ITACOATIARA VOL.4 N.1

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VOL.4 - N.1 | NOVEMBRO - 2013 ISSN 2237-9282

ITACOATI AR A Uma Revista Online de Cultura ARTIGOS

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ENSAIOS

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RESENHAS

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LITERATURA

DOSSIÊ: Representações da Interdisciplinaridade: entre a discussão e a prática

UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE



Fabiana de Oliveira Lima | NASEB/UFPE Luciana Menezes | Letras/UFPE Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE Thiago Sales | NASEB/UFPE

Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto Carlos Newton Junior | UFPE Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência de Literatura Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de Nanterre/Paris/França Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE

Danielle Vilela



SUMÁRIO: CARTA DO EDITOR...................5 JOVEM COLABORADOR Educação popular na perspectiva educacional indígena............8 Ana Claudia Santos Silva

História, Metodologia, Memória.............16 João Paulo Nascimento de Lucena

DOSSIÊ As Entranhas das Humanidades: Reflexõesacerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição...........24 Danieli Siqueira Soares

Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor............36 Fabiana de Oliveira Lima

Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ campus Volta Redonda-RJ...................53 Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho

A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar..................76 Nathália Alvarenga Porto Costa


Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade....................86 Rejane Peres Costa

ENTREVISTA Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo...............96 Thiago de Oliveira Sales

ENSAIO FOTOGRÁFICO Livre que pensamos. Louvre que somos..........................105 Texto e Fotografias de Claudio Xavier

LITERATURA FOLIAS NA FAZENDA: UM RELATO MEMORIAL........................111 Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz


carta do editor: Vai nascer o sujeito capaz de idealizar o presente. Só há mesmo

“lembradores” e “ansiosos”. Fica, portanto, essa coisa de idealizar o passado: De dizer, por exemplo, que os antigos viviam o que diziam e

diziam o que viviam – é bem isso a opinião de Pierre Hadot e Michel Foucault sobre cínicos e estoicos. Porque os antigos, dizia Hadot,

vivenciavam as ideias! E nós não, nós teorizamos aquilo que gostaríamos de viver e vivemos aquilo que limitamos a idealizar. É por isso que, no

cristianismo, o verbo se fazia carne – o gesto do Cristo foi a radicalização absoluta da possessão corporal de uma ideia. A Itacoatiara, agora no

quarto volume, surgiu da “serena impaciência”, se é que isto é possível,

da antropóloga Maria Aparecida Lopes Nogueira, de “substancializar uma ideia”. Cida, como é conhecida, queria “samplear” o movimento plural do

mundo sob as páginas de uma revista regida pela “cultura” – cultura como

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metaconceito, ou seja, cultura como aquilo que realça o gosto pela

natureza. É preciso entender “cultura” no pensamento de Cida Nogueira

para melhor entender a Itacoatiara. Cultura não é o oposto da natureza, nem sua complementariedade antagônica óbvia, como postula Edgar Morin e, também, Gilbert Durand. Tampouco é uma “queda” e um

“retorno” de estados que se alternam sob os auspícios de um “perspectivismo antropológico” aguçado. Cultura é interdição saudável para melhor realçar a natureza – porque Cida, a partir de uma psicanálise

singular, restaura o interdito de Lévi-Strauss para desvelar a vida como um enigma insuperável que melhor se degusta quando apimentado. A

interdição está ali presente para isso: Criamos interdições para melhor

degustar as transgressões – algo entre o incesto de Lévi-Strauss e o

desejo na acepção de Sade. Criamos interdições, e chamamos a isso de cultura,

para

experimentar

a

“natureza”

em

estado

bruto

(desculturalizada a partir da desconstrução da “norma” imposta). A “norma” permite o jogo, e o jogo, por sua vez, é aquilo que se descreve

em termos dessa velha e sacra antinomia antropológica: natureza e cultura. por

E esta edição é, portanto, uma retomada disto tudo, não apenas haver,

neste

número,

um

dossiê

específico

sobre

interdisciplinaridade, mas sim, por agregar uma tentativa de pluralidade

de caminhos que não se esquiva ao enigma e ao sentido do trágico – como apontava o filósofo José Marinho.


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 5 - 6

O dossiê, organizado por Fátima Branquinho e Fabiana Lima,

disserta sobre limites e improvisos da prática interdisciplinar, tentando

recuperar àquilo que Cida postulava como um exercício de “religação” de saberes. Há momentos onde isso irrompe pela tradição, tal como indicou

Daniele Siqueira, e outros, descritos por Nathália Alvarenga e Vagner Francisco, em que as urgências do discurso ambiental contemporâneo clamam pela religação necessária a toda ecologia.

A preocupação interdisciplinar apresenta-se reforçada na sessão

“jovens colaboradores”, na qual os artigos de Ana Claudia Santos e João Paulo Lucena discutem e revisam questões de método e possíveis religações de saberes em situações escolares.

Na sessão de fotografia, Cláudio Xavier, a partir da articulação de

imagens colhidas em deambulações intercontinentais, pensa o homem

enquanto espécie de “museu ambulante de artefatos em busca da

aceitação” – seres reduzidos a pequenos exercícios de vaidade e

escambo. Entretanto, esses “sujeitos que são troças” não deixam de nos

maravilhar. Na entrevista, a Itacoatiara segue em sua empreitada de

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“deixar a ver” o homem etnografado, ou seja, o “homem geral” que erige

teorias específicas – este que constrói e desconstrói edifícios teóricos. Há por fim um conto, no qual a memória desvela o jeito lúdico de brincar

com proporções, em que Carlos Japiassú discorre sobre uma casa... Uma casa nunca abandonada.

Thiago Sales.


JOVEM COLABORADOR:

Educação popular na perspectiva educacional indígena Ana Claudia Santos Silva

História, Metodologia, Memória João Paulo Nascimento de Lucena


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Educação popular na perspectiva educacional indígena

Ana Claudia Santos Silva

Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de JaneiroUERJ

8 Resumo

Este artigo é uma pesquisa teórica, que tem por objetivo

apresentar a educação indígena brasileira ao longo do tempo. Dialoga

com a educação popular, na medida em que a educação indígena incorpora saberes que apostam na diversidade cultural, respeita e estimula os processos próprios de aprendizagem, investe na pedagogia

da oralidade e nos saberes que circulam fora da escola. Observa-se uma

interação entre a educação libertadora de Paulo Freire e indígena, pois esta valoriza o aluno, seu conhecimento prévio e o leva a refletir sobre

seu lugar na sociedade, preservando e transmitindo a cultura de acordo com a sua realidade.

Palavras–chave: educação popular, educação indígena, movimento indígena.

JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA


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A visão da sociedade em relação aos índios

Pode-se observar nas escolas brasileiras em geral, uma educação

que não abrange claramente o conhecimento sobre os índios, tanto na

história, como na atualidade. E com isso, o professor por falta de instrução, embasado em materiais didáticos com visão etnocêntrica, acaba por transmitir uma imagem distorcida dos indígenas para os

alunos, criando estereótipos como a generalização do índio e a crença de que este é um povo primitivo e ultrapassado. Como nos mostra Freire: “Se nós não tivermos um conhecimento correto sobre a história indígena, sobre o que aconteceu na relação com os índios, não

poderemos explicar o Brasil contemporâneo. (...) tentar compreender

as sociedades indígenas não é apenas procurar conhecer “o outro”, “o diferente”, mas implica conduzir as indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos.” (FREIRE, 2006, p.1)

Para exemplificar como ocorre esta visão generalizada que se tem

do índio, citaremos o relato feito em aula, na Universidade do Estado do

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Rio de Janeiro, por uma aluna que integra um grupo de pesquisa que estuda a cultura indígena. Ela contou sobre uma menina índia, que estuda em uma escola urbana, e recebeu uma prova com a seguinte questão:

Como os índios vivem? A menina, para não contrariar a professora,

colocou a resposta de acordo com o que havia aprendido em aula: vivem nas florestas, se alimentam da caça, usam arco e flecha, tanga e dormem em redes. Modo de vida este, totalmente diferente da sua realidade.

Muitas pessoas acreditam que a partir do momento em que um

índio começa a ter contato com a cultura branca e passa a adquirir

algumas coisas dessa cultura, ou seja, se ele passa a usar roupa ou relógio, deixa de ser índio. Ao pensar por esta lógica, o brasileiro que

possui um computador, usa calça jeans, ou come um hambúrguer, então não seria brasileiro, pois faz uso de coisas que não são típicas da nossa cultura.

Teor histórico da Educação indígena

Antes da chegada dos europeus em terras brasileiras, não havia na

sociedade indígena que aqui vivia, a instituição que conhecemos hoje como escola. Porém, possuíam formas próprias de transmitir em sua

língua, saberes referentes à cultura e tradição de seu povo. Não havendo JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA


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especialista em educação, o aprendizado ocorria em qualquer ambiente,

através das relações sociais, onde cada membro da tribo transmitia seus conhecimentos aos demais. Como não conheciam a escrita, ensinavam através da oralidade. Os adultos envolviam crianças e adolescentes em

todas as atividades, onde o aprendizado se dava pela prática, os mais novos tinham como exemplo os mais velhos, sendo função destes transmitir valores morais, crenças e culturas do seu povo.

A escolarização indígena brasileira tem suas origens ainda no

século XVI, período em que se deu início o processo de colonização. Os

primeiros responsáveis por essa escolarização foram os missionários católicos, que permaneceram com esta atividade até o fim do período

colonial, por delegação da Coroa Portuguesa. A iniciativa de educar os índios tinha como função a catequese e civilização. Mas sabe-se que seu principal objetivo era o de submeter politicamente os nativos, dominar seu território e explorar suas riquezas naturais. Nas palavras de Freire: “As primeiras escolas para índios – e não de índios – centradas na

catequese, ignoram as instituições educativas indígenas e executaram uma política destinada a desarticular a identidade das etnias,

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discriminando suas línguas e culturas, que foram desconsideradas no processo educativo.” (FREIRE, 2000a, 2004 p.1)

Os índios ao concluírem que deveriam se unir, em prol da luta por

suas causas e sobrevivência, iniciaram movimentos e organizações, para reivindicarem os seus direitos, e procuram de forma árdua, afirmar e garantir o seu espaço dentre a sociedade brasileira contemporânea. Através desses movimentos, houve a preocupação em preservar a sua

cultura, crenças e língua nativa. Entre os motivos que contribuíram para

este aumento populacional, estão o reconhecimento da identidade indígena, e a aceitação desta pela sociedade.

Movimento indígena pela busca de uma educação escolar diferenciada

A partir da década de cinquenta, com a vinda do Summer Institute

of Linguistics (SIL)

1

ao Brasil, surgiram novas propostas para a educação

Summer Institute of Linguistics (SIL) foi uma missão evangélica americana, criada no México na década de 1930. Por influência de intelectuais latino-americanos, o movimento se expandiu por toda América Latina. O SIL se aliou ao movimento indigenista. O resultado desta aliança foi 1

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do índio. O movimento que teve como ícone em nosso país, Darci

Ribeiro 2, propunha uma educação bilíngüe 3, como programa das escolas

públicas indígenas, além da defesa de seus direitos. Sendo assim, os meios de expressões linguísticas, não seriam mais reprimidos no espaço

escolar e teriam como objetivo preservar as línguas indígenas. O domínio da língua portuguesa pelos índios serviria como um meio de se

comunicar com os demais membros da sociedade brasileira, além de poder garantir e reivindicar seus direitos. Entretanto,

em

19

de

dezembro

de

1973,

período

que

compreendia a presença do Regime Militar, foi elaborada a lei 6.001,

título V, artigo 50, do Estatuto do Índio, dispondo, entre outras coisas,

que a educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional. Entretanto, pode-se entender que ao invés de promover a

integração indígena na sociedade, como deveria ser o real objetivo da lei

citada, esta ignora o direito do índio de manifestar livremente sua cultura em ambiente escolar.

Mais tarde, esta liberdade de manifestação cultural indígena na

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educação, foi assegurada pela Constituição de 1988, onde diz que o “ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas

línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” (Constituição Federal De 1988, art. 210, par. 2º).

Entretanto, por mais que o movimento SIL tenha sido um passo

importante no que se refere à educação do índio, e que a este, tenha sido

assegurado o direito por lei, de manifestação cultural, o objetivo da

escola ainda era o de tentar trazer o índio para a civilização. Pois, na educação formal, apesar de existirem professores índios, esta continuou sendo planejada por órgãos não-indígenas, tirando assim, a autonomia

da população nativa de elaborar seu próprio currículo. Além disso, a visão

a dupla identidade do membro do SIL (a de lingüista para os grupos nacionais e a de missionário para o público evangélico). 2 Darci Ribeiro (1922 a 1997) foi antropólogo, romancista e educador. Dedicou os primeiros anos de sua carreira (1947-56) em defesa das causas indígenas no país. Escreveu uma vasta obra etnográfica e em defesa da causa indígena. 3 No caso referido acima de educação escolar indígena, era ministrado o ensino da língua nativa de cada tribo e da língua portuguesa como segunda língua. JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA


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passada sobre os índios nas escolas não-indígenas continuou sendo preconceituosa, não estando de acordo com a realidade.

Sendo assim, em julho de 1991, o movimento dos professores

indígenas do Amazonas e Roraima 4, passou a discutir formas originais de educação, de acordo com as reivindicações de cada um dos povos indígenas que participavam do movimento. Esta discussão resultou na

declaração que foi ganhando força com o passar dos anos. Entre os princípios manifestados nesta declaração se encontram:

“1- as escolas indígenas deverão ter currículos e regimentos

específicos, elaborados pelos professores indígenas, juntamente com suas comunidades, lideranças, organizações e assessorias;

11- é garantido o uso das línguas indígenas e dos processos próprios de aprendizagem nas escolas indígenas;

13- nas escolas dos não–índios será corretamente tratada e veiculada

a história e cultura dos povos indígenas brasileiros, a fim de acabar com os preconceitos e o racismo.” (SILVA, 1994, p.46)

Ainda em 1991, a educação indígena, por Decreto Presidencial,

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passou a ser responsabilidade do Ministério da Educação (MEC). E a partir deste momento, houve uma melhora significativa no sistema educacional.

Com o passar do tempo, a cultura indígena foi ganhando mais

atenção e respeito por parte da sociedade e do Estado, sendo garantido

por lei, o apoio e incentivo a mesma. No artigo 215 da Constituição Federal de 1988, foi promulgado que o estado “(...) garantirá a todos o

pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das

manifestações culturais.” (Constituição Federal de 1988, art. 215) Esta lei foi completada em 2005, com a emenda constitucional nº 48, que reconhece a importância de valorizar a diversidade étnica e regional.

Mobilizações e lutas de movimentos sociais indígenas, resultaram

finalmente em uma educação escolar diferenciada, feita por índios e para os índios. Nesse sentido, houve a implementação de uma formação de

magistério indígena, que capacita índios e não-índios para lecionar nas escolas das aldeias, sendo

assegurado a preservação e o ensino da

cultura local. Uma reportagem feita por Roberta Bencini, em 2005, para a revista Nova Escola, apontou que há mais de 2 mil pessoas cursando o

Movimento organizado por professores indígenas de nove regiões: alto e médio Solimões; abaixo Amazonas; alto, médio e baixo Madeira; rio Negro (no Amazonas); Roraima e Acre. Procuram discutir sobre como conseguir uma escola adequada, atentando as necessidades de cada tribo.

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magistério indígena, provavelmente este número vem crescendo ao longo dos anos.

Em 1998 o MEC apresenta um Currículo Nacional para as Escolas

Indígenas. Este busca uma educação flexível, cuja base se mantém um pouco parecida com o modelo de ensino antigo dos povos indígenas,

com a preocupação de preservar os costumes, o conhecimento e a história da formação de cada povo. Em aulas de história, o professor

procura explorar relatos orais, imagens, desenhos e músicas com saberes

educativos da própria comunidade. Os alunos são incentivados a criar e

recriar a literatura local, em forma de livros e na disciplina de Educação Física tem-se uma preocupação em trabalhar atividades que desenvolvam o corpo através de danças, técnicas de caça, pesca e plantio, jogos e brincadeiras tradicionais. Sendo este o currículo que vigora atualmente.

Como podemos observar no texto de Bagno (1999), “Que país?

Que povo? Que língua?”, muitos brasileiros sabem que o idioma que

falamos no Brasil, o português, é derivado do latim. Mas a maioria desconhece a história do idioma no país e da sua relação com as diversas

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outras línguas indígenas, que aqui se falavam antes da chegada de Pedro Álvares Cabral.

Diversas comunidades da família Tupi e Guarani habitavam o litoral

brasileiro entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Havia entre elas uma grande

proximidade cultural e linguística. Para estabelecer uma comunicação com os nativos, os portugueses foram aprendendo os dialetos e idiomas indígenas. A partir do tupinambá, falado pelos grupos mais abertos ao

contato com os colonizadores, criou-se uma língua geral comum a índios e não-índios. Ela foi estudada e documentada pelos jesuítas para a catequização dos povos indígenas. Em 1595, o padre José de Anchieta a

registrou em sua Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Essa língua geral derivada do tupinambá foi a primeira influência recebida pelo idioma dos portugueses no Brasil.

Na segunda metade do século XIX, os autores do Romantismo

tentam retratar em sua obra uma brasilidade que distinguia a ex-colônia

de Portugal. Além de exaltar a figura do índio, autores como José de Alencar e Mário de Andrade trazem para a literatura a linguagem própria

do brasileiro, na busca por uma identidade nacional. O movimento

modernista, no começo do século XX, retoma a idéia romântica de resgate das origens e construção de uma identidade própria. Entretanto, tais romances mostravam um índio com características européias, sem

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fazer jus realmente a sua cultura. Desse modo, destacamos a importância

da inserção da História do Brasil, sobretudo em relação ao índio, no que tange ao estudo do português da América do Sul, visto que a cultura

indígena foi de suma importância para a história cultural-linguística do Brasil, apesar da pouca divulgação dessa contribuição.

Considerações finais

A sociedade indígena após vários séculos de opressão, vem

tomando o seu espaço e reafirmando a sua identidade. Mostrando-se

capaz de organizar e reger seu povo, através de culturas e saberes

próprios, estruturando a educação de acordo com as suas reais necessidades.

A educação indígena dialoga com a educação libertária de Paulo

Freire, no sentindo em que tem por objetivo educar as pessoas de acordo

com sua precisão, estimulando a participação, cooperação, reflexão do

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mundo e como este deve se colocar para que seja possível um diálogo, buscando sempre a melhoria da população.

Se baseando na carta dos indígenas das Seis Nações, que Benjamin

Franklin divulgou, pode encontrar o determinado trecho:

“(...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles

voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da

floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a

nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.

Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos

nobres senhores da Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens,

que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens.” (FRANKLIN, Benjamin apud BRANDÃO, Carlos R. 1987, p.10)

Diante da citação acima, fica claro a precisão de uma educação

diferenciada, de acordo com o que a determinada sociedade propõe como primordial, uma educação que respeite o conhecimento que a

pessoa já tem, utilizando como ponto de partida para o conhecimento que o educador tem por objetivo.

Nas palavras de Melià “(...) não há um problema da educação

indígena, pelo contrário, o que existe é uma solução indígena ao JOVEM COLABORADOR | EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA EDUCACIONAL INDÍGENA | ANA CLAUDIA S. SILVA


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problema da educação.” (MELIÀ, 1999, p.1) Esta fala traduz bem o que foi abordado neste trabalho, já que a educação popular indígena, que após

tantos anos de lutas e movimentos, foram conquistando mais autonomia,

pode assim utilizar o espaço escolar formal para propagar sua cultura e trabalhar métodos próprios de educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, Marcos. (1999), “Que país? Que povo? Que língua?”. III Semana

de Letras e Artes. Universidade Estadual de Feira de Santana.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. (2006), “Movimento indígena

etnopolítico: história de resistência e luta.” In: O ÍNDIO BRASILEIRO: O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL DE HOJE. Brasília: Coleção educação para todos.

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Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

15

77012004000100002. Acesso em: 09 de abril 2011.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. (1987), “Educação? Educações: Aprender com o

índio.” IN: O que é educação. São Paulo: Brasiliense.

REIRE, José Ribamar Bessa. (2004), “Trajetória de muitas perdas e poucos

ganhos”. In: Educação Escolar Indígena em Terra Brasilis: Tempo de novos conhecimentos. IBASE , Rio De Janeiro.

FREIRE, José Ribamar Bessa. (2009), “Cinco ideias equivocadas sobre os

índios”. In: Siss, Ahyas & Monteiro, Aloísio. Educação, Cultura e Relações Interétnicas. Rio de Janeiro: Editora da UFRRJ.

FREIRE, Paulo. (1997), “Pedagogia da Esperança”. São Paulo: Editora Paz e

terra, 4º edição.

FUNAI. Estatuto do Índio. LEI Nº 6.001 - DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973.

Disponível em: http://www.funai.gov.br/quem/legislacao/estatuto_indio.html > Acesso em: 09 de abril 2011.

MELIÀ, Bartomeu. (1999), “Educação indígena na escola”. In: Cadernos

Cedes, ano XIX, nº 49.

SILVA, M. Ferreira Da. (1994),“A conquista da escola: educação escolar e

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000636.pdf

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História, Metodologia, Memória

João Paulo Nascimento de Lucena

Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco e

bolsista de Iniciação Científica pelo Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões – Gestão Política Pedagógica: Diálogo entre a

Universidade e Comunidades (SESu/MEC), onde coordena o Grupo de Estudos sobre o Patrimônio Cultural (GEPaC). Interessado em

estudos relacionados à História & Memória, História do Patrimônio em Pernambuco e História do Recife, atualmente desenvolve

16

projeto

de

pesquisa

no

seguinte

eixo

temático:

Memória,

Modernização, Recife, Patrimônio. Também é monitor voluntário na disciplina História Moderna I. E participou da organização da coletânea de artigos do 3º Encontro de Estudantes Pesquisadores: O Recife em debate. Recife: Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 2013.

MONTENEGRO, Antonio Torres. (2011), História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto.

“A história é essa busca incessante dos homens, talvez mágica, talvez absurda, de um sentido para a vida.” (Rezende, 1994, p. 42)

Apresentar em poucas páginas a ideia geral de um livro é um

exercício reflexivo prazeroso e ao mesmo tempo um encargo que exige

cautela: várias coisas a se dizer e poucas delas compreendidas, ou pelo menos sentidas. Méritos a parte... O percurso entre aquilo que é

dito/escrito e a recepção pelo ouvinte/leitor não é retilíneo. Pelo contrário, o contexto, a performance, o momento psicossocial do sujeito, entre outras coisas e, sim, o uso de códigos lingüísticos adequados ou

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não, interferem nesse processo de apreensão e significação do discurso.

“Ler, então, é um jogo. Uma disputa, uma conquista de significados entre o texto e o leitor” (Sant’anna, 2001, p.11).

Não há fórmula cartesiana na relação entre os indivíduos: o corpo

social é orgânico e, portanto, individual/coletivo, reagindo a estímulos do

seu viver cotidiano e interagindo com os símbolos por ele produzidos.

Evidentemente, a cultura, enquanto criação/reinvenção do homem,

também o é (Rezende, 1994). Homens e mulheres infligem significados às coisas que lhes rodeiam, e não o contrário; o significado nasce dessa

tensa relação: a busca de compreensão do movimento das coisas no tempo e de suas ramificações acrescida/perdidas nesse processo.

Nesse sentido, a memória apresenta-se como “o que fica do

passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado” (Pierre Nora apud Le Goff, 2003, p.267). Isto é, a memória revela-se enquanto um

“saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a

forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,

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sustentando cada tomada da palavra.” (Orlandi, 2010, p.31)

O processo de rememoração implica, contudo, a impossibilidade

de reviver aquela experiência primeira à flor da pele. Segundo Antonio Torres Montenegro em artigo publicado anteriormente,

“este movimento permanente de ressignificação da memória a partir

das experiências do presente, associado a todo o conjunto de processos de fundação de outras memórias definem um vasto espectro de possibilidades de relações com o passado.” (1997, p. 200)

Estas são questões que cerceiam o trabalho do historiador que se

utiliza da história oral na coleta e registro dos relatos orais de memória. Dissemos utiliza porque estamos de acordo com o postulado de

Guimarães Neto (2011, p.1) segundo o qual “a história oral não é uma disciplina, mas uma metodologia ou prática de pesquisa” que não

objetiva contrapor-se à escritura e nem deve ser tratada como

reconstituição de um “elo perdido” ou muito menos chave explicativa de retorno ao registro primeiro da memória e do acontecido.

Em consonância com isso encontra-se o autor de História,

Metodologia e Memória. Nele, Antonio Torres Montenegro discute a

validade do uso da história oral como metodologia para a produção histórica dos acontecimentos e, sobretudo, das práticas do homem nos deslocamentos significados.

de

outras

temporalidades,

produzindo

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outros


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“Uma narrativa que privilegia aspectos e temas caros ao debate

metodológico e o permanente diálogo com a historiografia anterior e posterior ao golpe civil-militar de 1964.” (Montenegro, 2010, p.13)

Segundo Guimarães Neto (2011), todo bom livro de história é

resultado de pesquisa com base nos documentos e na atividade da

escrita: ele revela os vestígios de seu fazer. Isto é, ele contém os traços,

ou o modus operanti segundo Michel De Certeau (1982), que dão a ver a combinação do lugar sócio institucional de produção do discurso, as práticas científicas adotadas e a escrita. Todo texto de história é,

portanto, um texto problema: ele próprio objeto e também sujeito de sua

ciência que revela, de certa forma, a preocupação do autor e, por conseguinte, mas não estritamente, a de seu tempo.

