ITACOATIARA VOL.2 N.1

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VOL.2 - N.1 | ABRIL - 2012 ISSN 2237- 9282

ITACOATIARA Uma Revista Online de Cultura ARTIGOS | RESENHAS

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LITERATURA | ENTREVISTA | ENSAIO FOTOGRÁFICO

DOSSIÊ: Viagens e viajantes

UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE



EXPEDIENTE Editora-chefe Maria Aparecida Lopes Nogueira | PPGA; NASEB/UFPE

Comissão Editorial Maria das Graças Vanderlei da Costa | IFPE; NASEB/UFPE Mariana Fernandes da Cunha Loureiro Amorim | NASEB/UFPE Normando Jorge de Albuquerque Melo | NASEB/UFPE

Conselho Editorial Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto Carlos Newton Junior | UFPE Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência de Literatura Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de Nanterre/Paris/França Jesana Batista Pereira | Universidade Tiradentes -SE Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE Luis Assunção | Dept. de Antropologia/UFRN Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP Roberto Mauro Cortez Motta | PPGA/UFPE

Designer gráfico Daniele Pereira da Silva Danielle N. Vilela Alves



sumário CARTA DO EDITOR..................5 ARTIGOS: Quem tem medo de Blade Runner?.............9 Jesana Batista Pereira

A contribuição do campo dos processos de educação ambiental às ciências: a possibilidade de se refundar uma epistemologia das relações e dos nexos.....................................28 Maristela Barenco Corrêa de Mello

“O caboco velho, antigo, sabe brincar. vai respeitar!”: a diversidade dos rituais espirituais na brincadeira do maracatu baque solto/rural...............................62 Sévia Sumaia Duarte da Silva Vieira

DOSSIÊ: Viagens e Viajantes Viajantes e representações sobre a viagem............................80 Silvio Lima Figueiredo


O sistema alternativo de viagens e turismos das periferias do Recife..................93 Rosana Eduardo da Silva Leal

Ética e estética de uma prática moderna: é possível interrogar o turismo?.........106 Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

A cibercultura e uma nova morfologia das viagens..............................116 Ana Flávia Andrade de Figueiredo

“Todas essas coisas são encantos”: viagens, patrimônio e folclore em Mário de Andrade...............................128 Rafael José dos Santos

RESENHAS: Tradição e performance. Vida e arte no João Redondo de Dona Dadi.............149 Por Luiz Assunção

LITERATURA: Poemas de Renata Nascimento Passo......................................155


Âncora..................................... 156 Poema x Pequenez...........................157

ENTREVISTA: Paulo Marcolino, o Pixote Mc da Várzea.........................159 Por Benjamim Borges

ENSAIO FOTOGRÁFICO: Visões da Nossa Cultura.......................168 Sandra Simone Moraes de Araújo



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carta do editor Conhecer lugares próximos ou distantes: deliciar-se com a

gastronomia própria de cada povo, visualizar a riqueza dos folguedos nas comunidades, descobrir as identidades construídas nos variados cantos

do planeta, em contatos passageiros ou duradouros. Paisagens, pessoas,

idiomas, climas, festas, religiões, alimentos, fauna, flora, cores, cheiros, música, tudo isso forma um conjunto de peculiaridades inerentes às

diversas culturas, que constituem cada recanto da Terra: conhecê-los faz

parte do desejo humano.

Daí a importância das Viagens e Viajantes,

temática do Dossiê desta segunda edição da Revista Itacoatiara. Nele, teremos oportunidade de sermos andarilhos em estradas construídas por estudiosos do tema.

Encontraremos então a filósofa e professora Maria Cláudia Magnani

desenvolvendo um artigo cujo título e conteúdo revelam uma instigante

5

questão: “Ética e Estética de uma prática moderna: é possível interrogar o

Turismo?” Já o antropólogo e professor Rafael José dos Santos nos aproxima de um maior conhecimento sobre o trabalho de Mário de Andrade, em “‘Todas essas coisas são encantos’: viagens, patrimônio e

folclore em Mário de Andrade”. Em “Viajantes e Representações sobre Viagem”, o professor Silvio Lima Figueiredo reflete sobre a figura do viajante, sujeito em processo de buscas e descobertas. A antropóloga e

professora Rosana Eduardo S. Leal aborda um intrigante tema: “O Sistema

Alternativo

de

Viagens e Turismo das Periferias do Recife”. Questionamentos sobre “A cibercultura e uma nova morfologia das viagens” são assinalados no artigo da professora Ana Flávia Andrade de Figueiredo, antropóloga e bacharel em turismo. Não nos deteremos aqui

em tecer um resumo mais detalhado sobre esses artigos, uma vez que as coordenadoras do Dossiê, Professoras Ana Flávia Figueiredo e Rosana Eduardo

Leal,

assim

o

fizeram

na

apresentação

daquela

seção.

Reiteramos, porém, que esse conjunto representa uma possibilidade de

compreendermos, de uma forma mais ampla, o fenômeno das viagens nesse processo de encontro com o eu e com o outro, tão marcante na história humana.

Assim, como viajantes, ávidos por fazermos novas descobertas,

podemos percorrer as demais seções da Itacoatiara.

O ensaio escrito pela psicóloga e educadora Maristela Barenco

Corrêa de Mello, intitulado “A contribuição do Campo dos Processos de

Educação Ambiental às Ciências: a possibilidade de se refundar uma epistemologia das relações e dos nexos”, nos faz refletir sobre a


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necessidade de ser construído “um novo parâmetro paradigmático e epistemológico, complexo, com potencialidade de ‘interfecundar’ as

ciências separadas e integrá-las”. Nesse sentido, a autora edifica,

detalhadamente, uma base para a criação de uma “epistemologia das

relações e dos nexos”, traçando caminhos que levam à invenção de uma

multiplicidade de possibilidades de pensar, sentir, viver criar, produzir e de se relacionar no mundo e com o mundo, superando, desta forma, a

reconhecida crise socioambiental atual. Inspirando-se sobretudo, na “lógica rizomática” de Gilles Deleuze e Félix Guatarri, na “ecologia dos

saberes”, nas “epistemologias do Sul” de Boaventura de Sousa Santos, no conceito

de complexidade, de Edgar Morin,

propõe um outro

direcionamento epistemológico. Com um grande embasamento teórico e uma sensibilidade ímpar, Maristela extrapola o campo da educação

ambiental e formata um texto didático e motivador, traçando um diálogo

constante com diversos autores que perseguem novos referenciais reflexivos,

capazes

de

romper

epistemológico hegemônico.

com

as

heranças

do

modelo

O Ensaio “O caboco velho, antigo, sabe brincar. Vai respeitar!”: A

6

diversidade dos rituais espirituais na brincadeira do Maracatu Baque solto/Rural, resultado do trabalho etnográfico da antropóloga Sévia

Sumaia Vieira, versa sobre a riqueza das práticas rituais espirituais

observadas no contexto da brincadeira de maracatus presentes na Zona da Mata de Pernambuco e em morros da capital, Recife, especificamente no Maracatu Rural Cambinda Brasileira e no Maracatu de Baque Solto Leão

Brasileiro. Dentre o conjunto de práticas a autora destaca o uso de ervas

para os banhos de descarrego e de cheiro, as orações, o cravo na boca usado pelos caboclos de lança, objetos preparados para proteção, resguardo sexual, fumaçadas de cachimbo, defumadores, bem como as

“aguações de sal grosso”. Assim é construído o “calço”, tanto individual

quanto coletivo, para que se desenvolva, à contento, as sambadas ou

apresentações no carnaval. O texto é um convite para desvelarmos alguns fazeres e saberes de proteção dos folgazões: movimento de uma cultura regada pelos segredos da tradição.

Quem Tem Medo de Blade Runner? Who’s Afraid of Blade Runner?

Neste artigo a Professora Jesana Batista Pereira formata uma detalhada

interpretação da ficção científica norte-americana intitulada Blade

Runner. Trata-se de um minucioso trabalho de análise no qual o cinema e

a antropologia traçam caminhos dialógicos e complementares. Nesse sentido, realidade e ficção ajudam a pensar sobre os dramas vividos, os mitos

fundantes

e

reatualizados,

os

caminhos

da

ciência,

e,

fundamentalmente, sobre o espírito humano. Mais uma vez a viagem está presente e, ao lado do percurso serve de metáfora, possibilitando a

criação de caminhos de reflexão.


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A resenha desenvolvida pelo antropólogo Prof. Luiz Assunção

indica os intinerários seguidos por Maria das Graças Pereira, em seu livro

Dadi e o teatro de bonecos. Memória, brinquedos e brincadeira. Fruto da

dissertação de mestrado em Ciências Sociais – UFRN, a obra encanta por

combinar o rigor acadêmico a um processo de estreito relacionamento

com a personagem principal. Sendo no Brasil uma tradição historicamente masculina, o trabalho de mais de duas décadas de existência da

calungueira, Dona Dadi, representa um diferencial no universo do teatro

de bonecos. O percurso etnográfico seguido pela autora traz a vida

atrelada ao trabalho dessa artista de bonecos e narrativas: uma história de vida, emoção e prazer.

Na seção Produção Artística–Literária temos os poemas de Renata

Nascimento, ajudando-nos a desvendar alguns labirintos da alma humana. O olhar da antropóloga e fotógrafa Sandra Simone Moraes de

Araújo põe em foco Visões de Pernambuco, fotografias que representam

uma

pequena

amostra

das

belezas

da

cultura

pernambucana,

representada na diversidade dos cordéis, na magia dos mascarados e no brilho dos caboclos de lança.

7

É relevante a contribuição de Benjamim Borges, estudante de

Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e participante do

Projeto de Extensão Universitária Pontes de Cultura, desenvolvido pelo

Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB/UFPE) com uma

Entrevista com Paulo Marcolino, o Pixote Mc da Várzea. Um dos representantes fundadores do movimento Hip Hop na Várzea. Este artista, grafiteiro, compositor de rap desenvolve importantes ações comunitárias

no bairro. As ruas lhe ensinaram muito e hoje, como um viajante ávido

por novas conquistas, o Pixote MC expressa seu sentimento em relação

ao mundo. “Eu comecei a enxergar o mundo de maneira diferente, eu pensava que o mundo girava ao meu redor, quando na verdade sou eu que giro ao redor do mundo[...].”

Gostaríamos de destacar que, ampliando as possibilidades de um

diálogo com autores que estão iniciando sua trajetória na arte da

produção textual criaremos a partir do próximo número da Itacoatiara, uma seção especial intitulada Jovens Colaboradores. Essa iniciativa

atingirá

diretamente

os

estudantes

encaminhar contribuições. Aguardem!

de

graduação

que

poderão

E assim vamos seguindo nessa viagem real e imaginária, desejando

que essa trajetória atinja a cada um dos leitores como instrumento de conhecimento reflexão e prazer.

Recife, 09 de março de 2012.

Maria das Graças Vanderlei da Costa

Editora


ARTIGOS:

Quem Tem Medo de Blade Runner? Jesana Batista Pereira

A contribuição do Campo dos Processos de Educação Ambiental às Ciências: a possibilidade de se refundar uma epistemologia das relações e dos nexos Maristela Barenco Corrêa de Mello

“O caboco velho, antigo, sabe brincar. Vai respeitar!”: a diversidade dos rituais espirituais na brincadeira do maracatu baque solto/rural Sévia Sumaia Duarte da Silva Vieira


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Quem Tem Medo de Blade Runner?

Jesana Batista Pereira

Graduada em Antropologia pela UnB. Mestre em Sociologia pela UFC. Doutora em Antropologia pela UFPE, 2007.

Los Ângeles do século XXI, mais precisamente em novembro de

9

2019, situa-se no espaço imaginário do filme. Uma cidade cibernética, metálica, mas que carrega ainda os escombros do velho, ou seja, um ambiente

confuso,

arquitetônicos,

de

onde

uma

não

estética,

predominância, mas

sim

de

em

uma

termos nítida

contemporaneidade do não coetâneo. Uma paisagem cultural traçada pela

alta tecnologia que forja o espaço conjuntural dos acontecimentos. Um espaço de constante chuva ácida, com profusão de pessoas de várias

alteridades – Japoneses; Chineses; Árabes; Egípcios; Turcos; Espanhóis;

Americanos – formando uma verdadeira Babel e singrado por carrosnaves da polícia, que rondam por entre enormes edifícios em um

policiamento ostensivo. Um comércio intenso, perene, mostrado na

alegoria de inúmeras lojas, restaurantes, casas de espetáculos e feiras populares nas ruas. Vende-se e compra-se de tudo. As pessoas, sós,

caminham a passos largos, de passagem, aparentemente sem rumo, e são bombardeadas o tempo todo pelo inesperado, distanciado apenas de

seus próprios passos. Anúncios em néon imensos, sincronizados em imagem-movimento-som,

o

“tecnoimaginário”,

imagens

calculadas,

sintéticas, verdadeiros espetáculos que transfiguram os consumidores em clientes do desejo de compra (Balandier, 1999). Enfim, uma paisagem

altamente urbana, técnica, com uma população que parece estar sempre agitada.

ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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Ao lado desses seres humanos, Los Ângeles, tomada como

exemplo de outras cidades do século XXI, veio a ser habitada por

andróides. Seres idênticos aos humanos, indistinguíveis visualmente destes, robôs orgânicos criados geneticamente pela Corporação Tyrell,

conhecidos como replicantes (replicants), e que têm na fase “Nexus” a encarnação do progresso da tecnologia robótica. As clonagens Nexus-6 –

que correspondem a uma geração da fase Nexus – eram mais fortes e ágeis que os seres humanos e igualava-se em inteligência aos seus

criadores. Banido seu uso na Terra, eram utilizados para o trabalho servil e de prazer em colônias extraterrestres. No entanto, como já dito

anteriormente, eram idênticos aos humanos, mas com problemas de instabilidade emocional e pouca capacidade de empatia. Em quatro anos

poderiam desenvolver suas próprias reações emocionais – ódio; amor; medo; raiva; inveja, e sujeitos a um desenvolvimento agressivo. Então, os engenheiros desenvolveram um dispositivo contra falhas: os quatro anos de vida.

Nesta condição, um grupo Nexus-6, após um motim em uma das

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colônias, mata vinte e quatro pessoas e fogem para a Terra com uma

nave. Esta foi encontrada na costa por policiais, mas sem a tripulação.

Assim, os replicantes, na Terra, foram declarados ilegais e ameaçados de

pena de morte. Agentes da polícia especializada – Blade Runners ou Caçadores de Andróides – tinham ordens de matá-los. Mas isto não era considerado uma execução, era uma remoção. Um ex-blade runner (Dick Deckard), que já tinha se aposentado, foi recrutado novamente pelo seu

chefe para dar conta da missão de exterminar os replicantes, forçado a tal sob pena de ser tido como “gentinha”, ou seja, da perspectiva de uma hierarquia policial, preferiu ser o matador a o morto. E a remoção, a título

de evitar pânico na cidade, teria que ser feita sem que ninguém soubesse

que as réplicas estavam em terra. O drama em questão tem por cerne os andróides (caçados) e o blade runner (caçador). Aqueles tinham em sua “peregrinação”

o

objetivo

de

encontrar

seus

criadores.

Queriam

respostas, queriam saber o que poderia ser feito para que vivessem mais, ou seja, retornaram em uma viagem na busca de sua origem, de sua

identidade e de uma possível solução para aumentar o seu período de vida e escapar da morte que já se aproximava. Por que este percurso? Se andróides, mesmo com implante de memória, seus atos seriam regidos de puro automatismo?

Nesta aventura, passo a passo, deparam-se com seus fragmentos,

ou seja, os operários especializados em cada faceta de seus próprios

corpos, como por exemplo, um engenheiro de olhos, até chegarem ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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àquele que os idealizou e os engendrou – um gênio – o engenheiro

genético dono da Corporação Tyrell. Era ele quem dominava a totalidade dos conhecimentos da tecnologia robótica e da biomedicina, sendo assim o único que poderia dar-lhes as respostas desejadas. Acontece que o tipo

de respostas que buscavam não era da alçada do próprio criador, que teria apenas dito em um diálogo com Roy, um dos quatro replicantes do grupo de revoltosos: “a morte não faz parte de minha jurisdição”. Neste

momento é assassinado por Roy que, depois de beijá-lo, fura-lhe os

olhos. Há também o drama vivido por um andróide da geração Nexus-6, mas que não fazia parte do grupo de revoltosos. Trata-se de Rachael, uma jovem assistente de Tyrell que ignora o fato de ser uma replicante. Todas as suas memórias são de uma sobrinha de Tyrell, e apoiada em

“suas” memórias tem dificuldades em acreditar que é uma replicante. Sofregamente é levada a admitir este fato depois de ser submetida a um

teste “Voight-Kampff” aplicado por Deckard em uma visita que este faz a

Tyrell. O então blade runner Deckard, comovido com a situação de Rachael e conseguindo perceber sua fragilidade e sensibilidade, se sente

11

atraído e se envolve com ela, mesmo a despeito de saber que um dos

raciocínios da Corporação Tyrell é o de que, ao lhes dar um passado pela memória implantada, poderia criar uma base para as suas reações emocionais e assim controlá-los melhor. A Trama

O cinema à luz da antropologia pode inaugurar diferentes

perspectivas de análise. A perspectiva que tomo aqui é a de tentar

considerar o “antropos à luz do cinema” (Morin, 1997, p. 15). Mesmo

porque, na esteira de Morin, “o espírito humano esclarece o cinema que esclarece o espírito humano”. Nesta correlação entre antropologia e cinema merece ressalva a característica antropológica da imagem fílmica, onde atores, personagens, roteiros, constituem uma recriação da realidade, de seus personagens sociais com dramas e mitos reatualizados

através do acontecimento do cinema. Do ponto de vista histórico é significativo

lembrar

que

ambos,

o

cinema

e

a

antropologia

desenvolveram-se simultaneamente no final do século XIX e sempre tiveram em comum um mesmo movimento: a descoberta da alteridade. O cinema, na época em que a antropologia passava à prática do trabalho de campo, se incorporava às expedições científicas, coloniais e às viagens de

passeio. Enquanto arte e indústria, fenômeno social e fenômeno estético,

o cinema remete ao mesmo tempo para a “modernidade de nosso século e para o arcaísmo dos nossos espíritos” (Morin, 1997, p. 16). Neste ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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trabalho que é uma pesquisa sobre imagens e não com imagens, o

anthropos se revela no cinema na medida em que, como afirma Deleuze, o cérebro é uma imagem entre outras:

existem imagens, as coisas mesmas são imagens, porque as imagens não estão na cabeça, no cérebro. Ao contrário, é o cérebro que é uma imagem entre outras. As imagens não cessam de agir e de reagir entre si, de produzir e de consumir. Não há diferença alguma entre as imagens, as coisas e o movimento (Deleuze, 1992, p. 57).

A narração no cinema é como o imaginário, “visto na profusão do que é proposto para o seu trabalho” (Balandier, 1999, p. 32). Portanto o imaginário no cinema é o duplo do anthropos. Desta perspectiva, uma pesquisa sobre imagens é também uma pesquisa sobre tramas de idéias (Deleuze, 1992). Em forma de ficção científica os mitos do futuro tendem

a se manifestarem, nutrindo o imaginário “ainda de temas antigos: os que

o restabelecem em uma duração e o aliam aos mitos cujos significados

permanecem vivos, e os que ressurgem nos vazios que o homem atual, tão imaginativo, não consegue preencher” (Balandier, idem).

Enquanto espaço imaginário e manifestação de tramas de idéias, o

12

filme em questão, do ponto de vista da técnica utilizada para sua

compreensão e interpretação, foi tomado como uma narrativa composta por acontecimentos. Por se tratar de um filme, decodifiquei-os em

termos de cenas, ou seja, uma cena é, ao mesmo tempo, uma narração

da narrativa, um acontecimento, uma possível significação e uma imagem reflexiva. Desta forma, a narrativa cinematográfica se me apresentou em vários níveis: o dialógico resgatado nas falas; o visual nas imagens, e o sonoro

dado

no

tom

significativo

da

música

quando

evocando

determinado elemento no âmbito da decorrência dos acontecimentos. Adotei o olhar enquanto instrumento de análise, o que se justifica pela

sua própria virtude, ou seja, um meio que permite lidar com um objeto que fala, não só pela narrativa dialógica, mas também pela narrativa

visual e sonora. Para que isso fosse possível, assisti ao filme várias vezes, tendo o cuidado de anotar todas as falas relacionadas diretamente às

imagens visuais – seqüências de gestos; gestos inaugurados por determinadas

situações;

reações;

expressões

fisionômicas,

deslocamentos, percursos; continuidades; descontinuidades; elementos simbólicos, pois, estes últimos, mesmo que não sejam enunciados pelas palavras, são enfocados pelas imagens direcionadas a determinadas coisas, condicionadas a poderem ser reveladas na própria dimensão do

simbólico e da narração. Para decodificar o drama o urdi-lo nas possíveis tramas do enredo, adotei a perspectiva, ora de um personagem e o seu próprio drama, ora de outro e seu correlato. Dentro deste procedimento, ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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busquei

os

possíveis

sentidos

e

entendimentos

na

elaboração

significativa daquelas perspectivas, acreditando, em tal exercício, não perder de vista os dados enquanto inseridos num determinado contexto, que no caso aqui tratado é o drama fílmico. Da perspectiva dos Andróides

“Traga os anjos para baixo e queime-os nas trevas”

(Roy – Nexus-6)

Esta foi uma invocação que Roy, um andróide da geração Nexus-6,

fez ao se dirigir àquele que julgava saber de alguma resposta a respeito

de sua agitação interior, Tyrell, o seu criador. Não só da sua, como

também da de seus três outros companheiros, Leon, Zhora e Pris que, juntos, na Terra, estavam à procura de uma possível solução para a

morte. Anjos, são evocados porque, fatalmente, foram criados, caídos (no

significado de para baixo) e queimados nas trevas, porque, oculta em suas

memórias

implantadas

e

no

automatismo

de

seus

corpos

programados para viverem apenas quatro anos, estava a morte, a

13

“cybermorte”? (Baudrillard, 2001, p. 18).

Se uma vez andróides,

encerrados em um sistema operacional vivo, talvez pensassem que o

acontecimento fatal pudesse ser apagado, ou reprogramado! Cena

emblemática da peregrinação que se deram a percorrer é o encontro com o engenheiro genético de olhos. Roy, ao estar com este em um

laboratório de baixíssima temperatura, ameaçando-o de morte por ser

mais forte e ágil que o mesmo, fazia-lhe instigadamente perguntas sobre longevidade, morfologia e datas de inseminação. Mas não poderiam obter

as respostas desejadas. Estavam diante de um engenheiro genético de olhos, especializado somente em tal faceta de seus próprios corpos que,

de um relance nos olhos de Roy, reconheceu o seu próprio trabalho nele. Era ele reconhecidamente que havia desenhado seus olhos. Mas, nesta

situação, Roy encarna o possuidor da própria alienação do trabalho deste engenheiro, ao dizer-lhe: “se você pudesse ver o que vi com esses seus olhos!”. Deste episódio Roy recebe como resposta a afirmativa do

engenheiro que apenas lhe diz: “não sei dessas coisas. Só faço olhos. Sou engenheiro genético de olhos”. Roy então parte, na tentativa de chegar àquele que desenhara sua mente, seu cérebro, e como já dito, este era o Doutor Tyrell, dono da Corporação de mesmo nome.

Se adentrarmos no terreno de uma “intercrítica” da ciência e do

mito pela associação (Atlan, s/d), o prestígio do centro, ou mesmo o

simbolismo do centro emblematizado aqui em Tyrell e sua Corporação, ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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tanto a viagem dos andróides da colônia para a Terra, quanto a

peregrinação destes para o encontro com seu criador, replica uma cosmogonia, um desejo de saber, por parte dos andróides, de sua

situação no cosmos. E para tanto o caminho que conduz ao centro é um caminho difícil.

O caminho é árduo, semeado de perigos, porque é, efetivamente, um

rito da passagem do profano ao sagrado; do efêmero e do ilusório à realidade e à eternidade; da morte à vida; do homem à divindade. O

acesso ao centro corresponde a uma consagração, a uma iniciação... (Eliade, 1985, p.33).

Os andróides foram construídos, no limiar do século XXI, como

produto do desenvolvimento da tecnociência. Fisicamente em nada se

diferenciam dos humanos. Socialmente diferenciam-se por serem

escravos destes, por não saberem de sua origem, por terem memória implantada e, portanto, viverem nos avatares de uma suposta identidade, e de só estarem em condições de desenvolver sentimentos próprios, tais

como amor; inveja; medo, no fim de quatro anos de existência, quando

morrem. Artificialmente implantadas, como já assinalado, sua memória

14

contém

elementos

que

lhes

possibilitem

realizar

tarefas

especializadas. Alguns são feitos para a guerra, outros para o sexo, e assim sucessivamente. Par a par com este dado, do qual os andróides

vieram saber sobre si próprios – os quatro anos de vida – existe um

mecanismo com o qual é possível identificá-los, que seria a observação,

através do teste Voight-Kampff, do aumento ou não da pupila e conseqüente

dilatação

involuntária

da

íris.

Tais

sintomas

seriam

associados a um ser de natureza mais social e emocional. Através de uma

bateria de perguntas, procura-se captar as características que nos andróides sabe-se não haver: as emoções, referenciais sociais e a

memória. São identificados justamente pela ausência destes elementos. A título de ilustração, reproduzirei um teste aplicado por Hodeen, um

policial blade runner em um Nexus-6, Leon, que se infiltrara na Corporação Tyrell passando-se por operário:

Hodeen – Leon Kowalski, engenheiro de eliminação de detritos. Empregado novo, 6 dias. Entre, sente-se.

Leon – Se importa se falar? Fico nervoso com testes.

H – Por favor, não se mexa muito. L – Já fiz um teste de QI este ano.

H – O tempo é importante, preste atenção. Responda o mais rápido que puder. 1187, HB. L – É o hotel onde moro.

H – É um lugar bonito?

ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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L – Acho que sim. Isso faz parte do teste? H – Não, só estou te aquecendo. L – Não é muito luxuoso.

H – Você está num deserto andando sob a areia... L – Isso já é o teste?

H – Sim, você está num deserto...

L – Qual?

H – O que?

L – Que deserto?

H – Não faz a menor diferença. É hipotético.

L – Como fui parar lá?

H – Talvez queira estar só. Quem sabe? Você olha para baixo e vê um jaboti rastejando até você.

L – O que é um jaboti?

H – Sabe o que é uma tartaruga? L – Claro.

H – É a mesma coisa.

15

L – Nunca vi uma tartaruga, mas sei o que é.

H – Você vai virar o jaboti de cabeça para baixo.

L – Você inventa estas perguntas ou são escritas para você, Sr. Holdeen?

H – O jaboti está de barriga ao sol tentando se virar, mas não consegue sem a sua ajuda.

L – Como não ajudo? H

Não

ajuda. Porque Leon? São

perguntas.

Respondendo sua dúvida, são escritas para mim. É um

teste designado a provocar emoções. Vamos continuar?

Descreva em poucas palavras as boas coisas que lhe ocorrem. Sobre a sua mãe.

L – Minha mãe? Vou lhe falar sobre a minha mãe.

(Neste momento Leon saca de uma arma, atira em Holdeen e foge)

No diálogo, nota-se o medo e a insegurança do andróide que, na

iminência de ser descoberto, assassina o policial blade runner na total impossibilidade de formular qualquer explicação de sua identidade

familiar. Situação similar acontece com Pris, criada para o prazer e uma dos andróides do grupo de revoltosos que, ao ser perguntada sobre seus

pais, responde dizendo ser órfã e não possuir casa. A ausência de uma identidade que os dessem um pertencimento ao meio social em que se

viram existir, levaram os andróides a preocuparem-se com a sua origem. ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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E o indicativo desta, no meio em que estavam, era pertencer a uma família, possuir progenitores e ter memórias. Mas, na procura, se viam

sempre replicados, pois dados que conseguiam nunca eram seus realmente. Situação ilustrativa de tal fato é a simulação que Leon faz para

possuí-los, quando rouba retratos e os exibem em sua casa como se fossem de seus pais e irmãos. Outro dado que ilustra tal perspectiva é o

ocorrido com Rachel, andróide da geração Nexus-6, assistente de Tyrell, a quem Deckard aplica o teste Voight-Kampff. O teste resulta mostrando

que ela é uma replicante, e é-lhe informado por Deckard que suas memórias são da sobrinha de Tyrell. Rachel, demonstrando fragilidade e sensibilidade, performa um estado de angústia e tristeza, visível em seu

semblante na referida cena, talvez por vir saber quem não era e nostalgizar quem poderia ser. No fragmento do teste que se segue pode-

se perceber melhor tal situação:

Rachel – Acha que sou uma réplica, não?

Deckard – não responde nada.

R – Olhe, sou eu e minha mãe. (mostra-lhe fotos)

16

D – Lembra quando tinha 6 anos? Entrou com seu irmão em um prédio vazio para brincar de médico. Quando

chegou a sua vez de mostrar....você fugiu. Lembra disso?

Já contou isso a alguém? A Tyrell ou à sua mãe? Lembra

da aranha que morava do lado de fora de sua janela? De

corpo laranja e pernas verdes? Viu-a construir a teia... E um dia havia um grande ovo nela... O ovo quebrou e...

R – O ovo quebrou e ... de dentro saíram 100 filhotes. Eles a comeram.

D – São implantes. Não são suas memórias. São da

sobrinha de Tyrell.

Após eliminar Leon em sua casa, onde encontra algumas

fotografias e uma escama de uma cobra artificial, Deckard, com as pistas

de que dispõe, consegue chegar a Zhora, um andróide do grupo de revoltosos conhecida como a “bela e a fera”. O acesso a Zhora se deu

através da cobra artificial com a qual Salomé (Zhora) trabalhava em um cabaré. Deckard, de posse de uma escama que encontrara em sua

banheira em um quanto de hotel, procura pelo fabricante da cobra e vai

ao encontro de quem a havia comprado, no caso, o dono do cabaré, Taffey Lewis. No cabaré assiste ao número “Salomé e sua cobra”, cuja

chamada de apresentação era: “Veja o prazer que ela extrai da serpente...

que já corrompeu o homem”. Assim, Deckard, depois do número, se dirige ao seu camarote fazendo-se passar por um membro do “Comitê de ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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Abusos Morais”, dirigindo-lhe perguntas e investigando seus pertences.

De tal situação Zhora não escapou, foi descoberta ao tentar fugir e

eliminada após uma implacável caça nas ruas da cidade, por entre

transeuntes e carros. Desta forma, de Salomé, a mulher, traída pela

cobra, serpente que no idílico passado edênico inicia a queda do homem na inevitabilidade da morte, chega-se a Zhora, a mulher e andróide. É

interessante notar-se também que na Índia, “a serpente simboliza o caos, o amorfismo não manifestado”(Eliade, 1985, p. 34).

Se Los Angeles é habitada por pessoas de várias alteridades –

japoneses; chineses; egípcios; árabes; turcos; espanhóis; americanos –

veio também a ser habitada por andróides. Os primeiros, talvez possam

ser vistos como empíricos representantes de visões de mundo que encerram ontologias quiçá singulares às tradições históricas e culturais

específicas de cada um, ou seja, concepções do ser e da realidade imiscuídas nas formas de comportamento em série e instalações sociais desiguais

dos

indivíduos

que

habitam

as

grandes

metrópoles,

simbolizada na narrativa fílmica por Los Angeles. Os andróides, nesta

17

perspectiva, configuram-se em Los Ângeles como uma outra alteridade, que como as demais, fora engendrada a partir dos mesmos princípios. E

sua peregrinação neste claustro mundo de referências identitárias e memórias simuladas, ensaia a busca mítica do princípio, condição para

entenderem como estão vivos e consequentemente, como escapar da morte já que querem viver mais do que lhes fora permitido pela

programação genética. E o que lhes faltam é encontrar este princípio, talvez para não serem mais caçados ou até mesmo não identificados. O

que lhes enreda nesta viagem são justamente o desejo e a necessidade de encontrá-lo.

Nesta busca do princípio fundador, do sentido da vida e do porque

da morte, os andróides, representados na figura de Roy chegaram a seu

criador, o Doutor Tyrell, o proprietário da Corporação, o gênio que os havia engendrado. O aceso a Tyrell foi através de uma situação

estratégica na qual Roy soube muito bem jogar. Usando da mesma genialidade de seu criador, metaforizada no jogo de xadrez, no qual

Tyrell é imbatível, Roy lhe propõe um lance que o deixara perplexo e confuso, pois xeque-mate. Nesta situação, para averiguar do que se

tratava Tyrell o deixa entrar em seu gabinete situado na torre da Corporação,

visualmente

panoramicamente

se

luxuosa

destaca

e

dentre

arquitetonicamente

outros

edifícios

na

arrojada, mesma

localidade, um Axis Mundi. Depois de travarem um diálogo amistoso, no

qual colocava suas inquietações e Tyrell tentava respondê-las, Roy, ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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assaltado pela consciência de que a morte não fazia parte da jurisdição de seu próprio criador, assassina-o, furando-lhe os olhos.

Associando o criador a uma divindade, e a seqüência dos gestos a

um ritual, o significado para tal pode ser dado através de um dos mitos

da “Divindade Assassinada”. Em um deles, “a morte da divindade é

criadora. Em alguns o assassínio inspira o enredo de um ritual iniciatório,

isto é, da cerimônia que transforma o homem natural em homem cultural” (Eliade, 1972, p.91). Desta perspectiva, os andróides e o enredo

que os tramam na narrativa podem ser vistos como uma alteridade em

formação. Seu drama ensaia a ausência de uma ontologia, de uma

cosmogonia e uma antropogonia (androideogonia, com licenças para

neologismo) que pudesse servir de fundadores paradigmáticos dos atos de comportamento consciente e reveladores do princípio que os instauraram no sistema do vivo.

Seus gestos foram inaugurados por

outros, mas quem seria? Temos aqui um mito de origem instado em uma narrativa invertida, que parte do fragmento para o todo de onde vieram.

Esta narrativa invertida refere-se ao sentido que tem a origem, vista

18

especificamente do prisma do drama dos andróides enquanto alteridade em formação. Explique-se: as narrativas tradicionais dos mitos de origem

contam como se originam as coisas e os fenômenos através de eventos primordiais, em função mesmo da origem, a partir da qual aquelas coisas

e fenômenos tornaram-se reais e significativos, trazendo através de seu dito (pois que são narrativas) um mundo ordenado e compreensível para

os homens. E é justamente através da fala do mito que aqueles homens se referencializam diante do mundo, que adquirem identidade, um significado para si próprios (Eliade, 1972). Tem-se aqui o significado do

mito para uma alteridade já constituída. No caso do drama dos andróides, o que eles tiveram que fazer foi construir o seu próprio mito. A saga destes anjos caídos é justamente a procura do evento primordial, de sua origem, feita através de senhas que carregavam consigo, ou seja,

as perguntas que formularam. No tom e nos conceitos nelas contidos,

traziam uma espécie de nostalgia do todo, reminiscências da origem.

Perguntavam sobre morfologia, longevidade e datas de inseminação. Podem-se traduzir estas perguntas como sendo itens relevantes para a constituição da alteridade andróide. Na citação de Eliade (1972, p.91), o

termo “homem cultural” pode ser inferido por meio dos andróides

(replicantes), não mudando o significado e a estrutura do mito, ma sim, dando significado aos andróides, que tanto na narrativa fílmica, quanto

na semântica do mito, passam pelo mesmo processo. Se há uma

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transformação para o cultural, naquele episódio, ao assassinar seu criador, é quando Roy toma consciência de sua mortalidade.

Por outro prisma, o drama de Rachael sugere o mito do eterno

retorno (Eliade, 1985). Primeiro ela desperta para o seu drama ao tomar

conhecimento que era uma réplica e que as memórias que tinha não eram

suas quando Deckard lhe submete ao teste Voight-Kampff. Quando toma consciência do que realmente é, uma réplica, Rachael tenta desaparecer,

cogita fugir para longe, mas acaba matando um de seus semelhantes,

Leon o andróide do grupo de revoltosos, para salvar a vida de Deckard que estava sendo perseguido por aquele. Este gesto deixa o blade runner

em dívida com ela. Ao terminar sua missão na cena final do filme quando

Roy desfalece em função de seu tempo de vida ter-se esgotado, e

sabendo que para Rachael, segundo lhe dissera Tyrell, não havia data de

término, foge com a mesma depois de uma cena de nítida demonstração

de que são seres sexuados. A fuga, que corresponde à cena final do filme (cena da versão do estúdio exibida pela primeira vez em 1982) é para um espaço totalmente antagônico ao de Los Angeles. Neste, há um espaço

19

totalmente urbano, milenar, de profusão de pessoas lembrando uma

civilização já cimentada no tempo. Lembrando aqui que a concepção

desse tempo é figurada no ambiente de Los Angeles tendo o século XXI como tempo histórico, mais precisamente, Novembro de 2019. Já o

espaço da fuga mostrado em panorâmica a partir de Deckard e Rachael

no interior de uma nave espacial, é uma enorme pradaria de campos

incultos, muito verde e céu límpido. Mas este espaço e a condição que para ele se dirigem Rachael e Deckard, ambos com a identidade suspensa

uma vez que o próprio blade runner suspeita-se ser também um andróide, levam a pensar justamente em uma concepção de tempo ao qual o filme pode estar fazendo alusão, e ao qual tento dar significado pelo mito do eterno retorno. Sua manifestação estaria na regressão ao

caos criador, sugerido no espaço idílico e iluminado, o oposto ao de Los Angeles, para o qual um humano(?) e um andróide se dirigem. Se esta regressão pode ser tida como uma concepção do legado da religião

judaico-cristã, na qual o drama do paraíso constitui o que lhe é essencial, pois é nele que se “instituiu a atual condição humana” (Eliade,1972,

p.91), ela – a regressão como evento – pode estar operando duas transformações: a dos homens, replicante e humano? Rachael e Deckard em heróis exemplares, por se fazerem históricos com referência ao

tempo de Los Angeles, e a do acontecimento (a fuga), em categoria mítica, também por ser histórico (Eliade,1985, p.154). Esta categoria

talvez faça sentido no drama do paraíso graças a uma variável ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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significativa que, no caso do filme, é justamente o fato da instauração de uma possível outra alteridade, ou seja, o fato de Rachael, mulherandróide, e Deckard – ex-caçador de andróides que, por ter admitido o

outro no seu aspecto mais radical, perdera a si próprio – irem passar juntos a eternidade da incógnita de suas próprias vidas, em um ensaio

inconcluso de outra cosmogonia. Se já pode haver a dissociação entre a reprodução e o sexo, a imagística ficcional do filme nos lança uma pergunta: seriam os seres humanos inúteis, podendo eles próprios ser

preservados como uma espécie de “atração ontológica”? (Baudrillard, 2001, p.17).

Do acontecimento primordial: criaturas da ciência

“E o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Evangelho segundo São João)

Nascem os andróides. Não nascem do verbo, mas da ciência. É

nesta perspectiva, como agente e ação de um acontecimento primordial, ou nas palavras de Ricoeur (1978), um acontecimento fundador, que a

20

ciência – categoria com a qual se ordena um mundo e nele se atua – será aqui tratada, isto é, por meio de dois prismas. O primeiro é o valor nela contido a partir do drama dos andróides, ávidos por saberem como

vieram ao mundo, quem são e porque não podem viver mais que quatro

anos. É a ciência vista como mito de criação. O segundo é a maneira pela

qual a ciência fala e concebe seus rebentos. É a ciência como forma de exercício do poder.

Para se ter uma idéia mais clara do sentido de um mito de criação,

em breves considerações tentarei relatar aqui o Wenía, a origem

mitológica da cultura Marúbo, índios que vivem hoje “nos altos cursos do Curuçá e do Ituí, na banda oriental da bacia do Javari” (Melatti, 1986). O

Wenía é o relato de como surgiram os homens e de como os Marúbo, ao

longo de uma caminhada coletiva advinda de um “descampado na outra

margem das grandes águas (Noa mato wetsa)” para o local onde hoje vivem, aprenderam no percurso itens importantes de sua cultura. O defrontar com cada um desses itens gera episódios míticos, mas não constitui mitos distintos, e sim episódios que se caracterizam pela

repetição modificada, não sendo em si mesmos um evento primordial

isolado. Os episódios têm significado dentro da narrativa maior, o Wenía. O primeiro episódio diz respeito à origem das seções, ou seja, é o nascer,

é a saída do chão. As seções são autônomas, surgem do chão, sucessivamente, de buracos diferentes. Dentro do chão, por baixo das ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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flores de um vegetal, de pedaços de seu tronco picados ou roídos por um animal, os membros começam a gemer, saem por um buraco e sobem por uma escada feita de ossos de anta. A identidade de uma seção, ou

seja, aquilo que a distingue das demais está contida no nome da seção,

no elemento estimulador do afloramento, no líder masculino ou feminino e no adorno de cabeça. O primeiro a sair é o líder, atrás dele seguem os

demais. Depois deste episódio tem início a longa caminhada na qual

episódios também ocorrerá, dos quais os itens culturais serão aprendidos pelos Marúbo. Assim, e sem maiores detalhes, enunciarei a seguir os episódios da caminhada para se ter a idéia do que é relevante para o

mundo Marúbo: encontro com seres ilusórios; descoberta da pupunha; descoberta da injeção de sapo; termos de parentesco; disposição dos cadáveres; pontes que davam choques elétricos; cânticos de cura e de feitiço;

origem

dos

nomes

pessoais;

natureza

da

menstruação;

aprendizado do ato sexual; relação sexual com vegetais e corujas; o

incesto e a ponte-jacaré; aprendizado do parto; remédios para crianças;

aprendizado do choro; obtenção dos cachorros; árvore do milho; Oni

21

Westi (criador dos vegetais cultivados). De uma longa caminhada de episódios

múltiplos,

os

Marúbo,

de

lugares

diferentes

(seções),

convergem num mesmo ponto, o das relações matrimoniais da vida presente, para voltarem a se separar após a morte. Nas palavras de Melatti (1986), a cosmologia Marúbo se traduz no “partir-se do múltiplo para se voltar ao múltiplo”.

