará, a língua da outra. Aquelas que tentam fazê-lo exibem nada mais do que uma representação ideologizada da representação do outro. As possiblidades de superação desses obstáculos podem ser sistematizadas em alguns pontos. 1. O esgotamento do paradigma

dualizador

de

fundo

cartesiano:

encontros

internacionais

transdisciplinares realizados a partir dos anos 90 constatam a existência de uma patologia que coloca sob suspeita a criatividade cultural autônoma. Mesmo que o mundo midiático globalizado comandado pela tecnociência seja responsável pela uniformização de gestos, palavras, atitudes, poderes, a religação dos saberes representa um modo de entendimento dos sistemas vivos, uma antropoética para espécie, na qual as fragmentações inter-ciências não terão mais lugar. A busca de uma civilização

planetária,

mesmo

que

aberta

às

singularidades,

singularizações e especializações, deve preocupar-se em recompor o paradigma perdido, a unidade da cultura, pela implosão da dualidade sujeito/objeto, assim como de quaisquer outras que se possam considerar.

2.

A

atitude

transdisciplinar:

há,

pelo

menos,

tres

ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO


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interpretações do termo: a. um domínio cognitivo que se localiza além das disciplinas; b. uma atitude construída por meio de uma viagem entre as múltiplas áreas do saber. c. uma metamorfose dos refúgios disciplinares em meta pontos de vista sobre a vida, a terra, o homem, o cosmo. Não se trata de um sincretismo entre ciência e tradição, ciência e mito, ciência e arte, mas de uma circulação de saberes convergentes ampliadores de cosmovisões e ideologias. A transdisciplinaridade busca meta pontos de vista a partir dos quais se possa realizar a interação desses amplos domínios dos fazimentos

humanos.

Busca,

igualmente,

construir

espaços

de

pensamento que insiram esses fazimentos em uma base sócio-histórica e dialógica. Simultaneamente diferentes e semelhantes, constituem uma unidade, totalidade instável, não teleológica, que se movimenta num espaço aberto plurilinear e pluricultural. As pesquisas transdisciplinares apoiam-se nas energias oriundas da arte, da poesia, da filosofia, da ciência, da tradição, da espiritualidade, eles mesmos concebidos em sua unidade e diversidade. Essa atitude poderá vir a desembocar em novas liberdades de espírito. Graças a estudos transhistóricos, transculturais e transreligiosos, novos conceitos, teorias e modelos podem possibilitar às ciências do homem abrirem-se à singularidade/pluralidade do mesmo e do outro e à inteireza do ser. 3. A

constituição de uma Antropologia simultaneamente histórica, dialética, dialógica e planetária. Liberta dos axiomas constitutivos da lógica binária clássica, fundada nos princípios de identidade, de não contradição e do terceiro excluído, a recriação do anthropos investe na busca de uma ontologia de base universalista, na religação dos saberes, na recusa do relativismo isolacionista, na construção de uma política de civilização fundada na antropoética, na socioética e na auto-ética. Esta terceira via depende dos pensadores que se incumbirão de pô-la em marcha na vida e nas idéias, na ética e na política, na universidade e fora dela. Para esses novos sujeitos do conhecimento, a Antropologia passa a ser entendida como ciência das simultaneidades bio-sócio-culturais fundada na razão aberta, nômade, polifônica, jamais teleológica. Liberta de qualquer modalidade de nostalgia do absoluto, a pertinência do conhecimento antropológico efetivar-se-á num circuito duplo: o das exigências da democracia política e o das incertezas cognitivas que cercam os fundamentos dos saberes planetários quaisquer que sejam eles.

ARTIGOS - ANTROPOLOGIA, CIÊNCIA ABERTA, UNIVERSAL, COMPLEXA | EDGARD DE ASSIS CARVALHO


DOSSIÊ:

:

Antropologia das Ciências e das Técnicas

Potes de barro cheios de natureza e conhecimento: notas sobre a possibilidade da etnografia de objetos Fátima Branquinho

Ossos, ‘histórias’ e colecções coloniais Ricardo Roque

Estar ciente e fazer ciência: sobre encontros e transformações Por Guilherme José da Silva e Sá

Uma leitura sócio-antropológica de um objeto complexo: a gestão dos recursos hídricos Carlos José Saldanha Machado

“Antes, as imagens eram horríveis!” Construindo a estabilização da tecnologia de ultra-som como produtora de conhecimento confiável na gravidez Lilian Krakowski Chazan


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P :

Fátima Branquinho1 Procientista - UERJ

Durante os últimos trinta anos, foram desenvolvidos estudos iluminados pela teoria do ator-rede sobre objetos e projetos técnicos diversos. Essa teoria e método de trabalho é base para análises sobre a produção do conhecimento empreendida pela antropologia das ciências e das técnicas. Os estudos realizados reúnem-se a uma gama de outros que vêm em resposta à postura adotada pelas ciências humanas e sociais contrária a

leituras

simplificadas

da

realidade,

levantando

a

bandeira

da

complexidade. Mais recentemente, os estudos sociais da ciência – como também pode ser reconhecida tal antropologia – têm examinado práticas de conhecimento buscando considerar que o contraste entre simplicidade e complexidade pode não ser uma simples dicotomia (Law & Mol, 2002), reclamando por mais atenção no uso da referida teoria. Em que pese o questionamento de Law e Mol, vindo de dentro dos estudos sociais da ciência, a teoria do ator-rede vem fundamentando

1

Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Meio

Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO


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estudos realizados por pesquisadores da América latina2 e restante do mundo. Esses estudos têm como objetivo geral analisar processos onde conhecimento esteja sendo construído considerando a construção simultânea da natureza e da sociedade. Tal ponto de vista baseia-se, sobretudo na noção segundo a qual a construção do conhecimento não responde a um modelo linear nem unidirecional e que a circulação e a própria construção do conhecimento realizam-se em diversos espaços e com atores não-científicos e científicos, a exemplo do que ocorre com a cerâmica. A etnografia3 do objeto cerâmica que vem sendo realizada pretende confirmar a hipótese segundo a qual argumentos técnicos estão compondo o tecido social: controvérsias sobre o entendimento a respeito de certo objeto atraem atores diferentes e constroem, igualmente, espaços

diferentes,

criando

zonas

que

claramente

favorecem

ao

desenvolvimento de um campo disciplinar, produtor de conhecimento científico e técnico. A cerâmica e a análise do campo (inter)disciplinar que se dedica ao

seu

estudo,

construindo

argumentos

técnicos

revelam

como

pesquisadores do campo da arte, artistas plásticos, designers, técnicos, economistas, historiadores, arqueólogos constróem a sociedade. Fazer cerâmica é uma forma de memorizar e transmitir conhecimentos sobre uma sociedade, pois as peças “falam” aos olhos sobre conceitos, ensinamentos, visão de mundo e conhecimentos. Os estudos, debates, seminários sobre ela são excelente ferramenta para entender a sociedade porque os processos que concebem técnicas e conhecimento científico deságuam num oceano de modos de vida e trabalho,

traduzindo-se

em

aspectos

particulares

sobre

como

a

sociedade vive e se organiza. A cerâmica pode, assim, falar da sociedade

2

A produção intelectual desse campo de conhecimento tem crescido. No último encontro

anual da Society for Social Studies of Science (4S), realizado em Montreal em outubro de 2007, a qualidade dos trabalhos justificou a organização da sessão 5.9 denominada Latin American Science and Ways of Knowing, da qual participei com auxílio da FAPERJ, apresentando o trabalho Branquinho, F. T. B. About inlanders fiber over the sociotechnical

network of Açu's barrage: a history told by flooded rupestrian pictures . In: Annual Meeting Society for Social Studies of Science, 2007, Montreal. Ways of Knowing. Montreal: Society for Social Studies of Science, 2007. v. 1. p. 1-22. 3

A pesquisa iniciada em janeiro de 2008 recebeu auxílio APQ1/FAPERJ e vem sendo

desenvolvida com uma equipe de bolsistas, alunos da Faculdade de Educação da Uerj, que recebem bolsa de auxílio à graduação FAPERJ. ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO


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brasileira, pois toda técnica espelha, em um contexto particular, a complexa organização social. A etapa de campo que vem sendo realizada no âmbito da pesquisa mostra que os ceramistas entrevistados até agora dominam todas as etapas da produção de suas peças até a comercialização, mesmo que o barro venha de outra região. Eles costumam dizer que a argila não pode ser nem “forte” nem “fraca”: “se é forte demais misturo areia fina, se é fraca, coloco pó de caco de telha, cinza de certas plantas...”. Sobre isso Valladares (1978:30) diz: A ciência do ceramista não está apenas no adestramento das mãos para a criação de peças diversificadas. Está também no conhecimento do barro, na identificação dos depósitos, na escolha e coleta das melhores camadas, na preparação da massa, na lenha que deve ser usada para a queima, na colocação das peças no forno, maiores e mais pesadas por baixo, menores e mais leves por cima. Tudo é conhecimento adquirido “dos antepassados”.

Sobre essa “ciência do ceramista” a qual se refere Valladares existe significativa produção intelectual assinada por professores – mestres e doutores – dos Institutos de Arte de diversas IES. Tal produção intelectual, apenas em parte identificada até agora, indica a amplitude do material empírico que contribuirá para a construção do objeto de análise dessa pesquisa: o campo (inter)disciplinar da arte, em especial da arte em cerâmica e a sociedade e natureza a ele associadas. No processo de fazer cerâmica, da pigmentação do barro ao forno, do brilho dado a cada peça à pintura e apliques decorativos, está presente a concepção de natureza do ceramista e a própria natureza na forma de raízes, seixos rolados, sementes, água, cabaças, fragmentos de galhos de vegetação local temperado por elementos da vida cotidiana, hábitos, sentimentos, amores, saudade assim como, modos de vida, trabalho e tratamentos de saúde. Se eleita como peça de arte, a cerâmica sai do anonimato e transforma-se em objeto de estudo, revelando igualmente concepções de natureza e sociedade de pesquisadores. Se ela pode ganhar estatuto de “arte” e/ou de objeto de estudo, pode ser parte de uma controvérsia, instigando a formulação de perguntas análogas a de Latour (1984) sobre os micróbios e Pasteur: onde estavam os grupos de retirantes antes de Vitalino? Ou ainda: onde estavam os currais de gado ou as casas-defarinha, antes de Cândido? Parece-me oportuno questionar se, tal como ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO


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outros campos disciplinares da ciência, as artes importem - além de suas fronteiras disciplinares - critérios para designar/definir seus “fatos científicos”. Em outras palavras, tal como diversos campos disciplinares da ciência, a arte em cerâmica se constitui como campo disciplinar independente do diálogo com outras disciplinas ou com sistema de conhecimento próprio ao popular? Alguns ceramistas entrevistados afirmam que o trabalho que fazem “não é arte”. Essa questão já foi apontada por Souza (2002), na pesquisa antropológica realizada em Icoaraci

(PA)

onde

buscou

analisar

as

auto-identificações

sobre

identidades locais - artesão, artesão-artista e artesão-copista - e as que surgiram no processo de mudança ocorrido na organização do saberfazer nas olarias de cerâmica, em meados da década de 60. Uma outra etnografia, essa realizada no Rio de Janeiro, mais especificamente na Escola de Artes Visuais do Jardim Botânico, acerca da aquisição das disposições que transformam seres comuns em possíveis artistas foi realizada por Dabul (2001). Desse modo considero pertinente questionar como dialogam os conceitos, fatos próprios ao campo de conhecimento que estuda a cerâmica e os valores, o contexto social? O modo como tal diálogo se processa não é evidente e não está descrito. A “ciência” a qual Valladares se refere exemplifica o objeto adequado à pesquisa proposta aqui. Ela não distingue ceramistas que estão na academia dos que estão fora dela implicando a descrição dessa rede sociotécnica, descrição que amplia a compreensão sobre a realidade social em que vivemos. Uma

consulta

ao

site

www.ceramica.com.br

mostra

uma

reportagem sobre mulheres cujo trabalho realizado com barro em Rio Real/BA representa claramente a expressão técnica e artística que absorveu a fertilidade criadora da cerâmica indígena. A técnica de produção, todo o conhecimento, valores e costumes associados ao fazer, têm sido transmitidos de geração para geração. A tradição da arte do barro preserva ainda a própria região, uma vez que esse grupo de mulheres desempenha importante papel nos cuidados com o mangue de onde tiram matéria prima para o trabalho. E no Estado do Rio de Janeiro? O trabalho dos ceramistas é realizado em suas próprias casas? Contam com a ajuda da família? Há um galpão comunitário como ocorre em alguns locais produtores de cerâmica? Existe região mais concentrada de oficinas do que outras? Como os ceramistas explicam forma, desenho e cores das peças que produzem? O que determina a produção de cerâmica ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO


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utilitária ou decorativa do ponto de vista dos ceramistas? Como essa distinção se constitui para eles? Como é feita a modelagem das peças? Por quem é feita? Quais os instrumentos/ ferramentas utilizados? Quem os fabrica e com que material? Quais são as etapas de produção da cerâmica? As etapas da produção estão sujeitas a alguma forma de sazonalidade? Como essas perguntas aparecem respondidas nos artigos científicos de pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema? Como a bibliografia existente está contribuindo não apenas para a constituição do campo da arte como para a construção da sociedade? Até que ponto o reconhecimento do grande público pode ser considerado como elemento do sistema de conhecimento que pretendo investigar? O que motiva a atribuição de patrimônio imaterial a alguma forma de cerâmica, de processo de fazer cerâmica e não a outras? Essas e outras questões podem ter sido respondidas para diferentes regiões brasileiras, acrescidas, muitas vezes, de explicações sobre a linha de tradição a qual pertence cada cerâmica identificada. Tais questões podem servir de modelo para novas investigações à luz da teoria do ator-rede. Apesar de haver arte em cerâmica fluminense não sabemos o que ela conta sobre a relação com a natureza dessa região e sobre o conhecimento que ela vem reunindo por séculos. Tanto a natureza fluminense quanto o conhecimento construído sobre ela no processo de fazer cerâmica constituem a própria sociedade, constituem nós mesmos e falam sobre como podemos valorizar mais essa mesma natureza, conhecimento, tradições. Em acordo com Ingold (1996), defendo a pertinência de incluir o mundo natural e físico na construção do mundo social, já que ele assume, tal como os pesquisadores dos estudos sociais da ciência, que o mundo natural molda o mundo humano tanto quanto é moldado por ele, contrariando visões positivistas nas quais princípios, leis e materialidade são exteriores e independentes do social e do todo do conhecimento (Descola, 2002). De acordo com a teoria do ator-rede o tempo é um híbrido de tempos e o espaço, igualmente o é. Sendo assim, porque não admitir que o que é tradição no fazer cerâmica no cotidiano continua vivo, se renovando ao interagir com outras tradições? Por que não considerar que o espaço em que antepassados trabalhavam se prolonga até as oficinas de ceramistas atuais no Rio de Janeiro – do Complexo da Maré ao Jardim Botânico –, como também em Cunha, Itaboraí, Búzios ou Friburgo, só para citar alguns dos municípios já visitados? ENSAIOS - POTES DE BARRO CHEIOS DE NATUREZA E CONHECIMENTO | FÁTIMA BRANQUINHO


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A cerâmica conta a história da culinária, assim como fala da religiosidade e conta outras histórias das quais objetos de barro vêm sendo atores coadjuvantes. Entre uma descrição da cerâmica fluminense e a descrição de outras histórias, como por exemplo, a das técnicas, do comércio, da escravidão, do vestuário, das festas, da religião, da economia antiga, etc., é possível que sejam percebidas algumas relações que estão não apenas, mas também, no conteúdo imagético do suporte cerâmico. Contudo, essas relações se interpenetram, e é a teoria do atorrede que permite abordar com segurança o problema que interessa a etnografia da cerâmica fluminense: o

das interferências entre a

elaboração das criações culturais/intelectuais e a sociedade como um todo. A etnografia do objeto cerâmica trata, portanto, de descrever as controvérsias científicas percebidas nos artigos que têm cerâmica como objeto de estudo, e analisar a relação desse resultado com o significado atribuído à cerâmica, ao processo de sua manufatura (e a si mesmos) pelos

próprios

ceramistas fluminenses que pertencem a

círculos

acadêmicos ou não, isto é, independente do fato de registrarem técnicas, conceitos, valores, tradição por meio da escrita ou da cerâmica propriamente dita. Em síntese, na etnografia do objeto cerâmica, trata-se de descrever a rede sociotécnica por ela esculpida. Afinal, é pouco evidente que não exista “ciência do ceramista”, que este sistema de conhecimento seja homogêneo, não mereça ser investigado ou, ainda, que esteja sendo construído de modo linear, apartado do mundo natural, da sociedade ou apenas por atores acadêmicos e especialistas em arte.

Referências Bibliográficas DABUL, L. (2001). Um percurso da pintura: a produção de identidades de

artista, Niterói, EDUF. DESCOLA, P. (2002). La antropologia e la cuestión de la naturaleza. In:

Repensando la Naturaleza, Bogotá, Universidad Nacional de Colombia/Sede Leticia, Instituto Amazónico de Investigaciones (IMANI), Instituto Colombiano de Antropología e Historia (ICANH), Conciencias. INGOLD, T. (1996). The optimal Forager and Economic Man. In: Descola, P.;Palsson, G. (Eds.). Nature and society: anthropological perspectives, Londres, Routledge.

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LATOUR, B. (1984). Les Microbes, guerre et paix, suivi de Irredutions, Paris, A.-M. Métailié. LAW, J. & MOL, A. (2002). Complexities, Durham and London, Duke University Press. SOUZA, Marzane Pinto de (2002). Mãos de Arte e o Saber-Fazer oos

Artesãos de Itacoareci: um estudo antropológico sobre socialidade, identidades e identificações locais, 1v. 184p. Mestrado, Universidade Federal Fluminense. VALLADARES, C. do P. (1978) Introdução In: Fundação Nacional da Arte,

Artesanato brasileiro, Rio de Janeiro, edição Funarte.

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Ricardo Roque Universidade dos Açores

Introdução Durante os fins do século XIX e o começo do século XX, período áureo da expansão imperial europeia e da institucionalização da antropologia

científica,

milhares

de

crânios

humanos

foram

coleccionados pelos europeus nos antigos territórios coloniais de África, América, Ásia e Oceânia. Muitos destes materiais, então recolhidos em museus

com

vista

a

estudos

antropológicos,

continuam

ainda

depositados nessas instituições, um pouco por todo o mundo. Alguns anos atrás, iniciei um projecto de pesquisa com o propósito de traçar a circulação destas colecções e contar a sua história colonial.1 Este projecto adquiria, à partida, dupla pertinência: por um lado, articulava-se com o debate público em curso sobre o repatriamento das ossadas indígenas na posse dos museus das velhas nações imperiais; e, por outro, dialogava de perto com a emergente literatura em estudos sobre a ultura material e

Diferentes versões deste texto foram apresentadas em seminários no Instituto Universitário Europeu

(Florença), ISEG (Lisboa) e Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge (Reino Unido), em 2004. Agradeço a Christopher Bayly, Tiago Moreira, Vololona Rabeharisoa, Alexis Rappas e Kim Wagner os valiosos comentários a versões iniciais do artigo. Esta pesquisa foi possível graças a uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Portugal (BD/9048/2002) e ao apoio de Smuts Memorial Fund e Darwin College, Universidade de Cambridge. Agradeço a Ron Vanderwal, Sandra Winchester e Frank Job (Museu Victoria, Melbourne) o apoio prestado na pesquisa em Austrália. 1

Este projecto inseriu-se inicialmente na minha pesquisa de doutoramento (iniciada em 2002) sobre

colonialismo e colecções antropológicas em Timor Leste e Papua Nova Guiné.

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estudos sobre a ciência sobre biografias de artefactos e de objectos científicos.2 Enquanto investigava para este projecto deparei-me com um facto algo inesperado. Nos velhos arquivos que consultava nos museus, já existiam outras „histórias‟ escritas sobre a história que eu pretendia escrever. Durante as minhas visitas de campo aos museus apercebi-me que muitos dos artefactos etnográficos e dos restos humanos aí depositados se encontravam associados a um complexo de narrações e indexações históricas que precediam a minha chegada ao terreno – um complexo que os curadores tratavam pelo nome de „histórias‟ dos objectos. Este género de conhecimento sugeria a existência de uma forma de historiografia das colecções praticada por antropólogos, curadores de museu, e outros colaboradores no passado; e cujos produtos continuavam no presente a ser preservados, revistos e actualizados pelos actuais curadores. Este facto era inesperado porque na literatura de história da antropologia e das colecções encontrei sugestões insistentes de que, na origem colonial das colecções e na cultura museológica oitocentista, as colecções antropológicas (quer se tratassem de artefactos materiais ou de ossadas humanas) existiam destituídas de história. Caracterizava-as um estado de historicidade ausente, destruída ou ocultada, pelo qual eram responsáveis os antigos antropólogos do museu e os coleccionadores coloniais.3 Contudo, o meu contacto com a historicidade dos objectos presente nos museus parecia contradizer estas perspectivas. Em lugar de me apontar para a ausência de história, sugeria-me que as práticas de coleccionar coisas, desde o terreno ao museu, eram correlativas de práticas de criação de „histórias‟ para as coisas em colecções – inclusive durante o período colonial em que foram obtidas. Com efeito, muitas das „histórias‟ que habitam hoje os arquivos dos museus possuem uma datação colonial. Foram feitas por agentes que, durante o século XIX e inícios do século XX, estiveram envolvidos no processo

original

de

recolha

das

colecções

no

terreno

e

seu

armazenamento em instituições científicas.

2

Na história e sociologia da ciência, veja-se em especial: Daston, 2000a. Na antropologia e nos

estudos da cultura material as referências básicas são Appadurai, 1986; Kopytoff, 1986; Thomas, 1991. 3

Os recentes estudos de história da antropologia, museus e colecções etnográficas tendem a assumir

que, no museu, a historicidade das colecções existe omissa ou oculta desde o momento colonial da sua obtenção e só agora, em tempos „pós-coloniais‟, os investigadores começaram a escrevê-la, „descobrindo‟ o valor de devolver às coisas o seu passado. Para um ensaio crítico desta literatura e um esboço de conceitos alternativos cf. Roque, 2006. ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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Este artigo explora o encontro com estas „histórias‟. Baseandome em trabalho de campo em museus de Reino Unido e Austrália, procuro dar visibilidade às histórias coloniais das colecções que proliferam e habitam os espaços do museu, considerando-as como narrações válidas e consequentes, e não como narrativas obsoletas que apenas interessa contrariar ou denunciar como incorrectas. No que consistem; como são feitas; o que provocam; que desafios colocam e que género de história das colecções é possível contar a partir delas. Partindo destas

perplexidades

exploro

a

historicidade

das

colecções

antropológicas no período colonial enquanto propriedade emergente dos objectos, desafiando a atenção menor que na produção especializada tem recaído sobre este domínio de conhecimento historiográfico das coisas.4 Decerto, sendo as „colecções‟ em questão compostas por crânios humanos existem especificidades culturais que devem ser tidas em consideração. Nas tradições da cultura Ocidental, por exemplo, o crânio está rodeado de uma simbologia liminal, evocando uma perigosa zona de fronteira com a morte; permanece ainda fortemente associado à definição do eu, da alma e da pessoa.5 Para mais, nos museus, os restos humanos pertencentes a populações nativas dos antigos territórios coloniais encontram-se hoje rodeados de especiais precauções éticas e políticas, devido às controvérsias sobre o seu repatriamento. Todavia, salvo se necessário, não acentuarei aqui estas especificidades. Partirei da hipótese de que a análise deste tipo de colecções permite extrair algumas conclusões mais abrangentes acerca do problema da historicidade colonial dos objectos em colecções científicas. O argumento aqui esboçado é o seguinte: a constituição de restos humanos como colecções antropológicas implica um trabalho colectivo orientado para garantir a associação entre coisas materiais e contextos históricos

singulares.