O texto de Antonio Torres Montenegro não é diferente. Centra-se

sobre as formas pelas quais os entrevistados atribuem significados à sua memória e reflete sobre a construção de uma história que contemple a pluralidade desses sentidos e as várias formas de contá-la, pois

“a análise histórica tem como foco primordial as relações, os

percursos, as práticas, porque através do seu estudo é que se poderão

18

construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca o objeto ou a coisa à palavra.” (Montenegro, 2010, p. 31)

A própria palavra texto, que vem do latim textus, significa tecido,

isto é, aquilo que é tecido junto. E é procedendo com cautela que identificamos um pesquisador que tece e cose com rigor teórico

metodológico uma tessitura narrativa que privilegia um fecundo diálogo entre as fontes orais e a escrita. Assim, Montenegro preocupa-se em

“apontar o quanto as experiências históricas, tecidas nos relatos orais,

devem romper com os sentidos instituídos com base em análises que

desconhecem as condições de sua produção, suas estratégias e ordenamentos discursivos.” (2010, p.14)

História, Metodologia e Memória contém seis artigos dispostos em

capítulos. No primeiro deles, Rachar as palavras: uma história a contrapelo, Montenegro apresenta um balanço do processo pelo qual o estatuto

do

método

científico

de

René

Descartes 1

foi

sendo,

Filósofo francês que publicou o Discurso do Método (1637), obra que regeu o conceito de ciência no Ocidente por três séculos (XVII-XIX) e que operava com o que hoje Edgar Morin (2011) chama de “paradigma da simplificação”, termo que utiliza para se referir ao paradigma cartesiano que apresentava os seguintes procedimentos do que deveria ser entendido por conhecimento científico: tomar o objeto por claro e evidente; disjunção do conhecimento; hierarquizar do mais simples ao mais complexo; e generalizar, estabelecendo leis. Ou seja, “um modelo científico que defende a existência de uma realidade natural, 1

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paulatinamente, minado pelas críticas e contribuições de outras áreas do conhecimento ao longo século XX, sobretudo as recentes discussões da

física contemporânea, com a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein e a

Teoria da Incerteza, de Heisenberg, e suas ressonâncias no campo das ciências humanas, em especial na História.

No segundo capítulo “Narradores itinerantes”, o autor problematiza

a relação entrevistador-entrevistado sob a ótica do texto “O narrador:

considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin. Dentro deste artigo há uma seção muito interessante intitulada Gilda e

seus Príncipes, fruto de um projeto de pesquisa realizado junto a

trabalhadores (as) e moradores (as) do Bairro do Recife na década 1980 com o objetivo de reconstruir seus fragmentos de memória acerca daquele bairro. Revelando-se uma grande narradora, Gilda recorda as lições tiradas das suas experiências e projeta assim uma janela pela qual

podemos visualizar o grupo de mulheres no qual se encontrava inserida, pois “suas histórias são as de outros milhares de mulheres. A memória

individual e a coletiva alinham-se, assim, de maneira inseparável”

19

(Montenegro, 2011, p. 63).

O terceiro e sexto capítulos “Ligas Camponesas e sindicatos rurais

em tempo de revolução” e “Labirintos do medo: o comunismo (19501960)”, respectivamente, são artigos que revelam a gama de documentos de que o autor dispôs para analisar o impacto da mobilização camponesa

e do medo daquilo que se difundia amplamente na mídia como a iminência do perigo comunista, associados “à destruição de valores e

práticas muito caros à sociedade, como a família, a propriedade privada e a religião.” (Montenegro, 2011, p. 16)

Por fim, o quarto e quinto capítulos “Arquiteto da Memória: nas

trilhas dos sertões de Crateús” e “Política e Igreja Católica no Nordeste (1960-1970)”, respectivamente, discutem acerca da atuação da Igreja Católica no âmbito das lutas políticas estabelecidas nas décadas de 1950

e 1960 no Brasil, assim como a política mundial adotada pelo Vaticano contra o avanço do comunismo, espiritismo e protestantismo nos países periféricos, que “informa e ao mesmo tempo ajuda a situar a relação que

se estabelece entre setores da Igreja Católica e as esquerdas antes do golpe de 1964; e também a lenta mudança política que se observa nessa.” (Montenegro, 2011, p.17)

pronta, matematicamente determinada e submetida a leis, independente da intervenção ou participação humana” (Montenegro, 2010, 24). JOVEM COLABORADOR | HISTÓRIA, METODOLOGIA, MEMÓRIA| JOÃO PAULO NASCIMENTO DE LUCENA


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Para o pesquisador que busca se debruçar sobre a complexidade

da história oral e seu intermitente diálogo com a memória e as tensões e

questionamentos teóricos e metodológicos suscitados pela adoção dessa prática de pesquisa, História, Metodologia e Memória é livro de

referência. Para o curioso leitor, a obra constituir-se-á de sumo interesse e explanação, pois concilia assuntos caros à História com uma escrita leve e objetiva que não prescindi do rigor no uso de palavras e conceitos.

Para o estudante de história é leitura obrigatória, pois o livro é

uma lição de como produzir uma narrativa não sujeita a sucessão temporal e à causalidade, mas de uma tessitura entremeada de uma multiplicidade de fragmentos de discursos dos atores sociais cotidianos que revela uma história a contrapelo. Uma lição de como contar.

A escolha da capa talvez informe àqueles mais atentos acerca do

que se trata o fazer historiográfico: trata-se de um trabalho de artífice,

de um trabalho de carpinteiro ou marceneiro cuja precisão é exercício apreendido com determinação e paciência através da oralidade e da prática. O historiador é, portanto, um contador-artesão.

20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DE CERTEAU, Michel. (1982), “A operação historiográfica”. In: A escrita da

história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, pp. 56-108.

GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. (2011), “Historiografia, diversidade e história oral: questões metodológicas”. In: LAVERDI, R. et. al. História, diversidade,

desigualdade. Santa Catarina: UFSC; Recife: UFPE.

LE GOFF, Jacques. (2003), História e Memória. 5. ed. Campinas, SP: Editora Unicamp.

MONTENEGRO, Antonio Torres. (1997), “História Oral e interdisciplinaridade. A invenção

do

olhar”.

In:

SIMSON,

Olga

de

Moraes

Von.

Os

desafios

contemporâneos da história oral – 1996. Campinas: CMU/Unicamp, pp. 197212.

__________, __________. (2010), História, metodologia, memória. São Paulo:

Contexto.

MORIN, Edgar. (2011), “A inteligência cega”. In: Introdução ao pensamento

complexo. Porto Alegre: Sulina, pp. 09-16.

ORLANDI, Eni Puccinelli. (2010), “Sujeito, História, Linguagem”. In: Análise de

discurso: princípios e procedimentos. 9. ed. Campinas: Pontes Editores, pp. 23-

55.

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REZENDE, Antonio Paulo. (1994), A cultura e a construção dos espelhos. Disponível em: http://www.ufpe.br/ppgfilosofia/index.php?option=

com_content&view=article&id=324&Itemid=246. Acesso em: 18 de março de 2013.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. (2001), “Ler o mundo; O Furor de Ler”. In: Ler o

Mundo. São Paulo: Global, pp. 10-12.

21

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dossiê: Representações da Interdisciplinaridade: entre a discussão e a prática

As Entranhas das Humanidades: Reflexões acerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição. Danieli Siqueira Soares

Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor Fabiana de Oliveira Lima

Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ – campus Volta Redonda-RJ Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho

A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar Nathália Alvarenga Porto Costa

Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade Rejane Peres Costa


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Apresentação

Desenvolver textos sobre interdisciplinaridade confrontou-nos

com algumas constatações e controvérsias que envolvem a integração de

disciplinas. O primeiro intuito foi trazermos experiências de tais integrações e ao mesmo tempo, observar teorias que embasaram a

valorização da interdisciplinaridade enquanto prática indispensável para o

cotidiano – seja ela científica ou não. Enfim, já estamos fazendo separações. De fato, nossa vivência acadêmica ainda costuma nos direcionar a especialização dos assuntos e não há estímulos a uma

prática interdisciplinar que amplie nossa condição de percepção e análise daquilo que estudamos.

6 23

Acompanharemos ao longo dos cinco textos diferentes discussões

sobre como a integração de disciplinas pode ocorrer com ou sem planejamento. Assim como, como é possível decidirmos por tratar os

nossos estudos de modo interdisciplinar. Um conjunto de autores nos

ajudaram a realizar reflexões sobre um dos assuntos mais discutidos, apontado como solução para o desvelar de aspectos complexos: Edgar

Morin, Ilya Prigogine, Bruno Latour, Josef Brozek, Marcel Mauss, entre tantos outros.

No caminho trilhado, visitamos desde experiências etnográficas

como meio para a prática interdisciplinar, passando pela possibilidade de soma entre o tradicional e a ciência, seguindo das ideias sustentáveis

como aporte a integração e chegando a importância do conceito para a prática pedagógica. A sequência dos textos não é linearmente lógica e terá um sentido diverso para cada leitura.

DOSSIÊ | APRESENTAÇÃO


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As Entranhas das Humanidades: Reflexões acerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição.

Danieli Siqueira Soares Graduada em Ciências Sociais – UFPE; Mestre em Antropologia –

UFPE; Doutoranda em Sociologia – UFPB; Professora Substituta do Departamento de Sociologia – UFPE.

24

Resumo

Seja na esfera individual ou social o movimento é constante,

desta forma uma ciência que se proponha ciência do homem, ou ciência do ser humano, ou ciência da humanidade, deveria considerar este ritmo das coisas, do tempo, do ser, do estar, da vida que se constituem pela

mudança. E assim, dentro desta perspectiva, as identidades, os acontecimentos e tudo de mais concreto que queiramos imaginar, está

inteiramente fragmentado. As Parteiras – pontes para este estudo -

podem ser entendidas como bricoleur, conceito abordado por LéviStrauss (2010), visto que seriam dotadas da capacidade de criar a partir do que está dado.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Parteiras, Tradição.

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Introdução

Parto da premissa, como afirma Castoriardis (1982:162) que “a

arte não descobre, mas constitui”, no sentido de que criação não é

descoberta, mas constituição do novo e que a relação disso com o real não é uma relação de verificação.

E já aproveitando para refletir nas ondas da complexidade, tão

altas e tão profundas, que vão e vem, assim como a maré, como num ciclo incessante de afirmações e refutações, vê-se que ao partir de um

principio, talvez, contrariando Castoriardis já falamos de um apriorismo. Ao mesmo tempo sugiro que repensemos a significação de conceitos,

começando quem sabe pelo o de a priori, visto que o próprio Castoriardis

apesar de sua crítica ao funcionalismo e ao estruturalismo nos confirma que a constituição dos símbolos não é livre (numa liberdade ilimitada) nem para o indivíduo, nem para a sociedade, é sempre tomada a partir de “algo que já existe”.

25

O simbolismo não pode ser nem neutro, nem totalmente adequado,

primeiro porque não pode tomar seus signos em qualquer lugar, nem pode tomar quaisquer signos. Isso é evidente para o indivíduo que encontra sempre diante de si uma linguagem já constituída, e que se

atribui um sentido “privado” e especial a tal palavra, tal expressão, não

o faz dentro de uma liberdade ilimitada, mas deve apoiar-se em alguma coisa que “aí se encontra”. Mas isso é igualmente verdadeiro

para a sociedade, embora de uma maneira diferente. A sociedade

constitui sempre sua ordem simbólica num sentido diferente de que o indivíduo pode fazer. Mas essa constituição não é “livre” [...] Todo

simbolismo se edifica sobre as ruínas dos edifícios simbólicos precedentes. (CASTORIARDIS, 1982:146-147).

Serão os sujeitos ao chegar ao mundo, pensando mesmo num

modelo transumano, uma tabula rasa? Entendendo a sociologia como filha da modernidade, ou seja, presa na gaiola das loucas e dos loucos, para não dizer, já dizendo, vestida com o “manto de ferro” weberiano,

visualizo o eterno dilema, ou quem sabe até, psicose desta ciência. O que

é sujeito? O que é objeto? O que é agência? O que é estrutura? O que é parte? O que é todo? Eles se relacionam? Como? Quem tem soberania? Onde o pesquisador (sociólogo, etnólogo, antropólogo, etnógrafo,

musicólogo) fica em meio a isso tudo? É sujeito? É objeto? Categoria indefinida? Constrói realidades junto aos seus “pesquisados”?

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Este de fato parece ser um caminho sem volta, pelo qual a ciência

social, em minha opinião, não pode se esquivar visto que faz parte de um mundo

ou

mesmo

“sistema

mundo”

como

afirmam

as

teorias

descoloniais, que passa por intensas e profundas transformações

epistemológicas, epistêmicas, hermenêuticas. É como se o mundo estivesse sendo e precisa ser “virado ao avesso”, assim como uma

metáfora usada por algumas Parteiras Tradicionais quando afirmam que

pra parir a vida é preciso virar ao avesso, é preciso acessar o

“pensamento selvagem”, compreendendo que este pensamento está

presente em todos os seres humanos, ou seja, pensamento selvagem não é o pensamento do selvagem, do primitivo, é “o” primitivo e é esse que o mundo parece talvez ainda sem saber está vorazmente a procura.

Inspirada em Bruno Latour pergunto será que já fomos modernos?

Ou foi tudo simplesmente uma tradição inventada? Quiçá um sonho, ou pesadelo. Se somos, fomos ou deixamos de ser modernos, ou se tudo

não passa ou não passou de uma tradição inventada, será que é isso que verdadeiramente importa?

26

O caso da Universalidade

Talvez

a

universalidade

existente

aquela

da

estrutura

do

pensamento humano 1, jamais poderá ser captada por inteiro pela ciência social

ou

qualquer

outra

ciência,

provavelmente

por

que

esta

universalidade é infinita, o que se poderia acessar por momentos seriam as variações dos temas universais, que muito possivelmente também não podem ser captados em sua totalidade visto que as variações em suas entranhas são da mesma forma universais, ou seja, tendem ao infinito.

Poderíamos chamar este processo de pieces of variation, se pudemos

falar em alguma captação, falamos de “pedaços destas variações”, que ao

serem captados já não são mais o que eram. E por que teriam que ser? Eis a questão.

A mudança é contínua, incessante, a única coisa que parece de fato

está sempre presente é a transformação. Um passo a frente, já não

estamos mais no mesmo lugar. Diria o mangue beater, Chico Science.

1

Em termo lévistraussiano.

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Seja na esfera individual ou social o movimento é constante, desta

forma uma ciência que se proponha ciência do homem, ou ciência do ser

humano, ou ciência da humanidade, deveria considerar este ritmo das coisas, do tempo, do ser, do estar, da vida (que não só humana, vale

ressaltar, ritmo da existência, de todas as espécies, vegetais, minerais,

animais) que se constituem pela mudança. E assim, dentro desta

perspectiva, as identidades, os acontecimentos e tudo de mais concreto que queiramos imaginar, está inteiramente fragmentado.

Não ser mais o que era não significa dizer que nada mais tem a ver

com o que passou. Os ‘pedaços’ se reatualizam, no entanto os elos

permanecem. Parece às vezes que a lógica da racionalidade, de um conhecimento secularizado busca romper completamente os elos, entre o antes e o depois, aliás, pensar em termos de antes e depois já parece ser resultado desta lógica.

Tempo. Este é um ponto chave para pensar a metodologia no

contexto das ciências sociais. Braudel (1990) nos convida a este

mergulho. O equipamento necessário para o êxito desta empreitada é

27

antes de qualquer coisa reconhecer a importância da interdisciplinaridade

entre as ciências sociais. O dialogo entre a história, a sociologia, a antropologia e as diversas ciências do homem (e da mulher!), permitirá repensar

um aspecto muito importante dentro do contexto das

humanidades que é “a duração social”.

Aponta para a pluralidade do tempo social. E assim defende uma

historia de longa, como diz Braudel (1990), muito longa duração. É a

passagem do instantâneo para uma história de amplitude secular. Critica a ideia de ‘acontecimento’, que é explosivo, ruidoso, dura um momento apenas, só é possível enxergar sua chama e nada mais.

Como sugere Braudel (1990), a perspectiva da longa duração

valoriza aspectos da continuidade que costumam ser enquadrados pela

razão moderna (a qual, por vezes se mostra unicamente irracional). Braudel (1990) enfatiza a realidade como “reconstrução”.

[...] Inquiridor do tempo presente só alcança as ‘finas’ tramas das estruturas, sob a condição de reconstruir ele também, de antecipar hipóteses e explicações, de rejeitar o real tal como ele é percebido, de

truncá-lo, de superá-lo; operação que permitem todas elas escapar

aos dados para os dominar melhor, mas que – todas elas sem exceção – constituem reconstruções. Duvido que a fotografia sociológica do

presente seja mais ‘verdadeira’ que quadro histórico do passado, e séENSAIOS | AS ENTRANHAS DAS HUMANIDADES: REFLEXÕES ACERCA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS, INTERDISCIPLINARIDADE E TRADIÇÃO | DANIELI SIQUEIRA SOARES


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lo-á

tanto

menos

quanto

reconstruído. (1990:20-21).

mais

afastada

pretenda

estar

do

Ainda pensando na variável tempo podemos com certeza dialogar

com diversos autores das ciências sociais. Boaventura de Sousa Santos (2002) propõe uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências

compondo

dentre

outras

propostas

a

noção

de

epistemologias do sul. Ele critica o modelo da razão ocidental caracterizando-a como razão indolente (nos termos de Leibiniz). Sugere o

modelo

de

razão

cosmopolita

onde

estariam

presentes

três

procedimentos sociológicos, a saber, a sociologia das ausências, das emergências e o trabalho da tradução.

O foco que busco ressaltar aqui da perspectiva de Boaventura é o

da temporalidade, a partir da proposta de ‘dilatação do presente’. Este talvez possa ser um ponto de dialogo com a tese de longa duração de Braudel.

Além de se considerar única, “diminuir” a multiplicidade do mundo

e o expandir ao mesmo tempo a partir de suas regras, a racionalidade

28

ocidental contrai o presente e expande o futuro. Já a racionalidade cosmopolita busca o inverso, contrair o futuro e expandir o presente, a

partir daí, amplia-se também o mundo. A sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, as das emergências expande o domínio das experiências sociais possíveis. Logo,

para Boaventura a alternativa à teoria geral, ou seja, a universalização da ciência é o trabalho da tradução, o qual incide tanto nos saberes quanto nas suas práticas.

O problema da invenção do outro

A ‘invenção do outro’ parece ser tema recorrente nas ciências

sociais, às vezes com grande preocupação epistemológica a respeito desta prática sociohumana, mas de fato onde residirá o problema em

inventar o outro se nos ‘auto-inventamos’ constantemente? Como, por que e para quê. Reside aí a essência da questão. O cru só existe em

relação ao cozido, o ‘outro’ só existe por que ‘eu’ o invento, caso contrário ele jamais seria outro (nem eu mesmo/a). O contexto em todo caso se dá de forma relacional. É na relação que está ancorado o problema da ‘invenção do outro’’. Algumas correntes do pensamento na

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ciência social não consideram nas entrelinhas de suas ciências tão científicas a invenção que o outro faz de si próprio, nem tão pouco as

relações de poder que são angariadas por esta invenção relacional. Diversos dispositivos de poder estão presentes nesta relação, um deles

citado por Castro-Gómez (2005) utilizando as análises da venuezuela

Beatriz Gonzalez Stephan sobre os dispositivos disciplinares do poder no contexto latino americano no século XIX, é a letra, representada nas constituições, nos manuais de urbanidade e nas gramáticas de indioma.

Castro-Gómez critica o “projeto da modernidade” em termos

Habbermasiano ressaltando a importância dos estudos pós-colononiais no campo das ciências sociais em especial por estes terem apontado que o surgimento dos Estados nacionais na Europa e na América não se deu

de forma autonôma, ou seja, pelo simples processo de transição entre a tradição e a modernidade, onde a racionalidade (weberiana) seria uma

qualidade inerente as sociedades ocidentais. E sim que houve uma

contrapartida estrutural fundamental para este surgimento: a colonização da Europa além mar. Este, segundo ele, é o principal limite das ciências

29

sociais que reproduzem o imaginário colonial de que o colonialismo não representou

modernidade.

destruição,

historiografia.

Essa

mas

ideia

foi

também

o

é

caminho

inevitável

reproduzida

pela

para

a

propria

Ainda de acordo com Castro-Gómez, as ciências sociais se

constituem

neste

espaço

de

poder

moderno/colonial

e

nos

conhecimentos ideológicos gerados por ele. A ciência social nunca vivenciou um ‘ruptura epistemológica’ – no sentido Althusseriano, face a

ideologia. Reproduz e se reproduz a partir da lógica da colonialidade, do evolucionismo, da Europa como centro, do caminho necessário a ser

trilhado por todas as nações, da bárbarie rumo à civilização. Neste

sentido, as ciências sociais funcionam estruturalmente como ‘aparelho ideológico’, nascem entre o século XVII e XVIII e se sustetam por uma imagem

colonial

de

caráter

ideológico.

Das

portas

para

dentro

legitimavam a exclusão e disciplinamento daqueles individuos que não se

enquadravam no modelo de subjetividade necessário para que o estado implementasse suas políticas de modernização.

Das portas para fora

legitimavam a divisão internacional do trabalho e as desigualdades nos

termos de troca e e comércio entre o centro e a periferia. A produção de alteridade para dentro e para fora faziam parte de um mesmo dispositivo de poder.

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E as ciências sociais seguem o desafio de aprender a nomear a

totalidade

sem

cair

no

essencialismo

e

no

universalismo

dos

metarrelatos, tornar visíveis os novos mecanismos de produção das

diferenças em tempos “novos”, e livrar-se de uma série de categorias

binárias que já não servem para pensar o contexto atual (Castro-Gomez, 2005).

O cru existe em relação ao cozido, mas não quer dizer que um se

sobrepõe ao outro, assim se pensadas como os dois lados de uma mesma

moeda, com toda complexidade que o fato requer, vale ressaltar. Assim

sendo, os dados do ‘campo’ sociológico jamais poderão ser coletados, eles são construídos e reconstruídos, assim como o próprio campo o é.

A experiência das Parteiras: saber e tradição

Assim como é de costume na sociedade das luzes de pôr os pares

em polos opostos foi feito também com a noção de “Mythos” e “Logos”,

30

onde ao primeiro foi dado o caráter de interioridade, da subjetividade,

entendida como fábula desprovida da verdade e ao Logos foi direcionado o caráter da Razão, da objetividade e da verdade.

De acordo com MORIN (1986) esses dois polos estão imbricados

numa teia complexa.

Os mitos não podem ser estudados de forma isolada, pois o mito é

composto de todas as suas variantes. (Lévi-Strauss, 2003). Os mitos obedecem a alguma lógica própria do imaginário coletivo.

O saber mágico é mitológico e mitopoético em sua essência e

desta maneira ele está presente nas sociedades ditas “sem escrita” bem como nas sociedades contemporâneas, isto é, em plena fumaça urbana

do século XXI. Assim também acontece com o arquétipo da Mulher Sábia, ele perpassa a barreira do tempo, vai ganhando novas características, se transformando, mas continua se referindo a uma temática universal. Está

presente no imaginário coletivo. Os saberes das Parteiras estão englobados neste contexto ultrapassando as barreiras do tempo e do

espaço, mas remetendo sempre a uma imagem específica, da Mulher enquanto curandeira, detentora de conhecimentos sagrados. Desta forma

podemos considerar que a Tradição ela é mítica, visto que ela modifica suas variantes, mas ela permanece viva.

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De acordo com Balandier (1997) de modo algum a tradição e seus

processos cognitivos podem ser tomadas como imóveis, rígidos e parados para sempre no tempo e no espaço. Estes aspectos concedem a

tradição um caráter sobre-humano, divino, onde o saber pertencente a

ela foi revelado por heróis, deuses ou fundadores míticos e ela torna-se

como um depósito sagrado desses saberes e seus transmissores como que porta-vozes desses poderes originais.

As Parteiras podem ser entendidas como bricoleur, conceito

abordado por Lévi-Strauss (2010), visto que seriam dotadas da

capacidade de criar a partir do que está dado. A Parteira Tradicional parece possuir um saber que realiza adaptação e resolução de problemas, a partir do reordenamento habilidoso do que está disposto.

O conhecimento das Parteiras no Brasil é repassado de forma oral

através das gerações. Esta oralidade também ocorre em outros povos

como é o caso dos índios Cuna que habitam o território da República do Panamá. Baseado em dados publicados em um texto mágico religioso de

Wassen e Holmer 2 sobre a cura xamanística entre os índios Cuna, Lévi-

31

Strauss (2003) nos relata sobre a importância da oralidade para este povo. Refere-se a um longo encantamento cuja versão indígena ocupa dezoito páginas. A situação é de um parto difícil e o diálogo é entre a

parteira e a parturiente. O fato é que ali cada interlocutor repete exatamente a frase do outro antes de responder-lhe, isto se dá, de

acordo com Lévi-Strauss (2003:222) “pela necessidade dos povos

limitados à tradição oral de fixar exatamente pela memória aquilo que foi dito”. Vejamos:

A doente diz a parteira: Certamente eu estou vestida com a quente vestimenta da doença. A parteira responde à doente: Tu estás certamente vestida com a quente vestimenta da doença, assim também eu te escutei. (Lévi-Strauss, 2003:222).

Ainda baseado nos mesmos dados citados acima, Lévi-Strauss

(2003) propõe interessantes perspectivas teóricas com relação à eficácia simbólica que um mito e um rito podem oferecer. Depois de detalhar este processo xamanístico, ele afirma que o mito é vivido no corpo interior e possui uma eficácia e um fim.

2

HOLMER, Nils M. & WASSEN, Henry. Mu-Igala or the way of Muu, a medicine song from the Cunas of Panamá. Göteborg, 1947.

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A cura, pois, se daria através de um conjunto de crenças no qual a

doente acredita, e ela faz parte de uma sociedade que também acredita

nestas crenças, onde podemos perceber o caráter social que tem grande importância na eficácia do mito.

Para Lévi-Strauss, o inconsciente é formado por um conjunto de

estruturas preexistentes e se reduz à função simbólica que em todos os

homens se exercem sob as mesmas leis (isto é, a forma de operar o

pensamento humano é a mesma em todos os povos atemporalmente). Segundo ele, é importante ressaltar que a estrutura permanece a mesma

independentemente da forma que o mito seja recriado (pelo sujeito

individual, pelo sujeito coletivo, pela tradição). Vejamos algumas palavras do autor:

Quer seja o mito recriado pelo sujeito quer seja tomado de

empréstimo à tradição, ele só absorve de duas fontes, individual ou coletiva (entre as quais se produzem constantemente interpenetrações

e trocas), o material de imagens que ele emprega; mas a estrutura permanece a mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza. (Lévi-Strauss, 2003:235).