Desta alusão à origem mitológica da cultura Marúbo, e tendo como

perspectiva comparativa o drama vivido pelos andróides do filme, podese dizer que os Marúbo, como hoje vivem já são uma alteridade constituída. Atesta-se isto no poder que os mesmos possuem de contar

sobre sua própria origem, pois já tem o mito. Ao contrário, os andróides,

figurando como uma alteridade em formação, tem que construir ou buscar o seu próprio. Nota-se ainda que, para o mundo Marúbo o que é relevante está nos episódios, ou seja, a origem das seções; o encontro

com seres ilusórios; termos de parentesco; origem dos nomes pessoais; e assim por diante como acima mencionado. Para o mundo em formação

dos andróides, o que é relevante é a morfologia; a longevidade e as datas de inseminação. Outro dado é que, como os Marúbo, a caminhada dos

andróides em busca de sua origem foi efetuada através de fragmentos

encontrados ao longo do percurso. A seqüência que alude a tal fato no

filme é aquela na qual Roy se depara com o engenheiro de olhos, especializado apenas nesta faceta de sua constituição. Mas comum ao

mito Marúbo e ao filme norte-americano, está a ênfase nos caminhos e ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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percursos que levam ao ato primordial. Pode-se então fazer as seguintes

observações: os Marúbo, como alteridade constituída, tem no mito do

Wenía a origem de sua cultura. Seu valor está no fato de lhes fornecer um princípio fundante. Os andróides, como alteridade em formação, estão à procura de seu próprio princípio para que possam inaugurar em suas memórias a consciência de seus atos.

Como acontecimento originário, que é o que ela representa para os

andróides, a idéia mítica da ciência está imbricada no mistério da criação, mistério

este

encontrarem

buscado

seu

pelos

princípio

andróides

fundador.

E

como

uma

encontraram.

maneira Mas,

de

como

procuravam através de perguntas sobre longevidade, morfologia e datas de inseminação, obtiveram como respostas explicações indagativas, ou seja, uma discursividade científica que tem na explicação uma maneira

elegante e poderosa de também perguntar. Na seqüência reproduzida a seguir, Tyrell, o dono da Corporação, aquele que engendrara os

andróides e que aqui, neste enfoque, encarna a ciência falando, responde a Roy em um diálogo no qual a discursividade científica acima aludida

22

talvez possa ficar mais bem caracterizada:

Roy – ... Não é fácil conhecer seu criador. Tyrell – E o que ele pode fazer por você?

Roy – Concertar o que ele criou.

Tyrell – Gostaria de ser modificado? Fique aqui! Roy – Ficar aqui? Pensei em algo mais radical.

Tyrell – Mas, qual o problema?

Roy – Morte.

Tyrell – Morte? Mas isto não faz parte de minha

jurisdição!

Roy – Quero viver mais tempo..., Pai!

Tyrell – São os fatos da vida. Alterar a evolução de um sistema orgânico é fatal. Uma seqüência codificada não pode ser mudada.

Roy – Por que não?

Tyrell – Depois do segundo dia de incubação, uma célula

que sofre mutação atávica dá origem a células atávicas, como ratos que deixam um navio afundando... E o navio afunda.

Roy – E a E.M.S recombinação?

Tyrell – Já tentamos. O etil-metano sulfanato é um potente mutagem, gerou um vírus tão letal que o paciente morre antes de sair da mesa de operação.

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Roy – Uma proteína protetora que bloqueie as células.

Tyrell – Não impede a duplicação, mas causa um erro na mesma e a nova cadeia de DNA formada contém uma

mutação e novamente um vírus. Mas tudo isto é acadêmico. Fizemos você o mais perfeito possível. Roy – Mas não para durar.

Tyrell – A luz que brilha demais se consome rápido. E

acho que você brilhou muito, Roy! Olhe para você. Você é seu próprio sol. Você saiu premiado. Roy – Fiz coisas questionáveis....

Tyrell – Mas também, extraordinárias. Aproveite a vida!

Roy – Acho que o deus da Biomecânica não te aceitará no céu. (Roy, neste momento pega-lhe no rosto e lhe beija

na boca, logo em seguida afasta-o e perfura-lhe os

olhos, matando-o).

No Egito o deus Tote criou o mundo pelo poder de seu verbo. Daí

os sacerdotes possuírem o poder do rito e da palavra, pois assim podiam

23

imitar o gesto primordial (Eliade, 1985). Neste tipo de ontologia, a

arcaica, dignatária dos homens das sociedades pré-modernas, os objetos e a ação humana só se tornam reais pela repetição e imitação de um arquétipo (idem). No espaço imaginário da narrativa cinematográfica,

enredada na figura de Tyrell, a ciência dramatiza suas ações em forma de experimentos genéticos a partir de paradigmas científicos. Da perspectiva de uma “intercrítica” da ciência e do mito (Atlan, s/d), ou mesmo da

“autenticidade” dos dois domínios (Lévi-Strauss, 1975), uma ontologia da biotecnologia se ensaia próxima à ontologia arcaica na medida em que naquela, também, os objetos e a ação humana só se tornam reais pela

repetição e imitação de um arquétipo ou paradigma, no caso, o científico baseado no pensamento racional instrumental (objetos do mundo

exterior tomados em uma cadeia de causalidade). No universo ontológico arcaico os homens tem a tendência para se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Teríamos então aqui duas ontologias baseadas no

mesmo suposto arquetípico, mas diferentes em suas escatologias? Se a

exceção humana é o conhecimento e a moral, sua condição é inventada, é construída, pois ao simbolizar o homem fabrica, não reproduz uma ordem de mundo pré-existente à denominação. Mesmo porque o

conhecimento não é um espelho das coisas ou do mundo externo, seja sob a forma de palavra, de idéia, de teoria. A linguagem e o pensamento

elaboram uma tradução/reconstrução. Ora, se toda reflexão se dá na linguagem e esta é uma realidade fundante, então teríamos tantos ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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mundos diferentes quanto diferentes estruturas narrativas ou discursivas? O que rege a fundação? Atlan (s/d) evidencia esta questão ao apontar para a armadilha da causalidade científica quando tenta “estender a sua eficácia de domínio operacional à de uma origem de sentido para a existência humana” (idem). O autor lembra que as experiências da vida

quotidiana são integradas nas representações animistas e vitalistas

tradicionais. Talvez este ensaio preconize o que Atlan propõe: fazer falar,

uns com os outros, os antigos textos fundadores. Não na busca de uma história moral, mas de uma moral da história:

Tyrell – Estou impressionado. De quantas perguntas precisas para descobri-los? Não entendo!

Deckard – Vinte ou trinta, com referência cruzada!

Tyrell – Fez mais de 100 para Rachael. Ela não sabe que é uma réplica. Acho que ela suspeita.

Deckard – Suspeita? Como é que ela pode não saber o

que é?

Tyrell – O nosso objetivo na Tyrell é o comércio. Nosso

lema é: Mais humano que os humanos. Rachael é só uma

24

experiência.

Estamos

começando

a

observar

uma

estranha obsessão neles. Afinal eles não tem experiência emocional. E poucos anos para adquirir experiências que

bem conhecemos. Se lhe damos um passado, criamos uma base para suas emoções e podemos melhor controlá-los.

Deckard – Memórias... Está falando de memórias! Cacos para um vitral Falar da ciência como forma de exercício do poder é usar da

metáfora que o filme oferece para refletir um pouco sobre uma realidade ou um drama no qual nós mesmos podemos ser ou já somos os

protagonistas. Assim como os andróides é resultado da conjugação de fragmentos constituídos por engenheiros especializados em cada faceta

de seus próprios corpos, também as diversas disciplinas nas quais a ciência

se

dividiu

representam

fragmentos

constituídos

de

discursividades disciplinares, cada uma pretendendo reter o absoluto do objeto estudado.

Esse é um drama que se configura nos novos

procedimentos do poder, elaborados durante a época clássica e postos

em ação a partir do século XIX, o que fizeram nossas sociedades – as que tem o econômico e a técnica como categorias de entendimento (Dumont, ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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1977) – passarem de uma concepção simbólica para outra analítica (Foucault,1985).

Esta

última

foi

configurada

na

forma

que

o

conhecimento, ou seja, a “vontade de saber” típica da racionalidade ocidental, de raízes gregas, tomou quando instituído e legitimado no

discurso científico, ou talvez, melhor dizendo, um acontecimento que adquiriu um ethos próprio na discursividade científica. E foi justamente

com esses novos procedimentos do poder que a ciência se diversificou em áreas especializadas do saber, reivindicando, cada uma, através de seus próprios discursos, o poder de verdade sobre aquilo que falava.

Assim, encontra-se no âmbito daquela multidiscursividade, a científica,

as modalidades de produção da verdade e do absoluto. Os novos procedimentos do poder se configuram na passagem de uma “soberania uma e visível” para uma “disciplina capilar e fragmentada”, onde o

dominante passou a não mais se encontrar “nos espaços jurídicos de legitimação da soberania, mas na forma de controle pela disciplina, pelo

adestramento em nome de uma crescente utilidade dos indivíduos” (Foucault, 1986, p. 188). É um poder que se configura nos parâmetros de

25

uma “situação estratégica”, e não mais nos de uma instituição ou estrutura. É como um jogo de xadrez. Em Blade Runner, Tyrell, o gênio

dono da Corporação., é praticamente imbatível no jogo de xadrez. Perdera uma vez para Sebastian, um engenheiro genético empregado da

CIA., e ao qual Tyrell, uma vez derrotado, sempre o ouvia e o recebia. Tentemos uma equação:

Memória implantada : aprendizado disciplinar :: fragmentação individual do andróide : fragmentação disciplinar.

O raciocínio sobre tal correlação talvez parta da perspectiva do

reflexo do espelho andróide. Estes, através de seu drama, se nos

mostram como uma alteridade em percurso de formação. Fragmentados,

recompuseram seu princípio ao chegarem ao evento primordial de onde

foram gerados. E o evento em si, o acontecimento, a criação, não pode ser diferente daquilo que caracteriza sua própria fundação. O evento primordial refletiu nos andróides sua própria imagem. O criador neles se

espelhou e, da perspectiva de quem olha o criador criando, podem-se ver os fragmentos disciplinares sendo juntados para a obra original. Da

memória implantada, fruto do aprendizado disciplinar, talvez se possa

pensar no hiato que há entre o aprendizado e a estética individual de envolvimento com este aprendizado. Talvez por isso possamos dizer que,

o fato de ser próprio da narração mítica ser retomada geração após geração, e os textos fundadores inaugurarem dialogias (Ataln, s/d), outras formas de condução ética e política entrem no porvir. ARTIGOS | QUEM TEM MEDO DE BLADE RUNNER? | JESANA BATISTA PEREIRA


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Um blade runner ao observar, efetua uma “errância entre o medo e

a ordem” (Balandier, 1999, p.32). A tecnologia figura a tentativa de exercício do poder via controle das expressões catalogadas como

humanamente possíveis. Mas o humano não está catalogado ainda! O mundo da subjetividade aflora como uma dimensão interplanetária,

jogando para o plano do imaginário as possibilidades estéticas de arranjos existenciais. A natureza é figurada como algo tão tangível como o próprio conhecimento científico. E o drama se funda justamente na

tangibilidade entre a poyesis e a prosa. Duas figuras do discurso que

instauram visões diversas do real. A primeira fundada no tempo do devir, a segunda fundada no tempo do cálculo, pois tem como primordialidade a técnica como fundante do absoluto, e assim fada outros devires à sua

necessidade de provação. A angústia da lembrança simulada de um

andróide são os esquecimentos de uma obrigação de pertencimento,

como se a vida fosse posta à prova pela capacidade da memória. Então,

se nos arregimentamos por estes expedientes, nada mais fácil para se fazer um herói, nem que seja pelo esquecimento de si mesmo e a

26

lembrança

de

sua

possibilidade.

O

que

foi

fragmentado

nas

especializações do discurso sobre o sujeito, tornou-se processos de subjetivação. Os discursos então fomentam referenciais de até os mais

mágicos desvendamentos pela numerologia até as mais recônditas raízes

extra-terrestres. Um ensaio cinematográfico do que a racionalidade científica ocidental do século XIX, aliada ao econômico e à técnica como

categorias de entendimento, pode fazer com os indivíduos. Através da fragmentação disciplinar, produziu tantas formas de saber que afastou o sujeito da possibilidade de se agenciar em uma totalidade ontológica, ter

um pertencimento, buscar signos que possam demarcar seu trajeto, ou mesmo encontrar uma forma de estar no mundo.

“Mas tudo isto é acadêmico”, diz Tyrell a Roy. E acho que este, ao

estar prestes a morrer, expressa melhor o que foi dito da perspectiva acadêmica, na cena final do filme quando salva o blade runner da morte: Roy

...

Eu

vi

coisas

que

vocês

humanos

não

acreditariam. Como atacar naves em chamas de Orion...

Vi raios laser brilhando num universo infinito. Todos esses momentos serão perdidos no tempo.... Como lágrimas na chuva... É hora de morrer!”.

Resgatando

a

cosmologia

Marúbo, pode-se

ter

uma

visão

significativa dos caminhos e percursos aqui trilhados na viagem em que

todos eles – índios e andróides – fazem: da “partida do múltiplo para se

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voltar ao múltiplo”. Sobre a viagem? Estamos inaugurando deslocamentos sob a ausência de percursos... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATLAN, Henri. (s/d), O livro do conhecimento – As Centelhas do Acaso.

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A contribuição do Campo dos Processos de Educação Ambiental às Ciências: a possibilidade de se refundar uma epistemologia das relações e dos nexos

Maristela Barenco Corrêa de Mello

Psicóloga, Mestre em Educação e Doutora em Meio Ambiente. Coordenadora do Projeto Pegada Ambiental (SEEDUC e UERJ) e Professora da disciplina Antropologia e Educação (Uerj).

28

As ciências da Terra e a ciência ecológica

produziram o reencontro e a interfecundação

das disciplinas separadas (Edgar Morin)

Blowball (M.C. Escher, 1943)

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Resumo O presente ensaio parte da premissa de que a crise socioambiental

é também epistemológica e paradigmática. Busca reconhecer, nos campos dos processos de educação ambiental a possibilidade de

construção de um novo parâmetro paradigmático e epistemológico, complexo, com potencialidade de “interfecundar” as ciências separadas e

integrá-las. Tendo como referências, sobretudo, a “lógica rizomática”, de Deleuze e Guattari, a “ecologia dos saberes” e as “epistemologias do Sul”,

de Santos, e o conceito de complexidade, de Morin, postula a necessidade de emergência de uma epistemologia das relações dos

nexos, como conjunto de epistemologias, que nos possibilite restaurar a

capacidade perceptiva de leitura do mundo em sua inteligibilidade e sensibilidade relacional, complexa, de conexões com nexos, a partir da

problematização de uma herança epistemológica hegemônica que, contra

a diversidade epistemológica do mundo, foi tecida com os fios da trama

colonialista e ocidental cristã.

29

Palavras-chave: Complexidade, Epistemologia e Ciência Ambiental As duas últimas décadas testemunharam o aceleramento e a

efetivação de um processo postulado a partir da década de 70 com a

consolidação do movimento ambientalista: a irrefutabilidade de uma crise

socioambiental em escala planetária. Tal processo tornou-se evidente,

não tão somente pela produção de relatórios e estudos científicos 1 mas, sobretudo, pelas imagens, veiculadas pelos meios de comunicação social, das inúmeras e distintas tragédias ambientais que acometem nosso

planeta. Embora a chamemos de crise ambiental - o que retrata uma lógica disjuntiva e desconexa, porque tal expressão parece se referir a

uma natureza externa a nós -, cresce a consciência de que tal crise é

expressão de uma múltipla crise, dos modelos humanos, políticos, científicos,

1Um

desenvolvimentistas,

tecnicistas,

econômicos,

sociais,

dos primeiros relatórios, que se converteu em um dos livros mais vendidos sobre ambiente, na

década de 70, e analisava os limites do desenvolvimento, foi denominado “Os Limites do

Crescimento”, e ficou conhecido tambémcomo “Relatório do Clube de Roma” (por ter sido

encomendado por este grupo, de caráter internacional, fundado em 1968, que reúne pessoas de várias áreas para estudar questões econômicas, políticas, relacionadas ao ambiente e ao modelo de desenvolvimento) ou “Relatório Meadows” cientistas

do

Instituto

de

(em função de ter sido chefiado por Dana Meadows e Tecnologia

de

Massachussets

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-

MIT).

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culturais, enfim, paradigmáticos. Nossa civilização tem sido atravessada

por uma contradição ímpar: ao lado de uma hiperespecialização científica

e tecnológica há, concomitantemente, um analfabetismo relacional. Desenvolvemos

uma

capacidade

minuciosa

e

precisa

de

“ler”

e

compreender fenômenos específicos, mas temos perdido a competência

de “ler” e compreender as relações entre os fenômenos, as suas interações,

sempre

historicamente?

complexas.

Como

se

deu

este

processo

Partindo desta problemática, o objetivo do ensaio em questão é

refletir sobre como este processo se deu historicamente, e como a emergência do campo dos processos de educação ambiental vem potencialmente

ampliando

noções

epistemológicas,

filosóficas

e

conceituais. Entendo por campo dos processos de educação ambiental

um espaço de competência específica, no caso a educação ambiental, sempre em construção, marcado por relações assimétricas e ideológicas

entre distintas concepções teórico-filosóficas, pedagógico-políticas e

metodológico-práticas, que lutam por hegemonia, mas que não suprime

30

e nem invisibiliza tendências.

Para realizar o que se pretende necessitamos “cascavilhar 2” as

premissas de uma genealogia mais remota do pensamento, de uma tradição, cuja emergência quase se perde de vista, e que por isso nos

aparece como algo dado desde sempre, e que consolidou uma

epistemologia dominante. Neste processo, esbarramos com algumas questões: a constatação de que a epistemologia moderna dominante foi

tecida com os mesmos fios da trama colonialista e ocidental cristã (Santos; Meneses, 2009, p. 9); que uma justiça social e ambiental

caminha ao lado de justiça epistêmica; que há uma incompatibilidade entre uma lógica complexa nas formas de ler o mundo e uma lógica

cartesiana e mecanicista da ciência moderna; que as epistemologias sustentam não apenas lugares epistêmicos, mas lugares políticos. Neste contexto, frente à necessidade de emergência de novas epistemologias pertinentes ao campo dos processos de educação ambiental e a um

paradigma da complexidade, e tendo como referências, sobretudo, a “lógica rizomática”, de Deleuze e Guattari, a “ecologia dos saberes” e as

“epistemologias do Sul”, de Santos, e o conceito de complexidade, de

2

A expressão é utilizada de forma muito pertinente pela Profa. Maria Aparecida Lopes Nogueira, da

Universidade Federal de Pernambuco, durante as suas reflexões, nas aulas de doutorado em que ministrou como professora convidada.

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Morin, tal ensaio irá postular uma “epistemologia das relações e dos

nexos”como conjunto de epistemologias, que nos possibilite restaurar a

capacidade perceptiva de leitura do mundo em sua inteligibilidade relacional, complexa, de conexões com nexos.

Penso que a melhor forma de começar esta reflexão seja com uma

poesia de Manoel de Barros, intitulada “Manoel por Manoel” (Barros, 2008):

“Eu tenho um ermo enorme dentro do olho.

Por motivo do ermo não fui menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui.

Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na minha infância. Faço outro tipo de peraltagem.

Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba.

Mas não havia vizinho.

Em vez de peraltagem eu fazia solidão.

Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio.

Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas.

31

De uma infância livre e sem comparamentos.

Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um

orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.

Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.

Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio.

Era o menino e as árvores”.

A poesia de Manoel de Barros é uma escrita que recupera a

infância, no sentido expresso por Kohan (2005, p. 332): inventa palavras, tanto quanto a forma de encontrá-las e de elas se encontrarem. O autor

as encontra no chão, entre formigas, através da conjunção “e” e através

do ermo-solidão que carrega em seu olho e que parece ser condiçãopossibilidade de um modo de se relacionar e se envolver com a vida: experiência de “transfusão de natureza”e “comunhão”. Faltaram vizinhos, mas não faltou uma infância livre capaz de relações impensáveis,

mediadas pela imaginação. Infantilidade substantiva como condição de se comungar com o que nos cerca, de enxergar a vida de forma “oblíqua”. ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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Não há observador nem observação; analista e nem análise. Por isso

também não há “comparamentos”. Há experiências, de multiplicidades

em relação: chão e formigas e aranha e orvalho e garças e árvores e

bichinhos e sol e rio. Entre tudo isso há o menino, que é também singularidade.

Onde e como encontrar as raízes “crianceiras” que nos libertam

dos “comparamentos” e nos permitem experiências “comungantes”? Onde

e como encontrar os “lugares perdidos”, um “ermo” no olho, que oferecem “visão oblíqua”, “transfusão de natureza” e “comunhão” com ela – esse conjunto de condições que não preexistem nem à vida e nem à experiência? Este

texto

me

inspira

a

buscar

encontrar,

ou,

mais

pretensiosamente, teceruma reflexão que nos ajude a pensar os e nos entrelugares (lugares perdidos) do pensamento, das filosofias, das artes e das ciências que perderam as suas relações rizomáticas (Deleuze e

Guattari, 1995), as suas zonas de contato (Santos, 2004), os seus laços e interações (Morin, 1998, p. 14), que constituíam sua dimensão de

32

complexidade, de uma realidade que se tece junto, e que se diluíram

diante da consolidação de um paradigma disjuntivo, de separação que,

para Morin comandou a história do mundo e do pensamento ocidental, além de separar e isolar os objetos de seus contextos e relações (2000, p.

28). Foucault (2000, p. 74) irá falar do século XVII como um período onde

a episteme da cultura ocidental ver-se-á afetada em suas disposições fundamentais, através do que se designou racionalismo, e que marca o desaparecimento

das

crenças

supersticiosas

ou

mágicas,

representa a entrada da natureza numa ordem científica.

e

que

Nas palavras do poeta, este processo se caracteriza por uma

passagem de uma experiência “comungante de criança” para outra, de “comparamentos”. Do chão, onde o menino brincava com formigas, e

criava conexões de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças,

de um pássaro e sua árvore e os bichinhos e o sol e rio, houve um momento em que o ser humano levantou-se e passou a olhar sobre as

outras realidades, que logo foram se tornando coisas e objetos de

comparamentos. As relações se romperam. As multiplicidades se hierarquizaram. O humano se verticalizou sobre a horizontalidade da vida. Um modo de ser vivente foi se tornando hegemônico sobre muitos outros modos e muitos outros olhares.

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A Invisibilidade do Debate Epistemológico Uma primeira constatação se faz notar de forma sintomática: as

reflexões epistemológicas parecem soar de forma inadequada na era de uma ciência tecnológica. Na sociedade do conhecimento importa saber mais do que saber pensar ou do que pensar o que se sabe. Importa pensar as questões atuais, prementes, até conjunturais, que se

transformam em práticas, políticas, tecnologias – dirão alguns -, sobre outros pensadores que insistem na reflexão de conjugarmos a produção de conhecimento com o compromisso de conhecermos e pensarmos o

como conhecemos e pensamos, a partir de que contexto sócio, político e cultural, para que projeto de mundo. Tais questões que parecem inatas e

constitutivas do ser humano, não objetos de estudo, contudo, possuem um

fundo

ideológico,

porque

tendem

a

naturalizar

as

formas

hegemônicas de se estar no mundo e as premissas dos processos de constituição do conhecimento.

Morin (2010, p. 232) chama-nos a atenção para a importância de

33

conhecer o conhecimento que comporta sempre um risco de erros e ilusões. Aqui, ele parece situar a reflexão antes mesmo de seu caráter ideológico:

O conhecimento perceptivo jamais é um reflexo dos fenômenos: tratase de uma tradução a partir dos estímulos que chegam aos nossos sentidos e uma reconstrução cerebral. Toda tradução corre o risco de

erro, e toda reconstrução corre o risco da insuficiência. O que vale

para a percepção vale ainda mais para as descrições, feitas de palavras, ideias, teorias. O conhecimento é o objeto o mais incerto do conhecimento

filosófico

conhecimento científico.

e

o

objeto

o

menos

conhecido

do

Santos (2009, p. 7) propõe uma reflexão que já se envereda para o

campo

mais

precisamente

ideológico,

ao

postular

que

não

epistemologias neutras e as que se arrogam sê-la são as menos neutras, e que uma reflexão epistemológica incide nas práticas de conhecimento e práticas sociais e não nos conhecimentos abstratos.

Por isso, problematizar a maneira como acessamos a realidade e o

próprio conhecimento constitui tarefa investigativa complexa de uma vida

toda. Refletir sobre a matriz do próprio pensamento, sempre complexo, e as premissas de nossos conhecimentos é algo muito mais desafiante do

que refletir sobre o que desponta diante de nossos olhos e percepções, sobre os saberes que vão se constituindo, sobre novas tendências de ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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pensamento, sobre informações disponíveis. Implica um pensar crítico para dentro de si mesmo e para a história, concomitantemente, no

sentido de colocar em questão as condições de constituição e realização

do próprio pensamento e buscar conhecer as premissas pessoais e coletivas que determinam aquilo que chamamos de “olhar”, “modo de ver”, “ótica para o real”. MOREIRA (2006, p.18) enfatiza que “diferentes

observadores, sob circunstâncias também diferentes, concluirão verdades

igualmente diferentes”, e produzirão fatos científicos diferentes sobre as realidades sobre as quais se debruçam.

A princípio, refletir sobre o “lugar” epistemológico que se ocupa

parece constituir uma contradição básica. Como ocupar dois “lugares” ao mesmo tempo: o lugar que produz o pensamento e o conhecimento, e o

lugar que se interroga sobre as condições de tal produção? Uma

exigência da ordem da impossibilidade à luz de um paradigma

cientificista, pretensamente objetivista e analítico, mas também uma exigência à luz de novos paradigmas que não dicotomizam o sujeito do conhecimento e o próprio conhecimento.

34

Diante de uma multiplicidade de sujeitos e modos de conhecer,

que se constituíram na história e nas culturas, não interrogar-se sobre

questões epistemológicas significa reduzir o conhecimento ao que existe

ou a um modelo epistemológico hegemônico. Isso é empobrecer o

mundo e o conhecimento e produzir, no dizer de Santos (2004, p. 778) muitas “ausências”, responsáveis pelo “desperdício da experiência social”

mundial. Sobre isso, Maturana (2005, p. 14), faz-nos uma provocação, ao

nos alertar sobre os conceitos e afirmações que reproduzimos apenas

porque todos o fazem, sem uma maior reflexão. Ele o denominará de

antolhos - peças de couro dos arreios que obrigam os animais a olhar à

frente, evitando que se dispersem -, porque restringem a visão. Na

mesma linha, já no final da década de 70, também Bateson (1987, p. 189),

observava,

em

um

memorando

dirigido

ao

Conselho

da

Universidade da Califórnia, o caráter de “obsolescência”dos processos

educacionais: universidades ensinando o novo e o moderno, sob premissas refutáveis, antiquadas e obsoletas de pensamento.

A Episteme Moderna como Invenção e a proposição de outras

referências

epistemológicas:

“Epistemologias Ecológicas”

as

“Epistemologias

do

Sul”

e

as

Minha intenção aqui é chamar a atenção para alguns marcos na

história da episteme, como momentos emblemáticos, paragens do pensamento, para problematizar um processo de invençãoepistemológica ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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de uma tradição, que transformou um conhecimento único e particular

em único e universal. Importante registrar que não é meu interesse fazer uma revisão e nem historiografia.

Começo salientando o impacto da obstinação histórica de se

alcançar a verdade e de se apreender a realidade, através do

conhecimento, mais tarde chamado conhecimento científico, marcando

consensualmente toda a história filosófica do pensamento, desde a antiguidade, do inatismo platônico ao empirismo aristotélico. Mas o

cenário onde se desenrolará esta trama é marcada por muitos dissensos.

Historicamente, tal discussão expressou-se através de uma dicotomia

que se fez representar, sobretudo, por dois pensadores fundamentais: Platão e Aristóteles. Platão, idealista, postulou a primazia das ideias sobre a realidade sensível, da essência e da reminiscência. Aristóteles, realista, postulou a primazia da experiência e da realidade sobre as ideias. Boff

(1998, p. 97) os vê como duas figuras decisivas para o paradigma

ocidental, não representando apenas os dois maiores filósofos, mas expressando dois modos de ser ou de duas filosofias de vida, a da

35

abertura infinita do ser humano e a dos projetos viáveis. Kant e Hegel

darão continuidade significativa ao debate, buscando resolver dicotomias. Perspectivas interacionistas e sociointeracionistas virão tempos depois,

postuladas por Piaget e Vygotsky, entre outros expoentes, e efetivadas

atualmente, num outro paradigma, por Maturana, Varela e Morin.

Mariotti, em seu prefácio ao livro de Maturana e Varela (2005, pp. 7-8), chama-nos a atenção que ainda hoje é predominante a ideia de que o

mundo é pré-dado em relação à experiência humana. Esta ideia denomina-se

representacionismo*

e

ainda

constitui

um

marco

epistemológico da atualidade, ao lado do racionalismo científico. Tal tendência

vem

conhecimento, representação

desde

de

fiel

um

e

o

Renascimento,

modo

mental

de

geral,

uma

e

seja

contribui

para

compreendido

realidade

que

o

como

independente

do

conhecedor. A cognição, neste sentido, seria o instrumento através do qual o ser humano extrairia as informações de um mundo pré-dado.

Sendo considerada uma passagem entre a Idade Média e a

Modernidade, a Renascença irá presenciar uma mudança paradigmática

na forma do ser humano se relacionar com o mundo e com o

conhecimento, antes tendo como fundamentos a filosofia escolástica e uma cosmovisão teocêntrica de cunho tomista-aristotélico, e crenças consideradas

mágicas.

O

semelhante,

forma

e

conteúdo

do

conhecimento, que fora durante muito tempo categoria fundamental do ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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saber e que caracterizava um mundo interconexo, será dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença (Foucault 2000, p. 73). Nos primórdios da Modernidade, tal cosmovisão se transfere para o ser humano e a natureza é redescoberta, não mais através de um método

especulativo, mas inaugurando os princípios de um método científico, através de uma linguagem matemática e de uma experimentação. Por ser

um tempo que tem a pretensão de ancorar-se em um novo paradigma, ele engendrará igualmente uma tendência à dicotomia, ao dualismo e à

fragmentação, sobretudo no que diz respeito à distinção espírito e

matéria. Se na Idade Média o espírito atinge seu apogeu em detrimento da matéria, a Modernidade se constituirá na contramão deste processo.

René Descartes torna-se uma referência indiscutível e marcante deste

debate e de um modelo científico, considerado cartesianoe racionalista. Ainda que se lhe atribua mais responsabilidade do que ele parece de fato

ter na influência de um tempo e na consolidação de um método, a

aplicação de sua filosofia contribui para consolidação de um jeito de abordar o conhecimento, racionalista.

36

No clássico Discurso do Método (Descartes, 2008, pp. 39-45),

conhecemos um Descartes que se confessa interessado pelas letras, pelas línguas, pelos bons livros, pelas fábulas, pela eloquência e pela poesia,

além da teologia da filosofia, da jurisprudência, da medicina e das demais

ciências (2008, pp. 40-41); um jovem que relativiza o mundo acadêmico,

quando decide aprender com o livro do mundo; um jovem cansado das verdades dogmáticas que não se interrogavam sobre sua própria legitimidade; uma pessoa consciente que os humanos estamos sujeitos a erros e dúvidas;

um pensador preocupado em elaborar um método

sobretudo para si e não com a pretensão de ser um método para conduzir aos outros (2008, pp. 39;51); alguém que, ironicamente, busca

construir seu método objetivo a partir de um método subjetivo, já que se

inspira, sobretudo, nos sonhos consecutivos que têm durante uma noite e que se vê iluminado a buscar as respostas a partir de si.

No entanto, Descartes não era imune a premissas dogmáticas. Era

obcecado pela busca de uma única verdade e da construção de um

método sistemático que, neste caminho, evitasse o erro e atingisse as ideias claras e distintas; era convencido de que a razão, acessada pelo

pensamento lógico, era o único acesso à verdade universal; postulava que a natureza era marcada por duas matrizes separadas e independentes: a

matéria (res extensa) e o espírito (res cogitans); e acreditava na finalidade

dos processos como aquisição de uma verdade absoluta. Olhava com ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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desconfiança para todas as formas de multiplicidade, por entender que a

verdade é consequência de um reto caminho e um único pensar. E no seu

método de colocar em dúvida tudo o que aprendera, atribuindo-lhe falsidade, chega ao insight de que havia uma única coisa que não poderia

ser falsa, o seu ser pensante. Daí sua máxima cogito, ergo sum, como o

primeiro princípio de sua filosofia, afirmação da essência do ser humano,

que implicará na autonomia do pensamento em relação a todos os outros processos. Seu método, analítico-sintético, reforçou algumas premissas que estão presentes ainda hoje no pensamento ocidental, como a possibilidade de decompor a realidade sem dano à totalidade; a

possibilidade de se começar por algo simples para se chegar a um complexo (chamado composto); a capacidade de se chegar à totalidade exaustiva de uma dada problemática. Contemporâneo

a

Descartes, encontramos

Pascal, uma

voz

dissonante, que afirmará a impossibilidade de se conhecer a parte sem

conhecer o todo e de se conhecer o todo sem se conhecer a parte, e a

importância de um esprit de finesse, como a dimensão que nos permite

37

intuir aspectos da realidade, de profundidade e riqueza, não reveláveis a um esprit de géométri.Morin (2010, p. 192) chama a atenção para a

importância

de

Pascal,

numa

perspectiva

da

complexidade

do

pensamento, apesar do pensamento de Descartes ter se tornado o

paradigma dos séculos posteriores, e da importância de se integrar um

princípio ao outro no horizonte da complexidade. Neste debate, Morin acrescenta o pensamento de Bergson, sobre a impossibilidade de se compreender uma verdade particular sem compreender as relações que ela pode e tem com as outras verdades (Morin 2010, p. 192).

Atualmente temos clareza das consequências da primazia do

pensamento de Descartes sobre Pascal e do significado da ruptura com

uma episteme clássica. Se por um lado, tal pensamento foi responsável

por “imensos progressos no conhecimento científico”(Morin, 2010, p. 193), por outro moldou uma lógica e uma epistemologia que concebem o conhecimento

através

de

um

processo

de

disjunção,

separação,

dicotomia e fragmentação, um método analítico para se chegar às ideias “claras”e “distintas”. Tal lógica tem contribuído para a hiperespecialização dos

saberes,

mas

também

para

a

perda

de

nossa

capacidade

hermenêutica, de compreender os saberes ligados aos contextos e relações, e para a perda de uma capacidade multimensional para

compreender os problemas mais globais da vida e do ser humano. Para Grün (2006), não há possibilidade de se fundar uma educação ambiental ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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sobre uma epistemologia e sobre os referenciais cartesianos: “a cisão

cartesiana entre natureza e cultura é a base da educação moderna e constitui-se em um dos principais entraves para a promoção de uma

educação ambiental realmente profícua” (Grün, 2006, p. 55). Capra (1995, p. 25) irá dizer que a divisão cartesianado mundo, que em seguida

servirá de fundamento ao mecanicismo de Newton e à ciência clássica,

possibilitou aos cientistas “tratar a matéria como algo morto e inteiramente apartado de si mesma, vendo o mundo material como uma

vasta quantidade de objetos reunidos numa máquina de grande proporção”. Isto sem falar na herança racionalista e lógica que ainda hoje

marca a nossa forma de conhecer o mundo, como inspiração cartesiana que aspirava extinguir toda ilusão, erro, em busca da verdade única.

Uma problemática que não podemos subsumir desta discussão,

tão presente na obra de Foucault (2000), é a ruptura entre a episteme moderna e clássica, e a invenção da primeira como continuidade daquela e regime de verdade. A Grécia, como lugar de nascimento da Filosofia, constitui-se como multiplicidade de tradições, diálogos, influências. Em

38

suas viagens, os gregos tinham contato com os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus, com seus mitos, religiosidades e formas de vida (Chauí, 1995, p. 27). Mas o que chamamos hoje de pensamento

hegemônico ocidental é apenas uma vertente desta racionalidade, iniciada em Sócrates, Platão e depois Aristóteles, que não era única e nem

a mais complexa, eleita na Renascença, para inventar um tipo de pensamento abstrato, descontextualizado, que afasta o sujeito do mundo

e que se contrapunha ao pensamento medieval, conexo e interconexo, baseado nas chamadas similitudes (Foucault 2000), que era opressivo, por um lado, mas guardava relação entre o que existia. Como invenção do século XIX, a Ciência - que a partir da Renascença começa a utilizar

razão e técnica, e que não corresponde à racionalidade pura e

contemplativa do logos grego – em seu projeto hegemônico, inventa

tradições para sua legitimidade e deita suas raízes históricas na episteme grega, afirmando-se como verdade – do presente, do passado e do

futuro. Este regime de verdade, construção humana e produção de um tempo, tem se imposto tanto reescrevendo toda a tradição ao seu favor, apontando nos pensadores a gênese do seu pensamento, como

produzindo não-existências na forma de atrasos e ignorâncias (Santos 2000;

2004;

2007)

de

formas

de

conhecer

que

lhe

foram

contemporâneas, mas existem como subalternidades colonizadas. Isto evidencia, na história da ciência, uma construção e invenção ideológicas ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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de genealogias que suprimem a multiplicidade de tradições, e afirmando

um totalitarismo arbitrário, que não apenas aspira por hegemonia, como pela supressão de todas as outras possibilidades 3.

Outra perspectiva crítica é a de Santos (2003;2009) e Nunes

(2009), da proposição de um projeto epistemológico denominado “Epistemologias do Sul”.

A problematização epistemológica se assenta

em algumas constatações: que o colonialismo, para além de todas as

dominações a que se propôs, constituiu-se, sobretudo, uma dominação epistemológica, que produziu apagamentos e subalternidades de práticas

e de saber (Santos, 2009, p. 7); que a epistemologia enquanto projeto

epistemológico é indissociável da emergência e consolidação da ciência

moderna, já que tomou como modelo a ciência, que era uma das formas

de conhecimento a que se propunha avaliar (Nunes, 2009, pp. 17-218); a

epistemologia constituiu-se paradoxalmente, já que esta teve sempre

como

objetivo

a

conhecimento, o

identificação

e

do conhecimento

legitimação

de

uma

científico, e dos

forma

critérios

de de

demarcação da ciência em relação aos outros saberes (Nunes, 2009, p.

39

238); daí que, ainda segundo Nunes,

um programa como este não é capaz de reconhecer outros modos de

conhecer, a não ser para submetê-los a uma forma de soberania

epistêmica, que toma a ciência como modelo de toda a maneira verdadeira de conhecer (Nunes 2009, p. 238).

Nesta perspectiva, para Santos (2009, p. 10), “a epistemologia

dominante é, de fato, uma epistemologia contextual que se assenta numa

dupla diferença: a diferença cultural do mundo moderno cristão ocidental

e a diferença política do colonialismo e capitalismo”. Portanto, não se pode falar de epistemologia sem que se faça uma arqueologia ideológica desta noção e que é preciso buscar alternativas.

Santos (2009, p. 12) postula o “Sul” não apenas como um espaço

geográfico, mas como um “campo de desafios epistêmicos que procuram reparar os danos” epistemológicos históricos de uma epistemologia

capitalista que estabeleceu com o mundo uma relação colonial. E tendo total conhecimento do problema conceitual da palavra epistemologia,

busca inseri-la em outro referencial conceitual, pela instauração de

3

Numa perspectiva similar, Dussel (2005) discute e evidencia historicamente o eurocentrismo

moderno como invenção ideológica.

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interrogações impossíveis à luz de uma clássica epistemologia. Assim, as

“Epistemologias do Sul” podem ser definidas como

conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão

dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes chamamos ecologia dos saberes (Santos 2009,

p. 7).

O projeto “Epistemologias do Sul” constitui-se buscando novos

referenciais reflexivos, não centrados na ciência, mas no reconhecimento

da legitimidade de todos os saberes, práticas e conhecimentos que foram

vítimas dos “epistemicídios”, na recusa de um relativismo de que todas as ideias se equivalem e na constituição de um saber universal. Importante

aqui é que a ciência deixa de ser o critério de referência do saber e de seu rigor. As “Epistemologias do Sul”não constituem um programa filosófico alternativo (NUNES, 2009, p. 238), mas “um programa

40

alternativo de alternativas”, postulando “ecologias de saberes”, a todas as

formas de “soberania epistêmica”, que significa a proposição de um

diálogo horizontal entre os conhecimentos produzidos e existentes. Este diálogo é chamado de “ecologia” porque reconhece, como premissas, a

pluralidade de distintas formas de conhecimento (entre eles a ciência moderna) e a importância de um diálogo que não comprometa suas autonomias e nem seus estatutos de legitimidade.