Neste

sentido,

os

antropólogos

e

os

coleccionadores não orientam, nem orientaram, as suas actividades para a remoção de historicidade aos objectos, destruindo ou apagando os vestígios do passado das colecções. Pelo contrário: empenham-se em construir memórias singulares, criando narrativas e outras indexações retrospectivas que adicionam historicidade às colecções, deste modo, por exemplo, dotando os objectos de passado colonial. A esse conjunto de práticas colectivas dirigido para a ligação de „histórias‟ a coisas chamarei

4

Para textos que chamam a atenção para a historicidade emergente dos objectos ver Daston, 2000b;

Latour, 2000; Rheinberger, 2000. 5

Sobra a simbologia dos crânios humanos na tradição Ocidental, veja-se por exemplo: Henschen,

1966. ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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trabalho historiográfico. Este tipo de trabalho concerne a produção de historicidade e memória individualizadas para objectos ou conjuntos de objectos em museus, através, por exemplo, da elaboração de novas, ou da refutação de velhas narrativas sobre as circunstâncias coloniais de colecção. A noção de trabalho historiográfico exprime a preocupação em captar a emergência da historicidade das coisas na prática. O conceito inspira-se no conceito de trabalho biográfico proposto pelo sociólogo da medicina, Anselm Strauss, nos seus estudos etnográficos sobre doenças crónicas e trabalho médico em hospitais (Strauss et al, 1997). Para Strauss, a trajectória da(s) doença(s) de um paciente num hospital é construída mediante vários tipos de trabalho. Entre eles, Strauss chamou a atenção para o “trabalho biográfico”, isto é, as práticas de inquirição, registo, análise e transmissão de conhecimento acerca dos sintomas do paciente, do seu passado médico, estilo de vida, ou história social. Este trabalho pode ser executado por diferentes actores em diferentes momentos

e

lugares;

ignorá-lo

ou

fazê-lo

mal

feito

acarreta

consequências maiores para a trajectória da doença. Sem ele, por exemplo, os médicos podem não ser capazes de produzir um diagnóstico rigoroso, as tarefas das enfermeiras podem deparar-se com a resistência dos pacientes, etc. (Strauss et al, 1997: 137-38). Se considerarmos, por analogia, que as colecções antropológicas, nos seus percursos para o e no museu podem possuir trajectórias do mesmo género, então podemos considerar também que a criação de trajectórias de colecções científicas implica a criação de um conhecimento historiográfico individualizado para cada coisa coleccionada. Por conseguinte, uma „etnografia de objectos‟ – em particular de objectos enquadrados em museus e colecções – deve implicar uma etnografia das histórias que sobre eles se contam e do trabalho historiográfico investido na produção das trajectórias dos objectos. O texto que se segue procura dar conteúdo à noção de trabalho historiográfico no contexto da minha pesquisa sobre colecções de restos humanos. Nos museus dos dias de hoje, este trabalho adquire visibilidade na forma de pequenas histórias individuais, curtos registos, notas, mini biografias de coisas, que permanecem arquivadas em gavetas e prateleiras, nos bastidores da instituição. No contacto com estes registos, a possibilidade de reconstituirmos o traçado da historicidade emergente de restos humanos adquire consistência. Com efeito, é no museu que a investigação das trajectórias das colecções começa e é aí que o pesquisador se apercebe que produzir histórias singulares para as ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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coisas em colecções constitui e constituiu uma actividade colectiva corrente, cientificamente significativa, politicamente consequente e até comercialmente valorizada. Tomemos, então, o caminho do museu e vejamos o que podemos descobrir a partir de um simples registo.

Crânios e „histórias‟ no museu “MoV X 12917

Restos humanos, não modificados

Data 10-08-1904 Fontes: Foster, F.O. Armazém: Gab. 713/4 Procedência: Papua Nova Guiné, Província do Golfo, Rio Turama Grupo: Cultural: Omaidai Artesão: Medidas: Descrição: Crânio de um adulto masculino. (Registo) Comentários: Num cartão anexo o seguinte: Crânio de um homem da Tribo Omaidai, Rio Turana [sic]. Este homem era um notável na sua tribo e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos. Foi salvo da destruição de todos os crânios, que está a ser levada a cabo por Grupos do Governo, por ter ficado escondido dentro do vestido de uma mulher e pendurado numa árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador alguns dias mais tarde. A sugestão é que o crânio fazia parte de um cabide de crânios (skull rack) destruído por „grupos do governo‟. Existe alguma dúvida sobre a „notabilidade‟ do homem, uma vez que estes cabides de crânios albergam os crânios de inimigos tomados na guerra. RLV Índice craniano 76.3, idade estimada 30-40, Masculino.”6

O excerto acima representa o registo individual de um crânio humano da Papua Nova Guiné nas colecções do Museu Victoria, em Melbourne, Austrália, actualmente mantido em suporte informático pelo 6

Registo informático das colecções de restos humanos, Museu Victoria, Melbourne. RLV designa as

iniciais de Ron Vanderwal, o actual Curador Sénior (Culturas Indígenas, Oceânia) do Museu Victoria. Registo informático acedido em Novembro de 2003 por cortesia de Ron Vanderwal. Ao longo deste trabalho traduzi para português as citações originalmente em língua inglesa. ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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Curador Sénior de Antropologia, Dr. Ron Vanderwal. Este é um dos muitos crânios de populações não europeias na posse do museu, e um dos muitos milhares que continuam na posse de outros museus e instituições. À semelhança de outros objectos, cada um destes crânios é esperado existir na forma de um campo de registo individual que é aplicado sistematicamente ao conjunto da colecção. Isto acontece porque a existência de „colecções científicas‟ no museu baseia-se na paciente preservação de registos individuais acerca de todos e cada um dos corpos físicos considerados merecedores de um lugar nas colecções. Em termos tecnológicos,

poder-se-á

comparar

estas

anotações

museológicas

orientadas para o registo de objectos, aos “registos clínicos” de pacientes num hospital, e, em geral, às múltiplas técnicas de registo biográfico desenvolvidas pelas instituições disciplinares na modernidade para controlar e ordenar as vidas dos seus sujeitos (cf. Foucault, 1975). Estes registos podem aparecer em formatos mais ou menos estandardizados, em velhos rótulos de papel e registos individuais em cartão; em manuscrito, publicados em catálogo, ou já em suporte informático, manuseáveis por computador numa base de dados. Nestes locais, os crânios aparecem invariavelmente numerados, ou de algum modo codificados. O tipo de entradas e os seus conteúdos podem variar de um sistema de registo para o outro, mas em geral a informação distribui-se por um espectro típico de categorias. Assim, é comum encontrar pormenores e narrativas sobre as circunstâncias de aquisição, doação, ou compra da colecção; o nome de um doador, vendedor, ou coleccionador; uma origem geográfica, ou „procedência‟; um código numérico indexando o item a uma prateleira, uma caixa, uma zona do armazém onde o objecto

está

guardado;

uma

descrição

morfológica;

medições

craniométricas; usos ou significados culturais na sociedade de origem; nome, sexo, idade, tribo do sujeito falecido; miscelâneas de comentários e observações; e até referências eruditas a bibliografia associada ou a documentos de arquivo relevantes. Nas minhas visitas aos museus, os curadores e técnicos do museu referiam-se com frequência ao conjunto formado por entradas de catálogo, correspondência, registos e cartões, rótulos e etiquetas, como a “documentação” ou a “história” de um objecto. Registos individuais como esse, do crânio da Nova Guiné, são normalmente o ponto de partida das minhas visitas. São a primeira coisa que os curadores costumam fornecer-me. Por vezes são também o ponto de chegada, tudo o que o podem dizer-me acerca de um objecto. Na verdade, estes registos raramente exibem para cada objecto informação ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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acerca de todas as entradas disponíveis. Os espaços vazios são frequentes. Os profissionais dos museus que contactei queixavam-se amiúde

do

facto,

pedindo

desculpa

pela

problemática

“falta

de

informação” existente sobre muitos dos espécimes – como se devessem ter mais para me contar.7 Este interesse local e contemporâneo pelas „histórias‟

tinha

razões

concretas.

Para

os

actuais

curadores

e

antropólogos existem boas razões científicas e éticas para valorizar a informação histórica associada às colecções; consequentemente, esperam que „um investigador‟ que lhes bata à porta partilhe dessas expectativas. O interesse pelas „histórias‟ das colecções articula-se com o problema da “procedência” (provenance), cujas implicações actuais são tanto científicas quanto éticas e políticas. Para os antropólogos biológicos que trabalham com ossadas humanas, a existência de bons registos individuais, de boas „histórias‟, é fundamental para praticar análises científicas válidas sobre restos humanos. Isso mesmo me afirmou uma antropóloga australiana em Sydney, em 2003: “o trabalho feito sobre colecções com uma procedência mal esclarecida não é boa ciência. Temse o osso, não se tem o contexto. Para se compreender a variação é necessário possuir uma base de dados, saber-se a ascendência, a idade, o sexo…”. Os problemas com as „histórias‟ dos crânios podem atrapalhar a ciência actual. Mas podem também complicar politicamente a vida dos curadores. A documentação associada aos restos humanos constitui uma fonte de preocupação para aqueles que lidam com a problemática contemporânea do repatriamento de ossadas indígenas. “Não podemos repatriar” os restos humanos, desabafava-me um curador em Camberra, “sem saber de onde é que eles vêm.” A importância que a determinação da procedência das ossadas indígenas vem adquirindo no debate sobre repatriamento mereceu o reconhecimento político. Nesse sentido, o governo australiano tem promovido o National Skeletal Provenancing

Project (cf. Henchant, 2001); e, no Reino Unido, um Grupo de Trabalho criado pelo governo britânico para estudar a situação das colecções de restos humanos em museus ingleses recomendou recentemente a criação de um painel de aconselhamento com a incumbência (entre outras) de investigar as “circunstâncias originais de remoção” das ossadas humanas e “a história de cada aquisição particular” (AA.VV, 2003: 120). 7

Considere-se por exemplo a resposta de um “gestor de colecções” de um museu inglês de história

natural às minhas indagações sobre colecções de restos humanos: “Temos nas nossas Colecções algum material humano originário da Papua Nova Guiné, mas nada de Timor. Infelizmente, não

possuímos nenhuma documentação de arquivo pertencente a esses espécimes, apenas entradas no nosso Catálogo de Crânios baseado em informação encontrada num catálogo de cartões redescoberto na década de 1960.” (Anónimo, email pessoal; itálicos meus). ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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Os curadores de museus e os antropólogos biológicos referemse, então, às “histórias” que possuem nas colecções atribuindo-lhes grande importância. Ao passarem-me listas com registos individuais de crânios humanos, os curadores esperavam que as suas „histórias‟ e a sua „documentação‟ fossem importantes para mim, tanto mais que me apresentava como investigador interessado na „história das colecções‟. Tinham, com efeito, razão. As „histórias‟ eram relevantes. Não só pelos „dados‟, por assim dizer, que forneciam acerca de cada objecto específico, mas ainda e sobretudo pela visibilidade que conferiam ao facto de os objectos serem o produto regular de um cuidado trabalho historiográfico, cujos vestígios apareciam depositados nos registos, como em sucessivas camadas geológicas.

As historiografias miniatura e os seus arquivos O registo do crânio da Nova Guiné em Melbourne permite-nos escavar alguns desses vestígios e aprender algumas coisas importantes sobre a ordem do trabalho historiográfico. A partir da leitura do registo, começamos por saber que o Museu Victoria não possui apenas um crânio Papua nas suas colecções antropológicas. Aprendemos que o museu possui crânios com „histórias‟ e „histórias‟ com crânios. Num museu, cada corpo material se encontra indexado e associado a arquivos e histórias individuais que definem o próprio objecto. A presença destes arquivos ensina-nos, assim, em primeiro lugar, que os museus e as colecções são lugares de produção e de guarda de memórias individuais das coisas, espaços onde a historicidade se exibe na forma de múltiplas pequenas histórias sobre objectos. Para mais, estes lugares não são guardiães passivos de informação; neles, as „histórias‟ não são estáticas, estão em transformação. Cada „história‟ de um objecto materializa-se em cartões, arquivos, catálogos, bases de dados e pode ser transmitida, modificada, re-escrita, re-organizada por sucessivas gerações de intervenientes. Como melhor veremos, aqueles que trabalham no museu fazem e refazem as histórias dos objectos, articulando vários tipos de saber e reflectindo acerca da validade das referências que vão ficando associadas às coisas. Os profissionais do museu chamam „histórias‟ a formações compósitas de vários tipos de suportes e de vários tipos de saber, os quais, em articulação, produzem a identidade de um objecto. É possível caracterizar o conhecimento historiográfico que vemos surgir nesses suportes em três dimensões que, em conjunto, apontam para a marca ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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distintiva das „histórias‟ no museu: a sua pequena escala. Em primeiro lugar, a informação disponibilizada é ao mesmo micro-histórica e biográfica, referindo-se a características, circunstâncias, incidentes, ou pessoas que mantêm relação apenas com aquele objecto singular, no seu percurso para o museu e no museu. Assim, em geral, esta historiografia não pretende estabelecer o passado de um objecto noutra escala que não o contexto imediato das circunstâncias e elementos julgados necessários para determinar a sua identidade e autenticidade. Em segundo lugar, esta é uma informação de tipo individual cujo arquivo físico é ele próprio de pequena escala: rótulos manuscritos, registos, cartões mecanografados, cartas particulares, etc. Por vezes, este arquivo existe literalmente colado ou „gravado‟ no objecto. Por exemplo, não é invulgar encontrar números de catálogo, códigos de armazém, categorias raciais, ou até curtos comentários gravados e pintados a tinta-da-china num crânio. Por estas razões, podemos designar as „histórias‟ do museu como um género de

historiografia miniatura suportado por um arquivo miniatura. Por fim, em terceiro lugar, esta historiografia miniatura compreende diferentes tipos de informação. Pode incluir formas narrativas bem como formas

classificatórias de informação histórica e indexação biográfica. A biografia do crânio da Papua Nova Guiné em Melbourne, por exemplo, é constituída por uma dupla indexação das origens dessa ossada humana: (i) uma indexação classificatória, visível no uso de categorias que, por um lado, marcam o objecto cronologica e geograficamente (e.g., “data” e “procedência”) e, por outro, gravam no objecto sinais de autoria humana (“fontes”, “artesão”, “doador”); e (ii) uma indexação narrativa, uma história que é contada sobre as circunstâncias coloniais de aquisição. No registo que estamos a acompanhar, ambas as modalidades – narrativa e classificatória – são visíveis. Podemos distinguir a tradição técnica da anatomia e da antropologia física nas notas metrológicas (“medidas”; “índice craniano”), ou nas estimativas sobre idade e sexo do sujeito. Mas notamos também que este saber técnico, seco e matemático, existe combinado com um tipo de conhecimento narrativo: a informação que encontramos na secção “comentários”. Concentremos então a nossa atenção na modalidade narrativa desta historiografia, presente na entrada “comentários”. Esta oferece um bom exemplo do trabalho envolvido na elaboração destas „histórias‟ e de algumas das complexidades a ele inerentes. RLV, Ron Vanderwal, o actual curador, dá a entender que transcreveu para o seu registo informático uma história que recolheu de “um cartão anexo” ao crânio. Esta história consiste numa narrativa sobre ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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as circunstâncias de aquisição do crânio no território designado, nesse ano de 1904, como „Nova Guiné Britânica‟, o lado sudeste da ilha da Nova Guiné então sob a influência colonial do império inglês desde 1884. A história inclui indicações sobre o contexto colonial em que foi adquirido, alusões aos propósitos dos coleccionadores, ou à identidade social e sexual do sujeito a quem a cabeça pertencera em vida. Contudo, a secção “comentários” apresenta duas versões concorrentes da história colonial da colecção. Existe a versão do “cartão anexo” e a versão de RLV, o curador, que exprime as suas dúvidas sobre a veracidade de alguns dos eventos reportados na história do cartão. Vanderwal contesta, em particular, a identidade „tribal‟ e a posição social do homem a quem o crânio foi removido. O curador não se limita, então, a transcrever uma narrativa de um velho cartão anexo. Vanderwal, enquanto antropólogo, fez extenso trabalho de campo na Província do Golfo da Papua Nova Guiné (cf. Vanderwal, 1984) e, na base da sua própria experiência, está deliberadamente a interferir com a narrativa original, adicionando elementos que transformam a historiografia e, por conseguinte, a identidade do crânio. Nessa interferência, Vanderwal tem em mente um padrão relativo aos usos culturais de crânios humanos, verificado pelos antropólogos profissionais que trabalharam com as tribos do Golfo da Nova Guiné: a preservação de “crânios de inimigos tomados na guerra”, em cabides especialmente preparados para o efeito no interior das chamadas longhouses, casas grandes das tribos. Na Nova Guiné do período colonial esta prática era comum. Vanderwal deduziu então que o crânio masculino existente no Museu Victoria provavelmente nunca teria pertencido a “um notável da sua tribo”, os Omaidai, mas sim a indivíduo do sexo masculino desconhecido, um membro de outra tribo, decerto bem menos „notável‟ – um inimigo do grupo Omaidai. Portanto, desconfiado da completa veracidade da história, o curador re-contou-a. Vanderwal estava a fazer trabalho historiográfico, transformando a historiografia colonial do objecto, interferindo com uma narrativa que

precedia a sua. De facto, antes das reflexões históricas de Vanderwal já o crânio Papua tinha recebido, „em cartão anexo‟, uma narração biográfica. Voltarei adiante ao que podemos ainda aprender com este processo de (re)-contar „histórias‟. Prestemos agora atenção à dinâmica circulatória do trabalho historiográfico sobre colecções.

A circulação de histórias

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As historiografias miniaturas existem em circulação, enquanto produto

temporalmente

emergente

nas

práticas

colectivas.

Estas

características tornam estas „histórias‟, para usar uma expressão de Bruno Latour, num género de “entidade circulante”, móvel, rebelde, transformativa (Latour, 1999). A redacção da narrativa que consta num „cartão anexo‟, ao qual o actual curador faz referência, precede a intervenção de Vanderwal provavelmente em muitos anos. É possível que remonte, pelo menos, a 1904, data em que o objecto parece ter dado entrada no museu; ou talvez a alguns anos mais tarde. O registo, porém, não nos informa sobre quem escreveu essa primeira história, ou quem a anexou, no cartão, ao crânio. Talvez um curador anterior a tenha escrito; ou talvez tenha sido relatada e redigida por outros actores que, no registo, figuram na narrativa como participantes no percurso de colecção do crânio: “o colector”, “grupos do governo”, “uma mulher”, a “tribo”, ou o indivíduo designado como “F. O. Foster”, um nome que recebe certo destaque como a “fonte”. De qualquer modo, seja quem for o autor da narrativa no „cartão anexo‟, parece certo que a „história‟ desse crânio da Papua Nova Guiné não é fruto do trabalho de uma só pessoa, de um só curador, num só momento e lugar determinados. É o resultado de um trabalho colectivo, que se distribuiu no tempo. Esta

maleabilidade

colectiva

das

historiografias

miniatura

constitui uma manifestação da circulação física de coisas de um lado para o outro, de mão em mão; constitui também, como adiante veremos, uma manifestação da circulação epistémica das coisas e das suas histórias, a reinvenção constante de passado para os objectos. Consideremos a circulação física, no espaço e no tempo. Em 1904, os crânios humanos das populações indígenas de territórios coloniais „exóticos‟, como a Nova Guiné, tinham de viajar grandes distâncias até chegar a museus na Europa ou a cidades coloniais „civilizadas‟ como Melbourne, no sul da Austrália. Circulavam assim num sentido literalmente físico e geográfico, cruzando fronteiras territoriais. Ao efectuar este trajecto, o crânio Papua constituía, assim, um episódio de um fenómeno maior, sobre o qual os historiadores da antropologia têm escrito – o tráfico, à escala global, de artefactos etnográficos e de restos humanos indígenas como espécimes científicos entre 1850 e 1930 (cf. Stocking, 1985: 2; Jackins, 1996: 192). Os museus eram cruciais nesta “economia política global” (Zimmerman, 2001), formando nós centrais em redes longas e complexas que interligavam agentes coloniais e comunidades indígenas, intermediários metropolitanos e cientistas no processo de coleccionar artefactos etnográficos ou restos humanos. Assim, a viagem desse crânio particular ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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dava expressão à institucionalização da antropologia científica nos museus das metrópoles imperiais e coloniais, bem como à vivacidade das redes de coleccionadores e intermediários que, no terreno, suportavam esse tráfico de longa distância. Mas este tráfico global não punha apenas objectos em circulação. Nos circuitos dessa mesma „economia política‟ da antropologia, viajavam também documentos, correspondência, informação. Junto com objectos antropológicos, seguiam também as suas „histórias‟. Existiam, a um tempo, histórias e objectos em circulação, pelo que a trajectória de cada um destes elementos podia tomar caminhos relativamente autónomos – a ponto de se separarem. Com efeito, o movimento de objectos antropológicos para os museus necessitava de atender à manutenção (nem sempre fácil) de uma associação entre corpos físicos de objectos e documentos que lhes garantiam biografia e indexação histórica. A associação entre o crânio e a narrativa inserida no „cartão anexo‟ ao crânio Papua terá, então, sido produzida algures no interior destas redes de circulação dos objectos. Provavelmente outros actores, fora do museu, entraram em acção para informar historicamente os crânios e permitir a sua viagem até à instituição. O registo mantido por Ron Vanderwal em Melbourne fornece informação insuficiente acerca deste outro trabalho colectivo. Contudo, deixa algumas pistas que permitem perseguir esse trabalho, através de outra documentação, noutros locais do mesmo Museu Victoria. Quando

visitei

o

museu

em

2003,

os

meus

anfitriões

conduziram-me aos locais onde esta outra documentação associada aos objectos era guardada, em pastas, contendo correspondência trocada com o museu ao longo dos anos. Numa dessas pastas, encontrei um ficheiro sob o nome de “Foster, F. O.”. Nele constavam duas cartas dirigidas por Foster ao director do Museu Victoria, R. Henry Walcott, em 1904. Foster, um dentista residente em Queensland, no norte da Austrália, apresentava-se como intermediário entre o Museu e um “seu amigo”, o Sr. Geoffrey W. Jiear, o qual, uns meses atrás, tinha dirigido duas cartas ao director, oferecendo para venda ao museu alguns crânios da Papua Nova Guiné (Jiear para Walcott, 26 Janeiro 1904 e 27 Fevereiro 1904). Walcott, o director, aceitou a oferta. O preço foi negociado e os crânios empacotados e enviados para Melbourne. Mas em viagem não estiveram unicamente as ossadas. Com os ossos circularam as suas „histórias‟, relatadas numa carta e rotuladas nos materiais. Foi então na correspondência enviada por Foster para Walcott em 1904 que pude

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reler, ipsis verbis, a narrativa mais tarde transcrita para a secção “comentários” no registo individual do crânio: “Estou a escrever-lhe em nome de um amigo meu, um Sr. Geoffrey Jiear, que possui alguns espécimes Etnológicos da Nova Guiné para vender e acerca dos quais creio ele ter já comunicado consigo e, a pedido seu, anexo agora a história de

cada um consistindo em dois crânios masculinos dois femininos e um crânio jovem. N.º 1. Um crânio masculino: o crânio de um homem da tribo OMAIDAI, rio TURAMA. Este homem era um notável na sua tribo, e o seu crânio tinha sido preservado durante muitos anos. Foi salvo da destruição de todos os crânios, que está a ser levada a cabo por Grupos do governo, por ter ficado escondido dentro do vestido de uma mulher e depois pendurado numa árvore, onde veio a ser encontrado pelo coleccionador alguns dias mais tarde. […]” (Foster para Walcott, 10 Junho 1904; itálicos meus) “Aviso-o que enviei por este mesmo correio seis espécimes etnológicos quatro (4) Papuas e dois (2) Aborígenes de Queensland que estou em crer chegar-lhe-ão em segurança e vão revelar-se satisfatórios. Faça o favor de me enviar o dinheiro por P. O. O., a pagar a F. O. Foster, Rockhampton.