32

Com suas rezas, manipulação de ervas e formas específicas no

partejar as Parteiras reafirmam e materializam a relação com o dom. As Parteiras Tradicionais estão constantemente atualizando o mito do dom,

daimon através do ritual do parto. No momento do parto o tempo é

transformado, já não mais se vivencia o tempo Chronos e sim o tempo Kairos que é o tempo fora do tempo, o tempo do divino, da renovação da vida, o tempo mítico.

Para Lévi-Strauss o mito fornece sentido para nossa existência. E o

rito permite a atualização dos mitos. Quando se ritualiza, se cristaliza e se materializa os próprios temas universais.

As práticas efetuadas pelas Parteiras fazem parte de um conjunto

ritual, possuem eficácia tanto material quanto simbólica. Em um ritual de nascimento, por exemplo, alguns chás, manobras e rezas praticadas pela Parteira podem promover a dilatação do colo do útero que está

paralisada, possibilitando desta forma à efetivação do nascimento. Logo, este rito é produtor de sentido. De um, dentro uma multiplicidade de sentidos existentes na trama complexa da vida.

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‘Desde dentro’ e ‘desde fora’, ‘para dentro’ e ‘para fora’...

A interdisciplinaridade

Como a ciência acadêmica, ainda em grande medida baseada nos

moldes da razão instrumental, lida com o conhecimento dito tradicional ou popular? Como ir além das cercas que dividem o mundo em dois (seja

o mundo das coisas ou o mundo das ideias)? O terreno é sinuoso e muitas

vezes

até

Interdisciplinaridade.

minado.

Uma

possível

solução

é

nomeada

Buscar a interseção entre os conhecimentos, ligar as diversas

disciplinas, as formas de ver, sentir e estar no mundo é um objetivo nem sempre alcançado, em especial se falamos da relação entre saberes, de

um lado científico, de outro popular. Dispositivos de dominação envolvem esta relação, que ‘inventa o outro’ como exótico muitas vezes,

como é o caso das Parteiras tradicionais. Seja pelas ciências sociais ou pelas ciências da saúde a interdisciplinaridade nem sempre vale para

33

todos/as. É só respondermos as perguntas: onde está a maioria das Parteiras? Como elas vivem?

Como transitam na sociedade? Tem sua

profissão reconhecida? da

O caminho trilhado nesta relação entre os saberes muitas vezes é o

apropriação/violência,

como

afirma

Boaventura

(2007).

O

conhecimento dito científico se apropria do conhecimento dito popular. E o “dito” pressupõe uma relação de superioridade versus inferioridade.

Além da apropriação produz-se o outro saber como ‘não existente’, e excluem

às

pessoas

envolvidas

corroboram para este processo.

neste

saber.

As

ciências

sociais

E assim a interdisciplinaridade efetivamente deixa uma lacuna.

Como percebido a partir da experiência das Parteiras tradicionais que continuam em grande medida desvalorizadas, inclusive de direito, visto que sua profissão não é legalizada, ou seja, as Parteiras não possuem direitos e benefícios trabalhistas, mesmo sendo um dos ofícios mais antigos do mundo. E mais além e preocupante é o fato de que seu saber é

apropriado, posto sob o ‘crivo’ da ciência, validado com outro nome, a

partir de outra lógica, e elas (nós), as Parteiras continuam sendo perseguidas pelos cartórios de registro civil, pelos conselhos regionais de

medicina, pelos próprios médicos e em alguns casos até por parte do chamado movimento de humanização do parto.

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Em nome da interdisciplinaridade se criam novas instâncias de

poder, de forma mais sutil e talvez até mais potencializada. Esta é uma dimensão forte e presente na relação de outros saberes com o saber tradicional das Parteiras. Assim percebo.

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34

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WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo-Texto

Integral, Edição revisada, São Paulo, Editora Martin Claret, 2003.

35

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Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor

Fabiana de Oliveira Lima Turismóloga graduada e mestre em Antropologia – UFPE; Doutora em

Ciências

Sociais,

Antropologia

Doutoranda em Gestão, UÉvora, Portugal

UFP,

Porto,

Portugal.

36 Resumo

Desde as Grandes Guerras a humanidade tem buscado outras

fontes de referência, principalmente para o desenvolvimento dos estudos científicos. O termo interdisciplinaridade é vastamente discutido e

apontado como solução para os nossas inquietações atuais. No entanto, como podemos identificar a aplicação da interdisciplinaridade? Para

buscar caminhos a esta questão, debruçamo-nos sobre uma breve retomada do contexto de valorização da integração de disciplinas e

buscamos exemplos da prática interdisciplinar a fim de reconhecer como ela pode ser empreendida em diferentes situações.

Palavras-chave:

Comportamento.

Prática

interdisciplinar,

Antropologia

do

Consumo,

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Introdução

A integração formal de disciplinas distintas emerge como solução

para compreender os eventos e conjunturas sociais que se instauram

incisivamente após as duas grandes guerras mundiais. Durante as décadas

de

1950

e

60,

muitos

investimentos

em

tecnologia

e

infraestrutura trouxeram novos olhares para as mais distintas áreas científicas, principalmente para aquelas diretamente envolvidas com o desenvolvimento e planejamento nos grandes centros urbanos.

Interdisciplinaridade passou a ser apontada como possibilidade

para adentrar, apreender elementos que estariam entre disciplinas

distintas, ampliando a possibilidade de avanços, aumento da criatividade e inovação 1. A principal motivação apontada para integrar disciplinas

adveio das reconhecidas limitações metodológicas de cada uma delas estudada separadamente. A conjuntura socioeconômica imprimiu a

urgência de encontrar novos sentidos, refazer estruturas e apontar outros

37

caminhos para a humanidade. Contudo,

o

principal

questionamento

quanto

à

interdisciplinaridade persiste sobre as condições de praticá-la: será que é

de fato possível ou simplesmente, é sempre praticada sem que haja um parâmetro para identificarmos como acontece? Por outro lado, as

primeiras indicações dessa prática entre distintas áreas científicas também foi incentivada pelo excesso de especialização, principalmente nas ciências da saúde, que acabaram por dificultar até mesmo compreensões menos complexas sobre as matérias dessa área.

Quando pensar a integração de disciplinas?

Josef Brozek 2 é apontado por Julie Klein (2005) como um dos

cientistas pioneiros na indicação das práticas interdisciplinares para as ciências da saúde, a partir da publicação de seu artigo “General Aspects

O termo inovação é aplicado no referido período como único caminho para atingir o “equilíbrio perdido” com as duas grandes guerras. Para mais, ver Barro (1944) e Peter Drcuker (1950) 2 Nascido em 1913 na atual República Tcheca, emigrou para os Estados Unidos em 1939, quando já possuía PhD em Psicologia. Desenvolveu diversos estudos sobre o comportamento humano e as influências da nutrição no mesmo (MASSIMI; CAMPOS, 2004). 1

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of Interdisciplinary Research in Experimental Human Biology” (1944).

Muito embora, a ideia de “Integração” já tivesse sido defendida pelo

psicólogo Herbet Spencer em 1855, assim como a teoria da “Instrução Integrada”, desenvolvida por Alexis Bertrand em 1898. Brozek demonstra

como pesquisas desenvolvidas por psicólogos 3 sobre o comportamento humano e os hábitos nutricionais estão diretamente implicadas – os aspectos bioquímico, psicológico e fisiológico seriam essenciais para resultados mais proveitosos nos estudos da biologia humana.

Portanto, defendeu que a colaboração entre disciplinas, embora

exigisse maior dedicação do cientista, era indispensável, tendo em consideração que a realidade é composta de uma complexidade muito

maior. Em um segundo artigo, ressaltou a interdependência científica e a necessidade de uma ciência mais realista:

The Interdisciplinary approach in scientific research is a logical alternative to scientific atomism brought about by specialization of research workers (BROZEK, 1945, p. 110).

Além da biologia humana, a disciplina de história passou por

38

transformações importantes ainda na primeira metade do século passado. Historiadores alemães reconheciam como insuficientes as ferramentas

metodológicas

utilizadas

até

então

e

recorreram

a

Sociologia, Filosofia e Antropologia, constituindo o que chamaram de

“História interdisciplinar”. O principal intuito era estabelecer alianças metodológicas, a começar pela Sociologia, em 1937 (HORN; RITTER, 1986).

A força propulsora da “História interdisciplinar” 4, na Alemanha e

França foram os fortes apelos a especialização e as limitações impostas pela mesma, ao passo que a complexidade dos temas apenas cresciam.

On reflection, however, it is clear that less specialization is not a possible solution, for it is this very drive towards specialization since the start of the nineteenth century which today has given us precise

and accurate knowledge in all of our academic disciplines. The growth

of significant knowledge depends upon an accumulation of more and more complex bodies of information, and these bodies of information in turn are the results of more and more complex methods of analysis. (HORN; RITTER, 1986, p. 428)

Nomeadamente, “Lewis, J; Sarbin, T. Studies in Psychosomatics. The influence of hypnotic stimulation on gastric hunger contractions. Psychosomatic Medicine, 5, 125-13, 1943” 4 Também conhecida como “Nova História”, Escola dos Annales. 3

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A história enquanto disciplina não trata apenas do passado, logo, o

historiador possuiria o papel quase de um etnógrafo na concepção do

que fora chamado de “História Cultural” aqui no Brasil e nos Estados Unidos (HUNT 5, 1984). Para além dos fatos históricos estão envolvidas

imagens, simbologias e representações culturais que interferem na interpretação do passado. Nesse sentido, os aportes metodológicos de outras ciências humanas poderiam servir de grande suporte para a

compreensão histórica – entretanto, o referido conceito interdisciplinar e

sua aplicação não tenha recebido uma quantidade significativa de adeptos quando fora lançado.

O contexto em que ocorrem os fenômenos cientificamente

observados

incluem

negligenciados

pelos

uma

série

de

especialistas.

E

fatores tal

que

costumam

negligência

empobrecer a compreensão do próprio fenômeno.

acaba

ser

por

Na Antropologia, podemos ampliar as observações. Os estudos

etnográficos, principalmente aqueles desenvolvidos por Malinowski e seus adeptos, serviram de impulso para que fossem pensadas as

39

economias de culturas distintas – de povos menos ‘desenvolvidos’- como

campo de pesquisa para as economias locais. Aliás, a etnografia aos

moldes do funcionalismo e posteriormente do neo-estruturalismo, é uma

das principais ferramentas metodológicas utilizadas por outras ciências – conforme veremos mais adiante.

A interdisciplinaridade parece emergir num momento em que as

respostas disponibilizadas pelas teorias e metodologias influenciadas

pelo positivismo não conseguiam mais saciar as dúvidas. E embora o termo ainda persista com dificuldades de aplicação, parece que reconhecê-lo como necessário é uma máxima.

Em 1962, Edward LeClair publicou um artigo sobre as diferenças e

contribuições entre a economia e a antropologia. Embora distinga

veementemente os interesses de ambas as disciplinas, ressalta que a

‘economia é como um processo social’ 6, parte de um sistema complexo e

dinâmico. O economista Karl Polanyi, por exemplo, estudou a Nova Sociologia Econômica (NSE), que reconhecia economia e sociedade

Ver “Politics, Culture, and Class in the French Revolution (University of California Press)” ou “Apresentação – História, Cultura e Texto. In:. A Nova História Cultural. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 6 “We shall see presently that, in fact, economizing may be a social process in a much more fundamental sense” (LeCLAIR, 1962, p. 1.190) 5

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mutuamente enraizadas, e se utilizou de pesquisas sobre sistemas tribais

primitivos para descontruir a ideia de que todas as sociedades se

encaminhariam para a busca constante do aumento da produção – como

pensava a Economia Moderna.

Logo, a economia humana estaria imiscuída em instituições

econômicas e não-econômicas, presente claramente nas sociedades que precederam

o

capitalismo

institucionalizado

compreensão

que

contrariava as perspectivas de Adam Smith. Polanyi (1992), aprofundou suas pesquisas sobre estudos etnográficos e utilizou os conceitos de reciprocidade, simetria e centralidade: Reciprocity

symmetrical

denotes

movements

groupings;

between

redistribution

correlative

designates

points

of

appropriational

movements toward a center and out of it again; Exchange refers here

to vice-versa movements taking place as between ‘hands’ under a Market system (POLANYI, 1992, p. 35)

Reciprocidade

teria

uma

relação

direta

com

redistribuição,

movimento natural das sociedades. Enquanto simetria, possuiria uma

40

relação direta com a centralidade dos bens, princípio das instituições para garantir o seu funcionamento. Os sistemas de reciprocidade, ou as redes, também foram defendidos como movimentos importantes e

saudáveis na economia por Mark Granovetter e Richard Swedberg – ação

econômica é socialmente situada. Esses dois autores defendem que os mercados não seriam autorreguláveis e que os governos, por mais que empreendam esforços, não conseguirão regulá-los.

A chamada “falácia da regulação de mercado” defendida e

justificada por Karl Marx, Maynard Keynes e Karl Polanyi – resguardadas as distintas trilhas seguidas pelos mesmos - reconhece que termos como desregulação ou liberação financeira e monetária, desintegração de padrões, instabilidade econômica poderiam ser manifestações óbvias

para a percepção do quanto os movimentos sociais influenciam no processo de produção-consumo, e nos consequentes direcionamentos de mercado.

O movimento dinâmico estaria presente em todos os objetos e

consequentemente, em todas as sociedades. E isso não faria referência

direta a uma ideia linear de ciclo de vida de um produto. Há uma grande dificuldade

em

gerir,

controlar

os

movimentos

econômicos.

Tal

constatação também é feita por Ilya Prigogine (1996) curioso com os estudos de termodinâmica desenvolvidos por James Yorke – que batizou ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA


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a “Teoria do Caos” – desenvolveu pesquisas empíricas sobre o equilíbrio dos sistemas. Os resultados de suas pesquisas trouxeram à tona a ideia

de que o caos é a representação do movimento vivo e criativo. Assim, no

cotidiano, inclusive dos seguidores de Adam Smith, nada seria tão passível de controle ou estabilidade. Aliás, a irreversibilidade do tempo

não permitiria que o novo chegasse se o tempo fosse passível de controle, fosse estável.

Podemos então enaltecer o caos todos os dias pela não estagnação

dos objetos, do nosso corpo, do pensamento, da própria economia, da história ou da biologia, enfim. A ideia de que o caos é também

representação da criação e renovação foi utilizada para os estudos mais avançados sobre o processo de inovação nas empresas. Sim, no mesmo

período em que as ideias de interdisciplinaridade emergem com maior

força, o mercado está, por sua vez, pensando maneiras alternativas de continuar vivo – inovar aparece como ‘evolução’ do inventar novas tecnologias (PETERS, 1993).

O tão desejado equilíbrio, de acordo com Prigogine, poderá surgir,

41

imprevisivelmente, da desordem produzida pelo caos. De certa maneira, a

especialização das disciplinas também objetiva o controle dos fenômenos estudados. Assim, a interdisciplinaridade seria um caminho para a ciência

que pretende manter-se viva, como defendeu Brozek (1946). Se os fenômenos não ocorrem de modo isolado e são irreversíveis, para que possamos nos debruçar sobre os mesmos, independente de nossa área científica,

precisamos

interdisciplinares.

nos

permitir

a

aplicação

de

metodologias

Como aplicar o conceito de interdisciplinaridade?

Considerando que a perspectiva interdisciplinar aplicada enriquece

a percepção sobre os mais distintos fenômenos científicos, é preciso

pensar em como aplica-la. Haverá um método para esta aplicação? Se optarmos por seguir os apontamentos do premiado químico Prigogine,

estabelecer um parâmetro de controle não seria a melhor maneira de

apreender um fenômeno. Mas, as indicações de fortes pesquisadores da interdisciplinaridade, como Klein (2005), Brozek (1946), Horn (1986) é de estabelecermos alianças metodológicas. No ato de investigação estaria o melhor

momento

para

visualizarmos

a

importância

de

integrar

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disciplinas. Sim, embora não sem antes dedicar tempo e atenção ao

estudo de outras disciplinas, exercitar a curiosidade que deve ser característica básica de todo cientista.

John Lynch (2006) justifica que, apesar de percebermos claramente

que há interdisciplinaridade entre as ciências, há uma grande dificuldade de coloca-la em prática. Primeiro porque não há uma aprovação unânime

da importância da sua prática. O que se vê frequentemente é um discurso de

interdisciplinaridade

fazendo

sombra

a

prática

de

estudos

especializados. Outras vezes, o que é chamado de prática interdisciplinar pode não passar de uma representação mal acabada de um conjunto de ‘retalhos’ de disciplinas distintas.

Se fizermos um estudo breve sobre uma disciplina distinta da que

estudamos, poderemos inserir elementos,

fragmentos dessa nova

disciplina na análise dos estudos que desenvolvemos sobre a nossa

disciplina. Mas isso não se caracteriza como prática interdisciplinar. Logo,

há uma dificuldade imposta pela ciência que exige resultados mais imediatos e adequados aos interesses dos fundos de financiamento:

42

como aprofundar e ao mesmo tempo expandir a percepção científica se

os prazos e interesses requerem resultados mais breves? É válido

refletirmos sobre as condições que o contexto de produção científica oferecem a prática interdisciplinar.

Como articular os ‘retalhos’ de distintas disciplinas? Isso porque,

ainda há outra dificuldade apontada por Lynch (2006), a possibilidade de ocuparmos, por exemplo, o papel de um sociólogo que ‘brinca’ de

economista por uns instantes, ou de um psicólogo que acha interessante

a postura de um antropólogo e se traveste do mesmo, também por uns instantes.

Brozek (1944, p. 512) apontava ainda que a aplicação de

ferramentas metodológicas de outras disciplinas científicas requeria experiência, como testes, para que pudéssemos verificar a tríade básica

onde-como-porque antes de tentar entender qualquer fenômeno: “It’s

fully integrated only after extensive experience of working and thinking together”. É preciso exercitar o diálogo com outros cientistas, de outras

áreas, buscar compreender os seus parâmetros de investigação, os seus interesses e anseios diante do que estudam. E como realizar este feito

num contexto em que não conseguimos facilmente ler os artigos científicos de nossas áreas de estudo?

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entre

Bem, diante dos que defendem a prática metodológica colaborativa disciplinas,

se

não

experimentamos

outros

caminhos

de

investigação para nossos estudos, estaremos fadados a mumificação de

nossas ideias. Por outro lado, essa prática exige maior dedicação aos

estudos, maior curiosidade do cientista – aparentemente, as pontes virão da desordem de conhecimentos que ele adquirir. A curiosidade deve ser

expandida a outras áreas também, como as condições sociais, os hábitos culturais, suas experiências cotidianas.

Entretanto, se imaginarmos que, embora sejam empreendidos

esforço na especialização das ciências, com certo sentido de “aparar

arestas” que dificultem o encontro de boas respostas às questões

científicas, na prática, é impossível não integrar nas interpretações científicas?

Bruno Latour 7 (1994) entende que a compreensão sobre os

fenômenos científicos não se exime da influência das experiências dos

cientistas, da expressão econômica internacional do nosso país, dos

fenômenos climáticos ou dos objetos envolvidos no estudo empírico. Se

43

não conseguimos de fato separar, não haveria uma necessidade implícita

de reunir. A integração de disciplinas seria então um formalismo institucional com fins de exaltar a generosidade que alguns cientistas

podem ter? Ou um posicionamento político frente a imposições institucionais quanto a resultados?

A análise sociotécnica proposta por Latour (1994) poderia ser

considerada como uma ferramenta metodológica de integração, pois está

focada na teoria ator-rede 8, na ideia de que interagimos com os objetos e que eles fazem parte de uma rede de sentidos que atribuiremos aos nossos estudos. Desde o ambiente concreto de um laboratório, a roupa

que vestimos, passando pelas nossas representações culturais. Nada escapa. Inclusive e principalmente a tecnologia.

O interesse de Latour pelas temáticas da tecnologia e suas derivações, como inovação, estão presentes já na sua primeira obra, publicada em 1979, Laboratory Life, resultado de dois anos de pesquisa na California. De 1982 até 2006 foi professor no Centre de Sociologie de l’Innovation, na Ecole National Superiéure de Mines, Paris. 7

Para Latour (1994), ator e ação estão intrinsecamente ligados, pois o ator é aquilo que cria – tudo que é capaz de participar de uma ação é também capaz de criar, portanto, humanos e não-humanos são atores também. E o mais importante, interagem. A interação é o que liga a todos em uma mesma rede – sem cessar. O ato de fazer é inato ao humano, no qual interdepende diretamente dos não-humanos. 8

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De fato, não podemos falar de interdisciplinaridade sem mencionar

quão importante foi a tecnologia para disseminar a sua relevância

científica. Através da tecnologia, as diversas disciplinas encontrariam o seu ápice de desenvoltura. Assim, uma das grandes contribuições de

Latour é apontar que, não apenas a tecnologia faz parte da construção da

sociedade, como também, é ela mesma a própria sociedade. Afinal,

“forgetting artifacts (in the sense of things) has meant the creation of that

other artifact (in the sense of illusion): a society that has to be held in place with just the social” (1996, p. 236). E se não queremos continuar a elaborar visões idealizadas da nossa sociedade, devemos ter em mente que, “objects do something, they are not merely the screens or the

retroprojectors of our social life” (1996, p. 236).

Portanto, seguindo as orientações teóricas e empíricas de Latour

(1994, 1996) a preocupação que alguns cientistas possuem em

especializar seus estudos dentro de disciplinas específicas não os faz escapar das influências externas nas suas interpretações científicas.

Inclusive, as conclusões ou respostas que são alcançadas pela ciência

44

hoje, podem e muito provavelmente irão amanhã encontrar seus opostos.

Uma preocupação em estabelecer metodologicamente parâmetros

para a prática da interdisciplinaridade pode ser desfeita a partir da

compreensão de Prigogine e mesmo de Latour. A criação ocorre num processo descontrolado, desordenado, que, por ventura, pode conter traços de ordem, indicar algum ponto de equilíbrio quando atingir uma forma – o que não significa seu ponto máximo.

Também podemos observar essa relação intrínseca entre o

cientista/pesquisador e os fenômenos que estuda por outro prisma. . Na

Antropologia, Marcel Mauss (1968) inaugura uma atitude interdisciplinar

e fala de máscaras sociais que estão sobrepostas ao indivíduo,

antecipando os trabalhos de Ruth Benedict (1983) e Margareth Mead (1988). Mauss sugeriu que observássemos as técnicas corporais, os

movimentos dos corpos, acreditando que as técnicas de intervenção direta no corpo, tal como o parto, eram grandes concentrados do que

seria determinada cultura, como se fossem a substancialização daquela

cultura. Ou seja, se a cultura é um processo de criação do homem, todos os seus movimentos criadores, inclusive os corporais irão falar dela.

Como considera que os hábitos, crenças e tradições variam de uma

cultura para outra, considera que a técnica também é algo que pode

variar até dentro de uma mesma cultura, nos seus diferentes grupos. O ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA


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que Mauss chama de técnica “é um ato tradicional eficaz (e vejam que nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja

tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição (1934, p. 217)”.

Portanto, a técnica está imiscuída no contexto cultural, relacionada

com as práticas religiosas tradicionais, bem como às práticas econômicas e sociais e são representações simbólicas das sociedades as quais se

referem. A prática da técnica não está reduzida, neste sentido, ao manuseio ou confecção de um instrumento, a definição de modelos. Mas

também está representada nele. Assim, desconsiderar a técnica é também desconsiderar parte da cultura.

Como estamos mergulhados num profundo lago de incertezas,

definir padrões torna-se uma tarefa árdua, e muito provavelmente, sem grande relevância, dado que o porvir não faz parte das ferramentas que dispomos.

Latour

parece

apontar

que

nunca

dispusemos

de

tal

ferramenta; o contexto em que estávamos inseridos anteriormente criava a ilusão, ou o idealismo, de que a possuíamos de alguma maneira.

45

O que permanece extremamente válido é a ideia de que o

conhecimento é aprofundado quando abrimos espaço para outras formas de conhecimento, outras maneiras de expressar o interesse e curiosidade

por ‘descobrir’, aprender. Muito embora, possamos reconhecer a aplicação de metodologias de outras disciplinas com o intuito de ampliar o panorama de compreensão sobre um assunto/fenômeno.

Etnografia para a microeconomia

A antropologia do consumo é um dos ramos da antropologia

econômica, iniciada com os estudos de Marcel Mauss sobre o princípio de reciprocidade nas culturas, ilustrado com o conceito de dádiva. Desse

modo, pretendia observar as trocas para além do seu aspecto utilitário, pensando as questões simbólicas e culturais que as permeiam, ou seja,

traz a ideia de que o comércio não deve ser observado apenas como

gesto mercantil, outrossim, embalado numa estrutura econômica maior,

tendo em vista que o ato da troca (reciprocidade – que inspirou Polanyi) envolve um todo mais complexo. O “Ensaio sobre a dádiva”, publicado em 1923-24, apresentava a mesma como elemento de imensa densidade por

ser um dos aspectos cruciais para promover a agregação de grupos. ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA


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Afinal, a troca é a materialização dos vínculos – sejam políticos, sociais ou econômicos. Desse modo, a antropologia do consumo procura

identificar os substratos da reciprocidade que se escondem por detrás do

processo da compra – ou como veremos nos actuais estudos de Denny e

Sunderland (2006), o aspecto metafórico da compra. Em parte, isto leva-

nos a compreender supostas “decisões absurdas” 9 que vão ao encontro

do que se espera para lograr êxito num investimento ou numa qualquer empreitada lucrativa.

Algumas corporações têm utilizado os serviços de consultoria de

antropólogos para terem, para além da visão mercadológica de seus

produtos, a metafórica, ou seja, são estudos do comportamento do consumidor numa perspectiva etnográfica.

Para Mary Douglas, “dando o devido crédito ao entendimento

metafórico [do consumo], podemos chegar a uma ideia mais precisa de

por que os consumidores compram bens (2006, p. 27)”. Portanto, esse caminho

considera

aspectos

subjetivos

(antropologia)

e

pós-

funcionalistas (teorias da administração). De acordo com o pensamento

46

de Peter Drucker, mais do que grandes estratégias organizacionais, as empresas precisam saber tomar decisões. Portanto, quando buscamos um modelo ele servirá de parâmetro de observação do fenômeno que nos

interessa, mas não transformará este fenômeno. Será como um quadro de

referências para que as decisões não sejam tomadas as escuras

completamente, e ao mesmo tempo, para que estas decisões – tão caras no mundo dos negócios - mesmo em momentos de grande pressão não sejam meros impulsos de resposta.