Para Santos (1995, p.508), uma “Epistemologia do Sul” assenta-se

em três orientações: “aprender que existe o Sul”; “aprender a ir para o

Sul”; “aprender a partir do Sul” e “com o Sul”. É um programa que se

assenta numa concepção pragmática, que aponta para o mundo e suas

relações assimétricas, que crê na indissociabilidade entre conhecimento e

práticas sociais, que produzem múltiplas epistemologias. Tais postulados implicam na recusa de qualquer epistemologia geral. Outras

vertentes

críticas

ao

projeto

epistemológico

da

modernidade constituem as chamadas “epistemologias ecológicas”, ainda que não constituam uma escola formal de pensamento. Carvalho e Steil apontam, no campo das ciências humanas, com destaque para a

antropologia e a filosofia da ciência, Haraway (2003), através da noção de

coprodução entre humanos e não humanos; Ingold (2000) através da noção de agency do mundo não humano; Latour (2004) através de sua ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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noção de rede sociotécnica; Leff (2006), através de sua noção de

epistemologia ambiental;

Gibson (1979), através de condições de

possibilidade sustentadas pelo ambiente (affordance); Stengers (2002),

através de sua noção de ecologia da prática, esforço de compreender as

matérias das ciências de forma não reducionista. Eu acrescentaria mais

três: Santos (2004), através da noção das ecologias dos saberes; Morin,

através da noção de operadores para um pensamento complexo; e

Deleuze e Guattari (2004), através da sua noção de rizoma. Tais “epistemologias ecológicas” não constituem, para Carvalho e Steil (2009, p. 83), uma escola ou configuração estabelecida, mas uma convergência

de pensadores que assumem “referências ecológicas na estruturação de seus modos de conhecer”.

A importância das chamadas “epistemologias ecológicas” deve-se

ao fato delas possibilitarem a emergência de novas perspectivas e novos referenciais no cenário epistemológico no que diz respeito ao diálogo

socioambiental. Elas ensaiam formas de conhecimento distintas de uma

tradição objetivista da ciência cartesiana e kantiana, que dicotomiza

41

natureza e cultura, sujeito e objeto. Fundam uma perspectiva ética importante em termos antropocêntricos e biocêntricos. Carvalho e Steil (2009, p. 89) a formulam da seguinte forma

(...) estes pensamentos que chamamos de epistemologias ecológicas

oferecem algumas bases para os humanos reverem sua posição entre os

não

humanos:

nem

apartação

nem

assimilação,

mas

reconhecimento da semelhança e da diferença, ao mesmo tempo,

porque todos fazemos parte de uma mesma história comum, onde nos constituímos, de forma indissociável, como humanos e não humanos como convivas do mesmo mundo global e híbrido.

Não apenas se revê uma perspectiva cognitiva racional, mas se

repensa o lugar do sujeito do conhecimento no processo da vida, evidenciando que não há nada fora de nós que não faça parte de nós.

No entanto, um dos maiores desafios que se evidencia a partir do

campo dos processos de educação ambiental - numa perspectiva prática,

metodológica e política, mas, sobretudo, teórica, epistemológica e filosófica -, é colocar o próprio campo dos processos em reflexão. Neste campo, encontramos tendências das mais diversas que aspiram ao estatuto

ambiental,

em

forma

de

um

ambientalismo,

um

conservacionismo, um legalismo, um tecnicismo, um pedagogismo, práticas intra-sistêmicas na perspectiva de um capitalismo global, que ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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lidam com temas sem questionar os modelos de desenvolvimento

subjacentes, discursos e práticas alarmistas e moralistas; e também encontramos discursos e práticas críticas do ponto de vista do sistema do capital, que discutem os modelos de sociedade, e propõem saídas ao

nível de políticas públicas. Mas o que quase nunca se dá, nestes espaços

de encontro, é o debruçar coletivo sobre as premissas epistemológicas

deste discurso-prática, que tecem não apenas lugares do pensamento,

mas lugares no mundo, sociais e políticos. Não se pode falar de uma Educação Ambiental, mas de múltiplas Educações Ambientais. Cada uma

está a serviço de um projeto de mundo, de sociedade, de ser humano e de vida e não de outro. É tarefa deste campo explicitar tais projetos.

Ouvimos, comumente, que uma Educação Ambiental se assenta

numa perspectiva complexa de realidade e do conhecimento. Em termos

do discurso, podemos dizer que há um campo complexo do pensamento

em vias de constituição. Domina-se discursos, noções, princípios,

conceitos. Mas difícil tem sido encontrar lógicas e ensaios práticos

complexos, que lidam com a realidade como algo que se tece junto e

42

que, portanto, precisa ser compreendida nesta tessitura. Fala-se de

complexidade, mas se exclui, nos processos, dimensões essenciais da

existência – como fracasso, erro, frustração, limites, morte, desânimo,

incapacidade, depressão – reforçando dicotomias já sem sustentação, que são

expressão

de

um

processo

de

produção

de

subjetividades

“capitalísticas*” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 46) ou de um modelo

científico racionalista, em que res cogitansse contrapõe à res extensa, ou ainda, reforçando antagonismos que não cabem num pensamento complexo, dialógico e aberto à complementaridade.

No horizonte destas problematizações, a proposta deste ensaio,

referenciado por princípios epistemológicos que eu considero ecológicos, é postular a emergência de epistemologias complexas, afins a um pensamento e a lógicas complexas, que rompam com a ideia de uma

epistemologia geral e que corroborem com uma forma de conhecimento

que interconexa o que foi separado com o advento da ciência moderna.

Uma epistemologia no plural, que possa ampliar o cenário social e epistemológico, para dialogar com as formas de conhecimento que foram apagadas, subalternizadas, colonizadas. Uma epistemologia que eu designarei das relações e dos nexos, que possa reconectar discursos e práticas, na perspectiva do pensamento complexo de Morin, e clarear os

lugares a partir de onde se produzem tais projetos. Proponho uma

epistemologia, como diversidade das reflexões sobre o conhecimento, ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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mas, sobretudo, como exigência da produção de um saber e uma lógica complexas,

capazes

de

promoverem

múltiplas

inteligibilidades

e

sensibilidades, expressões de um pensamento complexo, que nos

restaurem a capacidade perceptiva e singular, de ler o mundo, de que nos

falava Paulo Freire (1985, p.13), mas em suas conectividades, contextos,

relações e nexos, que precede a qualquer discursividade e que nela aparece como continuidade.

Os princípios epistemológicos, que eu denomino ecológicos,

referem-se a algumas noções introdutórias do pensamento complexo,

postulado por Morin; à ecologia dos saberes, postulada por Santos, e à

lógica das multiplicidades (rizoma) de Deleuze e Guattari. Nesta pesquisa

buscarei dialogar mais profundamente com Santos, Deleuze e Guattari. Minha proximidade de Morin ainda vem sendo construída, o que ainda

não me permite um diálogo. Assumo tais autores e não outros, por uma questão

de

convivialidade

e

proximidade:

suas

referências

me

acompanharam tanto em minhas formações em Pedagogia e Psicologia,

como em anos de reflexão sobre vivências e experiências no seio dos

43

chamados Movimentos Sociais, numa perspectiva de práxis.

Algumas noções introdutórias do Pensamento Complexo de Edgar Morin A palavra complexidade vem de complexus, cuja origem latina

significa “o que é tecido em conjunto” (MORIN, 2008, p. 190). A noção de complexidade que, para Morin, veio inicialmente através do neurologista cibernético britânico Ashby, na perspectiva de “o grau de diversidade de um sistema” (MORIN, 2008, p. 200), constituiu-se em um “desafio ao pensamento” (2000, p.189) que, ao se deparar este com uma realidade que se tece conjuntamente e que não pode ser simplificada e nem reduzida, ou seja, não pode ser separada de um todo maior, contextual,

de que faz parte, necessita de outra forma de pensamento. Morin a

herdou de um mergulho nas teorias da informação, dos sistemas, da auto-organização e da cibernética. A complexidade dá-se conta de que o

todo e as partes se “entreproduzem” (2000, p. 245), que há um todo que é mais do que a soma das partes e que é menor que a soma das partes, visto que estas podem ser inibidas pelo todo (2000, p.225).

Ainda que para Morin a noção da complexidade tenha amadurecido

tardiamente, quando ele completava os cinqüenta anos de idade, ele reconhece, contudo, que se encontrava enraizada nele desde a infância e

se caracterizava por uma dificuldade infantil de escolher, ou seja, de ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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eliminar,

e

que

se

manifestou

em

sua

“cultura

de

múltiplos

componentes”, que abarcava saberes literários, filosóficos, históricos, sociológicos, políticos e econômicos (MORIN, 2008, p. 193-194).

Para cumprir o que chama de exigências da complexidade, que se

apresenta como um problema geral (MORIN, 2008, p. 191), Morin postula princípios

para

uma

“religação”

dos

saberes.

Três

deles

são

que

são

fundamentais: o da “dialógica”, inclusiva, que busca a complementaridade entre

duas

noções

antagônicas

e

excludentes,

mas

indispensáveis e indissolúveis para a compreensão de uma mesma realidade

(2000,

p.204),

e

que

se

inspira

no

princípio

de

complementaridade de Niels Bohr e na filosofia de Pascal; o da

“recursividade”, que postula um “círculo gerador no qual os produtos e os

efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz” (2000, p.204); e o “hologramático”, que postula o paradoxo de alguns sistemas onde não apenas a parte está no todo, mas também o todo está na parte.

44

das

Morin chama a atenção para a importância das ciências da Terra e

ciências

interfecundação

ecológicas, das

que

disciplinas

produziram

separadas”

um

“reencontro

(2010,

p.

245),

e

a

que

“ressuscitam o Cosmo, a Natureza e o Sujeito humano” (2010, p.243),

que trabalham com objetos que são “interlocuções”e que desenvolvem

uma cultura, portanto “multidimensional” e uma “policompetência” (2000, p. 35-36), que nos “permite dialogar com os nossos problemas e as

nossas necessidades” e que “conseguiu ultrapassar os defeitos mais gritantes da superespecialização”.

Em sua obra, O Método, composto por 6 volumes, Morin identifica

o cerne do paradigma do que chamou conhecimento complexo e que nasce de dois princípios básicos: a “religação” como um princípio cognitivo permanente, e a “dialógica” como uma forma de dialética, cujo

objetivo é novamente religar as contradições que a lógica clássica rejeita (MORIN, 2008, p. 2009).

A Ecologia dos Saberes de Boaventura de Sousa Santos A “ecologia dos saberes”, de Santos, nasce no contexto de seu

projeto de investigação epistemológica. Santos constata, através de seu

projeto, que a experiência social mundial é muito mais vasta do que se supõe e a ciência conhece, que há um desperdício enorme desta

experiência social mundial e que, para combater este desperdício, ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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precisamos não de outra ciência, mas de outra racionalidade (2004, p. 778).

Santos denomina de “razão indolente” (SANTOS, 2003, p. 779), a

forma como a racionalidade tornou-se hegemônica no ocidente, e caracteriza algumas formas como ela se manifesta. Uma delas é a “razão

metonímica”, que assim se denomina porque toma a parte pelo todo

(2004, p. 782; 2007, p. 25). Constituindo-se apenas como uma parte, a Modernidade fez-se totalidade, fazendo-se referência para todos os

outros modos de vida e extinguindo qualquer possibilidade de uma

dimensão autônoma à sua, externa, de um fora que lhe escape. Isto se revela, sobretudo, na consolidação das dicotomias, que “combinam, de forma elegante, simetria com hierarquia”. Por trás de uma relação

horizontal e simétrica, há uma verticalidade hierárquica, produtora de subalternidades e assimetrias.

Para Santos (2007, p. 28), uma “sociologia das ausências” é, pois,

um procedimento sociológico, transgressivo, insurgente e de invenção

epistemológica, cuja finalidade é expandir o presente, que foi contraído,

45

para evidenciar que a realidade não pode ser reduzida ao que existe e ao

que é hegemônico, porque o que não existe foi produzido, de forma

ativa, como não-existência ou como alternativas não credíveis. Nas palavras de Santos, “o objetivo da Sociologia das Ausências é transformar

objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SANTOS, 2004, p. 786).

Santos denomina de monoculturas as lógicas através das quais a

razão indolente transformou as experiências sociais em não-existências, criando as cinco categorias de ausências: “o ignorante, o residual, o

inferior, o local, o improdutivo”(2007, p. 32). A “ecologias dos saberes”

desponta como os procedimentos sociológicos insurgentes, capazes de tornar presentes as ausências, invisibilizadas e não críveis. São cinco as

Ecologias: a dos saberes, a das temporalidades, a do reconhecimento, a

da ‘transescala’ e a das produtividades – todas formas de tornar

presentes os apagamentos em relação aos saberes, às temporalidades, aos reconhecimentos recíprocos, à dimensão particular e local e às diferentes formas de produtividade.

Mas, como conceito mais amplo, a “ecologia dos saberes” desponta

como a base epistemológica do diálogo entre a diversidade das formas de conhecimentos e como recusa de qualquer epistemologia geral. Em sua

postulação encontram-se como premissas duas ideias centrais: a de uma diversidade epistemológica do mundo e a de uma pluralidade das formas ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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de conhecimento para além do conhecimento científico (MORIN, 2009, p.

45). Santos a intitula como “contra-epistemologia”, tendo em vista que ela emerge de dois fatores: um novo diálogo periférico no mundo, na

perspectiva de uma globalização contra-hegemônica, com povos e

culturas que mantém práticas cotidianas marcados por conhecimentos não científicos e não ocidentais; e a pluralidade de alternativas que vêm

sendo gestadas mundialmente e que não podem ser agrupadas sob uma

alternativa geral. Neste contexto, uma “ecologia dos saberes” procura dar

uma consistência epistemológica a este pensamento “pluralista e propositivo” (SANTOS, 2009, p. 47). assim

Na “ecologia dos saberes” cruzam-se conhecimentos e ignorâncias, como

limites

internos

e

externos

ao

conhecimento,

e

a

incompletude de toda forma de conhecimento. Admite-se como parte do

conhecimento de alguns saberes o esquecimento de outros. As ignorâncias não são compreendidas como uma forma desqualificada ou

como estágio original a ser superado, porque não há a noção de que o

que se conhece vale mais do que aquilo que não se sabe (SANTOS, 2009,

46

p.47). Da mesma forma, a busca por credibilidade dos saberes não-

científicos não engendra um descrédito nos conhecimentos considerados científicos (SANTOS, 2009, p. 48).

A “ecologia de saberes” constitui um diálogo horizontal entre a

diversidade epistemológica e social das experiências do mundo, que fazem fugir a ciência como referência, ainda que não implique no

descrédito científico. Por apostar na diversidade epistemológica do mundo e na diversidade das formas de racionalidade, para além do

conhecimento científico, o conceito de “ecologia dos saberes” constitui

uma referência importante no debate epistemológico e na proposição de

novos referenciais epistemológicos afins ao campo dos processos de educação ambiental.

A Teoria do Rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari No horizonte das múltiplas conexões, Deleuze e Guattari (1995)

também pensam a perspectiva da realidade como multiplicidades. Uma multiplicidade

se

aproxima

de

um

rizoma,

diferentemente de raiz e radícula (1995, p. 9):

tubérculo,

bulbo,

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,

mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o ver ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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ser, mas o rizoma tem como tecido a conjunção e...e...e... Há

nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).

A lógica do rizoma vem questionar a lógica arborescente e

genealógica do “Uno”, do ideal de totalidade. Caracteriza-se por princípios de conexão e heterogeneidade, demultiplicidade, de ruptura a-

significante, de cartografia.Um rizoma “não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda”(1995, p. 32),seguindo a forma de platôs.Um rizoma é um mapa, aberto, com múltiplas entradas,

reversível, mutável, em permanente construção. Não é objeto de reprodução. Tem a ver com antigenealogia e antimemória. “É um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General [...]

unicamente definido por uma circulação de estados [...], todo tipo de

devires”(1995, p. 3). Mas uma definição é recorrente: a lógica do rizoma, longe de simples, é extremamente complexa, nas palavras mesmo de Deleuze e Guattari:

47

Por que é tão difícil? É desde logo uma questão de semiótica

perceptiva. Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de

cima para baixo, da esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda. (1995, pp. 34-35).

Já François Zourabichvili (2004, p. 100) acrescenta sobre esta

dificuldade-desafio:

Não nos iludiremos com o jogo aparentemente gratuito ao qual

convida o método do rizoma, como se tratasse de praticar

cegamente qualquer colagem para obter arte ou filosofia, ou

como se toda diferença fosse a priori, fecunda, segundo uma

doxadifundida. (...) Mas o rizoma é tão benevolente quanto

seletivo: ele tem a crueldade do real, e só cresce onde efeitos determinados têm lugar.

Godoy (2008, p. 71) identifica no pensamento de Deleuze e

Guattari “noções de uma certa ecologia”, no sentido de “funcionarem nas vizinhanças umas das outras”, de acoplamentos entre indivíduo e meio. Não uma “ecologia maior”, que se fixa em um conservacionismo ou na

conformação a valores transcendentes, mas a “menor das ecologias, aquela que concerne aos modos imanentes de habitar” (2008, p. 73), à

invenção de mundos, ao abandono da crença em verdades, e que

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experimenta as potências da vida, sem receios, fazendo-as expandir em direção a outros e novos sentidos e direções (2008, p. 82). Por uma Epistemologia dos Nexos

No horizonte da afirmação das múltiplas epistemologias e da

inviabilidade de uma epistemologia geral, proponho, inspirada nos

princípios acima descritos, uma epistemologia das relações e dos nexos, plural, como uma exigência da produção do saber e de uma lógica complexos, capazes de conceberem o mundo e a vida em sua

complexidade irredutível, em seu conjunto de relações imprevisíveis, de

afetos recíprocos e, por isso, éticos, produtores de novos nexos e sentidos imanentes, num jogo de abertura a múltiplas inteligibilidades e sensibilidades, que foram produzidas como não-existências,expressão de um pensamento complexo.

Santos (2009, p.49) postula que as ciências da complexidade

sabem bem questionar a distinção sujeito/objeto, mas, ao fazê-lo,

confinam-na ainda às práticas científicas. No entanto, sinto falta, no

projeto “epistemologias do Sul”, de uma maior abertura no conjunto das

48

relações, para além de experiências sociais e históricas, mas também

para outras dimensões relacionais, invisibilizadas, como os seres não

vivos, os não humanos, o próprio meio ambiente, a Natureza, a Terra. Nisto, uma epistemologia das relações e dos nexos se distingue das

“epistemologias do Sul”, embora reconheça a importância de seu referencial. das

Uma epistemologia das relações e dos nexos distingue-se também “epistemologias

ecológicas”,

sobretudo,

em

função

da

intencionalidade das últimas. Embora estas levem em conta as relações

específicas e intencionais entre os humanos e não humanos, entre os

humanos e o ambiente, uma epistemologia das relações e dos nexos refere-se à Vida, em vários sentidos e direções, trazendo para o diálogo

todas as dimensões da existência, e refere-se à Educação, antes mesmo

de ser ela uma Educação Ambiental. Refere-se à invenção de uma

multiplicidade de possibilidades de pensar, sentir, viver criar, produzir e de se relacionar com elas.

Embora a epistemologia das relações e dos nexostenha como

referência os princípios dos autores, acima citados, ela também se caracteriza, sobretudo, pela forma como enfrenta alguns desafios apresentados e encontrados nestes referenciais.

O primeiro grande problema está bem formulado por Santos

(2000; 2004; 2007), com a afirmação de um “desperdício da experiência ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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social mundial”, que se dá através da produção de não-existências, em

favor de um modelo de mundo que, de hegemônico, faz-se passar por

único e por melhor.

Santos nos adverte que a lógica colonial que atravessou a

epistemologia hegemônica produziu “epistemicídos”, que são a morte de conhecimentos

alternativos

(2004,

p.

786;

2007,

p.

29).

Uma

epistemologia das relações e dos nexos leva em conta esta problemática

como algo fundamental. À questão da complexidade da realidade que se caracteriza como rede e teia de relações precedem outras questões:

Quem se relaciona? Com quem se relaciona? O que se relaciona? Para que se relaciona? Como se relaciona? Tais questões inauguram um horizonte ético

e

político

intencionalidades.

das

relações,

que

precedem

o

conteúdo

das

Os “epistemicídios” produziram ausências e não-existências,

lugares

perdidos,

silenciamentos,

não-lugares,

impossibilidades,

desconexões,

invisibilidades,

subalternidades,

esvaziamentos

e

mortes, tanto no horizonte cognitivo-epistemológico, da produção e

49

reconhecimento dos saberes, como no horizonte das práticas sociais. E as territorialidades que hoje se encontram e reivindicam formas de relações constituíram-se sobre desterritorializações.

Uma epistemologia das relações e dos nexos tem uma percepção

crítica de que as realidades não se encontram simetricamente à

disposição para relações e que nem constituem matérias-primas a priori de projetos emancipatórios. Na perspectiva de Deleuze e Guattari,

poderíamos dizer que há rizomas que foram suprimidos e estão faltantes

no conjunto da realidade e que uma epistemologia das relações e dos nexos precisa promover múltiplos nascimentos concomitantes: o de uma

lógica e de uma forma de encontrar, que produz existências autônomas e

singulares onde predominavam não-existências e alternativas nãocríveis.

Como

pontes,

reconectam

arquipélagos

que

foram

desapropriados dos continentes, conferindo-lhe legitimidade como

presença, mas sem a pretensão e a intencionalidade de reintegrá-los ao continente decadente, máquina de produção de um si mesmo (GODOY,

2008, p.34). Se foram no seio de relações e de desencontros que ocorreram “epistemicídios”, será no seio de relações e encontros que o

que foi produzido como não-existência pode recuperar a legitimidade de uma presença.

Na perspectiva ainda dos “epistemicídios”, Santos (2004, p. 813-

814) nos fala de uma “justiça social global” e de uma “justiça cognitiva ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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global”. Esta prescinde daquela. Justiça que não é projeto, mas condição

de relação. E esta produção de sentido ao nível da justiça dá-se através

de um “Trabalho de Tradução*”, que consiste num procedimento “intelectual, político e emocional” (1995, p. 808) de criar “inteligibilidades

recíprocas” entre as experiências sociais que são produzidas no mundo, de saberes e práticas, rompendo com a noção de uma “Teoria Geral construída e consolidada hegemonicamente” (1995, p. 802) pelas ciências sociais, produtora de um sentido ou de uma justiça.

Juntamente com o conceito de Trabalho de Tradução, Santos traz

outro, de extrema importância a uma epistemologia das relações e dos

nexos denominado “Zonas de Contato”. Essas “zonas de contato” são definidas

como

normativos,

“campos

práticas

e

sociais onde diferentes

conhecimentos

se

mundos-da-vida

encontram,

chocam

e

interagem” (1995, p. 808), não como totalidades, mas como diferenças parciais e selecionadas. São os campos onde se dão os Trabalhos de Tradução não prévios. Imanentes, autônomos e seletivos em relação “ao

que se traduz, entre o que se traduz, quando se traduz, quem traduz e

50

como se traduz” – mas sempre recíprocas.

Um trabalho de tradução pode restaurar uma justiça social global e

cognitiva global porque possibilita conexões e nexos que são construídos

reciprocamente, superando assimetrias, em tempos e ritmos construídos coletivamente, com os conteúdos que se quer colocar em relação e o

mais importante: acontecem “nas zonas fronteiriças, terras-de-ninguém, onde as periferias ou margens dos saberes e das práticas são, em geral, as primeiras a emergir” (1995, p. 809).

Imagino que um desafio àepistemologia das relações e dos nexos

seja o de inventar estes campos sociais, inusitados, abertos a novas dinâmicas, novas formas de envolvimento, de sensibilidade, de fala e de

escuta, onde multiciplicidades se encontram e inventam a si mesmas e a

novas formas de vida e modos de existência.

Conexões e Nexos: o desafio da produção de sentido Ao desafio dos “epistemicídios” acrescenta-se outro desafio, não

menor:

o

lugar

da

dimensão

política,

da

dimensão

responsabilidade das relações e da criação de nexos.

ética,

da

Se o universo quântico se nos aparece como indeterminado ou

incerto, como postulou Werner Heisenberg, no campo social, por mais que estejamos abertos a uma imprevisibilidade, sabemos que há outras ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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dimensões em jogo, marcadas por assimetrias de todas as ordens. Sendo assim, as relações são também determinadas social, econômica, cultural e politicamente.

A perspectiva dos “epistemicídios”, postulada por Santos, evidencia

que as relações são marcadas também por seletividade, por um senso de responsabilidade, de ética e de sentido.

Deleuze e Guattari trazem uma questão àepistemologia das

relações e dos nexos, exatamente na medida em que concebem as conexões rizomáticas como “a-significantes”.

Tal concepção pode ser

entendida, mesmo que não aceita, na perspectiva imanentista dos

autores, que rompem com uma noção de totalidade (perdida ou por ser feita), de unidade, da dimensão transcendental, metafísica, previamente determinada em relação a uma origem ou finalidade.

Mas uma epistemologia das relações e dos nexos não abre mão de

enfatizar a importância dos sentidos imanentes que despontam no

exercício dos próprios encontros, que não são prévios nem como ponto

de partida nem como finalidade, apenas como imanência e como arranjos

51

provisórios. Daí a importância dos nexos nas conexões: imanentes,

provisórios, novos e outros, descortinando a possibilidade destas virarem encontros recíprocos. Sem nexos não há como se estabelecer relações

capazes de atribuir subjetividade à realidade, relações de parentesco e de identificação.

A Reciprocidade como processo de emergência do legítimo Outro na relação

Relações e conexões supõem reciprocidade como forma de

expressão da legitimidade de outro. Uma epistemologia das relações e dos nexosleva em conta a produção de existências e de presenças, e

entende a reciprocidade como a afirmação de um outro (humano e não-

humano), legítimo. Como nos diz Maturana (2005, p. 33) para que haja fenômeno social “é preciso que o outro seja constituído como um

legítimo outro na convivência”. Nesta perspectiva, numa epistemologia

das relações e dos nexosentendo que não seja possível estabelecer conexões entre sujeitos e/sobre objetos, mas sempre sujeito-com-

sujeitos. A história nos mostra que os seres humanos entenderam as

relações com a natureza como relações sobre o outro, de domínio, exploração e pilhagem, e não interação, respeito mútuo, cooperação.

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Boff (1995) nos traz alguns relatos de comunidades originárias,

que evidenciam outra forma de se relacionar, levando em conta não

apenas o ponto de vista de um sujeito sobre objetos, mas de sujeitoscom-sujeitos. Ele destaca uma sabedoria que é feita de “observação do

universo e ausculta da Terra”:

Para os aimarás bolivianos, o sábio é aquele que aprende a ver atentamente, que esquadrinha, que vê longe, que olha as coisas por todos os lados e a procura a ver dentro.

Neste contexto, ele cita o testemunho de um indígena: Os grandes recursos e minas de ouro, ferro, cobre, carvão e

elementos como nitrogênio, fósforo, potássio e outros são órgãos internos da Mãe Terra; são os pulsos e as batidas do coração da

Mãe que faz produzir as árvores e as plantas para alimentos, roupas, habitações e medicinas a todos os seres da Terra. Por

conseguinte, não se deve abusar e maltratar as entranhas da Mãe Terra.

52

Santos (2009) também nos traz relatos, em sua Sociologia das

Ausências, da diferença de formas de conceber o mundo pelos camponeses, de comunidades africanas e de comunidades indígenas da

Colômbia e do Brasil. Em um de seus exemplos, chama a atenção para a diferença e a importância dos tempos estacionais destes grupos. Para

algumas comunidades africanas, a contemporaneidade experimentada

com os antepassados, que participam de todos os momentos da vida

presente da comunidade, é algo fundamental. Ele observa o mesmo fato

com as comunidades indígenas “ticuna”, que vivem nas selvas do Brasil e da Colômbia.

Boff nos fala de um tipo de relação com a terra e seus elementos,

como sujeitos dotados de vida, por serem expressão do ventre de Pacha Mama. E Santos nos fala da relação com os mortos, com aqueles que já se foram, mas continuam presentes e vivos, integrados à comunidade.

Viveiros de Castro (2002, p. 347), em seus ensaios de antropologia

nos descortina estas possibilidades, ao nos apresentar a perspectiva da

cosmovisão ameríndia, mais especificamente xamânica, que se constituiu na contramão da nossa cultura ocidental. Para Viveiros de Castro (2002, p. 358-360), na modernidade ocidental, “conhecer é objetivar” e poder

discernir, no objeto, o que lhe é intrínseco, do que aquilo que foi indevidamente projetado que diz respeito ao sujeito. Ele entende que ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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conhecer, desta forma, é “dessubjetivar”, já que a finalidade é reduzir o mínimo o sujeito no objeto. E que tanto objeto quanto sujeito só podem

ser conhecidos através de processos de objetivação, fazendo com que o

outro seja sempre a coisa. Para o xamanismo, entretanto, “conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”,

seja algo ou alguém, possibilitando a revelação de um máximo de intencionalidade, possibilitando que o “Outro seja sempre a pessoa”. Para

a epistemologia xamânica, um “objeto é um sujeito incompletamente

interpretado. Tomar o ponto de vista daquilo que quer ser conhecido” significa

conferir-lhe

legitimidade,

intencionalidade,

subjetividade,

presença. Nesta perspectiva, há possibilidade de se estabelecer relações de fato.

Epistemologia das relações e dos nexos: conexões entre totalidades ou partes?

Há uma questão que interessa a uma epistemologia das relações e

53

dos nexos, que advém do projeto epistemológico de Morin, consolidado

na elaboração de O Método 4 - que se afirma “simultaneamente científico,

filosófico e literário” (2010, p.235), não como metodologia, mas como

“exigências a serem satisfeitas para tratar as complexidades” (2010, p.242) – e que se ancora no “princípio de religação”: do particular ao

global, do objeto ao contexto, do objeto ao sujeito, do saber especializado à multiplicidade de saberes, do abstrato ao concreto.

Ao falar de “religação”, Morin denota um movimento de retorno,

resgate a algo que já foi ou é Uno, insinuando dois problemas: a existência de uma totalidade una e de um retorno a um estado originário

ou puro; e, na perspectiva de Santos, um projeto de hegemonização do

mundo, que se intitula totalidade-referência e transforma outras totalidades distintas em suas partes.

De um lado, Morin coloca-se contra esta lógica: Inútil buscar um fundamento absoluto e indubitável. É isso que devemos saber desde Nietzsche. Precisamos eliminar a metáfora

arquitetural que necessita de alicerces para construir um edifício. Devemos utilizar a metáfora musical, na qual a sinfonia adquire seu

Compõem O Método 6 volumes: OMétodo I: a natureza da natureza, O Método II: a vida da vida, O Método III: o conhecimento do conhecimento, O Método IV: as ideias: habitat, vida, costumes, organizações, O Método V: a humanidade da humanidade: identidade humana e O Método VI: ética.

4

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elã nela mesma e constrói-se a partir de seu próprio dinamismo (MORIN, 2010, p. 242).

Em outra passagem, dirá, contudo: É verdade que existe no espírito de religação uma aspiração à

totalidade. Mas a consciência da desordem (os aleatórios, as colisões,

as insuficiências do determinismo), a consciência das incertezas, a consciência do inacabamento do saber, a consciência dos limites da

mente humana são antídotos e antagonistas da aspiração à totalidade.

Apropriei-me e integrei em mim a expressão de Adorno: A totalidade

é

a

não

verdade.

Assim,

existem

em

mim

conflito

e

complementaridade entre a aspiração à totalidade e a impossibilidade

da totalidade. Essa é a vida dialógica intrínseca ao espírito da complexidade (MORIN, 2010, p. 213).

Talvez

todos

nós,

inclusive

Deleuze

e

Guattari,

sejamos

atravessados por este conflito e complementaridade, de aspiração à totalidade, de negação da totalidade, de impossibilidade de totalidade e

de liberação de qualquer totalidade .Em Deleuze e Guattari talvez a

54

impossibilidade tenha ares de profunda rejeição. Contudo,

a

perspectiva

complexa

engendra

a

dúvida,

a

incompletude do sabere, sobretudo, a limitação das possibilidades da mente humana(MORIN, 2010, p. 242). Nela, sabemos que o conhecimento

“comporta incessantemente um risco de erros e ilusões” (Morin 2010, p.

232), e, talvez o mais importante, a possibilidade de superarmos a

dicotomia, integrar princípios aparentemente antagônicos e entendê-los na lógica de uma complementaridade.

Santos (1995, p. 801) nos oferece a via do meio, entre a

“identificação de novas totalidades” e a tentativa de “buscar novas formas

de pensar essas totalidades”. Para ele, importa respondermos a seguinte questão:

Se o mundo é uma totalidade inesgotável, cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o que significa que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como

totalidades. Isto significa que os termos de uma qualquer dicotomia têm uma vida (pelo menos) para além da vida dicotômica.

O pensamento complexo de Morin nos chama a atenção no

aspecto recíproco, muito olvidado, da relação totalidade-partes: uma totalidade é maior que a soma das partes, mas também pode ser menor,

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no sentido de que as partes, numa relação com um todo manifestam-se de formas não previsíveis. Diz Morin (2010, pp. 62; 68)

Os princípios da epistemologia complexa são complexos: não existe

um trono, não existem dois tronos; não existe absolutamente nenhum trono (...) mas pluralidade de instâncias. Cada uma dessas instâncias é decisiva; cada uma delas é insuficiente.

Totalidades e/ou partes... não é esta a questão que toca uma

epistemologia dos nexos, que, seguindo as pegadas de um pensamento complexo, não se ocupa mais das dicotomias inauguradas pela

Modernidade e bem retratadas na forma de uma razão indolente, mas das

relações dialógicas e complementares que as dissolvem.

A uma epistemologia das relações e dos nexos, como expressão de

um saber e de uma lógica complexas, cabe o desafio de, como linhas de fuga, tocar os territórios para aberturas permanentes, na forma de dês

territorializações e de reterritorializações, sempre provisórias, para que possam multiplicar e inventar modos de sensibilidade, de criatividade, de

55

relação e de produção, em sintonia com o que afirma Godoy (2008, p. 46).

Se o mundo é composto por forças em relação, não há um sentido

único a ser desvelado por uma razão privilegiada, mas tantos sentidos

quanto forem as configurações de forças das quais derivam: múltiplas perspectivas e interpretações que, ao contrário de afirmar a identidade

da vida e da experiência, afirmam a diferença como aquilo que as relaciona.

Uma epistemologia das relações e dos nexos prescinde e pode

redimensionar os discursos e práticas dos campos dos processos da

educação ambiental, e da ciência em geral, potencializando a vida

humana naquilo que ela pode ter de singularidade e criatividade, inaugurando outras questões, que perpassam desde os sentidos

emocionais, existenciais e psíquicos, até os teóricos, filosóficos e técnicos, desembocando nos políticos e históricos e espirituais. Quiçá tais campos, e a própria ciência, com suas temáticas diversas e recorrentes –

efeito estufa e aquecimento global, desmatamento, elevação no nível dos

oceanos, mudanças climáticas, transgênicos, poluição, produção de lixo, entre outras – possam situar este conjunto de questões a muitos outros,

mais amplos, todos imprescindíveis à Vida, esta que significa muito mais do que sobreviver e do que a sobrevivência do planeta (GODOY, 2008, p. 77).

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Nas pegadas de Santos (1995, p. 508) e parafraseando o seu

postulado, concordo que uma epistemologia das relações e dos nexos assenta-se em três orientações: aprender que a vida são multiplicidades relacionais; aprender a se situar no nível das relações e nexos; aprender a partir dos nexos e com os nexos.

Para finalizar, podemos nos perguntar como poderá se dar, num

processo pedagógico, formal ou informal, no caso aqui, social, uma

práxis comprometida com uma epistemologia das relações e dos nexos. Como podemos conferir conexões com nexos a tudo o que foi separado, fragmentado, dicotomizado? Como se dá um processo em que o

chamado sujeito do conhecimento identifica relações com outros sujeitos, que nunca são objetos, e cujas relações engendram reciprocidades

cognitivas? Um processo em que uma cultura tece relações com outra, sem a pretensão de subsumi-la?

Se eu não iniciasse o texto com a poesia de Manoel de Barros,

certamente teria iniciado com Freire (1985, p.11-24), no texto “A

56

importância do ato de Ler”, escrito para a abertura de um Congresso de Leitura. O mais brilhante no texto é que o autor busca a leitura como

experiência existencial. Ele poderia ter feito um tratado sobre o ato de

ler, mas optou por uma descrição literária e poética de sua infância

distante e descreveu como se deu o ato de ler no seu mundo particular,

que precedeu à Escola e qualquer Educação formal:

Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife,

rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais

dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de

minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei.

Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de

minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele

contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o

fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam

numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles, nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.

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Freire nos fala de um mundo “perceptivo” como o mundo das

“primeiras leituras”, um mundo que o experimentava e aumentava nele a

capacidade de experimentar, um mundo cujos “textos”, “palavras” e “letras”se encarnavam nos aspectos da vida e eram apreendidos por relações e conexões, repletas de nexos:

Os “textos’, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam

no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-

vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores

sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões,

relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras” as “letras” daquele

contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do

céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no

corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-

espada verde, o verde da manga-espada inchada: o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da

manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o

desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o

57

seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolegar.

Na

memória

poética

e

infantil

de

Freire

as

relações

de

compreensão entre ele e o mundo iam se dando também através de

relações com multiplicidades infinitas de visões, formas, de sons, de movimentos, de cheiros, de toques, e cores, de estações, de elementos da natureza. E também com singularidades e humores:

Daquele contexto faziam parte igualmente os animais – os gatos da

família, a sua maneira manhosa de enroscar-se nas pernas da gente, o seu miado, de súplica ou de raiva; Joli, o velho cachorro negro do meu pai, o seu mau humor, toda vez que um dos gatos incautamente se

aproximava demasiado do lugar em que se achava comendo e que era seu – “estado de espírito”, o de Joli, em tais momentos, completamente diferente do de quando quase desportivamente perseguia, acusava e matava um dos muitos timbus responsáveis pelo sumiço de gordas galinhas da minha avó.

A descrição de seu primeiro mundo é, como ele mesmo diz, uma

arqueologiada compreensão de um ato complexo, o de ler (FREIRE, 1985,

p. 20). Além da natureza, dos animais, e suas múltiplas nuances e relações, todas imediatas, ele ainda fala dos adultos:

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Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro

lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas

crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar.

Desta alfabetização perceptiva e complexíssima flui, espontânea e

nunca mecanicamente, a leitura da palavra, como alfabetização formal. Ele nos dirá:

A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa, à sombra das

mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.

Talvez o aspecto mais rico deste processo esteja em uma própria

percepção de Freire, no que diz respeito ao processo de uma infância:

58

Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre

fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um

racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais.

Freire, ao descrever o processo de “leitura” de seu primeiro mundo,

que antecede a qualquer leitura da palavra, de uma aprendizagem significativa que se dá na imanência ou no pragmatismo das relações de

um mundo concreto ou de um mundo de relações concretas, fala do

conhecimento, como um processo humano complexo de múltiplas possibilidades, que passa pela percepção, que passa pelo que se vê e se

aprecia; pelo que se toca e afeta; pelo que se degusta, concreta e

simbolicamente; fala do olfato como uma das formas de se conhecer que mais rapidamente atinge o cérebro e o sistema límbico, responsável pelas emoções; fala do que se ouve, de uma forma que a vida se nos apresenta em forma de vibrações; fala, enfim, do que atravessa e encharca o mundo

dos afetos e que depois flui no sentido de uma racionalidade e cognição

formal. Ao afirmar que a “leitura do mundo precede à leitura da palavra”, Freire nos recorda que a complexidadefaz parte da trama da vida e desafia o pensamento. Perceber as relações e os nexos da própria vida e

de suas diferentes expressões e manifestações são o desafio que os ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

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campos dos processos de educação ambiental têm assumido e que possibilita, no dizer de Morin, o reencontro e a interfecundação da ciência, com suas disciplinas separadas, expressão da integralidade do saber.

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ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

A POSSIBILIDADE DE SE REFUNDAR UMA EPISTEMOLOGIA DAS RELAÇÕES E DOS NEXOS | MARISTELA B. C. DE MELLO


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | ABRIL - 2012| P. 28-61

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ARTIGOS | A CONTRIBUIÇÃO DO CAMPO DOS PROCESSOS DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ÀS CIÊNCIAS:

A POSSIBILIDADE DE SE REFUNDAR UMA EPISTEMOLOGIA DAS RELAÇÕES E DOS NEXOS | MARISTELA B. C. DE MELLO


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“O caboco velho, antigo, sabe brincar. Vai respeitar!”: A diversidade dos rituais espirituais na brincadeira do Maracatu Baque solto/Rural

Sévia Sumaia Duarte da Silva Vieira

Mestra em Antropologia (2003) e Bacharel em Ciências Sociais (1999) pela UFPE.

62 1

1. Introdução Nasci e cresci lá em Nazaré da Mata. Município da Zona da Mata

Norte de Pernambuco, região de origem da brincadeira do maracatu baque solto/rural. No ano de 1997 cheguei no Maracatu Cambinda Brasileira, era eu “a menina da rua que gosta de maracatu”, e no terreiro

da Cambinda descobri a antropologia, aprendi a pedir licença aos mestres e caboclos da jurema, protetores espirituais da brincadeira.

Desde essa época em que os “folgazões” de maracatu diziam: “a

gente vai prosear assunto de maracatu”, e passaram a dizer: “vou dar uma entrevista”, do interior aos morros e altos de Recife, permaneceu o comentário freqüente: “maracatu é um brinquedo de muito segredo”. Mas que danado de segredo é esse? Indaguei.

À medida que fui

adentrando no universo da brincadeira e me apropriando de seu

vocabulário próprio, ao comentar sobre o assunto “preparo” de maracatu,

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os “folgazões” sorriam, silenciavam e depois falavam em meio ao tempo acadêmico e o tempo da tradição.

Através da observação participante fiquei sabendo das consultas

na mesa branca da jurema e o sentido de proteção para a brincadeira. Seria este seu legado espiritual de origem? E o que dizer da jurema preta?