Rotulei cada espécime com os pormenores que existem disponíveis.”(Foster para Walcott, 28 Julho 1904; itálicos meus)

Estes

excertos

permitem-nos

surpreender

a

história

que

encontrámos fixada na base de dados informática, em circulação, no momento em que foi passada de Foster, em Queensland, no norte da Austrália, para Walcott, em Melbourne, no sul. Percebemos por estas cartas que alguns crânios foram oferecidos ao director para venda, e que essa transacção envolveu também a venda das suas histórias. Crânios e histórias eram o objecto que estava a ser trocado por uma certa quantia de dinheiro. Pois adicionar histórias aos crânios acrescentava valor económico e valor científico aos objectos, permitindo que a transacção fosse bem sucedida. Ficamos ainda a saber que o Dr. Foster e o Sr. Jiear

prepararam essas histórias, escrevendo-as em rótulos assim como na carta, e que o fizeram em resposta a um “pedido” formulado pelo director do museu. A redacção de histórias surgiu como produto de uma interacção, na qual histórias foram esperadas juntamente com crânios e em que tanto ambos eram negociados e transaccionados como mercadorias. A adição de histórias resultou, então, de uma adequação dos propósitos dos colectores dos crânios às expectativas e exigências do cientista no museu. É importante acentuar este ponto, pois, como ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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sugerimos ao início, existe na literatura sobre história das colecções antropológicas uma visão consolidada que pressupõe que os praticantes da ciência antropológica de museu estão naturalmente „desinteressados‟ das histórias singulares dos objectos. Esta imagem não funciona no caso do crânio Papua em Melbourne – e dificilmente funcionará noutros contextos. Na verdade, existem bases para supor que a singularização de histórias

para

crânios

humanos

era

considerada

crucial

pelos

antropólogos de museu do século XIX e inícios do século XX, pois garantia a „autenticidade‟ das colecções científicas, assim apoiando a subsequente validade das observações antropológicas (cf. Roque, 2007a). Os doadores e os colectores de restos humanos no campo eram por isso encorajados pelos antropólogos profissionais a não desprezarem essa informação histórica na recolha dos objectos e na sua preparação para envio ao museu. O

caso

do

crânio

em

Melbourne

sugere,

pois,

que

as

historiografias miniatura resultavam de um trabalho que decorria em

interacção com os agentes do museu, mas que, em boa medida, começava por ser executado fora dele, ao longo das redes de colaboradores. Um curador de colecções, dois intermediários, porventura ainda outros intervenientes no terreno, na Nova Guiné – participantes possíveis, mas invisíveis neste ponto da reconstituição do traçado dos crânios e das suas „histórias‟ – faziam trabalho historiográfico, em relação, co-produziam uma memória para os crânios. Os „objectos antropológicos‟

que

assim

tomavam

forma

não

eram,

portanto,

simplesmente crânios, nem simplesmente discursos, mas uma formação compósita de ambos: crânios-e-histórias. O crânio Papua enviado por Foster em 1904 não era, pois, apenas uma coisa material. Era algo ao mesmo tempo relato e materialidade, indexação histórica e ossos humanos, em conexão. No contacto entre os dois, corpo físico e registo individual da sua história, encontrava-se a condição do crânio enquanto objecto integrante de uma colecção científica. Estes princípios, creio, aplicam-se quer ao trabalho historiográfico realizado por Foster, Jiear e Walcott em 1904, quer àquele feito por Vanderwal, cerca de cem anos mais tarde.

Ligações entre histórias e coisas Esta última observação põe em evidência ainda uma outra lição que o registo do crânio Papua nos pode ensinar acerca do trabalho historiográfico sobre objectos. Trata-se da visibilidade que confere aos ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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jogos de associação e dissociação entre historiografias miniatura e objectos. Esta dinâmica de associação, como já notámos, resulta de uma actividade colectiva. Mas é também colectiva quanto aos seus efeitos. Do ponto de vista do pessoal que trabalha no museu, o trabalho historiográfico deve orientar-se para a produção de laços credíveis e precisos entre palavras e coisas. Os corpos materiais e as suas „histórias‟ devem ser mantidos juntos, unidos, como uma só entidade. A este respeito, julgo que a sugestão de John Law, para quem “não existe diferença importante entre histórias e materiais” (Law, 2000: 2), permite aproximar-nos

um

pouco

mais

do

significado

sociológico

das

historiografias miniatura: “[…] histórias, histórias bem sucedidas, „performam-se‟ elas próprias no mundo material – sim, na forma de relações sociais, mas também na forma de máquinas, de arranjos arquitectónicos, corpos, e tudo o mais. Isto significa que um modo de imaginar o mundo é vê-lo como um conjunto de histórias (bastante desordenadas) que se intersectam e interferem umas com as outras. Significa também que estas histórias, todavia, não são meras narrações no sentido linguístico habitual do termo.” (Law, 2000: 2)

De modo análogo, o mundo do museu e o mundo das suas redes pode ser imaginado como formando conjuntos de histórias, mais ou menos „desordenadas‟. Desta perspectiva, as historiografias miniatura não devem ser interpretadas de modo culturalista, como „contextos culturais‟ com que um grupo insufla de „significado‟ coisas físicas vazias de sentido. Essas são narrativas que realizam, geram efeitos concretos, palpáveis; histórias que fazem coisas acontecer no mundo material, ou que, como afirma Law, „performam-se no mundo material‟. Neste sentido, as „histórias‟ que habitam o museu performam-se nos crânios humanos,

tornando-os

entidades

imbuídas

de

identidades

e

propriedades biográficas específicas; ou performam-se nos espaços do museu, por exemplo, afectando a distribuição das coisas por armazéns, caixas e prateleiras; ou mesmo em regimes éticos, tornando certas „coisas‟ mais ou menos sensíveis e controversas; ou ainda em taxonomias científicas, podendo influir decisivamente na validade epistemológica dos estudos antropológicos sobre raças feitos com base em ossadas humanas.8 Estas considerações são válidas tanto para a modalidade narrativa quanto para a modalidade classificatória das „histórias‟ dos objectos. 8

Analiso noutro trabalho o tipo de problemas que, no final do século XIX e inícios do século XX, a

falta de credibilidade da „história‟ de crânios humanos podia provocar na classificação científica de raças (Roque, 2007b: cap. 7). ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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Suponha-se, por exemplo, que, no museu, não é atribuído um número ou um qualquer código a um crânio humano. Como poderá um curador ou um investigador encontrá-lo no armazém, no meio de centenas ou milhares de outras coisas? Suponha-se que um crânio, ou qualquer outro elemento integrante de uma colecção, não tem procedência atribuída; não sabemos de onde veio, de que lugar do mundo, de que „tribo‟, ou em que data. Poderá um antropólogo metodologicamente escrupuloso utilizar esse material para análise científica? O trabalho historiográfico por fazer, mal feito, ou rejeitado pode acarretar consequências problemáticas para a ciência e para a política dos museus. Suponha-se que a dúvida mantém-se sobre se o crânio actualmente em Melbourne pertenceu, ou não, a um indivíduo da tribo Omaidai. Poderá este crânio alguma vez ser repatriado? Que grupo terá legitimidade para reclamá-lo como seu antepassado? Suponha-se, ainda, que, nesse ano de 1904, os senhores Foster e Jiear tinham contado ao director Walcott uma história

diferente para os espécimes; ou que não tinham contado história alguma. Se não tivessem contado uma história que realizava, „performava‟, no crânio a identidade de um homem socialmente „notável‟ e um contexto, heróico e romanceado, de aquisição das ossadas („escondido no vestido de uma mulher‟; „salvo da destruição de crânios‟) será que Foster e Jiear teriam feito negócio com o cientista e conseguido bom preço pelos espécimes? Teria esse crânio alguma vez interessado o Dr. Walcott e ido parar ao Museu Victoria? Em que entidade, afinal, se tornaria esse crânio humano sem que um contexto colonial lhe tivesse sido associado em 1904? Se histórias e objectos não se mantiverem ligados, várias complicações podem acontecer na trajectória das colecções, a ponto de afectar os colectivos de outros actores e materiais que se encontram em relação com o objecto. Elaborar histórias para colecções possui uma dimensão performativa e, por isso, fazer trabalho historiográfico nos museus era importante no passado e continua a ser importante. Assim, as propriedades performativas da historiografia miniatura ganham especial evidência nos momentos em que os corpos materiais são sujeitos a circulação não só física, como epistémica. Isto é: nos momentos, em especial, em que as „histórias‟ a que os objectos se unem são (re)feitas e ajustadas, reinventadas e recompostas em novas classificações, novas narrações, novas linguagens científicas (e.g., estudos de ADN), ou novos suportes materiais e tecnologias. A construção de historiografias é um processo aberto a modificações criativas, ao longo dos vários pontos das redes em que se movem os ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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objectos – a outra maneira, então, de considerarmos crânios-e-histórias como „entidades circulantes‟. Observámos até aqui que a ligação entre crânios e histórias foi sendo elaborada por diferentes actores em interacção, em vários tempos e lugares. A „história‟ na carta de 1904 e no registo de 2003 não é a mesma, na forma, no suporte, no estilo, ou no conteúdo. Foram adicionados elementos novos (por exemplo, as medições); alguns elementos antigos foram contestados (Vanderwal desconfiou da narrativa de Foster); e de um cartão anexo passámos a um registo informático. Importa

notar

que

o

crânio

Papua

é

significativamente

reconfigurado com a intromissão narrativa do curador Vanderwal. Ao tornar problemática uma história que aparentemente não o era até então, os

comentários

de

Vanderwal

„performavam-se‟

no

crânio,

com

consequências imprevistas. Re-contar a história afectava a dinâmica relacional da ligação entre histórias-e-crânios, necessária para posicionar o crânio como coisa antropológica. Vanderwal interferiu com actividade historiográfica realizada no passado, mas também com outros trabalhos que pudessem vir a ser feitos com o crânio no futuro. O curador não estava, pois, a interferir apenas com uma narração no sentido meramente linguístico do termo, ou com um „contexto‟ externo ao corpo material do objecto. Interferia com a natureza do próprio material, com a sua realidade a um tempo epistémica e física. Multiplicava-lhe a ontologia bifurcando a sua procedência: um crânio recolhido entre os Omaidai não era dos Omaidai. Um crânio cuja identidade étnica e geográfica, à partida, parecia claramente validada por uma narrativa, passava a possuir uma origem e uma identidade indeterminada, a qual dificilmente poderia ir além de uma vaga suposição: „um inimigo dos Omaidai‟. A estabilidade da conexão original entre objecto e contexto colonial é desacreditada. Ameaça desfazer-se, ou ameaça bifurcar-se… Dividido entre duas histórias, a versão do colector colonial e a versão do curador póscolonial, o crânio Papua nas colecções do museu arrisca converter-se em objecto múltiplo.

Notas finais Iniciei este texto com a sugestão de que, nos museus, proliferam registos que oferecem uma memória para as colecções científicas: arquivos, rótulos, cartões de registo, bases de dados, cartas… Estes arquivos de „histórias‟ constituem um facto banal do dia-a-dia dos curadores e técnicos de museu com quem contactei ao longo da minha ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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pesquisa de campo. Usando o exemplo de colecções antropológicas de restos humanos, procurei explorar a possibilidade de tomarmos a sério estas „histórias‟. Argumentei que as colecções antropológicas não são entidades por natureza orientadas para a subtracção de historicidade. Constituem, desde a sua génese, trajectórias em construção para as quais é fundamental a adição de contexto histórico, incluindo de contexto colonial. Assim, em vez de supor que o trabalho de circulação de colecções antropológicas no período colonial se orientou para a ocultação ou negação de historicidade (colonial, ou qualquer outra), propus o contrário. Os objectos postos em circulação para os museus eram, com frequência, trabalhados com vista a circularem integrados em redes de textos e palavras, que os dotavam de histórias próprias, singulares. Com a noção de trabalho historiográfico tentei dar conta das actividades colectivas envolvidas na produção de historicidade para os objectos em colecções. Como vimos, este trabalho podia ser crucial para fazer com que crânios humanos se tornassem objectos cientificamente válidos e comercialmente valiosos. O caso do crânio Papua que analisámos revelou que o „contexto colonial‟ é feito recorrentemente nos museus e foi produzido – e não suprimido – por práticas historiográficas realizadas por agentes coloniais e antropólogos do século XIX e inícios do século XX. O mesmo caso revelou também que as „histórias‟ produzidas durante e após o período colonial – o que chamei de „historiografia miniatura‟ – possuem efeitos performativos. São capazes de ordenar ou desordenar

as

colecções

de

restos

humanos,

afectando-lhes

as

trajectórias presentes e futuras. A criação de um singular contexto histórico e biográfico é importante para a identidade dos restos humanos. Por isso, ignorar, interferir, ou efectivamente quebrar a ligação entre crânios e histórias pode resultar em efeitos imprevisíveis e problemáticos, a vários níveis: na produção de conhecimento científico, na organização do museu, na decisão sobre repatriamento, etc. A historiografia miniatura que acompanhámos, portanto, não serve ao investigador como série de meras narrações pronta a ser denunciada como errada, mas como um regime de descrições performativas que expressam trabalho historiográfico e assim revelam os processos colectivos de constituição de colecções científicas. Por conseguinte, conceder a primeira palavra sobre a memória dos objectos aos agentes sociais que os colecciona(ra)m é um passo fundamental para entender a história de colecções coloniais e perceber o modo como os objectos tomam a forma e a qualidade de „coisas científicas‟.

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Conforme terá ficado claro, nem todos os objectos em colecções são ou foram igualmente associados a histórias singulares. Por vezes, a uma coisa foi atribuída uma história; outras vezes, essa história nunca foi criada, ou perdeu-se do objecto, ou foi mais tarde criticada e rejeitada como falsa… Como me confessaram vários curadores, muitos dos objectos coleccionados durante a „era do museu‟ permanecem sem informação associada ou com „histórias‟ incompletas ou mal certificadas. A historicidade (ou ahistoricidade) das colecções não está decidida à partida; está em construção. A “realidade histórica” de uma coisa é difícil de produzir, de manter e de proteger (cf. Latour, 2000: 254-55). Os objectos podem, assim, surgir-nos dotados de uma história sólida e durável; outras vezes de uma história volátil, ausente ou desaparecida. Neste cenário, a ausência ou a presença de um passado singular para uma colecção ou para um objecto é um dos efeitos possíveis do trabalho historiográfico efectuado, bem como das contingências e dos acidentes que a cada passo podem afectar a associação entre coisas e „histórias‟ (cf. Roque, 2007c). O processo de devolução da historicidade emergente passa pela descrição das práticas e das circunstâncias que moldam e moldaram a atribuição de passado para os objectos. Esta postura não opõe, portanto, à tese substancialista da omissão da história nas colecções a tese igualmente substancialista da história como propriedade fixa das colecções. Antes recomenda que se interroguem os processos práticos que conduziram à presença ou ausência de „história‟, sendo que o exacto padrão dos laços que associam ou dissociam „histórias‟ e „coisas‟ deverá ser aprendido através do exame das contingências de circulação das colecções. Enquanto analistas, pois, devemos equipar-nos para lidar com a complexidade dessas ligações devolvendo às colecções a dinâmica histórica da sua história em emergência. Decerto, também a história que ensaiamos participa da produção de historicidade para as colecções – mas não performa nos objectos a

mesma historiografia miniaturizada que preocupou ou preocupa os especialistas do museu. A análise das trajectórias das colecções onde o trabalho historiográfico é objecto surpreende a colecção como lugar onde historicidades múltiplas se formam, entrecruzam e transformam, e expande radicalmente a pequena escala das historiografias a novos arquivos, objectos, actores, e „contextos‟. Neste sentido, a curta exploração

do

registo

individual

do

crânio

Papua

que

aqui

experimentámos está longe de esgotar os circuitos possíveis da pesquisa da trajectória de uma colecção. Tocámos apenas a ponta do iceberg. Em qualquer caso, prosseguir esta expedição deverá tomar um ponto como ENSAIOS - OSSOS, “HISTÓRIAS” E COLEÇÕES COLONIAIS | RICARDO ROQUE


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seguro. Se excluirmos do nosso próprio trabalho, hoje, a descrição dos percursos da historicidade dos objectos, introduzimos na sua história uma involuntária ocultação. Corremos o risco de arrancar às coisas os „contextos‟ criados pelos próprios agentes para as distinguir como „colecções‟.

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Sobre o autor Ricardo Roque (BA, MA, Univ. Nova de Lisboa; D. Phil., Univ. Cambridge) é professor do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. A sua pesquisa explora a relação entre ciências humanas, colonialismo e culturas indígenas no contexto da expansão imperial europeia dos séculos XIX e XX. É autor de Antropologia e Império: Fonseca

Cardoso e a expedição à Índia em 1895 (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001) e co-organizador de Objectos Impuros: Experiências em Estudos Sobre a Ciência (Porto, Afrontamento, no prelo). Email: roque@notes.uac.pt Enviado para publicação em Fátima Branquinho, Maria Aparecida e Sofia Bento, orgs., Ciência, Natureza e Sociedade: Etnografia de Objectos, Rio de Janeiro, Edições da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Guilherme José da Silva e Sá – UFSM guilherme_jose_sa@yahoo.com.br

Neste trabalho procuro refazer alguns dos passos que me (des)nortearam durante o meu trabalho de campo junto a primatólogos em uma faixa de Mata Atlântica preservada no interior do estado de Minas Gerais. Aqui pretendo refletir sobre algumas possibilidades de etnografar relações sociais mediadas por humanos e não-humanos, sujeitos-objetos e objetos-sujeitos, dentro de um contexto de produção científica.

E

foi

tropeçando

na

tendência

viciada

de

procurar

representações sociais que elucidassem as práticas nativas que caí em uma “teia de significados” (Geertz,1978), da qual só consegui me desvencilhar abandonando o paradigma interpretativo e operando traduções que clareavam a dinâmica das transformações a que estava sendo exposto.

Alegorias Iniciei minha experiência de campo justamente durante o período de festas carnavalescas. Saindo do Rio de Janeiro, onde eu residia e cursava o doutorado, viajei para o interior de Minas Gerais fugindo da agitação momesca e intimamente pensando que esta experiência de isolamento, característica do trabalho de campo, não encontraria ocasião mais adequada para ter início que não fosse o carnaval. Se DaMatta (1980), em texto clássico, caracterizou o carnaval como um ritual marcado por inversões, para mim, a folia de todo antropólogo só teria sentido na reclusão do trabalho de campo. ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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Recém chegado, ainda me lembro de ir para o quarto após o jantar - em plena segunda-feira de carnaval -, ligar o rádio e sintonizá-lo em uma emissora AM. Fiquei deitado na cama enquanto ouvia a transmissão do desfile das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Imaginei os adereços descritos pelo locutor e os foliões com suas fantasias pulando na Marquês de Sapucaí. A narração descrevia com detalhes os carros alegóricos e tudo aquilo que se passava na avenida. Ao fundo era possível ouvir os sons da bateria e o samba-enredo já atravessado, sem nenhuma harmonia. Em minha cabeça representava tudo o que acabara de ouvir e que imaginava conhecer bem de outros carnavais. Se por um lado, o caráter insólito daquela situação contrastava com todas as outras experiências normativas que eu já havia vivido, por outro,

inadvertidamente

eu

me

preparava

para

o

normativo

de

experiências insólitas que eu iria acompanhar seguindo primatólogos atrás de seus primatas.

Harmonia Quando primatólogos estão na mata, observando os macacos, têm por princípio não interagir com seus objetos de pesquisa. Preservando a invisibilidade dos pesquisadores pretende-se deixar os macacos inteiramente à vontade em seu habitat natural. Esta idéia alia a eficácia dos dados científicos coletados a uma “performance natural” dos macacos. Dentro dos padrões cientificamente aceitos, macacos-sujeito devem ser tratados como macacos-objeto, como se estes estivessem sozinhos na mata, ainda que esta idéia possa ser contestada se considerarmos

o

acompanhamento

na

mata

como

um

encontro

mutuamente percebido e que torna o próprio ato de observar e ser observado em um sistema relacional. Inicialmente, quando os primatas ainda não

haviam sido

contactados, o trabalho de primatólogos consistia em “correr atrás dos macacos” – visto que eles fogem da presença humana – até habituá-los à companhia do pesquisador. Esta fase do trabalho é extremamente cansativa para os primatólogos, que têm que seguir por terra (em geral através de mata fechada) os macacos (muito mais ágeis e velozes) se locomovendo pela copa das árvores. Estima-se que esse momento também seja bastante estressante para os macacos, que constantemente ameaçam seus perseguidores bípedes. Esta reação dos primatas à ação dos primatólogos tem fim quando os animais se acostumam com a ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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presença dos cientistas1. E, a partir da não-reação dos macacos tem início um novo momento no trabalho. Assumindo uma postura de nãoação, os primatólogos observam os macacos agindo “naturalmente”, como se fosse possível agora cada ação dos primatas não conter uma reação que contaminasse os dados. Do ponto de vista dos primatólogos este seria o modelo ideal: observar, sem serem percebidos, os primatas agindo como se nunca tivessem sido contactados. Do ponto de vista dos que estão em cima das árvores, se é que é possível inferir sobre ele, toda ação, após o contato, torna-se uma reação, visto que se faz tudo aquilo se fazia antes, mas agora com alguém olhando. Dentro que foi exposto, tratarei aqui justamente de algumas associações controversas entre

contato, contágio e contaminação. E esta tríade encontra-se intimamente ligada ao que denominei como “predação científica”, uma relação que emerge mediante as circunstâncias específicas da aproximação entre pesquisador e pesquisado e deduz um nível de apropriação de um em função do outro. Tratando-se da primatologia, este é o momento em que o macaco é “predado” pelo primatólogo, ou ainda, é o processo em que o primata-sujeito transforma-se em primata-objeto. Esta idéia aproximase, portanto, da noção de purificação científica (Latour, 2001) quando incute diretamente na transubstanciação do macaco-sujeito-floresta em macaco-objeto-laboratório. Todavia, a “predação” acontece em função de uma relação de experiência íntima no interior das dinâmicas dos coletivos e não por contingência genérica de um macro-processo que se consolida nas esferas epistêmicas, históricas e políticas de uma cadeia de transcrições. Ou seja, é atuando na arena da Ciência, que o primatólogo transforma o seu interlocutor primata-sujeito em objeto, para que este se torne um ser de outra natureza que não a sua, formalizando assim uma lógica de predação científica. Neste trabalho exploro algumas implicações deste processo, analisando duas controvérsias de campo e finalizando com uma reflexão acerca da ênfase dada pelos primatólogos ao compromisso com o sujeito-objeto pesquisado e seus cuidados anti-representacionalistas.

O “vôo” de Ícaro Uma das especificidades que tornam as práticas dos primatólogos sociologicamente atraentes está no fato de alguns lidam com a 1

Ora, aqui é possível ponderar que os macacos continuam observando os primatólogos,

já que o processo de habituação dos animais pressupõe que estes percebam e reconheçam aqueles que não lhe ofereçam perigo. ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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possibilidade de nomear cada indivíduo de seu grupo de pesquisa. Os nomes atribuídos aos macacos podem variar de acordo com cada local de trabalho, grupo de pesquisadores ou região geográfica. No local onde empreendi minha pesquisa de campo costumava-se nomear os macacos (muriquis) batizando-os com nomes humanos, e em muitos casos dando-lhes o nome de humanos conhecidos entre o grupo de primatólogos. Este era o primeiro passo de um longo processo de subjetivação dos macacos dentro do contexto das relações estabelecidas entre primatólogos e primatas no campo de pesquisa, na mata (Sá, 2006). Se, principiava-se com esta construção do sujeito-primata pautando-se em nomes, indivíduos, narrativas, personalidades e imagens específicas atribuídas aos muriquis, a continuação no histórico destas relações nos levará ao pólo oposto: o ocaso da subjetivação e a ascensão do objetoprimata.