A partir dos estudos de Sherry (2008), foi possível observar que os

métodos já bastante conhecidos dos etnógrafos e antropólogos acabam

por se mostrar eficazes no reconhecimento das necessidades e gastos

dos consumidores. A etnografia descreve, retrata e demonstra como os hábitos socioculturais estão relacionados ao consumo.

Consumer culture has been characterized as an ethic, a standard of living, and a power structure, each of which encourages individuals to equate commodities with personal welfare and, ultimately, to conceive of themselves as commodities (SHERRY, 2008, p. 88)

Christian Morel (2002) escreveu interessante obra que procurava identificar o que se esconde por detrás da insistência em repetir ações que nos trazem prejuízos. Utilizando diversos exemplos de empresas que repetiam os mesmos erros, acabou por desvelar aspectos outros para além dos planeamentos óbvios do lucro garantido.

9

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Nesta perspectiva, a proposta seria encontrar um caminho

sustentável para o consumo através da observação do comportamento do consumidor – e assim obter respostas para uma produção sustentável.

Apesar de ser mais frequentemente encontrada em pesquisas

relativas ao consumo (Simonson, 2001; Sherry Jr. 2008; Urry, 2001; Jafari,

2005; Suchman, 2007; Ngai, 2003), a utilização da ferramenta de observação

do

comportamento

não

está

restrita

a

grupos

de

consumidores, estendendo-se também ao comportamento empresarial,

principalmente no que diz respeito a relação das rotinas das práticas organizacionais e a eficiência dos modelos/estruturas organizacionais aplicados pelas empresas, como é possível notar em algumas pesquisas realizadas por Weiermair (1990).

De acordo Suchman 10 (2007), em 1991 um artigo (Coping with

47

Cultural Polyglots) da New York Times reportava a existência de antropólogos empregados em grandes corporações. Um outro (Studing the Natives on the Shop Floor), no mesmo ano, foi publicado pela Revista Business Week. Na Revista Anual de Psicologia (ARP) de 1962 foi publicado um capítulo intitulado “Consumer Analysis”. No final dessa mesma década foi fundada a Associação de Pesquisas sobre Consumo.

Por volta desse período, os estudos sobre consumo consolidavam-se

como disciplina. Do final dos anos 1960 até os anos 1980, os estudos estiveram focados no comportamento de compra com ênfase em modelos chamados compreensivos. Segundo o que nos apresentam os estudos de Simonson (et al),

Comprehensive models of buyer behavior served a purpose in integrating various components and, in some ways, defining the field, they could not effectively tested, and significance of the actual insight they provide may be debatable (2001, p. 251).

Os

estudos

realizados

nessas

duas

décadas

advinham

de

influências multidisciplinares e estavam divididos principalmente em duas correntes: Behavioral Decision Theory – BDT, relacionada a Social

Cognition Consumer Research – SCCR; Por outro lado, estavam os estudos pós-modernos, interpretativos e o Positivist Consumer Research (modelos que serão explicados mais a frente). Nos anos 1990, a maioria dos autores da ACR (Association for Consumer Research) e do JCR

(Journal

of Consumer Research) era composta por pessoas que

Ainda são citadas pela autora as obras de Klein “No logo: taking aim at the bullies (2000)”; Lury “Brands: the logos of the Global Economy”; Walsh “Corporate Anthropology (2001)”. 10

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frequentaram cursos de administração ou economia, diferentemente dos

anos 1980, em que empresários e membros do governo, além de acadêmicos de áreas diversas faziam parte dos grupos de autores. Esse aprofundamento de perspectiva acabou por redesenhar os modelos de observação do comportamento do consumidor.

De acordo com os estudos de Weels, a compreensão dos

sociólogos a cerca do comportamento do consumidor trouxe outras possibilidades de interpretação aos dados e também nova utilidade para as pesquisas do gênero. Nomeadamente, para pesquisas que procuravam

adequar possíveis produtos. “In the 1980s, ideas from anthropology and

ethnography generated helthy controversy, new vitality, and new important ways of thinking about consumer behavior (1993, p. 494)”. Na óptica de Simonson (et al, 2001), nos estudos realizados, o

fator social teve menos expressão em relação ao cognitivo na decisão de

consumo. Os aspectos que envolvem o fator social são família, influências sociais, grupos de referência, auto percepção, atribuições; Já os do grupo cognitivo são o comportamento de decisão, memória e conhecimento,

48

linguagem, busca variada (diversificada), pré-consciência (o processo de decisão iniciado) e a preconcepção do produto (influenciada também por

um tipo de percepção intuitiva. Ou seja, o aspecto metafórico, já referido anteriormente, parece ter maior peso no comportamento de compra).

Denny e Sunderland (2006; 2005), que têm costumeiramente

desenvolvido trabalhos juntas, são duas das principais autoras sobre o estudo etnográfico do comportamento do consumidor e ao mesmo

tempo, duas consultoras do Practica Group 11. Nestas empresas elas aplicam a pesquisa etnográfica. E no que consiste um trabalho etnográfico? O primeiro aspecto é a descrição do que se vê, ouve e

observa; depois, a interpretação dos dados obtidos procura reunir o máximo de informações para compor verdadeiramente um cenário; por

fim, as análises comparativas vão além de uma perspectiva quantitativa dos dados, possibilitando uma compreensão mais ampla de situações mais complexas.

As autoras descrevem seu processo de pesquisa afirmando que

“research consumer behavior in situ and analyse metaphors as they are instantiate in social action, including behaviors, speech, organization and É possível conhecer melhor o trabalho das autoras e de outros pesquisadores do género na página do grupo na Web: www.practicagroup.com 11

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artifacts, and thoughts (2005, p. 1450)”. Para tanto, são recolhidos textos, fotos, vídeos, entrevistas – introspective and report data – considerando para o mundo real a ação real nele. Na construção de suas estratégias de pesquisa e análise de dados utilizam a metáfora como

direcionamento: “metaphor as a trope of everyday language thus

becomes a prism through which to observe and refract consumer behavior (2005, p. 1450)”. Assim, procuram compreender o que não seria tão óbvio mas tem grande relevância no processo de decisão da compra.

Em um de seus estudos realizados, observaram de que modo a

metáfora do computador tem afetado a percepção do indivíduo sobre si mesmo e sobre a sociedade. “These metaphors have also affected our

sense of how our minds work”. Tal afirmação leva a pensar como tais

intervenções afetam também a percepção do que é necessário para viver

have observed that portable devices and wireless communications have given people the ability to collapse temporal and physical space between home and Office, private and public, work and Play (2005, p. 1463)” Todas essas observações contribuíram para pensar

bem.

49

“We

novos designs de celulares e também de mesas para escritório, levando

em consideração o tempo que dispomos, a utilização do computador e as funções que temos agregado ao mesmo, como de comunicador com os

principais grupos sociais do indivíduo, principal instrumento de produção e arquivamento de trabalhos, enfim.

O diferencial de suas pesquisas é trazido pelo método. A

etnografia permite uma melhor adequação metodológica, também por acomodar bem diversas ferramentas de coleta de dados, inclusive de carácter

qualitativo

e

quantitativo.

Pois,

segundo

as

autoras,

“ethnography, because of its apparent ‘observational’ component, can be embraced by business as a closer accounting os life as it occurs, and thus be seen as a direct line to truth. (Denny e Sunderland, 2007, p. 430)”. Logo, quem produz determinado bem ou serviço pode encontrar-se distante ou mesmo numa posição superficial em relação às necessidades e preferências de consumo. E mesmo uma pesquisa de mercado pode

negligenciar os aspectos metafóricos, tão importantes no comportamento

do consumidor. Este método de Denny e Sunderland é aplicado identificando as formas de interação existentes na situação observada. O foco deve estar no valor simbólico, ou mesmo no sentido simbólico de

um determinado produto para aquele possível consumidor. As autoras

estão constantemente publicando nos principais jornais científicos que ENSAIOS | ENTRE A ANTROPOLOGIA DO CONSUMO E O COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR | FABIANA DE OLIVEIRA LIMA


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abordam o tema do consumo e disponibilizam parte de seus textos na

página de seu grupo. Essa seria uma forma de socializar as pesquisas realizadas e demonstrar de que forma os resultados obtidos podem de fato inferir no sucesso de um produto lançado.

Da Interdisciplinaridade ao comportamento do consumidor

A prática interdisciplinar parece possível através de outras

metodologias, como sugeriu Brozek, Polanyi, Latour. Ao mesmo tempo,

pensar na integração de disciplinas abre espaço para que seja reconhecido o fato de que as experiências cotidianas, a intimidade do sujeito pesquisador são elementos constituintes de suas interpretações.

A etnografia utilizada para compreensão do comportamento do

consumidor mostra-se uma ferramenta eficaz inclusive para encontrar alternativas eficientes para uma relação mais ‘produtiva’ entre produção e demanda.

50

Interdisciplinaridade inspira maior dedicação e curiosidade por

parte de quem queira praticá-la – embora pareça fácil pois vivenciamos o caos e a complexidade, sistematizar ideais desse gênero requer maiores esforços empreendidos, pois implica sair da ‘zona de conforto’.

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Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ – campus Volta Redonda-RJ

Vagner Francisco Marinho da Silva

Doutorando do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente (PPGMA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e docente do IFRJ (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro).

Fátima Teresa Braga Branquinho

53

Pós-Doutora em Estudos Sociais da Ciência, pelo Centre de

Sociologie de l’Innovation da École Nationale Supérieure des Mines

de Paris, é atualmente professora de Antropologia e Educação da

Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente na mesma universidade.

Resumo

Este

artigo

pretende

apresentar

as

atividades

integradas

desenvolvidas por um núcleo de educação ambiental no Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, campus Volta Redonda/RJ. As ações de educação ambiental em escolas têm exigido um

trabalho interdisciplinar entre professores, uma promoção de palestras sobre o tema e adequações na infra-estrutura física para que possam contribuir para minimizar os impactos ambientais locais. Palavras-chave:

Redonda/RJ.

educação

ambiental,

interdisciplinaridade,

Volta

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Introdução

Este estudo pretende apresentar as atividades propostas pelo

Núcleo de Educação Ambiental (NEAm) 1 do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) 2, campus Volta Redonda/RJ, desde a sua criação em 2010.

O NEAm foi criado nesta instituição para atender a necessidade de

organizar ações e aprofundar reflexões que envolvam a Educação

Ambiental e sua implementação em espaços escolares (BRASIL, 1999). Suas atividades estão propostas, basicamente, na adequação da estrutura do campus para amenizar seus impactos ambientais, nas ações de intervenção

pedagógica

no

processo

ensino-aprendizagem

para

promoção de uma Educação Ambiental interdisciplinar e na formação de educadores ambientais. As atividades deste núcleo ocorrem a partir das propostas de representantes dos professores, dos alunos e dos técnicos administrativos que auxiliam no seu processo de construção coletiva, dando-lhe um caráter democrático. Articula-se, também, aos cursos de

54

Formação Inicial e Continuada de Professores (graduação e pósgraduação).

A cidade de Volta Redonda está localizada na região sul-

fluminense e seu entorno urbano possui aproximadamente quinhentos

mil habitantes (IBGE, 2010). O contexto geográfico, do ponto de vista socioambiental, é bastante desafiador porque Volta Redonda apresenta vários problemas advindos da maior indústria siderúrgica da América

Latina (Companhia Siderúrgica Nacional), que se manifestam na poluição do ar, na exploração intensiva de recursos naturais, além da degradação

do rio Paraíba do Sul. Como outras cidades de porte médio do Brasil, a

cidade vive ainda sérios desafios ligados à gestão dos resíduos sólidos, ao saneamento básico e à ocupação irregular do solo urbano.

Em Volta Redonda está localizado o IFRJ que oferece cursos

técnicos

em

Metrologia

e

Automação

Industrial

(Ensino

Médio),

licenciatura em Física e Matemática (graduação) e a Especialização lato

sensu para professores (pós-graduação).

1 O estatuto do Núcleo de Educação Ambiental foi aprovado na 36ª Reunião Ordinária do Colegiado do campus no dia 08 de julho de 2010. 2 O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro foi criado, de acordo com a Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008, mediante a transformação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis.

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Por muitas décadas, os problemas ambientais foram escamoteados em nome do avanço industrial e do desenvolvimento econômico do país. A partir

do

processo

de

redemocratização

na

década

de

1990,

concomitante à realização de grandes convenções internacionais sobre o Meio Ambiente, os movimentos intelectuais e políticos relacionados às

questões ambientais se intensificaram e fortaleceram contribuindo para a

geração de instrumentos legais importantes como a Lei 9.795/99 3. A

instituição dessa lei traduz a indissociabilidade entre o ambiente propriamente dito, as preocupações com a sua conservação e a produção de conhecimento sobre ele.

Assim, as questões ambientais locais têm exigido mudanças de

valores, percepções, olhares, posturas, hábitos e práticas constituindo

um cenário onde a escola é fundamental para a construção de saberes sobre tais questões, sobretudo quando ela pode construir uma crítica

sobre ações educativas baseadas em uma concepção de ciência cartesiana 4.

Nessa perspectiva, percebe-se que as práticas desenvolvidas no

55

NEAm encontram obstáculo no despreparo dos educadores em relação à compreensão da noção de interdisciplinaridade. Tal compreensão exige

crítica sobre a concepção hegemônica de ciência que institui abismos dualistas tais como sujeito/objeto, fatos científicos/valores sociais,

conceitos/contextos assim como reflexão sobre a relação entre atividades educativas e concepções pedagógicas que dicotomizam natureza e cultura, com base no paradigma racionalista moderno 5.

Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica e

análise de documentos sobre a criação e as ações do NEAm no IFRJ

campus Volta Redonda.

Em 1999, é promulgada a Lei nº 9.795, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental. Ela definiu a educação ambiental como "uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal", não como disciplina específica no currículo de ensino, mas presente em todas as matérias. A lei estende a obrigatoriedade da Educação Ambiental para uma variedade de instituições: instituições educacionais públicas e privadas dos sistemas de ensino, órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e outros órgãos públicos (desde federais até municipais), envolvendo entidades não governamentais, de classe, meios de comunicação. 4 Entende-se aqui que um dos parâmetros da construção do conhecimento na ciência moderna é pautado no racionalismo cartesiano, como será verificado na sequência do texto. 5 Sobre a relação entre concepções de ciência e de educação, cf BRANQUINHO, F.T.B. 2004 e BRANQUINHO, F.T.B. e SANTOS, J.S. 2007. 3

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O artigo contribui para aprofundar as discussões sobre a temática

da Educação Ambiental a partir de observações sobre Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ/campus Volta Redonda à luz de noções construídas por

Boaventura de Souza Santos e Egard Morin, apontando a possibilidade de

valorizar as peculiaridades culturais locais e de propor caminhos para as práticas educativas de Educação Ambiental.

O contexto socioambiental do IFRJ – campus Volta Redonda

Segundo

contexto

de

LOPES

Volta

(2004),

Redonda

elementos

levaram

a

singulares

um

presentes

processo

social

no de

ambientalização. O termo ambientalização é um neologismo semelhante

a outros utilizados nas ciências sociais para designar novos fenômenos

ou novas percepções sobre fenômenos de um processo 6. Ele indica um processo histórico associado a uma interiorização de diferentes aspectos da questão pública do meio ambiente pelos grupos sociais. O processo

56

de

ambientalização

levaria

as

pessoas

a

uma

mudança

no

comportamento (trabalho, cotidiano, escola) e a transformações no Estado.

Dois fatores serão relacionados ao processo de ambientalização no

caso de Volta Redonda e serão discutidos neste artigo: os conflitos

sociais ao nível local e seus efeitos na incorporação de novas práticas; a educação ambiental como novo código de conduta individual e coletiva.

Volta Redonda é uma cidade que possui características singulares

no que se refere aos problemas socioambientais. Nela está localizada a

maior siderúrgica da América Latina e historicamente a cidade foi palco de muitos conflitos trabalhistas que perpassavam por questões de ordem política e ambiental. Desde sua fundação na década de 1940 até a década

de 1990 a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN – foi uma empresa

estatal (LOPES, 2004). Duas questões chamam a atenção: o fato de que os Esse é o ponto de vista para análise adotado no presente artigo. Contudo, vale destacar que há um movimento intelectual no campo das ciências sociais que busca rever o conceito mesmo de “social” e que descreveria o processo de “ambientalização” com base na noção de ecologia política que está atrelada a um procedimento metodológico denominado metafísica experimental (sobre isso cf. Latour, Bruno, 2004). No âmbito desse movimento, o problema intelectual associado à noção de “ambientalização” seria formulado a partir da teoria do atorrede que busca superar abismos dualistas como, por exemplo, natureza/sociedade, já citados.

6

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problemas ambientais causados pela atividade siderúrgica na cidade (poluição do ar, gestão dos resíduos sólidos e poluição da água, por

exemplo) não tinham tanta notoriedade até a década de 1990 e o atual

contexto ambiental, social, econômico e político da indústria - que foi privatizada em 1993 - no município.

Segundo LOPES (2004) a fiscalização ambiental sobre a CSN

durante o período da ditadura militar não ocorria porque o município era

considerado área de segurança nacional. A fiscalização da poluição aquática começa com a Feema (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente) em 1985 com uma ação pública judicial instaurada pelo município de Macaé que pede o reparo dos danos ambientais causados pela CSN no rio Paraíba do Sul.

Na mesma época chamam atenção também os casos de leucopenia

nos trabalhadores das coquerias causada pela exposição ao gás benzeno.

A preocupação com as saúde dos trabalhadores levam os sindicatos a pressionarem a fiscalização da saúde ambiental proporcionada pela empresa a seus empregados.

57

Recentemente foram descobertos depósitos subterrâneos de

resíduos sólidos, provavelmente feitos nas décadas de 1970 e 1980, em áreas da empresa espalhadas pela cidade. Alguns bairros ocuparam

algumas destas áreas e se desenvolveram em cima destes aterros, comprometendo a saúde de seus moradores.

Dois acontecimentos mudaram o contexto de atuação da CSN em

Volta Redonda: sua privatização na década de 1990 e o endurecimento das leis ambientais e de saúde do trabalhador nas últimas décadas.

A prefeitura e do governo estadual pressionaram e conseguiram a

inclusão de uma cláusula ambiental no edital de privatização com o

objetivo de criar compensações pelos impactos implícitos causados pela empresa na cidade. De acordo com LOPES (2004) tal política provocou a

“descoberta da poluição”. Houve um crescimento no número de ações

contra a indústria em torno das compensações ambientais e o resultado foi um aumento significativo das multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização ambiental 7.

Alguns exemplos: a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi multada, no dia 9 de dezembro de 2010, em R$ 20 milhões por provocar o vazamento de resíduos de carvão mineral no Rio Paraíba do Sul, em Volta Redonda. O acidente aconteceu no dia 27 de novembro. A multa foi aplicada pelo Conselho Diretor do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), órgão executivo da Secretaria Estadual do Ambiente (SEA). Em agosto de 2009, a

7

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A forte dependência política e econômica da cidade de Volta

Redonda em relação à indústria CSN criou vários conflitos de ordem socioambiental. A referida indústria, que é a grande “provedora” de divisas e empregos para a cidade é, ao mesmo tempo, o maior agente nocivo que compromete a qualidade de vida e saúde das pessoas que lá moram. Segundo COSTA (2004):

A prática ambiental urbana ganha contornos de grande complexidade em uma realidade heterogênea como a brasileira, na qual as cidades

convivem ao mesmo tempo com problemas típicos da pobreza – ocupações irregulares de áreas ambientalmente frágeis como encostas e áreas alagáveis, baixo índice de coleta e tratamento de esgotos,

entre outros – e problemas relacionados a altos padrões de vida e consumo – entre os quais, congestionamento de trânsito e poluição atmosférica por veículos, crescimento do volume de resíduos sólidos, ou padrões construtivos intensivos no uso de energia (p.199)

A interdisciplinaridade como caminho para a educação ambiental escolar

58

O conceito de modernidade nos remete ao período histórico

iniciado pelas Grandes Navegações e o Renascimento. A concepção moderna de mundo, na qual se fundamenta a ciência, é marcada em sua

origem por novas concepções da Física e da Astronomia. A Revolução

Científica marca a transição entre a “filosofia natural” e um novo período

em que cientistas buscam fundamentar o conhecimento em leis matemáticas mais rigorosas e uma busca intensa pela quantificação da

natureza. Este contexto histórico foi proporcionado inicialmente, entre outras, pelas contribuições da teoria heliocêntrica de Copérnico, pelas leis matemáticas elaboradas por Kepler e pela descrição matemática da natureza feita por Galileu (HENRY, 1998).

O eixo epistemológico que tem no pensamento a fonte principal do

conhecimento chama-se

racionalismo.

Segundo

o racionalismo,

o

conhecimento só merece na realidade este nome quando é logicamente

necessário e universalmente válido. No racionalismo, quando a razão

julga que determinada coisa é assim, tem que ser assim e que é assim em todas as partes do mundo, chega-se ao verdadeiro conhecimento. O

mesma CSN foi multada em R$ 5 milhões pelo vazamento de grande quantidade de óleo que afetou o Rio Paraíba do Sul e por lesar o meio ambiente. Na época, o órgão aplicou multas diárias de R$ 50 mil enquanto a empresa não resolvesse o problema.

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juízo, portanto, a respeito de qualquer coisa não se funda em qualquer experiência, mas sim no pensamento (HESSEN, 1976).

A forma mais antiga do racionalismo encontra-se em Platão. Em

sua teoria da anamnésis, Platão diz que a alma contemplou as idéias

numa existência pré-terrena e recorda-se delas quando percebe através

do sensível. Portanto, para ele o conhecimento é uma reminiscência (HESSEN, 1976).

O paradigma moderno foi construído a partir da racionalidade

cartesiana durante o século XVII. Na Idade Moderna, Descartes atribuiu à

razão a origem do conhecimento: “Eu penso, logo existo”. O método

dedutivo de Descartes era caracterizado por partir do geral para o particular, ou seja, você “divide” o todo em tantas partes quanto forem necessárias para poder compreendê-lo.

O método cartesiano, de uma forma geral, partia do pressuposto

da análise. A realidade poderia ser desvendada através de rígida divisão

metódica e sistematizada partindo do mais simples ao mais composto. O

59

entendimento separado do funcionamento das partes que constituem o todo levaria ao entendimento da verdade e o mundo poderia ser explicado através desse método analítico (DESCARTES, 1987).

[...] em vez desse grande número de preceitos que se compõe a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, [...] O segundo,

o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem melhor

resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos,

começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para

subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais

compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se

precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir (DESCARTES, 1987, p. 38).

O método cartesiano é uma das bases do atual paradigma

científico. O saber científico ou ciência é o conjunto de conhecimentos adquiridos através de métodos rigorosos e sistematizados. O seu objetivo

passa pela necessidade e pela universalidade dos conceitos que são

válidos em qualquer tempo e em qualquer lugar. O conhecimento científico possui um método rigoroso de observação, coleta de dados,

formulação de hipóteses, construção de modelos, comprovação através de resultados e estruturação de leis ou teorias universais.

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A crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa premissa fundamental, que Descartes errou. A Física do século

XX mostra-nos convincentemente que não existe verdade absoluta em

ciência, que todos os conceitos e teorias são limitados. A crença cartesiana na verdade infalível da ciência ainda é, hoje, muito difundida e reflete-se no cientificismo que se tornou típico de nossa cultura ocidental. O método de pensamento analítico de Descartes e

sua concepção mecanicista da natureza influenciaram todos os ramos da ciência moderna e podem ainda hoje ser muito úteis. Mas só serão

verdadeiramente úteis se suas limitações forem reconhecidas [...] (CAPRA, 1982, p. 53).

Com a ascensão do racionalismo cartesiano e a visualização de

uma possível matematização da natureza, ocorreu também a ascensão do método científico como caminho possível para se chegar às certezas

inquestionáveis do conhecimento. Os experimentalismos científicos

ganham força com as contribuições de Bacon que, através do empirismo,

apresenta a possibilidade do método indutivo caracterizado por partir do

conhecimento particular para o estabelecimento do conhecimento

60

universal (HENRY, 1998).

O método científico é o principal responsável pelo rápido

desenvolvimento das técnicas e tecnologias que pode ser observada nos

últimos séculos e cada vez mais aceleradamente nas últimas décadas. O processo evolutivo destas novas tecnologias e técnicas modificou

profundamente as relações sociais, econômicas e políticas no interior da

sociedade e modificaram a relação desta sociedade com a natureza. O capitalismo

como

meio

de

organização

político-econômica

foi

historicamente consolidado a partir do aprimoramento destas técnicas e

tecnologias que vieram ao encontro dos interesses deste sistema produtivo que, na busca primordial do lucro, investiu maciçamente nos projetos e empreendimentos da ciência moderna.

A partir da emergência deste modelo todo o conhecimento que não

obedece à rígida metodologia criada pelos padrões experimentais e

matemáticos da ciência moderna não é considerado pela academia, ou seja, não tem o seu atestado de “verdade” universalmente válido. Todas

as outras formas de conhecimento produzido pela sociedade são

colocadas em caráter duvidoso quanto à credibilidade quando não obedecem aos procedimentos do método científico.

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o carácter racional a todas

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as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios

epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo

paradigma científico com os que o precedem. Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento dos

planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande

síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente na consciência

filosófica que lhe conferem Bacon e sobretudo Descartes (SANTOS, 2001, p. 3).