Disseram-me apenas que “a preta é que dá quentura! Aí vai outras erva”. Dando continuidade as buscas de outras pistas dos chamados segredos de maracatu, falaram-me que as madrinhas e padrinhos espirituais - que

se convencionou a chamar mãe e pai de santo - são procurados pelos

folgazões... E na “mesa de trabalho da casa espírita”, seguem as consultas com pedido de proteção para si próprio e o maracatu como um todo brincar.

Quando realizei o estudo comparativo entre o Maracatu Rural

Cambinda Brasileira e o Maracatu de Baque Solto Leão Brasileiro 1, a pesquisa de campo evidenciou que, dos canaviais à capital, quase todo

maracatu que se preza faz preparo: resguardo sexual, banhos de descarrego e de cheiro à base de diversas ervas, cravo na boca, charuto,

63 62 1

orações, e objetos os mais variados são assentados para receberem o

“calço”. Nas consultas espirituais, além das fumaçadas de cachimbo e

charuto, também são prescritas pelos mestres e caboclos da jurema, “aguações” de sal grosso e defumadores, receitas que trazem uma

variabilidade de fórmulas - misturas com as ervas da jurema - de acordo com a necessidade individual e coletiva do maracatu.

O foco deste ensaio etnográfico 2 é o ciclo da brincadeira e seus

preparos espirituais, ou seja, o “calço” individual e coletivo que costumam

ser realizados tanto para as sambadas de maracatu quanto para as apresentações da brincadeira durante o período do carnaval. Mas para situar o leitor no universo mágico religioso das brincadeiras aqui

etnografadas - Maracatu Rural Cambinda Brasileira e do maracatu de

Baque Solto Leão Brasileiro - apresentarei um breve resumo sobre suas histórias de origem, trajetórias e espiritualidade.

1

Este estudo comparativo resultou em minha dissertação de mestrado intitulada “Dos Canaviais à

Capital: cabocarias de flecha, maracatus de orquestra, baque solto, rural...”, uma etnografia que versa sobre religião, economia e política. 2

Este ensaio etnográfico é baseado em um dos capítulos de minha dissertação de mestrado

intitulado “Maracatu: que danado de segredo é esse?”

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2. Origem e herança espiritual das brincadeiras O Maracatu Rural Cambinda Brasileira

O mito de origem do Cambinda foi marcado pela dificuldade

coletiva de sobrevivência humana, a necessidade de saciar a fome dos

trabalhadores rurais da palha da cana, moradores do Engenho Cumbe. Em tempos de “vacas magras”,

“no ano que foi fundada a brincadeira, o povo passando dificuldade

até pra comer. O tempo das vacas magras. Teve um inverno rigoroso

aí o rio transbordou. Os moradores do engenho foi tudo pescar. Aí as tarrafas vinha cheia somente de cambinda. Só se comeu cambinda por

muito tempo. Com o acontecido da pesca, alguém disse: ‘vamos

formar um maracatu e vai se chamar Cambinda Nova’ (...) por mode de ter formado o mais novo maracatu da região. Aí os povo teve comemoração (...)”. 3

O acontecimento da pescaria que deu origem ao maracatu, ficou

registrado na memória dos antigos moradores do engenho que,

64 62 1

oralmente, transmitiram de geração à geração. E a origem do brinquedo remonta há primeira década do século XX, mais precisamente em 1918.

Na Chã de Cazumbá, propriedade do Engenho Cumbe, recordou o caboclo Zé de Rosa que há mais de 50 anos é folgazão de maracatu:

“A brincadeira do Cumbe foi formada em 1918. O primeiro dono daquele maracatu chamava Severino Lotero. Era dono e mestre. Brincou uns tempos, abandonou, não quis mais. Meu primo João Fulosino da Silva tomou conta, ficou como mestre também. Meu pai,

mãe, minhas tia, contou. Eu muito criança, lembro ter visto uma vez. Aí botou o cunhado dele na brincadeira pra ensinar ele. Esse mestre

chamava João Lauro. Até que João Fulosino afastou e chamou João

Lauro pro lugar dele. Depois João Padre se juntou com João Lauro e ficou dono desse maracatu, porque ele foi apartado. Aí trouxe pra essa sede do Cumbe que tá hoje (...)”

A partir de então, o também trabalhador rural João Estevam,

conhecido popularmente por João Padre, assume definitivamente o brinquedo, permanecendo

à

frente do maracatu como

dono

da

brincadeira por cinco décadas consecutivas, até falecer em 1994,

deixando D.B. - a madrinha espiritual do maracatu - juntamente com seu

filho Joãozinho, encarregados de preparar e olhar a brincadeira do ponto

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de vista espiritual.

Mas, esclarece D.B. que, antes de assumir o posto de

madrinha espiritual da brincadeira, havia outra que trabalhava na mesa branca e com a falecida, aprendeu a “preparar maracatu”, acrescentando

suas “certa parte de coisa” no preparo, referindo-se a introdução da

jurema preta.

O Maracatu de Baque Solto Leão Brasileiro Na segunda metade da década de 50 do século passado, outra

safra de trabalhadores rurais provenientes da Zona da Mata Norte de

Pernambuco, largaram a dureza da vida na palha da cana para tentar a

sorte na cidade grande em outro contexto do desenvolvimento industrial/ urbano brasileiro. E assim chegaram à capital pernambucana os que já

eram folgazões de maracatu no interior e outros que em Recife passaram a ser, talvez, procurando resgatar a identidade da expressão cultural

interiorana que parecia perdida, mas no fundo não havia deixado de existir.

65 62 1

Alguns folgazões componentes do Estrela, quando chegaram em

Recife passaram a ser trabalhadores da construção civil. Entre cimento,

pedra e cal, cerca de dez folgazões - dentre eles os aborrecidos com os

dirigentes do Maracatu Estrela da Tarde - resolveram criar/ fundar um

maracatu, impulsionados pelo mestre de obras e folgazão de maracatu

João Calado. Durante a semana trabalhando na construção, encontravamse:

“João Calado, Manuel de Taenga, João Calumbi, Otávio, Francisco

Lopes, João Mateu, Sibiu Leite, Biu Pequeno, Manuel Leite e João Murilo. João Calado convidou para fazer um maracatu e a sede ia ser na casa de Calumbi. A gente ficou de pensar no nome pra ser escolhido na hora do almoço. Maracatu Leão Brasileiro e Otávio disse:

‘será que as autoridades vão aceitar esse nome’? E a gente disse que

sim porque tem o nome do Brasil. E foi todos esses quem fundou o Leão Brasileiro”. (S.T.)

No processo de criação/ fundação, fiquei sabendo através dos

próprios folgazões antigos do Leão da lembrança de Seu Otávio: “tem que ter casa pra ir”, referindo-se a uma casa espírita. A resposta foi obtida

entre um dos integrantes do grupo, dizendo S.T. que “isso não é problema. A minha esposa trabalha nesse assunto de espírito”, ficando o

mesmo “encarregado pelo assunto”. Em 05 de junho de 2002, tive a

oportunidade de perguntar sobre as correntes do Leão, respondendo-me S.T.:

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“as corrente do Leão é Preto velho/ caboco índio. O guia de minha ex

esposa era uma Preta Velha mas eu me entendia mais com o índioafricano, o segundo que chegava. (...)

O trabalho na mesa branca

parte caboco/jurema (...) Maracatu não pode andar em muito lugar,

como casa de xangô. Casa que maracatu deve procurar é linha mesa branca. Jurema. Parte de caboco. Xangô não é apropriado para maracatu”.

Em 21 de setembro de 1969, aconteceu o Primeiro ensaio oficial

da brincadeira, dia considerado pelos folgazões como a data oficial da

fundação do Maracatu Leão Brasileiro. Sua trajetória espiritual foi marcada por quatro principais fases: 1) quando o Leão foi criado/fundado

S.T. e sua esposa se responsabilizaram pelo aspecto espiritual da brincadeira, “aí eu falei com um dos mestres dela e ele se comprometeu a

tomar conta do maracatu”; 2) a esposa de um amigo de S.T. começou a trabalhar na jurema, “aí eu falei com ela e disse: eu sei que a senhora já

tá trabalhando, então, o que eu puder ajudar, eu ajudo. Agora a senhora

vai ficar tomando conta do maracatu. Pronto. Aí ela ficou” até se tornar evangélica, quando deixou de fazer o preparo espiritual do Leão; 3)

66 62 1

depois D.N. passou a dar consulta espiritual para o Leão até falecer em novembro de 2002.

3. O Ciclo da brincadeira e seus preparos espirituais A madrinha espiritual de uma brincadeira de maracatu no terraço

de sua modesta casa, cantando, iniciou a conversa:

“O tempo já chegou (cantado). Foi porque os mestre disse que o

tempo chegou. (...) os tempo de nós procurar ela, certo mesmo com força de caboco é setembro. (...) É na mata, porque só tem a jurema na

mata. é o lugar onde se salvou os nossos índio. (...)serve pra remédio,

serve para atrapalhação de corrente, serve pra limpeza, serve pra nossa defesa, (...) a jurema serve sabendo preparar (...), com aquele preparo dela com a semente, a folha, a raiz, tá com aquela força. (...)E para o banho tem de botar outras ervas. (...) pode ser amalva branca -

é trabalho de mestre de mata - a liamba, a favaca de caboco, a

manjeriona, nós prepara aquilo tudinho, aí coloca na jurema. Essa é a parte da jurema branca”.( D.B.) 4

4

Esta entrevista concedida por D.B. foi intermediada por mim a pedido de Rodrigo Güineward e

conduzida por este último, para integrar a monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais de Marcos Alexandre Albuquerque (UFPB – Campus Campina Grande).

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A jurema branca representa também o sentido de limpeza e de

defesa para a brincadeira de maracatu. No mês de setembro a colheita do

arbusto com a força de caboclo, coincide, tradicionalmente, com o ciclo das sambadas. Ensaios de maracatu onde alguns integrantes das

brincadeiras praticam rituais de caráter mágico-religioso, seja nas

sambadas do tipo pé de barraca ou do tipo pé de parede.

Em se tratando do “calço” individual, isto é, o preparo espiritual

do folgazão para as sambadas de maracatu, este se inicia com o

resguardo sexual do mestre de maracatu. Prática que representa o

sentido a limpeza do corpo, estende-se aos folgazões da brincadeira de ambos os sexos, mas hoje em dia, poucos são aqueles que a praticam. Além da abstinência sexual, antes de saírem para os ensaios, alguns

caboclos de lança e algumas baianas tomam banhos com ervas aromáticas as mais diversas como, por exemplo, o manjericão, e os

folgazões do sexo masculino trazem na boca ou em outra parte do corpo, galhos de arruda. 5

Já o “calço” coletivo, são as consultas espirituais. No ano de 2002

67 62 1

presenciei uma dessas consultas em mesa de jurema tendo sido realizada para a sambada do tipo “pé de barraca”.

A entidade perguntou aos

presentes o motivo de estarem ali, e a resposta dada, “é que o maracatu vai dar um ensaio e nós queria que olhasse a brincadeira e no dia, desse

uma passadinha por lá”. Após a solicitação ao mestre para “olhar o

maracatu”, a entidade da mesa pediu aos presentes que deixassem por

escrito o nome do maracatu, do mestre e de outros folgazões, ligados diretamente à brincadeira. E a folha de papel assentada em sua mesa de

trabalho. No dia da sambada, presenciei o ritual de defumação e aguação do terreiro na sede da brincadeira. O folgazão responsável fez o sinal da

cruz, rezou e acendeu uma vela branca de sete dias que, simbolizando um ponto aceso, foi assentada no chão, mas em local discreto da sede do

maracatu ao lado direito para quem entra e esquerdo para quem sai. Foi preparado um defumador com alecrim seco, alfazema, amescla, incenso

de igreja, mirra, palha de alho, raspa de chifre e casca de laranja e, depois de aceso, a defumação foi dada pelos cantos da sede e nas

fantasias que lá se encontravam. O ritual foi finalizado com a “aguação” -

água preparada com sal grosso pelo folgazão - jogada no terreiro da brincadeira em frente ao espaço físico da sede do maracatu.

5

A arruda é uma das ervas que é usada no preparo da jurema.

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Diferentemente do ritual para a sambada pé de barraca descrito

acima, a madrinha espiritual do Cambinda Brasileira, disse-me

que

prepara uma mistura à base de ervas que não foram reveladas e sete dias

antes as sambada, “vou lá e faço a aguação no terreiro”. No meio da semana,

“faço as “firmação” (rezas), pra pedir força pro mestre sambar bem e o

ensaio acontecer na paz. Cambinda só brinca com o terreiro preparado. Nós faz a aguação com água preparada por mode preteger a brincadeira nossas das coisa ruim que alguém pode trazer. Isso tem desde os tempo de João Padre. Ele mesmo aprendeu com a outra mãe de santo do maracatu”. (D. B.)

Ela costuma fazer o mesmo ritual de “firmação” e preparo do

terreiro tanto para as sambadas do tipo pé de barraca quanto para as do tipo pé de parede.

Neste último caso, especificamente, presenciei

parcialmente outro aspecto do ritual. No centro da madrinha espiritual

encontrei velas acesas nas cores verde, roxa e branca, 6 formando um

68 62 1

pequeno círculo no chão. No centro do círculo havia uma pequena porção

de sal grosso depositada diretamente no chão com o nome do mestre

rival do maracatu escrito num pedaço de papel. Na parte externa do mesmo círculo, próximo às velas brancas acesas, outra porção de sal

grosso num recipiente, juntamente com o nome do mestre do maracatu escrito num pedaço de papel. À esquerda da porção de sal, na parte

externa do círculo, havia galhos de arruda num copo d’água para serem usados por alguns folgazões durante a sambada. A madrinha também

preparou um banho à base de ervas 7 para ser tomado por um dos folgazões - caboclo de lança - do maracatu. A planta foi esfregada

diretamente na água que havia no balde e jogada no lixo com a mão esquerda.

Neste mesmo ensaio do tipo pé-de-parede que presenciei no ano

de 1999, os folgazões se organizaram e com a brincadeira já formada, antes de começarem a fazer a “manobra” 8, um charuto - possivelmente

preparado - foi aceso por uma integrante do baianal. Baforadas de

fumaça percorreram o interior do maracatu e em meio a fogos de artifícios, iniciou o ritual de chegada. O mestre de caboclo foi quem 6

Não foi possível anotar todas as cores das velas, pois ouve um tumulto na vizinhança e fui

convidada a sair rapidamente do local por medida de segurança. 7

Não foi possível obter o nome das ervas, pois quem fez o preparo do banho preferiu omitir o nome

das mesmas. 8

São as evoluções do maracatu.

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liderou a feitura da manobra e no decorrer da execução, cruzou o espaço

físico da sambada num percurso de sete pontas, formando uma espécie de estrela humana, um ponto riscado com a manobra e/ou coreografia da brincadeira.

Disseram-me que “é pra fechar o terreiro que nós vai

brincar”, e é chamada pelos folgazões do maracatu de “Sino-Salomão”.

Em Câmara Cascudo (1978:69,83), o rei Salomão é referenciado como

a “garantia para a defesa do corpo humano” e seu amuleto vem representado por uma estrela de “cinco raios (Pentalfa) ou de seis raios

(Hexalfa) ambas conhecidas como Selo ou sinal de Salomão, Sino-

Salomão”. Completa o autor que, nenhum “espírito maligno ousa aproximar-se do lugar onde exista o Sino-Salomão”. A estrela representada através da manobra também traz o mesmo sentido de

defesa e proteção, bem como o fechamento do terreiro, visando

afastar na lógica dos folgazões, o atrapalho espiritual no interior da brincadeira.

Para brincar maracatu durante os dias de carnaval os folgazões

também se preparam. A abstinência sexual prevaleceu nas narrativas dos

69 62 1

folgazões tanto do Cambinda quanto do Leão como uma das regras à serem seguidas, sendo, “o se afastar de homem e de mulher”, uma das etapas de preparação do calço individual.

Outra etapa do calço individual são os banhos de “descarga” e de

cheiro, tomado pelos folgazões no decorrer da semana pré carnavalesca.

As receitas desses banhos, podem ou não ser prescritas nas consultas

realizadas com a madrinha ou o padrinho espiritual de escolha pessoal dos próprios folgazões. Há casos dos banhos serem aprendidos tanto no

decorrer da convivência na brincadeira quanto com os padrinhos ou madrinhas e até mesmo, herdadas de seus antepassados. O modo de

fazer os banhos, principalmente o banho de cheiro, varia entre os folgazões e de acordo com as necessidades individuais para brincar o maracatu. Pois assim relatou-me um caboclo de maracatu C.C. em 1998:

“(...) toma banho de descarga. (...) pega sete qualidade de mato: pião, pião roxo, colônia, favaca de caboco, folha de manga, sal grosso e apipi. Prepara aquele banho de descarga. Ali ele se prepara. O bom mesmo banho de descarga é na segunda-feira mai tem na terça-feira.

(...) Na sexta-feira ele toma outro banho de descarga. No Sábado toma um banho de cheiro. É o banho de limpeza. Bota mato cheiroso. Bota arruda, manjericão, macaçá, perfume (referindo-se ao Seiva de

Alfazema). Daqui toma um banho e se resguarda. No Domingo

(referindo-se ao domingo de carnaval) prepara outro banho de limpeza. (...) arruda, manjericão, alho, só não bota o sal porque vai ARTIGOS | “O CABOCO VELHO, ANTIGO, SABE BRINCAR. VAI RESPEITAR!”: A DIVERSIDADE DOS RITUAIS ESPIRITUAIS NA BRINCADEIRA DO MARACATU BAQUE SOLTO/RURAL | SÉVIA SUMAIA DUARTE DA SILVA VIEIRA.


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tomar o banho de cabeça. O banho de descarga é do pescoço pra baixo. O de cheiro é que toma do corpo todo. Troca a roupa e se toca na rua”.

C.C. aprendeu as receitas dos banhos de descarga e de cheiro

com sua mãe, que costumava preparar os banhos para seu pai - o avô de C.C. - quando não menstruada. Pode-se perceber que a variabilidade da feitura dos banhos ficam ainda mais evidentes com a seguinte narrativa de seu Bubu:

“a gente quando vai brincar o maracatu, (...) toma banho de limpeza a

semana todinha! O primeiro banho é de sal grosso. Toma dois banhos

de sal grosso. Na segunda e na sexta-feira. Os outro é arruda, cravo branco, coisa cheirosa, somente cheirando. Alfazema, bota dentro. O de sal toma do pescoço pra baixo. Os outro toma do corpo todo”.

Ao compararmos os modos de fazer o preparo dos banhos 9 entre

folgazões de maracatus distintos, percebe-se a manutenção do sal

grosso, havendo variações e semelhanças entre as ervas por eles usadas,

70 62 1

como por exemplo a arruda. Além disso, as fórmulas dos banhos encontram-se relacionadas as particularidades espirituais de quem faz.

A madrinha espiritual de uma das brincadeiras de maracatu se

referiu a mistura da jurema preta como aquela que dá quentura! Chamando atenção para o preparo,

“Aí vem a jurema preta. Eu misturo com vinho, o pião roxo (referindose as folhas), a manjerona roxa, a liamba roxa, aí é outras erva. Lá vai

o manjericão... E todas erva da jurema se ela levar o manjericão ela dá

mais força ainda. Porque o rei das ervas na jurema é o manjericão. Mistura todas ela aí dá a dois mestre. É dois guia. A jurema e o

manjericão. É o manjericão roxo. (...) É da folha pequena. Aí pega tudinho, tudo roxo. Não é a jurema preta! Aí vamos fazer o banho,

vamos fazer a limpeza, vamos fazer o remédio! Se for pra beber é pra

beber. Desse mesmo jeitinho. E se for pra tomar o banho é desse mesmo jeitinho (...)” D.B.

9

10

Embora o banho e a consulta espiritual façam parte de uma das etapas do calço individual, isso não

significa dizer que todos os folgazões de maracatu passem pelos rituais para brincarem o carnaval. Há caso de folgazões que só fazem o resguardo sexual e outros nem isso. 10

Essa entrevista concedida por D.B. foi intermediada por mim a pedido de Rodrigo Güineward e

conduzida por este último, para integrar a monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais de Marcos Alexandre Albuquerque (UFPB – Campus Campina Grande).

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Percebe-se a diversidade das formas de fazer os preparos do maracatu,

sugerindo, inclusive, que há uma inter-relação de temporalidade simultânea, articulada à autonomia da madrinha oficial da brincadeira que distribui entre os folgazões que a procuram para fazer os calços

individual e coletivo feitos tanto na jurema branca quanto na jurema preta. Pois admite D.B. que “nem todo folgazão que brinca no maracatu

que eu faço parte, vem fazer o calço comigo”. Esta distribuição é feita com o intuito de equilibrar a sintonia espiritual no interior do maracatu e,

quando indaguei a D.B. sobre o preparo da jurema no universo da brincadeira que faz parte,

“a jurema branca é muito calma. (...) Não tem força. Ela tem conforto. (...) Aí pro miolo do maracatu, eu preparo na jurema branca. (...) o

baianal, o mestre pra dá o conforto pra eles. Mas pro caboco que pula três dias não pode ter a jurema branca. Tem que ser a jurema preta por causa da quentura. Dá fogo pro camarada pular, dar aquela caída bonita de jogar aquela lança no ar, aquilo bonito, aquela tradição lida.

(...) o caboco tá no ar, caindo, levantando, fazendo aquilo que ela tá pedindo pro corpo dele” 11.

71 62 1

Os caboclos, o baianal, os reiamá, o mestre do maracatu e os

batuqueiros do terno são os principais folgazões que procuram a “casa espírita” para se calçar no maracatu que D.B. faz parte. Como já foi dito, a escolha da “casa espírita” é pessoal, implicando na confiabilidade e na

afinidade dos folgazões para com a escolha de seus padrinhos e madrinhas espirituais, variando ainda mais o modo de fazer o calço individual.

Mediante consulta à madrinha e suas entidades espirituais,

objetos calçados os mais diversos - espécie de amuleto sagrado - são conduzidos pelos folgazões durante os dias de carnaval. E no processo de feitura do calço, entidades espirituais, acostadas, podem ou não

acompanhar o folgazão. Os preparos feitos na jurema seja os objetos, os

espíritos ou a junção de ambos, não são dados e sim emprestados. Conforme explica D.B.,

“Eu peço a meus folgazão quinze dia ou oito dia separado de mulher.

(...) pega o cravo daqueles caboco todinho eu boto lá na minha jurema. Aí eu benzo todos lá na jurema. Hoje é Sábado de Zé Pereira.

11

Essa entrevista concedida por D.B. foi intermediada por mim a pedido de Rodrigo Güineward e

conduzida por este último, para integrar a monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais de Marcos Alexandre Albuquerque (UFPB – Campus Campina Grande).

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Aí chega meus folgazão pra pegar os cravo. Aí eu digo a eles. Que hora você vai sair de casa! Eu eu. Toma teu cravo. Na hora dele sair, eu mando um mestre sair tal hora. Tal hora vai sair um folgazão. Vá

minha jurema (...) qualquer mestre que acompanhar aquele folgazão os três dias de carnaval. Aquele folgazão que brinca muito pesado,

brinca três dias. Não sente canseira, dor nos ossos, dor de cabeça.

Problema errado eles não pode chegar perto, se chegar ele arreia (...) porque ele não respeitou o calço que recebeu da jurema. O cravo e o mestre que foi acompanhar ele os três dia. Quando passa o carnaval aí

cada cá vem me entregando os cravo que é para tirar os calço que a

gente fez na jurema. Aí afasta aquilo tudo. Aqueles preparo que eu

dei, que eu botei naqueles cravo, aqueles calço que eu fiz dentro da jurema pra eles, eu tô retirando tudinho de volta pra mim porque não é meu! Eu dei a eles emprestado pra três dia de carnaval. (...) Porque eu num benzi eles na jurema”? 12

O empréstimo do calço é devolvido de preferência na quarta-feira

de cinzas. Isso predominou nas narrativas tanto dos padrinhos ou

madrinhas espirituais quanto dos folgazões veteranos, pois disse-me S.T. que “o certo mesmo é entregar na quarta-feira. Por mode de falta de

72 62 1

tempo, tem gente que entrega depois. Só não é pra ficar, mode não dá probema. Tem de voltar na casa espírita que foi” .

O cravo calçado - exemplificado por D.B. - vem na dinâmica do

tempo, perdendo de certa forma o sentido de objeto sagrado, tornandose muito mais um elemento que faz parte da indumentária dos caboclos

de lança. Entre os muitos, parece-me que pouquíssimos são os caboclos

de maracatu que continuam usando o cravo como uma espécie de

amuleto sagrado. Um processo que indica a desacralização no universo

religioso do maracatu? Indagação que surgiu a partir das narrativas dos próprios folgazões e que foi esclarecido em setembro de 2002, através do depoimento de S.C. que, atualmente, reside no ambiente urbano:

“Tem. Teve isso. Tinha isso (...). Porque muita gente hoje, bota por

enfeite, por fantasia. Mai antigamente, muita gente gostava de usar aquele cravo calçado (...). A pessoa recebia aquele negócio pra ele se

preparar pra sair, quando era depois do carnaval ele tinha que voltar de novo que era pra descarregar aquilo que foi passado com ele. Foi

um camarada daqui brincar lá no interior com um cravo daquele. (...) esse rapaz, toda vez que botava o cravo na boca, ele se manifestava!

(...) naquele cravo tinha um negócio que toda vez que ele botava na boca, se irradiava, se manifestava! Aí meu irmão, experiente também, 12

Entrevista concedida por D.B. foi intermediada por mim a pedido de Rodrigo Güineward e

conduzida por este último, para integrar a monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais de Marcos Alexandre Albuquerque (UFPB – Campus Campina Grande).

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conheceu que o problema tava naquele cravo, aí quando ele tava radiado, aí pegou o cravo dele e jogou fora. Aí pronto. Cabou-se.

Gostavam de usar aquele cravo calçado. Mais hoje o camarada usa por esporte”.

Estratégias

da

dinâmica

interna

nas

brincadeiras

para

continuarem tentando preservar os chamados “segredos de maracatu”?

Sei apenas que “caboco tem vários calço”, disse-me um caboclo de maracatu no início de minha trajetória no universo das brincadeiras,

tentando esclarecer nas entrelinhas de sua narrativa, a tamanha variabilidade

de objetos calçados, usados neste caso específico pelos

caboclos de lança durante os dias de carnaval.

Ainda em meados de

1997, o caboclo de lança C.C. chegou a comentar comigo que “caboco

tem vários calço. Cravo na boca, charuto, preparo no bolso com erva de orixá. Ninguém sabe onde tá. Se sacode um mal na pessoa, pega naquele negócio e protege nós”.

Diferentemente do cravo, do charuto, do rosário, de moedas, das

ervas preparadas pelas entidades espirituais, uma integrante do Maracatu

73 62 1

Leão Brasileiro vai à casa espírita oito dias antes do carnaval,

“eu posso levar um colar, uma pulseira, qualquer negócio, boto lá no

pé do santo. Nos assentamento faltando oito dias. (...) antes de eu ir pra sede do maracatu, eu vou lá apanhar. A minha mãe de santo bota no meu pescoço, me guarda. Eu passo os três dias de carnaval”.

O folgazão, caboclo de maracatu, não brinca sozinho - sem

generalizações - mas com “algum espírito encostado, acompanhando

ele”! Na casa de seus padrinhos ou madrinhas espirituais,

“ela me dava aquele preparo pra eu tomar. É porque o espírito vem

naquele preparo que ela dá. Não é pra beber não. É somente banho”. Banho de arruda, banho de manjericão, banho cheiroso, preparados à

base de ervas que após tomado, “o corpo ficava que nem uma pimenta. Eu batendo o chocalho, via aquilo nas minhas costa. (...) quando eu brincava, o meu caboco era um tal de (P.)”.

Relatou-me S.M. que no sábado à noite, ia buscar o preparo e no

domingo pela manhã, tomava o banho antes de vestir a fantasia de

caboclo, sem enxugar o corpo. O surrão ficava maneiro e depois do carnaval, “a gente volta lá que é pra ela tirar aquele material. (...) na quarta ou na quinta. Então chega lá, ela recebe o espírito dela, basta ela

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fazer assim em cima de você (gestos com as mãos passando pelo corpo), saiu”.

Poucos são os folgazões de maracatu que bebem da jurema

preparada por seus padrinhos ou madrinhas espirituais com a “força de caboco”. Apenas “aqueles que tem tradição com a jurema” são os

escolhidos para tomarem a beberagem. D. B. justifica que os folgazões

quando bebem a jurema, estão “juremado os três dias de carnaval” e estando juremados, não podem ingerir bebida alcóolica, “aí não pode dar jurema pra eles porque pode errar! (...) ele pode entrevar, pode ficar sem

fala, aí a gente só prepara as coisa dele pra jurema somente por fora. Por dentro nada. Eu não posso dar a ele pra botar por dentro”.

Resta-nos saber como no maracatu o preparo da jurema é feito

por dentro, uma vez que D.B. chegou a mencionar que toma jurema os três dias de carnaval, buscando na beberagem a força para sustentar espiritualmente seus folgazões e o maracatu que faz parte. Considerações finais

74 62 1

Criadas/formadas em contextos e épocas distintas, ambas as

brincadeiras trazem a Jurema Branca como legado espiritual de origem. No balanço das águas da dinâmica cultural, a incorporação da Jurema Preta no Cambinda Brasileira e a hereditariedade dos chamados “segredos

de maracatu” aos cuidados da madrinha espiritual dessa brincadeira, é o

que faz a diferença. O Leão Brasileiro também vem fazer a diferença com

a sua trajetória demarcada por três fases, os padrinhos e madrinhas espirituais que passaram pelo brinquedo, mantendo no contexto urbano a jurema branca no preparo espiritual da brincadeira e trazendo como adaptação à dinâmica do tempo o sacrifício de animais.

No universo de ambas as brincadeiras, a jurema não traz apenas

a conotação do arbusto, da planta, da beberagem. Ela marca e demarca

presença através das consultas às entidades espirituais, isto é, os mestres

e caboclos da jurema protetores de maracatu, bem como pela diversidade no modo de fazer os calços individual e coletivo, que trazem uma

variabilidade de ervas associadas ao preparo espiritual feito na jurema, seja ela branca ou preta.

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Ogum”. IN: SOUTO MAIOR, MÁRIO & SILVA, LEONARDO DANTAS (org). Antologia do Carnaval do Recife. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1991.

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__________________. Dos Canaviais à Capital: “cabocaria de flecha”,

maracatus de orquesta, baque solto, rural.... Recife: UFPE, 2003. (Dissertação de Mestrado)

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DOSSIÊ: Viagens e Viajantes

Viajantes e Representações sobre a Viagem Silvio Lima Figueiredo

O Sistema Alternativo de Viagens e Turismos das periferias do Recife Rosana Eduardo da Silva Leal

Ética e Estética de uma Prática Moderna: é possível interrogar o turismo? Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

A Cibercultura e uma Nova Morfologia das Viagens Ana Flávia Andrade de Figueiredo

“Todas essas Coisas são Encantos: viagens, patrimônio e folclore em Mário de Andrade Rafael José dos Santos


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Apresentação

O convite para coordenarmos este dossiê chegou com enorme

alegria e um sentimento de profunda responsabilidade. Como reunir um leque de reflexões que mesmo sem a pretensão de congregar uma

grande multiplicidade de enfoques teóricos, se colocasse diante dos leitores como uma plataforma de discussões provocadoras, que nos ajudassem na compreensão da teia complexa que incide sobre o

fenômeno das viagens e em como os sujeitos viajantes tem construído e percebido o seu posicionamento no mundo contemporâneo? O resultado é a reunião de cinco artigos que acreditamos tenham potencialmente a característica de serem complementares neste objetivo.

Em “Ética e Estética de uma prática moderna: é possível interrogar

77

o Turismo?” que abre o presente dossiê temos uma inquietante

provocação, extremamente necessária, sobre ética e estética no turismo para além do discurso de combate à pobreza e à sustentabilidade. O foco trazido pela filósofa e professora da Universidade Federal dos Vales do

Jequitinhonha e Mucuri, Maria Cláudia Magnani, está no sentido de

compreender, como a mesma aponta, a radicalidade do ethos que suporta esta prática, a partir de questionamentos profundos sobre como o turismo tem ou não reforçado uma inautenticidade da vida e em que

medida alivia a insuportabilidade do cotidiano. Sua discussão sobre a

beleza como valor estético e as práticas contemporâneas do turismo em

volta de destinos “feios, pobres, sujos e perigosos” é revigorante na

medida em que nos impele a olhar a questão das motivações dos turistas através de suportes analíticos mais profundos, que remontam à própria desumanização do ser.

No artigo intitulado “‘Todas essas coisas são encantos’: viagens,

patrimônio e folclore em Mário de Andrade”, o antropólogo e professor

do Centro de Ciências Humanas e dos Programas de Pós-Graduação em

Letras, Cultura e Regionalidade e Turismo da Universidade de Caxias do

Sul-RS, Rafael José dos Santos, destaca – de forma sensível e aguçada – a

importância das viagens empreendidas por Mário de Andrade pelo Brasil. O texto revela uma apurada e pertinente interpretação sobre os relatos de viagem do modernista que foram elaborados durante suas incursões

DOSSIÊ | APRESENTAÇÃO


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etnográficas nas primeiras décadas do século XX. O autor discute também como tais experiências influenciaram nas reflexões, obras e concepções do intelectual acerca da cultura e, sobretudo, do patrimônio brasileiro.

O debate em torno dos relatos de viagem também está presente no

artigo do professor Silvio Lima Figueiredo, pesquisador do Núcleo de Altos Estudos da Universidade Federal do Pará com diversificada

produção científica sobre o assunto. Por meio de um olhar reflexivo e dialético, o autor em seu texto “Viajantes e Representações sobre

Viagem” se debruça sobre os usos de tais escritos na construção da imagem do Brasil, bem como na representação da figura do viajante e de

suas experiências de viagem. Trata-se de uma perspectiva criteriosa e reveladora das múltiplas faces das viagens e dos viajantes, que durante o

processo de colonização do Brasil absorveram diversas leituras e apropriações. O autor analisa ainda como tais categorias tem sido tratadas nos estudos contemporâneos sobre o turismo.

Em “O Sistema Alternativo de Viagens e Turismo das Periferias do

78

Recife” a pesquisadora

e professora

do

Núcleo

de Turismo

da

Universidade Federal de Sergipe, Rosana Eduardo S. Leal, busca trazer à

tona as práticas de viagens turísticas e não turísticas organizadas nos bairros populares recifenses. Por meio de uma leitura etnográfica, a

autora apresenta parte de sua pesquisa doutoral desenvolvida no

Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. A finalidade do seu artigo é tratar da dinâmica de um sistema de viagem que se mantém sem a influência do Estado e/ou do

mercado turístico convencional e que está presente no cotidiano de muitas cidades brasileiras. O conteúdo empírico é revelado em seu texto

por meio da identificação dos modos de fazer, bem como das

modalidades de viagem, formas de divulgação e meios de transporte utilizados pelos grupos pesquisados.

Fechando o dossiê temos o artigo intitulado “A cibercultura e uma

nova morfologia das viagens”, da professora Ana Flávia Andrade de

Figueiredo, antropóloga e bacharel em turismo, que traça uma reflexão

sobre como o ambiente virtual tem estimulado novas práticas e desejos de viagem. A autora pauta-se em discussões trazidas por pensadores

como Joel de Rosnay, Manuell Casttels e André Lemos interrelacionando suas contribuições epistemológicas sobre a sociedade contemporânea a uma discussão sobre a passagem de uma estrutura essencialmente

piramidal na qual o Estado e o Mercado detinham grande poder de

decisão e operacionalização das viagens para um ambiente colaborativo e DOSSIÊ | APRESENTAÇÃO


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dinâmico em que os sujeitos vem se tornando autônomos e provocadores de importantes mudanças na morfologia das viagens.

Agradecemos imensamente os colegas que colaboraram conosco

neste desafio idealizado pela editora-chefe da Revista, Maria Aparecida Lopes Nogueira.

79

DOSSIÊ | APRESENTAÇÃO


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Viajantes e Representações sobre a Viagem

Silvio Lima Figueiredo

Professor/pesquisador do Núcleo de Altos Estudos da Universidade Federal do Pará. Doutor em Comunicação (ECA/USP).

Introdução

80

A produção de imagens e representações européias presentes nos

primeiros anos de ocupação Brasil sobre a natureza e cultura do novo

território, é caracterizada principalmente pelas imagens e representações

suscitadas pelas obras e relatos de viagens dos principais viajantes europeus que passaram pela região. A mitificação e posterior tipificação desse território aos olhos da Europa dizem respeito principalmente ao exotismo visto como principal característica local.

As viagens realizadas por europeus dos mais variados tipos

apresentam na sua maioria, a construção de imagens não só das novas terras brasileiras, mas também de outros lugares que estavam sendo

“descobertos” e posteriormente colonizados pela Europa dos séculos XV a XVII, como outras regiões da América, África, Oceania e Ásia. Essa

construção de imagens é basicamente proveniente da narração escrita e divulgada pelo viajante: o relato. A produção desses relatos de viagens de cronistas-viajantes, além de representar des ailleurs, a diferença e o

exótico, contribuiu reflexivamente para reforçar as estratégias de engendrar a conquista desses territórios, criar novos territórios e, no caso

do Brasil, produzir instrumentos de seu re-conhecimento como nação e como território da aventura e da riqueza, ao lado do perigo. De outra forma, contribuiu também para a produção do conceito de viagem e de aventura que remete ao viajante curioso e que remete à Europa e ao ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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europeu novamente, e assim, a representação do território e de quem produz essa representação, ganham reforço.

Ou seja, tal relação reflexiva contribuiu não só para garantir o

domínio da Europa sobre as novas terras, mas também para dar ao

europeu uma de suas características estereotipadas reforçadoras do domínio,

a

de

viajante

intrépido

e,

por

conseguinte,

representações sobre o ato de viajar e a ideia de viajante.

produzir

O texto elenca alguns viajantes europeus que estiveram no Brasil

desde o seu descobrimento até o inicio do século XX, e suas contribuições na busca das noções fundadoras do conceito de viagem e de viajante, categorizando e tipificando os mesmos.

Brasil: As Viagens e Aventuras na Formação do Viajante

A viagem tem sido percebida como existente em várias sociedades

e sob variadas formas. O estudo de Figueiredo (2010) apresenta diversos

debates sobre sua gênese, e debate sua suposta caracterização como

“natural”, a partir de abordagens clássicas na ciência antropológica sobre

81

o que é natural e o que é cultural. Aspecto cultural de variadas culturas e sociedades humanas, a viagem apareceu e aparece em diversos formatos:

os deslocamentos em busca de alimento e proteína, as viagens em busca de locais passíveis de moradia, criação de rebanhos e culturas de vegetais

diversos, deslocamentos em busca de conquistas de outros povos e outros territórios, guerras, viagens para realização de trocas variadas como objetos e prestações, viagens para troca de excedente, para troca

de mercadorias ou viagens de trabalho (negócios), viagens religiosas, e viagens de cunho cultural e para o lazer (viagens turísticas).

No mundo ocidental, são inicialmente representadas pelas viagens

nas sociedades grega e romana (guerras, trocas e lazer) e na sociedade

medieval (guerras, trocas e religião). A partir da formação da sociedade moderna, a viagem ganha importância pela sua possibilidade de atrelar a conquista colonial e a exploração, da mesma forma que ganha a ajuda do desenvolvimento técnico-científico aplicado aos meios de transporte e à comunicação.

As viagens começam a se intensificar a partir das chamadas

grandes navegações, que geram a “expansão ultramarina” da Europa, principalmente em Portugal e Espanha. Segundo Eric Roulet (2000), as condições das descobertas se devem inicialmente ao desenvolvimento

econômico da Europa no final do século XV. Os estados ibéricos Portugal,

Aragão, Castela e Navarra, os três últimos unidos em Espanha, se ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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organizavam internamente e politicamente. A união dos reinos de Aragão

e Castela, que depois anexou Navarra, fez da Espanha uma potência com possibilidades imperialistas. A retomada de Granada há muito nas mãos

dos mouros, possibilitou novos ares de conquista à nação que estava se formando. A vocação marítima de Portugal é um fator que também não pode ser esquecido, e é um dos exemplos mais citados na expansão, com monarquia e nobreza favoráveis à conquista marítima.

A partir do momento em que as viagens começam a se intensificar,

e portanto produzir as mais importantes aventuras da época, como a tentativa de contornar a África, os descobrimentos da América e do Brasil

e a tão sonhada circunavegação de Fernão de Magalhães, foi necessário registrar e informar todas essas aventuras e descobertas, e nesse momento, a atuação do cronista se destacou, fazendo com que ele se

transformasse em um personagem central nessas empreitadas. No Brasil,

os cronistas tiveram papel importante no registro da história de uma nação que estava nascendo, do embate entre europeus e nativos.

Segundo ainda Figueiredo (2010), os cronistas geralmente eram viajantes,

82

alguns missionários, poucos falavam sem ter estado nas terras sobre as

quais escreviam, e participaram de momentos importantes nas nações e locais inexplorados ou desconhecidos dos europeus. É bom lembrar que o sentido de descoberta está ligado ao desconhecimento dos europeus sobre as terras além do “mar tenebroso”, e além das Índias Ocidentais.