A apreensão da “realidade” em campo está fortemente

ligada à capacidade de sistematizar as observações feitas a respeito dos mais variados eventos ocorridos na mata. Infiltramos-nos agora no domínio da técnica, ou seja, de como enxergamos o que vemos e como descrevemos aquilo que outros não podem ver. Encontrei a primeira controvérsia inserida no contexto deste processo de transformação do macaco-sujeito em macaco-objeto a partir da observação de um jovem primatólogo: Ícaro. Por mais de dois anos em que residiu na reserva, Ícaro pesquisou um dos grupos que compunham a população local de primatas, tendo acumulado neste período um número bastante expressivo de scans2, feitos na mata, e angariando um notável conhecimento acerca do comportamento dos muriquis. Este sistema de coleta de dados serve para determinar a localização, o tipo de atividade e os indivíduos situados mais próximos dos animais (neste caso os muriquis) à vista do pesquisador. Os tipos de atividade exercida pelo primata naquele instante, como descanso, toque, movimento, são registrados pelo primatólogo em um etograma, que é um catálogo de comportamentos disponíveis à aferição do observador. Em ciclos com intervalos de quinze minutos é registrado nas cadernetas de campo tudo aquilo que estão fazendo os animais. Descrever o comportamento dos primatas confunde-se, portanto, com a aplicação deste formulário, que ao mesmo tempo em que viabiliza padronizando as ações também as restringe a um rol de possibilidades e padrões prédefinidos. A técnica dos scans, adaptada por Strier originalmente dos babuínos à realidade dos muriquis, vem sendo utilizada nas pesquisas 2

Um método de coleta de dados por amostragem muito comum desde que foi sistematizado por

Altmann (1974) ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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locais há anos, tendo sido tarefa de Strier definir os principais padrões comportamentais a ser visualizados. Pode-se dizer que este se trata de um dos primeiros estágios na transformação de gestos e ações de um sujeito-primata em números e códigos de registro de um objeto-primata, como fica patente na explicação da autora: Their activities were divided into general categories and assigned a single-digit numerical code which could be appended with more specific information. For example, if an individual was feeding during a scan sample, it was recorded as “3”. The second digit indicated the food type, so feeding on immature fruit was 31, mature fruit was 32, fruit of unknown maturity was 33, flower buds were 34, mature flowers were 35, immature leaves were 36, mature leaves were 37, leaves of unknown maturity were 38, seeds were 39, mature fruit and seeds were 329, and so on. This system, adapted to each broad category as new observations required new distinctions, enabled me to expand the original categories without modifying or losing any information, and to analyze my results in various ways depending on the questions being adressed. To determine the proportion of feeding individuals observed, all activities beginning with a “3” could be grouped and compared to other activity categories; to determine the distribution of food types eaten, all feeding observations on fruits and seeds (31, 32, 33, 329), flowers (34, 35), and leaves (36, 37, 38), could be analyzed. Interindividual distances were important to understanding muriqui spatial relationships as well as social relationships. The distances between

“ nearest neighbors“ were

divided into five

categories, which were also numerically coded : 0 – in contact ; 1 – within a 1 meter radius ; 2 – within a 5 meter radius ; 3 – within a 10 meter radius ; and 4 – greater than 10 meters. The individual or individuals closest to the muriqui I was sampling at that moment could be recorded by name once I could recognize them, and I soon found nearest neighbors were not always reciprocal. Irv and Mark might be within 1 meter of one another, while Scruff was within 5 meters of both Irv and Mark. In this case, Irv was scored as Mark´s nearest neighbor, Mark as Irv´s nearest neighbor, and both Irv and Mark as Scruff´s nearest neighbors. It was not clear to me at the time whether a distance of 1 or 5 meters meant anything to the muriquis themselves,

but

they

were

categories

that

could

be

reliably

distinguished with ease. By analyzing the data separately, it would be possible to determine whether spatial relationships differed between individuals, and how their spacing related to their various activities. (Strier, 1992:30-1)

Entretanto, a experiência com a coleta de scans forneceu à Ícaro a oportunidade de observar algo que ainda não havia sido relatado como padrão comportamental pré-definido dos muriquis. Ele observou que em ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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determinadas circunstâncias um muriqui - geralmente uma fêmea adulta estando próximo a outro indivíduo - cruzava os braços em torno do próprio corpo (como se em um abraço dado em si próprio). Ícaro verificou ainda que este gesto sistematicamente precedia a um abraço (padrão comportamental já relatado) em outro indivíduo. Este gestual foi denominado por Ícaro de auto-abraço e, por se tratar de um gesto direcionado a outro indivíduo próximo, “indicaria” uma “requisição de abraço ou toque”. Percebendo que este auto-abraço vinha ocorrendo regularmente, Ícaro procurou outros primatólogos que haviam trabalhado na reserva em diferentes épocas a fim de averiguar se haviam observado comportamento semelhante. Surpreendentemente descobriu que alguns diziam ter visto este gesto, mas que não o haviam relatado3. Tendo levado sua descoberta até Solange, a quem se encontrava subordinado, Ícaro foi desacreditado com uma resposta negativa. Argumentando que o número de observações do evento seria insuficiente para caracterizá-lo como um novo tipo de comportamento, ela o desaconselhava a publicá-lo, até mesmo sob o formato de nota. Para Ícaro esta limitação apresentava-se como um contra-senso já que algumas notas sobre o comportamento dos muriquis já haviam sido publicadas a partir de poucas observações, como assegura Strier: The

systematic

behavioral

observations

were

also

supplemented with opportunistic recordings of rare events. Sexual inspections, copulations, embraces, aggressive interactions, and intergroup encounters were defined and scored whenever they were observed. (Strier, 1992:31)

Mais tarde, a hipótese do auto-abraço passaria a ser creditada por Solange como uma variação de um padrão comportamental já relatado – o abraço -, portanto, já existente. Por isso, deveria ser descartada, pois supostamente já se encontrava compartimentalizada na lista dos comportamentos “possíveis” verificados ao longo de vinte anos de pesquisas. 3

Esta escontinuidade entre o ato de ver e perceber encontra um interessante paralelo com a

experiência inusitada elaborada por pesquisadores do Laboratório de Cognição Visual de Harvard em que um grupo de pessoas em uma sala era orientado a concentrar-se em determinada tarefa. Em determinado momento um elemento externo adentra a sala vestindo uma fantasia de gorila passando entre os participantes. Ao término da atividade os pesquisados eram arguidos acerca do que se passou durante a atividade. As descrições dos fatos, em sua grande maioria, ignoravam a presença bizarra do gorila. Esta experiência, sugestivamente congratulada com o “Prêmio Ignóbil”, pretendia atentar para um tipo de “cegueira” por excesso de atenção. Observação que também poderia ser verificada pela ânsia de reproduzir tarefas anulando a percepção periférica de novos eventos (Calligaris, 2004). ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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Ainda que fosse proclamado que “As my contact with the animals

increased, they introduced me to new species of food that they ate, and allowed me to witness new behaviors” (Strier, 1992: 43), o caso do autoabraço parecia indicar uma indisponibilidade de receber aquilo que os muriquis estavam oferecendo aos seus observadores naquele momento. Onde estaria o grande empecilho para a formulação do auto-abraço? Minha primeira hipótese dava conta de uma reação adversa em função do incômodo acarretado pela descoberta do jovem primatólogo, que não havia sido contemplada nos anos de pesquisa da veterana. No entanto, aqui distanciarei minha análise desta opção que envolve hierarquia de saber e autoridade científica. Prefiro me ater aos argumentos intrínsecos, ou seja, internos à relação entre pesquisador e objeto, que foram alegados na controvérsia. Neste caso, retorna-se ao contexto de campo da descoberta. Indubitavelmente sua abertura para perceber algo diferente daquilo que vinha sendo observado regularmente concedia a Ícaro um diferencial: não apenas

reproduzir

conhecimento

mas

também

apreender

novas

informações. Entretanto, o mérito de perceber algo que os próprios macacos lhe oferecem - e que neste sentido poderia não ser “novo” entre os muriquis, mas sim recente na relação entre muriquis e primatólogos – não significa que Ícaro tenha rompido com o andamento de ciência normal. O impasse é iniciado logo em seguida com a proposição em relatar o que foi visto. A controvérsia deixa clara a distância entre o que se observa e o que será relatado. Exploremos agora porque nem tudo que se vê é passível de ser publicado. Ou porque, nesses termos, nem toda relação intersubjetiva consiste em uma relação de “predação científica”. Entendo que, ao observar os macacos-sujeitos na mata em seu gestual do auto-abraço, Ícaro relacionava-se intersubjetivamente com eles, já que sua própria percepção construía-se naquela relação. Todavia, quando tenta dar o próximo passo em direção à purificação do macacosujeito em macaco-objeto – “predando-o” – Ícaro sofre retaliações. Antes de prosseguir é preciso esclarecer que em nenhum momento deste processo questiona-se o estatuto real tanto de sujeitos como de objetos, bem como de suas relações. O

problema

suscitado

por

Solange

está,

portanto,

na

transformação de um evento intersubjetivo em um dado objetivo: a transubstanciação da ação de um macaco-sujeito (o auto-abraço) em um numeral, letra ou símbolo como na citação de casos descritos acima. Inseridas na mesma cultura-relação entre humanos e não-humanos, a ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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passagem deste sujeito a objeto dá-se através de uma mudança de natureza. Trata-se, portanto de um processo de transformação e não de

representação na medida em que os números, letras e símbolos não representam os macacos de outrora, mas constituem entidades distintas. Estas entidades inspiram novas formas de se relacionar e de relatos diferentes daquelas outrora referidas aos macacos em sua condição de sujeitos. A postura reticente de Solange demonstra uma característica necessária deste procedimento de purificação científica: o compromisso com o objeto. Por serem de naturezas diferentes, me parece plausível que os cuidados com o objeto também sejam distintos daqueles tomados em relação aos sujeitos. O auto-abraço seria ainda fruto de percepções intersubjetivas, um evento não-purificado, de uma natureza nãodomesticada, ao contrário de outros padrões de comportamento com os quais os primatólogos já vinham lidando. A controvérsia entre Solange e Ícaro situava-se menos no campo dos desconfortos hierárquicos e mais nos

imperativos

deste

tipo

de

“predação”.

Para

poder

“predar”

cientificamente um muriqui era preciso ter certeza de que sua natureza havia

sido

alterada

transformando-o

em

objeto

(pressuposto

fundamental na relação de alteridade). Dito desta forma, o desfecho parece obedecer a uma simples lógica

retórica.

Entretanto,

são

esses

cuidados

em

assegurar

a

transformação que está em jogo que podem evitar os mal entendidos vinculados às possíveis argumentações representacionalistas. Assim, objetos são outra coisa que não representações de sujeitos, números em artigos científicos são outra coisa que não representações de macacos mas igualmente reais. É precisamente sobre o temor acerca da crítica construtivista, associada à idéia de que o que os cientistas fazem são apenas representações, que tratarei na próxima controvérsia, em me envolvi diretamente.

Sob fogo cruzado Quando vislumbrei pela primeira vez os montes cobertos pelo pasto e entremeados por fragmentos da Mata Atlântica de Minas Gerais, não imaginava que por trás deles fosse cair numa trincheira aberta pelas chamadas “guerras da ciência”. Havia chegado até ali graças à compreensão e uma boa dose de boa vontade daquele que veio a se ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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tornar o meu primeiro interlocutor de campo. Sobre uma relação prévia de amizade e confiança entre antropólogo e nativo erigiam-se as bases da minha pesquisa de campo. Uma situação bastante comum no contexto dos estudos etnográficos em Antropologia da Ciência, ainda que, ocasionalmente, esta harmonia se mostre abalada com a publicação dos resultados da pesquisa do observador. Como não tinha a menor intenção de perder sua amizade - felizmente até hoje duradoura – me dei conta de que deveria relativizar também meu distanciamento, que se não era crítico, tampouco seria neutro. Meu projeto de pesquisa de doutorado, submetido e aprovado em todas as instâncias cabíveis referentes ao trabalho com os cientistas, havia sido rejeitado, e, segundo informações oficiosas, sequer lido por uma das coordenadoras das pesquisas em primatologia no local. Ainda que dispusesse do aval do outro pesquisador-chefe, fiquei bastante preocupado e me questionei acerca da viabilidade de empreender um estudo de caso com somente um dos grupos de primatólogos locais. Atordoado, segui em frente partindo do pressuposto de que aquele impedimento seria bom para pensar a natureza da pesquisa a que me propunha: observar observadores. Após um tempo residindo no alojamento junto aos cientistas, finalmente

conheci

pessoalmente

a

pesquisadora

que

havia

se

posicionado contra o meu trabalho. A conversa, em princípio tensa, entre um

jovem

antropólogo

brasileiro

e

uma

renomada

primatóloga/antropóloga logo revelou nossa distinta formação. Ela advinda de um modelo de graduação four fields, composto por cadeiras de

Antropologia

Cultural,

Lingüística,

Antropologia

Biológica

e

Arqueologia; e eu, formado nas Ciências Sociais, seguindo as trilhas da Antropologia Social. A troca de olhares curiosos durante nossos primeiros dias de contato, mal sabia eu, traria evidências de um belo desfecho para nossa conversa, que naquela altura já estendia-se por temas variados. Em determinado

momento

tornou-se

patente

o

temor

sentido

pela

pesquisadora de que eu atrapalharia o andamento do trabalho, atormentando os que lá estavam com questionários, entrevistas e perguntas. Desfeita essa impressão equivocada acerca da metodologia adotada, fiz uma longa digressão acerca dos benefícios da observação participante e da descrição etnográfica. Porém, ao me afirmar enquanto antropólogo social, deparei-me com um novo questionamento de minha

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colega: afinal, eu pertencia aquela linha de “antropólogos pós-modernos” que se notabilizaram por seus estudos sobre as ciências? O receio da primatóloga fazia menção a dois corpos clânicos, uma fissão da academia norte-americana expunha o debate acalorado entre “antropólogos teoréticos” e “antropólogos pós-modernos”. Mais do que uma disputa no campo intelectual antropológico contemporâneo, o cenário

apontava

para

um embate entre concepções realistas

e

construtivistas. E, no que concerne a primatologia, o nome de Donna Haraway aparecia como o primeiro guerreiro a ser combatido pelos cientistas realistas. A antropóloga feminista que como resultado de sua tese de doutorado publicou Primate Visions (1989), um estudo sobre a construção

social

da

primatologia,

tornou-se

um

dos

principais

expoentes da chamada “vertente pós-moderna”, demonstrando em seu trabalho as coerções sociais e políticas a que estavam submetidas a produção de ciência. Seu olhar externalista sobre a ciência angariou diversos opositores, mesmo no campo dos estudos sociais da ciência, rotulando-a construtivista social. O

temor

agora

tinha

nome

e

sobrenome:

seria

eu

um

“antropólogo pós-moderno construtivista”? Longe dos embates travados desde o final dos anos 80 no hemisfério norte, eu me encontrava naquele momento

na

constrangedora

situação

de

estar

desarmado

e

circunstancialmente rendido por meus nativos em meio a uma guerra que eu não havia escolhido lutar.

Belicosidades O que se chamou de “guerras da ciência” tem sua origem no debate entre o crítico literário F. R. Leavis e o físico C. P. Snow, quando foi cunhada a expressão “duas culturas” para dimensionar a grande distinção entre as ciências e as humanidades (Lee, 2004:86). Esta dicotomização tornava clara a existência de uma primeira batalha que já vinha sendo travada e que preparava o campo para uma guerra ainda maior. A fundação do campo da História e Sociologia da Ciência por Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Stephen Toulmin, orientava-se pela disposição em aplicar o método científico à própria ciência e originou em seu seio intelectual diversas correntes e tendências analíticas. Dentre elas o chamado “programa forte” da Sociologia do conhecimento científico, de David Bloor, o programa empírico de relativismo, de Harry Collins, e a teoria dos atores-rede, idealizada por Bruno Latour, sendo essa última fortemente norteada pela intenção de empreender estudos etnográficos ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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sobre como efetivamente se produz o conhecimento científico, ou seja, a ciência em ação4. No entanto, foi somente nos anos 90, já com os STS (Science and Tecnology Studies) já consolidados, que deflagrou-se as “guerras da ciência”. Tornava-se notório “que alguns cientistas se sentiam ameaçados ao ponto de serem impelidos a vir a público em defesa da racionalidade e da bondade da ciência e a atacar o que consideravam ser uma crítica não-informada, enviesada e sem fundamento” (Trachman & Perrucci, 2000:24) proveniente dos sociólogos das ciências. Os primeiros ataques públicos dirigidos a esta tendência ao construtivismo social e ao relativismo, incorporada por boa parte da Sociologia do conhecimento científico, ocorreram em 1992 com a publicação de duas obras, uma do físico Steven Weinberg (Dreams of a Final Theory: The Search for the

Fundamental Laws of Nature) e a outra do biólogo Lewis Wolpert (The Unnatural Nature of Science: Why Science Does Not Make (Common) Sense). Os dois livros constituíam uma firme defesa do realismo e da universalidade da Ciências contra o que consideravam uma visão “obscurantista” propagada pela construção e pelo relativismo nos estudos sociais da ciência. Contudo, um novo golpe ainda seria aplicado em 1994 através do livro Higher Superstition: The Academic Left and its Quarrels

with Science, escrito em coautoria entre o biólogo Paul Gross e o matemático Norman Levitt. Ali acusava-se uma diversificada gama de correntes ligadas a uma “esquerda acadêmica” como a teoria feminista, a filosofia pós-moderna, a desconstrução e a ecologia profunda (Lee, 2004:88-9). Todas eram taxadas como inimigos hostis à universalidade, metodologia e confiabilidade científica. Com a guerra declarada, algumas iniciativas foram tomadas por instituições e associações, como a Society for Social Studies of Science (4S), no sentido de apaziguar os ânimos de seus partidários e contemporizar

os

termos

dicotômicos

que

a

discussão

assumia:

supostamente um discurso pró e outro anti-ciência. Entretanto, foi justamente neste contexto que as polarizações tornaram-se mais severas, como foi o caso do debate entre Harry Collins e Lewis Wolpert, em 1994, e entre Tom Gieryn e Paul Gross, em 1996. A “reação sociológica” veio por meio de uma edição especial da revista Social Text, que versava sobre as guerras da ciência. Mas o que os

Apesar de não se identificarem com a teoria ator-rede, Knorr Cetina (The Manufacture of Knowledge) e Lynch (Art and Artifact in Laboratory Science) também empenharam-se na execução de 4

etnografias da ciência. ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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responsáveis da revista desconheciam era que o físico Alan Sokal, inspirado pela leitura de Higher Superstition, estava envolvido numa conspiração ´ativamente apoiada´ para enganar a revista e levá-la a

Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity. Nesse artigo, Sokal publicar

o

seu

artigo

´fez uma paródia das convenções de estilo pós-modernas e retirou conclusões politicamente corretas de um subcampo esotérico da ciência´(Segerstrale, 2000b). Sokal expôs o embuste em outro artigo, A

Physicist Experiments with Cultural Studies, que apareceu quase ao mesmo tempo na revista Lingua Franca, e no qual caracterizava o artigo publicado em Social Text como sendo uma combinação de ´disparate´ e ´parvoíce´. Para aqueles que foram enganados por Sokal e os que eles representavam,

tratava-se

de

uma

extrordinária

quebra

da

ética

intelectual e da integridade academica; para os que se identificavam com Sokal, ficava demonstrada com todo o vigor a tese deste acerca do declínio dos ´padrões de rigor na comunidade acadêmica´, e mais especificamente, o laxismo intelectual àqueles que Sokal pretendia atacar.” (Lee, 2004:90-1) Complementado com a publicação de Impostures Intellectuelles (Sokal & Bricmont, 1997), o “caso Sokal”, como ficou conhecido o evento, tornou-se a mais famosa batalha travada neste período de guerra. A disposição em proteger a ´verdadeira´ ciência contra aquilo que acreditavam ser apenas representações ´falsas´ tornava claro que os partidários desta idéia não reconheciam “o direito de outros universitários de fazerem suas próprias interpretações de ciência no âmbito do enquadramento de suas disciplinas” (Segerstrale, 2000a: 21). A questão em jogo agora era o direito dos não-cientistas de participar das instâncias gerais de compreensão pública da ciência.

Enquanto isso... Também no início da década de 1990 ganhava destaque nos círculos acadêmicos antropológicos a controvérsia entre os antropólogos Marshall Sahlins e Gananath Obeyesekere em torno da percepção havaiana sobre a divindade do capitão Cook. Obeyesekere, respaldado pela

condição

conjuntiva

antropólogo-nativo,

acusava

Sahlins

de

perpetuar o mito europeu da irracionalidade indígena. Ainda

que

não

tenha

nenhuma

relação

direta

com

as

animosidades que vinham ocorrendo nas trincheiras da ciência, ambos os debates nos aportam elementos em comum. O forte teor nativista, ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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pressuposto da autoridade discursiva sobre determinado sujeito-objeto as ciências ou os havaianos -, fundamentava a argumentação de Obeyesekere em nome de abordagens racionalistas práticas. Como diz Sahlins, a experiência nativa é invocada “tanto como prática teórica quanto como virtude moral, afirmando levar vantagem, em ambos os casos,

sobre

o

„antropólogo-outsider‟”(2001:19).

Se

no

caso

de

Obeyesekere o exercício relativista conduziria ao entendimento lógico de uma racionalidade prática universal impeditiva de qualquer formulação acerca da deidade de Cook, no caso dos guerreiros da ciência era a racionalidade universalista da ciência que também deveria ser defendida, mas, desta vez, dos próprios questionamentos do relativismo. A resposta de Sahlins em função de como pensam os nativos ao suposto antietnocentrismo de Obeyesekere [tornado um “etnocentrismo simétrico e inverso” (2001: 23)] nos serve também ao caso apresentado pelos cientistas.

Não

como

apegando-se

a

racionalidade,

previamente

combater

representações

uma

formulação

universalistas

associadas

a

uma

como

etnocêntrica realidade

ontologia

e

particular

introjetada. Mais do que relativizar as representações que temos acerca dos havaianos ou da ciência é preciso relacioná-las às suas próprias ontologias. Pois, “o senso de realidade que brota do processo perceptivo não se refere somente a objetos, mas às relações entre os atributos dos objetos e as satisfações do sujeito. A objetividade implica uma certa subjetividade.” (Sahlins, 2001:23)

De volta ao campo (de batalha) Se eu ainda não estava totalmente convencido de que a postura reticente da primatóloga ao trabalho etnográfico se devesse a alguma dessas filiações teóricas apresentadas neste breve histórico belicista, era possível que existisse alguma preocupação no domínio da prática e dos fluxos concernentes à produção científica. *** Após a publicação de algumas etnografias, hoje clássicos do campo da Antropologia da Ciência, como A Vida de Laboratório de Bruno Latour e Steve Woolgar, originalmente publicada em 1979, sugeriu-se que tais obras serviram como um agente redutor de financiamentos para pesquisa dos grupos nelas enfocados. O texto etnográfico aparecia agora como potencializador de cortes de verbas, perda de credibilidade e disseminador de discórdia entre a classe. Tudo isso com base em narrativas onde a construção social revelaria os meandros da produção ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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científica, questionando a sua objetividade e atestando a existência de interesses implícitos na cadeia produtiva. A apreensão de que as etnografias da ciência representavam uma ameaça real aos próprios

nativos fez com que se tornasse cada vez mais difícil a inserção do antropólogo da ciência em campo5. Esta proposição relacionando etnografia à redução de verbas foi desacreditada por explicações conjunturais que situavam num mesmo curto prazo a diminuição do apoio do governo norte-americano aos projetos de big science, e ao corte de financiamentos ao organismo público dedicado à avaliação de tecnologias (Ross, 1996). Além do que, segundo Trachtman & Perrucci (2000), a batalha travada entre cientistas e sociólogos nesta arena “não é seguida pelo público, sendo provável que tenha pouco impacto na compreensão pública, apreciação pública e financiamento público da ciência”. De qualquer forma, por um golpe do destino a antropologia da ciência viu-se enredada em um mito construído contra ela que nem mesmo as elucidações causais mais pragmáticas conseguiram dissipar. *** Tendo isolado as primeiras hipóteses, restava-me o derradeiro argumento contrário a minha presença: o fato de que eu representava um “indivíduo estranho na mata” e que os muriquis não iriam me reconhecer. Logo, esta interferência influiria no comportamento dos animais afetando a coleta de dados dos primatólogos e, conseqüentemente, gerando um viés na minha própria pesquisa. A despeito da retórica circular que me colocava como refém de minha própria pesquisa, o que estaria subliminarmente incutido nesta afirmação? A mensagem fluía no sentido de que eu poderia até ser aceito por meu “objeto antropológico”, mas não passaria pelo crivo de seus “objetos científicos”. Associada a esta idéia residia a crítica sobre a recorrente dificuldade dos antropólogos da ciência em adentrar no argumento científico da mesma forma que o fazem os etnólogos quando tratam de cosmologias indígenas. Quando pisam em campo científico os antropólogos parecem ser acometidos por um sentimento cientificista que os faz distanciar os discursos “oficiais” dos “oficiosos”, uma fragmentação despropositada caso pisassem em solo não-ocidental. De forma semelhante, na ciência em ação este distanciamento discursivo também é pouco produtivo. Era isso que minha colega primatóloga

5

Panorama que persiste até os dias de hoje.