Toda esta tecnologia proporcionada pelo avanço das ciências

trouxe comodidades e conforto para uma parte da sociedade que pode pagar por eles. Este avanço tecnológico não pôde ser estendido ainda de

uma forma democrática para todos, e é justamente aí que se tem um dos principais problemas da sociedade atual: um problema de ordem

socioeconômica. Pode-se dizer que a sociedade vive atualmente um momento de grande preocupação com o meio ambiente. As ciências

advindas do pensamento científico moderno, que produziram toda esta

tecnologia e conhecimento técnico (a serviço do capital), e a forma como

61

historicamente a sociedade se organizou nos moldes do capitalismo globalizado ainda não resolveram muitos dos problemas que emergem e que exigem soluções rápidas e urgentes. TOZONI-REIS diz:

O desenvolvimento intenso e acelerado dos conhecimentos técnicos e

científicos que permitem um conhecimento mais profundo dos processos ecológicos da natureza não tem conseguido mudar a

relação dos homens com o ambiente em que vivem. [...] A biotecnologia, por exemplo, possibilita avanços na agricultura, na saúde dos homens e dos animais, na alimentação, na produção de

compostos químicos industriais, na proteção dos recursos naturais e do meio ambiente, na produção de novas formas de energia, etc. No entanto, ao transformar a vida e a natureza em mercadoria, a

sociedade moderna cria gigantescos problemas socioambientais que exigem soluções urgentes (2004, p. 34).

Esse modelo de pensamento que é inerente ao homem moderno e

no qual a sociedade edificou as bases de um rápido processo evolutivo tem se mostrado muito desgastado, à medida que muitos dos problemas

(principalmente os de ordem ambiental e social) não estão próximos de uma fácil resolução. Além disso, alguns problemas práticos/teóricos de

natureza epistemológica têm exigido uma análise menos fragmentada e sim mais holistizada em relação aos desafios e adversidades da vida contemporânea (CARVALHO, 2004).

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No documento oficial dos Temas Transversais propostos pelo

Ministério da Educação (MEC) é possível perceber uma crítica pertinente à discussão:

Sem

os

estudos

empírico-experimentais,

fundamentais

para

a

construção do conhecimento científico, certamente não seria possível

todo o saber que a civilização ocidental acumulou. No entanto, boa

parte do desenvolvimento científico, que se evidencia nos progressos tecnológicos do século XX, está ligada a essa razão instrumental centrada na preocupação de desvendar, intervir, operar, servindo de

suporte ao crescimento econômico, transcendendo, inclusive, a intencionalidade do cientista, em sua ação individual. Portanto, está

inserido nas regras do mercado, na lógica desenvolvimentista e pouco preocupado com aspectos finalistas da vida humana (BRASIL: PCN's 1998, p. 179).

O pensamento cartesiano teve uma relevância muito grande no

período

histórico

em

que

se

desenvolveu,

fazendo

com

que

principalmente as ciências exatas, impulsionadas pelo sistema econômico capitalista em plena ascensão, avançassem para caminhos novos onde a pesquisa,

62

o

rigor

metodológico

hegemonia sobre as outras ciências.

e

os

resultados

garantiram

sua

Capra (1982) é um dos problematizadores desta questão: o

racionalismo promove a separação rígida do meio natural que não possibilita a comunhão e cooperação dos homens com a grande variedade de seres vivos que compõem o meio ambiente. Essa tendência

é causada pela concepção mecânica do mundo, que parte da idéia de divisão do todo em elementos separados (método analítico). Desta forma,

o meio ambiente seria formado por peças separadas a serem exploradas por diferentes grupos de interesses.

A falta de diversidade e o reducionismo foram outros dos

principais problemas evidenciados a partir da separação imposta pelo modelo hegemônico do método científico. A natureza foi explicada a partir de um conjunto de leis da Física, da Matemática e da Biologia reduzindo-se a complexidade real.

A crítica filosófica contemporânea a este modelo é a diminuição de

novos horizontes possíveis para o conhecimento quando coloca as

Ciências Humanas em um plano secundário na ordem de importância. As Ciências Exatas parecem ter, com seu caráter objetivo e preciso, uma

utilidade maior aos intuitos da produtividade econômica e à tecnologia a

serviço do capital. Tal reducionismo não permite uma compreensão mais ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO


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abrangente da realidade e condiciona a construção do conhecimento a uma visão limitada e que ainda não deu conta de resolver muitos problemas, como o ambiental, por exemplo.

A sociedade convive atualmente com vários problemas de ordem

ambiental causados principalmente pela apropriação intensa, rápida e

mal gerenciada dos recursos naturais. Poluição hídrica e atmosférica, aumento na geração e acúmulo de resíduos sólidos, desertificação – estes são alguns dos principais problemas.

No caso ambiental, a visão compartimentada do modelo científico

sobre a natureza não consegue abranger o todo, ou seja, o aspecto

orgânico da inter-relação existente entre as partes dessa totalidade. As

possíveis soluções para a crise ambiental só podem ser visualizadas a partir do momento em que é possível compreender a realidade como

múltipla, mutável e impregnada por uma teia de relações complexamente

constituídas e que exigem uma visão tão igualmente holística, não-linear e sistêmica.

63

Esta tarefa não parece ser tão simples uma vez que o modelo

estrutural de pensamento já está socialmente consolidado e isso perpetua de geração em geração fazendo com que as mudanças sejam paulatinas.

Não cabe aqui expressar uma negação ao paradigma científico vigente,

mas construir um argumento crítico objetivando a discussão e superação dos problemas gerados pelo histórico desenvolvimento deste modelo que são inerentes ao modo de pensar e a de agir das pessoas.

Para Morin (1997), paradigmas são estruturas de pensamento que

de modo inconsciente comandam nosso discurso, ou ainda segundo o mesmo autor o paradigma seleciona e determina os conceitos e as operações: “designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e

opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem,

pensam e agem segundo os paradigmas inscritos culturalmente neles” (MORIN, 2000, p.25). De forma semelhante, Capra (1997, p.32) define paradigmas

como

“uma

constelação

de

concepções,

valores,

de

percepções e de práticas compartilhadas por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular da realidade, a qual constitui a base da

maneira como a comunidade se organiza”. A partir da visão destes

autores é possível visualizar que muitas das práticas cotidianas estão impregnadas de um modelo que parece ter sido pré-estabelecido e que

são

externalizadas

pelas

pessoas

através

discursos e das ações individuais ou coletivas.

dos

pensamentos,

dos

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O

racionalismo

cartesiano

é

o

modelo

hegemonicamente

constituído para permear estes pensamentos, discursos e práticas cotidianas. Ele foi a base do modelo científico da modernidade, metodicamente objetivado para explicar o mundo através das lentes da

simplificação e divisão em partes para entender o todo, da especialização

e sistematização das ciências, da experimentação científica laboratorial, da comprovação dos resultados tidos como verdadeiros se válidos universalmente, etc.

A grande divisão das ciências e a diferenciação entre as disciplinas

que levam a esta visão compartimentada do conhecimento influenciou todo o campo científico e a vida pública em geral. Surgiram e surgirão numerosos campos científicos e especializações, alguns com o mesmo objeto de estudo em comum, mas mantendo a desconexão e a ignorância entre si, dificultando a compreensão do real (SANTOMÉ, 1998).

O resultado das disciplinas incomunicáveis explica as deformações e

aplicações erradas da ciência que vem sendo denunciadas atualmente.

Segundo Morin (1991, p.62), “a ciência tornou-se cega pela sua

64

incapacidade de controlar, prever e mesmo de conceber o seu papel

social, pela sua capacidade de integrar, articular, refletir seus próprios conhecimentos”.

A compreensão de qualquer acontecimento humano sempre está

interligada por diversas dimensões e por isso é multifacetada, ou seja, a realidade é multidimensional.

Pode-se afirmar que na sociedade percebe-se esta rede de ligações entre diferentes nações, governos, políticas e estruturas econômicas e sociais, exigindo uma análise mais integrada e inter-relacionada.

Uma das conseqüências dos ditames dados pelo modelo científico

é a divisão do conhecimento em várias disciplinas. As disciplinas

escolares encontram-se fragmentadas, compartimentadas, isoladas e tal

especialização acabou por provocar a redução da real complexidade do conhecimento. A escola foi instituída como “lugar onde conhecer é

estabelecer poder e domínio sobre o objeto conhecido, impossibilitando uma compreensão diversa e multi-facetada das inter-relações que constituem o mundo da vida” (CARVALHO, 2004, p. 65).

Esta grande diferenciação de disciplinas influenciará todo o âmbito

escolar e a vida dos futuros cidadãos de uma forma geral. São várias as

disciplinas escolares, algumas delas com conteúdos em comum, porém ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO


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mantendo uma total desconexão entre si, o que dificulta enormemente a compreensão do real e completa do conhecimento.

Efetuaram-se progressos gigantescos nos conhecimentos no âmbito

das especializações disciplinares, durante o século XX. Porém, estes progressos

estão

especialização

que

dispersos, muitas

desunidos,

vezes

devido

fragmenta

os

justamente

contextos,

à

as

globalidades e as complexidades. Por isso, enormes obstáculos

somam-se para impedir o exercício do conhecimento pertinente no próprio seio de nossos sistemas de ensino (MORIN, 2000, p.40).

A forma como a escola atualmente organiza o seu currículo está

pautada nesta forte divisão e separação entre as disciplinas. Até a forma

enrijecida como são organizados os horários a partir das séries finais do

Ensino Fundamental retira a possibilidade de uma integração maior entre professores de disciplinas diferentes ou de conteúdos em comum.

A visão sobre a realidade a partir de uma disciplina específica não

parece o bastante para explicar uma realidade de aspecto global e complexa.

65

A interdisciplinaridade consiste em uma nova maneira de conceber

o campo da produção do conhecimento buscada no contexto disciplinar

que ainda se encontra compartimentado. Seria uma forma de superação à

rígida divisão das disciplinas que, por permanecerem isoladas, não permite a estruturação de um pensamento inter-relacional e estruturado.

A interdisciplinaridade não pretende a unificação dos saberes, mas deseja a abertura de um espaço de mediação entre conhecimentos e articulação de saberes, no qual as disciplinas estejam em situação de mútua coordenação e cooperação, construindo um marco conceitual e

metodológico comum para a compreensão das realidades complexas. A meta não é unificar as disciplinas, mas estabelecer conexões entre

elas, na construção de novos referenciais conceituais e metodológicos consensuais,

promovendo

a

troca

entre

os

conhecimentos

disciplinares e o diálogo dos saberes especializados com os saberes não científicos (CARVALHO, 2004, p. 121).

Assim, a interdisciplinaridade exige uma nova maneira de conceber

o campo da produção do conhecimento a partir de uma reorganização e reestruturação

da

maneira

de

se

pensar

libertando-se

condicionamentos históricos que fazem parte da natureza do homem.

dos

O maior desafio é superar o que foi imposto culturalmente pelo modelo científico hegemônico às pessoas que aprenderam a pensar de

forma a contemplar essencialmente a especificidade de cada disciplina

isolada sem, no entanto tecer redes entre os conhecimentos

adquiridos. A própria percepção de mundo muda na medida em que, ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO


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sob a ótica holística, tem-se uma visão mais abrangente, imparcial e consciente de que a realidade tão complexa não é explicada

simplesmente por métodos e padrões impostos pelas ciências

matemáticas e naturais e nem seguidoras sistemáticas dos caminhos impostos pelas leis da Física (CARVALHO, 2004).

A

crise

ambiental

levanta

questionamentos

epistemológicos

pertinentes à forma pela qual a racionalidade moderna trata o problema e expõe sua maior fragilidade: a incapacidade de resolvê-los.

Ao expor a insuficiência dos saberes disciplinares e desejar novas

aproximações para que se compreenda a complexidade das interrelações como base regenerativa dos problemas ambientais, percebe-se,

de forma mais clara, a urgência e necessidade de uma visão inovadora

sobre a forma compartimentada como as disciplinas são trabalhadas. Nesse sentido, Enrique Leff definiu a expressão saber ambiental:

O saber ambiental problematiza o conhecimento fracionado em disciplinas e a administração setorial do desenvolvimento, para

constituir um campo de conhecimentos teóricos e práticos orientado para

a

rearticulação

das

relações

sociedade-natureza.

Este

conhecimento não se esgota na extensão dos paradigmas da ecologia

66

para compreender a dinâmica dos processos socioambientais, nem se

limita a um componente ecológico nos paradigmas atuais. O saber ambiental transborda o campo das ciências ambientais. [...] O saber ambiental

emerge

desenvolvimento conhecimento,

e

desde

das

que

um

ciências,

espaço

produz

de

centradas

exclusão

em

seus

desconhecimento

de

gerado

objetos

no

de

processos

complexos que escapam à explicação dessas disciplinas (1998, p. 124).

O conceito de interdisciplinaridade na educação ambiental escolar

requer o diálogo com autores que fazem uma abordagem crítica do

paradigma científico e promovem uma reflexão sobre práticas educativas.

Entende-se também que a educação ambiental é um ato político (FREIRE, 2005)

e,

assim

como

a

Educação,

tem

papel

fundamental

na

transformação da realidade rompendo com modelos de pensamento

dominantes e com a manutenção do status quo na organização capitalista

iniciada no período moderno.

Partindo do pressuposto de que há um consenso geral sobre a

importância de se discutir e refletir sobre os problemas ambientais na atualidade e que a Educação Ambiental na escola ainda se encontra

bastante incipiente no que se refere às efetivas mudanças pragmáticas (LOUREIRO, 2006), destaca-se o questionamento: como as ações de

Educação Ambiental têm ocorrido efetivamente nas escolas? Segundo ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO


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Guimarães

(In:

LOUREIRO,

2006)

os

educadores,

apesar

bem

intencionados, têm desenvolvido suas atividades de Educação Ambiental permeadas pela reprodução e pela compartimentação do conhecimento.

Isto faz com que haja uma perpetuação dos problemas sem as

necessárias e efetivas mudanças, o que o autor denomina como “armadilha paradigmática”. Sobre isso Guimarães diz ainda:

“É a essa dinâmica que estou chamando de armadilha paradigmática, quando por uma “limitação compreensiva e uma incapacidade

discursiva” (Viégas,2002), o educador por estar atrelado a uma visão

(paradigmática) fragmentária, simplista e reduzida da realidade, manifesta

(inconscientemente)

uma

compreensão

limitada

da

problemática ambiental e que se expressa por uma incapacidade discursiva que informa uma prática pedagógica fragilizada de educação ambiental, produzindo o que Grün (1996) chamou de

pedagogia redundante. Essa prática pedagógica presa à armadilha

pedagógica não se apresenta apta a fazer diferente e tende a reproduzir

as

concepções

tradicionais

do

processo

educativo,

baseadas nos paradigmas da sociedade moderna. Dessa forma, se

mostra pouco eficaz para intervir significativamente no processo de transformação da realidade socioambiental para a superação dos

67

problemas e a construção de uma nova sociedade ambientalmente sustentável.” (In: LOUREIRO, 2009, p. 23-24).

Necessitamos, portanto, aprofundar as discussões nesse sentido

para conhecer os verdadeiros desafios da mencionada “armadilha

paradigmática”. Um desafio poderia ser a multiplicidade de concepções. Qual é a concepção dos professores sobre meio ambiente? E sobre a

natureza? Como a relação sociedade/natureza é concebida pelos professores? Qual é a influência disso na prática educativa?

Como é possível ver no quadro conceitual a seguir (figura 1), a

visão que hoje, hegemonicamente, predomina no mundo é pautada no paradigma racionalista moderno embasado no pensamento científico que, entre outros atributos, promoveu um distanciamento entre a sociedade e

a natureza, sujeito e objeto, purificando-os em estados isolados para preservar sua universalidade e neutralidade, formando assim o que

Latour (2009) caracteriza como Constituição Moderna. Nós aprendemos a olhar o mundo e tudo que ocorre nele dessa forma. Mas, o meio ambiente pode ser compreendido na sua totalidade, simplesmente

separando seus elementos constituintes, e estudando-os de forma a purificá-los como nos faz pensar a perspectiva dos modernos?

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68

Figura 1

Entende-se, portanto, que a visão racionalista-cartesiana de

mundo leva o educador ambiental a uma visão fragmentada

e

compartimentada de meio ambiente, assim como faz hoje a escola ao

apresentar o conhecimento através de disciplinas que permanecem

desarticuladas entre si. A polarização e a visão mecanicista do mundo proposta pelo pensamento cartesiano/newtoniano implicaram em uma herança cultural que hoje constitui o pensamento ocidental. Neste

paradigma o homem é visto como parte separada da natureza. Isto leva a ENSAIOS | ATIVIDADES INTEGRADAS DO NÚCLEO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL DO IFRJ – CAMPUS VOLTA REDONDARJ | VAGNER FRANCISCO MARINHO DA SILVA E FÁTIMA TERESA BRAGA BRANQUINHO


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uma limitação compreensiva e incapacidade discursiva do educador

ambiental de adotar a visão holística como necessária para entender as múltiplas relações que se estabelecem no meio ambiente. É necessário

entender, sobretudo, que educação ambiental é Educação e, assim como

apresenta-nos o pensamento freiriano, não se transformar a realidade se

não for construída uma educação crítica que leve o sujeito a sua emancipação.

Na crítica ao paradigma racionalista moderno, que sustenta a

separação

homem/natureza,

Latour

(2009)

propõe

a

idéia

de

indissociabilidade de ambos. Segundo o autor, o conhecimento científico levou a sociedade moderna a crer que era possível separar natureza e sociedade,

separando

os

humanos

dos

não-humanos.

Como

conseqüência, uma segunda divisão aparece sendo, portanto, definida

pela separação entre a sociedade dita “moderna” de outras sociedades “não-modernas”.

As reflexões filosóficas, promovidas por Latour, acerca do

pensamento moderno fazem-nos compreender onde estão as origens

69

dos nossos discursos e das nossas práticas. Segundo o autor, talvez,

nunca tenhamos sido modernos, uma vez que a nossa sociedade nunca

funcionou de acordo com a divisão total entre natureza e cultura colocada pelo projeto dos chamados “modernos”. Nesse sentido, os pressupostos constituídos por Latour oferecem subsídios teóricos para

uma nova perspectiva de reflexões sobre a Educação Ambiental e as concepções de Meio Ambiente. Segundo Latour:

(...) Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó

górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte

que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente engenheiros,

no

meio

interior

filósofos,

das

um

instituições

terço

científicas,

instruídos

sem

meio

que

o

desejássemos; optamos por descrever tramas onde quer que estas nos

levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede.

Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas.” (2009,p.9).

As atividades do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ- campus Volta Redonda

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Na

perspectiva

de

desenvolver

um

trabalho

integrado

e

interdisciplinar de Educação Ambiental foi criado o NEAm do IFRJ campus Volta Redonda no dia 08 de julho de 2010 sendo seu estatuto aprovado na 36ª Reunião Ordinária do Colegiado do campus.

A criação do NEAm foi sugerida a partir de um levantamento de

potenciais ações pró-ambientais que poderiam ser desenvolvidas de

forma organizada, processual, interdisciplinar, democrática e contínua neste âmbito escolar. Este levantamento gerou um relatório ambiental que teve como principais eixos:

1 - Adequações na estrutura física do campus; 2 - Educação Ambiental para a comunidade escolar; 3 - Propostas pedagógicas para o ensino; 4 - Gestão ambiental. A preocupação central da elaboração do relatório, da sugestão das

ações e do estímulo à participação democrática na gestão foi o

70

entendimento de que as questões ambientais necessitam de um enfoque

interdisciplinar. Acredita-se que não é possível que uma determinada ação pró-ambiental realizada de forma isolada e sem o envolvimento da

comunidade escolar possa realmente produzir mudanças significativas na realidade.

A partir das propostas iniciais do projeto foram realizadas algumas

atividades que podem ser verificadas no quadro a seguir (figura 2):

CATEGORIA DAS AÇÕES

1

Água

2

Água

3

Água

IMPLEMENTAÇÃ DESCRIÇÃO DA AÇÃO

O

DA AÇÃO Conserto e manutenção da rede

de

água

vazamentos.

para

evitar

Instalação de torneiras com temporizador

nos banheiros. Instalação

de

(ecológicas) descargas

econômicas nos banheiros.

SIM

SIM

NÃO

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Instalação de estrutura que 4

Água

faça

captação

das

águas

pluviais dos telhados para

NÃO

reutilização da água. 5

Lixo

6

Lixo

7

71

Lixo

8

Lixo

9

Lixo

10 11

12

Instalação

ecológicas.

do lixo para reciclagem.

Coleta dos papéis nas salas de

aula

utilização como adubo em jardins e hortas comunitárias.

Diminuir o uso de copos descartáveis.

Criação

Visual

Responsabi li-dade sócio-

ambiental

salas

Coleta de lixo orgânico para

Arborizaçã

Poluição

nas

administrativas.

dos

jardins

plantios de novas mudas. de

uma

comunitária.

e

horta

Diminuição e reorganização de papéis, cartazes e avisos espalhados pelas paredes. Promover

13

e

Arborização

o

lixeiras

Coleta seletiva e destinação

Arborizaçã o

de

produtos corretos:

a

compra

de

eletrônicos

e

materiais

SIM

PARCIAL

PARCIAL

NÃO SIM NÃO

SIM

ecologicamente

eletrodomésticos consumo

SIM

de

de

baixo

energético,

PARCIAL

consumo

reciclados ou passíveis de reciclagem etc.

14

Energia

Instalação de painéis solares de

geração

elétrica.

de

energia

NÃO

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15

Energia

16

Energia

17

Ar

18

Ar

Instalação

de

Instalação

de

solares de água.

19

Ambiental

sensores

de

movimento para economia de energia

Monitoramento da qualidade do ar de Volta Redonda. Utilização

de

renováveis

combustíveis

automobilística. Palestras

Educação

aquecedores

na

de

frota

NÃO

NÃO

PARCIAL

PARCIAL

Educação

Ambiental para a comunidade

escolar sobre água, resíduos

sólidos, reciclagem, poluição

PARCIAL

atmosférica, saúde, etc.

72

20

Educação

Ambiental

Metas

de

lembretes 21

Ambiental

no

consumo de energia e água. Afixação

Educação

redução

de

cartazes

educativos

para

de

condicionado,

ar

os

ventiladores,

22

23

pedagógica s

Propostas

pedagógica s

Propostas

24

pedagógica

25

Propostas

s

NÃO

os

computadores, etc. Propostas

e

desligar as luzes de salas, os aparelhos

NÃO

Desenvolvimento de projetos interdisciplinares sobre meio ambiente

e

Ambiental. Visitas

a

Educação

áreas

de

preservação ambiental. Avaliações sobre

interdisciplinares

Meio

Ambiente

questões ambientais. Incorporação

do

SIM

SIM

e

NÃO

tema

SIM

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pedagógica s

26

Propostas

pedagógica s

transversal “Meio Ambiente” nas ações pedagógicas. Incentivo

à

conhecimento

produção

científico

de

inovação na área ambiental.

e

SIM

Figura 2

Grande parte das atividades propostas foram ou estão sendo

realizadas de forma total ou parcial. No que se refere às ações de

natureza infra-estrutural, esbarra-se em dificuldades burocráticas no

âmbito de licitações e compras. Como instituição pública não é tão simples agilizar a compra e pagamentos de prestação de serviços especializados sem respeitar um cronograma de licitação e sem justificar de forma adequada a necessidades destes gastos.

As atividades de natureza pedagógica e educacional como

palestras, produção científica e projetos interdisciplinares esbarram na

73

dificuldade

de

fazer

com

que

os

docentes

flexibilizem

seus

planejamentos de ensino e cronogramas previstos. Como as ementas das

disciplinas estão além do número ideal de aulas para cumpri-las de

totalmente, tem-se a dificuldade de conseguir com que os professores

possam “ceder” aulas para a realização das palestras.

Considerações finais A presença da indústria CSN em Volta Redonda lhe confere um

ambiente peculiar. Os conflitos e a vulnerabilidade socioambiental do

contexto local têm grande intensidade. A Educação Ambiental no IFRJ campus Volta Redonda se torna tarefa complexa quando se pensa que a comunidade escolar está, de forma direta ou indireta, dependente economicamente da atividade industrial daquela empresa.

O estudo sobre o Meio Ambiente exige uma visão mais holística

para a sua possível compreensão. Neste contexto não é possível separar,

por exemplo, a natureza e a sociedade humana. Pensar analiticamente a separação entre estes dois elementos para compreendê-los é uma

concepção enraizada no pensamento humano, dotada de limitações teórico-científicas e reducionismo do conhecimento.

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As propostas de atividades ambientais integradas no IFRJ, campus

Volta Redonda, dependem do planejamento estratégico das ações e de mobilização política que possa contar não só com os gestores, mas também com professores, pais, alunos e funcionários. Alguns dos principais entraves às atividades foram a burocracia e a falta de preparo,

principalmente dos professores, de lidar com novas metodologias de ensino interdisciplinar.

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A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar

Nathália Alvarenga Porto Costa

Graduanda do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do Grupo de Pesquisa

76

Saberes e Fazeres de Ceramistas Fluminenses coordenado pela Profª Drª. Fatima Teresa Braga Branquinho.

Resumo

Levantamento bibliográfico nas áreas da educação em arte e

educação ambiental permitiu identificar pontos convergentes entre as duas modalidades de educação, dentre eles, a sensibilidade. O artigo

busca discutir, assim, a forma como a sensibilidade é abordada nas respectivas áreas, questionando sua relevância no processo de formação humana e o modo como é apresentada nos respectivos volumes dos

Parâmetros Curriculares Nacionais de Artes e Educação Ambiental. Noções construídas por Humberto Maturana, Maurice Merleau-Ponty e Ana Mae Barbosa fertilizaram a discussão proposta.

Palavras-chave:

sensibilidade.

Educação

Artística,

estética,

Educação

Ambiental,

ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA


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Introdução

Uma palavra, treze letras, seis sílabas e incontáveis conotações.

Muito utilizada pelos profissionais das áreas de humanas, sobretudo filósofos, psicólogos e educadores. Todavia, a utilização indiscriminada

do termo nos faz esquecer seu real significado e sua aplicação dentro do campo educacional. O objetivo é discutir a utilização do termo nas duas modalidades

de

educação

e

sua

apresentação

nos

Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, nos volumes 6 e 9, respectivamente, Artes e Meio Ambiente.