Muito embora tenham sido destacados para essa função, não deixavam de

acumular

outras

atividades,

quer

seja

de

mercador,

comandantes de expedições, ou mesmo como missionários.

ou

de

Alguns desses cronistas confundem-se com a própria história do

Brasil: Pero Vaz de Caminha, Fernão Cardim, Pero Lopes de Souza, Gabriel

Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo, Ambrósio Fernandes

Brandão, Simão de Vasconcelos, Padre Ancheta, Manuel da Nóbrega e

outros. Todos esses eram portugueses e foram importantes na criação de uma certa visão do Brasil para a Europa nos séculos XVI e XVII e por conseguinte

para

o

“mundo”

considerado.

Outros

viajantes

não

portugueses, entre eles Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry, João

Antonio Andreoni (Antonil), Claude d’Abbeville, Yves D’ Evreux também tiveram por mérito o registro da vida no Brasil nos primeiros séculos após

o descobrimento. Todos pareciam encantados com a nova terra que, segundo Todorov (2003), representava realmente a novidade, já que a África, e a Ásia já eram conhecidas pelos europeus.

ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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Figura 1 - Tupinambás despedaçando corpo (Staden, 1999).

Após a difusão de uma grande quantidade de viagens à América,

África e Ásia, registradas pelas crônicas e formadoras da ideia de viajante desbravador,

conquistador,

colonizador

e

do

missionário,

o

desenvolvimento da ciência como principal forma de conhecimento do

mundo na sociedade moderna contribui para o incremento das viagens

naturalistas. A história natural agregava zoologia, botânica, geografia, geologia e etnologia, e tinha como característica a pesquisa traduzida em viagem aos locais ainda não explorados para realizar os primeiros relatos científicos das novas terras. As viagens naturalistas vão reconciliar a

crônica com a aventura, e a ciência será responsável pelas novas aventuras dos viajantes.

O mundo novo tem um potencial a ser explorado, despertando o

interesse de comerciantes, e a curiosidade de cientistas. As viagens de

naturalistas às novas terras exprimem esse interesse e, nesse momento, estrutura-se um viajante que, em tese, procuraria na experiência da

viagem a compreensão do mundo e de sua própria existência, e não só o desafio da conquista.

Um novo viajante se desdobra na experiência de muitos, acabando

por formar uma classificação segundo os objetivos da viagem, a forma de ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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exploração, o resultado, o seu financiamento e, claro, o perfil desse viajante, sua história de vida. Alguns

estudos

apresentam

características

desses

viajantes,

calcadas nos cronistas dos primeiros séculos de colonização e nas viagens naturalistas. Segundo Leite (1996), o viajante se configurava então por ser quase sempre Europeu ou Norte-Americano (a expedição

Thayer foi liderada por Louis Agassiz, suiço, mas tinha como perticipante por exemplo o canadense-norteamericano Charles Frederick Hartt). As

razões de viajar estavam relacionadas a motivos profissionais e existenciais, mas o viajante era também colonizador, pois esses territórios precisavam de ordenamento dentro dos parâmetros europeus, e ele incorporava pouco a pouco esses territórios a tais processos, na

medida em que realizava os levantamentos econômicos sobre as novas

terras e suas riquezas. Essa característica se confundia com a conquista, e transformava o viajante também em conquistador, principalmente o viajante imigrante, que fazia da nova terra seu lar e nova fonte de

sobrevivência. Além disso, existiam o cientista propriamente dito, o

84

aventureiro e o literato. E obviamente, mixagem de tipos, além de dissimulações.

Alexander Von Humboldt, no final do século XVIII, realizou uma

expedição pela norte da América do Sul, principalmente na América

Espanhola. Sua descrição faz parte da composição do início de uma nova

ciência: a Geografia. A expedição de Humboldt durou cinco anos, e

destes, um ano e meio foi utilizado para explorar a Venezuela, principalmente estudar a ligação da bacia do Orenoco com a do

Amazonas. Essas viagens produziram uma vasta obra científica. Em sete obras em dezenas de volumes em francês, com a colaboração de outros

cientistas, foi criado um dos mais importantes compêndios científicos da época.

Charles-Marie de La Condamine, em 1735, inaugurou a viagem científica

pela Amazônia, palco anterior para as viagens de conquistadores e

missionários. A viagem de La Condamine à América também inaugurou

um novo período da história das descobertas no continente. O destaque não era mais para os conquistadores, missionários ou aventureiros. No

século XVIII desenvolveu-se um interesse científico pelo Novo Mundo, e por outras partes ainda desconhecidas por completo, como as áreas do Oceano Pacífico (Minguet, 1992, p. 8)

Dentre os principais viajantes naturalistas que desvendaram o

Brasil se encontram: Charles-Marie de La Condamine (Viagem pelo ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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Amazonas); Augustin Saint-Hilaire (Viagem à província de São Paulo e Viagem ao Rio Grande do Sul); Charles Robert Darwin (Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo); Alfred Russel Wallace (Viagens pelo

Amazonas e Rio Negro); Henry Walter Bates (Um Naturalista no Rio Amazonas); Alexandre Rodrigues Ferreira (Viagem Filosófica pelas

capitanhias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá); Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Phillipp von Martius (Viagem pelo Brasil.); Hercule Florence (Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas); Louiz

Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz (Viagem ao Brasil, 1865-1866); Richard

Francis Burton (Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho); Henri-Anatole Coudreau (Viagem à Itaboca e ao Itacaiúnas; Viagem ao Xingu; Viagem ao

Tapajós); Charles Frederick Hart (A Naturalist in Brazil). Até mesmo

viajantes não cientistas viajaram ao Brasil nesse período, e colaboram com construção de imagens sobre o país e sobre o ato de viajar, produzindo relatos e se construindo como viajantes aventureiros, como o príncipe Adalbert da Prússia.

85

Figura 2 - Príncipe Adalbert, em primeiro plano (Adalbert, 2002).

Muitas imagens de viajantes foram calcadas aí, pois, a ciência era motivo

mais nobre que a conquista, mesmo que essa última não tivesse desaparecido por completo das viagens. A ciência aparecia como o

motivo primeiro e divulgado das viagens, e a ideia de viajante intrépido e curioso, pronto a desvendar os mistérios dessas novas regiões foi ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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ganhando força, até mesmo porque só a ciência poderia explicar certos tipos de fenômenos observados in loco.

86 Figura 3 - Aventura na selva amazônica – em Bates (1979).

Dos estranhos animais observados por Thevet, às extensas

coleções

de

Martius,

muitos

avanços

científicos

vieram

dessas

explorações, e a figura do cientista viajante sobrepujou o cientista de laboratório. Os naturalistas tinham às vezes interesses distintos de seus patrocinadores e se motivavam pela possibilidade de novas descobertas, tão cheio delas que foi o século XIX.

O relatos de viagem, característica e produção indelével do viajante A característica dessas viagens está principalmente no produto que

surge delas: os relatos. É uma das coisas que dá identidade ao viajante na

sua passagem 1. Esses relatos são personificados na forma do Diário de

viagem (Leite, 1996, p. 26). Há portanto uma relação entre a ação, o ato 1

Figueiredo (2010), por exemplo, indica na abordagem sobras as diferenças entre turista/viajante, a

produção das fotografias e filmes para os primeiros e a escritura dos diários de viagem para os segundos, e obviamente a mistura desses dos tipos e desses dois produtos que também acontecem. ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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de viajar e o texto. Um texto agora produzido com a finalidade de

divulgar ao público as ‘maravilhas’ e o exotismo das regiões visitadas.

São principalmente narrativas sobre o outro, evidência da fronteira, reafirmada de dentro da experiência de ser estrangeiro (Leite, 1996,

p.14). Os viajantes “observaram, descreveram e classificaram o mundo social refletindo, por comparação, sobre a vida cotidiana do grupo visitado” (Moreira Leite, 1997, p.15).

Segundo Leite (1996), a escolha dos temas e locais de pesquisa

dos viajantes naturalistas se dava por muitas questões, entre elas:

Interesse Pessoal (desenvolvimento científico, o interesse de estudar e pesquisar países e culturas diferentes dominou a mentalidade intelectual

do século XIX); O lugar visitado (algumas regiões apresentavam-se como

enigmáticas e exóticas, perfeitas para saciar a curiosidade científica); O interesse financeiro da viagem (a descoberta de minérios, ervas,

produtos) e; O interesse do público leitor, que gerava uma relativa “cultura” de leitura dos relatos de viagem.

Mas é necessário observar, de acordo com Matos, que a literatura

87

dos viajantes do período é de valor muito desigual, “pois entre eles há de tudo:

grandes

naturalistas,

comerciantes,

agentes

diplomáticos,

missionários protestantes, pintores, etnólogos, militares, médicos, e até

simples aventureiros que vieram tentar a vida em nosso país” (Matos,

1999, p.12). Esses escritos, portanto refletem essa diversidade de tipos e

formações, objetivos de viagem, forma como viajaram, etc. Alguns passaram muito tempo em pesquisas detalhadas com visões não tão

etnocêntricas, outros no entanto foram breves, por talvez não conseguir

alcançar seus objetivos, as vezes perniciosos, de ter vantagens nas novas terras.

Matos (1999, p.12) ainda ressalta dois momentos, no caso do

Brasil, onde se pode facilmente distinguir os relatos de viajantes: o que foi escrito antes da transferência da corte portuguesa para o Brasil, quando os viajantes não tinham autorização para a pesquisa, e o que foi produzido depois, com a abertura do Brasil em 1808. Antes, o que era

produzido tinha um caráter de crônica de curiosidades, haja vista a falta

de liberdade dos viajantes em percorrer o Brasil. Após esse período, a

simples curiosidade cede lugar às pesquisas científicas, com expedições

de vários tipos, tamanhos e formatos, de estrangeiros pelo interior do Brasil. É claro que há um interesse muito claro, principalmente para os

financiadores e governos estrangeiros, em mandar seus principais cientistas às terras mais longínquas, como a América do Sul, Polinésia, ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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África e Austrália: a busca por riquezas econômicas ou substâncias novas importantes para a fabricação de algum artefato ou para o comércio.

Viagens e viajantes, características fundadas em relatos e representações A

partir

da

leitura

dos

relatos,

identificaram-se

algumas

características que estruturam uma representação de viajante e da viagem. Dos relatos, brotam quase sempre as impressões sobre o lugar

visitado, sua população, as organizações locais, os inventários de vegetação e fauna, as características geomorfológicas, etc. No entanto, no momento em que o viajante descreve, ele emite opiniões sobre o que

esta sendo observado e também, indica auto-representações sobre ele mesmo, e sua capacidade de estar ali e de apreender ou não as coisas que aconteciam na sua presença.

Nesse processo também reflexivo e mais ainda, dialético, vai sendo

construída a ideia de viajante baseada em alguns tipos ideais. Essas

construções dizem respeito, sobretudo às características do viajante e da

88

viagem que aparecem nos relatos, a partir da fala dos viajantes, seus

interlocutores e as situações pelas quais ele passa, sistematizadas nas seguintes pré-categorias.

O viajante explorador: possui como característica a perseguição da

descoberta, de desvelamento de incógnitas, de composição de mapas

com novos contornos. É cientista, mas também se preocupa com o ineditismo e com as possibilidades das descobertas. Mas não se pode

esquecer que explorar quer dizer também tirar proveito ou utilidade de alguma situação.

O viajante conquistador: encerra ao mesmo tempo a ideia de

viagem de exploração, com descobertas de novos lugares e regiões, e a

ideia de tirar proveito de uma situação ou local, de suas potencialidades.

Além disso, o viajante conquistador subjuga, conquista pelas armas e

vence. Ele está presente no colonialismo dos séculos XVII a XIX, e é representado por viajantes que se lançaram a conquistar novas terras para reinos europeus.

O viajante comerciante: um marchand, o mercador é o arquétipo

do viajante que, de um país para outro, leva e traz mercadorias para

serem negociadas. As preocupações dele são geralmente indicadas pela possibilidade de realizar bons negócios. Que tipos de pedras preciosas ele pode encontrar, quais as especiarias exóticas que farão sucesso na

Europa e em outros centros. A exploração comercial não estava apenas

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no encontro de mercadorias e produtos que pudessem ser consumidos

na Europa ou já nos Estados Unidos. Era também grande motivador das

viagens as conquistas territoriais e dos povos dessas áreas para a criação de novos mercados. .

O viajante pesquisador-cientista: o pesquisador viaja para outros

lugares munido de equipamentos de pesquisa, mais sua curiosidade

infinita. O naturalista é o viajante intrépido, destemido, corajoso, investigador, atrás de uma boa dose de fama, após uma “revolucionária descoberta”.

O viajante aventureiro: Esse tipo de viajante consegue ser movido

pela experiência arriscada da viagem. Não é qualquer um que pode ou

deve. Ele se lança ao desconhecido pelo “prazer” de ser desconhecido e portanto arriscado. Aliado à incógnita, está o risco. Quanto mais arriscada é a viagem e, também as atividades associadas a ela, mais o viajante se satisfaz.

Disso que chamamos pré-categorias, esboçam-se certas imagens

(Figueiredo, 2005), que após se tornarem clichês delas mesmas, indicam

89

uma possível separação entre um viajante puro e as mutações ordinárias e profanas desse mesmo modelo:

• Aspectos colonizante, conquistador e existencial;

• Uso de cadernetas de viagem, para anotações, diários, etc; • Relatos de viagens transformados em livros; • Liberdade;

• Aventura;

• Curioso e Sensível;

• Noticia a diferença;

• Cientista: exploração científica;

• Descoberta, invenção, inauguração, olhar investigativo; • Viagens de estudo, pesquisa, inventário;

• Cortar momentaneamente os vínculos com o lugar de origem; • Habita o não-lugar e alhures, ou seja, a suspensão;

• Usa

uniformes

e

equipamentos

cadernetas de campo.

para

exploração

(bússola),

O viajante aparece hoje como categoria complexa, pois se desloca

entre os clichês dos filmes holywoodianos e livros de aventura, os

estudos

científicos

pautados

principalmente

na

sociologia

do

deslocamento, ou da viagem, ou ainda da errância (Maffesoli, 2001). A construção do agente social “viajante’, diz respeito não só às visões estereotipadas produzidas pelas obras artísticas, mas também está ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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contida no produto da viagem: o relato. Relato que possui varias formas, em diários de viagem, ou outros gêneros híbridos.

A representação da viagem e do viajante provém do relato dos

viajantes, e se fundaram principalmente no que aconteceu com os cronistas e os viajantes naturalistas. Atualmente, se busca também

nessas fontes a diferenciação dos conceitos de viagem e turismo, que pode ser vista em Boorstin (1971), Urbain (1986, 1993 e 2011), Amirou (2001) e Christin (2000 e 2008), entre outros. De variadas formas, as

qualidades do viajante, calcadas nos cronistas e naturalistas, vêm à tona

com mais facilidade, deixando ao turista apenas a parte ruim da prática (Figueiredo 2010).

Le voyageur recherche l’autre, l’ailleurs “autentique”, “inviolé’, de ses semblables, comme l’indique la quête de lieux de plus en plus éloignés... Et ses semblables son partout, lui renvoyant sa propre image, même au bout du monde. Un comble! (Christin, 2008, p.34).

Assim, as características do viajante e da viagem se reforçam em

90

diferenciação ao turismo. Amirou (2001) por exemplo indica uma

propensão à considerar nos estudos sociológicos franceses uma diferença nos graus de relação com a viagem, ou ao que se pode entender como “autenticidade da viagem”, mesmo recuperando as ideias de Maccannell

(2003) sobre a autenticidade turística. No estudo de Figueiredo (2010), é

possível observar que mesmo a viagem tem seus críticos, e que o viajante puro aparece em variadas formas, e até mesmo na viagem turística. Considerações Finais A viagem parece ser um daqueles eventos que precisam de registro

para se perceber que ela ocorreu, uma espécie de “prova”. Mas

obviamente não é só isso. O registro da viagem significa muitas coisas. É

por exemplo a tentativa de proporcionar aos outros as sensações pelas

quais o viajante passou; é também registrar para não esquecer e

rememorar depois, e por sua vez, ativar as percepções do momento, eternizando-as.

O narrador viajante é a principal figura na formação e solidificação

do chamado relato de viagens (recit de voyage). Esse narrador é

personificado pelo viajante, que após atravessar o mundo por variados motivos relata, fielmente ou não, suas experiências e aventuras. O homem em busca da verdade escreve a verdade. Assim, a grande dialética ENSAIOS | VIAJANTES E REPRESENTAÇÕES SOBRE A VIAGEM | SILVIO LIMA FIGUEIREDO


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inicial na constituição da ideia de viajante está na sua formação como narrador de fatos verídicos ou como narrador de fatos verídicos e de alguns fatos não tão verídicos assim.

Essa relação entre lugar a explorar (Brasil), narração da viagem

(relato) e viajante, forma uma série de conceitos, e entre eles a ideia de

viajante europeu intrépido, desafiador, aventureiro, construído em séculos de explorações. Da mesma forma, cria no lugar visitado a mesma noção de explorador, mas dessa vez imbricada na noção de colonizador, onde as relações

de poder

estão presentes

e fazem parte da

representação de viajante para os moradores dos locais visitados.

Além disso, está na base de uma das ideias mais recorrentes em

relação à viagem: A viagem é uma necessidade transformadora. Ela é ação humana importante para a formação do homem. Viajar é um ato de

transformação e de educação. É uma prática densa, e quem a faz passa por uma experiência profunda.

91

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O Sistema Alternativo de Viagens e Turismo das Periferias do Recife

Rosana Eduardo da Silva Leal

Doutora em Antropologia, mestre em Comunicação e Bacharel em Turismo – UFPE.

Professora do Núcleo de Turismo - UFS.

93

Introdução No Brasil há hoje uma pluralidade de práticas criativas que

florescem nas capitais, bairros e cidades do país. São intervenções que

chegam

como

possibilidade

de preenchimento

das

lacunas

deixadas pelo Estado, representando ainda soluções cotidianas de

inclusão social e resistência ao modelo macroeconômico vigente. Trata-se de um espaço de produção, troca e consumo que desempenha

importante papel social e econômico nas localidades, principalmente por estar ligado às reais necessidades de seus produtores e usuários,

tornando-se

ferramenta

viabilizadora

de

trabalho,

moradia,

alimentação, saúde, educação, transporte e lazer (Motta & Scott, 1983).

A economia gerada neste universo é antes de tudo uma

economia simbólica, endógena e relacional, que reflete estilos de vida,

redes de solidariedade e vínculos sociais 1. É neste universo que está situado um modelo alternativo de organização de viagens e turismo das

1

São modelos econômicos que escapam aos valores utilitaristas do mercado, “[...] estando repletos

de historicidade, de culturas, de trajetórias singulares, de experiências de vida individuais e coletivas” (Zaoual, 2006, p.26), oferecendo uma multiplicidade de produções socioculturais passíveis de serem estudadas.

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DA SILVA LEAL


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periferias recifenses, que durante todo o ano promove o deslocamento

de grupos para espaços naturais, históricos, eventos culturais e religiosos, bem como centro de compras e diversão. Trata-se de um

modo artesanal e biográfico de empreender viagens, que tem importante papel no cotidiano de indivíduos e grupos, sendo acionados como fonte

de trabalho e lazer, meio de devoção, consumo, sociabilidade e aprendizagem.

O sistema e seu modus operandi O sistema alternativo de viagens e turismo é um velho conhecido

dos recifenses. Basta conversarmos com amigos, parentes e pessoas próximas

para

identificarmos

que,

de

alguma

forma,

tem-se

o

conhecimento de alguém que esteja direta ou indiretamente vinculado a tal meio de mobilidade, seja como organizador ou usuário.

A presença desse modo de viagem pode ser cotidianamente

observada em classificados de jornais, nos panfletos espalhados nos

94

muros e postes da cidade e no fluxo de ônibus particulares que circulam

dia e noite pelas ruas em direção a espaços de shows, vaquejadas, feiras,

parques temáticos, resorts, hotéis-fazenda, eventos religiosos, festas municipais, praias, espaços históricos, destinos turísticos e centros de compras. Trata-se de uma dinâmica que não reflete um todo coerente,

pois absorve uma infinidade de modos de fazer viagens, coexistindo

distintas formas de trabalho, lazer, devoção e consumo, sendo ainda uma atividade social, de encontro, de atualização e intensificação de vínculo

de amizade e de vizinhança.

Para seus produtores apresenta-se como meio de complementação

de renda familiar desenvolvido em conjunto com os demais afazeres cotidianos. E para os consumidores aparece como fonte de convívio social, forma de lazer e de acesso a locais e práticas turísticas.

Os responsáveis pelos grupos, conhecidos também como fretantes,

são em grande parte moradores de bairros populares da cidade que atuam

durante todo o ano no processo de organização, busca de novos participantes, venda e acompanhamento de viagens. São responsáveis por

levar grupos – de donas de casa, estudantes, trabalhadores, membros de associações de bairro e sindicatos, bem como grupos de igrejas, amigos

e/ou parentes – para espaços naturais, históricos e turísticos, eventos culturais e religiosos, bem como centro de compras e diversão.

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Na maioria das vezes o trabalho desempenhado pelos fretantes é

feito no ambiente doméstico. É no lar que são confeccionadas as programações de viagens, sendo também o local onde os primeiros contatos com os participantes começam a ser feitos. A residência é o

ambiente onde boa parte das trocas financeiras é realizada, servindo também como ponto de partida e chegada dos ônibus, bem como local de apoio aos viajantes na saída e na chegada da viagem.

Grande parte das redes sociais que sustenta tal sistema é

proveniente de contextos como a família, a escola, o bairro, a vizinhança ou o ambiente de trabalho. Sua produção é pautada numa economia

personificada, que leva em consideração o contexto onde são produzidos

os serviços e os atores sociais envolvidos. Assim, mesmo estando embasado

em

efemeridades

temporais

e

espaciais

próprias

das

experiências de deslocamento, consegue manter laços duradouros com seus integrantes. Isso se deve à importância que tal sistema desempenha

no cotidiano de bairros e redes sociais locais, apresentando-se como meio de deslocamento para diversos indivíduos e grupos.

95

As trocas financeiras também podem ocorrer nas residências e

locais de trabalho dos participantes ou através de pessoas em comum,

que mensalmente repassam os valores dos parcelamentos feitos. Não há

uso de cartão de crédito e/ou contrato para adquirir os serviços oferecidos, pois as relações monetárias estão inscritas na confiança mútua, baseada na palavra de quem comercializa e de quem adquire.

Os tipos de viagens têm intrínseca relação com as estações

climáticas, as festividades e feriados, o que faz com que absorva participantes de diferentes faixas etárias, gostos e estilos de vida. As principais categorias de deslocamentos são:

Passeios: percursos de curta duração que são destinados a práticas

de lazer ocorridas em um único dia. Podem incluir a ida a uma

praia, a um parque aquático ou de diversão, a participação em eventos noturnos ou festividades diurnas em municípios próximos, bem como a permanência em um hotel por um dia;

Romarias: deslocamentos por motivação religiosa que seguem o calendário

de

festividades

locais

e

nacionais.

Podem

ser

constituídos tanto por viagens de curta duração, que percorrem santuários em municípios ou estados vizinhos, como também de longa duração, perpassando centros de peregrinação situados em outras regiões do país;

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Turismo:

atividades

viagens de

que

lazer

envolvem

no

local

permanência

visitado.

em

hotéis

Normalmente

e

são

deslocamentos que ocorrem em períodos de férias ou feriados prolongados em direção a municípios ou estados próximos;

Viagens de compras: modalidade utilizada como meio para chegar

aos centros de comércio de roupas destinados a consumidores e revendedores. Para esses últimos, as viagens apresentam-se como

forma de reabastecer os estoques de confecções comercializadas

nos locais de origem. Já para os consumidores, a visita aos centros de compras é motivada pela aquisição destinada ao consumo familiar.

A região Nordeste aparece como principal área de circulação dos

grupos, concentrando-se principalmente entre os estados situados entre

a Bahia e o Ceará. As viagens também são organizadas para as demais regiões brasileiras, sobretudo Sudeste e Sul, mas em bem menos quantidade quando comparadas às que circulam no âmbito nordestino.

96

a) A divulgação

O sistema alternativo conta com múltiplas formas de divulgação,

podendo ocorrer através de classificados de jornal, anúncios espalhados em espaços públicos, ligações telefônicas, comunicação boca-a-boca,

envio de cartas e visitas domiciliares. Tais ferramentas podem variar

conforme cada fretante, que decide as formas de promover suas programações e roteiros.

O primeiro e principal meio de divulgação é o boca-a-boca, que acontece

sobretudo no âmbito do bairro e das redes sociais que congregam amigos, clientes, vizinhos, familiares e colegas de trabalho. “Eu trabalhei

com uma agência [...] então a dona da agência dizia que invejava nós free

lancers, porque nós tínhamos uma arma muito poderosa que era o bocaa-boca. [...] A gente arrumava mais gente que a própria agência (Mariete, setembro/2008)”.

Dona Zilda, uma das viajantes entrevistadas, ficou sabendo da

existência de um grupo de viagem durante as aulas de hidroginástica no

bairro onde mora. Ao comentar que gostaria de viajar mas não sabia com quem, foi informada pela amiga sobre as excursões de Irma e Rinaldo.

Desde então, passou a fazer parte do grupo, divulgando aos seus familiares e amigos os serviços dos fretantes. Hoje, Dona Zilda já conseguiu novos participantes para as viagens e salienta: “o pessoal aqui ENSAIOS | O SISTEMA ALTERNATIVO DE VIAGENS E TURISMO DAS PERIFERIAS DO RECIFE | ROSANA EDUARDO

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do mercadinho, Rosalva, a tia dela, o marido da tia dela, tudinho vai

agora pra São Paulo. [...] perguntaram como era, aí eu dei o telefone dela [de Irma] e eles se comunicaram” (Dona Zilda, agosto/2008).

As ligações telefônicas também representam importantes meios de

divulgação, sendo utilizadas sobretudo para manter o contato com

clientes antigos ou mesmo para comunicar-se com os que moram em municípios mais distantes.

Alguns fretantes costumam espalhar os anúncios em muros,

postes, paradas de ônibus e paredes do comércio do bairro e nas localidades vizinhas (foto 01).

97 Foto 01: Anúncio em parada de ônibus Fonte: acervo da autora

Entretanto, nem todas as viagens são divulgadas em locais

públicos por precaução contra roubos. Entre os fretantes, há uma preocupação constante quanto à possibilidade de ter assaltantes se passando por passageiros, sobretudo quando se trata de viagens de compras, como explica Laerte Batista:

Menos Toritama e Santa Cruz pra poder não dá muita divulgação aos

bandidos. Porque os bandidos vão passar e vê um adesivo daquele, né, colocado. Aí liga, diz que é um passageiro, eu vou buscar e aí pode

tentar roubar os passageiros. Aí, não boto, de jeito nenhum. [...] Já fiz

antes, hoje eu não faço mais. Eu já tenho os passageiros já certos de viajar (Laerte Batista, agosto/2008).

Os fretantes atuam não apenas no lar e no próprio bairro, pois

muitos deles precisam percorrer outras cidades interioranas e bairros vizinhos para fazer as visitas domiciliares. “Eles ligam pra mim aí marcam

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o dia pra vim trazer o dinheiro. Tem vez que eu vou pegar” (Dona Celeste, agosto/2008).

O envio de carta é um recurso usado para comunicar-se com os

clientes que moram em outros municípios e cidades. Já a internet é utilizada, sobretudo, como ferramenta para pesquisar hotéis e enviar

programações junto às redes sociais. Entretanto, representa uma tecnologia ainda pouco utilizada pelos fretantes, seja pela falta de acesso ao computador, seja pela falta de familiaridade com o mesmo. Tal

recurso é manuseado principalmente pelos filhos, que ajudam na confecção da folheteria utilizada. “Eu tenho internet, mas muitas coisas

quem faz é minha filha que trabalha na prefeitura. Eu digo: Kelma me

ajuda, manda a programação. Eu peço pra ela fazer, digo o site do hotel e ela olha para mim” (Mariete, setembro/2008).

Para alguns organizadores anunciar em jornais se transformou em

uma prática constante, tornando-se um meio de ampliar o número de clientes. Os fretantes que são assinantes dos jornais têm a possibilidade de anunciar seus roteiros sem nenhum custo adicional. Outros preferem

98

não divulgar em meios de comunicação, justamente para ter o controle diante dos novos viajantes. É o caso do casal Irma e Rinaldo: “Porque não

é só o cliente ter dinheiro pra viajar. É saber quem eu vou levar para a

minha viagem. Então, não colocamos em jornal, não colocamos em rádio,

não colocamos em internet que é a fonte maior hoje em dia” (Irma, novembro/2008).

Os cartões pessoais são utilizados com intensa frequência para

divulgar o contato e os serviços ofertados. Estes normalmente incluem o

nome do fretante ou do empreendimento, evidenciando as modalidades de viagens e os destinos trabalhados.

Cartão pessoal de fretante

Alguns

integrantes

também

conseguem

trazendo pessoas das suas redes sociais.

vender

as

viagens

“Eu arrumo passageiro. Aí

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quando eu arrumo dez, ela me dá a minha, como ela faz com qualquer pessoa. Arrumou dez passageiros ela dá a passagem da pessoa. Aí é

assim que a gente faz. Divulgo as viagens dela”, como contou Laura, cliente e amiga de Dona Edilma.

Uma prática bastante usada pelos organizadores é a divulgação de

folhetos com as programações mensais, semestrais e anuais das viagens. Estes são repassados para amigos, familiares e vizinhos e são

distribuídos também durante os deslocamentos para promover as próximas viagens.

Para identificar e promover o respectivo trabalho, muitos fretantes utilizam nomes comerciais que aparecem em anúncios, programações, bolsas,

carnês

e

brindes.

Tais

acessórios

foram

constantemente

observados entre os viajantes durante os percursos turísticos, indicando a participação em viagens anteriores. b) Os transportes

Embora algumas viagens turísticas incluam o uso do avião, o

99

ônibus continua sendo o principal meio de transporte utilizado. Os fretantes

costumam

contratar

tanto

os

serviços

de

empresas

convencionais quanto cooperativas de trabalhadores autônomos que atuam com ônibus fretados. Essa escolha é feita conforme o perfil do grupo, o tipo da viagem, os custos de cada deslocamento e os destinos pretendidos.

Boa parte dos grupos pesquisados utiliza as mesmas empresas de

transporte contratadas por agências de viagem de Recife, pois o ônibus

representa um importante atrativo para os clientes, tornando-se um elemento fundamental para legitimar a qualidade da viagem, como declara uma cliente de Irma e Rinaldo: “Ela [Irma] anda com ônibus bom.

A gente foi pra Natal com um semi-leito da Guanabara” (Dona Zilda, novembro/2008).

Para alguns organizadores, os ônibus fretados são utilizados para

trajetos de curta duração, servindo também como meio de redução do custo final da viagem:

Já viajei com empresa de turismo. Já viajei com a São Domingos, a Itapemirim, a Progresso, Princesa do Agreste, já viajei muito com essas

empresas, mas agora eu estou viajando com carro particular, porque essas empresas o preço é grande demais. [...] se eu for pegar uma

Princesa do Agreste, não sai por R$ 290,00, sai por mais. Meu pessoal não tem condições de pagar (Dona Celeste, setembro/2008).

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Diferentemente da padronizada estética clean dos transportes do

mercado turístico convencional, os ônibus fretados remetem ao universo

material e simbólico de seus condutores. Cada motorista decora a

fachada externa e o interior do veículo a seu modo, escolhendo os desenhos, o nome promocional e as frases expressas na lataria. Esses

meios de transporte remetem muitas vezes a biografia de seus donos, que definem cores, nomes, frases, formas de divulgação, decoração interna e regras de utilização do veículo (foto 02).

100 Foto 02: Identificações dos ônibus fretados Fonte: acervo da autora

Como

considera

Hoggart

(1973),

os

transportes

fretados

evidenciam um barroquismo estético que traduzem a miscelânea, o excesso

e

a

exuberância

de

ornamentos,

aproximando-se

das

caminhonetas descritas pelo autor em seu livro “As utilizações da cultura 1”, quando descreve que

são luxuosamente estofados e decorados, tanto no exterior como no interior,

sobretudo

quando

pertencem

a

uma

pequena

firma

especializada em excursão de um dia para as classes proletárias (1973, p. 176).

Essas singularidades estéticas tornam-se muitas vezes objeto de

concepções preconceituosas e estigmatizadas no mercado turístico

convencional. É o que fica claro na análise de um proprietário de ônibus fretado:

Hoje nós temos no turismo uma discriminação muito grande. Depende

do ônibus, pois os empregados de empresas discriminam os ENSAIOS | O SISTEMA ALTERNATIVO DE VIAGENS E TURISMO DAS PERIFERIAS DO RECIFE | ROSANA EDUARDO

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proprietários de ônibus. Para mim, carro novo não enche os olhos (Dono de ônibus, julho/2008).

fato

Grande parte desses veículos é conduzido pelos próprios donos,

que

permite

uma

relação

mais

próxima

com

os

transportados, como esclarece Dona Celeste (setembro/2008):

grupos

Esse mês eu vou com fulano, próximo mês vou com aquela pessoa, no outro eu vou com outra pessoa. Tem vezes que dizem: Dona Celeste,

tira aquele mesmo ônibus. A gente vai. Pega aquele mesmo motorista. Tá entendendo? O ano passado eu fui pro Juazeiro com uma pessoa.

Esse ano eu vou com a mesma pessoa, porque meu grupo gostou, pediu pra eu tirar aquele mesmo carro, mesmo motorista. Porque ele é policial e motorista.

Muitas vezes são os proprietários dos ônibus que planejam,

divulgam e executam os deslocamentos, não havendo nesse caso

mediadores. Tais profissionais normalmente estão ligados a uma cooperativa que serve para cuidar da documentação exigida. “Cada dono

101

tem que correr para conseguir seu cliente. A gente mesmo cria a viagem e vende a passagem” (proprietário de ônibus, julho/2008). Considerações finais Nesta pesquisa partimos do pressuposto que a viagem turística

tem permeado cada vez mais o dia-a-dia de diversos atores, localidades

e estratos sociais. Mesmo assim, os estudos sobre tal fenômeno tem

tradicionalmente valorizado certos segmentos sociais em detrimento de

outros. Um bom exemplo refere-se às práticas alternativas no turismo 2, que são estudadas tradicionalmente a partir de duas vertentes. Uma que

observa o fluxo de visitantes interessados no contato humanizado com ambientes, culturas e residentes. E outra que focaliza modos alternativos de desenvolvimento da atividade conduzidos por comunidades anfitriãs

formadas por moradores de favelas, bairros populares, zonas rurais e 2

O turismo alternativo emergiu nas décadas de 1970 e 1980 como resultado da insatisfação das

comunidades locais e os turistas diante dos prejuízos causados pelo turismo de grande escala. Desde

então, passou a representar modelos de desenvolvimento turístico de pequena escala que envolve baixo impacto ambiental e alto grau de participação local, atuando como contraponto ao modelo de turismo convencional. Nos dias atuais, transformou-se em uma rubrica tradutora de práticas

turísticas compatíveis com os valores sociais e culturais locais, cuja finalidade é proporcionar experiências gratificantes tanto para as comunidades quanto para os convidados (Smith; Eadington, 1992).

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costeiras, bem como povos indígenas e remanescentes de quilombos (Coriolano, 2009).

Dificilmente

encontramos

estudos

que

desvinculem

tais

populações do papel de prestadoras de serviços no turismo para

concebê-las como produtoras e, sobretudo, consumidoras de suas próprias viagens. Quando isso acontece, são consideradas como

demandas turísticas dependentes dos subsídios do Estado ou mercado, que as concebem “[...] quase que exclusivamente pelo ângulo da carência material e desigualdade social” (Barbosa, 2006, p.09).

Como sabemos, as viagens turísticas têm sido historicamente

marcadas por privilégios e privações sustentadas por diferenças sociais, políticas e econômicas que tanto impulsionam quanto restringem os fluxos de pessoas (Galani-Moutafi, 2000). Por isso, concordamos com Santos Filho quando percebe que,

no cotidiano, a temática do turismo sofre o estereótipo de ser

entendido como uma atividade destinada exclusivamente a viagens das classes sociais abastadas. O termo turismo padece de um

processo de compreensão elitista, mascarando uma realidade social

102

extremamente desigual [...]. (Santos Filho, 2005, p. 56)

Entretanto, mesmo sendo fenômeno produzido pelo capitalismo

dos tempos modernos, o turismo está longe de ser apreendido sob a

perspectiva linear e consensual, uma vez que em seu interior há um processo dialético de duas forças e dois sentidos. A primeira é a que a promove,

constituída

pelas

empresas

e

instituições

nacionais

e

internacionais, e a segunda é formada pelas forças locais que resistem a

essa hegemonia, construindo novas formas de pensar e produzir a atividade.

É certo que a atividade turística está em grande medida a serviço

do mercado como parte da indústria massiva do lazer. Mas sabemos que se trata de um fenômeno contraditório, diverso e conflituoso, sendo produto de negociações e embates, com rupturas e continuidades, posto

que, na contemporaneidade tornou-se “[...] uma inspiração de todos os incluídos na sociedade global de consumo” (Barretto, 2006, p.08),

impondo-se não só nas camadas sociais mais elevadas ou medianas, mas também nos grupos menos favorecidos economicamente.

Por isso, consideramos que o sistema alternativo da Região

Metropolitana do Recife representa um contraponto à racionalidade neoliberal, atuando como uma forma de enfrentamento à hegemonia

mercantil. Trata-se de um campo de ação social que cotidianamente ENSAIOS | O SISTEMA ALTERNATIVO DE VIAGENS E TURISMO DAS PERIFERIAS DO RECIFE | ROSANA EDUARDO

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promove “quase sem ser notado” um processo silencioso de acesso a distintas formas de deslocamento, movimentando uma economia baseada em relações de confiança, lealdade e reciprocidade. São práticas que “[...]

colocam em jogo um ratio ‘popular’, uma maneira de pensar investida

numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar” (Certeau, 2007, p. 42), indo de encontro às relações

impessoais e frágeis que a sociedade moderna vem construindo sob o invólucro do mercado, da utilidade e lucratividade.

Esses modos alternativos são conduzidos por uma multiplicidade

de artes de fazer que se misturam à vida social dos que dele fazem parte. São práticas artesanais que viabilizam prestações econômicas não

inscritas nas lógicas da hospitalidade mercantil, ocorrendo através de relações interpessoais. Por isso, tem a capacidade de promover vínculos e

estimular o social, sendo pautado no que Bourdieu (1996) chamou de “economia antieconômica” em que o lucro puro e simples dá espaço ao dom 3.

Ao lado da circulação dos bens e serviços no mercado, ao lado da

circulação garantida pelo Estado sob a forma da redistribuição, há com efeito um imenso continente socioeconômico mal percebido, no qual

103

bens

e

serviços

transitam

em

primeira

instância

através

mecanismos do dom e do contra-dom (Caille, 2002, p. 10).

de

Como demonstramos no trabalho, os condutores deste sistema

dialogam criativamente com o mercado, reelaborando-o conforme suas necessidades.

Neste

processo

retiram

dominante apenas o que lhes interessa.

astuciosamente

do

modelo

Por isso, acreditamos ser politicamente crucial focalizar produções

cotidianas liminares, considerando-as como um terreno frutífero de

construção e elaboração de táticas que promovem novos signos de

pertencimento. No caso do turismo, é necessário que haja um estímulo a pesquisas que possam abordar grupos sociais “supostamente” situados à

margem da indústria turística, distanciando-se do olhar pragmático que os visualiza como populações subservientes, excluídas ou subjugadas ao

domínio do mercado. 3

O paradigma do dom considera as múltiplas lógicas da ação social existentes na modernidade, que

não estão vinculadas a determinantes econômicos, individualistas nem burocráticos. Trata-se de um

paradigma interpretativo que incide nas ações, não na estrutura. “A compreensão da dádiva como sistema permite romper com o modelo dicotômico típico da modernidade, pelo qual a sociedade ou

seria fruto de uma ação planificadora do Estado ou do movimento espontâneo do mercado” (Martins, 2002, p.09).

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Como defendeu Santos, é preciso “[...] entender os fatos turísticos

como fatos sociais totais, construindo a partir de (ou, talvez, contra) suas aparências

imediatas

uma

ordem

de

problemas

sociológicos

e

antropológicos significativos” (Santos, 2005. p.44). Este é um exercício

que precisa ser feito na tentativa suplantar preconceitos existentes para poder trazer à tona pessoas, lugares e redes sociais também presentes na cadeia produtiva do turismo.

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | ABRIL - 2012 | P. 93-105

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105

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Ética e Estética de uma Prática Moderna: é possível interrogar o Turismo?

Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

Graduada em filosofia, mestre em história, professora de História da Arte no curso de Turismo da UFVJM e doutoranda em história da Arte na FAFICH – UFMG.

106

O objetivo deste texto não é outro senão compartilhar algumas

inquietações que me assaltam desde que comecei a lecionar no curso de Turismo

na

UFVJM.

Responsável

pelas

disciplinas

de

filosofia,

antropologia, sociologia e mais recentemente história da arte neste curso, dediquei-me à tentativa de compreensão do fenômeno turístico, temática que até então não estivera no meu horizonte.

Evidentemente, pela complexidade do tema em sua inter-relação

com o lazer, com a dinâmica da sociedade pós-industrial, com discursos e políticas permeados de interesses econômicos menos ou mais

justificáveis, tenho colecionado mais perguntas do que respostas. O que, pela minha formação filosófica não desabilita nem desabona o debate. Partindo da compreensão do turismo como

um

fenômeno

moderno, próprio do capitalismo 1, produzido na tessitura de uma malha societária complexa e multifacetada, interrogo-me sobre a ética do

turismo. Não no sentido mais imediato de uma prática moral cujo juízo de

valor

se

ancora

no

discurso

do

combate

à

pobreza

e

da

sustentabilidade (que se tornou termo obrigatório a reboque de um

1

CORIOLANO, Luzia Neide de Menezes Teixeira. (2006), O Turismo nos Discursos, nas Políticas e no

Combate à Pobreza. São Paulo: Anablume.