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inadvertidamente me apontava: eu só entraria em campo a partir do momento em que fosse aceito pelos objetos deles e por sua lógica. E para minha surpresa, deixar-me afetar pela lógica nativa (Favret-Saada, 1990) não despertou nenhum tipo de cientificismo em mim, mas sim a fuga dele. Portanto, duas acusações aparentemente paradoxais sobrecaem nos ombros dos sociólogos da ciência: por um lado são questionados por sua falta de neutralidade analítica ao assumir que as ciências são socialmente construídas e politicamente orientadas, e neste sentido são vistos como irracionalistas e mesmo “fetichistas” pelos colegas das “ciências duras”; por outro lado também são caracterizados pelo ceticismo já referido em relação às descobertas das ciências “puras”, quando são entendidos como desconstrucionistas beirando o niilismo. Se a marca por excelência da ciência e da prática científica era um ceticismo organizado, o que dizer dos antropólogos da ciência? São menos cientistas por acreditarem em muitas realidades, ou são menos realistas por não acreditarem nas ciências? Nesse discurso de tipo duplo

vínculo (Bateson, 2000) sobressai a forma como nossos nativos compreendem

nossa

abordagem.

Para

estes

cientistas,

o

nosso

relativismo soa como uma visão cética acerca do que fazem e de como fazem. Ora, se nossa disponibilidade em ir a campo está associada a hipóteses que predispõem certo tipo de desconstrução do discurso nativo ou mesmo de seu aparelhamento ideológico ou político, talvez essa percepção nativa acerca do antropólogo não esteja tão equivocada. Será que nosso distanciamento não oculta uma boa dose de pretensão cientificista?

Ou, como

costuma

dizer Otavio

Velho

(2003), não

estaríamos sendo “mais realistas do que o rei”? Na novela em que me envolvi diretamente, entre os primatólogos, este ponto era claro. A diferença entre um olhar crítico e outro cético era uma linha tênue, às vezes difícil de ser diagnosticada por meus pesquisados.

Percebendo

que

era

esse

o

seu

temor,

que

meu

distanciamento (ceticismo para eles) poderia ser mais tarde confundido como falta de compromisso – a um passo de desconfortos éticos - optei por uma abordagem aproximativa. Ironicamente, eram os próprios cientistas que “solicitavam” que eu fosse menos cientificista, o que me esforcei em atendê-los prontamente. Assim, em concordância com Velho (2005): Eu sugeriria que o reconhecimento do outro não pode ser apenas intelectualista e que se assim o for, corremos o risco de a ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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nossa atividade ser atingida no que ela tem de mais precioso. Até por se deixar aprisionar por teorias ou mesmo epistemologias já prontas, como no caso talvez o seja a redução do “outro” a variantes dentro do círculo de giz do nation-building.

Mesmo fórmulas prontas como a do “estranhamento do familiar” podem ser na prática reduzidas a expressões retóricas referindo-se disfarçada e paradoxalmente ao velho fetiche objetivista. Diz-se um recurso necessário, mas que ao final não nos distingue, pelo contrário, nos distancia de toda benéfica possibilidade de sermos afetados. E como segue Velho (2005:08), Talvez fosse melhor, na direção contrária, falar em alcançar graus crescentes de familiaridade, para isso desconstruindo, inclusive, o superficialmente familiar presente em nossas próprias práticas. Uma espécie de exotização provisória, mas generalizada. Até para que as “antropologias em casa” não se transformem em exercícios narcisistas. Afinal, todos nós, de certa forma vivemos (e cada vez mais, ao que parece) num mundo estranho.

O cético e o ético Felizmente, ao término de minha conversa com a primatóloga, esta aproximação entre antropólogo e nativo parece ter sido bem sucedida. Mostrando-se surpresa diante do que vinha verificando, minha colega dizia que ao contrário do que ela imaginava6, eu “trabalhava como eles”: observando. Partindo do mote de não se deixar levar pelo mesmo mal entendido que acometeu Obeyesekere em relação aos havaianos, “metamorfoseando o ponto de vista dos nativos em folclore europeu, (...) substituindo a cultura havaiana pela nossa racionalidade” (Sahlins, 2001:24), creio que os antropólogos da ciência não devem intencionar agir

da

forma

como

pressupõem

os

guerreiros

da

ciência:

metamorfoseando o ponto de vista dos cientistas em senso comum filosófico, nem tampouco substituindo as culturas científicas pela nossa 6

“Just as some people are timid and others outgoing, muriquis, like many other primates,

exhibit distinct personalities that are difficult to explain with mechanistic analyses of their social environment.” It is the unpredictable individual differences that make nonhuman primates such intriguing subjects, but sorting out these nuances from more general patterns of behavior takes many years.

Unlike cultural anthropologists, who can interview their human subjects about their personal histories, primatologists must rely on observations, which accumulate only as fast as the animals develop. And muriquis, as I have discovered, are very slow to grow up.” (Strier, 1992: 83 – grifo meu) ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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relativista. Se diferentes culturas pressupõem diferentes racionalidades, são a elas que devemos dedicar o nosso esforço de compreensão. É justamente aqui que se situa o equívoco de tradução etnográfica: lidar

com

analogias

sem

considerar

sua

diversidade

ontológica (Viveiros de Castro, 2004). Assim, ao promover uma tradução análoga do conceito de cientificidade extraído de uma “cultura de laboratório” para o contexto da racionalidade sociológica somos passíveis de cair em um ceticismo facilmente entendido como falta de ética pelos nativos ou imprecisão na captação das categorias nativas. Tradicionalmente, oscilando gradações entre o certo e errado, o legítimo e ilegítimo, o legal e ilegal, um marcador neutro e verdadeiro determina o valor ótimo e ético almejado para a relação entre antropólogo e nativo. Entendo que este modelo não contempla boa parte dos estudos sobre produção de conhecimento em que noções absolutas de verdade, realidade e racionalidade são constantemente colocadas a prova. Nestes casos, as precauções que já fazem parte do métier antropológico deveriam estar acompanhadas de uma reelaboração conceitual sobre o significado da ética na pesquisa. Como qualquer representação valorativa com as quais nos deparamos no contexto de nosso trabalho, a ética deveria emergir do caráter localizado e particular de cada relação estabelecida entre antropólogo e nativo. Abandonando de vez a noção de que este é um marcador externo às micro-relações humanas e neutro aos interesses de ambas as partes, estaremos concorrendo para entender a ética como mais um elemento de mediação negociado entre os atores, fruto de uma tradução mútua entre antropólogo e nativo. Agindo desta forma, traremos para dentro das reflexões epistemológicas e metodológicas a participação ativa de nossos principais interlocutores em campo, os nativos, sem excluí-los de nenhuma parte do processo. Assim como com os demais dados etnográficos, a discussão sobre a ética deve emergir da relação aproximativa e simétrica entre antropólogos e pensamentos nativos. Desta forma assumir o ponto de vista do nativo é também nos arriscar ao contágio mais íntimo (Velho, 2005) que nos faça florescer a necessidade de uma ética em comum. Lembrando que isso só é possível quando há a disponibilidade do antropólogo em ser “duplamente aprendiz: dos seus mestres acadêmicos, mas também dos seus mestres no campo” (Velho, 2005), e em função da vocação para a transcendência ontológica que nos permite transitar por vários mundos. No final, o conjunto de todos estes sujeitos e sujeições, ENSAIOS - ESTAR CIENTE E FAZER CIÊNCIA: SOBRE ENCOTROS E TRANSFORMAÇÕES | GUILHERME J. da S. SÁ


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disposições e disponibilidades refletirá numa ética ontologicamente

nativa

e

antropologicamente

participativa

virtualmente

capaz

de

ultrapassar a dicotomia entre construtivismo e realismo, ou de diminuir a distância entre nós e eles. Ambos os casos analisados neste capítulo – o primeiro tratando do auto-abraço e o segundo envolvendo a participação do etnógrafo – chamam atenção para o cuidado com o objeto, condição fundamental para a manutenção da cadeia produtora de ciência. Se na primeira controvérsia esta precaução se dava no momento em que as observações envolvendo sujeitos-primatas deveriam ser objetivadas, e, portanto, “predadas” segundo o processo de purificação científica; no segundo relato este zelo pelo objeto de pesquisa aparece em uma dimensão extra-campo. Seguir primatólogos pouco tem a ver com aprender suas representações de sujeitos e objetos, mas fundamentalmente em perceber as transformações pelas quais passam os primatas durante este processo. Para concluir, retorno à insólita situação narrada em meu diário de campo e transcrita no início deste artigo, e que se mostrou uma metáfora tão inadequada em relação ao acompanhamento que fiz junto aos primatólogos, quanto à observação que estes faziam acerca dos primatas. Mais do que construir a narrativa de uma realidade fora de si, como no caso do locutor da folia momesca, os primatólogos em si transformam as naturezas sem torná-las menos reais. Fui repreendido ao me equivocar confundindo as transformações a que estão sujeitas humanos e não-humanos, com uma simples representação de uns pelos outros – sob a mesma lógica reside a crítica feita a um jovem primatólogo sensível às novas variações de um diálogo intersubjetivo. Ambos reais, porém, afoitos ao purificá-los alegorias.

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VIVEIROS DE CASTRO, E. B. Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. Meeting of the Society for the Anthropology of Lowland South America (SALSA), Miami, January 17-18. 2004.

Sobre o autor Guilherme José da Silva e Sá é doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professor substituto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, e tem como linhas de pesquisa a antropologia da ciência e tecnologia e o estudo das relações entre humanos e não-humanos. guilherme_jose_sa@yahoo.com.br

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Carlos José Saldanha Machado Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

1.0

Introdução Durante muito tempo, a prática da antropologia foi concebida a

partir do olhar exterior que o pesquisador lançava sobre a cultura que ele tentava decodificar, olhar considerado como a garantia de uma certa objetividade, porque se acreditava que indo ao encontro do “Outro” o antropólogo podia se livrar de seus preconceitos e sair de seu próprio universo mental para se abrir aos universos culturais os mais diversos1 (Machado, 1998). Mas hoje a distância existencial e intelectual da antropologia em relação a seus objetos de estudo não é mais tão evidente. Mesmo quando o antropólogo continua a trabalhar em sociedades industrializadas diferentes da sua (Machado, 2003), estas se assemelham, em maior ou menor grau, a sua sociedade de origem, com aspectos cada vez mais conhecidos da sua cultura2. Este é o caso, por exemplo, quando se trabalha com os problemas ambientais que vêem ameaçando ou já comprometeram a qualidade de vida de parcelas expressivas das populações urbanas e rurais (Lopes, 2004). Ao longo das últimas quatro décadas ocorreu uma profusão de eventos os mais diversos relacionados ao meio ambiente, todos voltados ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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para o entendimento e/ou formulação de propostas para a resolução dos problemas associados ao que se convencionou chamar de “crise ambiental”. Nesse sentido, a partir de meados dos anos 60 do Século passado a produção científica sobre o colapso ecológico do planeta se multiplicou, em taxas exponenciais, bem como o número de tratados e protocolos internacionais relacionados ao meio ambiente. Desde então, a população da Terra aumentou em mais de 50 por cento; ocorreram acidentes nucleares espetaculares em Bhopal na Índia e em Chernobil na Ucrânia, uma das repúblicas da ex-União Soviética; os acidentes com petróleo e derivados no mundo e no Brasil ganharam em intensidade, com a poluição de mares, oceanos, baias e rios; os partidos verdes emergiram como uma força eleitoral significativa em vários países; grupos ambientalistas locais se tornaram organizações nacionais e/ou transnacionais adotando estratégias de recrutamento em massa de militantes e simpatizantes; as ações populistas de políticos profissionais contra os ambientalistas floresceram e os problemas ambientais globais que se relacionam com alterações climáticas e à degradação da camada de ozônio ganharam força. Ainda nesse período, tivemos a proliferação de

discursos

ambientalistas;

Encontros,

Reuniões

e

Conferências

Mundiais; Dias Internacionais da Terra, do Oceano e da Água; a conquista de uma posição de destaque, nos meio de comunicação de massa, dos relatórios sobre meio ambiente

produzidos pelas Nações Unidas3; a

atribuição do Prêmio Nobel 2007 de Meio Ambiente a um painel intergovernamental de cientistas e a um Ex-Vice-Presidente ambientalista dos Estados Unidos; a emergência da prática de sabotagem ecológica; desobediência civil; movimentos de justiça ambiental; a construção do conceito de desenvolvimento sustentável; o nascimento do movimento filosófico de defesa de uma ecologia profunda; a intensificação dos movimentos do bem-estar e dos direitos dos animais; movimentos antiglobalização e reformas administrativas de Estados nacionais, tudo isso relacionado, cada vez mais, às transformações da sociedade brasileira, sobretudo quando se observa a evolução da política ambiental praticada pelo Estado e pela Sociedade Civil. Desde

então,

o

conceito

de

meio

ambiente

vem

sendo

construído4 através de uma polifonia de vozes, em escala planetária, inaugurando de forma intensa uma perspectiva crítica sobre as fronteiras criadas para separar o mundo humano do mundo natural. Sua adoção como preocupação científica, política, jurídica, social, e até religiosa, é o produto de um longo debate internacional, com traduções nacionais variadas, refletindo um momento particular da relação do Homem ocidental com a natureza, com a economia e com os outros Homens. ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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Vemos a instauração gradativa de uma visão processual de coevolução entre sociedade e meio ambiente, visão que recupera a trama de relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que desempenham um papel pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico. Observa-se também a emergência de novas modalidades de estruturação da esfera pública, ultrapassando seus limites estritamente estatais para incorporar um conjunto amplo e diversificado de atores sociais, os quais expressam a crescente complexidade das sociedades contemporâneas. O objetivo deste capítulo é analisar a dinâmica do processo descrito anteriormente de forma esquemática, tomando com objeto de pesquisa a gestão dos recursos hídricos, situada geograficamente no Brasil ao longo dos últimos dez anos. A escolha deste objeto e do período referido de análise, deve-se ao fato do autor desse texto ter pesquisado e se envolvido profissionalmente nas ações de implementação da Política Nacional de Recursos Hidricos (Lei 9.433/97) no Estado do Rio de Janeiro5. O plano de estruturação do texto está dividido em três seções que consideram a interseção entre o global e o local numa perspectiva institucional.

Inicialmente,

apresento

uma

descrição

suscinta

das

mudanças conceituais operadas no cenário internacional em relação à administração pública do meio ambiente e sua incorporação no arcabouço institucional-legal tendo a noção de “gestão integrada” como conceito-chave. Ainda nesta seção, aprofundo minhas análises sobre as mudanças conceituais sugerindo uma forma de aprimoramento através da introdução do conceito de “gestão integrada com negociação sociotécnica”. Como decorrência das análises empreendidas nesta seção, passo a destacar, em seguida, um conjunto de conceitos e perspectivas teóricas

interligadas

que

se

tornaram

os referenciais

comuns a

praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre Estado e Sociedade no mundo contemporâneo. São fundamentos que sustentam as propostas de ampliação da participação dos diversos segmentos sociais na gestão das políticas públicas. Finalmente, diante de um fenômeno que é ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto da vida social de uma dada sociedade, enfatizo, à guisa de conclusão, a necessidade de contextualização e de adoção de um olhar globalizante ao se estudar, à luz de uma leitura sócio-antropológica, objetos complexos com o da gestão dos recursos hídricos.

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2.0 Usos humanos dos recursos naturais com gestão integrada As mudanças conceituais operadas ou incorporadas pela nova legislação brasileira de gestão das águas expressam as grandes mudanças de atitudes frente à regulamentação e à administração dos usos humanos dos recursos naturais que vêm ocorrendo na história contemporânea dos países ocidentais. A preocupação com o que passou a ser denominado meio ambiente é a manifestação de novas práticas e relações do homem com a natureza (Diegues, 2000; Machado et ali. 2003; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990). A mudança na forma de encarar os efeitos das atividades humanas sobre o meio natural é produto do fim gradual da crença na capacidade infinita do meio ambiente em suportá-las. Esta mudança passa a creditar às políticas públicas - entendidas como o conjunto de orientações e ações de um governo com vistas ao alcance de determinados objetivos, com interferência na atividade econômica, através de instrumentos de controle econômico - a expectativa de reversão do atual quadro de degradação dos recursos naturais. Não se trata mais apenas de estabelecer padrões para emissões de poluentes ou de fiscalizar o cumprimento de normas técnicas e punir aqueles que, infringindo-as, poluem o meio ambiente, embora não se possa prescindir dessas medidas. Aos governos, em especial, mas também às sociedades, de forma ampla, é atribuída a responsabilidade pela promoção de uma atitude nova frente aos recursos naturais e problemas ambientais. Doravante, as soluções propostas para a resolução dos problemas ambientais passaram a ser colocadas não somente em termos de proteção, mas também, e cada vez mais, em termos de gestão para que as relações dos homens com a natureza possam ser estabelecidas de tal modo que os recursos oferecidos por ela permaneçam renováveis (United Nations, 2006; Ostron, 1990; Paehlker e Torgerson, 1990). A gestão passou a ser o operador conceitual através do qual se confrontam os objetivos de desenvolvimento econômico e de organização territorial, bem como aqueles relacionados à conservação da natureza ou à manutenção ou recuperação da qualidade ambiental. Essa noção de gestão passou a ser aplicada de forma ampla e por vezes generalizada: gestão ambiental integrada, gestão dos recursos naturais, gestão do equilíbrio natural, gestão do espaço, gestão dos recursos genéticos, gestão integrada dos recursos naturais, gestão integrada das águas,etc. Os

poderes

públicos

consagraram

essa

evolução

da

gestão

numerosos textos legislativos a partir dos anos 80.

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em


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Desde

então,

emergiu

internacionalmente

uma

perspectiva

teórica sobre a necessidade de se praticar a gestão dos recursos naturais, particularmente da água doce, numa perspectiva integrada (Dzurik, 2002; Giupponi et ali. 2006; Heathcote, 1998; Kemper et ali. 2007; Pompeu, 2006; Sconcini-Sessa et ali. 2007). A noção de gestão integrada passou a assumir várias dimensões, envolvendo conotações diversas que passaram a contar com o apoio gradual e consensual de cientistas, administradores públicos, industriais e associações técnico-científicas. Trata-se de uma integração, primeiro, no sentido de abranger os processos de transportes de massa de água que têm lugar na atmosfera, em terra e nos oceanos, ou seja, o ciclo hidrológico; segundo, quanto aos usos múltiplas de um curso d‟água, de um reservatório artificial ou natural, de um lago, de uma lagoa ou de um aqüífero, ou seja, de um corpo hídrico; terceiro, no que diz respeito ao inter-relacionamento dos corpos hídricos com os demais elementos dos mosaicos de ecossistemas (solo, fauna e flora); quarto, em termos de co-participação entre gestores, usuários e populações locais no planejamento e na administração dos recursos hídricos; e finalmente, em relação aos anseios da sociedade de desenvolvimento socioeconômico com preservação ambiental, na perspectiva de um desenvolvimento sustentável. Em função da constatação empírica de que os usos da água envolvem por vezes uma interação conflituosa entre um conjunto significativo de interesses sociais diversos, a Lei 9.433/97, mais conhecida como a Lei das Águas, determina, portanto, que sua gestão

deve contemplar seu uso múltiplo, não favorecendo determinada atividade ou determinado grupo social, devendo por isso ser integrada, descentralizada e contar com ampla participação social, de forma a incorporar representantes do poder público, dos usuários (aqueles que fazem uso econômico da água) e das diversas comunidades, através de um ente colegiado, o Comitê de Bacia Hidrográfica, cujo objetivo seria garantir a pluralidade de interesses na definição final do destino a ser dado aos recursos hídricos no âmbito de cada bacia hidrográfica, possibilitar a mais ampla fiscalização das ações desde sua definição, a elaboração de projetos e o controle da eficácia e da destinação dos recursos, assim como a universalização das informações existentes e produzidas sobre recursos hídricos.

2.1 Gestão integrada dos recursos hídricos com negociação sociotécnica

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A Lei das Águas consignou os vários sentidos da noção de gestão integrada descritos anteriormente nos oito incisos do art. 7o, que estabelece o conteúdo mínimo do plano diretor, cujo objetivo é fundamentar e orientar a implementação da política nacional e estadual de recursos hídricos e seu gerenciamento: o Plano de Recursos Hídricos. O conteúdo mínimo desse Plano é constituído por: I - diagnóstico da situação atual dos recursos hídricos; II - análise de alternativas de crescimento demográfico, de evolução de atividades produtivas e de modificações dos padrões de ocupação do solo; III - balanço entre disponibilidades

e

demandas

futuras

dos

recursos

hídricos,

em

quantidade e qualidade, com identificação de conflitos potenciais; IV metas de racionalização de uso, aumento da quantidade e melhoria da qualidade dos recursos hídricos disponíveis; V - medidas a serem tomadas, programas a serem desenvolvidos e projetos a serem implantados, para o atendimento das metas previstas; VI - prioridades para outorga de direitos de uso de recursos hídricos; VII - diretrizes e critérios para a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; VIII - propostas para a criação de áreas sujeitas a restrição de uso, com vistas à proteção dos

recursos

características

hídricos. do

Contudo,

conceito

de

convém

gestão

assinalar

integrada

incorporadas ao Código de Águas de 1934 (Decreto

que

essas

haviam

sido

no

24.643, de

10.7.34) de forma esparsa, mas tendo em vista o predomínio do setor de geração de energia hidroelétrica, elas levaram mais de meio século para serem regulamentadas nos termos da lei 9.433/97. O instrumental para promover a gestão integrada dos recursos hídricos, nos moldes descritos anteriormente, deixa de ser tão-somente técnico-científico, pela simples razão de se tratar de um recurso repleto de interesses políticos, econômicos e culturais no seu uso e apropriação. Cabe desvelar esses interesses para que a democracia participativa ou direta seja um componente da administração da coisa pública (res

publica). Isto significa que, para a efetiva sustentabilidade políticoinstitucional da gestão, o estilo de ação orientada pela imposição de uma ordem técnico-científica ao território, mais conhecido como tecnocrático, deve ser substituído pelo estilo de ação orientada pela negociação

sociotécnica6, pois quem vive e molda o território de uma bacia hidrográfica, tem acesso a este, ao direito de sustento e abrigo, é a comunidade, a mesma que tem de arcar com as conseqüências diretas de suas ações. Além do mais, como nos tem ensinado as Ciência Sociais em geral, a Antropologia e a Sociologia, em particular, toda e qualquer decisão tomada com base em critérios técnicos serve a algum propósito político, quer se tenha ou não consciência disso (Hackett et ali. 2008; ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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Machado, 1998; Wyer, 2000). Tal característica deve-se ao fato de que todo e qualquer técnico, na condição de pessoa humana, traz dentro de si os valores políticos, éticos, morais, hábitos profissionais da sociedade e da cultura da qual faz parte, valores esses que norteiam suas ações individuais. Uma pessoa habitua-se a tal ponto com certas identidades que, mesmo quando sua situação social muda, ela encontra dificuldade para acompanhar as novas exigências. A prática efetiva de uma gestão pública colegiada, integrada, orientada pela lógica da negociação sociotécnica, significa agir, visando ao ajuste de interesses entre as propostas resultantes do diagnóstico técnico-científico e das legítimas aspirações e conhecimentos da população que habita o território de uma bacia hidrográfica, ou seja, entre os diversos atores da dinâmica territorial, envolvidos em sua organização (os agricultores, os industriais, as coletividades locais etc.) e os entes do aparelho de Estado. No entanto, como é o caso nas mais simples situações de emergência, não existe obrigatoriamente entre os diversos atores a unanimidade inicial quanto às medidas a serem tomadas. Existe sim, uma tendência natural, que consiste em propor opções, cujo ônus recairá sobre os outros. Cada um quer que medidas sejam tomadas, mas tenta transferir para os outros, os seus custos. Eis porque as medidas devem ser negociadas, através de um ente colegiado de base do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, como o Comitê de Bacia Hidrográfica, de tal maneira que se chegue a decisões que resultem em medidas úteis, bem como a uma divisão eqüitativa dos esforços e das responsabilidades. Comparada à simples possibilidade de impor, a negociação sociotécnica é, de modo geral, um procedimento dispendioso do ponto de vista político, financeiro, emocional e incerto. É um tipo de interação, onde as partes procuram resolver dificuldades, através da obtenção de um acordo. Portanto, obviamente, envolve riscos. Todos o admitem. Não se tem a priori a segurança de que os resultados almejados se situem na perfeita interseção de todos os interesses. Ela é, pois, um jogo, na medida em que os parceiros não são iguais. Uns possuem mais recursos econômicos, conhecimentos e habilidades técnico-científicas do que outros. Os participantes realizam manobras; utilizam astúcias; reorganizam seus meios para chegar a conduzir os outros a tomar decisões através de um conjunto de movimentos. Esse tipo de recurso tem a vantagem de ajustar melhor as partes entre si, de ser capaz de aprofundar laços; de produzir novas situações e oportunidades, através de um processo de barganha entre argumentos de troca, de firmar, em suma, um pacto.