Considerando o ser humano como ser holístico, entendemos a

sensibilidade como um de nossos aspectos que estão sempre presentes,

porém, qual a relevância atribuída a esta no campo da educação, especialmente na educação artística e na educação ambiental? Aparece exatas vinte vezes em um volume – Artes – e quatro vezes em outro –

Meio Ambiente, mas, como nos mostra Ana Mae Barbosa (2010, p.99),

77

muitos educadores caíram no lugar comum de defender a função primordial

da

arte/educação

como

sendo

o

desenvolvimento

da

sensibilidade, dando-se ao luxo, em sua maioria, de não conceituá-lo dentro do campo. Da mesma forma o discurso é utilizado na educação

ambiental. As implicações deste discurso que, embora tenha sido amplamente validado na academia, tornou-se naturalizado, fez com que grande parte dos educadores se acomodasse em discursos prontos,

deixando de ir além do que já foi legitimado. Vamos então, dar vida ao que aparentava estar esquecido, buscando uma prática docente mais consciente.

Sensibilidade, percepção e emoções: uma ligação transcendente.

Em uma interpretação mais simples, concretizada com uma busca

ao dicionário, talvez o termo sensibilidade pudesse aparecer como

característica de sensível, ou faculdade de sentir. Ora, se encontramos uma simples definição para este termo, a compreensão de seu processo de formação, da faculdade de sentir e de sua relevância para a educação talvez não seja tão simples.

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A sensibilidade, elemento primordial para uma educação estética,

nos pode ser esclarecida quando compreendemos as raízes da palavra

estética como aisthèsis, originária de aisthanesthai – compreensão pelos

sentidos. Um dos possíveis significados para aisthèsis é conduzir o mundo para dentro, “como encantamento pela reação sensível à forma

que esse mundo toma pela emoção à imagem do mundo – eidolon” (Carbonell, 2010, p.108).

Desde o início de nossa existência, a sensação se fez presente em

nossa vida. Enquanto seres humanos, somos contemplados por vários

aspectos: cognitivo, social, psíquico e emocional, entre outros. O último, porém, perpassa todos os demais de tal forma que merece ser salientado.

Quando ainda éramos feto, sentíamos o que acontecia do lado de

fora da grande proteção que nos envolvia, mesmo que a linguagem ainda não fosse por nós dominada. Sentíamos a alteração do tom de voz, no carinho ou nos movimentos físicos feitos externamente. Tudo o que

acontecia era percebido e gerava emoções, tal como continua sendo. As emoções geradas por um estímulo externo podem fazer com que o feto

78

chute ou se acalme, por exemplo. Como em uma reação em cadeia, percebemos, sentimos diferentes emoções e respondemos através de ações.

A percepção, conduzida predominantemente pelo nosso olhar

carregado de conceitos pré-estabelecidos ao longo de nossa vivência no mundo, faz acontecer um casamento entre o eu que percebe e o objeto ou situação que está se apresentando diante de mim. Este contato através

do vidente e do visível, embora seja permeado pela bagagem perceptiva

já adquirida, também é capaz de agregar novos significados criando novos

preceitos

e/ou

modificando

os

anteriores.

Um

processo

extremamente dinâmico que ocorre com grande frequência ao longo da vida.

Como nos lembra Maturana (2002, p.23), a emoção nos leva à

ação. Colocando-se contra a supervalorização da razão em detrimento da

emoção na sociedade atual, Maturana vem nos mostrar o quanto a

emoção pode influenciar nossos posicionamentos ao longo da vida, estando sempre presente como plano de fundo de cada atitude tomada.

Através de nossa sensibilidade as emoções podem ser vividas. A

percepção é uma “tomada de posição deliberada” (Merleau-Ponty, 2011) inerente à sensibilidade. Por sermos suscetíveis a diversos estímulos

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através de nossa percepção, sentimos. As sensações, por sua vez,

despertam emoções. Nosso contato com outras instâncias, sejam elas palpáveis ou não, nos proporcionam sensações que dão vida às emoções.

Na primeira infância, experimentamos diversas sensações através

de simulacros da realidade, presentes nos momentos de brincadeiras ou

atividades lúdicas em sala de aula. Seja através dos contos de fadas, fantasias ou canções, os sentimentos são percebidos através das emoções despertadas por nossos sentidos. Em salas de Educação Infantil,

por exemplo, é primordial o contato das crianças com essas experiências emocionais proporcionadas por ambientes diferentes disponíveis para

brincadeiras. Grande parte dos educadores que já passaram por uma

classe com crianças tão pequenas pode perceber o quanto uma criança é capaz de sentir medo com o lobo mau e também sentir dó da Cinderela e

raiva da madrasta. Com estes simulacros, a criança experimenta e traça estratégias para lidar com suas emoções, esta é a justificativa do discurso pedagógico e psicológico a respeito do tema.

A sensibilidade, nada mais é do que a capacidade que temos de

79

perceber o mundo a nossa volta e percebermo-nos também enquanto parte integrante dele. Ao contrário da música de Erasmo Carlos que diz,

“ele é uma criança e não entende nada”, as crianças entendem e sentem. Caso a compreensão não seja tão fácil através das palavras, a

sensibilidade se encarregará de realizar a tarefa. A capacidade de perceber é totalmente particular, fazendo com que a cada olhar de cada

sujeito, um objeto ou situação possa ser percebido de forma diferente,

ressaltando-se características x ou y. O nosso olhar, que em momento algum é neutro, faz com que escolhas sejam feitas através da mudança de foco.

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Figura 1 - Tonucci (1997; p. 34 e 35)

Primeiramente, somos apresentados a uma infinidade de itens que

parecem distantes de nós. Não nos sentimos parte, embora possamos

perceber o que nos rodeia. A noção de pertencimento, porém, pode ser instigada a partir do momento em que compreendemos esta complexa

dinâmica existente entre os elementos externos e os elementos internos a nós. Os elementos externos nos causam estímulos sensoriais que

despertam emoções – gerando a primeira conexão entre o que é

intrinsecamente interno e o que é externo – que são refletidas em atitudes posteriores. O movimento de ida e vinda dos estímulos nos faz

ativos integrantes no processo de formação desta sensibilidade inerente ao

humano,

corroborando

com

os

fatores

biológicos

que

nos

caracterizam enquanto personagens deste grande ensaio chamado ambiente. O território do olhar acaba ocupando seu lugar entre as coisas e não de fora delas, como nos mostra Carbonell (apud Kant):

“A experiência estética nasce do encontro do indivíduo com o infinito

do universo, e ele como parte desse universo. É nesse momento que

80

ocorre o encontro de dois grandes sentimentos humanos: o de ser infinitamente pequeno, contido na imensidão do infinito, mas também o

de

ser

infinitamente

universo.”(p.108)

grande,

contendo

em

si

todo

o

Segundo Merleau-Ponty (2011), a função essencial da percepção é

a de fundar conhecimento a partir do caráter intrínseco do objeto percebido. A forma com que percebemo-nos enquanto parte integrante

do mundo e como percebemos o que nos rodeia, instiga a vontade de

compreensão. Esta vontade faz com que o humano trace estratégias para entender o que ainda não é apresentado de forma compreensível em seu

olhar. Eis que surge a ciência. É necessário que reconheçamos a ciência como uma culminância da vontade humana de entender o mundo

percebido (Merleau-Ponty, 2011, p.89) de forma mais intensa. Em cada ciência, um pressuposto foi estabelecido como ponto de partida para a investigação. Estes pressupostos foram estabelecidos por um olhar. A partir

desta percepção são

traçados

objetivos,

gerando ações e

mobilizando os humanos rumo ao desconhecido. A educação, para além de orquestrar diversas ciências, em suas caixinhas ou em conjunto, precisa entender-se também enquanto ciência do conhecimento humano.

Desta forma, implícita aparece a aceitação do humano em sua inteireza não só biologicamente, mas também cognitivamente, tornando possíveis ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

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as trocas entre os saberes para a compreensão efetiva da realidade a qual fazemos parte. Deste modo, a educação tem o dever de continuar trabalhando a sensibilidade ao longo do processo de formação. Enquanto isso nos Parâmetros Curriculares Nacionais...

Elaborado por intelectuais das diferentes áreas de conhecimento

no ano de 1997, os dez volumes de nossos PCN’s foram formulados como sendo um referencial de qualidade para o Ensino Fundamental

dentro dos limites do território nacional. A intenção inicial seria auxiliar o professor na busca por soluções às grandes questões que emergem no cotidiano da sala de aula através do compartilhamento das discussões

vigentes no campo, contribuindo para uma atuação mais precisa e consciente dentro das escolas brasileiras.

A leitura do documento pode ser iniciada por diversos pontos,

conforme o interesse do leitor, segundo discriminado no primeiro volume. Iniciaremos nossa análise pela ordem sequencial dos cadernos.

81

No primeiro volume, de Introdução, fala-se sobre sensibilidade por duas vezes. Nos objetivos do documento definidos em termos de capacidades

a serem desenvolvidas, encontramos os seguintes itens: “capacidades de

ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e inserção social, ética e estética, tendo em vista uma formação ampla” (1997, p.47). Nosso objeto de análise aparece pela primeira vez no documento como subitem das

capacidades

de

ordem

afetiva,

juntamente

com

motivações,

autoestima, e adequação de atitudes no convívio social. A capacidade que se pretende atingir, porém, não pode ser conquistada, pelo simples fato de ser inerente ao ser humano. A sensibilidade é apresentada nos

objetivos de forma predominante como instrumento para a percepção e a

compreensão do que se dá de forma externa aos limites biológicos humanos. É desconsiderada como canal que possibilita a formação das concepções de mundo e tomadas de posição ética e moral, vide o trecho em destaque abaixo:

“Esses fatores levam o aluno a compreender a si mesmo e aos outros.

A capacidade afetiva está estreitamente ligada à capacidade de relação

interpessoal, que envolve compreender, conviver e produzir com os outros, percebendo distinções entre as pessoas, contrastes de temperamento, de intenções e de estados de ânimo.” (PCN, 1997, p.47)

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Entendendo a formação do sujeito discente como sendo contemplado por

diversos aspectos, a segunda aparição do termo acontece dentro do item “Orientações Didáticas”, no subitem “Autonomia”, vinculado à autonomia emocional. Aqui, destaca-se a importância do desenvolvimento da autonomia do conhecimento atrelado a outros aspectos, como por exemplo, a autonomia moral e emocional, que contemplam aspectos como a sensibilidade.

No volume de Artes aparece de forma mais intensa que nos

demais, sendo sua primeira aparição já no primeiro parágrafo, de

apresentação, alegando-se a possibilidade de sua ampliação através da

disciplina. Podemos encontrá-la também descrita como canal entre

artista e espectador (1997, p.29), como matéria-prima expressiva que

configura a obra de arte, “o motor que organiza este conjunto” (1997, p.30) – artista-criação-obra... Porém, nas demais aparições percebemos

de forma latente o uso do termo como justificativa para o ensino,

enfatizando-se veementemente a importância de seu desenvolvimento através do ensino de artes. Dentre estas, uma, em especial, merece

82

destaque:

“Ao fazer e conhecer arte o aluno percorre trajetos de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua relação com o

mundo. Além disso, desenvolvem potencialidades (como percepção, observação, imaginação e sensibilidade) que podem alicerçar a consciência

do

seu

lugar

no

mundo

e

também

contribuem

inegavelmente para sua apreensão significativa dos conteúdos das outras disciplinas do currículo.” (PCN, 1997, p.32)

Neste trecho é apresentado de forma mais clara a importância da

sensibilidade no campo da arte. Porém, este argumento pode ser

facilmente estendido a todas as modalidades de educação, não somente à educação em artes. Ao “alicerçar seu lugar no mundo”, o sujeito torna-se capaz de estabelecer relações de forma conscientemente mais coesa

entre seus semelhantes – que embora biologicamente possam ser

considerados enquanto tal, podem apresentar percepções através do olhar que se distinguem diametralmente – e com o ambiente.

Na parte do documento referente ao Meio Ambiente, o termo

aparece como estratégia de validação de uma educação ambiental no contexto atual e também como um dos objetivos a serem alcançados com

a utilização do Meio Ambiente como tema transversal na educação. Neste volume, a sensibilidade aparece de forma mais consciente quanto a sua função na relação e compreensão entre o eu/mundo.

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Considerações finais

Até que ponto está presente em nossos discursos e nossa prática

enquanto educadores a noção de que a sensibilidade é inerente à condição humana e que assume um papel preponderante para a

formação ética e moral de cada indivíduo social? Até que ponto conseguimos, em nossas salas de aula, respeitar as percepções de nossos

educandos frente ao que lhes é apresentado sobre o mundo e ajudar na

compreensão da noção de pertencimento e corresponsabilidade do eu no mundo?

Na bibliografia das áreas e nos documentos de ordem nacional, a

83

sensibilidade aparece e é destacada como instrumento e canal que facilita a compreensão da relação entre o eu/mundo. Embora inúmeras vezes

citado, o discurso naturalizou-se, o que faz com que sejam guardadas as inúmeras justificativas para sua tamanha importância no campo da educação.

Nas

áreas

de

educação

ambiental

e

educação

artística,

a

sensibilidade ganha maior destaque que nas demais por fazer-se constantemente presente de tal forma que não há como negar sua

existência. Estas áreas tornam-se instrumentos de estímulo para a sensibilidade. Esta, não pode ser ignorada enquanto inerente ao ser

humano, não podendo ser “desenvolvida”, mas sim estimulada. Como qualidade humana, está presente em todas as áreas onde podemos nos

encontrar, uma vez que não pode se separar de nós. Na educação, seja ela de qual modalidade for, ao envolver a relação entre duas ou mais

pessoas e a transmissão/construção de conhecimentos, a sensibilidade ultrapassa sua função biológica de canal e assume posição de peso quando engloba o processo de percepção e atribuições de valor.

O processo de construção do conhecimento engloba todo o

processo de percepção, emoção e ação. A cada novo fator apresentado, da forma como pode ser apresentado, novas reações podem surgir. Daí a importância

da

consciência

docente

da

tamanha

relevância

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da


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sensibilidade no processo educativo. Uma vez dispensada tal reflexão, a prática pode gerar outras consequências, que não as desejadas.

Para tanto, é necessário que na ordem prática, haja troca entre o

sujeito do discurso – o professor – e seus receptores não-passivos. Esta

troca se reflete por meio de diálogo e da prática consciente de sua relevância sobre a formação humana. A postura docente frente ao

conhecimento e aos discentes deve ser encarada como aliada à

concretização deste processo de formação, quando utilizada de forma positiva. Caso contrário, bloqueios podem ser gerados, tornando reais o desinteresse e a falta de estímulos. Talvez aqui possamos encontrar um

dos grandes tesouros para a realização de uma educação íntegra e global: o respeito ao ser humano enquanto dotado de sentidos que ao gerarem emoções, interferem em sua prática.

A concepção de mundo acontece quando já o integramos. Esta

concepção, guiada pela percepção através dos sentidos, pode nos fazer atribuir novos valores àqueles já captados e/ou somente conservar os

que já existem. A educação, enquanto relação humana de busca pela

84

compreensão, carrega consigo a responsabilidade de contribuição na

conscientização das interferências do ser humano no ambiente e de sua

presença enquanto integrante não-passivo do mundo. Trata-se de uma interferência

do

mundo

letrado

para

operar

transformações

nos

indivíduos em determinada direção, unindo os aspectos considerados

socialmente díspares: ambiente e ser humano, intimamente ligados por meio da sensibilidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA,

Ana

Mae.

Arte/Educação

internacionais. São Paulo: Cortez, 2010.

Contemporânea:

consonâncias

CARBONELL, Sonia. Educação Estética para jovens e adultos. São Paulo,

Cortez: 2010.

MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política.

Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais. Introdução, 1997. ____._____________________________. Artes, 1997. ____._____________________________. Meio Ambiente, 1997.

ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 76 - 85

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2011. 1997.

TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas,

85

ENSAIOS | A SENSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO ARTÍSTICA E NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

UM OLHAR INTERDISCIPLINAR | NATHÁLIA ALVARENGA PORTO COSTA


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 86 - 94

Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade

Rejane Peres Costa

Professora da rede municipal e estadual do Rio de Janeiro, graduando de Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, bolsista voluntária de iniciação científica da pesquisa

Saberes e Fazeres de Ceramistas Fluminenses e Pernambucanos conduzida pela Pofª Fatima Branquinho EDU/Uerj.

86 Resumo

Este

artigo

pretende

apresentar

as

atividades

integradas

desenvolvidas por um núcleo de educação ambiental no Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, campus Volta Redonda/RJ. As ações de educação ambiental em escolas têm exigido um

trabalho interdisciplinar entre professores, uma promoção de palestras sobre o tema e adequações na infra-estrutura física para que possam contribuir para minimizar os impactos ambientais locais.

Palavras-chave:

Redonda/RJ.

educação

ambiental,

interdisciplinaridade,

Volta

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 86 - 94

Introdução

A experiência de atuar na rede estadual e municipal do Rio de

Janeiro é intrigante: na rede estadual, atuo na disciplina de história, na municipal educando através da brincadeira que é a educação infantil. Trabalhar com os dois extremos da educação básica é um exercício que

provoca reflexão. Afinal, em que momento o conhecimento passou a ser sinônimo de coisa apartada do ser? As crianças pequenas aprendem com

o corpo, com o toque, com o fazer, com o cair e levantar, beijando e

mordendo. Por que meus alunos crescidos só podem usar o movimento nas aulas de educação física e nas outra permanecem com os corpos inertes num exercício para aprender melhor? E ainda delimitados por um

conhecimento restrito a uma determinada área do conhecimento, sem ultrapassar as fronteiras minuciosamente estabelecidas?

Breve, é possível dizer que modernidade racionalizou a realidade

através de disciplinas compartimentalizadas e divididas em áreas do

87

conhecimento. O objeto de estudo do conhecimento científico é aquilo

tudo que está posto na realidade, objetiva ou subjetiva. Mas, a abordagem se dá de forma desintegrada e desconexa, o que causa um

grande apartamento e sentimento de espanto dos não cientistas frente à

descrição de seu espaço ou de seus processos. A escola, um híbrido 1,

que tenta formar cidadãos conscientes dos processos dados na

atualidade, sejam políticos ou científicos, também é a responsável por formatar, docilizar e conformar os corpos e mentes diante do poder

político ou econômico (Foucault, 1997). Neste cenário, encontra-se o

professor dos espaços públicos de aprendizagem, igualmente cindido entre os saberes e fazeres que atravessam sua prática docente, entre as

contradições daquilo que esperam do seu fazer pedagógico expresso friamente por números – de aprovados, de notas, de rendimento, de

coeficiente de rendimento nas sondagens da educação... Por vezes, esse

professor se vê confrontado com a divulgação pública de seu fazer como

o responsável pelo fracasso escolar de muitos que passam por nossas escolas.

A questão dos híbridos é central na análise do antropólogo Bruno Latour. Estes, a que chama quase-objetos, como é o caso do espaço escolar, por já não mais se enquadrarem na posição de objetos, tampouco podem ser qualificados como sujeitos, mistura de elementos sociais e naturais, que transformam e são transformados, num processo dialógico entre humanos e não-humanos.

1

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Compartimentados em nossas disciplinas, delimitados por aquele

saber que não dá conta da vida e de seus fluxos, vamos, em parceria com

nossos alunos construindo aquilo que melhor podemos para nós. Buscando uma outra visão de nós mesmos, diferente daquela que por vezes

nos

atribuem:

incapazes,

incompetentes,

ineficientes.

Extravasamos os rótulos, assim como a vida e o conhecimento que está além daquele espaço. Têm dias melhores, outros mais difíceis. Mas

vamos caminhando e nessa caminhada nos conhecendo, testando nossas

capacidades e o limite um do outro, testamos também a coerência do falar no fazer e muitas vezes, testando a paciência, tal como em todos os espaços coletivos, par além da sala de aula.

É desse “viver a vida”, num espaço precioso que é a escola, que vou

me arriscar a falar sobre a noção de interdisciplinaridade em diálogo com o cenário que acabei de apresentar. Palavra grande e difícil. Difícil de falar, de fazer, de compreender e, ainda, de compreender que a

praticamos, muitas vezes sem nos darmos conta, porque a vida é trans(disciplinar), é poli(disciplinar), é inter(disciplinar), porque a vida não

88

cabe numa caixinha e muito menos as muitas vidas que compõem a escola.

Apontamentos sobre o processo de disciplinarização

Sendo o homem um ser dotado de historicidade cabe-nos

compreendê-lo e também suas obras como fruto de uma época e dentro de um determinado contexto. A produção do conhecimento científico

está ligada a um modelo desenvolvido entre os séculos XVI e XVII na Europa, que deu origem a todo um movimento intelectual e inaugura a

Modernidade. Fundando essa nova razão e criando os conhecimentos

apartados, é nesse momento separado “o mundo natural do mundo social” (Latour, 1994, p. 19). A ciência será sedimentada nos princípios da

objetividade e da neutralidade, a busca pela universalidade e regularidade

dos fenômenos estudados, a quantificação e, aqui o que mais nos interessa, a fragmentação que divide e classifica os fenômenos.

Esse modelo será amplamente aceito e adotado nas ciências

naturais, e mais tarde utilizado nas ciências socias, para serem

reconhecidas como de cunho científico. Essa visão fragmentada nos transmitiu uma noção dicotomizada e disciplinar da realidade. Além

disso, tal visão excluiu as demais narrativas humanas classificando-as ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA


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como concepções primitivas ou mítico-religiosas e, por isso, distantes da

verdade que somente o rigor e o método científico poderiam garantir.

Isso excluiu a maior parte dos saberes e fazeres humanos acerca de suas experimentações de viver e sobreviver no mundo. Apartou o homem do conhecimento e da vida dentro de suas práticas comuns e cotidianas, que

passariam a carregar a partir daí a perspectiva do periférico, marginal e que deveria ser corrigido pela apropriação das verdades científicas ou da

tutela daqueles que as possuem. “Moderno, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos” (Latour, 1994, p. 15).

À escola coube o papel a rigor de grande garantidora do discurso

válido frente às imprecisões do senso comum que são apreendidos na vivência familiar e comunitária. O que explica o fato das crianças e adolescentes se mostrarem distantes e entediados de um saber que

pouco ou nada fala da sua vida cotidiana, ou pior, que muitas vezes

desqualifica o saber apreendido nas suas relações familiares afetivas. A

89

natureza e o ser humano foram lançados nas trevas da irracionalidade e

da superstição (Nicolescu, 1999), o sujeito foi transformado em um objeto de análise da ciência para só então ser compreendido e entendido, somente dentro dos parâmetros cientificamente válidos.

Como

nos demonstrou tão bem Foucault, a escola foi constituída para que, não só através de conteúdos listados nos currículos, mas por diversos mecanismos - aqueles subjetivos, escondidos no que parece comum e

corriqueiro - fosse possível a apreensão do comportamento ideal, do

lugar dos diferentes sujeitos no mundo estratificado do trabalho. Uma escola ensina aos que deverão obedecer, uma “outra” escola, que precisa

ser diferente, pois essa ensinará a mandar. Conteúdos mínimos pra uns, a oferta plena de conteúdos a outros. Mas, ainda diante de todas essas questões

seguimos

nossas

vidas

nesse

espaço,

mesmo

que

dicotomizado, apartado, hierarquizado, assimétrico, porque ali vivemos e nos constituímos como sujeitos, sujeitos que ensinam, sujeitos que

aprendem, sujeitos que amam, sujeitos que sonham, sujeitos que lutam. E, seguimos constituindo outras adjetivações a esse mesmo espaço: espaço interdisciplinar.

Interdisciplinaridade? ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA


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“O

papel

de

transformando

transformar

a

existência

a

autoridade

humana

num

democrática

“calendário”

não

é,

escolar

“tradicional”, marcar as lições de vida para as liberdades, mas, mesmo quando tem um conteúdo programático a propor, deixar claro, com seu testemunho, que o fundamental no aprendizado do conteúdo é a

construção da responsabilidade da liberdade que se assume.” (Freire, 1996, p. 94)

Desde a década de 1980 tem-se debatido, pensado e escrito com

grande entusiasmo sobre a interdisciplinaridade 2. Diante de um mundo

cada vez mais complexo, os saberes isolados não davam mais conta de descrever os novos processos que eram enunciados, tampouco os problemas

que

se

avolumavam,

mudanças

climáticas,

problemas

econômicos, crises, queda de muros, fim de velhas utopias e início de

novas..... tudo que era sólido se desmanchava no ar, tal como anunciara Marx no seu Manifesto Comunista, já no século XIX.

Nem a história, nem a economia, nem a biologia, nem nada

sozinho dava conta de explicar a multiplicidade do novo, “as naturezas

90

que deveriam ser dominadas de forma absoluta nos dominam de forma igualmente

global,

ameaçando

a

todos”

(Latour,

1994,

p.

14).

Evidenciava-se o fato da vida ser um todo e as dificuldades de se tratar

dela de modo estanque. Procurava-se por novos modelos, recolhendo, às

vezes, velhos modelos deixados à beira do caminho. Darwin, quando desenvolveu sua teoria da evolução das espécies, não se ateve somente à

biologia, ele nem possuía diploma universitário e por isso seguiu fora do conhecimento restrito, navegando num pseudo amadorismo que é ser curioso e entusiasta observador da vida (Morin, 2003, pp. 106-107).

Esse caminho apontava para a possibilidade de superar a crise das

disciplinas, a crise de um conhecimento que perdeu a visão do todo.

Apontava para a aplicação de conhecimentos disciplinares, supostamente

estanques, com possibilidade de dialogar com outros. A ciência e a tecnologia

atual,

possibilidades

de

especialmente um

futuro

as

ciências

humano

da

comum

vida,

cujas

projetam

estruturas

pedagógicas tradicionais não conseguem mais acompanhar. A escola que oferece uma enorme quantidade de informações sem fornecer conexões,

guias e fundamentos para a vida, priva seus alunos de uma experiência de verdade e não somente dados de leitura e apreensão para testes de sondagens. 2

Ver os trabalhos de Ivani Fazenda, por exemplo.

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Tanto professores como alunos são aprendizes e produtos dessa

escola que dividiu e selecionou os conteúdos válidos. Para um novo fazer precisamos de novas ideias que alimentem e inspirem novas práticas, que

tragam novos dados, um caminho feito no caminhar. Novo, ainda não

percorrido, por isso difícil, inseguro, mas que só assim se constituirá.

Então, certas certezas que apreendemos na infância e nas relações sociais ao longo da vida, por vezes precisam se deslocar, mudar, e abrir espaço para o novo.

