Revista Tangerine #8

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Expediente Conselho Editorial Anna Stolf Bernadete Teixeira Genesco Alves Rita Ribeiro Orientação do Projeto Gráfico Joana Alves Organizadores Rogério de Souza Tatiana Pontes Projeto Gráfico e Diagramação Douglas Mendonça Desenvolvimento da marca Mariana Rena Priscila Lie Sasaki Coordenação do Centro de Estudos em Design da Imagem Genesco Alves José Rocha Andrade Apoio Laboratório de Design Gráfico – Escola de Design/UEMG Realização NUDEF – Núcleo de Design e Fotografia da Escola de Design/UEMG Escola de Design - UEMG R. Gonçalves Dias, 1434 – Lourdes, Belo Horizonte - MG, 30140-092

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Editorial Tangerine #8

O ano de 2020 foi marcado pela pandemia de coronavírus e por todos os aspectos que esse acontecimento nos trouxe: incertezas, muitas mudanças na rotina, o necessário distanciamento social, novos modos de encontro, o trabalho e as aulas remotas, e também, como não podemos esquecer, milhares de mortes em todo o país. Foi nesse contexto de indefinições e medos, e também de novas vivências e muitos aprendizados que a edição #8 da Tangerine foi desenvolvida. Todo o processo de construção da revista foi feito à distância, desde o lançamento da chamada aberta para recebimento dos ensaios fotográficos, até a reunião da comissão de avaliação para a escolha dos trabalhos, o projeto gráfico e a diagramação. Nesse sentido, a revista foi objeto de uma valiosa experiência, a das trocas e diálogos à distância, mas não por isso menos estimulantes, e que, ao final, como se pode ver nas páginas a seguir, resultou em uma edição rica em diversidade no que diz respeito à temática, à visualidade e ao modo como a linguagem fotográfica é explorada. Os ensaios que compõem essa edição foram produzidos a partir de diferentes interesses e posturas em relação à fotografia, e nos apresentam distintos modos de tradução do mundo a partir de olhares e processos variados. Há trabalhos feitos por sobreposições de imagens, por montagens, por processos fotográficos históricos que recuperam métodos usados no século XIX e por tecnologias digitais, e esses diferentes desdobramentos da materialidade fotográfica nos mostram a potencialidade do fazer fotográfico para pensar e dar visibilidade às percepções sobre os acontecimentos do mundo.

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O corpo, a moda, a cidade, o sagrado, as relações humanas, as desigualdades sociais, o tempo, a memória, a própria fotografia e a pandemia que vivemos são os temas pesquisados e elaborados fotograficamente a partir de várias abordagens que se filiam tanto à tradição documental da fotografia, que registra e opina sobre a realidade, como àquela que se constitui como invenção de novas realidades. Na seção de entrevista trazemos o instigante trabalho da artista Sylvia Sanchez e pra finalizar a edição, um texto do Professor Rogério de Souza. Seguir atuando como professores, estudantes, pesquisadores, artistas e fotógrafas/os nesse momento também é prioritário. Dar prosseguimento aos nossos projetos de pesquisa e extensão, buscando novas formas de construção de conhecimento é resistir não só à pandemia viral, como também a toda tentativa de deslegitimar a arte, a cultura e a ciência. Estimular a produção fotográfica autoral que seja resultado e propositora de reflexões e difundir trabalhos relevantes de estudantes, professores e de autores da comunidade externa à Escola de Design são os objetivos principais da Tangerine. Esperamos que essa edição da revista seja inspiradora e dispare ideias e conversas. Tatiana Pontes

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SUMÁRIO Prata da Casa | Alexandre Mota e André Luppi

dê_forma | Bruno Soares_Diego López_Enrico Marchi_Guilherme Cestaro_Mateus Conde

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Visão do explendor | Daniel Loureiro

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Percepção | Diogo Oliveira

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O Green World | Carouu Dupin

Cicatriz | Douglas Mendonça e Fernanda Xavier Virulência | Flávio CRO e Si Yang Man

Yes! Nós temos Futebol Americano em Minas Gerais, uai! | José Rocha Andrade

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Devaneios | Julia Campos

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Os Invisíveis | Mário Geraldo

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Reorganizar-se | Luis Paulo Ferreira

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Rosa de todas as cores | Paula Quinaud

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Lapsum | Rafael Sousa

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Primeira Luz. | Pedro Prates

Paseo al rosedal | Renato Duarte

Entrevista | Sylvia Sanchez

O que se vê pela janela? | Rogério de Souza

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Os textos que acompanham os ensaios fotográficos são de autoria dos fotógrafos/as e não necessariamente expressam a opinião da Revista Tangerine ou de seus organizadores.