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modismo que por vezes esvazia o seu conteúdo realmente desejável),

mas no sentido de compreender a radicalidade do ethos 2 que suporta

esta prática, aqui especificamente em sua inter-relação com uma

abordagem estética.

O fio condutor desta reflexão é a compreensão de que no mundo

regido pelo capital há a produção da vida inautêntica. 3 Desde que, modernamente, o homem perdeu o domínio da totalidade do processo do

trabalho (que antes possuía exemplarmente nas corporações de ofício) e passou a ser regido por um trabalho estranhado, a vida prosaica e

inautêntica passou a ser a única realidade. É neste contexto que surge o

turismo, e suas condições de possibilidade, dentre elas, o desejo de escapar do trabalho que não mais realiza o homem nem o identifica enquanto humano. Este seria segundo Trigo, o lado “negativo” do desejo do turismo:

O escapismo, a fuga da vida medíocre, tensa, cruel e massificante que a grande maioria das pessoas é obrigada a agüentar como obrigações sociais,

profissionais,

religiosas,

acadêmicas,

éticas,

morais,

familiares. Não apenas o que nos é proibido, mas tudo que nos é

107

impingido consciência abaixo.

4

Este homem moderno, vincado pela transformação do seu universo

em todos os âmbitos, inaugura também uma nova ética. Esse conjunto de transformações

ou

crises

se

modernamente

como:

crise

de

consciência, crise religiosa, crise política, crise social e crise econômica.

Todo este contexto foi advindo de um momento anterior, transitório, de indefinição e ceticismo: o renascimento 5. Ainda que aqui um problema de

definição cronológica se imponha, não se pode negar que o homem

moderno estabeleceu um novo patamar de ciência, agora baseado em

uma nova visão de natureza, vale dizer, uma totalidade vivente que podia 2

Recomendo a leitura de VAZ, Henrique C. de Lima. (1988), Escritos de Filosofia II Ética e Cultura. São

Paulo: Edições Loyola. Especialmente o capítulo Fenomenologia do Ethos.

3 Para a compreensão desta questão recomendo a leitura de CHASIN, José. Marx, Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F. (1995), Pensando com Marx. São Paulo: Editora Ensaio. E

para a compreensão da questão da individualidade moderna e suas determinações na medida em que inauguram um novo patamar no processo infinito de autoconstrução do ser social, recomendo a

leitura de ALVES, Antônio José Lopes. (2001), A Individualidade Moderna nos Grundisse. In: Ensaios Ad Hominem/Estudos e Edições Ad Hominem – nº1, Tomo IV. São Paulo: Editora Unijui. 4 TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. (1998), A Sociedade Pós-Industrial e o Profissional em Turismo. Campinas: Papirus, 1998, p. 30.

5

CHAUÍ, Marilena. (1985), Filosofia Moderna. In: Primeira Filosofia. Lições Introdutórias. São Paulo:

Editora Brasiliense.

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e devia ser compreendida em si mesma, a partir da observação e passível

de comprovação pelo recém nascido método experimental. A nova ciência

da natureza, ancorada nos conceitos de causalidade e substância, passou a ser ativa e não mais especulativa. As explicações qualitativas e

finalísticas vigentes desde Aristóteles cederam lugar a explicações

quantitativas e mecanicistas. 6 Desapareceu então, pouco a pouco a busca

do saber pelo saber. O saber especulativo foi substituído por um saber prático, que a partir de então passou a ser orientado por interesses

pragmáticos e voltado para soluções de problemas concretos no mundo objetal. Assim a busca desinteressada pela verdade absoluta cedeu lugar

à busca de uma prática que ia ao encontro das novas necessidades e demandas criadas pelo mundo capitalista em expansão.

Talvez possamos ilustrar essa nova ética da ciência com a atitude

de Galileu, que preferiu viver negando a verdade na qual acreditava 7 do

que morrer, como Sócrates o fez, em nome da sua consciência. Ao

mesmo tempo, a partir da subjetividade cartesiana, o sentido de Comunidade

108

que

paulatinamente,

remontava

até

que,

em

à

Grécia

clássica

detrimento

da

foi

se

perdendo

objetividade

e

da

possibilidade da verdade, o homem ocidental chegou ao individualismo e à melancolia sobrevindos ao mundo moderno.

Na arte, assim como nas demais crises nos âmbitos já acima

mencionados, também se dá essa viragem em direção à subjetividade,

que, a despeito de tantos outros interesses ou funções que lhe possam ser atribuídos, denota a melancolia e a angústia do homem moderno. Há

autores

que

estabelecimento da arte

localizam

moderna. 8

no

momento

do

barroco

o

(No entanto, há os que localizam, por

exemplo, no desenho A Melancolia I de Dürer [cf. anexo] o sofrimento próprio do homem moderno. Este desenho de 1514 localiza-se ainda no renascimento. Um anjo que não voa, está sentado escorando o próprio

rosto com uma das mãos em visível desalento 9. Está entre objetos como

o compasso, a ampulheta, a esfera, a pedra cúbica, símbolos que remetem a um saber moderno mensurável e possivelmente à perda de 6 7

Idem, ibidem.

CAMENIETZKI, Carlos Ziller (2001), A Cruz e a Luneta. Ciência e Religião na Europa Moderna. Rio de

Janeiro: Access. 8

ARGAN, Giulio Carlo. (2004), Imagem e Persuasão Ensaios Sobre o Barroco. São Paulo: Companhia

das Letras. 9

Vários autores escreveram importantes obras sobre este desenho de Dürer. Eu recomendo

especialmente a leitura de Saturno e a Melancolia de Klinbansky, Panofsky e Saxl e ainda Mystères

Paiens de La Renaissance de Edgar Wind.

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uma visão de universo onde a existência de um céu físico e habitável permitia o vôo feliz dos anjos e o apascentamento das almas humanas).

Especificamente no que concerne à intelecção do barroco, gostaria de abordá-lo aqui como um estilo no qual as perdas dos processos

cognitivos correspondem a ganhos com processos imaginativos; onde para além do deleite estético se busca o utilitarismo; onde o interesse da imagem perde importância para o modo de comunicar utilmente o

imaginado; onde o belo não é mais o resultado, mas o móvel da arte;

onde o zelo devoto encoraja a conversão da religião em política; onde

uma função pedagógica e retórica toma o lugar da beleza como fim; onde a perspectiva é a objetivação do sujeito. Assim o barroco pode ser

compreendido de fato como uma manifestação moderna por excelência. Leitura obrigatória para essa intelecção, Giulio Carlo Argan 10 anuncia a atualidade do problema do barroco, que ora se apresenta mais amplo e complexo do que se mostrava no momento da sua formação e dos

historiadores da sua geração. Dando uma tônica crítica e enfática que se manterá em toda a obra, o autor afirma que a modernidade enquanto

109

atributo primordial de todo e qualquer produto da cultura é inventada pelo barroco.

De extrema importância é a identificação feita por este

autor entre arte e literatura do século XVII e um fim prático, político e religioso, no qual o poder não poderia prescindir do consenso, cuja obtenção lançaria mão inevitavelmente da persuasão e da propaganda. Persuadir tem nessa obra o sentido de “solicitar e acreditar em algo que não está presente, mas que apesar disso se coloca no horizonte do possível”

11.

Outra afirmação fundamental é a de que a perda da

segurança ética da qual o homem gozava até o século XV, isto é, a perda

da unidade ética entre arte e pensamento sobre arte, abre espaço, ao

mesmo tempo para um moralismo católico de difícil internalização e para o ideal de monumentalidade como resposta estética. Isto é, Argan afirma

que à crise ética moderna, o barroco responde com uma solução estética

monumental e persuasiva. Assim, o momento histórico do barroco transita do problema da verdade (do qual se afasta) para a aproximação

pela verossimilhança (sempre ilusória). É a partir dessas afirmações que

escolho a via da compreensão do barroco como uma apologia da ilusão. Poderíamos dizer uma apologia da mentira, no sentido do engano

10 11

ARGAN, Giulio Carlo. Idem, ibidem.

ARGAN, Giulio Carlo. Idem, ibidem. p, 8.

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dell’occhio. A arte que quer enganar um público que pede para ser enganado.

Argan ressalta que a técnica adquirida no século XVII se configura

como método em substituição ao sistema. Neste sentido, ele não tem objeto

próprio,

possuindo,

portanto,

uma

variedade

infinita

e

questionando a alma humana para elaborar meios eficientes de despertar

suas emoções. Esse processo, segundo o autor, é quase científico. A

esses modos de representar emoções corresponde uma profunda

exigência do público. Nesse ponto o autor nos adverte de que não há um desprezo cínico ou desesperado em relação ao verdadeiro, mas sim uma

constatação de que o verdadeiro e o verossímil têm o mesmo efeito para fins de persuasão. Assim, a demanda de persuasão, enquanto apologia

do falso ou da desconsideração do verdadeiro como valor absoluto condiciona a obra de arte no barroco.

Argan não contesta o fato de que na arte barroca há a prevalência

de motivos religiosos e morais, nem desconhece o fato de que ela foi amplamente utilizada pela igreja católica para fins de propaganda pelo

110

seu poder de persuasão. No entanto, ele afirma nesse ensaio – e aqui

está a meu ver a grande genialidade de sua crítica – que no barroco não

importa persuadir a isto ou àquilo, mas importa simplesmente persuadir. E apresenta o trompe-l’oeil, forma típica do barroco, como um caso dessa persuasão sem objeto. A esse respeito ele afirma:

o entendimento que se estabelece, não é sobre a qualidade do objeto,

mas sobre o processo ou o método de persuasão...à técnica de persuasão própria do artista corresponde no público a uma técnica igualmente complicada de deixar-se persuadir. 12

Também na literatura barroca, se pensarmos em Don Juan, cujo

conto surgiu na Espanha no século XVIII 13 (ainda que alguns autores apontem o século XVII como século da sua criação), é possível identificar

uma resposta estética a uma crise ética. Don Juan engana as mulheres às quais seduz. No entanto, estas mulheres, de certa forma, desejavam viver

a bela ilusão de serem únicas ou especiais, de serem escolhidas por seus atributos. É ainda uma vez o desejo de ser enganado corroborando e

justificando a substituição de uma realidade inóspita por uma inverdade bela e desejável. Assim Renato Mezán nos apresenta este conto em sua

12 13

ARGAN, Gian Carlo. Idem, ibidem. p. 38.

MEZAN, Renato. (2005), A Sombra de Don Juan e Outros Ensaios. São Paulo: Casa do Psicólogo.

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análise focada em Don Giovanni, a ópera de Mozart e a filosofia de Kierkegaard 14. É mais uma vez a representação do drama do homem moderno em suas contradições e buscas na cisão potencialmente desumanizadora do seu tempo.

A estética, no sentido de ciência da arte e do belo, não foi a única

forma de justificativa da mentira, ou do engano. Argumentos que justificam a mentira enquanto exceção do princípio ético da veracidade foram

criados

ao

longo

da

história

do

pensamento,

mormente

argumentos políticos, aceitos na medida em que a ausência da verdade se

convertesse em benefício da comunidade. Este tema encontra-se já em

Platão. Pode-se aqui apontar dois momentos basilares. Em A República,

Livro II (382, c), o filósofo afirma que a mentira pode ser útil e não odiosa. Assim, a mentira é:

...benéfica como o remédio com que atalhamos um mal, quando a usamos contra os inimigos ou quando algum dos que consideramos

amigos tenta praticar uma ação má, seja por efeito de um ataque de loucura ou de outra perturbação qualquer. 15

111

Ou ainda em A República, Livro III (389, b.c.), quando Platão afirma

que a mentira pode ser benéfica como um medicamento, ainda que a verdade seja estimada sobre todas as coisas. Neste sentido, assim como o remédio deve ser aplicado pelos médicos, a mentira ficaria reservada aos governantes, compreendidos como médicos da polis:

os quais poderão mentir com respeito a seus inimigos e

concidadãos em benefício da comunidade, sem que nenhuma outra pessoa esteja autorizada a fazê-lo. E se um indivíduo

enganar os governantes, será isso considerado uma falta não

menos grave que a do doente ou do atleta que mentem ao médico ou ao treinador em assuntos atinentes a seu corpo, ou a do marinheiro que não diz a verdade ao piloto sobre o estado do

navio ou da tripulação, ou as condições em que se encontram ele ou qualquer um dos seus companheiros. 16

14 15 16

Idem, ibidem.

PLATÃO. (1964), A República. trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1964, p. 61.

Ide, ibidem, pp. 66-67.

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Não se pode, contudo, esquecer que tradicionalmente a mentira é

condenada, seja em Aristóteles 17, seja na Bíblia 18 ou nos sermões do Padre Antônio Vieira 19, para citar alguns exemplos marcantes da nossa cultura.

Importa-nos aqui, compreender que, se a questão da verdade

acompanha o homem em sua jornada filosófica desde Sócrates, a questão

da mentira como ausência da verdade ou contraposição a ela não se faz menos presente. Assim, quando falamos da inautenticidade da vida moderna

e

das

angústias

por

ela

geradas,

é

para

interrogar

especificamente a prática do turismo neste contexto. É um percurso que se abona, quando se lembra que o deslocamento dos pilares da ética da

verdade para o que é justificável, permitiu que a bela mentira tivesse seu lugar de honra no mundo moderno. Aqui, a apologia da mentira não se

justifica mais pelo bem comum, mas pelo bem individual do deleite estético. Em última instância: do deleite. O deleite individual. Esta é a justificativa, o abono ético para a mentira que é o turismo. Não no

sentido verossímil e mensurável de uma indústria, uma atividade

112

econômica lucrativa ou uma ciência (debate que aqui não cabe abordar pela exigüidade de tempo e espaço), mas no sentido de criação de um intervalo

onírico

entre

os

dias

insuportáveis

da

vida

prosaica,

desumanizadora e degradante do mundo regido pelo capital. Na mentira

consentida, mais do que consentida, desejada, e consciente dos limites da falácia, assim como no tromp-l’oeil das pinturas barrocas, assim como

na opção das mulheres partícipes da lista de Don Juan, há a opção por

viver uma bela mentira temporária. Como nas viagens e nas atividades de lazer, o sonho tem hora marcada para acabar. O fim do deleite está

anunciado. Troca-se uma vida inautêntica por uma breve e bela falácia. E

17

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que a verdade por si mesma é nobre e merecedora de

aplauso e a mentira é vil e repreensível. Cf. ARISTÓTELES, Éthique a Nicomaque. Tricot, 1972, pp. 203-204. (Livro IV, 1127 a 25-30)

18

Paris, Vrin: Ed.

Em LAFER, Celso. A Mentira: Um Capítulo das Relações entre a Ética e a Política. In: NOVAES,

Adauto (org.). (2007), Ética- Vários Autores. São Paulo: Companhia das Letras. São citadas as

seguintes passagens da bíblia condenando a mentira: “Não dirás falso testemunho contra o teu

próximo” (Êxodo, 20:16; Deuteronômio. 5:20). “Iahweh abomina os lábios mentirosos e ama os que praticam a verdade” (Provérbios, 12:22). “A infâmia do mentiroso acompanha-o sem cessar” (Eclesiástico, 20:24; 20:26). Além de que no Novo Testamento Jesus reitera várias vezes a proibição concernente ao falso testemunho (como exemplo: Marcos, 10:19). 19

Assim pregou o Padre Antônio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga de Quaresma, na igreja maior

da cidade de São Luís do Maranhão, no ano de 1654: “A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu... A mentira ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena.

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o resultado, cada vez mais democratizado com os ganhos trabalhistas, no entanto duvidoso, pode ainda angustiar:

Deveríamos regozijar-nos, entretanto, com o fato de que o prazer,

outrora reservado a alguns privilegiados, seja hoje experimentado pela grande massa. A mobilidade, as férias, as viagens – conquistas sociais.

Contudo, a alegria que deveriam proporcionar não chega realmente a ocorrer. Isso porque a medalha tem um reverso: por aquilo que

conquistamos, somos obrigados a pagar, a dar algo em troca. Agora as conseqüências dessa nova liberdade de ir e vir, tão duramente conquistada, ameaçam sufocar-nos. Afinal de contas, teríamos realmente ganho, ou quem sabe, perdido alguma coisa? 20

O debate que gostaria de suscitar não trata do preço monetário ou

financeiro que estamos a pagar. Mas, trata-se de saber do preço humano que tudo isso custará. A beleza tem justificado a ausência da verdade,

mesmo nos discursos, desde a aurora da modernidade. No entanto, cada dia

mais,

parece-me

que

o

homem,

no

percurso

moderno

de

desumanização 21, abandona também a beleza como valor. Ainda que a

113

arte não seja uma conseqüência imediata e linear da sociedade, faz parte da urdidura da nossa sociabilidade. Pode ser um sintoma, ao menos, se

não a exata representação do que somos. A história parece mostrar que a conseqüência contemporânea da representação da idéia, (que no barroco tomou o lugar da representação da coisa) redundou no abandono da

beleza como valor estético. A arte não tem mais compromisso com o belo. A arte contemporânea não quer ser bela, quer negar a beleza. Será

possível identificar também, pouco a pouco, no turismo e no lazer, um movimento de distanciamento da beleza? Talvez o belo tenha sido

contemporaneamente desmascarado como a fantasia que inutilmente recobria a feiura da vida real. Talvez a crescente demanda por destinos turísticos feios, pobres, sujos e perigosos seja uma tentativa, um suspiro ainda, na busca da autenticidade da vida. Tentativa também equivocada,

também falaciosa, também inautêntica e acima de tudo, sem beleza. Talvez a beleza tenha sido identificada à ausência da verdade. Talvez

vivenciar um destino turístico distante do que até então se desejara como

20

KRIPPENDORF, Jost. (2001), Sociologia do Turismo. Para uma Nova Compreensão do Lazer e das

Viagens. São Paulo: Aleph. 21

LUC-FERRY, Jean; RENAUT, Alain. (1988) Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo

contemporâneo. São Paulo: Ensaio.

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o belo sonho, seja um arremedo de atitude revolucionária contra a vida mortificante que levamos contemporaneamente.

Não me coloco a questão da democratização do turismo, dos

efeitos do turismo de massa, da diferença entre turista e viajante, da

viabilidade do turismo sustentável e durável. Não porque estas questões

não sejam urgentes ou importantes. Pelo contrário, elas o são. Mas, coloco-me a questão mais radical da ética do turismo: o turismo como

escapismo (ainda que fugaz e ineficaz) tem o poder de reforçar a inautenticidade da vida contemporânea na medida em que alivia a insuportabilidade do cotidiano enquanto alimenta falsos sonhos? Está o

turismo reforçando a desumanização do homem enquanto desvirtua a potencialidade humanizadora dos deslocamentos da população e seus

possíveis encontros? Não cria o olhar do turista inevitavelmente um nãomundo em um sentido que se aproxima da compreensão do não-lugar 22?

Talvez possamos nos interrogar se o movimento de gradual abandono do

desejo de beleza como valor estético (não como valor sensual dos corpos) que se pode verificar na arte e no turismo, aponta para uma apologia do

114

anti-humanismo, o prazer mórbido do grotesco e do bizarro (que vai ao

encontro do que a mídia oferece abundantemente como produto à população) ou, de um ponto de vista mais otimista, aponta para a

negação da falácia da beleza como justificativa para a ausência de verdade. Por outro lado, cabe interrogar se o deleite individual justifica todo e qualquer nível de degradação humana e sua exposição e consumo.

O turismo não se separa do seu tempo. Interrogar radicalmente o

turismo faz parte do interrogar radicalmente quem somos nós. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Antônio José Lopes. (2001), A Individualidade Moderna nos

Grundisse. In: Ensaios Ad Hominem/Estudos e Edições Ad Hominem – nº1, Tomo

IV. São Paulo: Editora Unijui.

ARGAN, Giulio Carlo. (2004), Imagem e Persuasão Ensaios Sobre o

Barroco. São Paulo: Companhia das Letras. ARISTÓTELES. (1972), Éthique a Nicomaque. Paris, Vrin: Ed. Tricot. AUGÉ, Marc. (1994), Não-lugares. Introdução à Antropologia Supermodernidade. Campinas: Papirus.

da

Cf. AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução à Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. 22

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CAMENIETZKI, Carlos Ziller. (2001), A Cruz e a Luneta. Ciência e Religião

na Europa Moderna. Rio de Janeiro: Access. CHASIN, José. Marx, Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica, in TEIXEIRA, F. Pensando com Marx. (1995), São Paulo: Editora Ensaio. CHAUÍ, Marilena. (1985), Filosofia Moderna in Primeira Filosofia Lições Introdutórias. São Paulo: Editora Brasiliense. CORIOLANO, Luzia Neide de Menezes Teixeira. (2006), O Turismo nos Discursos, nas Políticas e no Combate à Pobreza. São Paulo: Anablume. LAFER, Celso. (2007), A Mentira: Um Capítulo das Relações entre a Ética e a Política. In NOVAES, Adauto (org.) Ética Vários Autores. São Paulo: Companhia das Letras.

LUC-FERRY, Jean; RENAUT, Alain. (1988), Pensamento 68: ensaio sobre o

anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio. KRIPPENDORF, Jost. (2001), Sociologia do Turismo. Para uma Nova Compreensão do Lazer e das Viagens. São Paulo: Aleph. MEZAN, Renato. (2005), A Sombra de Don Juan e Outros Ensaios. São Paulo: Casa do Psicólogo.

PLATÃO. (1964), A República. trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo.

TRIGO, Luiz Gonzaga Godoi. (1998), A Sociedade Pós-Industrial e o

115

Profissional em Turismo. Campinas: Papirus. VAZ, Henrique C. de Lima. (1998), Escritos de Filosofia II Ética e Cultura. São Paulo: Edições Loyola.

ANEXO

Melancolia I de Dürer

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A Cibercultura e uma nova morfologia das viagens

Ana Flávia Andrade de Figueiredo

Doutoranda e Mestre em Antropologia – UFPE.

Resumo

116

Numa

perspectiva

de

revisão

e

apontamentos

para

novas

possibilidades de estudos no campo do Turismo, o presente artigo assume o desafio de se colocar diante de um significativo leque de

reflexões no ambiente da cibercultura, imbricando-o a uma rede de

pensamentos mais atuais que versam sobre as novas morfologias de viagem que hoje tem ganhado força e impactado a própria forma como

nos relacionamos com os nossos desejos e memórias de viagem. Para tanto, se acolhe nos pensamentos de Joel de Rosnay, Manuel Castells, Edgar

Morin

e

André

Lemos

como

diálogo

disciplinar

entre

epistemologia no campo das viagens e a cibercultura.

a

Introdução Os estudos no campo da cibercultura tem se alicerçado por

diversas áreas do conhecimento e disciplinas científicas, de modo que reflexões acerca de sua genealogia, locus, e sua potencialidade no campo

da comunicação, democracia e governança global podem nos fornecer

uma sólida base para neste momento a apreendermos enquanto corpus dialógico entre os sujeitos e seus desejos e memórias de viagem.

O que buscamos aqui é primeiramente ressaltar um campo de

investigação caro para uma compreensão mais totalizadora do ser turista/viajante.

Neste

artigo, percorreremos

uma

breve

trajetória

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histórica epistemológica das viagens assim como dos estudos da cibercultura situando nossas reflexões sobre o impacto da cibercultura no

modo como nos relacionamos com as nossas viagens e nas ressonâncias geradas

em

como,

enquanto

viajantes,

posicionamentos no mundo contemporâneo.

percebemos

nossos

É imprescindível considerarmos que neste período de emergentes

vozes e discursos antes silenciados pela indústria de comunicação em massa, vemos um processo de “aprendizagem coletiva [que] se dá pelo

princípio da colaboração em rede, princípio que rege a cibercultura em seu conjunto de práticas sociais e comunicacionais” (Lemos e Levy, 2010,

45). Blogs (espécie de diários virtuais) focados em relatos de viagem, redes

de

troca

características

de

hospedagem,

motivacionais

grupos

semelhantes,

profissionais

redes

sociais

e/ou

como

de o

facebook, redes de viajantes com foco no intercâmbio cultural... as

possibilidades de troca de informações no ambiente virtual tem cada vez

mais ganho espaço entre as escolhas de destinos, acesso, hospedagem, experiências de viagem!

117

A escolha por este tema não poderia deixar de ser aqui justificada,

visto sua interseção com o campo profissional da autora – bacharel em

turismo e docente em cursos superiores de turismo desde 2006 – e com sua tese de doutoramento em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco, a qual atravessa empiricamente uma rede mundial virtual de

viajantes que hoje congrega uma media de três milhões de pessoas em todo o mundo. Este percurso de estudos e de provocações geradas da e na sala de aula tem estimulado um pensar mais intenso sobre os

princípios que regem o campo virtual (da internet), suas ressonâncias nas ações cotidianas de seus agentes e acerca dos desdobramentos políticos,

sociais, econômicos da “sociedade em rede” 1, conseqüentemente, de viajantes em rede.

Breve cronologia e epistemologia das viagens O dossiê que aqui se apresenta aponta para duas questões

centrais: os sujeitos de nossas reflexões e as ações empreendidas em e

por suas viagens. Nossa inquietação parte de uma busca pelo

entendimento de como as viagens estão sendo remodeladas por esta nova rede sociotécnica 2 possibilitada pela cibercultura e o que esta

1 2

Em referência direta ao livro do sociólogo Manuel Castells.

Categoria cunhada pelo antropólogo Bruno Latour em que os objetos de investigação são

essencialmente híbridos, simultaneamente embebidos de natureza e cultura.

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reorganização pode nos apontar enquanto sociedade. Será que estamos travando novas relações interplanetárias colaborativas, mas ainda com objetivos bastante individuais? Ao promovermos um diálogo transcultural pela polissemia de vozes ali presentes, estamos caminhando para

reduzirmos estereótipos e preconceitos sustentados e diversas vezes legitimados por viajantes de todo o mundo? De forma direta ou conclusiva, ficaria difícil respondermos tais questões, mas tomemos algumas reflexões.

Primeiramente, não pretendemos nem poderíamos aqui traçar uma

cronologia das viagens, mas consideramos pertinente, mesmo que de forma bastante abreviada e certamente ocidentalizada, apresentar alguns elementos desta trajetória sobre o ponto de vista de quem viaja, dos

suportes técnicos e de como eram estrategicamente percebidas dentro de uma hierarquia social e/ou de poder.

As viagens sempre fizeram parte da história humana, como

indivíduos nômades ou sedentários, a errância e a riqueza do imaginário

que as envolve valem milhares de páginas de estudiosos, escritores de

118

ficção, e relatos de peregrinos, turistas, migrantes, exilados...

Partamos então da Antiguidade, quando especialmente para os

gregos, as viagens estavam relacionadas aos intentos dos deuses, com poucas exceções viajava-se por lazer. Neste período o mais comum eram as peregrinações, as viagens ‘de saúde’ e à Olimpia, para participar ou

assistir aos jogos dedicados a Zeus, de forma que também se cumprisse

um roteiro turístico que congregasse as ‘Sete Maravilhas’ (Yasoshima e Oliveira, 2002). Estas atrações, tais como o Farol de Alexandria ou o

Colosso de Rodes eram construídas visando também atrair tais visitantes, particularmente provindos da aristocracia e da escolástica, além daqueles com interesses artísticos. Os grandes suportes facilitadores das viagens

no período foram o conhecimento da língua (pois a língua grega era difundida em toda a região do mediterrâneo), assim como a adoção de um sistema de troca de moedas.

O turismo sempre necessitou de certas estabilidades políticas e

econômicas e durante o auge do Império Romano tem-se um dos

maiores períodos de equilíbrio entre estas forças que o continente europeu experimentou. Os estímulos às viagens como forma de expansão

pela ocupação territorial perfaziam uma moeda imperial, mapas, infraestrutura de estradas, segurança e guias de viagens. O australiano

Tony Perrottet, autor de “Férias Pagãs” (2005), reconstruiu as grandes rotas romanas da Antiguidade e pôde com esta experiência construir paralelos interessantes com os tempos mais atuais do turismo.

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[...] o turismo de massa atual é a mais pura expressão da tradição que se iniciou quando o Mapa de Agripa estava em exibição na Roma

Imperial. Para aqueles primeiros turistas, a única finalidade de viajar

era ir para onde todo mundo estava indo – ver o que todo mundo

estava vendo, sentir o que todo mundo estava sentindo. Havia uma lista virtual de atrações turísticas a ser conferida bem como uma reação adequada para elas. Visitar os pontos turísticos era uma forma

de peregrinação. Buscar visões singulares e particulares do mundo é uma concepção moderna de viagem [...]. (Perrottet, 2005, p. 26-27).

Na Idade Média, a moralidade cristã impera e concebe o lazer

como mecanismo de controle social. Este era considerado perigoso, pois

facilmente poderia levar à degradação moral humana, o ócio era associado à preguiça, um grande pecado. Os incentivos às viagens

estavam associados às peregrinações que já no século XIII e XIV poderiam ser consideradas fenômenos de massa. No fim do período, a inserção do

protestantismo na Europa provocou importantes mudanças nos destinos de viagem e, com o acúmulo de riquezas possibilitadas pela nova moral,

119

um número significativo de pessoas começou a viajar com outras motivações que não religiosas (Yasoshima e Oliveira, 2002). Após

as

grandes

navegações,

no

período

renascentista,

a

satisfação pessoal é encorajada e, atrelado a este movimento, infla-se o desejo de explorar (efetivamente explorar) e entender o mundo. Assim, inicia-se um processo de incentivos às viagens culturais, movidas por

estudos e experiências. Entretanto, cultura, aqui, deve ser entendida

ainda sem a atual perspectiva antropológica. O valor da viagem,

experiência cultural, estava diretamente ligado a uma dimensão de

erudição, de acúmulo de conhecimento, do tornar-se mais culto. O intuito de governos, como o inglês, era de desenvolver uma nova classe de profissionais, embaixadores, estadistas.

A partir daqui, nasce a ideia do grand tour – roteiros que incluíam

cidades e lugares famosos. No século XIV com os avanços tecnológicos

promovidos pelos barcos a vapor e trens, as viagens adquirem outros hábitos.

Das

viagens

da

aristocracia

caracterizadas

pela

longa

permanência geram-se os novos destinos frequentados por uma classe média em ascensão, tanto pela recente facilidade de acesso, assim como pelos modismos atrelados aos mesmos.

É justamente após a Revolução Industrial que as viagens, até então

experiências quase que exclusivas do clero, dos nobres, dos militares e de funcionários da corte, passam a fazer parte da realidade da burguesia ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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comercial e industrial. Os agentes ofereciam a esta classe em ascensão “a possibilidade de fazer algo ‘diferente’, ‘exótico’, ‘aventureiro’, em suma,

de viver uma experiência intensa fora de seu território habitual” (Trigo, 2010, p. 24).

Até o período pós Segunda Grande Guerra o Turismo se viu sobre

movimentos de expansões tímidas e de declínio devido a situações de

conflito ou a depressões econômicas. Já a partir da década de 50 até os dias atuais percebemos uma curva crescente das viagens em todo o

mundo. Passamos (ou não?) por etapas impactantes do turismo massivo, caracterizado pela comercialização de pacotes fechados a grande número

de indivíduos que, apenas dessa forma, reféns de certo modo das opções

negociadas pelos intermediários do setor (agências e operadores de viagem principalmente), podiam pagar o preço das viagens a balneários turísticos, à Europa (conhecidos ficaram os pacotes “10 países em 15

dias”, pouco mais, pouco menos, a lógica do sigthseeing3 permanecia), a centros de entretenimento como a Disneylandia. As viagens permaneciam garantindo ao indivíduo status diferenciado na sociedade.

120

Do ponto de vista epistemológico, pode-se dizer que o surgimento

de uma comunidade científica do turismo surge em 1941 quando Walter

Hunzinker e KurtKrapf criam a Asociación Internacional de Expertos Científicos

en

Turismo

(AIEST)

que

funde

duas

perspectivas

aparentemente antagônicas do turismo: a econômico-empresarial e administrativa e a sociológica, de foco acadêmico e teórico (Neschar, 2011, p. 518). A partir destas perspectivas constroem a Doutrina Geral do

Turismo que mais tarde se centraria em questões mais sociológicas do que

administrativas

se

nutrindo

das

novas

abordagens

socioantropológicas das décadas de 60 e 70, que refletia pontos como os

aspectos humanistas do turismo, dos conflitos e da alienação. Um

trabalho considerado pioneiro e que data de 1977 foi Host and Guests:

the anthropology of tourism, de Valene Smith. Primeiramente porque

insere a perspectiva não apenas do turista, mas de quem recebe, além de

incorporar discussões teóricas interessantes nos estudos de caso que apresenta.

Um pouco mais de três décadas se passam, a Teoria Geral de

Sistemas é incorporada às análises do Turismo, muitas contribuições de

disciplinas como a antropologia, a sociologia, a cibernética, a geografia, ente outras, são incorporadas, (temas como identidade, fluxo, autonomia,

3

Sightseeing é uma espécie de roteiro condensado por locais considerados cartões postais de uma

dada localidade.

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territorialidade

tornam-se

conceitos

centrais),

mas

a

falta

de

continuidade e de efetivamente – sob um princípio fenomenológico – perceber o indivíduo como centro dos nossos estudos, não foi absorvida. Para Panosso Netto,

A análise tradicional do turismo, predominantemente positivista, está

focada nos impactos do turismo, nos turistas, nas relações entre turistas e pessoas do local, no funcionamento do “sistema turístico” e

nas consequências do fenômeno (Apostolopoulos, 2005; Castillo Nechar e Panosso Netto, 2010). Poucas vezes o valor do turismo é discutido; o seu significado desde tempos imemoráveis e para a

atualidade; a necessidade dos deslocamentos; o que significa estar em viagem e; qual o significado das viagens. Essas são questões fundamentais para a visão crítica da área, porém ainda não são abordadas com a seriedade necessária (2011, p.541).

Durante algumas décadas demos atenção aos estudos sobre a

cultura de viagens a partir de relatos de viajantes dos séculos XVIII, XIX e

início do século XX, sobretudo porque logo em seguida “o viajante se

121

transforma em turista e seus relatos são vistos como carentes de

profundidades e qualidades literárias” 4 (Freire-Medeiros, 2000, p. 192).

Muito tem se discutido em volta da dicotomia viagem/ turismo, visto que este último “se desenvolveu de mãos dadas com a expansão da sociedade industrial e se consolidou como parte da lógica capitalista, contraponto

necessário da ética do trabalho” (Freire-Medeiros, op cit). É como se o

turismo se tornasse uma versão corrompida e destrutiva das antigas viagens de cunho científico, exploratório, cultural. Para Zigmunt Bauman,

O turista guarda sua distância, e veda a distância de se reduzir à proximidade. É como se cada um deles estivesse trancado numa bolha de osmose firmemente controlada; só coisas tais como as que o ocupante da bolha aceita podem verter para dentro, só coisas tais

como as que ele ou ela permitem sair podem vazar. [...] A

peculiaridade da vida turística é estar em movimento, não chegar. Ao contrário daqueles seus antecessores, os peregrinos, as sucessivas

escalas dos turistas não são estações pelo caminho, uma vez que não há nenhum objetivo que lhes acene [...]. (Bauman, 1998, p. 114).

No argumento de Bauman, os turistas se contrapõem aos

vagabundos pós modernos, estes que viajam por não serem bem-vindos, pelo mundo se mostrar “insuportavelmente inóspito” e por não terem 4

A autora aponta tal questão no contexto da reflexão acadêmica, ao menos em língua inglesa. Mas

concordamos que esta pode ser estendida a uma dinâmica geral da academia mais contemporânea. ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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escolha. “A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação.” (Bauman, 1998, p. 118). O autor considera o vagabundo o alter ego do

turista, assim como o estrangeiro seria o alter ego do nativo, os dois, sendo as grandes metáforas da vida contemporânea.

Ser um alter ego significa servir como um depósito de entulho dentro

do qual todas as premonições inefáveis, os medos inexpressos, as

culpas e autocensuras secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados, se despejam; [...]. O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu purificado pode brilhar. (Bauman, 1998, p. 119, grifo do autor).

Seria então o viajante – cavaleiro errante em busca do Graal – o

alter ego deste ciberturista? Ou ciberviajante? Para além da dicotomia

entre viajante e turista, a viagem empreendida pelos navegadores do

século XVI ou por nós contemporaneamente requer pensarmos sobre as práticas destes viajantes, durante, mas efetivamente após suas viagens,

122

nas ações e interseções de seu cotidiano. Os ciberviajantes

Para o viajante conectado o mundo se tornou um lugar muito

pequeno, tanto pelo acesso através da teia mundial de computadores -

world wide web - assim como pela conseqüente dificuldade em se encontrar algo diferente, que fuja às projeções, à estrutura ambiental que

a internet produz em toda a sociedade, da comunicação e arte à política e

negócios. Neste contexto, as personagens dotadas de uma imagem de nativo e cosmopolita se esvaem, pois todos estão de algum modo e a

priori, conectados. A comunidade ciber efetivamente alimenta um sentido

de cultura – cara a Joel de Rosnay – fractal e hipertextual, fractal porque cada um construirá um germe da totalidade e hipertextual porque tais partes serão conexionistas. Nesta percepção de cultura, o ser humano

[logo, também o viajante contemporâneo] busca integrar elementos, fatos

separados, reintegrando a vida com o objetivo de lhe dar sentido (Rosnay, 1997, p. 347).

Para Lemos (2010, p.68), “as novas tecnologias de informação

devem ser consideradas em função da comunicação bidirecional entre grupos e indivíduos, escapando da difusão centralizada da informação

massiva”. Neste sentido, o impacto sobre as tradicionais formas de se analisar como o olhar do turista/ viajante era objetificadamente ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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construído e como estes escolhiam seus destinos 5 gera, enfim, novas percepções

negociações,

acerca

agora

da

autoridade

possibilitadas

do

sujeito

por

em

suas

trocas

próprias

informacionais

(comunicacionais) transmitidas e ressignificadas a todo instante por um amplo e diverso número de atores interagindo entre si e descentralizando o poder da informação.

Baseando-nos em Lemos, podemos afirmar que as mais diversas

percepções sobre os espaços/ territórios convergem para a rede de modo

que esta passa a conter e a fazer circular um rizoma de todos entre todos

para todos. E, se não podemos controlar conteúdos institucionais de regulação e organização das viagens, colocamos

em cheque as

hierarquias. Ao mesmo tempo, atraímos para nós, mesmo que em diferentes escalas, o desafio de produzirmos nosso próprio espetáculo, nosso próprio roteiro de experiências turísticas. afirmamos

ou

defendemos

aqui

uma

Deixemos claro, não

substituição

dos

modos

institucionalizados de operação de viagens, trata-se pelo contrário de refletir sobre novas reconfigurações de práticas e modalidades midiáticas

123

que tem alimentado o dia a dia deste setor econômico assim como tem possibilitado aos ciberviajantes romper com padrões, seja de destinos, das formas de percebê-los, das trocas culturais a serem estabelecidas.

É importante pontuarmos de onde falamos, ou, com quem estamos

dialogando. Isto tem haver com alguns posicionamentos ideologicamente distintos, pois pesquisadores/autores da cibercultura estão comumente pautados

sob

uma

visão

libertadora

oportunizada

pelas

novas

tecnologias. Isto tem levado a uma pequena contra-corrente acadêmica

traçar fortes críticas à adoção de elementos próprios dos ambientes

virtuais tais como hipertexto, interatividade, redes sociais virtuais, de maneira pré-dotada de potencialidades democráticas, universais e revolucionárias, numa valorização sempre muito positiva, sem maiores reflexões em torno de si mesmas.

Temos construído nossas análises a partir de contribuições

trazidas por autores como Joel de Rosnay, Manuel Castells e o brasileiro

André Lemos. Além destes, vale ressaltar que alimentam nosso olhar os debates em volta do tema trazidos em periódicos científicos e outras publicações ligadas diretamente à cibercultura, à Antropologia das Ciências e das Técnicas (na figura central de Bruno Latour) e ao

Pensamento Complexo (Edgar Morin, Maria Aparecida Lopes Nogueira,

5

Ver URRY, John. (2001), O Olhar do Turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. 3. ed.

São Paulo: Studio Nobel: SESC. (Coleção Megalópolis).

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entre

outros).

Neste

corpo

teórico

temos

posicionamentos

que

consideramos convergentes e que nos ajudam a construir um olhar analítico coerente.

Dois pontos de partida: para nós a internet enquanto suporte não é

apenas técnico, mas também social e cultural, assim, seus usos são tão

racionais quanto emotivos. Segundo, mais do que afirmar ou conceber

que o mundo está se tornando (ou se tornou) global, pensamos que somos nós que estamos a nos tornar globais. Com a inserção da internet

em nosso cotidiano, há tendências de posicionamento perante tal suporte distintas, mas poucas vezes excludentes. Podemos enfatizar na mesma

medida nossas identidades locais, escondermo-nos na possibilidade de um ambiente aparentemente mais seguro e menos conflituoso que sirva

de abrigo para construirmos redes de sociabilidade entre iguais, ou pensá-lo numa ótica comunitária de convívio com a diversidade e de construção coletiva de sentidos e expansão do conhecimento.

De um

modo ou de outro, este suporte tem gerado teias de sociabilidades que suscitam novos valores (Silva, 2001, p.152).