Como bem nos lembra Morin, “mais vale uma cabeça bem-feita

que bem cheia” (2003, p. 21). O acúmulo máximo, a mesma lógica que

regula a economia, acaba por influenciar outras formas de agir no mundo. Cremos, há tempo, que a acumulação de muitos saberes, mesmo

que desconexos e sem sentido, é que irá garantir a formação dos sujeitos escolares. O que esses sujeitos farão com as informações que recebem já não importa, o que importa é o saber máximo. Narrando meu fazer, são

muitas as ocasiões que verifico sobre como a escola assegura esse

saber/fazer, mesmo que não constando oficialmente no currículo, numa

91

aula com uma matéria específica, mas porque a vivencia no fazer cotidiano é de extrema valia e eficiência. Em uma turma de nono ano do

ensino fundamental, uma aluna trouxe uma constatação que pode nos ajudar a pensar nesse tema. Ao perceber que assistiria um documentário que introduziria novamente um tema a tratarmos falou:

Professora você vai passar filminho de novo!!! Por que você não passa

um questionário da matéria? É melhor, mais fácil e assim a gente sabe o que vai cair na prova. (J., 14 anos) 3

Essa reação de J. deixou-me bastante consternada. Sendo uma

aluna aplicada e que compreendeu totalmente os instrumentos escolares, sabia que esse fazer se dá com uma sucessão de atos que culminam na avaliação do quanto os alunos foram capazes de decorar desse processo. A palavra escolhida por ela, “filminho”, também denotava o valor dado ao

conteúdo disciplinar escrito e uma produção visual que não compõe oficialmente a matéria em questão. Afinal uma proposta diferente tem

qual sentido para esses alunos calejados dos processos escolares? E qual sentido tem para os professores que há muito tempo estão nessa vivência?

Os demais alunos da turma protestaram e pediram com veemência

assistirem ao filme proposto. Tratava-se do título O Menino de Pijama Diálogo retirado de apontamentos pessoais de uma experiência docente com uma turma de nono ano numa escola estadual no município de Belford Roxo – RJ/2012.

3

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Listrado (2008), pois iniciaríamos os estudos sobre as guerras mundiais. Numa tentativa de aproximação através de uma abordagem subjetiva e

sensível, de como as vidas cotidianas narram seu tempo, seu microcosmo

social, “em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre a condição humana” (Morin, 2003, p. 45).

Afinal, mesmo que com um começo de demonstrações de

desagrados, ao final do filme a turma emocionou-se e a própria J. declarou ter gostado muito. O debate que se seguiu foi intenso. A turma

não se conformava com as explicações dadas no livro, de forma

simplificada e em tópicos, sobre as causas da guerra. Então estendemos o tema por mais alguns dias para dar conta de procurar respostas mais

satisfatórias. Levamos mais dados que encontramos em pesquisas feitas individualmente e compartilhamos em roda: porque os homens fazem

guerras? As perguntas e as inquietações que elencaram os conteúdos que

foram tratados, mas tratamos principalmente das experiências individuais

com a violência e injustiça social dos nossos tempos. Foi uma experiência

92

docente muita rica para mim e acredito que, pelo interesse provocado, para eles também. A

turma

envolveu

outros

professores

que

encontraram

consonância com o tema que estavam trabalhando – como a professora

de português, que estava trabalhando com textos sobre ética e

convivência social (a professora havia detectado uma animosidade muito grande entre os grupos de alunos que compunham a turma e por isso

essa temática), e a de artes que estava trabalhando com as produções artísticas

desse

período

histórico.

As

aproximações

com

estas

professoras foi iniciativa dos alunos, que não conseguindo parar tudo que conversávamos nas primeiras aulas da manhã, acabavam por contaminar as disciplinas seguintes com a mesma temática. Nós, professores, não soubemos nos aproximar tão bem como os alunos fizeram com nossas disciplinas. Mesmo diante de uma experiência positiva como a vivida, as dificuldades permaneceram, num diálogo ainda difícil, mas numa aprendizagem possível. Então é possível questionar: quem ensina quem nesse processo? E o que temos aprendido (nos permitimos aprender) com nossos alunos?

É na busca de uma escola com mais sentido, para todos os atores

que lá estão, que permitimos as dúvidas, o saber incompleto –

incompleto como somos nós – o saber que se constrói no fazer, no viver,

nas relações cotidianas. No sentido que dou àquilo que pronuncio como

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minha crença ao fazer em consonância “não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo” (Freire, 1996, p. 34). O saber que tem o ser como um todo conectado, objetiva e

subjetivamente, suas experiências e suas crenças, reconhecendo e tratando desses assuntos, não ficando somente nos “saberes válidos”, mas principalmente nos saberes vividos. Esses cheios de sentido porque uma vez experimentados se tornam integrantes do ser.

A disciplinarização escolar visa corpos e mentes. Corpos e mentes

passivas diante do conhecimento e do poder, buscando somente pelas

respostas certas a perguntas que nunca fizeram. Mesmo não se

adequando ou sofrendo com tal processo, os sujeitos escolares apreendem que só terão a excelência se forem massacrados com conteúdos desconexos e, a princípio, sem sentido algum com o cotidiano, com a vida que trasborda de outro jeito fora dos muros da escola. Podemos, afinal, reconhecer que a vida e suas ligações se

realizam, alheias aos limites das disciplinas, alheias ao modelo escolar,

elas se encontram se inter-relacionam e se integram? Como poderemos,

93

professores e alunos, nos integrarmos também nesse processo de interdisciplinaridade?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Nilda; GARCIA, Regina L. (orgs.). O Sentido da Escola. Rio de

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ENSAIOS | ENSINANDO E APRENDENDO: UM DIÁLOGO PERENE COM A INTERDISCIPLINARIDADE | REJANE COSTA


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entrevista:

Verstรถrung: Aprendiz de Xamรฃ. Diรกlogos com Laerson Azevedo. Thiago de Oliveira Sales


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Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo.

Thiago de Oliveira Sales – UFPE

Licenciado em História, especialista em Etnomusicologia, mestre em Antropologia, doutor em Antropologia, doutorando em Filosofia.

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Os escribas e os profetas de hoje são esses que agora vendem

palestras motivacionais e tentam promulgar leis esquisitas, do gênero:

não façam isso de forma sexual, por favor! Façam-no, mas não dessa forma sexual, por favor. E os guerreiros de hoje são os executivos e os

futebolistas que vão à televisão comprovaram que deram “à volta por cima” – esses que recebem fortunas para destruir impérios simbólicos,

como fez Aquiles lá em Tróia e Eike Batista nos últimos anos. E os xamãs de agora são esses detentores das terapias contemporâneas, esses que

dominam os compostos químicos e sabem muito bem onde obtê-los: são

herdeiros de Paracelso, não de Hipócrates – porque a alopatia é “paracelsiana”, e não “hipocrática”. O guerreiro vai sempre existir, claro, mas o xamã estará lá presente a sugerir “check-ups”. O que são “check-

ups”? São singelas licença para o viver: após conferir que nossas taxas estão adequadas, podemos enfim continuar vivendo (são esquemas de

prognóstico, e não de diagnóstico, como normalmente se pensa). Todos saem felizes de um check-up bem sucedido: agora sim tenho certeza que

posso continuar vivendo! Estou livre desses “microespíritos” indesejados! Além disso, poderei continuar minha vida indisciplinada e pseudohedonista. Laerson Guilherme cresceu numa casa assim: um pai médico

(médico e veterinário), uma mãe enfermeira, um irmão farmacêutico e uma irmã mais nova também enfermeira. Laerson, como tal, mergulhou ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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nas práticas de cura a partir de um movimento inusitado e, ao mesmo tempo, excessivamente tradicional. Andou ao lado do pai, por entre

municípios distantes e hospitais humildes, na tentativa de curar

“pessoas”. Ora, o que são pessoas? São seres complexos, repletos de

dramas infantis e alegrias adultas – essas coisas que o escritor austríaco

Thomas Bernhard tão bem descreveu numa espécie de literatura muito razinza e “afetuosa”. Bernhard falava mal de todo mundo para depois

dizer que amava a todos – é bem isso a sua escrita; é ranzinza e carinhosa. Curiosamente, Laerson parece Bernhard e, Bernhard, por sua vez, escreveu um livro com a mesma história de Laerson: Perturbação

(Verstörung, 1967), livro emblemático da obra do autor, assemelha-se a

um esboço ariano da trajetória, também cínica, mas tropical e apaixonante, de um sofista proveniente de uma tradicional família de protestantes e xamãs (se é que tal associação é possível).

- Como você começou a acompanhar seu pai como médico? Na década de 90 meu pai foi fazer atendimento no sindicato dos

hoteleiros. Funcionava assim: ele ditava o tipo de exame, a data, ditava

97

tudo, eu escrevia e ele apenas conferia e assinava. Meu pai já tinha certa

dificuldade em “escrever”, por isso eu o ajudava. Fizemos atendimento em muitas cidades do interior próximo ao Município de Bezerros. Depois

que minha irmã percebeu que eu estava acompanhando demais meu pai,

propôs que me dessem 400 reais por mês. Era o dinheiro que eu ganhava por acompanhá-lo.

- E isso obrigava a você ver o “caso” dos pacientes? Claro que obrigava, pois eu tinha que acompanhar. Se bem que, de

fato, não era uma “obrigação”, afinal, quem tinha que saber e, quem

sabia de fato, era meu pai, mas, por curiosidade, acabei vendo muita

coisa. Ele fazia atendimento três vezes na semana e eu o acompanhava

nesses dias. Eu escrevia então todo procedimento clínico, chegava pacientes cardiológicos lá e eu tinha que saber as diretrizes do eletro, onda p, onda q, o complexo QRS... Tinha que saber tudo isso.

- Por que seus irmãos não acompanhavam seu pai? Por que ele escolheu você?

Eu era sempre a “opção” para essas coisas aqui em casa, mas

também, meu pai confiava muito em mim. Talvez porque eu quisesse

entender da coisa, eu tinha interesse, eu não ia apenas por ganhar um dinheirinho, eu tinha curiosidade mesmo.

- Curiosidade pelo quê? Pela morte? ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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Pelo conhecimento, não pela morte, mas pelo conhecimento. Você conhecer dessas coisas lhe dá certa segurança. - Segurança? Como assim? Quando algo acontecer com você, você estará sabendo o que é. Se

eu tiver uma tosse, e essa tosse tiver expectoração, e essa expectoração

tiver “raios sanguíneos”, aí o médico vai dizer “tome esse raio-x e vá

saber”, mas eu diria “raio-x somente não, doutor, passe uma pesquisa de

BK aí no escarro, pois eu quero saber se é tuberculose”. Eu não vou

chegar num consultório e ficar à mercê de um médico que vai passar exames e mais exames para que eu tenha voltas e mais voltas para ele ganhar dinheiro.

- Vivemos numa sociedade hipocondríaca, há uma série de

estímulos

para

buscar

“doenças”

conhecimento não é um transtorno?

e

fazer

check-ups,

não?

Esse

Não. Quanto mais você conhecer da doença, mais hipóteses de

descartar determinadas patologias você tem. O conhecimento aumenta o

98

“grau de consciência” do sujeito. Por exemplo, estou com dois cistos na

tireoide, um cisto de 0.8ml na tireoide esquerda e na tireoide direita, e um no pulmão. Eu li na ultrassonografia e na tomografia: “formações

císticas sólidas de aspecto morfológico condizentes com calcificação”, bem, o que seria isso? Nesse momento pensei: meu PTH tá alto, e o PTH é

regulador do cálcio no organismo, ou seja, ele tá roubando cálcio do organismo e depositando em outro canto. Esse conhecimento já me livrou de ficar encucado com câncer e outras coisas. Outra pessoa que lesse

“cisto na glândula da tireoide...” iria ficar louco, não? Mas com o conhecimento, a gente se livra disso. Se você não tiver o conhecimento qualquer leitura vai ser péssima, você não vai entender nada. Imagina se você abrir o “google” e encontrar que você está com vasculopatia

periférica e que já está com comprometimento no quinto arteiro direito?! Consegue entender isso? Ora, significa apenas que você está com

problema de circulação na mão direita, nesse “dedinho”. Mas, claro, isso pode soar como algo extremamente grave.

- Você gosta de utilizar a palavra “frescura” – tal palavra é, para

você, uma espécie de “conceito”?

Não tenho um conceito formado sobre o que seria “frescura”, mas

funciona mais ou menos assim: nada é da gente, o que foi dado foi dado por alguém que tinha e foi lá e deu (Deus?).

ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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- Ter medo da morte é “frescura”? É, pois algum dia a gente vai morrer, não? A gente não tem medo da morte, a gente tem medo do desconhecido, porque a gente não sabe o que há depois.

- Você também fala muito do pulmão, o que há com o pulmão? Considero o órgão “mais vital” do ser humano. Observei isso em Bezerros, pois percebíamos que no internamento clínico, e até cirúrgico mesmo, quando o paciente perde muito sangue numa amputação, por exemplo,

ele começa a apresentar uma certa insuficiência respiratória, uma certa dificuldade de respirar. Quando o aparelho respiratório é atingido, pode

ter certeza que é o último estágio. O sujeito pode estar bem de tudo, mas

se estiver ruim do aparelho respiratório, então, não há solução. Claro,

tudo isso por uma questão muito simples: o seu corpo passa 10 dias sem comer, 5 dias sem água, mas não passa 5 minutos sem oxigênio – ninguém consegue ficar 5 minutos sem oxigênio. O mergulhador profissional consegue ficar 6 minutos porque treina muito.

99

- É por isso que Deus soprou as narinas de Adão? Talvez. Meu amigo entrou na UTI sóbrio, falando tudo, disse ao irmão:

“Traga para mim o livro de Clarice Lispector, quero ler aqui na UTI”. Bem,

começou a cansar, a cansar, e então, insuficiência respiratória e depois

infecção respiratória e então, óbito. Não tinha problema no aparelho cardiológico, não tinha problemas hepáticos, neurológicos, nada, foi

somente um problema de “respiração”. Era um amigo da igreja, sabe? Crescemos juntos. igreja?

- Como foi sua vida na comunidade religiosa? Como você vê a (difícil dizer)... A igreja não é legal. A igreja lhe lapida com uma

porção de dogmas e o sujeito se sente culpado de tanto encherem a

cabeça dele com coisas do tipo: masturbação é pecado, “não sei o que lá mais é pecado”, não pode, você tem que dar 10% do seu dinheiro. A

igreja vai transformando o sujeito num ser paranoico – essas coisas te deixam paranoico. O sujeito vai ficando paranoico com coisas de igreja. A igreja nos prepara para estar casado: “o casado que está certo!”.

- O que acha do projeto de família e demais outras coisas que a

igreja propõe?

Estou para conhecer, antes de morrer, duas pessoas, seja homem e

mulher, mulher e mulher, homem e homem, que resolveram se unir e ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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compartilhar a vida em comum no teto e que se tornaram mais feliz do que quando eram solteiros. Eu não conheço ninguém. Eu não conheço ninguém que tenha sido feliz depois do casamento. Conheço pessoas que

se casaram por obrigação social, casou porque o “tradicionalismo” pede o casamento – os pais pedem o casamento. - E o amor? E sobre o amor? lá!

Amor não existe. Eu não acredito em amor. É invenção grega, sei - E o amor de Deus para o homem? Ele amou a humanidade? O amor? O amor em que sentido? Bem, o amor de casal é mentira. - E o por que as pessoas se agregam? As pessoas se agregam por autoproteção, acho que é isso. Eu

quero que alguém me queira bem, que queira cuidar de mim, e acabo passando isso para outras pessoas, para que os outros me queiram bem.

- Às vezes penso que as pessoas querem uma testemunha da

100

própria biografia.

O homem é só cinza e memória, depois que ele for embora tudo se

esquece... Veja, eu nem sei quem é meu bisavô! Nem sei o nome dele! Só

está na memória do meu pai, quando ele morrer, acabou meu bisavô. Meu tetraneto não vai saber nem quem eu sou! É capaz de ele trabalhar na pizzaria que eu abrir sem saber que fui eu que abri!

- Você tem 35 anos e, aconteceu algo que parece irônico, pois

você se preparou sem querer para “isso” e caiu imerso na medicina sem ser somente para acompanhar, mas também, para ser acompanhado, pois

hoje em dia, você faz hemodiálise. Acha que isso foi uma “brincadeira” do destino? Como é a vida de uma pessoa que estava tanto tempo metido na

medicina indiretamente e, agora, faz hemodiálise? Como é a vida de um paciente com hemodiálise?

Rapaz, hemodiálise é cruel, é pesado. É uma espécie de tratamento

que você fica entre a cruz e a pesada. Se você não entra você vai ter

complicações sérias, circulatórias e tudo o mais. Se você entra, terá outro tipo de complicação, cardiológicas e tal. Mas, tem que entrar para tentar manter a vida, não? Quando há indicação para diálise, tem que entrar pesado. Na verdade são 3 tratamentos: o conservador, que é com dieta, o

dialítico, que é com dialise, e o de transplante, que aí o sujeito

transplanta e fica em observação para ver se funciona. Nenhum dos 3 é seguro, o transplante é interessante, mas é uma cirurgia com risco de ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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vida – o sujeito tá recebendo órgão novo, vai diminuir a imunidade dele,

vai ter que tomar imunossupressor, a própria cirurgia pode infeccionar...É bronca grande, viu? Bronca grande.

- O que mais te impressionou enquanto acompanhou teu pai? Certa vez vi uma criança morrer. Uma criança não merece morrer, afinal

quem merece morrer? E ainda mais por um acidente? Sei lá. Uma vez, sabe, na emergência, entrou um pai e uma mãe desesperados, gritando

com muita gente atrás dele – o pai trazia o menino num braço e a mãe com uma menina no outro braço, havia ocorrido um acidente que tinha

atingido os garotos. Lembro bem de ver o pai ajoelhado, na frente da porta de emergência pedindo “pelo amor de Deus” que não levasse o

menino dele – depois disso, fiquei pensando “deve ser muito difícil ter filhos”. É muito difícil ter filho, muito. Lembro-me de um episódio de

Batman que o mafioso diz algo assim “depois que você tem filho, você se torna um refém”.

- Já agiu como médico por aí?

101

Certa vez uma amiga disse estar sentindo uma dor latejante e

quente, então, um estudante de medicina pediu um RAIO-X para ela. Lembro-me que ela comentou isso comigo e eu fiz uma anamnese e

disse assim: “isso deve ser trombose, fale com o Dr Artur e mostre esse

braço para ele”. Então, o Dr Artur me ligou para agradecer e disse “Parabéns, viu? Você detectou a TVP dela há tempo e ela já está em tratamento”.

- Você se considera um médico que não é médico? Um lutador que

não é lutador? Afinal, você já foi lutador de jiu-jitsu. Um professor que

não é professor? Sei que já foi vigilante, afinal, você se considera o que profissionalmente?

Na verdade eu sou um camaleão social, sabe? Você sabe que eu

não entendo absolutamente nada de português, não? Muito embora eu

seja professor de português. Se você perguntar para mim o que é uma oração assindética e uma sindética eu não sei explicar. - Mas e, ainda assim, você fala muito bem. Sim, eu tenho certa eloquência, tenho certa oratória, um poder de

retórica...

Isso

ajuda.

Todos

sempre

“caem”

na

minha

“pala”.

Cientificamente, eu sou um “sofista”, eu sou cheio de “sofismas”. Eu pego

um chavão, por exemplo: “na escola me ensinara taxonomia, nomes

científicos, me ensinaram a ler os elementos, me ensinaram todo tipo de coisa, mas nenhum professor nunca me chamou a atenção para uma ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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beleza de uma árvore” e saio por aí a repetir essas bobagens e todos se

impressionam, pode? Com esse tipo de coisa as pessoas me acham um intelectual extremamente preparado, pode?

- Acha que os homens têm carência de sofistas? Vou lhe dizer uma coisa (enorme pausa, grave pausa) o ser humano está

muito carente de conhecimento, o ser humano não tem conhecimento.

Também confundimos conhecimento intelectual com burrice, mas não é isso que me refiro.

- Conhecimento em que sentido? Percepção das coisas? Eu quando converso com meus colegas professores, e mesmo pessoas de

outras áreas, eu percebo que conhecimento de mundo, coisas básicas, as

pessoas não têm noção. E há coisas tão graves, coisas que todos deveriam saber, e ninguém sabe. dia?

102

- Você fala que é um sofista, afinal, é possível ser sincero hoje em Não tem como, é impossível. Nunca o homem quis saber verdade

nenhuma. Nunca o homem quis saber verdade nenhuma! - Isso é mais um sofisma?

Isso é mais um sofisma (riso). Ora, deixe-me falar sério, isso não é

um sofisma, isso é algo constatado, nós temos que manter nossas

máscaras sociais. Acha que alguém quer ouvir verdades na cara? Verdades constrangedoras? Ninguém quer ouvir. Acha que eu quero ouvir: “Laerson, tu és doente, não vai voltar a lutar judô agora não” – bem, tu achas que eu quero ouvir isso?

- Acha que na intimidade a gente já sabe de tudo e, na verdade, a

gente já tem a verdade e não quer ouvir a verdade?

Tem esse caso, e tem o caso do sujeito que, de maneira doentia ou

patologicamente falando, ele encobre – ele finge que não sabe! Ele acha que não sabe!

- Então, a verdade vos libertará é uma “falácia”? Acho que a verdade pode aprisionar. Se eu cair na real sobre o que

é de fato minha doença eu acho que posso cair em depressão ou algo assim. Eu sou um sujeito “de não ligar para nada” e fico achando que

tudo é “frescura”. Mas, ao mesmo tempo, essa coisa de achar “frescura” é uma das minhas defesas.

- Acreditar que tudo é “frescura” é um sofisma para si mesmo? ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


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É sim. Porém, eu acredito nisso. Eu procurei acreditar até que eu

consegui. Então, eu penso “mete essa agulha, tira o sangue, filtra que eu

volto para casa”. Na verdade isso se chama “resiliência mental”: é o

homem tentando fazer com que o cérebro dele se torne imune a determinados pensamentos.

- Algum dia o homem vai querer ouvir verdade? Jesus vai voltar

quando o homem quiser ouvir verdade? Será essa a volta de Jesus?

Platão falava sobre isso quando comentava acerca da caverna. A verdade, bem, a verdade é meio dura mesmo. O homem nunca vai querer ouvir a verdade. Não há concursos para você?

- Ei, você quer me dizer a verdade? (risos) Escute, deixe-me

perguntar outra coisa. Você acha que é o tipo da pessoa que guarda muito a verdade para si? O sofista, afinal, sabe das coisas, mas não quer dizer. Protágoras era assim, não?

Há pessoas que vêm conversar comigo coisas que não me

interessam, mas eu me mostro interessado, porque sei que as pessoas

103

precisam disso. Mas lá dentro do meu coração tem uma vozinha que diz assim “que bobagem, eu não quero saber disso não”. Há uma doença,

uma disfunção no lobo central, que a pessoa não consegue segurar a informação. Por exemplo, se eu estou conversando contigo e estou achando essa entrevista uma porcaria, eu iria dizer.

- Vivem mais felizes aqueles que encontram o amor, o dinheiro ou

a saúde?

O dinheiro! É o dinheiro. A coisa mais importante hoje em dia,

nessa sociedade, é “dinheiro”. Por exemplo, se eu tivesse dinheiro agora eu estaria bem, sabe? Pois compraria um rim (mesmo de maneira clandestina). Conheci pessoas que só fizeram um dia de dialise, depois

que soube das complicações que teriam, comprou um rim! Saúde, em

determinados níveis, é comprável também. Porém, se você for pobre e

tiver problema renal, estará encurralado. O sujeito tem saúde, tem o amor dos amigos, mas, no dia que ele perde a saúde, ele está lascado. Se

o sujeito tem um câncer, por exemplo, o que ele vai fazer sem dinheiro? E o câncer pode chegar para qualquer um.

In Memoriam de Dr. Clayton de Azevedo.

ENTREVISTA | VERSTÖRUNG: APRENDIZ DE XAMÃ. DIÁLOGOS COM LAERSON AZEVEDO | THIAGO DE OLIVEIRA SALES


ENSAIO FOTOGRテ:ICO

Livre que pensamos. Louvre que somos. Texto e Fotografias de Claudio Xavier


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Livre que pensamos. Louvre que somos.

Claudio Xavier

Designer, Professor na Universidade do Estado da Bahia-UNEB e no

Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade da UEFS; Doutor em Ciências e Tecnologias da Comunicação, Universidade de Aveiro,

Portugal. Vem pesquisando os seguintes temas: tecnologias digitais e convergência, interface, ciberespaço, ciberaprendizagem, cibercorpo, objetos e espaços de aprendizagem, design e

105

(in)formação visual.

As estratégias humanas de sobrevivência e de interação, nem

sempre dialógicas com o meio-ambiente, se traduzem na eterna e dual relação do que nos forma e do que formamos, do que somos e do que

também queremos ser. O imaginário que se alimenta é o mesmo que

desenvolve arquiteturas, tecnologias, obras de arte e engenharias, biomedicinas, armas bélicas e moda. Criador e criatura se (con)fundem e

todos os esforços retornam transformando a própria espécie e sua capacidade em produzir novos conhecimentos – saberes, práticas.

Como busca incessante, tudo o que criamos e desenvolvemos

existe como um registro ou para registrar o nosso desejo de imortalidade

– signos do tempo e do corpo. As folhas secas que se vão com o vento e se esvaem, cedem lugar a outras folhas que brotam, já incorporadas do

oxigênio necessário a um novo tempo, cada vez mais preenchido pelo gás carbônico.

ENSAIO FOTOGRÁFICO | LIVRE QUE PENSAMOS. LOUVRE QUE SOMOS| CLAUDIO XAVIER


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109

A materialidade das coisas registra o esforço e o desejo ancestral

de domínio do criador sob a sua criatura, um inesperado ato de decepção

por sua incompletude em não revelar o mistério da existência. Não menos angustiante, a (i)materialidade das técnicas contemporâneas revela o esgotamento de possibilidades como se estivéssemos, de forma apocalíptica, diante do Gênesis.