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Prata da Casa

Alexandre Mota e André Luppi Placa Úmida em Colódio é um processo fotográfico pioneiro desenvolvido pelo inglês Frederick Scott Archer no ano de 1851. A técnica, então inovadora, produziu profundas alterações no cenário das artes plásticas da época, pois ao permitir a reprodução fiel de imagens dos mais variados objetos – pessoas, paisagens, animais – fez com que a fotografia assumisse a função de “representação da realidade”, eximindo o artista deste papel e liberando o universo pictórico para outros movimentos. Ao longo dos anos esse processo foi substituído por outros mais modernos, ficando abandonado e esquecido. Nos últimos tempos, porém, o método criado por Archer tem sido resgatado como técnica fotográfica e linguagem visual em todo o planeta: um descanso do mundo ultrarrápido de produção de imagens efêmeras em uma esfera virtual. Nesta série, utilizou-se a técnica secular, usualmente marcada por uma luz homogênea típica dos anos 1850, para produzir imagens contemporâneas, com o emprego de uma luz moderna, contrastada, que explora sombras e texturas de uma forma impossível naquela ocasião. A singular combinação de um processo fotográfico do século XIX com temas e instrumentos do século XXI resultou na produção de imagens únicas de estética contemporânea, registradas e eternizadas em placas de vidro. Atuando há quase 30 anos nas mais diversas áreas do mercado fotográfico, os autores decidiram se dedicar ao estudo desse processo centenário, e hoje são dos poucos profissionais a dominá-lo no Brasil. Reproduzindo com rigor os mesmos métodos e fórmulas químicas do século XIX, inclusive através da manipulação de cada um dos produtos utilizados no processo, os artistas foram em busca da estética própria da técnica, sem, contudo, desconsiderar a percepção e as abordagens contemporâneas da construção da imagem, com todos os desafios que isso implica.

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dê.forma

Bruno Soares_Diego López_Enrico Marchi Guilherme Cestaro_Mateus Conde A série fotográfica “dê.forma” envolveu o desfigurado, o excêntrico, o estranho. A partir do nosso corpo e intervenções de uns nos outros, criamos o que incomoda, é grotesco e transforma nosso olhar. A série foi inspirada pelo trabalho do fotógrafo Wes Naman, principalmente por suas séries “Rubber Band” e “Invisible Tape”, nas quais as intervenções nos rostos das pessoas nos causam, em um primeiro momento, aflição e repulsa pela manipulação forte das formas humanas com os objetos propostos. A iluminação, a coloração e o enquadramento aumentam o sentimento angustiante do observador. Esse projeto foi desenvolvido para a disciplina de Expressão Gráfica do curso de Design Gráfico e exposto nas paredes da escada da Escola de Design.

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Visão do esplendor Daniel Loureiro

“[...] mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri, um dia abri os olhos [...]”. Clarice Lispector, “Brasília”. A série “Visão do esplendor” nasceu a partir da leitura do texto “Brasília” de Clarice Lispector no livro homônimo de 1975. Sempre tive uma relação distante de qualquer religiosidade, em certa medida me negando a qualquer espiritualidade. De alguns anos pra cá, sinto que estou finalmente me abrindo para uma espécie de sagrado das coisas, não o sagrado que rege as estruturas de cimento e arame (e por mais que grande parte das fotos aqui apresentem essas materialidades), mas aquele que de certa forma invade meu quarto por uma fresta e que cria a paleta amarelo-pêssego, se é que isso existe... É uma espécie de espiritualidade que não me pede muito, que eu não peço muito também. Tal sagrado é apresentado aqui nessas fotos, em seu silêncio e ternura.

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O Green World Carouu Dupin

As peças que desenvolvi para o meu TCC, em 2013, tiveram um revival nesse ensaio clicado em Abril deste ano. O conceito das fotos foi o uso das cores complementares e uma DR, via telefone, entre o homem e a Terra, dando fim ao relacionamento. Algumas fotos têm trechos da música “Every Planet We Reach Is Dead”, dos Gorillaz, que se conecta com a temática do ensaio por trazer uma conversa entre um homem e sua mulher e sobre como a relação entre os dois está problemática. Aqui, a Terra é representada por um casaco criado a partir de linhas sobrepostas e cola, tecido desenvolvido em uma das disciplinas na faculdade. As costas do casaco têm a palavra ART em 3D. Pelo menos uma das peças de cada look foi feita à mão por mim: estampado manualmente ou criado, com é o caso do tecido de linhas que é visto em todos os personagens e também nos acessórios (brinco, perneira). A máscara usada pelos dois personagens humanos foi feita em máquina de tricô manual como parte da pesquisa de texturas e cores do meu mestrado em Design de Malharia e Tricô, em Bruxelas na Bélgica, em 2018.