124

Para Lemos (2010), a socialidade contemporânea irá se estabelecer

a partir do cotidiano, como um politeísmo de valores, através dos

diversos papéis que assumimos diariamente a partir de situações plurais. A socialidade é tribal, a sociabilidade, institucional, por isso as relações que compõem a socialidade constituem o verdadeiro substrato de toda a vida em sociedade sem uma moral ou racionalidade implacável. Nesta

dinâmica, para o autor, os engajamentos políticos não seriam mais fixos, pois a força da socialidade encontra-se na

astúcia das massas marcada por uma espécie de passividade ativa,

intersticial, subverviva, e não por um ataque frontal de cunho revolucionário. [...]. Como afirma um zippie, um dos expoentes dessa

cibercultura: ‘antes de lutar contra o sistema, nós estamos ignorando-

o’ (LEMOS, 2010, p.83, grifos do autor).

Mudanças O

que

estamos

vivendo

é

uma

verdadeira

reorganização

dos

componentes que tradicionalmente regeram a dinâmica das viagens e do

turismo, enquanto fenômeno de grande impacto econômico. Desloca-se a gerência piramidal centrada em governos e grandes empresas, para uma sociedade em rede onde os indivíduos, de consumidores passivos, ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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passam a ser receptores e recriadores de informações que estarão

dispersas no ciberespaço até que no contínuo filtro de conteúdos os

personagens desta nova lógica colaborativa possam resgatá-las e novamente alimentá-las inter-criando informações e conhecimento.

Castells aponta:

Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a

difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e

os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura (Castells, 2009, p. 565).

E é preciso ainda que se afirme: o viajante que está inserido no

ciberespaço e o utiliza como ferramenta de socialidade não está preso a ele. É fato que as pessoas ligadas à cibercultura precisam de algum modo

desligar-se, vivenciarem o un-plugged. Tal desligamento não se constitui em fuga, mas em rota de desbravamentos necessários para que o

ambiente permaneça concreto e vivo e que sua contribuição seja cíclica e criativa

125

e

não

meramente

reprodutiva,

sobrevivência da própria cibercultura.

o

que

contribui

para

a

Sujeito e objeto são complementares e devem ser compreendidos

de maneira dialógica. Neste sentido, o sujeito, a partir do objeto, “pode reconhecer-se, definir-se, pensar-se, existir” (Nogueira, 1998), assim

como o objeto também define o sujeito. Os viajantes que utilizam

efetivamente o ciberespaço constroem cotidianamente esta dialogia, mas também podem ser compreendidos como parte de um projeto que por vezes não compreendem ou ainda não possuem total ciência.

A autonomia dos sujeitos torna-se um conceito chave. Tem haver

com autoconsciência e liberdade – no amplo sentido do termo, econômica,

social,

biológica,

política.

Mas

nem

todos

buscam

efetivamente autonomia, pois a capacidade de produzir as próprias

respostas à nossa tragédia cotidiana, de tomar para si a responsabilidade dos movimentos e dos nossos comportamentos perante a sociedade, é

também penosa. Ora, quanto maior nossa autonomia, maior nossa capacidade de abertura ao outro, pois os conflitos identitários não são

mais abafados e sim enfrentados de modo a permitir a constituição de laços.

Podemos concluir que somos autônomos na medida em que o

outro também o é e que se recria aos poucos no ciberespaço um

posicionamento ativo nas esferas de negociação provocando mudanças significativas

nos

modos

como

concebemos

a

morfologia

dos

movimentos de viagem em todo o mundo. Mais uma vez reforçamos: os ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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discursos e os polos de convergência turística não são fruto mais apenas

de uma indústria organizada de viagens, as vozes tornam-se a cada dia, de forma crescente, polissêmica.

Paula Biaski, em dissertação defendida sobre uma nova ótica ou

procura por experiências mais íntimas de turismo assinala: It was creating

a new focal point in tourism – the person not the place is now important

(Bialski, 2007, p.10). Se durante um longo período percebemos os

viajantes, mesmo em termos de suas motivações e necessidades, sobre a

perspectiva de intervenções nos espaços ou de construções imaginárias sobre os espaços, agora deslocamos nosso olhar aos sujeitos. Estes, em essência inclusive, o outro lugar a ser visitado 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Zigmunt. (1998), O mal-estar da pós-modernidade. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Editor.

BIALSKI, Paula. (2007), Intimate Tourism. Friendship in a State of Mobility

126

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Sociology. Departament of Social Psycology. University of Warsaw, Poland.

CASTELLS, Manuel. (2009), A Sociedade em Rede. 6. ed. A era da

informação: economia, sociedade e cultura. V.1. São Paulo: Paz e Terra.

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Interseções: revista de estudos interdisciplinares, UERJ, RJ, ano 2, n.2, pp. 187-198, jul./dez. LEMOS, André; LÉVY, Pierre. (2010), O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia. São Paulo: Paulus. (Coleção Comunicação) produção

acadêmica

anglo-americana”.

LEMOS, André. (2010), Ciber-socialidade: tecnologia e vida social na

cultura contemporânea. 5 ed. Porto Alegre: Sulina (Coleção Cibercultura).

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¿qué es eso?. Revista Turismo em Análise, USP, São Paulo, vol. 22, n.3, pp. 516-

538, dez 2011.

NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. (1998), O Sujeito Vivo. Congrès Inter-

Latin pour la Pensée Complexe (CILPEC), Rio de Janeiro, setembro, 1998.

PANOSSO NETTO, Alexandre. Por uma visão crítica nos estudos turísticos.

Revista Turismo em Análise, USP, São Paulo, vol. 22, n.3, pp. 539-560, dez

2011.

PERROTTET, Tony. (2005), Férias Pagãs: na trilha dos antigos turistas

romanos. Rio de Janeiro: Rocco.

6

Agradeço as contribuições de Antonio Paulo Marinho Rocha nas reflexões ciberculturais aqui

empreendidas.

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ROSNAY, Joel de. (1997), O homem simbiótico: perspectivas para o

terceiro milênio. Petrópolis, RJ: Vozes.

SILVA, Lidia Oliveira. (2001), “A Internet: a geração de um novo espaço

antropológico”. In: LEMOS, André; PALACIOS, Marcos. (orgs). Janelas do

Ciberespaço: comunicação e cibercultura. Porto Alegre: Sulina.

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significativa”. In: PANOSSO NETTO, Alexandre; GAETA, Cecilia. (orgs). Turismo de

Experiência. São Paulo: Editora Senac São Paulo. YASOSHIMA,

José

Roberto;

OLIVEIRA,

Nadja

da

Silva.

(2002),

“Antecedentes das viagens e do turismo”. In: REJOWSKI, Mirian (org.). Turismo no

percurso do tempo. São Paulo: Aleph.

127

ENSAIOS | A CIBERCULTURA E UMA NOVA MORFOLOGIA DAS VIAGENS | ANA FLÁVIA ANDRADE DE FIGUEIREDO


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“Todas essas coisas são encantos”: viagens, patrimônio e folclore em Mário de Andrade

Rafael José dos Santos Antropólogo,

doutor

em

Ciências

Sociais

(UNICAMP),

mestre

em

Antropologia Social (UNICAMP). Professor do Centro de Ciências Humanas

e dos Programas de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade e

Turismo da Universidade de Caxias do Sul, RS.

128 Introdução

“Não tem dúvida que o Brasil é um mundo...” Mário de Andrade,

Natal, RN, 1929

(ANDRADE, 2002, p. 250)

É bastante conhecido e estudado o papel de Mário de Andrade na

história do campo do patrimônio no Brasil. Em 1936 o poeta foi solicitado por Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde, a escrever o

anteprojeto do futuro órgão federal de patrimônio. À época, Mário ocupava uma diretoria no Departamento de Cultura do município de São

Paulo e já acumulara grande conhecimento sobre as artes e a arquitetura, bem como sobre diferentes manifestações da cultura popular.

O anteprojeto escrito pelo modernista foi, sem dúvida, um

documento avant la lettre, considerando a amplitude de seu conceito de patrimônio entrelaçado à categoria chave de “arte” (CHAGAS, 2009). O ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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futuro

Serviço

do

Patrimônio

Artístico

Nacional

seria

um

órgão

responsável pela documentação, registro e preservação não apenas de

edifícios e monumentos históricos de ‘valor excepcional’, mas também de bens vernaculares, de saberes e fazeres populares e indígenas, entre

outros. A visão andradiana antecipava as concepções de patrimônio

cultural, tanto material como imaterial, que só se institucionalizaram nas

últimas duas décadas do século XX. A visão de Mário de Andrade naquele final dos anos 1930 constituía uma ‘idéia fora do lugar’, pelo menos no

que dizia respeito ao campo do patrimônio, não apenas no Brasil como em várias outras partes do mundo. Como já é sabido, o decreto Lei 25 de

30 de novembro de 1937 instituiu o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em moldes bastante diferentes daqueles

esboçados no anteprojeto de 1936 e, não obstante, Mário tornar-se-ia

um grande colaborador do presidente do órgão, Rodrigo Mello Franco de Andrade (1981).

A amplitude do anteprojeto devia-se, simultaneamente, ao modo

como Mário de Andrade entendia os fundamentos da brasilidade em

129

construção e ao sentido afetivo de sua relação com as artes eruditas e populares. A objetividade do contexto do nacionalismo traduzia-se, no poeta, em sentimento passional que o impulsionava na pesquisa

obsessiva. Este sentimento revela-se, sobremaneira, em seus relatos de viagem.

As duas primeiras décadas do século XX são momentos em que

vários intelectuais, pensadores da construção do Brasil, empreendem

viagens, principalmente às Minas Gerais, das quais emergiram e

consolidaram-se visões acerca do patrimônio histórico. Mário de Andrade também faz suas peregrinações a Minas em 1916 e 1924, mas vai além: vai ao Norte em 1927, ao Nordeste entre 1928 e 1929, viagens que são

verdadeiros ritos de passagem com momentos de quase catarse. Nestas

viagens, o poeta registra, etnografa com avidez tudo que pode: cantos, danças

dramáticas,

narrativas,

descreve

com

sentimento

antigas

edificações religiosas tecendo comentários sobre seus valores estéticos

ou históricos. Além disso, o distanciamento provocado pela viagem levao também à reflexividade sobre literatura, sobre o modernismo e suas aporias.

Não há dúvida que a experiências das viagens refletir-se-ia no

espírito do anteprojeto, assim como repercutiu nos escritos e nas

pesquisas ulteriores do escritor paulistano. A intenção deste artigo é

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procurar, nos relatos de viagem de Mário, indícios e pistas de sua visão sobre um patrimônio que era, sobretudo, arte. 1. Viagens e descobertas do Brasil Em 1916, Alceu Amoroso Lima viaja para Ouro Preto, onde

‘descobre’ o Barroco. Em sua viagem, é acompanhado pelo senador

Virgílio Mello Franco e pelo neto deste, o jovem Rodrigo de Mello Franco. No mesmo ano, Alceu publica na Revista do Brasil o artigo “Pelo passado nacional”, onde conclama:

Somos um povo em infância, somos nós os fazedores do passado, não há dúvida, mas não poderemos levar avante a nossa missão se

desprezarmos o que para nós constitui o passado da pátria. A

perspectiva das origens é um elemento primordial dos povos em formação; e é pela memória do passado que deve começar a obra da

construção nacional [...] Tratemos portanto de guardar as roupagens

do nosso berço, para os obreiros do futuro. Ponhamos um freio à fúria demolidora e restauradora. Reabilitemos o nosso passado nacional! (LIMA, 1916, p.14-15).

130

As palavras de Amoroso Lima inscrevem-se no contexto da

construção imaginária da nação: “guardar as roupagens de nosso berço” significava, sobretudo, construir um passado comum que se expressava, para o escritor, na materialidade das edificações coloniais. Ouro Preto, assim como outras cidades coloniais, representavam a “memória do passado”,

a

matéria

prima

significante

que

nos

anos

1930

se

estabeleceria como paradigma de patrimônio histórico nacional. E,

certamente, as idéias de Amoroso Lima eram compartilhadas pelo seu jovem companheiro Rodrigo. A influência de Alceu seria fundamental na

indicação de Gustavo Capanema para o Ministério da Educação e Saúde em 1934 e este, por sua vez, indicaria Rodrigo de Mello Franco para

assumir a presidência do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) criado pelo Decreto 25, de 30 de novembro de 1937.

Em 1919, Mário de Andrade faz uma viagem a Minas Gerais para

conhecer o poeta simbolista Alphonsus de Guimarães em Mariana, visitando também outras cidades coloniais e se encantando com a obra de Aleijadinho. Em 1920 publica, na mesma Revista do Brasil, o artigo

“Arte Religiosa no Brasil em Minas Gerais” (ANDRADE, 1981). O trabalho

de Aleijadinho, assim como o Barroco, seriam temas de outros escritos de Mário até a véspera de sua morte.

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O

caminho

para

a

eleição

da

arquitetura

colonial

como

representativa da brasilidade estava em curso em uma “época em que o

barroco era visto como bizarria”, como lembra Lélia Coelho Frota 1. Em 1924, o estudante Lúcio Costa viaja para Diamantina, inicialmente com o

propósito de colher elementos para composições neocoloniais. O neocolonial era uma tentativa de reação “à incorporação acrítica dos estilos

históricos

europeus

pelo

ecletismo

no

Brasil,

e

ao

desconhecimento e mesmo desvalorização da tradição construtiva vinda

da colônia” (FONSECA, 1997, p. 97). Costa, contudo, depara-se com uma

descoberta: “Lá chegando caí em cheio no passado, no seu sentido mais despojado, mais puro: um passado de verdade, que eu ignorava, um

passado que era novo em folha para mim” (SANTOS, 2009).

Para Lucio Costa, o “passado de verdade” que se revelava nas

edificações mineiras não seria mais fonte de inspiração para a releitura neocolonial, mas paradigma para o profissional que assumiria, em 1937,

a direção da Divisão de Estudos e Tombamentos do SPHAN. Em 1937 Lúcio viaja também para a região das Missões, no Rio Grande do Sul,

131

onde se encanta pelas produções jesuíticas, interpretando-as como “arte brasileira”. As

viagens

mostram-se,

portanto,

como

experiências

de

descobertas, que acabam por influenciar, de modo indelével, as discussões acerca da brasilidade na arquitetura e, conseqüentemente,

definir os rumos dos primeiros tempos da história do patrimônio no Brasil. Referindo-se de maneira mais ampla às diferentes viagens a Minas Gerais entre os anos 1910 e 1920, Fonseca afirma:

O fato é que não só mineiros, como cariocas, paulistas e outros

passaram a identificar em Minas o berço de uma civilização brasileira,

tornando-se a proteção dos monumentos históricos e artísticos mineiros – e, por conseqüência, do resto do país – parte da construção da tradição nacional (FONSECA, 1997, p. 99).

Viagens

“formadoras”

ou

“epifânicas”,

como

caracterizou

Guilherme Wisnik (2007, p. 170) em relação a passagem de Lucio Costa pelas Minas Gerais em 1924 e, no mesmo ano, a segunda viagem de Mário de Andrade ao estado, integrando o grupo formado por Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e seu filho, René Thiollier, Gofredo da Silva

1

Ver: Mário de Andrade: uma vocação de escritor público. In ANDRADE, 1981, p. 21.

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Telles, Dona Olívia Guedes Penteado e o poeta francês Blaise Cendrars, que havia ficado amigo de Paulo Prado em Paris no ano anterior.

Juntos, vão passar a Semana Santa em Minas Gerais, visitando São

João d’El Rei, Tiradentes, Mariana, Ouro Preto, Divinópolis, Sabará, Belo

Horizonte e Congonhas do Campo (EULÁLIO, 1978). A “viagem da descoberta do Brasil”, como ficou conhecida, teve impacto no grupo

modernista, como nota Telê Porto Ancona Lopez em texto introdutório à edição de O Turista Aprendiz:

A “Viagem da descoberta do Brasil” provoca um amadurecimento no projeto nacionalista de nossos modernistas, fazendo com que a ênfase, que de início recaía com mais força sobre o dado estético, possa ir,

progressivamente,

abrangendo e

ideológico (ANDRADE, 2002, p. 16).

sulcando o projeto

Ainda em relação à viagem de ‘descoberta do Brasil’, Nicolau

Sevcenko afirma:

“Para os poetas presentes na excursão e para Tarsila, o roteiro

132

seria revelador de raízes históricas, étnicas e culturais de que eles andavam

ávidos

para

consubstanciar

(SEVCENKO, 1992, p. 295).

o

seu

acento

modernista”

O acento modernista aliado ao projeto

ideológico, contudo, incidiria de maneiras distintas entre Oswald e Mário. Enquanto o primeiro caminha na direção do movimento Pau-Brasil, o

segundo, sem abandonar a literatura, atira-se com maior intensidade ainda na pesquisa das produções culturais populares e dos legados históricos

materiais.

Essas

preocupações

quase

obsessivas

caracterizariam suas experiências de viagem ao Norte e ao Nordeste, entre 1927 e 1929. É importante ressaltar que antes de sua partida para o Norte, em 07/05/1927, o escritor já havia terminado Macunaíma, como atesta sua carta a Câmara Cascudo escrita em março do mesmo ano:

Não sei se já te contei ou não mas em Dezembro [de 1926] estive na fazenda de um tio e...escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar aquilo. Em todo caso chama-se Macunaíma (ANDRADE, 2000, p. 75).

Não obstante, Mário conta ao amigo que ainda teria um ano “para

matutar sobre ele e modificá-los à vontade” (ANDRADE, 2000, p. 75) e

solicita ao folclorista potiguar que lhe envie algumas lendas do nordeste

para ajudá-lo na finalização da obra. Em junho de 1928, dez meses

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depois de retornar do Norte, Mário publica “A Entrada de Macunaíma” na Revista de Antropofagia.

A viagem de Mário de Andrade à região norte dura de 07/05 a

15/08 de 1927 e ao nordeste entre 27/11/1928 e fevereiro de 1929. Seu

diário da viagem de 1927 trazia como título: “O turista aprendiz: viagens

pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega” (ANDRADE, 2002, p. 35). O diário da viagem ao nordeste não

possuía título, mas entre 14 de dezembro de 1928 e 29 de março de 1929, Mário publica suas crônicas no “Diário Nacional” com o mesmo

título do diário de 1927. Em 1943, o escritor prepara um volume para

publicação que traz na capa manuscrita o subtítulo “viagem etnográfica” (no singular). O volume “O turista aprendiz”, tal como aparece nas “Obras de Mário de Andrade”, é produto do trabalho de Telê Porto Ancona Lopez,

que reuniu material manuscrito, bem como as crônicas do jornal e os registros do diário de viagens do escritor 2.

A viagem à região norte, em 1927, foi acompanhando Dona Olívia

Penteado, a “rainha do café”, sua sobrinha Margarida Guedes Nogueira e a

133

filha de Tarsila do Amaral, Dulce do Amaral Pinto (ANDRADE, 2002, p. 53). Saindo de São Paulo de trem em sete de maio, passa pelo Rio de

Janeiro onde, dois dias depois, conhece o jovem Rodrigo Mello Franco de Andrade na casa de Manuel Bandeira em Santa Tereza.

No dia onze, parte de navio do Rio de Janeiro com suas colegas de

viagem: passam por Salvador, Maceió, Recife, Fortaleza e Belém. Após

“alguns dias na capital do Pará, embarcam em um “vaticano”- versão maior do navio fluvial “gaiola”, bastante comum nos rios amazônicos -, e percorrem toda a região, chegando à Bolívia e Peru.

A segunda viagem começa em 27 de novembro de 1928, também

de trem para o Rio de Janeiro, mas desta vez Mário segue sozinho. No dia

3 de dezembro zarpa em direção ao nordeste: Salvador, Maceió, Recife, Natal e Paraíba (depois denominada João Pessoa).

É interessante notar que ambas as viagens têm relação com os

vínculos entre Mário de Andrade e as oligarquias paulistanas. Sua

principal companheira na viagem de 1927, Dona Olívia Penteado, é mecenas, organizadora de um dos salões modernistas, encontros freqüentes entre os artistas e outras pessoas ligadas ao movimento –

segundo Mário, o salão de Dona Olívia era “o maior, o mais

verdadeiramente salão” (ANDRADE, 2002, p. 53). Mede-se a importância 2

Consultar os textos explicativos da organizadora na edição de “O turista aprendiz” (2002, p. 15-

46).

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da “rainha do café” quando ela conta a Mário, por ocasião da partida para a viagem de 1927, que o presidente Washington Luiz havia telegrafado

aos presidentes dos estados e, inclusive, para o Peru. São muitas as homenagens que os viajantes recebem nos lugares onde passam, fato

que vez por outra é anotado por Mário em seu diário, como, por exemplo, no registro datado de 5 de junho:

Recepção oficial, apresentação a setecentas e setenta e sete pessoas,

cortejo (como é engraçado a gente ser figura importante em um cortejo oficial) e toca pro palácio Rio Negro, onde imediatamente se dá

recepção oficial, pelo presidente em exercício, um número de simpatia (ANDRADE, 2002, p. 79).

A viagem entre 1928-1929 é feita, não exclusivamente, também

como correspondente do “Diário Nacional”. Criado em 1927, o jornal era

o órgão do Partido Democrático (PD), fundado em 1926 reunindo frações da oligarquia paulista descontentes com o Partido Republicano Paulista.

Desde 1924, Mário mantinha-se alinhado com esta dissidência que viria a

134

constituir o PD. A

viagem

leva

Mário

a

reflexões

várias:

a

situação

dos

trabalhadores do nordeste, o problema da seca e dos latifúndios, o êxodo

rural, chega até a uma dura crítica a Euclides da Cunha registrada em 21/1/1929 na sua passagem por Caicó:

Pois eu garanto que Os Sertões são um livro falso. A desgraça

climática do Nordeste não se descreve. Carece ver o que ela é. É

medonha. O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém

uma falsificação hedionda. [...]. Euclides da Cunha transformou em

brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia ... (ANDRADE, 2002, p. 262-264).

Nas duas grandes viagens revela-se o imenso interesse de Mário

sobre o Brasil e as peculiaridades dos lugares e das gentes: não só o

folclore, sua preocupação maior, mas também os nomes de frutas, de plantas, de lugares, a descrição do trabalho nos engenhos. Um aspecto

importante é que as observações do escritor não resultaram apenas em

crônicas e diários escritos, mas também em partituras e registros fotográficos. Parte dessa documentação seria utilizada posteriormente em publicações do próprio autor ou organizadas por colaboradores, principalmente pela musicóloga Oneyda Alvarenga.

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A pesquisadora Telê Porto Ancona Lopez, organizadora do volume,

tem razão ao destacar “o caráter ficcional e até certo ponto lúdico” dos registros da viagem de 1927, diferentes daqueles de 1928 e 1929,

“quando o conteúdo das crônicas torna-se mais severo, mais informativo

ou mais interpretativo, tendo maiores vínculos com a realidade objetiva” (ANDRADE, 2002, p. 35). É também nesta segunda viagem que alguns registros são reveladores das concepções de Mário sobre aquilo que viria a constituir seu Anteprojeto de Criação do SPAN. 2. Patrimônios: encantos, delícias Em 11 de dezembro de 1928, o escritor viaja de Recife para

Igarassu

em

companhia

do

Ascenso

Ferreira,

poeta

modernista

pernambucano. Ao conhecer a matriz de São Cosme e São Damião,

escreve em sua crônica: “A matriz velhíssima, de S. Cosme e S. Damião, vale pouco, é pobrinha, a gente perde tempo nela quase que só por

delicadeza. As imagens são antigas porém comuns” (ANDRADE, 2002, p.

135

198). Nas notas de viagem feitas em seu diário manuscrito, Mário registra

em 11/01/1929: “Maravilha de passeio até 13 horas, convento de S. Francisco, matriz de S. Cosme e S. Damião, esta pouco interessante, aquela muitíssimo” (ANDRADE, 2002, p. 303) 3. Vale registrar que a Igreja de São Cosme e São Damião de Igarassu, PE, datada de 1530, foi tombada em 1951 pelo IPHAN: o critério de relevância histórica aparece, pelo menos aqui, bem pouco relevante para Mário de Andrade.

Voltando à crônica, Mário expressa seu encanto com o Convento

de São Francisco em Igarassu: “A maravilha é mesmo o convento de S.

Francisco, principiando pela velha guardiã, mulata gasta e aprendida, falando que nem whisky com água-de-coco” (ANDRADE, 2002, p. 198). A

mulher lhe pede cinco mil-réis para mostrar a igreja, Mário aceita:

A voz dela canta como ladeira. Aceito os cinco mirreis, que ela propôs

entre risos, pra enganar a timidez, porém decidida. E principia uma visita forte, sem história, porque o vigário graças-a-deus que anda em

Itamaracá. Visita muda, quase trágica, entre assombrações de gente antiga, as festas que houve aqui, música religiosa, pensamentos dispersivos...

3

As notas retiradas do diário manuscrito de Mário de Andrade se encontram no volume de “O turista

aprendiz” (2002).

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A “velha guardiã” é parte da maravilha do convento. Este, nas

palavras do escritor, não se revela apenas como monumento, mas como

lugar insuflado pelas práticas e pelos sentidos: há evocação do passado. Prossegue a descrição:

O claustro é um carinho, a estante e os próprios móveis do coro, com

o jacarandá pretejado, são coisas sem preço. Os azulejos da igreja contam em bom estado os milagres de São Francisco. Aliás tenho uma incapacidade vasta de observar o trabalho propriamente artístico no azulejo. O desenho, o caso que ele conta, careço de fazer esforço para observá-lo. O que vejo é mesmo o valor decorativo da matéria: uma

coisa refletidamente festiva, rica sóbria, solene. A gente enxerga mas

é o azulejo, o conjunto e isso é um encanto. Está claro que assim,

decorando o baixo das paredes, se o azulejo não fosse historiado perdia noventa por cento do poder plástico, porém aqueles cavalos, gentes,

castelos,

paisagens,

passam

dum

quadro

pra

outro,

movimentam o conjunto numa procissão estourada de festa, golpes de sino dentro da sensação. Azulejo pra mim é isso. Duma pra outra igreja não sei contar qual o artisticamente melhor (ANDRADE, 2002, p. 200).

136

E destaca as pinturas: Mas a principal riqueza deste convento são as pinturas, das melhores

que conheço da Colônia. Aliás, estou notando isso: já ontem na Ordem

Terceira de São Francisco, em Recife, as pinturas me entusiasmaram. E agora me entusiasmam as de Igaraçu...Os pintores que andaram por

aqui eram bons... Com exceção do Velasco e do Teófilo de Jesus baianos, talvez os melhores da Colônia ... (ANDRADE, 2002, p. 200).

Na crônica publicada, datada de 10/12/1928 não existe referência

à Ordem Terceira de São Francisco em Recife, mas em seu diário manuscrito, na mesma data, se lê:

Ordem 3ª de S. Francisco, em reparos bem orientados. A fachada é

bem boa o que é raro nas igrejas por aqui. O interior todinho em talha doirada (inferior como trabalho à S. Francisco da Penitência do Rio) azulejos e muitos painéis, é um dos maiores monumentos do Brasil. Um fenômeno importante a notar que diferencia os hispano-

americanos e os luso-americanos em arquitetura religiosa é que

naqueles a preocupação do monumental está sobretudo no exterior do edifício, ao passo que entre nós é no interior que está. Está claro que considero muito superior, muito mais bela S. Franc. de Assis de S. João

del Rei à catedral do México por ex., porém o caso do Aleijadinho é

um caso de arte e estou observando um fenômeno de psicologia ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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mística, não de arte. Ordem 3ª como interior é absolutamente notável.

Sóbria no barroco, ordenação magnífica de pintura, ouro entalhado e azulejo. As pinturas são excelentes e agora depois de inteligentemente

limpas, estão claras, bem visíveis e mesmo plásticas. O entalhe é tímido mas seguro. O interior dos altares é muito bom. O púlpito é um

mimo com florão colorido no meio do oiro. O entalhe não tem anjos

nem pássaros maravilhosos, nem ocos, nas volutas e folhas. Só nas colunas caneladas que cachos de uvas e folhas fazem ocos tímidos

(ANDRADE, 2002, p. 301-302).

A crônica do dia 12/12/1928 é dedicada à cidade do Recife, seu

apogeu econômico e as migrações que acabaram por fazer surgir os

mocambos. É novamente nas notas manuscritas que irão aparecer novas observações sobre as igrejas:

[...] visita igreja Conceição dos Militares, excelente no luxo barroco excessivo. O teto em vez de caixotões era todo entalhado com flores,

conchas e quadros no meio do excesso de barroquismo. Entalhe com anjos e crianças tamanho natural, alguns até sustentando em vez de

colunas, o teto pra galeria superior, aliás próxima do teto. Pinturas

137

como sempre boas.

Igreja do Carmo: magnífica. O entalhe colorido a óleo, cores quentes

deliciosas, sobretudo o amarelo. Menos ouro bem realçado. A capela-

mor é mesmo magistral. As pinturas como sempre ótimas. As imagens

como sempre cá no recife: comuns. Os pintores que andaram por aqui

eram mesmo bons, se alguns deles eram brasileiros, não tem dúvida que demonstravam maior talento plástico que no resto do país.

Madre de Deus – Continuam as pinturas excelentes. Aqui, na capela-

mor e dois painéis decorando as paredes do corpo da igreja, sobre os arcos das capelas laterais, são movimentados, no geral plásticos e de

composição extraordinariamente excelente. Os painéis são o que esta igreja possui mesmo de notável. Salientam-se até mesmo dentro do recife. Pelo menos foi a impressão que tive.

Me esqueci de falar que na Conceição dos Militares no teto sob o coro tem um painel interessantíssimo, comemorando a 1ª batalha de

Guararapes. É de muito valor e de fim do século XVIII. De certo será

fácil saber o autor. Era um primitivo duro, ingênuo, incipiente no

espírito e na técnica, porém o painel se move, historiado com vivacidade, com espírito de invenção. É um painel notável mesmo e é inconcebível que não tenha sido reproduzido (ANDRADE, 2002, p.303304, negritos na edição utilizada).

No dia 30 de janeiro de 1929, terceiro dia na então cidade de

Paraíba e após sua estada em Natal, Mário tece suas impressões sobre o convento de S. Francisco:

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Do Nordeste à Bahia não existe exterior de igreja mais bonito nem mais original que este. E mesmo creio que é a igreja mais graciosa do

Brasil – uma gostosura que nem mesmo as sublimes mineirices do

Aleijadinho vencem em graciosidade. Não tem dúvida que as obras do Aleijadinho são de muito maior importância estética, histórica, nacional e mesmo as duas S. Francisco de Ouro Preto e S. João del Rei

serão mais belas, porém esta de Paraíba é graça pura, é moça bonita, é periquito, é uma bonina. Sorri (ANDRADE, 2002, p. 276).

E depois se segue a descrição do interior da igreja: o púlpito, as

pinturas, os azulejos “dos mais ricos que já vi, suntuosos”, azulejos que estão também no muro do pátio externo. E finaliza: “Na frente de tudo o

cruzeiro é um monólito formidável. Estou assombrado. Paraíba possui um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do Brasil. Eu não sabia... Poucos sabem ...” (ANDRADE, 2002, p. 278). Nas crônicas de 1 e 2 de

fevereiro, ainda sobre a capital paraibana: “Paraíba tem antiguidades

arquitetônicas esplêndidas. Algumas como boniteza, outras só como antiguidade. E já falei que o convento de S. Francisco é a coisa mais

graciosa da arquitetura brasileira” (ANDRADE, 2002, p. 279). A distinção

138

entre o antigo e o histórico aparece com bastante nitidez nos registros do

poeta, como se pode verificar ainda sua impressão sobre a Matriz de Mamanguape, PA, em 27/01/1929: “Paramos no largo pra examinar a

matriz, simpática por fora. Por dentro: pão bolorento e anjo bento. Umas imagens antigas destituídas de valor (ANDRADE, 2002, p.273).”

Em relação ao Convento de São Francisco a maior graciosidade, a

arte da igreja da Paraíba não suplantava, para o poeta, a “importância

estética, histórica, nacional” de Aleijadinho e das igrejas mineiras. Há

uma nítida distinção entre valor estético, antiguidade e valor histórico, distinção reveladora na medida em que mostra o quanto Mário

encontrava-se impregnado pelo barroco mineiro no que dizia respeito ao valor histórico e, principalmente, como em fins dos anos 1920 este já era

consagrado como historicamente relevante para a nação. Entretanto, a relevância histórica viria a ser apenas um entre outros critérios utilizados

por Mário de Andrade para estabelecer as bases do Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional.

No anteprojeto a

conceituação de patrimônio apresentava-se de uma amplitude inusitada para a época:

Entende-se por Patrimônio Artístico Nacional todas as obras de arte

pura ou aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes aos poderes públicos, a organismos sociais e a

particulares nacionais, a particulares estrangeiros, residentes no Brasil (ANDRADE, 1981, 39).

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No tocante à arquitetura, o poeta incluía tanto a “arquitetura

popular” quanto “certas obras de arte arquitetônica que, sob o ponto de vista de arte pura não são dignas de admiração [...]”, mas que teriam representatividade histórica (ANDRADE, 1981, 41). O primeiro tipo de

arquitetura situava-se na categoria de “arte popular”, enquanto a

segunda era considerada “arte histórica”. Às duas categorias, somavam-

se também as artes “arqueológica”, “ameríndia”, “erudita nacional”, “erudita estrangeira”, “aplicadas nacionais” e “aplicadas estrangeiras”.

Além disso, a noção de ‘arte’ não se restringia às manifestações

tangíveis, materiais, mas estendia-se também à cultura popular e ao

folclore, fato que denotava uma visão de patrimônio bastante ampla para a época. Nas palavras de Mário Chagas (2009, p.103): “Para o poeta de

Lozango cáqui, a arte é compreendida como todo e qualquer modo de expressão humana e, nesse sentido, aproxima-se bastante do conceito

antropológico de cultura.” A idéia de arte subjacente ao Anteprojeto

escrito por Mário de Andrade incluía itens como o “folclore ameríndio” -

139

com seus “vocabulários, cantos, lendas, magias, medicina, culinárias

ameríndias” -, e do ponto de vista popular a música, “contos, histórias, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas, etc.” (ANDRADE, 1981, p.41).

Mais que itens de

inventário, estas manifestações eram objeto de interesse de Mário como musicólogo e pesquisador: nas viagens ao norte e nordeste, com misto

de encantamento subjetivo e preocupação com a coleta criteriosa de dados, Mário transforma-se um etnógrafo aprendiz ao estilo dos românticos europeus que viajavam para registrar a “cultura popular tradicional” entre os séculos XVIII e XIX (BURKE, 2010, p. 26).

A percepção de que o patrimônio não se restringiria aos bens

materiais já estava presente em Mário durante suas viagens. Em 29/12/1928, em Natal, Mário escreve:

O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições

móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se

transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim, por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares (sic!).

As tradições imóveis não evoluem por si mesmas. Na infinita maioria dos casos são prejudiciais (ANDRADE, 2002, p. 227-228).

O trecho é instigante. Mário demonstra o entendimento do caráter

dinâmico da cultura: as tradições móveis transformam-se pela sua ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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própria natureza. A divisão entre tradições móveis e imóveis surge nas

anotações do poeta quando ele se questiona acerca de algo que revelará um dilema crucial do modernismo no Brasil:

Natal é feito S. Paulo: cidade mocinha, podendo progredir à vontade

sem ter coisas que dói destruir. Isso é muito importante para nós. O problema da destruição ou conservação da Sé, da Bahia, por exemplo, confesso que por mim não sei resolver (ANDRADE, 2002, p.227).

Mário antecipava questões que até hoje envolvem o campo do

patrimônio. Ainda em relação a Salvador, prossegue o poeta:

O próprio centro urbano da cidade alta é que se tem de resolver se é

prático ou não ficar onde está. Todas aquelas ladeiras, quedas de sopetão, torceduras de terrenos são absolutamente contrárias

a

qualquer norma utilitária de urbanismo contemporâneo. Não é

possível aplainar aquilo e retificar as ruas sem arrasar tudo. Ou se

destrói tudo pra atualizar aquilo, ou, qualquer paliativo destruirá

tradições valiosas que nem a dita Sé, não passando de paliativo e não resolvendo nada – esse é o problema (ANDRADE, 2002, p.228).

140

O problema, talvez o impasse insolúvel entre a preservação e as

demandas da modernidade, não era exclusivo do Brasil de início do

século XX. Ele aparece como constitutivo da própria história do

patrimônio, como demonstram, por exemplo, os debates na França do

segundo Império durante as reformas urbanas de Haussmann (CHOAY, 2006).

O dilema tradição/modernidade movia também a face de etnógrafo de

Mário de Andrade. Assim como os antiquários e folcloristas europeus dos

séculos XVIII e XIX, o poeta paulistano sentia-se premido pela ameaça de desaparecimento do que seria o próprio substrato, o volksgeist da nação

cujos fundamentos ele perseguia, como se percebe em seu comentário em 5/2/1929 sobre algumas manifestações culturais populares: “Além

dos Cabocolinhos, tem os ‘índios africanos’, tem os ‘Canindés’, os ‘Caramurus’, etc. Mas tudo vai se acabando agora que o Brasil principia...” (ANDRADE, 2002, p.285).

3. Etnografia: “com todos os efes e erres”. Como missivista compulsivo, Mário costumava solicitar aos amigos

informações sobre manifestações da cultura popular de suas regiões, ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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como na carta de 20/05/1928 para o Augusto Meyer: “Por favor, tendo ocasião, não esqueça de arranjar toadas e melodias de qualquer gênero

gaúchas pra mim” (ANDRADE, 1968, p.57). Em abril de 1929, em outra

carta a Meyer, Mário planeja uma viagem ao Rio Grande do Sul e conta sobre sua estada no nordeste:

O bom seria que vocês me arrumassem por aí jeito de escutar bastante música popular. Imagine que trouxe nada menos que 666 melodias populares do Nordeste, todas colhidas por mim com todos os efes e

erres. Pretendo fazer com elas um livro que pela documentação ajuntada por mim é de formidável interesse nacional” (ANDRADE, 1968, 70)

A viagem ao nordeste havia sido marcada pela busca obsessiva e

apaixonada das manifestações populares: “Passo meus dias trabalhando, trabalhando, estou colhendo uma coleção bonita mesmo de cantigas e

danças”, escreveu em 29/01/1929 na Paraíba. Qualquer oportunidade da

viagem era aproveitada pelo poeta para registro. Em Catolé do Rocha, PA,

141

vê uma menina aparentemente com problemas mentais acompanhada de uma senhora que pede esmolas e, a cada esmola recebida, entoa um “bendito”. O pesquisador não perde a oportunidade: Tem

a

voz

nítida

e

o bendito

musicalmente

é

maravilhoso.

Alimentamos a continuação dele com esmolas enquanto pego meu caderno pautado e anoto a cantiga. O povo me cerca sarapantado,

bêbados, meninos, mulheres, tudo espiando o caderno esquisito. Só

mesmo a boniteza do canto me sustenta no escândalo (ANDRADE, 2002, p.261).

Em seu primeiro dia na cidade de Natal, 15 de dezembro de 1928,

onde é acolhido por seu amigo o folclorista Câmara Cascudo, Mário

comenta alguns equívocos de registro sobre canções populares que aparecem em seu “Ensaio sobre Música Brasileira”. E desabafa:

Já afirmei que não sou folclorista. O folclore hoje é uma ciência, dizem...Me interesso pela ciência porém não tenho capacidade pra ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pra músico e não, (sic!) passar vinte anos escrevendo três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto...(ANDRADE, 2002, p.26).

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É significativa a afirmação de Mário sobre o folclorismo, justo

quando goza da hospitalidade de Câmara Cascudo, com quem se correspondia desde 1924.

Crítica aos folcloristas [Paraíba, 5/2/1929]: Uma das nossas danças dramáticas de que menos se tem falado são os

“Caboclinhos”. A culpa dessa ausência de documentação vem dos nossos folcloristas, quase todos exclusivamente literários. O que se

tem registrado nos nossos livros de folclore é quase que unicamente a manifestação intelectual do povo, rezas, romances, poesias líricas, desafios, parlendas. O resto, moita (ANDRADE, 2002, p. 283-284).

Essa postura situava Mário de Andrade de modo peculiar: nem

etnógrafo acadêmico, nem folclorista com pretensões científicas, mas

sempre buscando a maior exatidão possível. Os registros não se restringiam às músicas e danças, mas incluíam nomes de plantas, expressões populares e rituais indígenas. Em 6/06/1927, em Manaus, Mário registra:

142

Acariguara é um pau curiosíssimo, diz-que mais resistente que ferro, todo aberto em furos alongados.

Banzeiro: movimento agitado das águas, quando o navio passa e deixa

a esteira violando a mansidão do rio. Mas que calor! mais quente que Belém.

Festa da Moça-Nova, rito de puberdade entre os ticunas. Um mês

antes fecham a púbere numa casa, depois a embriagam inteiramente com xaiçuma, a rapariguinha está rolando no chão. Os homens com

máscaras de animais dançando em torno. As mulheres da tribo chegam e principiam depilando a moça-nova, até ficar completamente

pelada. Nem um fio escapa. E é o corpo todo. [...] (ANDRADE, 2002, p.80).

Na mesma anotação, Mário registra ainda: “Chula – por aqui chama

de ‘chula’ uma cantiga, em geral cômica e de andamento quase rápido, um ‘allegro’ cômodo”, e transcreve duas estrofes (ANDRADE, 2002, p.

80). No dia 12/06/1927, quando seu navio adentra em um porto-delenha:

Atrás, na lagoa, ficava o vilarejo Caiçara, onde tinha festa. Fomos lá e

encontramos o bailado da “Ciranda”, que vi quase inteiro, registrei

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duas músicas numa caixa de cigarro, e tomei umas notas como pude, tinha esquecido o livro de notas. 4

Na viagem seguinte, quando de sua estada em Natal, Mário vai

assistir um ensaio de Chegança no bairro de Rocas e escreve em 18/12/1928:

E fico maravilhado. Está claro que não se trata duma obra-de-arte

perfeita como técnica, porém desde muito já que percebi o ridículo e a vacuidade da perfeição. Postas em foco inda mais, pela monotonia e

vulgaridade do conjunto, surgem coisas dum valor sublime que me comovem até à exaltação.