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Por se tratar, contudo, como já dissemos, de um exercício político arriscado, caso o que tenha sido acordado numa negociação sociotécnica, bem como o que foi estabelecido em lei não sejam cumpridos por uma das partes, sempre haverá, inclusive com garantia constitucional, o recurso à apreciação do Poder Judiciário, havendo para tanto algumas modalidades de ações judiciais, dirigidas cada uma delas a situações específicas, que permitam o exercício da cidadania ambiental. Sob a designação de cidadania ambiental estão compreendidos o conjunto de direitos e garantias das responsabilidades conferidas ou atribuídas, tanto ao poder público, como à sociedade, através de seus órgãos ou representantes; dos próprios cidadãos organizados ou não, capazes de perseguir seus direitos ambientais, fazê-los valer, assim entendidos, todos aqueles inscritos e garantidos pelos diversos diplomas normativos, desde a constituição, leis, portarias, resoluções e outros. O ordenamento constitucional prescreveu como mecanismos capazes de assegurar à cidadania, a defesa judicial do meio ambiente as seguintes ações judiciais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo; a ação civil pública; a ação popular constitucional; o mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção, além, é claro, das ações de procedimento comum e das medidas ou ações cautelares respectivas. É, dessa forma, importante o papel reservado ao Poder Judiciário na tutela ambiental, pois é através dele que se exercerão os direitos da cidadania, uma vez que a ele serão submetidas as ameaças e lesões de direito perpetradas. Mesmo assim, como alertam os especialistas em Direito Ambiental (Aguiar, 1996), o ator que decidir fazer uso dos instrumentos jurisdicionais deve avaliar cautelosamente, a sua escolha, a fim de que o resultado esperado tenha um mínimo de possibilidade eficaz. A complexidade das causas, envolvendo aspectos científicos, técnicos, de pesquisa de campo e mesmo de laboratórios pode tornar os processos judiciais lentos, no caso de isenção de custas, ou caros, no caso da necessidade de uma pronta resposta.

2.2 Participação, história do indivíduo, da família e da comunidade Antes de prosseguirmos, convém atentar para o fato de que a lógica da gestão territorial participativa e descentralizada contida na Lei de Águas, não pode esconder o fato de que o termo „participação‟ acomoda-se a diferentes interpretações, já que se pode participar ou tomar parte em alguma coisa, de formas diferentes, que podem variar da condição de simples espectador, mais ou menos marginal, à de protagonista de destaque. Assim, a pretendida e esperada participação da ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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sociedade, dos usuários e das comunidades em geral, estão formalmente incluída na Lei, garantida por meio de sua representação eqüitativa nos Comitês e demais organismos de bacia hidrográfica, assim como nos Conselhos estaduais e, nacional. Mas a participação efetiva e material da sociedade também deve ser garantida através de outros mecanismos, que valorizem as histórias particulares

de

cada

localidade

e

as

diversas

contribuições

das

populações envolvidas, incorporando-as aos planos de recurso hídricos e ao enquadramento dos cursos de água. Não se trata apenas de apresentar à população um plano diretor de bacia, elaborado no espaço de trabalho fechado do corpo técnico-científico do Poder Público, objetivando validá-lo, mas de garantir a efetiva participação da população local na consolidação e materialização de um pacto através da prática política da gestão colegiada e integrada com negociação sociotécnica. A base empírica do conhecimento local da população sobre os corpos d‟água de uma bacia hidrográfica deve ser valorizada, pois possui um valor socioambiental inigualável. Além disso, os cursos d‟água fazem parte da história do indivíduo, da família e da comunidade que integram essa população, ganhando sentidos simbólicos que ocupam uma parte importante de seu patrimônio cultural. A defesa, portanto, da participação não envolve apenas princípio democrático de sentido humanista, filosófico (quando não degenera para o demagógico ou puramente retórico), mas é também parte importante na construção de uma nova forma de encarar a gestão de recursos públicos caros e escassos. Envolve o pressuposto de que uma pessoa envolvida na tomada de uma decisão sentir-se-á comprometida e procurará vê-la cumprida, será agente da implantação e não paciente. De fato, a aceitação é maior quando existe participação em todo o processo de gestão de um projeto ou de uma política, e quando o participante faz sua própria escolha. Nos Comitês de Bacias Hidrográficas, a população envolvida é gestora e deve poder reconhecer como propriamente suas as decisões tomadas, que resultam num plano diretor ou no enquadramento de um rio, ou pelo menos deve estar convicta de que elas são a expressão de um consenso possível, resultando de uma negociação sociotécnica em que suas aspirações foram consideradas.

3.0 As novas modalidades de estruturação da esfera pública e a incorporação de atores sociais diversos

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Na medida em que se tornaram os referenciais comuns a praticamente todas as iniciativas de transformação das relações entre Estado e Sociedade no mundo contemporâneo, importa aqui destacar um certo conjunto interligado de conceitos e perspectivas que sustentam as propostas de ampliação da participação dos diversos segmentos sociais na gestão das políticas públicas em geral, e de recursos hídricos em particular. Como veremos a seguir, esse conjunto aponta para novas modalidades de estruturação da esfera pública, ultrapassando seus limites estritamente estatais para incorporar um conjunto amplo e diverso de atores sociais, os quais expressam a crescente complexidade das sociedades contemporâneas (Arato e Cohen, 1992; Dahl, Shapiro e Cheibub, 2003; Habermas, 1998, 2000; Smismans, 2006). O primeiro elemento a ser considerado refere-se, portanto, à centralidade que a democracia assume como condição para o êxito da implementação de políticas públicas mais participativas. Com efeito, ela pressupõe que os diversos atores sociais tenham a possibilidade de participar efetivamente do processo de identificação dos problemas e de formulação das políticas públicas pertinentes à sua resolução. Para isso, é fundamental a existência de condições institucionais que viabilizem esta participação, sem exclusão a priori de nenhum segmento social. Portanto, é preciso que o ambiente social, político e institucional em que estes atores se encontram para exercer sua participação tenha um caráter democrático,

que

reconheça

e

respeite

a

legitimidade

de

suas

intervenções, interesses e perspectivas particulares. Neste sentido, acompanhando transformações recentes e profundas na lógica de estruturação da esfera pública em grande parte das sociedades contemporâneas, a noção de democracia também sofreu algumas mudanças importantes. Uma das mais significativas foi que a concepção tradicional da democracia liberal, de cunho essencialmente representativo - isto é, voltada para a criação das condições para garantir a legitimidade dos representantes eleitos através dos partidos políticos e das decisões que tomam nos diversos níveis em nome dos seus eleitores -, evoluiu para uma concepção de democracia participativa, ou democracia direta, na qual a participação direta dos diferentes atores sociais em decisões que afetam a vida dos grupos e das comunidades, por fora das instituições representativas tradicionais (partidos políticos, parlamentos em seus diversos níveis), mas não necessariamente contra elas, é a principal característica (Dahl, Shapiro e Cheibub, 2003; Gastil e Levine, 2005; Gutmann e Thompson, 1998; Munch, 2000; Smismans, 2006).

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Neste

contexto,

as

decisões

não

são

mais

tomadas

exclusivamente pelos representantes formalmente eleitos e, portanto, com

legitimidade

institucional

para

fazê-lo,

mas

também

são

compartilhadas com um conjunto cada vez mais diversificado de entidades e organizações da sociedade civil, as quais têm um tipo de representatividade diferenciada em relação àquela que caracteriza a formalidade democrática. Nessa nova perspectiva, a esfera da ação social representada pela sociedade civil, base da democracia participativa, assume um lugar cada vez mais relevante na dinâmica da esfera pública e na construção, gestão, implementação e avaliação dos diversos temas da agenda pública. A base desta transformação do sentido e da prática da democracia encontra-se não somente no âmbito das relações entre o Estado e o sistema político - relações estas normalmente mais resistentes a mudanças substantivas, em função do conjunto de interesses políticos envolvidos

-, mas, em especial, nas mudanças

de atitudes no

comportamento dos atores sociais. Se tomarmos este último critério (a relação do Estado com o sistema político) como parâmetro, a democracia é vista apenas como regime político, como estrutura institucional de relação entre as elites e o Estado. Pensar a democracia como nova relação entre Estado e Sociedade, a partir da perspectiva societária, exigirá, enfrentar o desafio de buscar um desenho institucional adequado. Tratase, portanto, não somente de mudanças que ocorreram nos elementos formais da institucionalidade democrática – necessários, porém, com freqüência, insuficientes – mas também, essencialmente, nos fatores substantivos que definem as relações entre o conjunto de atores sociais e o aparato de poder representado pelo Estado. O segundo elemento, diretamente relacionado ao anterior, é o destaque dado ao exercício permanente da cidadania como fator essencial para a conformação da nova esfera pública no mundo contemporâneo (Habermas, 1998). Ainda que na tradição do pensamento político e na prática política das diversas sociedades ocidentais, a cidadania tenha sido um objeto de análise privilegiado e tema de freqüentes reivindicações, é inegável que, em especial a partir dos anos oitenta do Século XX, ela passou a ocupar um lugar absolutamente central na dinâmica das relações Estado/Sociedade, coincidindo com a onda de redemocratização que marcou o mundo ocidental, com destaque para a América Latina e alguns países da Europa. Dessa forma, a cidadania, entendida como o exercício concreto de um conjunto definido de direitos diversos, dentre eles o ambiental, pressupõe, para que seja plena, o concurso de alguns fatores capazes de ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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garantir o usufruto destes direitos. Ou seja, é fundamental que os diferentes atores sociais, em especial aqueles organizados, encontrem condições propícias para sua atuação com vistas à resolução de problemas e à verbalização de seus interesses particulares. Neste sentido, embora muito importante, não basta que estes atores tenham, entre outros, o direito formal de se organizar, de expressar livremente suas opiniões e interesses, de participar das decisões, se, por exemplo, os diversos órgãos públicos não disponibilizam informações adequadas para estimular e permitir a participação, ou se, mesmo participando, suas contribuições não são levadas em conta, seus interesses não são contemplados, e se suas

perspectivas não

são

consideradas na

formulação final das políticas públicas implementadas pelo Estado. A cidadania não se exerce no vazio, ou abstratamente; é fundamental que existam condições adequadas para que ela se dê e para que produza os frutos esperados pelos diferentes segmentos sociais através do que chamamos

anteriormente

de

gestão

integrada

com

negociação

sociotécnica. Uma das principais condições exigidas para o pleno exercício da cidadania é a instauração de um Estado de Direito, fundado no reconhecimento formal dos direitos dos cidadãos, na implementação de estruturas institucionais capazes de fazer valer de forma efetiva estes direitos, na existência da liberdade de imprensa, e na autonomia dos poderes, de maneira a garantir a autonomia do indivíduo frente ao Estado e frente aos demais membros da sociedade na luta por fazer prevalecer seus direitos. A contribuição do Direito como componente fundamental das transformações

mencionadas

anteriormente

é,

portanto,

decisiva.

Compreende-se, dessa forma, o esforço feito por um sem número de movimentos sociais, de organizações não-governamentais e de outros atores da sociedade civil, no sentido de incorporar ao texto da Lei um conjunto de direitos que visam dar caráter legal às suas reivindicações, obrigando, dessa maneira, tanto o Poder Público quanto os demais atores sociais a respeitá-los e a pautar suas próprias ações por eles (Gastil e Levine, 2005; Munch, 2000; Smismans, 2006). Nesse sentido, o disposto no artigo 225 da Constituição Federal do Brasil de 1988 e seus parágrafos trazem uma série de diretivas e de pautas fundamentais defendidas pelo movimento ambientalista para nortear a conduta de indivíduos, grupos e associações, tendo em vista assegurar a sadia qualidade de vida, a preservação, a conservação e a melhoria do meio ambiente. Com isso, tanto a presente quanto as futuras gerações passam ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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a ter direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. O exercício da cidadania se beneficia, por outro lado, da importância que o plano local vem assumindo para a condução dos processos de participação social (Smismans, 2006; United Nations, 2006; Ostron, 1990; Young, 2002). É, efetivamente, no nível local onde se sentem os efeitos das inumeráveis decisões econômicas, políticas e sociais que incidem sobre a vida da sociedade e seus membros, afetando a sua qualidade de vida, o meio ambiente, e a distribuição dos benefícios do desenvolvimento entre os distintos grupos sociais. Frente a isso, as comunidades são particularmente estimuladas a desenvolver planos de ação que tenham enraizamento na própria localidade, como forma de melhor

enfrentar

e

resolver

os

problemas

que

se

apresentam

concretamente para cada uma delas. Ainda que ações que possam congregar outros atores sociais possam e devam ser levadas a cabo tanto em nível estadual quanto em nível federal, é no plano local que estes problemas podem ser efetivamente superados. Por esta razão, a mobilização social no contexto da ampliação dos direitos de cidadania e de radicalização da democracia, tem no plano local um de seus principais pontos de partida e uma referencia de importância central. A valorização do plano local, por outro lado, implica também o resgate de formas de participação social que se estruturam em torno de valores

e

mecanismos

de

sociabilidade, que

contribuem

para a

constituição de um ethos comunitário, distinto daqueles vínculos que ligam o indivíduo à sociedade mais ampla, via de regra uma referência abstrata para seus membros. Esta ênfase no local serve, portanto, de estímulo para que o indivíduo e as comunidades, ao mesmo tempo que desenvolvem seu capital social, , isto é, as características de organização social como confiança, normas e sistemas que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, potencializando sua capacidade de intervir de forma qualificada no processo de planejamento e gestão de políticas públicas, se aproximem de maneira mais permanente do poder público, afiançando sua capacidade de exercer controle sobre suas ações e ampliando sua responsabilidade sobre o êxito ou o fracasso destas ações. Outro fator determinante do exercício da cidadania é a existência de uma esfera pública centrada não mais em torno do aparato estatal e da institucionalidade nele implicada, mas sim pautada na incorporação e no diálogo com um leque cada vez mais diversificado de atores sociais, articulando interesses e perspectivas distintos e conflitantes, porém considerados legítimos no contexto da crescente complexificação das ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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sociedades contemporâneas. Por esfera pública, compreende-se aqui o espaço do debate público, do confronto entre os diferentes atores sociais, sejam eles vinculados às esferas do Estado, do Mercado ou da Sociedade Civil (Habermas, 1998). Trata-se, portanto, da formação de uma esfera pública não-estatal, que ultrapassa o âmbito da ação no qual se movem o Estado e seus representantes, tornando-se, por essa razão, o espaço adequado para as ações dos diversos componentes da sociedade civil, com certeza seu componente mais destacado nos tempos atuais.

4.0 À guisa de conclusão Vimos anteriormente, de forma esquemática, que as políticas públicas em discussão no Brasil têm se encaminhado para a implantação de instituições que contam com a participação da sociedade, pois se encontra superado o modelo anteriormente utilizado que concentrava responsabilidades unicamente nas mãos do Estado. Daí a necessidade de mudanças que observamos na implantação de políticas específicas como a de recursos hídricos. Contudo, para instrumentalizar as políticas públicas voltadas para a gestão das águas, é necessário entendê-la em toda sua diversidade, dinâmica e expressão. É justamente neste aspecto que o papel do antropólogo se torna fundamental, posto que a antropologia esta permanentemente desconstruindo a realidade para remontá-la sob outra perspectiva. A realidade empírica é algo complexo e polissêmico e, portanto, difícil de ser encapsulada em fórmulas prontas. Na maior parte do tempo estamos diante de fenômenos ou objetos complexos de pesquisa que são ao mesmo tempo a expressão e síntese do conjunto da vida social de nossa sociedade. A gestão dos recursos hídricos é um desses objetos. A antropologia, ao menos a que pratico, é uma ciência engajada no resgate da cidadania brasileira e na melhoria da qualidade de vida das coletividades humanas, possuindo instrumentos teóricos e metodológicos que possibilitam a análise holística de objetos complexos, isto é, sintetizando e integrando as diversas dimensões que constituem a vida humana e suas manifestações materiais, intelectuais, históricas e ambientais. Através de uma observação das práticas, das ações e das inter-relações dos diversos atores da dinâmica territorial durante o processo de implementação dos organismos de bacia, pode-se, por exemplo, identificar a discordância na aplicação dos princípios políticos de descentralização e participação, e as peculiaridades da formação ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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social, cultural e político-administrativa presentes nos municípios brasileiros. Nestes, questões como clientelismo, falta de tradição associativa e carência de profissionais qualificados nas pequenas localidades, interferem na prática política da gestão integrada dos recursos hídricos. Contudo, se o objetivo da antropologia é a reconstrução da complexidade de realidades empíricas, como a da gestão dos recursos hídricos, é preciso ser prudente e lembrar que os processos de mudanças sociais como aqueles introduzidos pela nova política de recursos hídricos, isto é, as águas destinadas a usos determinados, ocorrem de forma extremamente variada e, embora reflitam grandes questões globais com forte penetração nas sociedades, são localmente apropriados e recriados com nuanças infindáveis. Por mais que haja manifestações públicas de consenso entre ONGs, Movimentos Sociais e órgãos oficiais sobre as virtudes dos princípios e instrumentos contemplados na nova lei de recursos hídricos do Brasil, sua aplicação em contextos sóciogeográficos específicos gera uma dinâmica própria onde princípios da lei e instrumentos de gestão são apropriados de diferentes maneiras, desencadeando situações novas ou potencialmente indutoras de conflitos e mudanças.

NOTAS 1. Pode-se afirmar que até a publicação de The Interpretation of

Culture de Clifford Geertz, em 1973, o conhecimento antropológico era concebido como reprodução do mundo observado, descrevendo a realidade sócio-cultural enquanto tal. Com a emergência da corrente interpretativa instaura-se o cepticismo quanto à possibilidade de descrever a realidade enquanto tal. Qualquer descrição sócio-cultural, ainda que proveniente da observação participante, não é senão uma representação/interpretação da realidade, enquadrada pelo ponto de vista do antropólogo e pela tradição teórica em que ele se insere. 2. Em função desta constatação, Tim Ingold (2000) ao buscar o entendimento de como os seres humanos percebem o seu meio, nos oferece uma abordagem persuasiva argumentando que o que estamos acostumados a chamar de variação cultural consiste, em primeiro lugar, de variações de habilidade. Nem inata nem adquirida, as habilidades são cultivadas, incorporadas no organismo humano através de prática e de treinamento num dado meio ambiente; são tão biológicos como culturais. E para abordar a geração de habilidades temos, segundo Ingold, de ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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entender a dinâmica do seu desenvolvimento, o que requer uma abordagem ecológica que situa os praticantes no contexto de um compromisso ativo com os constituintes de seus meios ambiente. 3. No maior relatório ambiental já realizado pelas Nações Unidas nos últimos 20 anos, quando a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento publicou o estudo "Nosso Futuro Comum", também conhecido como Relatório Brundtland, são analisados o uso dos recursos naturais em 572 páginas intituladas

"Perspectivas do Meio Ambiente

Mundial". Também chamado de 4º Panorama Global do Meio Ambiente (GEO-4, na sigla em inglês), o documento divulgado em 25 outubro de 2007 foi elaborado por 390 especialistas de todo o mundo, avaliando-se os estados atuais da atmosfera, da terra, da água e da biodiversidade em nível global. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) afirma que as maiores ameaças ao planeta, como as mudanças climáticas, a taxa de extinção das espécies e o desafio de alimentar a crescente população, estão entre os muitos que permanecem sem solução e colocam a humanidade em risco. Ele reconhece o progresso mundial em solucionar alguns problemas mais diretos, já que o tema de meio ambiente está agora muito mais próximo da política em todo lugar. Porém, apesar dos avanços, ainda restam questões difíceis de serem tratadas, os chamados problemas “persistentes”. Neste caso, o GEO-4 afirma: “não há nenhuma grande questão levantada em Nosso Futuro Comum cujas tendências previstas sejam favoráveis”. O fracasso em resolver esses problemas persistentes, afirma o PNUMA, pode causar um retrocesso em todos os avanços alcançados até agora em questões mais simples, além de ameaçar a sobrevivência da humanidade. Mas insiste: “o objetivo não é apresentar um cenário trágico e sombrio, mas um chamado urgente à ação”. Quanto às mudanças climáticas, o relatório afirma que o tema é de urgência tal que grandes cortes na emissão de gases do efeito estufa se fazem necessários até a metade do século. As negociações para tal devem se iniciar em dezembro, com vistas a um tratado que substituirá o Protocolo de Kioto, acordo internacional sobre clima que obriga os países a controlar as emissões antropogênicas de gases do efeito estufa. Embora ele exima todos os países em desenvolvimento do compromisso em reduzir tais emissões, há uma pressão crescente para que países em rápida industrialização, hoje emissores susbstanciais, aceitem promover a redução de suas próprias emissões. O GEO-4 também alerta para o fato de que vivemos além dos nossos recursos. A população mundial hoje é tão numerosa que “a quantidade de recursos necessários para mantê-la excede os recursos disponíveis... a „pegada‟ da humanidade, ou seja, sua demanda ENSAIOS - UMA LEITURA SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DE UM OBJETO COMPLEXO | CARLOS J. S. MACHADO


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ambiental, é de 21,9 hectares por pessoa, enquanto a capacidade biológica da Terra é, em média, somente 15,7 hectares por pessoa...”. O relatório afirma que o bem-estar de bilhões de pessoas no mundo em desenvolvimento está ameaçado pelo fracasso em remediar problemas relativamente simples que foram solucionados com sucesso em outros lugares. O GEO-4 recorda a declaração da Comissão Brundtland de que o mundo não enfrenta crises separadas – as crises ambiental, de energia e de desenvolvimento são uma só. Essa crise envolve não apenas mudanças climáticas e fome, mas outros problemas gerados por números humanos crescentes, o aumento do consumo dos ricos e o desespero dos pobres. São exemplos: diminuição dos cardumes para pesca; perda de terra fértil pela degradação; pressão insustentável sobre os recursos naturais; redução da quantidade de água doce disponível para humanos e outras espécies; e risco de que o dano ambiental atinja uma situação irreversível e desconhecida. O GEO-4 afirma que as mudanças climáticas são uma “prioridade global” que requer vontade política e liderança. Mesmo assim, ele identifica “uma notável falta de urgência” e uma resposta global “inconseqüentemente inadequada”. 4. Sobre esse processo de construção ver, por exemplo, numa perpectiva antropológica, Crumley (2001), Haenn e Wilk (2006), Ingold (2000), Lopes (2004), Milton (1993) e o número temático sobre antropologia e meio ambiente da Revista Horizontes Antropológicos (volume 12, número 25 de 2006). 5. Para um visão de conjunto dos resultados alcançados com essas pesquisas, bem como das críticas relacionadas ao processo de implementação da política de recursos hídricos brasileira e no Estado do Rio de Janeiro, ver Machado (2004, 2006). 6. O uso que faço do termo sociotécnico, criado nos anos 1960 por um grupo de sociólogos britânicoa que estudavam as organizações empresariais (cf. Trist e Murray, 1993) e apropriado posteriormente pelos Estudos de Ciência e Tecnologia (cf. Hsckett et ali. 2008), tem por objetivo enfatizar a necessidade de fazer dialogar o social e o técnico, face à complexidade, à heterogeneidade e à diversidade os elementos que se combinam e se misturam num dado espaço geográfico de uma sociedade

mais

ampla,

formando

um

emaranhado

de

relações

constitutivas das práticas e ações cotidianas dos atores da dinâmica territorial de uma bacia hidrográfica.