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Percepção Diego Oliveira

Muito da minha produção como fotógrafo gira em torno do meu trabalho como entregador, não que o meu trabalho em si seja o tema. A série “Percepção” teve início em 2019, porque eu queria explorar mais as possibilidades de fotografar com o celular, aproveitando o meu horário de trabalho. Comecei a notar um padrão nas saídas dos consultórios dos dentistas, que em sua maioria são corredores mal iluminados. A primeira foto que fiz foi de uma lixeira hospitalar bem comum nas portas dos consultórios, logo depois veio uma vontade de fotografar pessoas. No decorrer do dia, logo após ter feito uma entrega eu observava se a luz estava de um jeito interessante para a foto e ficava um ou dois minutos esperando alguém aparecer. Às vezes, não passava ninguém, ainda tem alguns corredores onde eu não consegui nenhuma foto, por falta de pessoas ou iluminação. Um amigo me perguntou porque eu ficava repetindo a mesma foto, a resposta fácil seria que provavelmente eu tenho um pouco de TOC, porém eu estava fotografando pessoas diferentes em locais diferentes, em possíveis casos de solidão, algo que não é difícil de imaginar nas grandes cidades. Com o início da pandemia o projeto ficou parado por 10 dias, o tempo em que eu fiquei em casa sem trabalhar, quando voltei a fazer entregas já estávamos cansados de ouvir sobre o isolamento social, mais o que eu via eram calçadas cheias de pessoas com suas máscaras coloridas, algo tinha mudado mesmo parecendo tudo igual, era palpável certa tensão no ar. O nome da série vem do ato de tentar perceber a solidão das pessoas enquanto elas andam pela cidade. Ironicamente eu não tinha percebido antes de revisitar as imagens para finalizar o trabalho, como o ato de fotografar dentro de corredores escuros também e algo solitário.

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Cicatriz

Douglas Mendonça e Fernanda Xavier Toda vez que vejo minhas cicatrizes, não me lembro da dor mas sim como elas me deixaram mais forte depois que elas se fundiram tanto no meu corpo, no meu coração, na minha mente. As cicatrizes podem ser visíveis ou invisíveis. Elas podem ter queloides que são: Cicatrizes da cicatriz. – É possível uma cicatriz que tenha cicatrizes? Acho que é muita auto-afirmação de que como podemos ser fortes ao cubo As cicatrizes podem ser subjetivas. Para pra pensar! Depois de todo incômodo que ela gera – assim como uma ostra – você passou de fase! Você, querendo ou não, fica mais forte! Parece que um novo campo ótico se abre: Você enxerga melhor; Compreende melhor; Se permite melhor; Se perdoa melhor; Olha para as pessoas de um jeito melhor... É incrível como a Dor Te torna mais Doce A paciência fica aprimorada A pressa passa a caminhar devagar Os medos, ahhh os medos... Que antes te imobilizava Te arranca sorrisos... Você ri do seus medos O não, que era difícil, era pesado... Agora sai de forma tranquila Porque agora sabes, que o não, aprimora a ti e o outro Você já observou sua cicatriz hoje? Seja ela qual for... Arranje um minuto e preste atenção na cicatriz ou nas cicatrizes Por mais que você queria assumir, admita! Existe um você antes E existe um você muito melhor depois delas. ensaio colaborativo realizado no inverno de 2019 fotografia e direção: Douglas Mendonça modelo e texto: Fernanda Xavier

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Virulência

Flávio CRO e Si Ying Man Virulência é uma fotoperformance realizada em 2020 pelos artistas Flávio CRO e Si Ying Man. A proposta foi editada em um app de celular e recria a fotografia da Look Magazine: "It’s a Flu Season!" de 1937, tirada durante a epidemia daquele ano, na qual os atores Betty Furness e Staley Morton precisaram usar máscaras nas cenas de beijo em Holllywood. Atualmente, a expansão do acesso à internet, via celulares, junto ao uso das redes sociais e dos aplicativos de edição de imagem, vêm expandindo a produção, troca e conexão das pessoas. Portanto, neste momento de isolamento, essas ferramentas se tornaram essenciais para manutenção do contato humano. A construção da proposta pode, ainda, ser aproximada a fala do escritor brasileiro Afonso Romano de Sant’Anna, que no seu livro Paródia, paráfrase & CIA (2003), nos diz que “a arte sempre se valeu de suas próprias construções”. Isso faz perceber na recriação um potente motor para os artistas, pois notamos pela fotografia que o amor encontra um meio.