Esses registros/marcas estão imbricados ao humano, presos

entre a materialidade visível e imaginada, e a (i)materialidade impensável

e efêmera de uma dimensão atemporal que nos convida a ver o (a)cúmulo do que somos. O que somos?

Sujeitos desejantes da (i)mortalidade, nos pensamos livres. Uma liberdade que se quer cada vez mais ampla, posto que nunca gozamos de sua plenitude literária e nunca nos percebemos sujeitos de nossas próprias criações (i)materiais.

Se nos pensamos livres, no fundo acumulamos marcas que nem

sabemos nominar. Mas que nos medeiam e nos impreguinam, a nós

106

mesmos. Somos resultados da nossa própria vassalagem mercantil, pois mais que sermos aceitos, desejamos ser aceitos dentro de um sistema de

regras cada vez mais opressoras e com uma única finalidade: a expropriação e o comércio. Não nos pensamos nem escolhemos, sequer

desejamos qualquer coisa sem as marcas fincadas em nossos espaços e corpos.

Ao fim, somos um museu perdido, sem consciência de um lugar.

Museu de uma virtualidade inalcançável, inconstante e dormente. Museu (in)orgânico que acumula barro e plástico, água e laser, oxigênio e bit,

renew e rugas, sonhos e ilusões, vida e morte.

Do colecionismo primitivo à dinâmica atemporal e aespacial,

chegamos ao cúmulo.

Nestas imagens que se seguem, procuro captar, à luz dos

espaços multirreferenciais de aprendizagem, as marcas que nos constitui nesse museu através dos seguintes vetores:

Religião – as manifestações que representam rituais e ou

aspectos religiosos, institucionais e ou da fé, sacralizados no corpo e no espaço. suas

Comércio – a pregnância das ações e da cultura mercantil em

diversas

contemporâneo.

versões

do

capitalismo

ao

informacionalismo

ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109

Tecnologias

(corpo

e

processos

interativos)

possíveis

representações para os impactos promovidos pela cultura tecnológica (tecnofóbica e tecnofetichista).

Relações afetivas (e interações sociais) – janelas que se abrem

para uma reflexão sobre as relações afetivas, suas reivindicações e ou representações silenciosas da solidão.

Não-lugar em ausências – registros/marcas de espaços/lugares

da vida contemporânea, que por uma suposta ausência de significado mais se qualificam como não-lugares, nenhures.

As imagens têm como enquadramento diferentes contextos e

sujeitos que ilustram, mais do que na perspectiva intercultural ou de entrelugares, a partir do humano de todos nós.

107

Rendas, contas e metais que ornam desde a escravatura.

Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, Cachoeira-Bahia.

ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109

Empilhando palets, o sal do novo tempo.

Depósito de sal, cultura do sal da cidade de Aveiro-Portugal.

108

Novos filtros para a não-visão da Monalisa? Ou a visão (in)imaginada?

Museu do Louvre, Paris-França

ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 105 - 109

Não sentir-se cabe ou acaba a fé. Ou quando não existo.

Mulçumanas em banho de sol, Tanger-Marrocos.

109

O que os olhos não veem. Não significam.

Fachada de um prédio residencial, Bracelona-Espanha. ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


literatura:

FOLIAS NA FAZENDA:UM RELATO MEMORIAL Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz


SUMÁRIO: CARTA DO EDITOR...................5 JOVEM COLABORADOR Educação popular na perspectiva educacional indígena............8 Ana Claudia Santos Silva

História, Metodologia, Memória.............16 João Paulo Nascimento de Lucena

DOSSIÊ As Entranhas das Humanidades: Reflexõesacerca das Ciências Sociais, Interdisciplinaridade e Tradição...........24 Danieli Siqueira Soares

Entre a antropologia do consumo e o comportamento do consumidor............36 Fabiana de Oliveira Lima

Atividades integradas do Núcleo de Educação Ambiental do IFRJ campus Volta Redonda-RJ...................53 Wagner Francisco Marinho da Silva Fátima Teresa Braga Branquinho

A sensibilidade da experiência estética na Educação Artística e na Educação Ambiental: Um olhar interdisciplinar..................76 Nathália Alvarenga Porto Costa


Ensinando e Aprendendo: um diálogo perene com a interdisciplinaridade....................86 Rejane Peres Costa

ENTREVISTA Verstörung: Aprendiz de Xamã. Diálogos com Laerson Azevedo...............96 Thiago de Oliveira Sales

ENSAIO FOTOGRÁFICO Livre que pensamos. Louvre que somos..........................105 Texto e Fotografias de Claudio Xavier

LITERATURA FOLIAS NA FAZENDA: UM RELATO MEMORIAL........................111 Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119

folias na fazenda: um relato memorial Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz

A casa não era tão antiga. Tinha seus trinta anos. Seu especial

interesse estava na extrema simpatia com a qual nos acolhia quando

solicitávamos sua presença: algumas temporadas no ano, fora da normalidade circular da cidade grande.

A estrada

111

O trajeto até ela consumava-se num percorrer épico. Saíamos do

apartamento muito cedo na manhã úmida, o dia anterior passado numa embriagante

ansiedade

pré-viagem.

Percorreríamos

enfadonhos

quilômetros de asfalto, com suas inclinadas perspectivas e seus fios em

movimento, antes de chegarmos às espetaculares 3 horas transitadas sobre a poeirenta estrada de barro. Este ponto era delimitado por uma

parada na última cidade ligada pelo asfalto, o último baluarte urbano. Após um breve lanche na casa de parentes, onde encontrávamos nossos

primos – não tão “urbanoídes” como nós -, partíamos restabelecidos ao encontro do incomensurável. Atravessávamos quatro vilas perdidas no

deserto de barro e pedra antes de chegarmos à última, distante duas léguas da propriedade do meu avô. O mais marcante nesta estrada,

singrando um território esquecido por Deus e pelos homens, era a paisagem brilhantemente nova entrevista no percorrer uniforme e

saltitante do veículo. Imagens irreconhecíveis feriam-me os olhos concentrados. Formas inéditas eram encontradas sob o verde, o cinza e o

amarelo predominante; criando, para mim, um glamour surpreendente de imagens, acostumado que estava ao tédio repetitivo da perfeita geometria urbana. Avenida de avelozes, com seu verde escuro tenebroso,

desfilavam a nossa passagem, seguida da observação preocupante: - se

pegar nos olhos, cega! Pequenos açudes, resplandecentes de uma água prateada, onde lavadeiras esfregavam as roupas no dorso das rochas, davam-nos gana de “flecheirarmos” em suas águas. Óbvio que nossos LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119

desejos eram reprimidos pelo pragmatismo adulto de se chegar ao destino na hora prevista. As

cidadezinhas

eram-nos

nomeadas

à

medida

que

as

cruzávamos: São João do Cariri, Serra Branca, Santa Luzia dos Grudes, -

dos Grudes?! Risos, a dissipar a seriedade da viagem. Enfim, quando as energias infantis já se tornavam sôfregas, o aviso reconfortante:

-

chegamos a Sumé. Sumé era o nome da cidadezinha onde realizávamos

uma parada antes de se pegar uma estrada menor, da qual, percorridos 12 quilômetros, chegaríamos à porteira principal da fazenda, local

convenientemente denominado de “o Doze”. Pequeno pouso para abastecimento no posto de bolão, como para se fazer algumas compras na mercearia soturna e pouco movimentada de Pedro Odon, velho amigo

da família. – Ah! Que notável diferença dos supermercados da capital, aos quais acompanhava minha mãe nas feiras de sábado.

Refeitas as energias, na real constatação do início de nossas

aventuras selvagens, retornamos a estrada, confundida agora com a rua

principal da cidade; pois a antiga e originária, desaguando na igreja e na

112

praça do coreto, com suas pequenas casas e cadeiras na calçada, havia perdido sua importância com a construção da estrada nova. Ao sair da cidade, tomávamos a esquerda uma estrada secundária que interliga os

municípios de Sumé e do Congo. Adentrava-se, nesta, o território do bravio. Se antes a relação com a natureza dava-se principalmente

intermediada pelo olhar, agora ela fazia-se mais física, num contato

quase direto, tornando o último trecho do périplo um verdadeiro desafio para nossos pequenos corpos, os quais encaravam o mundo como um gigante, visto sempre de baixo para cima. A vegetação adensava-se,

invadindo o arremedo de estrada, que, devido às chuvas, era carcomida pelos buracos e catabis.

Ah! Quase esqueci, nossa variant branca 73

havia sido, apesar de seu temperamento arrojado, substituída por uma valorosa perua rural, único veículo que, por seu vigor físico, seria capaz

de superar os fantásticos obstáculos impostos pelos deuses daquela região. E o maior deles, sem dúvida, eram os riachões, pequenos

afluentes do lendário rio Paraíba, que, se completamente vazios durante a estação seca, só reconhecidos pelo seu areal branco e fino, assumiam proporções assustadoras na medida em que desabavam as chuvas; deste

modo, o trecho seco transformava-se num riacho caudaloso, de força e

velocidade invencíveis. Eram quatro os riachos a serem superados; e o maior deles era conhecido como riacho dos Espinhões. Numa ocasião,

quando tentávamos sobrepujá-lo sob uma tempestade noturna, a perua LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119

rural rendeu-se às suas águas perversas e tivemos que sair às pressas

pela traseira do veículo, sendo carregados até a margem. Nesta noite, nos albergamos numa pequena propriedade próxima, a fazenda firmeza, onde fomos recebidos por um velho senhor de modos afetuosos e sorriso

simpático, e, logo depois de secos e de ter comido pamonhas – era junho -, dormimos à luz dos candeeiros. No dia seguinte, passada a tempestade,

os

espinhões

se

apresentavam

em

seu

esplendor

tormentoso: águas barrentas, de um marrom-terra, cruzavam a estreita

estrada com feroz velocidade. Neste dia só pudemos atravessá-lo num Jeep Willys – tração quatro rodas, que fez várias viagens levando as pessoas de um lado a outro de seu leito.

Chegando-se, enfim, a entrada da fazenda, o carro era retido pela

porteira principal. Descíamos serelepes para compor nossa função de abridores de porteiras. Estas, normalmente, possuíam um sistema de trancamento feito de madeira que após puxado com esforço destravava-

se, bastando-se assim empurrá-la para que pudéssemos, ao passo que

se abria, pegarmos carona num de seus degraus; então o carro

113

lentamente

adentrava

a

fazenda,

e

a

porteira

era

encostada

e

devidamente trancada. Era realmente singular a alegria que este simples

processo nos provocava. Até chegarmos a casa-sede da fazenda

enfrentávamos mais quatro porteiras, que existiam para dividir áreas de pasto, e em todas elas conservávamos a mesma vitalidade no fazer manual de um ato inédito às nossas mesquinhas atividades rotineiras.

Penetramos assim no nosso território tão ansiado. Logo ao lado da

cerca de arame farpado demarcadora das terras da fazenda, encontrava-

se a primeira “casa de morador”. Não recordo seu nome, o do pai da

família; crianças lambuzadas de barro vêm nos fazer festa: - gente estranha da cidade que chega. Algumas têm a barriga inchada “mó dos verme”. A fazenda é grande. Percorrem-se uns três quilômetros por um caminho esburacado até se chegar na casa-sede. A propriedade é grande,

uns mil hectares. Como é inverno, a Caatinga está verde, de um verde

florido. Aqui e ali vemos a vegetação rasteira salpicada de florzinhas silvestres. Contraditoriamente ao nome, a Caatinga exala um perfume agradável, sutil, o ar invadindo nossos pulmões com seu odor benfazejo.

Sente-se logo o cheiro de estrume de boi, por incrível que pareça um cheiro bom. O Caatingueiro fechado marca todo caminho; separado por pastos de capim-elefante. A Jurema, que dá nome à fazenda, com seus

espinhos cortantes de fundos arranhões, é predominante; assim como o

inofensivo mameleiro, de folhas grossas – de grande serventia quando se LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119

vai obrar no mato. Aproximamos-nos da casa de Zé Galo, uma espécie de sede da parte norte da fazenda. No passado, ele fora acusado, talvez com razão, de ter matado dois cabras por causa de uma rixa de terras. É

estranho! Pessoalmente Zé Galo era risonho e simpático conosco, e dado a brincadeiras.

São fabulosas as nominações atribuídas aos lugares, assim como

as alcunhas pelas quais as pessoas desta região são conhecidas: Pitôco,

Lavanca, João Vermelho – porque era inteiramente vermelho –, Mané Borracha, Mané Azul – o Pescador –, Ná, Pena; nomes inusitados, de uma criatividade peculiar, imprimiam-nos um encantamento sonoro que nos marcava mais que as próprias pessoas ou lugares aos quais se referiam. Alguns desses “filhos da terra” carregavam histórias que exacerbavam

ainda mais suas impressionantes figuras. João Vermelho, por exemplo, era tomado pela diabete, de longe se podia sentir o odor de sua urina, atraindo pelo rastro deixado na terra uma legião de

formigas saúvas.

Tinha se casado em tempos imemoriais com Minervina, uma negra forte a

qual chamávamos zombeteiramente de Minerva. Já Pitôco era um ex-cabo

114

da polícia; alcoólatra inveterado, fôra trazido pelo meu avô para

permanecer isolado na fazenda, antes que a cachaça, que já tinha levado sua alma, levasse de vez sua vida. Era proibido de ir a feira da cidade nas segundas-feiras. Quando, por fuga, isto ocorria, era encontrado jogado

na rua, desgraçado de bêbado. Todavia, na fazenda aparentava uma

passividade tranqüila, sendo visto sempre só, a realizar pequenas tarefas

domésticas, plantando fruteiras, pescando; tentando esquecer-se. Havia

também os vaqueiros, homens guerreiros, com seus gibões e calças de

couro. Embrenhavam-se cedo no caatingueiro fechado, atrás de reses

perdidas, retornando, muitas vezes, só no dia seguinte. Quem conhece a

Caatinga sabe da dificuldade de se abrir caminho por entre os espinhos dilacerantes das juremas e dos mandacarus. Imagine-se, por vez, montar

a galope solto, sem caminho ou percurso certo, atrás de bois desgovernados. Via-se nos rostos destes bravos sertanejos as cicatrizes fundas deixadas por seu ofício.

Passada a casa de Zé Galo, após uma longa subida à direita,

avista-se

uma

linda

paisagem,

uma

longa

superfície

platinada

expressando reflexos cristalinos de luminosidade do fim de tarde: são as águas do grande açude da Jurema. Da beira da estradinha já podemos ver os marrecos a nadar em suas margens. Passamos pelo balde

e pelo

sangradouro de cimento. Quando o tempo é de muita chuva, o açude sangra por sobre um paredão de cimento – formando um véu de água, tal LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.4 – N.1 | NOVEMBRO - 2013 | P. 111 - 119

qual uma cachoeira. Postando-se em baixo, ao pé do sangradouro,

podíamos tomar banho, recebendo-se uma pesada carga d’água. Depois,

acompanhávamos o correr das águas por uma descida de pedras até dois poços situados na vazante do açude; o primeiro e maior dos dois era

circulado por um chão liso feito de rocha natural e sombreado por pés de algarobas. Era uma grande festa, pois além de se mergulhar no poço, podia-se, sentado na sombra, pescar piabas vindas do açude grande. Aqueles que dominavam a difícil técnica arvoravam-se em jogar a tarrafa, chegando mesmo a pegar traíras grandes. Quando o sangramento parava, escalávamos as pedras de volta ao paredão donde, mergulhando

na água doce, dávamos intensas nadadas até o meio do açude, para voltar rapidamente com medo dos peixes grandes ou de cobras d’água.

Passado o açude entramos na longa reta final, que, findando na

última porteira, dava acesso à querida casa da fazenda.

A Casa

115

A casa era térrea e retangular. Devia medir uns trinta metros de

frente por dez de fundo. Era toda avarandada por um terraço largo onde se penduravam inúmeras redes. E este era cercado por um tipo de flor

violeta que lhe imprimia um típico perfume agreste. Largadas as malas e cumprimentada a velha Sá Rosa, nascida ainda nos tempos da escravidão,

mãe de 18 filhos e com toda uma descendência espalhada pela região, partíamos logo para as corridas e brincadeiras em volta do terraço. A casa fora construída de modo que seu lado maior e frontal como que abraçasse quem chegava à porteira de entrada, a qual distava uns 50

metros da casa. Seu lado menor, à direita limitava-se com uma outra

construção na qual estava instalada a cozinha, com seu forno de carvão, e uma espécie de sala de espera

composta de bancos de madeira sem

pregos. Contígua a esta se achava o que chamaríamos de sala de jantar, uma única e enorme mesa com espaço para 20 pessoas, pois familiares e

trabalhadores comiam juntos sentados em dois compridos bancos, onde, na cabeceira, estabelecia-se o patriarca, o avô. Duas mulheres de

moradores – empregadas na casa – ficavam durante toda a refeição a

espantar o enxame de moscas que tentava pousar na comida, além de deixarem uma bacia de espuma de sabão num canto como armadilha

para as mesmas. O interior da casa era composto por três quartos de

casais, para os pais; duas salas espaçosas, nas quais todos se reuniam à LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


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noite, depois da janta, para se assistir televisão: o problema é que a imagem em preto e branco era péssima e só aparecia a seu bel prazer, em intervalos nada regulares; era melhor desistir, acostumados que

estávamos com a boa imagem da TV da cidade; entretanto, os moradores,

em pé, encostados a uma janela grande que dava para o terraço, insistiam, extasiados, em ver os flashes da programação noturna

concedidos pelo aparelho antigo. Um quarto grande e largo, composto por quatro beliches era onde dormiam as “crianças”. Existiam três janelas que se abriam para um terreno cercado por algarobeiras e mangueiras

onde se improvisava um campo de futebol. Mais ali, um pouco para a esquerda, avistava-se o cata-vento, para o qual nos dirigíamos nos fins de tarde a fim de tomar o terrível banho gelado, pois o único banheiro da

casa, por conta da arraigada falta d’água, era de uso exclusivo dos adultos. No entanto, antes do banho nos refestelávamos colhendo e

comendo as inúmeras frutas existentes no sítio em volta do cata-vento:

goiabas, laranjas-cravo, mangas, pinhas, corações-da-índia, azeitonas pretas, e a mais típica das frutas da região: o umbu. O umbuzeiro é uma

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árvore alta que dá um sombreado fechado, só se alcançando o fruto com

o auxílio de uma vara, com a qual, cutucando-o, derruba-se-o no chão.

É uma fruta verde, do tamanho de uma sirigüela, com um gosto doce-

azedo, mas delicioso em sua peculiaridade; se verde, solta um ácido que

deixa os dentes, como se diz, “travados”; com uma bacia de umbus é possível se fazer a tradicional umbuzada: fervida no leite.

O teto da casa não tinha forro, assim não havia o isolamento

sonoro encontrado nos prédios modernos. Os ruídos e as conversas podiam ser ouvidos em qualquer parte dela. As falas de alcova, portanto,

tinham que ser sussurradas ao pé do ouvido. Se quisesse ser escutado

por todos bastava-se elevar a voz. O boa noite era dado coletivamente.

Dormíamos olhando para o interior do telhado devassado, vendo as traves de madeira, e acordávamos com as frestas de luz que passavam

por entre as telhas quebradas. Estas eram nosso maior terror. Ali, morcegos escondiam-se de dia, para, à noite, voar livremente pela casa lembrávamos das amedrontadoras histórias dos moradores acerca dos morcegos-vampiros, ou das cobras que caíam do telhado em cima das pobres criancinhas. Os móveis eram todos antigos, da época da construção da casa. Nas paredes, retratos de antepassados desejosos de vida, porém presos ao limite da moldura oval: rostos estranhos, desconhecidos,

atentavam-me

a

curiosidade

histórias, que, afinal, era a minha própria.

LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ

para

conhecer

suas


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Nossos dias apresentavam uma rotina quase ritualística. Éramos

acordados as 05:00h da matina, por uma sirene nos intimando a ir ao

curral tomar leite de vaca tirado na hora; pegávamos um copo de

alumínio, colocávamos três dedos de açúcar e íamos correndo para o curral, a uns duzentos metros da casa. Lá, nos compenetrávamos vendo o

vaqueiro, sentado num tamborete – o bezerrinho amarrado e babando aos pés da mãe -, fazer jorrar com movimentos precisos da mão o leite

original, o qual podia variar um pouco de gosto de acordo com a vaca

escolhida. Ouvíamos concentrados os comentários sobre as reses: o touro

holandês que quebrava uma cerca, e entrava a brigar com o dócil touro zebu, apelidado de ”violino”; a febre aftosa que havia atacado duas vacas; e observávamos largamente os movimentos instintivos do rebanho no rebuliço do curral. Um fato sempre me provocava indignação: não se sabe

o motivo, uma das vacas recusava a maternidade do bezerrinho, negando-lhe o leite. Este, coitado, atônito, insistia em suas tetas, mas era

misteriosamente rejeitado. Uma anomalia da natureza? Vai saber. De

volta a casa, por volta das 07:00h, esperávamos o café reclinando-nos

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nas cadeiras de balanço, a contemplar o sereno da manhã, sentindo os raios mornos do sol reconfortar-nos do derradeiro frio noturno – pois,

como no deserto, se de dia o calor era forte, à noite a temperatura despencava e tínhamos de dormir com cobertores. Mesmo de estômagos já

cheios

de

leite,

comíamos

o

indefectível

cuscuz

com

leite

acompanhado de algumas bolachas recheadas com manteiga de garrafa; raramente comia-se pão. Com o sol a subir, era hora de uma reunião de

cúpula a fim de se decidir a programação matinal. A decisão, peremptória, sempre ficava a cargo dos adultos. A escolha felizmente corroborava nossas expectativas: - vamos tomar banho de açude!

gritávamos em feliz algazarra. Restava saber em qual deles, pois eram

quatro os açudes, e cada um reservava um projeto aventureiro específico, já que possuíam uma singularidade extraordinária, a começar pelos diferentes trajetos geográficos que percorríamos para alcançá-los. Assim,

vejamos: tínhamos o mais tradicional, o já referido açude velho da

jurema; era também o mais próximo, após uma caminhada de meia hora

chegávamos ao seu largo e acolhedor paredão. Só no trecho final encontrávamos

dificuldades,

tinha-se

que

se

superar

um

riacho

equilibrando-se num caminho de pedras que servia como ponte. O segundo açude não se definia como tal, era conhecido simplesmente como a barragem. Sendo o mais recente, possuía um ar moderno, com

requintes tecnológicos em sua engenharia. Também tinha um paredão, mas de enorme risco, visto que um de seus lados limitava um fatal LITERATURA | CONTO | CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ DE QUEIROZ


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precipício de vinte metros. Seu maior atrativo, no entanto, estava neste

fundo, pois foram construídas duas grandes torneiras que, abertas,

provocavam uma pesada queda d’água. Existia uma escada de marinheiro por onde descíamos e, segurando-nos para não sermos levados pela

força da água, recebíamos aquela pesada carga sobre nossos corpos. O

terceiro era o que eu mais gostava, fora dotado de um nome feminino

composto por um diminutivo, o açude da cachoeirinha, o qual representava perfeitamente sua índole. Perpassava nele uma suave

mansidão na passividade de suas águas paradas. Seu nome provinha do fato de que quando sangrava, seguia por um declive de rochas formando uma pequena cachoeira. Esta desaguava num vale premiado por

coqueiros, melancias e pés de cana-de-açúcar. Sugávamos o mel da cana e a água encarnada das melancias, enquanto um ágil morador subia nos coqueiros

arremessando-nos

de

cima

os

cocos

mais

verdes.

Concluíamos a nossa festa de líquidos sabores, entornando na boca a água dos cocos a nos sujar com seu mel nossa cara e nossos corpos. Sem

problema, logo depois corríamos, atirando-nos impetuosos na água

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gelada do açude. Por ser o mais longínquo, a ida a cachoeirinha tinha de ser planejada com antecedência. Aguardávamos ansiosos a confirmação do passeio. Uma vez lá, a fabulosa paisagem comungava com nossos

espíritos, nutrindo-os com o jorro de sua sensorialidade brilhante e benéfica. O último, e o maior deles, era o famigerado açude do capa.

Ainda hoje não encontro explicação para o nome. Só sei que ele nos

infundia um certo temor, e uma estranheza. Muito raramente íamos nele, pois de difícil acesso e não muito dado a receptividades infantis. Em sua

grandeza, era um território para os maiores. Mané Azul, o pescador, todos os dias antes do amanhecer o navegava em seu pequeno bote,

resgatando sua rede coalhada de curimatãs, pacus e traíras. Tinha tamanha capacidade de guardar a água que só chegou a sangrar uma vez, na histórica chuva de 67, quando seu paredão estourou causando um desastre nas diversas plantações que irrigava.

Após as aventuras da manhã, ao meio-dia em ponto, estávamos

todos preparados para o almoço. Era uma lauta refeição: iniciava-se com

um prato servido unicamente de feijão, cobria-se este com farinha e

amassava-se a mistura até se formar uma pasta grossa. O feijão era servido como uma introdução, uma entrada, não havia salada, as carnes predominavam: a tradicional carne de sol com macaxeira, carne de bode,

de carneiro, guisado de galinha, ou então peixes de água doce; o arroz geralmente substituído por macarrão, e pouco tempero. Não havia

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geladeira, os animais eram mortos pela manhã e destripados diante de

todos, no terreiro grande em frente da cozinha. Durante o almoço,

comentários sobre a fazenda, discussões políticas e alguns “causos”

engraçados. Por fim, o cafezinho, um leve descanso na varanda para se tomar uma fresca, e a retirada geral para os quartos: era o momento da sesta. Até as quatro horas quando o sol relaxava, não se saía de casa;

aperreados com as moscas, partíamos para o lanche; novas brincadeiras,

ou um banho de açude com o sol a se por sobre o sertão majestoso. No

jantar, logo após o tempo escurecer, um prato de coalhada com açúcar, o xerém amassado, e um pouco de arroz com paçoca. Às nove, depois de

alguma conversa e um jogo de sueca no alpendre, os olhos quase a fechar espontaneamente, nos entregávamos ao sono dos Deuses.

Bem a história é demasiada longa, e como não há um desfecho

espetacular, vamos ficando por aqui, não sem antes esquecermos da

resposta de Pitôco quando perguntado onde ficava aquela região: - É lá,

no meio do mundo!

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UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE


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