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Sobre o autor Carlos José Saldanha Machado concluiu o doutorado em Antropologia Social pela Sorbonne (Université Paris V - Rene Descartes) em 1998 e o mestrado em Ciências da Engenharia de Produção, área de Política de C&T, pela COPPE/UFRJ em 1991. Atualmente, (1) na Fundação Oswaldo Cruz, i) é Pesquisador em C&T em Saúde, ii) Chefe do Laboratório de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (LabCiTIeS) e iii) Editor Científico da RECIIS - Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (ICICT) ; (2) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro é Professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (Doutorado) responsável pela disciplina "Política Ambiental Brasileira" ; (3) no Ministério da Educação, é avaliador institucional e de cursos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). Atualmente coordena 2 projetos de pesquisa, um financiado pelo CNPq e outro pela FAPERJ. Atua na área de Sociologia e Antropologia, com ênfase nos Estudos Sociais das Ciências, das Tecnologias e da Inovação em Saúde e em Políticas Públicas e Gestão de Recursos Hídricos. É membro do Conselho Editorial das revistas "Medicina y Seguridad del Trabajo" e "Rio de Janeiro" e parecerista ad-hoc da "Editora Fiocruz" e das revistas "História, Ciências, Saúde - Manguinhos", "Cadernos de Saúde Pública", "Gestão & Produção" e "Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais". saldanha@fiocruz.br

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Lilian Krakowski Chazan* - UERJ liliankc_2004@yahoo.com.br; liliankc@ig.com.br

RESUMO A partir dos anos 1990, no Brasil, o ultra-som obstétrico expandiu-se como prática de acompanhamento pré-natal, tornando-se um exame considerado essencial para o acompanhamento da gravidez nas sociedades urbanas. Esta prática apresentou – e apresenta – uma série de desdobramentos inusitados, que exploramos em tese de doutorado já finalizada. A metodologia – qualitativa – utilizada foi a de observação participante, desenvolvida em três clínicas privadas de

1

Artigo publico em:

IV Congresso Brasileiro de Ciencias Sociais e Humanas em Saude XIV Congresso da Associacao Internacional de Politicas em Saude X Congresso Latino-Americano em Medicina Social * Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro Pós-doutoranda no Departamento de Políticas Públicas e Planejamento em Saúde do Instituto de Medicina Social – Universidade do Estado do Rio de Janeiro SALVADOR, BA, 13-18 DE JULHO 2007

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imagem, no decorrer de 2003, no Rio de Janeiro. A partir da etnografia realizada, discute-se neste trabalho como são produzidos, em um processo interativo durante as sessões de ultra-som, uma série de reconfigurações na construção social da gravidez e do feto como Pessoa por meio de narrativas discursivas e visuais. A pesquisa evidenciou, entre outras questões, que os aspectos lúdico e de consumo da imagem, mesclados à produção de diversas „verdades‟ sobre a gravidez e o feto são elementos centrais para a produção, manutenção e expansão que resultam na estabilização do ultra-som obstétrico no universo observado. Por estabilização entende-se um momento – provisório – na trajetória de uma tecnologia no qual o significado desta é compartilhado pelos grupos sociais envolvidos em sua produção e consumo. Em um mesmo movimento, a tecnologia é reafirmada como produtora de verdades médicas sobre a gravidez e o feto, e este é constituído como indivíduo subjetivado

e

„inserido‟ socialmente.

Nesse

processo

mesclam-se

diversos aspectos heterogêneos que, em uma interação dinâmica, reafirmam a posição hierárquica da biomedicina no manejo da gestação. Palavras-chave: Cultura, saúde e doença: corpo, subjetividade e práticas em Saúde Coletiva.

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INTRODUÇÃO A ciência e a tecnologia são práticas humanas que não se dão no vazio, nem se desenvolvem por si mesmas. Pelo contrário, como toda e qualquer prática humana encontram-se profundamente enredadas nos/ e são

determinadas

heterogêneos.

Nos

pelos/

aspectos

últimos

50

e

anos,

fatores diversos

mais

variados

historiadores

e

vêm

abordando essa questão por vários ângulos, assim como sociólogos e antropólogos, estes em especial nos últimos 30 anos. O ponto que me interessa discutir aqui refere-se a um aspecto particular, que diz respeito a uma determinada tecnologia utilizada no campo da medicina. Trata-se de um work in progress, pois estou iniciando uma nova pesquisa, apoiada em um referencial teórico que busca desvendar por meio de quais processos uma determinada tecnologia ou artefato ganha espaço e credibilidade, enfim, se estabiliza, como produtor de conhecimento confiável.

Vou

explicar

um

pouco

cada

um

destes

conceitos

[estabilização, conhecimento confiável, aspectos heterogêneos etc.], mas o ponto que me parece mais importante deixar claro desde o início é que esta abordagem encerra uma questão profundamente política, no sentido amplo do termo. Ao se desvendar esses processos ou, nos termos de Latour, ao se “abrir a caixa-preta” da construção de conhecimentos e também de artefatos técnicos, abre-se a possibilidade de interferir – nos países produtores de aparelhagem tecnológica –, no desenvolvimento e pesquisa dos artefatos, e – nos países „periféricos‟ –, nos processos de tomada de decisão sobre a aplicação e utilização ampla e pública de uma determinada aparelhagem ou tecnologia, em qualquer área. Estabilização é um conceito desenvolvido por Pinch e Bijker (1987), em um estudo hoje já clássico sobre bicicletas, que pode ser tomado como modelo para qualquer outro objeto. O que eles discutem é que, ao surgir um determinado artefato, ele encontra-se em um momento conceituado por eles como de „flexibilidade interpretativa‟, ou seja, dependendo do ponto de vista de cada grupo social, aquele determinado artefato apresentará uma certa gama de problemas, que para outro grupo diferente pode até ser uma vantagem. Isto equivale a dizer que há uma flexibilidade e variabilidade muito amplas na compreensão e aceitação de um determinado objeto, aparelho, tecnologia etc. Dependendo das relações de poder entre os diversos grupos sociais relevantes para o desenvolvimento daquele artefato [ou tecnologia], este vai se estabilizar e ganhar uma forma, digamos, mais definitiva, ou pode ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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desaparecer. Quando há a estabilização e um artefato ou tecnologia se difundem [ou o contrário, se difundem e se estabilizam], pelo fato de ser uma situação sempre histórica e socialmente determinada, considera-se também que as estabilizações são, por definição, temporárias e provisórias: os aparelhos podem ser adiante substituídos por outros e desaparecerem

ou

serem

modificados,

aperfeiçoados.

Existe

uma

infinidade de exemplos de todas essas situações na história da tecnologia. A rigor, aqui já estamos no campo da sociologia da tecnologia. Mas qual é o meu ponto, e o que isso tem a ver com corpo, saúde? Na minha tese de doutorado, estudei de que modo o ultra-som obstétrico mediava a construção do feto como pessoa antes do nascimento (Chazan, 2005, 2007). Para isso, desenvolvi uma etnografia observando clínicas de ultra-som no Rio de Janeiro [momento comercial – lançamento do livro mais tarde]. Minha abordagem na tese visava compreender os processos por meio dos quais imagens cinzentas e borradas eram transformadas em objeto de desejo e consumo, algum tempo depois de terem se tornado produtoras de conhecimento considerado confiável no campo do diagnóstico pré-natal. Conhecimento confiável

é outro

conceito, desenvolvido

por

Brigitte Jordan, “O

conhecimento que os participantes de um determinado grupo concordam que seja importante em uma situação particular, que eles percebem como trazendo resultados significativos, e baseado no qual tomam decisões e encontram justificativa para suas formas de agir” (Jordan, 1993: 154) (grifo original). Terminada a tese, várias perguntas haviam ficado na minha cabeça, entre elas, porque essa tecnologia, que produzia no princípio “imagens horríveis”, havia encontrado campo para se desenvolver, principalmente considerando que de início nem eram consideradas produtoras de conhecimento algum no campo da medicina. [Depoimento de Paulo Costa, desconfiança e resistência do início, no Brasil]. E essa é a minha pesquisa atual, que está em processo. Estou fazendo um levantamento do início da história do ultra-som obstétrico no Brasil nos anos 1970-80, por meio do depoimento dos precursores do uso dessa técnica, que ainda estão vivos e em atividade. Pesquisar a história da tecnologia em geral me abriu um novo campo de conhecimento, o dos estudos sociotécnicos [STS ou CTS, no Brasil], e ao ler esses novos autores [Law (1987), Pinch e Bijker (1987), Hughes (1987), Cowan (1987), Latour (2000), Latour & Woolgar (1997) e, mais recentemente Mol (2002)] percebi que poderia lançar um outro olhar sobre o meu material ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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etnográfico, que poderia perfeitamente ser justaposto ao que eu já havia feito. Portanto, é essa a reflexão que vou esboçar aqui para vocês TECNOLOGIA MÉDICA COMO OBJETO DE CONSUMO Uma das conclusões surpreendentes da tese foi a de que, mais do que a construção da pessoa fetal que eu estava pesquisando, eu havia observado a construção do prazer de ver as imagens fetais [estou já contando o final do livro em que o assassino é o mordomo]. O ultra-som, dentre todas as tecnologias de imagem, tem uma característica peculiar, que é a de permitir uma interação entre o médico e o cliente que não acontece com as outras tecnologias [RX, MRI, CT etc.]. A outra exceção é o cateterismo cardíaco, mas não cabe aqui discutir porque tem outras características. Nos termos do próprio campo, o ultra-som é uma tecnologia „operador-dependente‟, o que significa que as imagens vão sendo obtidas e selecionadas à medida que o exame transcorre, e em tempo real. O médico [em outros países são técnicos] ao mesmo tempo obtém

as

incidências,

diagnostica,

produz

medições

que

serão

processadas pela aparelhagem, focaliza mais determinadas partes que considere relevantes para a obtenção de um diagnóstico, sempre em tempo real. Nesse conjunto heterogêneos de atividades, chamava-me muito a atenção o quanto de conversa acontecia em cada exame [observei uns 200, ao longo de um ano] e, principalmente, como os médicos gastavam um bom tempo se dedicando a explicar as imagens para as gestantes que, a rigor, já vinham para o exame com essa expectativa. E isso era uma constante. [Compare-se com um US de fígado, mama – ninguém espera que o médico explique o que está vendo]. Vale dizer que os profissionais das clínicas que observei eram remunerados por produtividade e, portanto, estender o exame tinha conseqüências óbvias nesse índice e consequentemente em seus bolsos. Este detalhe ilumina a importância desta atividade explicativa no desenrolar

dessa

prática

médica.

Refletindo

agora,

em

termos

sociotécnicos, compreendi que esse empreendimento interativo, didático, era em grande parte o responsável pela difusão e estabilização da tecnologia de ultra-som no Brasil, e em um processo de realimentação com o desenvolvimento dessa tecnologia e melhoria das imagens, produzia uma série de outros efeitos para além dos diagnósticos obstétricos. Existem também diversos outros fatores, como não podia deixar de ser, que justamente pretendo levantar nessa minha nova pesquisa, ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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que considero relevantes nesse processo de difusão e estabilização. Por exemplo, o ultra-som teve seu primeiro aparelho instalado no Brasil em 1972, em plena ditadura militar. Nesse período aconteceu também a eletrificação

do

país e

uma

expansão

significativa

da

televisão,

especialmente da TV Globo, que a apoiava aberta e fortemente. Uma tecnologia como o ultra-som pode ser simbolicamente associada a diversos aspectos, tais como modernidade, progresso do país [lembram do Brasil grande?], milagre, controle de corpos etc. Isso só para início de conversa. Daqui a uns dois anos voltamos a conversar sobre isso, quando eu terminar essa pesquisa. Voltando à questão da interatividade, revendo e relendo o material etnográfico, percebi que por meio desta, associada ao didatismo dos médicos e ao aperfeiçoamento da tecnologia, ao se construir o prazer de ver as imagens fetais era simultaneamente instigado o consumo delas, a credibilidade dos médicos, a formação e a fidelização de uma clientela – um aspecto importante, já que na época da etnografia [2003], no Rio, existiam cerca de 500 clínicas de ultra-som – e principalmente o reforço da estabilização da tecnologia do ultra-som. Esta passou a ser considerada

não

apenas

uma

ferramenta

indispensável

para

o

acompanhamento pré-natal nas sociedades urbanas industrializadas, como tornou-se parte de um imaginário poderoso relacionado à reconfiguração dos corpos grávidos e fetais. Nesse mesmo processo, constrói-se uma nova cultura visual médica, „ensinada‟ pelos médicos às gestantes, que aprendem a ver e a gostar das imagens cinzentas e esfumaçadas, traduzidas como „meu bebê‟. Fora isso, não se pode esquecer que há um contexto mais amplo, no qual a visualidade e especialmente as imagens técnicas desfrutam de um status de produtores de verdades incontestáveis. A mídia desempenha um papel significativo nessa construção, produzindo a idéia de que pode-se saber tudo sobre o ser em gestação. Houve casos extremos – e justamente por isso densos e significativos de um ponto de vista analítico – como o de uma atriz em ascensão que realizou um exame de ultra-som ao vivo, em um canal de TV aberta [programa do Leão ou do Ratinho, não me lembro], conversando em off com o pai do feto, que pelo telefone ia comentando o que ele via pela TV. Ou seja, produzem-se híbridos com diversos níveis de mediação, esse caso é ilustrativo na medida em que há a mediação do aparelho de ultrasom, a TV e o telefone, que supostamente produziriam uma aproximação do pai com o seu futuro filho. Aliás, é comum os médicos comentarem que acham que o ultra-som „aproxima a mãe do bebê‟, o que é no ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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mínimo curioso para pensar. Aproxima???? Outro aspecto interessante é uma espécie de atalho no tempo, pois os fetos são tratados como crianças já nascidas, o termo „feto‟ só aparece entre médicos; com a clientela sempre são referidos como „bebê‟, „neném‟, ou pelo prenome, quando já se sabe o sexo e tem o prenome escolhido. Em toda essa gama de processos que se entrelaçam, misturando aspectos tão completamente heterogêneos quanto medicalização da gravidez, afetos, tecnologia, a física do ultra-som, mercado, mídia, corpos, credibilidade e prestígio profissional, cultura visual, consumo e „n‟ outros que podem ser arrolados, existe um aspecto que se renova e se reforça constantemente, que diz respeito justamente à estabilização do uso dessa tecnologia na gravidez. Não pretendo dizer de modo algum que há uma intencionalidade nesse processo, nem que ele é dirigido de cima para baixo, por alguma instância poderosa e/ou demonizada. Não é nem a indústria, nem a biomedicina ou os médicos que produzem esse estado de coisas. Parece-me que essa estabilização – vale lembrar e sublinhar,

uma

estabilização

é

sempre

provisória

e

histórica

e

socialmente determinada – é a resultante da conjugação de vários fatores que me parecem em boa parte serem diversas facetas do biopoder conceituado por Foucault (1984, 1999), na medida em que se gera e é internalizada uma „necessidade‟ de controle dos corpos grávidos e fetais. Outro

ponto

digno

de

nota

diante

dessa

difusão,

espetacularização e consumo de ultra-som é o paradoxo levantado por esse fenômeno no contexto da proibição do aborto. Se tomarmos por um prisma estritamente biomédico, a finalidade primeira do exame é a detecção de anomalias fetais. A cirurgia fetal dispõe de possibilidades ainda bastante reduzidas. Se não é dado à mulher o direito de escolha, o que fazer diante de uma anomalia por exemplo incompatível com a vida, ou com uma qualidade de vida [conceito complicado] minimamente razoável? A gente sabe que o que acontece, a rigor, tem um diferencial de classe muito marcado: mulheres com algum recurso realizam abortos em condições razoáveis de higiene – aliás, mesmo sem haver anomalia exercem o real direito de escolha – e as das camadas desfavorecidas, ou não abortam, e eventualmente enfrentam problemas da maior gravidade, sem recursos para atender às crianças nascidas com „necessidades especiais‟, ou abortam em condições extremamente precárias (RamírezGálvez,

1999,

2003).

Os

médicos

que

se

manifestam

quando

questionados publicamente a respeito desse paradoxo, usam como racionalidade a argumentação de que „o ultra-som é útil para preparar a ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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gestante para as dificuldades que ela vai enfrentar‟.2 [Isso tudo é uma outra grande discussão fora desse meu assunto estrito, mas faz parte do quadro no qual o ultra-som está inserido]. Entretanto, deixando-se de lado o aspecto biomédico do exame, pode-se pensar que o paradoxo da espetacularização e consumo do ultra-som nesse contexto seja apenas aparente. Eu diria que, tomando-se como pano de fundo a questão do aborto, esses fenômenos entram como se fossem uma cortina de fumaça – não proposital nem planejada, mas nem por isso menos eficaz e útil – ocultando ou deixando de lado a discussão, pela sociedade, sobre o direito de escolha da mulher. Tomando-se como pano de fundo a estabilização e difusão do ultra-som, a espetacularização e instigação ao consumo são parte integrante e necessária do processo.

CONCLUSÃO À guisa de uma breve e provisória conclusão, eu diria que por meio desse conjunto de fatores articulados constrói-se um consenso coletivo acerca da confiabilidade e da indispensabilidade do ultra-som no acompanhamento pré-natal, que reforça e renova a estabilização dessa tecnologia. O ultra-som mescla e responde de modo dinâmico aos mais diversos aspectos circulantes na cultura, que vão desde o Individualismo, o biopoder, com o controle e medicalização dos corpos, à visualidade, passando pela cultura do consumo e do culto ao corpo e, por seu turno, produz novos valores, sensibilidades e mercados. A meu ver, deve à sua possibilidade de conjugar o atendimento a demandas tão heterogêneas o seu retumbante sucesso nos dias atuais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIJKER, W. E., HUGHES, T. & PINCH, T. J. (Eds.) The Social Construction of Technological Systems: new directions in the sociology and history of technology. Cambridge: MIT Press, 1987. CHAZAN, L. K. „Meio Quilo de Gente!‟ Produção do prazer de ver e construção

2

da

Pessoa

fetal

mediada

pela

ultra-sonografia:

um

estudo

Recentemente, quando questionado sobre a utilidade de uma bateria de testes bioquímicos para

rastreamento de anomalias genéticas e cromossomiais, o PRATIC®, Dr. Laudelino Marques Lopes referiu-se à criação de um centro multidisciplinar para “conscientizar os pais sobre os problemas que

vão enfrentar e orientá-los de forma integral e objetiva, tentando minimizar essas dificuldades”, e que o teste “não objetiva indicações para interrupções, ainda mais em se tratando de uma questão tão polêmica como essa. Ao contrário, ele pretende esclarecer, elucidar, rastrear e dar maiores subsídios para casais e médicos assistentes”. Capturado em http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3707, em 12/07/2007. ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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etnográfico em clínicas de imagem na cidade do Rio de Janeiro, 2005. 2 v. Tese de Doutorado em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. _______ “Meio quilo de gente”: um estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. COWAN, R. S. The Consumption Junction: A Proposal for Research Strategies in the Sociology of Technology. In: BIJKER, W. E., HUGHES, T. & PINCH, T. J. (Eds.) The Social Construction of Technological Systems: New Directions in the Sociology and History of Technology. Cambridge: MIT Press, 1987. p.261280. FOUCAULT, M. A vontade de saber. In: FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1984. v. 1. _______ Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1999. HUGHES, T. The Evolution of Large Technological Systems. In: BIJKER, W. E., HUGHES, T. & PINCH, T. J. (Eds.) The Social Construction of Technological Systems: New Directions in the Sociology and History of Technology. Cambridge: MIT Press, 1987. p.51-82. JORDAN, B. Birth in Four Cultures: a cross-cultural investigation of childbirth in Yucatan, Holland, Sweden and the United States. Prospect Heights: Waveland Press, 1993 [1978]. LATOUR, B. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000. LATOUR, B. & WOOLGAR, S. Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. LAW, J. Technology and Heterogeneous Engineering: The Case of Portuguese Expansion. BIJKER, W. E., HUGHES, T. & PINCH, T. J. (Eds.) The Social Construction of Technological Systems: New Directions in the Sociology and History of Technology. Cambridge: MIT Press, 1987. p.111-134. MOL, A. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham & London: Duke University Press, 2002. PINCH, T., BIJKER, W. The Social Construction of Facts and Artifacts: Or How the Sociology of Science and the Sociology of Technology might Benefit Each Other. In: BIJKER, W. E., HUGHES, T. & PINCH, T. J. (Eds.) The Social Construction of Technological Systems: New Directions in the Sociology and History of Technology. Cambridge: MIT Press, 1987. p.17-50. RAMÍREZ-GÁLVEZ,

M.

C.

Os

Impasses

do

Corpo:

ausências

e

preeminências de homens e mulheres no caso do aborto voluntário, 1999. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Campinas: Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


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Estadual de Campinas. RAMÍREZ-GÁLVEZ, M. C. Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas: fabricando a vida, fabricando o futuro, 2003. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Campinas: Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

ENSAIOS - CONSTRUINDO A ESTABILIZAÇÃO DA TECNOLOGIA DE ULTRA-SOM COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO CONFIÁVEL NA GRAVIDEZ | LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN


Por Maria das Graรงas Vanderlei da Costa.


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LE BRETON, David. (2007), A Sociologia do Corpo. 2.ed. Tradução de Sonia M.S Fuhrmann. Petrópolis, RJ: Vozes.

Maria das Graças Vanderlei da Costa.

O tema abordado nesta publicação vem sendo alvo de muitos estudos antropológicos,

ligados

a

diversas

áreas

de

interesse.

Pesquisas

envolvendo religião, gênero, etnicidade, imaginário, contemporaneidade, saúde, dentre outras, vêem no campo da corporeidade perspectivas de indagações e descobertas. Nesta obra de referência, o antropólogo francês David Le Breton, consagrado especialista em estudos do corpo, destaca a corporeidade como um novo campo da sociologia. É objetivo do autor perceber o corpo como um importante elemento

da

expressão

humana,

revelando-se primordial

para

a

compreensão do homem e de sua relação com o mundo. Como um produtor de sentidos e um propagador de significações, ele permite a inserção no interior dos espaços social e cultural. Assim, o processo de socialização da experiência corporal acompanha as diversas etapas do desenvolvimento dos indivíduos e a construção corpórea, pautada nas características de cada grupo social torna-se socialmente modelável. Numa perspectiva introdutória, e de forma bastante didática, o autor destaca as primeiras décadas do século XX, momento de descobertas sobre o valor do corpo para a sociologia. De modo esquemático, discorre sobre as principais etapas da abordagem do corpo pelas Ciências Sociais, desde aos seus primórdios, no Século XIX. Em um primeiro momento, denominado pelo autor de sociologia implícita do corpo, este, embora não seja esquecido, ainda ocupa uma posição secundária para a análise sociológica. Com objetivos voltados à denúncia de

questões

de

miséria,

insalubridade,

e

carência

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA

das

classes


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trabalhadoras dentro do contexto da Revolução Industrial, Villermé, Buret, Engels e Marx desenvolvem estudos sobre o corpo, moldado pela interação social: corpo enquanto fato de cultura. Paralelamente, uma outra abordagem dá primazia ao biológico, como elemento determinante para a definição social e cultural do homem, observando a determinação das raças e hierarquia evolutiva dos grupos humanos. Em destaque, as posições de clássicos autores da Sociologia, como Durkheim, Mauss, Hertz, Weber, Simmel. No âmbito da psicanálise, a importância do trabalho de Freud, introduzindo o elemento relacional na corporeidade. Numa segunda etapa, há o que o ator chama de sociologia em pontilhado. É uma passagem progressiva que desloca o olhar do corpo numa visão biológica e morfológica para uma imersão no campo social e simbólico: uma corporeidade socialmente construída. Aqui estão em destaque os trabalhos de Simmel, Hertz, Mauss, componentes da Escola de Chicago, Elias e Efron. Observo que nessas duas primeiras etapas enunciadas, seguimos um itinerário dentro da própria história da Sociologia, recordando clássicos estudos e autores que marcaram a história da disciplina e influenciaram o nascimento da Antropologia. Por fim chega-se a sociologia do corpo, a qual estabelece as lógicas sociais e culturais propagadas através da corporeidade. A obra nos convida a uma caminhada em direção às variadas definições de corpo, observando as ambigüidades deste referente, as distintas concepções nas diversas sociedades e plurais abordagens epistemológicas: o corpo e sua relação com o cosmo, o social, o individual e a natureza. Nesse sentido, Le Breton reitera a importância da Sociologia e Antropologia para a compreensão da corporeidade enquanto estrutura simbólica, ressaltando as representações, os desempenhos, o universo imaginário e os limites que envolvem as diferentes concepções envolvidas nessa dinâmica. É de suma importância as colocações da obra destacando o corpo como valioso campo de pesquisa. O texto continua, a cada momento, nos lembrando da tarefa de investigarmos as raízes sociais e culturais que envolvem a condição humana. Para o autor duas importantes questões devem marcar a Sociologia do corpo: o entendimento da diversidade entre grupos e culturas, percebendo-se as questões históricas; o estudo da relação entre os atores e o mundo. A não compreensão desses elementos gera

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA


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ambigüidades. Argumenta também que a pluridisciplinaridade que envolve o estudo do corpo pode ser uma fonte de riqueza. Tecendo uma teia sobre os campos de pesquisa da corporeidade Le Breton utiliza-se de uma minuciosa abordagem destacando trabalhos de relevantes estudiosos que o ajudam a revelar a grandiosidade desse universo. Em relação às práticas relacionadas com as lógicas sociais e culturais da corporeidade, destaca o trabalho de Mauss e seus estudos sobre as técnicas do corpo. Em relação à gestualidade o autor faz referência a cotidianas ações desenvolvidas pelos indivíduos. Destaca os estudos

comparativos

desenvolvidos

por

Efron

e

o

trabalho

de

Birdwhistell. Numa abordagem sobre a etiqueta corporal, revela este importante elemento presente na interação cotidiana, determinado e autorizado a partir dos padrões dos grupos e traz exemplos de Goffman, Hall, e Firth. Le Breton reitera a importância de percebermos a expressão dos sentimentos e o campo das percepções sensoriais. Aqui os estudos de Simmel e

Becker.