Todas essas danças-dramáticas inda permanecidas tão vivas na parte

norte e nordeste do país, andam muito misturadas, umas trazem

elementos de outras, influências novas penetram nelas; junto duma lição camoniana brota um brasileirismo danado, contando fatos de

agora, tão impossíveis que a Turquia chega a conhecer a força do

“braço brasileiro” na presença do imperador Guilherme II (ANDRADE, 2002, p.210).

E prossegue na descrição da dança. O dado mais interessante,

143

contudo, vem do próprio acompanhante de Mário, Luis da Câmara Cascudo (1979), que informa em seu “Dicionário do Folclore Brasileiro”:

A chegança é relativamente recente no Rio Grande do Norte. Sua primeira representação se realizou no teatro Carlos Gomes, Natal, na

noite de 18 de dezembro de 1926 e foi posteriormente encenada no bairro das Rocas. Sua popularidade data de 1926. Do teatro passou á rua. Jamais possuiu a tradicionalidade do fandango e do bumba-meu-

boi (CASCUDO, 1979, p.218).

Considerando a informação de Câmara Cascudo, Mário de Andrade

teria registrado a segunda apresentação de Chegança a acontecer no Rio Grande do Norte, quando ela acabara de passar “do teatro para a rua”.

Outro objeto de interesse do poeta eram as variações dos cultos afrobrasileiros: “A feitiçaria brasileira não é uniforme não. Até o nome das manifestações dela muda bem dum lugar pra outro [...]”, registra em 22/12/1928 (ANDRADE, 2002, p.216). As descrições são minuciosas e o

interesse chega a levar Mário a experimentar, submetendo-se a um ritual de “fechamento de corpo” em 28/12/1928:

4

Segue-se depois a descrição do folguedo: “A ciranda – (notas tal qual tomadas)”. Em 8/12/1927

Mário publica a crônica “a Ciranda” no “Diário Nacional”.

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Hoje, última sexta-feira do ano, apesar do dia ser par, era muito

propício pra coisas de feitiçaria. Por isso aproveitei pra “fechar o corpo” no catimbó de dona Plastina., lá no fundo dum bairro pobre, sem iluminação, sem bonde, branquejado pelo areão das dunas. [...].

Não sei... É impossível descrever tudo o que se passou nessa sessão disparatada,

mescla

de

sinceridade

e

charlatanismo,

ridícula,

dramática, cômica, religiosa, enervante, repugnante, comovente, tudo misturado. É poética. Sou obrigado a confessar que agora, passados os ridículos a que me sujeitei por mera curiosidade, estou tomado de lirismo, vou me deitar matutando com Nanã-Giê, marvada! (ANDRADE,

2002, p. 223-224).

Em 3/1/1929 registra orações católicas que influenciam o catimbó

norte riograndense. Parte do material colhido por Mário durante a

viagem, junto outros registros, iria auxiliá-lo na elaboração dos textos

que compõe seu livro Música da Feitiçaria no Brasil, organizado por sua colaboradora Oneyda Alvarenga (ANDRADE, 1963). Em 26/1 registra

comentários sobre os Congos, ressaltando nele “a colaboração ou a inspiração do africano e do índio” (ANDRADE, 2002, p.271). A versão

144

completa do Congo observado no Rio Grande do Norte encontra-se em

Danças dramáticas do Brasil (ANDRADE, 1959).

Uma das manifestações musicais que mereceram mais atenção e

carinho nos registros foi o Coco. Conforme a anotação de 15/12/1928:

Me deito depois deste primeiro dia de Natal. Estou que nem posso dormir de felicidade. Me estiro na cama e o vento vem, bate em mim cantando feito coqueiro. Por aqui chama de “coqueiro” o cantador de

“cocos”. Não se trata do vegetal, não, se trata do homem mais cantador desse mundo: nordestino (ANDRADE, 2002, p. 204).

Quatro dias depois, Mário de Andrade relata sua experiência com

dois “coqueiros”:

Ora está me parecendo que os coqueiros nordestinos usam também entoar com número de vibrações que afastam o som emitido dos 12

sons da escala geral. O quarto-de-tom de que a música erudita não se

utilizou na civilização européia, esse estou mesmo convencido que os nordestinos dão. Já topei com eles três feitas nesta viagem, entoado

pela preta Maria Joana, cantadeira famanada de Olinda, e por um catimbozeiro natalense. Mas pra decidir mesmo no caso de que trato carecia de aparelhos especiais que não tenho aqui.

Não é cantar desafinado não. Cantam positivamente “fora de tom” e

este fora de tom está sistematizado neles e é de todos. Se fixo uma tonalidade aproximada no piano e incito os meus dois coqueiros, ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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cantando com eles, se...amansam, caem no ré bemol maior, por exemplo. Se paro de cantar, voltam gradativamente pro “fora de tom” em que estavam antes. E é um encanto (ANDRADE, 2002, p. 213-214).

Um coqueiro em particular conquistou a atenção de Mário: Chico

Antonio: “Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. Vem da terra, canta

por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando em parada”, escreve em janeiro de 29 (ANDRADE, 2002, p. 244). Em mais de um encontro, Mário registra melodias e letras tiradas

por Chico Antonio que “vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa” (ANDRADE, 2002, p. 246).

A ausência de recursos, de “aparelhos especiais” que, inclusive,

suprissem as dificuldades da notação erudita, seria compensada anos depois com outra iniciativa. É na fase dessas viagens, mais precisamente

em 1928, que Flávia Camargo Toni (2008, p.25) situa o embrião do que viria a ser o projeto da Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento

de Cultura da Municipalidade de São Paulo, órgão que tinha à frente

145

Mário de Andrade, Paulo Duarte, Sérgio Milliet e Rubens Borba de Moraes.

A Missão, idealizada e organizada por Mário, inicia-se em 1938, após

uma preparação metodológica que incluía aulas com Dina Levi-Strauss. Na preparação da Missão nota-se a preocupação com o rigor dos registros:

Entre os documentos da Missão, que foram zelosamente preservados

por Oneyda [Alvarenga], há várias indicações da presença de Mário na elaboração do roteiro, na escolha da equipe, na fixação dos métodos de

colheita.

[...].

O

autor

de

Danças

Dramáticas,

estudioso

experimentado, tratou de fornecer a Luis Saia, técnico da Missão, instruções precisas sobre como e o que pesquisar (TONI, 1985, p. 26).

Chefiada pelo engenheiro Luis Saia, contando também com Martin

Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio Ladeira, a equipe empreende viagens ao norte e nordeste com a finalidade de registrar manifestações

culturais diversas, recorrendo para isso, inclusive, a equipamentos de fotografia, gravação e filmagem. Considerações finais Em 10/1/1929, véspera de despedir-se de Chico Antonio, ‘tirador’

de cocos de Natal, Mário escreve: “E terei de ir para São Paulo... E terei

que escutar as temporadas líricas e as chiques dissonâncias dos ENSAIOS | “TODAS ESSAS COISAS SÃO ENCANTOS”: VIAGENS, PATRIMÔNIO E FOLCLORE EM MÁRIO DE ANDRADE | RAFAEL JOSÉ DOS SANTOS


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modernos...” (ANDRADE, 2002, p. 246). A afirmação pode ser lida apenas

como expressão do quase final da experiência da viagem, afinal, sabe-se do bairrismo paulistano do poeta. Mas também pode interpretar-se o

registro focalizando, de um lado, a musicalidade de Chico Antonio e, de outro, “as chiques dissonâncias dos modernos”. O interesse pela

experimentação estética na música parece, nesse trecho, ceder lugar à paixão

pela

poética

da

produção

popular.

Assim,

revela-se

a

ambivalência, a contradição e a síntese entre tradição e modernidade em Mário de Andrade.

A dura letra do anteprojeto do SPAN não permite desvendar, em si

mesma, a complexidade das concepções de seu autor. A visão avançada

para a época era, na verdade, uma perfeita compreensão de que a

história, em particular a grande história e os ‘valores excepcionais’, eram insuficientes para a construção imaginária da nação. Em suas viagens, o

poeta aproximou-se de elementos que demandavam ser reunidos e dotados de sentido de nacionalidade.

146

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. (2002), O Turista aprendiz. Belo Horizonte, MG:

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Graduação em História, política e bens culturais do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, dezembro de 2009.

Brasil:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do

promulgada

em 5 de outubro

de

constitucionais posteriores. Brasília, DF: Senado.

1988.

Contém

as

emendas

BURKE, Peter. (2010), A cultura popular na idade moderna. São Paulo:

Companhia das Letras.

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RESENHAS:

Tradição e Performance. Vida e Arte no João Redondo de Dona Dadi Por Luiz Assunção


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TRADIÇÃO E PERFORMANCE. VIDA E ARTE NO JOÃO REDONDO DE DONA DADI

Luiz Assunção

PEREIRA, Maria das Graças Cavalcanti. Dadi e o teatro de bonecos.

Memória, brinquedos e brincadeiras. Natal: Manibu; Ed. da Fundação José Augusto, 2011.

149

O livro de Maria das Graças Cavalcanti Pereira – Dadi e o teatro de

bonecos. Memória, brinquedos e brincadeiras, resultado da pesquisa

realizada para sua dissertação de mestrado em Ciências Sociais – UFRN,

reflete sobre a trajetória de vida e a arte de Maria Ieda da Silva Medeiros, 73 anos, conhecida por Dadi, residente em Carnaúba dos Dantas, no estado do Rio Grande do Norte.

Dadi, a personagem central do livro, que se intitula calungueira e

se dedica há mais de duas décadas à arte de dar vida e voz aos bonecos, apresenta um diferencial no universo do teatro de bonecos, representado

historicamente por uma genealogia masculina. Destaca-se no seu saberfazer, no uso de materiais, no ato de esculpir, na criação de marionetes de fios, de vara, bonecos de grande porte, com membros articulados, na

exímia pintura que revela os traços dos calungas, na costura das indumentárias, no acréscimo de cabeleiras coloridas e na apresentação de sua brincadeira.

O teatro de bonecos, no Brasil, remonta ao século XVI com as

representações portuguesas sobre o nascimento do menino Jesus, dando origem a duas formas de teatro: os pastoris, espetáculo do ciclo natalino,

encenados por atores; e o de mamulengo, encenados, em várias ocasiões,

por bonecos de madeira. Na região nordestina é visto como uma forma de teatro de bonecos tradicional, com forte influência da estrutura RESENHA | TRADIÇÃO E PERFORMANCE. VIDA E ARTE NO JOÃO REDONDO DE DONA DADI | LUIZ ASSUNÇÃO


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dramática da commedia dell’arte, combinando ritmos e personagens diversos. No Rio Grande do Norte ele se tornou conhecido por João

Redondo, recebendo vários outros nomes nos demais estados (como

Mamulengo, em PE; Babau, na Paraíba; Cassimiro Coco, no Ceará e Piauí), evidenciando

o

caráter

historicamente

masculino

da

tradição,

representada por alguns mestres como os irmãos Relampo, Severino Bastos e Chico Daniel, para o caso do RN.

“Essa brincadeira é a responsável pelo entretenimento dos moradores

de pequenos sítios e lugarejos, escolas, praças públicas e pequenos circos mambembes, na casa do próprio bonequeiro ou outro lugar

marcado pelo proponente interessado. Acontece geralmente em áreas abertas, por trás de uma pequena cortina ou tolda com espaço

reservado para o brincante movimentar os bonecos. Essa é uma apresentação magistral de vivacidade, de colorido, de alegria, com ritmo e expressão sem sofisticação, apoiando-se na tradição” (Pereira,

2011, pp. 123).

Ao introduzir o leitor na temática, a autora relata seu encontro

150

com dona Dadi, na véspera do dia de São José, em 2002, quando ao fazer

um levantamento sobre as oferendas aos santos populares e sua respectiva produção material, no local de devoção popular, denominado Monte do Galo, escuta de um entrevistado a referência a uma fazedora de

ex-votos. Vai imediatamente ao seu encontro e descobre não apenas uma

artesã santeira, mas uma mulher-poeta, que esculpe calungas e transita pela brincadeira do João Redondo.

Após o primeiro encontro, continuou mantendo contato com a

calungueira, no entanto, alguns anos depois, em 2008, sistematiza um processo de pesquisa com duração de um ano que vai gerar a elaboração

de sua dissertação de mestrado e este livro. Durante esse período, faz a gravação de 98 horas de entrevistas e compartilha da intimidade de Dadi através da convivência em sua casa, de fotografias, objetos, cartas, o acesso livre ao seu caderno de poesias.

A amizade e a confiança

conquistada durante o período que antecede ao processo de pesquisa,

oportuniza a produção de um ensaio fotográfico e videográfico, portfólio, publicações nos diversos veículos de comunicação e apresentações diversas em formato de cd. A relação afetiva construída e o permanente

diálogo serão decisivos para que a personagem sinta-se a vontade para

falar de sua vida. Sobre esse processo, lembra a autora:

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“o início do registro de suas narrativas era sempre movido por conversas sobre amenidades do cotidiano, para deixá-la à vontade,

para que falasse livremente sobre os temas propostos (...). A cada

encontro fazia um roteiro parcial, arrolando, em tópicos, os assuntos a serem tratados no encontro seguinte, após uma reflexão sobre o que tinha

sido

alcançado

até

aquele

momento.

Iniciava

sempre

confirmando alguns pontos não muito claros, deixados na sessão

anterior e de formular novas questões, com base em informações obtidas na ultima conversa, entre outras” (Pereira, 2011, pp. 21).

Durante

a

realização

da

pesquisa,

segue

um

caminho

metodológico que combina rigor acadêmico e estreito relacionamento

com a personagem central, fazendo uso da etnografia, observações e

entrevistas, como de revisão bibliográfica, pesquisa em arquivos e utilizando do registro em vídeo e fotografia, compondo um rico acervo documental sobre o campo pesquisado.

O livro está organizado em três capítulos, denominados de

cenários,

além

de

uma

introdução,

a

conclusão,

as

referencias

bibliográficas e um conjunto de fotografias. Seguindo a premissa de Paul

151

Zumthor de que “somos seres de narrativas, tanto quanto de linguagem”, o primeiro cenário, Dadi, lembranças de sua memória, introduz o leitor

na caminhada da trajetória de vida e arte de Dadi, as lembranças de

infância, primeiras e decisivas experiências de vida, reflexões pessoais engajadas noutras imagens reportadas ao passado, em especial de sua juventude até a chegada da maturidade.

À narrativa da história de vida soma-se as reflexões de autores

como Maurice Halbwachs e Paul Zumthor em seus estudos sobre a cultura pelo viés da memória, das lembranças, dos esquecimentos, contribuindo

para “entender aquilo que Dadi estava querendo evocar ou provocar, frente

às

lembranças

acumuladas

de

sua

memória,

repletas

de

personagens concretos e imaginários, cheias de tramas, texturas,

sabores, aromas, cores, gestos, palavras e silêncios” (Pereira, 2011, pp. 28).

Dadi fala de sua infância em um sítio na zona rural, “numa casa

pintada de azul, arrodeada de pedras brancas”. As festas de família, na

adolescência, para falar da convivência, os valores morais da família, educação. O período de tristeza com a morte do avô, a divisão da herança

e o processo de decadência material. O casamento, a morte dos filhos. A escrita poética para amenizar o sofrimento. A velhice e o encontro com o mundo dos bonecos.

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O segundo cenário, O brinquedo, apresenta as etapas de

construção da arte bonequeira de Dadi, como escultura, estética, indumentária e adereços. Nesse cenário fica em evidência o registro da

construção dos bonecos, em suas várias etapas, com detalhamento do

processo criativo e de como ela se reconhece, nesse universo brincante

em que tem vivência. Em sua reflexão sobre a confecção dos bonecos,

Graça Pereira observa dois momentos que caracterizam sua elaboração: os primeiros bonecos seguem o mesmo traço posto nos ex-votos e mais

recentemente a confecção dos bonecos de luva e os de grande porte, prima pelo cuidado e o requinte nas peças elaboradas. Destacam-se a

inclusão de articulações dos membros inferiores e superiores; o uso de cabeleiras femininas em tons coloridos, cacheados e em material

sintético; a escolha de cores fortes nas indumentárias, um colorido bem contrastante; a combinação de adereços. Lembra que a artista ressalta que, inicialmente, repetiu o mesmo padrão dos bonecos que viu na sua

infância; depois, começou a transferir seu gosto pessoal para os bonecos, inclusive os tons coloridos, sem se preocupar em criar ou seguir

152

modelos.

O terceiro cenário, A brincadeira no teatro de bonecos, discute a

tessitura das histórias e personagens, a emoção contida no tempo e no espaço da brincadeira.

“Essa brincadeira, como toda expressão artística e popular, é um fenômeno vivo e em permanente estado de transformação. Atualmente é praticado no meio rural e urbano brasileiro com diferenças de

conteúdo dramático nas apresentações dos mestres, que, como brincantes do seu tempo, assimilam os interesses, as críticas e o gosto de cada grupo social. Estas diferenças, no entanto, não abalaram a

força poética, simbólica e arquetípica das situações e personagens ficos apresentados na cena, que ainda mantém forte identificação com

os dramas, romances, costumes e contradições sociais do seu público, oriundos das classes populares” (Pereira, 2011, pp. 121).

Na brincadeira do João Redondo os personagens são definidos

compreendendo aspectos dos traços físicos, sociais e psicológicos,

caracterizado de forma peculiar através do nome da personagem –

definidor do caráter e do seu comportamento. Assim, um elenco variado de personagens inclui o Capitão João Redondo (o dono da brincadeira),

Baltazar (negro, valente, astuto, justiceiro), além da filha do capitão, o soldado, a amante, a bela, a má, o trabalhador. A esses e tantos outros, Dadi acrescenta aqueles que ganha vida com a elaboração dos seus RESENHA | TRADIÇÃO E PERFORMANCE. VIDA E ARTE NO JOÃO REDONDO DE DONA DADI | LUIZ ASSUNÇÃO


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roteiros, como Zé Bonitinho (vistoso, requintado), Zé Colméia (esperto), a professora (gente do governo), o filósofo (falante). Segundo a autora, os personagens

criados

por

Dadi

vão

daqueles

consagrados

pela

brincadeira, até os dispostos na crendice popular (como alma, diabo),

passando por personagens atualizados do seu cotidiano. As

histórias

criadas

por

Dadi

possuem

diálogos

curtos,

propiciando a entrada e saída de bonecos, numa sucessão de quadros autônomos, que seguem um esquema de pequenas cenas, entrecortadas por músicas e acompanhadas de pequenas intrigas, seguindo um roteiro

prévio ou de improviso. Na apresentação utiliza microfone, aparelhagem de som e quando possível, o acompanhamento de músicos.

Neste terceiro capítulo destacam-se os fios tecidos entre a arte de

Dadi e outros brincantes do João Redondo potiguar, demonstrando a riqueza nas diferentes formas de manter viva a tradição da brincadeira.

Outro aspecto, é a reflexão conceitual sobre à interpretação da brincante,

153

a transmissão e a recepção, apresentando dados etnográficos e

discutindo questões acerca do riso e da performance, sobretudo a partir das contribuições teóricas de Mikhail Bakhtin e Paul Zumthor. O

trabalho

de

Maria

das

Graças

Cavalcanti

Pereira

traz

significativas contribuições para a compreensão do dinâmico campo das culturas populares, em particular do teatro de bonecos e do João

Redondo. Tendo como fio a narrativa de vida e a singularidade de Dadi, adentra pelo mundo dos saberes, fazeres, técnicas e conteúdo artístico

da brincante. Expõe sua vida, emoções, desejos, amores, transgressões. Assim, procura ampliar o entendimento do teatro de bonecos em sua

interface com elementos contemporâneos, como o visual interativo, performático, estético. Outras questões são igualmente discutidas,

destacando a atualização e importância do seu trabalho, como a

circulação e comercialização da brincadeira, quanto aos riscos que envolvem a transmissão do conhecimento às futuras gerações e a continuidade de sua prática.

RESENHA | TRADIÇÃO E PERFORMANCE. VIDA E ARTE NO JOÃO REDONDO DE DONA DADI | LUIZ ASSUNÇÃO


LITERATURA:

Poemas de Renata Nascimento Passo Ă‚ncora Poema x Pequenez


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Passo Renata Nascimento “Descobrimos que éramos dois, três ou mais. Partidos. Idos. Fomos. Cada um sobre seus pés. O pé que toca o chão.

Nem de banda, nem virado.

O calcanhar de um versus os dedos do outro, Mirando o chão e à frente.

A planta se enraíza para a outra alçar curto vôo

Os dedos agarram o chão e o calcanhar de novo

Movem-se tornozelos, músculos se esticam e contraem.

A cada novo passo um novo chão. Para longe e para o centro.

155

O umbigo para fora e para dentro. Acompanhando os pulmões. O ar que entra que sai

Os poros que suam e secam Dentro do movimento Alguém.

Monolito.

Imóvel. Constante. Infinito.

Por fome ou desejo. Por si e por todos.

Por cada passo apenas Partido. Ido. Fomos.”

LITERATURA | POEMAS | RENATA NASCIMENTO


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Âncora Renata Nascimento “Âncora do peito Solta no inferno

O submundo emerge

Subterrâneo da solidão domina Pêndulo solto sob as ondas pesa e afunda

até achar rocha firme pedra fundamental

de um eu ainda bambo

navegando rumos incertos

156

à beira da morte

à base do escambo

de um eu aglomerado:

madeira prensada de gente diversa, ainda sem abrigo sob meu umbigo.”

LITERATURA | POEMAS | RENATA NASCIMENTO


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Poema X Pequenez Renata Nascimento “ÀS ALMAS PEQUENAS

UMA PENA.

UMA PLUMA

QUE É DE PASSARINHO NOVINHO. QUEM SABE ASSIM DESCUBRAM NOS OLHOS PRÓPRIOS

FORMA DE VER GRANDE

DE USAR A LUPA DA ALMA PARA APALPAR COM

O OLFATO, A VISÃO, O PALADAR

157

O TATO E TODOS OS SENTIDOS

EM NOSSOS BURACOS EMBUTIDOS CADA REENTRÂNCIA

DE MINÚSCULOS MÚSCULOS PULSANTES

DESSE MOMENTO

DESCOBRINDO (COM MANOEL DE BARROS)

QUE COM PEDAÇOS DE SI MONTA UM SER ATÔNITO.”

LITERATURA | POEMAS | RENATA NASCIMENTO


ENTREVISTA:

Paulo Marcolino, o Pixote Mc da Vรกrzea Por Benjamim Borges


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | ABRIL - 2012 | P. 159-166

Paulo Marcolino, o Pixote Mc da Várzea

Benjamim Borges – UFPE

Graduando em Ciências Sociais na UFPE e bolsista do Projeto

de Extensão Universitária Pontes de Cultura.

159

Durante os quatro últimos meses de 2011, eu tive a oportunidade

de conhecer e pesquisar um pouco mais sobre o movimento Hip Hop,

sobretudo, aqui no bairro da Várzea, em Recife-PE, através do Projeto de Extensão Universitária Pontes de Cultura, desenvolvido pelo Núcleo

Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Pernambuco (NASEB/UFPE). Foram meses bastante proveitosos pra

contextualizar a cultura Hip Hop na Várzea, tendo como principal

interlocutor nesse processo, Paulo Marcolino, mais conhecido pelo seu nome artístico, Pixote Mc.

Embora tenha se passado tão rapidamente

esse tempo, eu pude acompanhar de perto as ações de Pixote Mc em alguns eventos que ele promoveu em parceria com outras entidades, e

também tive o privilégio de fazer uma entrevista que rendeu dois encontros bastante empolgantes.

No primeiro encontro, nós conversamos pouco mais que uma hora.

Foi tempo suficiente para compreender a dimensão da representatividade que seus projetos têm e de como vêm contribuindo positivamente para o

alto estima da comunidade, principalmente a juventude, que tem sido o

público alvo principal da cultura Hip Hop e das ações de Pixote Mc. O

encontro dele com o movimento se deu a partir do grafite, e de lá pra cá,

ele passou a ser um dos representantes fundadores do movimento Hip

Hop na Várzea, desenvolvendo várias ações em conjunto com o Coletivo

Nova Geração, um grupo comunitário que surgiu em 2005, através de ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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uma ação chamada de Mutirão de Grafite, realizada pela REDE DE RESISTÊNCIA SOLIDÁRIA.

Atualmente Pixote Mc e o Coletivo Nova Geração vêm estruturando

e finalizando sua sede, o Barraco Estúdio, que conta com equipamentos

de som e ilha de edição, para que suas ações tornem-se cada vez mais efetivas. Com essa realização eles intencionam fortalecer não apenas a cultura Hip Hop mas também outros grupos parceiros, de modo que abranja toda a comunidade. É notório o quanto o trabalho de Pixote Mc é

reconhecido dentro da comunidade da Várzea. A palavra chave de todo o

trabalho que ele vem desenvolvendo é, segundo ele próprio, coletividade. O trabalho coletivo é um dos pilares que sustentam a cultura Hip Hop.

O segundo encontro foi bem interessante para aprofundarmos um

pouco mais sobre os assuntos que conversamos na primeira entrevista. As

composições

de

rap dele foram bastante aproveitadas para

abordarmos algumas questões de fundo político e social que ocorre nas

comunidades conhecidas como favelas. Algumas composições de Pixote Mc e do grupo Nova Geração podem ser encontradas facilmente na

160

internet,

através

dos

endereços

de

website

www.barracoestudioblogspot.com e www.myspace.com/barracoestudio.

BENJAMIM: 1. Como foi que se deu a escolha desse nome artístico Pixote mc? PIXOTE:

Então... O Mc é mestre de cerimônia, né? É o cara que toma conta do

microfone, e Pixote ele vem do filme... Que na época eu não assinava nada nas minhas camisas, porque eu pintava camisas há muitos anos

atrás, sobrevivia de pintura de camisa com aerografia, que é a famosa grafitagem de camisa. E aí eu assistindo um filme que quando eu vi

passou a legenda dele lá, né? “Quem matou Pixote?”. Pixote era um

menino da favela que se tornou artista de cinema, depois o menino cresceu e foi esquecido e se envolveu com o crime, se envolveu com

coisas erradas, e a polícia matou ele, né? Mas na verdade ficou aí esse

questionamento, porque ninguém provou realmente que foi a polícia. E aí eu me identifiquei assim, com a história do menino, não por ele se

envolver com o crime ou como ele terminou, mas porque ele era de favela e esse menino viu que era possível conseguir as coisas, apesar de que

nessa história, ele pôs os pés pelas mãos e se deu mal, mas aquele filme

ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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foi uma inspiração por causa disso, que ele me ensinou que eu poderia buscar uma transformação de vida através daquilo que eu gosto de fazer.

Quando o menino veio enxergar que ele gostava de cinema, ele já

não tava ligando mais pra isso, e já tava envolvido com o crime até que mataram ele, né? E no meu caso eu sou da favela igual a ele, eu tenho a

chance de me tornar um artista por causa da música e do grafite, e tenho vontade de, como eu disse, de ter liberdade, feito outros artistas, tem

liberdade de, se tiver vontade de viajar, de ter roupas, de ter alguma

coisa... Mas eu prezo muito a vida simples mesmo, tenho fé em Deus de nunca sair da favela. E Pixote, ele veio desse filme... Depois desse filme

aí, “Quem matou Pixote?”, eu assisti “Pixote, a lei do mais fraco”. Um filme anterior a esse, né? E foi que eu me identifiquei mesmo, foi daí que surgiu, juntei Pixote com Mc, né? Que é o mestre de cerimônia. BENJAMIM: 2. Você poderia contar um pouco da história da Várzea e de como a sua própria história se cruza com a cultura Hip Hop aqui na Comunidade?

161

PIXOTE:

Na Várzea eu fui nascido e criado no Campo do Banco... Quando era mais

novo, nunca fui um bom aluno, toda escola que eu chegava, eu era expulso, eu fui expulso de quatro escolas, minha trajetória escolar não

foi muito bom. E... Isso também foram lições para mim, com isso eu

conheci a pichação e o baile funk, né? Tinha dois bailes funk aqui, o 797 e o Castro Alves. Depois que eu conheci a pichação, eu passei, eu acho

que meu comportamento pra pior mais ainda, né? Aos meus 17 anos eu fui pai pela primeira vez... Tive um filho com 17 anos, e nessa época eu também ainda pichava, era pai pichador, como posso dizer assim... Mas

conheci também nesse meio tempo aí, depois que meu filho nasceu eu

conheci o grafite através de uma escola pública a qual eu já tinha renegado várias vezes... Tinha sido expulso várias vezes. Foi quando um

diretor... Diretor e vice-diretor na verdade, me convidou para fazer um

trabalho de arte na escola. Como eu era pichador e conhecia alguns grafiteiros, alguns, né? Eu propus que queria fazer um trabalho de arte na escola e que fosse a grafitagem, mesmo sem saber usar o spray para tal

função.

Foi daí que eu vi a importância dos estudos, infelizmente não

cheguei a cursar uma faculdade, mas pelo menos terminei o ensino médio e até hoje continuo estudando de maneira independente através

de internet, através de alguns livros... Eu continuo estudando sobre n assuntos, assuntos que eu considero importante. No meu bairro mesmo, ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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eu fui muito conhecido com essas histórias, essas más influências, né? De pichação, de escola nenhuma me aceitar, toda escola aqui me conhecia, e teve essa, né? Que eu falei aí, que a proposta era fazer um grafite, eu não

sabia usar o spray para fazer a grafitagem, mas conhecia algumas pessoas que fazia, convidei para se observar melhor, aí eu passei a me

aproximar melhor dessas pessoas e vi que o melhor caminho também era

ter que estudar um pouquinho se eu quisesse trabalhar com aquilo que eu me identifiquei, com aquilo que eu gostava.

Depois que eu conheci o grafite... Eu comecei a enxergar o mundo

de maneira diferente, eu pensava que o mundo girava ao meu redor, quando na verdade sou eu que giro ao redor do mundo, porque o mundo

é muito grande, né? Tanto sou eu como várias outras pessoas que gira ao

redor do mundo. Aí a gente tem que entender que a vida é um grande coletivo na verdade para que você possa também durar, que você possa

prolongar seus dias de vida, eu acho que você tem que viver em coletivo, foi isso que eu aprendi mesmo com o grafite, com o Hip Hop. Aí com o

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Hip Hop eu aprendi que podia ser bem mais do que só grafite. Poderia ser um estilo de vida, um meio de vida na verdade... E o Hip Hop me fez enxergar também que não só existe o Hip Hop como manifestação

cultural, aí eu passei a enxergar os grupos da comunidade, por isso que

eu não só falo do Hip Hop, mas eu falo da cultura varzeana, né?... Porque como eu disse, com o Hip Hop eu enxerguei a Várzea, o Recife,

Pernambuco de outra maneira, uma transformação muito grande. Eu sei

que em 2007 eu comecei a pensar e construir um estúdio que pudesse fortalecer e ajudar outros grupos que não tem condições de pagar pra ter acesso a um serviço de um estúdio. E aí, hoje, atualmente eu tô conseguindo realizar esse feito. BENJAMIM: 3. Como surge a idéia inicial de montar o barraco estúdio para a comunidade da Várzea? Como ele funciona e se articula com a comunidade? PIXOTE:

O Barraco Estúdio foi pensado... Depois que eu conheci o Hip Hop, né?

Porque quando eu conheci o Hip Hop, foi que eu entendi algumas coisas

sobre o rap também, né? Vi como outro grupo fazia dentro de casa num

quarto, aí eu achei aquilo interessante que eu ia poder me expressar e

falar aquilo que eu queria nas minhas músicas e poderia fazer em casa, né? Mas aí, eu percebi que eu tinha uma dificuldade que era ter acesso a

um estúdio, e percebi que não era só eu, eram vários outros grupos da ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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comunidade, vários outros grupos que fazia a mesma coisa que eu,

tentava fazer música, mas era muito caro. É um recurso quase

inacessível, porque só quem tem dinheiro, tem acesso mesmo. E aí eu comecei a estudar produção musical através da internet e através de um

DJ que me mostrou como fazer música num estúdio caseiro. E aí eu

pensei numa sede, num lugar que eu pudesse juntar pessoas com esse mesmo problema, que esse lugar pudesse ser uma base, né? Que pudesse fortalecer. E aí eu uni o útil ao agradável. Com o grafite que aí eu

passei a dar aula de grafite, lá passou a ser um lugar de referência de grafiteiros também, no Barraco Estúdio... Passou a gravar músicas.

Meu primeiro emprego com o grafite de verdade, carteira assinada,

eu passei dois anos. Quando eu saí de lá minha pequena indenização eu

comprei um computador que na época eu achava o melhor do mundo, mas assim... Eu achei que tava me satisfazendo podendo gravar minhas

músicas e de outros grupos. Foi quando surgiu outras pessoas que me

ajudou a fortalecer o Barraco Estúdio, a criar o Barraco Estúdio... Se uniu, né? Porque eu tinha o espaço, o outro colega lá... o Eric Mineiro tinha alguns equipamentos e viu que a idéia do Barraco Estúdio era realmente

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fortalecer outros grupos, fortalecer aqueles que não têm acesso. E aí a

gente vem trabalhando desde 2007 e agora a gente tá concluindo o

estúdio com uma sala acústica e tudo, a gente tá preparando isso, graça a Deus. E... A música, a gente tá fazendo de maneira que possa trazer

libertação mesmo pra a comunidade... De alguma maneira, trazendo

letras construtivas, pensamentos construtivos. Eu acho que é isso, o Barraco Estúdio, ele surgiu mesmo para fortalecer grupos independentes que não tem condições de pagar por um estúdio.

Hoje o Barraco Estúdio tem um diálogo com a comunidade muito

forte, porque o Barraco Estúdio, ele realiza ações também em benefício

da comunidade. Em quase 30 anos que eu moro no Campo do Banco eu nunca vi acontecer um festival cultural com os grupos de lá, né? E hoje o

Barraco estúdio realiza essas ações uma vez por ano pelo menos. Um mutirão de grafite, o festival, que é o festival pintando em casa, tem a

batalha do saber que é outra produção do Barraco estúdio, e tudo isso é

alto estima pra comunidade, né? Porque num passado recente a

comunidade do Campo do Banco, a comunidade da Várzea era conhecida como uma das comunidades mais violenta do Recife, e a gente vem trabalhando para mudar essa realidade.

ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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BENJAMIM: 4. O Hip Hop tem essa característica, por nascer na periferia, nascer na comunidade, de ser um movimento cultural de rua. A grafitagem, o

próprio rap fala da realidade que ocorre na rua. E tem um rap teu que fala

muito sobre isso, tem o “É chão, né?”, que fala que a rua é minha escola. Eu achei isso muito interessante, aí eu queria te perguntar quais a lições que a rua te ensinou? PIXOTE:

Então... Pra falar sobre isso eu tenho que falar um pouco da minha infância também, né? Vou tentar ser breve. Mas eu fui um menino que eu

tive muita liberdade mesmo pra sair, meus pais não me prendiam muito,

como muitos por aí prende os filhos, né? Eu com 9 anos ia pra praia sozinho mesmo sem autorização dos meus pais, e com isso, por estar muito na rua eu aprendi. As lições da rua... São lições que a gente nunca vai esquecer. Ou a gente aprende a ser um cidadão, um homem ou uma

mulher de bem, ou você não vai chegar aos 18, aos 18 anos, é isso que a rua ensina. A rua ensina ou a você ser um trabalhador ou a você ser um

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criminoso, ou a você ser uma artista, ou a você ser um mendigo. Aí depende do que você vai querer encontrar na rua. Ultimamente eu venho

comparando muito a rua com a internet, porque assim, se você entrar na

internet, você vai ter tudo que você quiser. Se for coisas construtivas ou não. Só que na rua é mais presencial mesmo, né? Você vai ter o acesso

livre a arte e cultura na rua, como vai ter acesso livre as drogas, ao crime

e a armas. E aí você tem que escolher lado A, lado B, né? Eu acho que é esse tipo de ensinamento que a rua me mostrou, né? Eu acho que é isso. BENJAMIM: 5. Uma expressão que eu ouço muito é, “a rua é nóis”. Quando se fala de

cultura de rua isso soa muito forte. Porque é na rua que acontece a vida prática, né? As experiências que a gente tem na rua são muito diferentes daquelas que a gente aprende na escola. Eu queria que tu comentasses um pouco o significado dessa expressão e falasse dessa diferença

daquilo que a gente aprende na rua e aquilo que a gente aprende na escola.

PIXOTE:

Na rua... A gente tem que aprender a viver mesmo. Isso, sinceramente é

uma expressão de uma galera lá do sul, né? De São Paulo. A rua é nóis. Eu achei uma frase muito forte, que traz vários questionamentos para ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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você entender, né? E aí quando eu falo a rua é nóis, é porque eu acredito

quem é gente boa, quem é gente ruim, a gente vai saber quando pisar na

rua, porque aí cada um vai saber o caminho que quer se guiar, né? Por

mais que o pai e mãe da gente tenta educar os filhos, mas a educação dele de verdade, ele vai ter, quando ele tiver a liberdade de tá na rua. Quando a mãe e o pai não têm o domínio, aí a escolha é do jovem, né? De

qualquer um que tá na rua. Na rua têm as almas sebosas como a gente fala, mas também têm os trabalhadores, têm os cidadãos, as pessoas do

bem, e aí você tem o lado de bem e o lado mal pra procurar, você que tem que escolher isso aí. E...

O

que

acontece

na

rua,

eu

acho

que,

também

é

responsabilidade nossa, né? Nossa quando eu falo do geral, da população, do ser humano, do jovem, do adulto, do senhor, da humanidade no geral. Eu acho que o que acontece na rua, o que acontece no mundo é culpa nossa mesmo, né? Tem uma história que eu fico até a

imaginar assim, o homem muitas vezes faz várias passeatas de paz, mas tem um revólver dentro de casa, coisa desse tipo. Tem gente aí que fala tanto da poluição porque vê os jornais falando da poluição, mas não

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consegue passar um dia sem andar de carro. Quando eu digo que a

responsabilidade é toda nossa, isso eu falo do geral, né? Nossa responsabilidade tá na rua, tá em cada pessoa que ocupa esse lugar, né?

O que a gente aprende na escola, têm professores que até consegue passar uma lição de vida, né?

Mas essa é a minha concepção, eu acho muito raro isso. Porque

assim, eu tive a oportunidade de ser o educador e o aluno de uma mesma escola pública. O educador porque eu fui levar minha habilidade pra ser educador dessa escola de grafite e tal, vi que a realidade era diferente,

assim... Eu quando era o aluno, eu achava que todo professor era chato.

O limpeza pra mim era aquele que ainda tentava brincar comigo, conversar... Mas aí o professor pelo menos da escola pública, o aluno já é

recebido a gritos, muitas vezes, né? Isso eu digo pela minha própria

experiência, já aconteceu muito isso comigo, e quando eu me tornei educador, a visão que eu tive dos meninos foi completamente diferente,

eu vi que os professores enxergava eles como qualquer coisa, eu entendi

isso, sabe? Pelo menos naquela escola ali, eu entendi que os meninos,

qualquer coisa tinha gritar. Para eu chegar e fazer um trabalho

educacional, educativo com uma criança, com um jovem, eu tenho que tentar me igualar a ele e eu nunca vi professor nenhum fazer isso.

Só pra dar um exemplo, tinha só um na época que eu era o aluno,

tinha um professor que me olhava no olho com igualdade, me tratava com respeito, eu respeitava muito ele também, gostava dele como ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


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amigo... E eu acho que esse aí sim trouxe uma lição de vida pra mim, que

eu vi que é a melhor maneira de você lhe dar com alunos no geral, né? Mas na escola mesmo, na maioria das vezes o que a gente vem aprender, pra maioria do jovem de periferia não é tão útil assim não. É massa

porque o ensino médio pode te favorecer a entrar numa faculdade, que pode te favorecer a ter um emprego bem melhor do que você imagina,

mas a maioria do jovem é forçado a deixar o estudo pra ter que trabalhar. Isso eu falo do jovem de periferia, né? A maioria do jovem no máximo

chega ao ensino médio, a maioria deles. Isso é o que eu entendi com

minha lição de vida mesmo. Só posso falar dessa mesmo, da minha experiência de vida, que na escola eu aprendi algumas coisas muito interessante que hoje eu uso como lição de vida e também repasso algumas coisas quando trato da arte e educação.

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ENTREVISTA | PAULO MARCOLINO, O PIXOTE MC DA VÁRZEA | BENJAMIM BORGES


ENSAIO FOTOGRテ:ICO:

Visテオes da Nossa Cultura Por Sandra Simone Moraes de Araテコjo


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Visões de nossa Cultura

Sandra Simone Moraes de Araújo

Fotógrafa formada pelo SENAC, graduada em Serviço Social, Mestre e Doutora em Antropologia pela UFPE.

CABOCLOS DE LANÇA 168

Carnaval do Recife|2010.

ENSAIO FOTOGRÁFICO | VISÕES DE NOSSA CULTURA | SANDRA SIMONE MORAES DE ARAÚJO


ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.2 – N.1 | ABRIL - 2012 | P. 168-169

LITERATURA DE CORDEL

Festa da Ciência na UFPE.

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MASCARADOS

Carnaval de Olinda em 2010.

ENSAIO FOTOGRÁFICO | VISÕES DE NOSSA CULTURA | SANDRA SIMONE MORAES DE ARAÚJO


UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE


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