Fazendo

referência às

técnicas de tratamento

dispensadas ao corpo, observa também a influência de cada grupo e classes sociais, em relação às condutas de higiene, purificação, prevenção. No tópico inscrições corporais percebemos as inúmeras marcas corporais que têm diferentes funções para cada comunidade. Em relação a má conduta corporal destaca os debates em torno da doença, desespero e loucura. Ressalto que todo esse conjunto enunciado sobre as técnicas que envolvem a corporeidade nos permite ter uma ampla visão das possíveis pesquisas

sociológicas

relativas

a

esse campo, ampliando

nosso

entendimento sobre a riqueza desse universo. Observa que diversas teorias tentam identificar o corpo, defini-lo, determinar sua ligação com o ator por ele personificado, a partir de noções que fazem parte do contexto social e cultural de cada sociedade. As abordagens biológicas buscam na Sociobiologia a base para suas teorias afastadas do campo epistemológico das Ciências Sociais. Através de alguns relatos etnográficos e dos estudos de Goffman, aspectos sobre a diferença entre os sexos. Questionando sobre a representação e valores associados ao corpo ou a parte deles, tece um diálogo com Hertz e Douglas. Em relação ao corpo, enquanto lugar de imaginários, o autor aborda sobre o racismo. Uma última dimensão apontada pelo autor é a do corpo deficiente e as limitações sociais de se lidar com um corpo marcado pela diferença, a qual suscita atenção e mal-estar.

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A partir do momento que vamos percorrendo o texto, somos convidados a prosseguir nessa viagem em direção aos campos de pesquisa, que envolvem os estudos da corporeidade. Nesse sentido, Le Breton aponta para a significação do corpo na contemporaneidade. Relacionado às questões de pertencimento social e cultural de cada indivíduo, a preocupação com a aparência do corpo que se apresenta e se representa. Analisa também a ação política sobre a corporeidade, a partir do trabalho de Brohm, M. Foucault, Bourdieu, e Boltanski. Sob a égide da moral do consumo, Baudrillard destaca o corpo, objeto da modernidade. Perrin, por sua vez, observa as terapias corporais no espaço terapêutico como forma de mudança espiritual. Le Breton observa a concepção contemporânea que opõe sutilmente o homem ao corpo, objeto a ser moldado e que o revela como parceiro, um espelho fraternal que deve ser explorado. Observa a crescente paixão moderna pelo risco e aventura e a visão biomédica própria da modernidade, onde o corpo serve a experimentos

e

transplantes,

visto

pelo

autor

como

membro

supranumerário do homem. Concluindo sua obra o autor tece importantes considerações sobre a difícil tarefa de se fazer uma sociologia do corpo. Esta deve fazer um percurso transversal em relação a outros campos de estudo, como história, psicologia, etnologia, medicina, biomédica, dentre outros. Precisamos

perceber

a

complexidade

do

campo

e

do

objeto,

reconhecidamente interface entre o social e o individual, entre natureza e cultura, entre o fisiológico e o simbólico. Embora sendo um campo ainda em construção, conta com investigadores relevantes, como tantos citados nessa obra. Numa perspectiva dialógica imprimir uma tarefa pautada na prudência, humildade, reflexão, mas repleta de imaginação e busca, na tentativa de elucidar as lógicas sociais e culturas que envolvem ao estudo da corporeidade. A obra alerta para os importantes campos que se abrem que servem para pensarmos sobre o universo do gestual, as práticas físicas, as representações associadas aos segmentos corporais, a remodelação do imaginário

coletivo

impostos

pela

modernidade

e

dos

sistemas

simbólicos presentes nas lógicas sociais e culturais. Em todo o texto o autor nos faz perceber a complexidade da Sociologia do corpo e a possibilidade que temos, através dela, de descobrir a amplitude de nossas próprias relações com o mundo. Essa é uma Sociologia do “[...] enraizamento físico do ator no universo social e cultural” (Le Breton, 2007, p.94).

RESENHAS – A SOCIOLOGIA DO CORPO | MARIA DAS GRAÇAS VANDERLEI DA COSTA


Texto de apresentação de Carlos Newton


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTUBRO - 2011 | P. 103

Em seu número de estréia, em homenagem aos 40 anos do Movimento Armorial, a revista Itacoatiara publica três poemas de Ariano Suassuna. São poemas das décadas de 1950 e 60, nos quais Suassuna utiliza o termo “armorial” enquanto adjetivo, antes mesmo do lançamento oficial do Movimento, ocorrido a 18 de outubro de 1970, no Recife.

Carlos Newton - UFPE

LITERATURA – POEMAS DE ARIANO SUASSUNA | TEXTO DE APRESENTAÇÃO POR CARLOS NEWTON JR.


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

Dedicado a um certo Menezes, entalhador barroco nordestino do século XVIII e autor de uma escultura em madeira chamada "São Miguel e o Demônio". Esse cedro, esse Tronco, a tempestade, que da Noite vermelha foi gerado, não me permite o Sono sossegado, exigindo, em meu Sangue, a liberdade. Preciso exorcismá-lo nesta Grade, afogá-lo na tenda deste Pouso, pois o Escopro me tenta e, desejoso de afirmar a soberba Forma escura, atenderei à Voz que me conjura, entregando-me ao Sopro poderoso. Não sei por que razão, Remoto e estranho, me encontro desterrado no Deserto, onde o Vento levanta, mal-desperto, ondas de Pó maldito em que me banho. Sinto-me triste e só, e mal tamanho não me veio, decerto, impunemente. Perto, o mar: Sol nas águas, claro e quente. Mas cala-se às perguntas que lhe faço e espero que na paz de seu Regaço a Noite me liberte novamente. Sempre fechada, ali, a Fortaleza: será, também, um Muro irrecusável? Talvez, se sua Face impenetrável escondesse os sinais da Luta acesa. Mas, extinta no Sol, é-me defesa, LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

exige a Obra, o Anjo, a luz da aurora, o capacete, as Asas, as esporas e hei de transpor seus Muros opulentos, transfigurando os Êxtases sangrentos, negra Fonte de sonho e água Sonora. Essas terras de Fogo, poderosas, as Areias, no vento ensandecido, batidas contra o Forte mal-ferido desenham-se em Figuras ominosas. Em que Lodo emprenharam-se, nojosas, criando a Cobra negra, essa Visão? Não sei. Como não sei por que razão, ó Forma dessa cobra, me dominas, enquanto invoco todas as Matinas de um Reinado de fogo e solidão. Não fosse chamejante essa Ribeira, a que fui pelo Acaso arremessado, e o Dragão fugiria, derrotado, de volta à sua Escura ribanceira. A Fé raivosa e turva da Cegueira: os mais fortes são sempre os mais visados. Mas a Morte e seus raios macerados não me deixam Revolta nem tristeza e, exposto ao sonho Mau da fortaleza, no Tronco prego os olhos fascinados. Vencerei finalmente este combate, ou, perdido na Noite dessa cobra começarei por Baixo a nova obra, no Diabo que me tenta e que me abate? Chega o fim do meu sono e do Resgate:

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

surde a morte, no tronco Avermelhado. E, possesso do Sol, alucinado, começo pela Fera, que, luzindo, na Luz a fortaleza vai cobrindo de sombra e de Desejo mal gerado. Ei-lo enfim começado, o diabo Mouro. De onde me veio o Ferro, o escopro forte, este Cedro, escarvado pela morte, o Pedestal de chama, os cravos de Ouro? De onde chega esse canto em negro Coro? E esta Voz, maltratada pelo vento? Sinto que ela me incende o Pensamento, incita as mãos, flameja na Escultura, deleitando-se em criar a Besta escura que (agora o sei) desejo e é meu tormento. As dobras, musculosas e retesas, sustentam Presas bífidas e sonhos. Sete Chifres, firmando-se medonhos, ameaçam as Frontes indefesas. Nasceram de passadas Fortalezas ou nascem de minha Alma mal-completa? Ninguém responde à Dúvida inquieta e a morte vai parindo a escura Fronde no mauro Olhar que quase tudo esconde, emprenhado de noite e Dor secreta. Sopra o vento, o Sertão incendiário: a morte ronda agora o Matadouro. Crescem frechas, Punhais, vozes do coro, que agora mostram novo Itinerário. Já nasceu meu Dragão, tão solitário,

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

o áspero Diabo um dia entressonhado. Que estranho Sol de cobre flamejado me oculta a fortaleza e seu Combate? Ouço tocarem Sinos a rebate: é a vez do Arcanjo, o Santo, o santo Alado. Ele agora é o Possível do outro, embaixo, e chega com o Clarim de suas notas: a Armadura, a Bandeira, as duas botas, as Asas, o que busco e o que não acho. O Resplendor, a Espada desse Facho, a luz amiga, os olhos Descansados, a gola em Cedro, cheia de rendados, o firme Cinturão que tudo explica, a força, a mansidão, Fogo e pelica, saltando de seu peito e dos Bordados. Vamos enfim vencendo os Areais, num Êxodo de sonho não sagrado: como saber se guio ou sou guiado por esse alado ser, Aspa da paz? Corto a moldura: arcadas e florais, abandonando as últimas lembranças. Rompo as Arcas, reato as alianças, levado pelo Som da desfilada e atinjo o fim da Obra projetada num concerto de Fogo e de esquivança. Agora, entre meu Santo e seu destino, o Mato, os areais e a soledade. A Escolha já foi feita e a mejestade envolve os Ombros deste Peregrino. Conquistei a Coroa: o claro sino

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

me espera no Fim mesmo dessa Estrada. Por ela vim: ó Rota procurada, é preciso voltar ao Julgamento! Que lembranças me traz a Voz do vento, mandando-me apressar a caminhada? Passei por três Engenhos e caminhos, por Bandeiras, nas Hastes drapejando, e, apesar de uma Igreja ir demandando, evitei Sacerdotes e adivinhos. Decifraram-se velhos pergaminhos enquanto estive ausente tantos Dias. Ruiu a Torre, a velha sacristia, os Frades outras duas vão tecendo e ao meu Anjo o meu passo vou cedendo, cumprindo meu desejo e a Profecia. É preciso chegar. Mas Onde e Quando? O fim da caminhada se aproxima: sinto que chega o tempo da Vindima, pois o temor da Volta está chegando. Ao longe, vou aos poucos avistando a Vila e suas casas sobradadas. São para Nós as áureas badaladas que pousam sobre as asas de meu Santo? Ó vinde, Aves de Prata! Eis meu Encanto que Eu entalhei, cravando-me de espadas! Cumpridos eram pois Quarenta dias desde que eu fora, Só, com passo incerto, para o fogo e as Areias do deserto, a talhar na Madeira a jerarquia. Agora volto: e o som da Litania?

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 104 - 109

Aqui é a Porta, a vila, a Babilônia: o Jaspe, a pedra, a telha, a Calcedônia, o odor do incenso, os Sinos, a turqueza. E abrem sulcos, meus passos, na dureza das ruas de Granito e eterna insônia. Ninguém me olha: há Tédio, sesta imensa. Clamo sozinho: "Ó cidadãos errantes! Parti daqui, com passos vacilantes, atendendo à encomenda sem Dispensa! Não desejo Coroa ou recompensa, vossa mesa, a Moeda ou mesmo a glória!". Mas ninguém liga ao grito de vitória e eu caio, triste e só, cansado e vão: é melhor procurar um outro Chão onde se exalte o Fogo da Memória. Aqui só resta mesmo ir para a Igreja: subo a ladeira. A Porta. A clara Nave. Com o Santo aos ombros, vou como uma Ave de Madeira vermelha que esvoeja. Vazio, o Nicho de ouro ali chameja. Subo ao Altar: no vão, perto da Grade, deposito a futura raridade, vou ao Padre, recebo minha Tença, e, em meio da geral indiferença, abandono – mais uma – esta Cidade. [1950]

LITERATURA – CANTO ARMORIAL | ARIANO SUASSUNA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.1 – N.1 | OUTURBO - 2011 | P. 110 - 119

Composto por Ariano Suassuna no "martelo gabinete" dos Cantadores, seguindo a "Visão do Nordeste" de Alceu Amoroso Lima e com ecos de outros grandes brasileiros, do século XVI até os dias de hoje. I Eram sete as Coroas deste Reino, sete as Torres sagradas da Cidade, sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre, sete Clarins de calcedônia e jaspe, e o meu Reino-sagrado do Nordeste luzia, do Recife à claridade. Eu velava na pedra do Arrecife e vi, nesse repente, uma Visagem: a esmeralda do Mar se alumiava e o Sertão lhe infundiu sua coragem. O rubi resplandece na turquesa: Mar e Sol, água e pedras da Pastagem. A Coroa-de-ferro de Canudos resplende sobre a Torre-quadrejada. O "Sertão da Acauhan", da casa-forte, na do "Engenho Pombal", limpa e sagrada. Os clarins de "Princesa" e "Piancó" reluzem na da torre-ameaçada. E a colina-sagrada da Batalha brilha na "Conceição-dos-Militares": LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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as quilhas afundadas dos navios são púlpitos, Cariátides e altares. Estalam tiros secos de mosquetes, as Espadas rebrilham pelos ares. Duas torres iguais de Santo-Antônio são as "pedras do Reino", as Encantadas, incrustadas de prata e diamantes, ungidas pelo Sangue e consagradas: torres da Catedral dos sertanejos, proibida, luzente e soterrada. O Castelo-roqueiro, em "Cinco-Pontas", é a "Casa da Pólvora" também: os Fortes do meu Reino, reluzindo, pelas pontas da estrela se detêm, como, na esfera-de-ouro do Brasil, as moedas de Ourique e Santarém. Sim! Porque na Colina-consagrada onde o leão do Coelho pôs a pata (Ouro-Velho, Ouro-Preto, Pombo-Verde do Salvador, das águas e das arcas) se funde todo o Império do Brasil, o ouro das Minas e o torçal-de-prata. Por isso aqui brilham também, fundidos, o clarim do Sertão e o dos Engenhos, a Lua-moura, a Estrela-da-Judéia, a Onça-negra, a Parda, o rubro Lenho, – a corneta das Quinas e padrões encravados de estrelas e desenhos.

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E por isso o Recife era a Esmeralda e a Muralha-de-pedra, a Vastidão: Pedra-angular do Reino-esverdeado, Rosa-vermelha-e-bruna do Brasão, Porta-azul dos Engenhos e do Mar, Porta-rubra-e-castanha do Sertão.

II Lá vem a frota-ibérica das Naus: brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras! São Cavalos-marinhos, Bois-azuis, Hipocampos-vermelhos de madeira ferrados com a Cruz-do-Leopardo, do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira! Vem nelas o Assassino, o Mau-Poeta, o Fidalgo-judeu blasfemador: canta o Leão e as quinas-da-nobreza, os castelos e o preço do Senhor, – Voz dos autos, das trovas e sonetos que, para nós, é o Sol-começador! Pois o Recife é um Cisne sacro e branco, um Búzio desigual e retorcido que se sentou na Pedra-cavernosa, de pérolas e aljôfar guarnecido, de Coral fino, crespo e marchetado, depois de o Mar azul ter dividido.

III LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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E a Voz forja a Sereia-nordestina, a Anfitrite de penas-coloradas: as casas são Guarazes-escarlates, são penas de Saíra recamadas; estrelas e topázios das Jandaias são cachos-de-ouro em Campo de esmeralda. E as heráldicas Flores do meu Reino: o flamejante, o cravo, o girassol, a acácia-de-ouro, e a rainha, a Rosa, e a rosa da Paixão-do-Rouxinol, o emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas, a lança, o sangue e espinhos do meu Sol! E assim moldou-se o sangue da Cidade, essa fêmea e pantera dos Bruxedos. Ela entreabre seu Manto e nos revela seus encantos musgosos e secretos, seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes, seus embruxos, e filtros, e segredos.

Sua tigre-bravura se admira, seus encantos de Fêmea se deseja, a finura da Faca e da coragem, a nobreza e a Faminta-malfazeja, essa Gata de graça-florentina e o Sol dessa muralha-sertaneja.

IV

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Canta, ó clarim do Teuto-sergipano, a onça-da-pobreza, a Desumana. Não te enganes: o cheiro desse Mel (mesmo de prata, mesmo em Massangana) é forjado no sangue que bebeu a leoa-dos-nobres, a Tirana. Vai! Chama teu irmão desabusado, teu irmão sertanejo e brasileiro, Lagarto alumiado pelo sol, escorpião da Raça e do braseiro, gila-do-sangue, Povo-coroado, Arauto-inicial do Romanceiro. Que o Nordeste é uma Onça e estão seus ombros queimados pelo Sol e pelo sal: as garras de arrecifes, os Lajedos, são seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal. A Liberdade e o sangue da Inumana precisam de teu Gládio e do Punhal!

V Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho, que esse Golfim de corpo bronzeado que sai da espuma branca-e-azul do Mar (esse sangue-estanhoso do Sagrado) é o mesmo da Batalha, ali gravada nesse painel castanho e esbraseado! Canta as Flechas no campo de Ouro-verde, as bandeiras, a espada do Latino. LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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Não cantaste a Onça-negra veludosa, nem a Parda-castanha, meu destino, mas o urucu-vermelho, as áureas-penas, como escudos, brasões de Paladinos! Tu viste teus "fidalgos" em Castelos, e Peri com a cor de sua Dama. Viste a Loura-fidalga (azul e ouro) e a Morena-bastarda em sua cama. Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro, a corneta-de-tíbia é nossa Fama. Passa o Capitão-mor das "Oiticicas" com seu Gibão dourado de fidalgo. É falso? É sertanejo e Cavaleiro: vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo! Que é preciso, também, nesta Insensata, cantar a prata e o Sonho do sonhado! VI Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue, canta os Campos, de sangue já laivados, a arena-rubra, a terra-bem-fadada, sol dos pulsos-de-ferro venerados que, em perpétua Aliança, reluziram o Reino, o território-consagrado. E a Rota da cruzada-sertaneja, teu "Reino da Acauhan", o gado-crioulo com seus tipos de Raça e de nobreza, na Malhada-da-Onça cor de ouro, onde o Sol e o brasido das Estrelas LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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são esporas-do-céu – Gibão de couro!

VII Soa o quinto Clarim, Cunha de fogo, e a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala. A faca. A lazarina de Canudos no Pajeú-da-raiva cresce e estala. O fogo é um tabocal se incendiando ao som das Ladainhas e das balas. E a Catedral – o antro, o doido templo, reduto, fortaleza e Santuário, de fachada sem módulos e regras, vasto, retangular, desafrontado, cortado e esburacado de troneiras, – o brutal Hipogeu desenterrado!

VIII Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro), junto a ti (que és mortal e ensolarado), sopra o Clarim-augusto-dos-engenhos, o noturno Duende enferrujado: canta as asas do Corvo e canta a Morte, o Sangue e as coisas podres do "Paudarco". As canas, o homem-sem-conchego-nobre, o musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte, as lagartixas-dos-esconderijos, o doido Sol-ignívomo da Ponte... LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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E a Máquina-do-mundo queima tudo na sua pele-de-rinoceronte! Se ele cantou o mel de seus Engenhos, pressentiu meu Sertão com seus segredos: os Rifles pipocando o som das quedas de mil lajedos sobre mil lajedos e os Capitães-de-couro se matando nas pontas escarpadas dos Rochedos! Ouço na Voz-noturna desse Engenho os jambeiros verdosos do "Paudarco" chovendo roxa-púrpura no chão do Recife do "signo-estrelado", e o Dono dos escudos-da-bandeira no Cais-da-aurora canta seu passado.

IX Ó paudarco, flor-de-ouro! O "Corredor", com seu búzio-de-sonho, sonha e passa: no açafrão, nos vestidos das meninas, no cheiro de jasmins que ali perpassa, na argamassa do Tempo impiedoso, pedra e cal dos bueiros sem fumaça. Salvou, assim, o verde de seu Reino e o Pajeú-de-pedra do Sertão: gemem os Catolés, estrala a bala, e passa, doido, El-Rei Sebastião, suja de sangue e pó a real Fronte, mas vivo no chapéu do Capitão! LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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E o búzio-decadente troa a Raça e forja o Cavaleiro-destroçado, o de esporas-quebradas, mas sem freio na Burra que é castanha e que é sem rabo! E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos no "Pombal" que é meu Reino-conquistado!

X E todo o Reino canta nesse nome, pela Dama-de-sangue-coroado: o Sínople, os Pescoços-de-serpente, a Banda-sanguinosa do Enforcado: quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue tinha visto nos campos do Sagrado! Ela era leve, e tinha os olhos garços como o paudarco-âmbar da "Acauhan", e os ouros das acácias do Recife nos cabelos de sol-pela-manhã: olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro, boca, vermelha flor de flamboiã! E, misturando tudo, o mel do Engenho mais o mel das abelhas do Sertão. Cana-caiana doce, olhos-estranjas, tão bonita, tão boa e tão do-chão! Era mesmo a Leoa-coroada, flecha em meu sangue, anel da solidão! E eu vi que a minha Dama era o Recife, LITERATURA – CANTO ARMORIAL AO RECIFE, CAPITAL DO REINO DO NORDESTE | ARIANO SUASSUNA


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o engenho e o sertão do meu Sagrado. Os clarins já se calam e as Coroas fulgiam pelo Reino-do-Escampado. O Sol comia o cobre do horizonte: terminava a Viagem do sonhado! Soltou-se a Onça-negra da Estrelada e o meu Recife, ali, na escuridão, era, agora, o Fortim-iluminado, o baluarte, a Nau, o bastião, colocado entre o Reino-azul do Mar e o meu Reino-castanho do Sertão! [Recife, 19.VII.61]

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Enviado por Suassuna a Francisco Bandeira de Mello, por seu livro "A Máquina de Orfeu". Bandeira, Poeta-cortesão, Bandeira, poeta Armorial! Ó claro bardo provençal, de galo, Peixe e hierofante, de Fauno bêbado e bacante, do sal do Mar, do Sol do mal. Bandeira, cantas como Moço, e à Morte falas como velho – mago Bandeira, áugur do Só! Do Espinho – sol quase-vermelho, do Condenado ao pé do Espelho, do solo-amargo ao Negro-pó! Sol da demência, é vão teu Fogo: Bandeira fiel à sua Amada, Bandeira fiel a seu Amigo (áureo Cantar-de-amor, de-amigo). E a Morte, sempre desejada, Chama-amarela do Perigo! Foge, Bandeira, que o vento queima, que estás (e estamos nós) na Ponte do velho Diabo, nosso inimigo! Já chega a barca de Caronte: Bandeira – arqueiro, Poeta, fonte –, quero salvar-me, mas não consigo! [Abril de 1963] LITERATURA – POEMA DE ARTE VELHA | ARIANO SUASSUNA


UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE


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