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Yes! Nós temos Futebol Americano em Minas Gerais, uai! José Rocha Andrade

É com uma reação de surpresa que uma grande maioria das pessoas reage quando digo que gosto de fotografar jogos de futebol americano. Principalmente por ser uma paixão que vivencio aqui em terras mineiras. Sem entrar nos meandros que permeiam a história da implantação do esporte em Minas Gerais ou até mesmo no Brasil, em 2020 completam 5 anos que me dedico a registrar essa prática esportiva. Paixão que vem desde o cartucho adquirido para o esquecido console de videogame Master System, onde foi jogando sem saber nada das regras que fui aprendendo e me envolvendo com esse esporte. Quando um primo das minhas filhotas começou a jogar em um time mineiro e comecei a vivenciar o seu entusiasmo pela prática desse esporte, ressuscitou em mim as muitas horas vividas na frente da tela da TV jogando futebol americano no videogame da minha infância.

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Pelo avançar da idade, preferi escolher a câmera fotográfica como a forma de me envolver novamente com o esporte. E já se vão 5 anos que me identifico e consigo a credencial de imprensa para as partidas como fotógrafo que monta um acervo para ajudar a promover e popularizar o futebol americano no Brasil. Registro partidas de torneios estaduais e nacionais quando realizadas em estádios mineiros. Por ser um designer de formação e atuação, a montagem desse acervo passa pela perspectiva do design na construção das imagens para revelar, em seus aspectos particulares, o que torna esse esporte tão apaixonante.

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Devaneios Julia Campos

Trancados em nossas casas

Aprisionados em nossos pensamentos

Vivemos dias de reflexão sem previsão Incertezas e certezas

O tempo passa devagar

Ao mesmo tempo passa rapidamente

Algumas coisas não fazem mais sentido Outras começam a fazer sentido A monotonia se transfunde

Perambulamos por locais triviais Delírios se alastram pelo corpo

A mente devaneia enquanto espera

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Reorganizar-se Luis Paulo Ferreira

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Os INVISÍVEIS

Mário Geraldo da Fonseca Restos. Assim poderia se chamar este ensaio, que tenta mostrar um dos paradoxos da visibilidade que se fez ver por causa de um efeito perverso da pandemia de covid-19 em Belo Horizonte. Mas, optamos por chamar invisíveis para fazer jus ao nome que lhes foi atribuído e que constata, ainda mais, a situação de quem, por ser invisível, só se faz ver no momento em que esta própria invisibilidade ganha condição para ser vista. Isso, para não parecer um trocadilho confuso, é preciso se explicar por uma espécie de cenário. Imagine a Praça da Estação, no coração pulsante de BH, por onde passam diariamente milhares de pessoas de todos os cantos da cidade, no momento em que a população da cidade mais aderiu ao distanciamento social, em abril e maio 2020. Você poderia supor que o local estaria completamente vazio. Nada disso. Neste período, e pelo tempo que durou a quarentena em BH, esteve sempre lotado. O motivo é simples: na verdade, as pessoas que ali foram vistas, inclusive aglomeradas, de lá nunca haviam saído. Quando todo mundo ficou em casa para se proteger do contágio do coronavírus, estas pessoas, como não tinham casa, ou melhor, como a casa que tinham era lá mesmo na praça e nos seus arredores, simplesmente puderam ser vistas assim como, de fato, são: moradores de praça, ou de rua. Não foi, porém, pensando neles que surgiu a proposta governamental de oferecer auxílio econômico exatamente para ajudar aqueles que, por causa da pandemia, haviam ficado desprotegidos em vários aspectos. Eles, no entanto, tinham direito ao auxílio exatamente porque encarnavam o perfil perfeito de quem ficara, de fato, totalmente desprotegido. Tão desprotegidos que nem sequer tinham condição de provar que realmente estavam nesta condição. Embora tendo direito ao auxílio, como não constavam em qualquer cadastro oficial e nem mesmo possuíam qualquer documento básico tipo Carteira de Identidade, CPF e muito menos Certidão de Nascimento, não tinham como provar que teriam este direito.

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Se poderia pensar que a invisibilidade deles se devesse ao fato de serem uma população de baixa densidade. Nada disso. Ficou comprovado que eles, até junho deste ano, constavam em quase 50 milhões de brasileiros. Um contingente diverso de pessoas que não tinham como comprovar até mesmo a própria existência porque, se os outros desprotegidos por causa da pandemia, haviam perdido a renda, ele não haviam perdido nada, porque nada possuíam, nem renda, nem família, nem casa. Por isso, lá estavam eles no lugar de sempre, só que agora, podendo ser vistos. Se nossa câmera apontasse para os seus rostos poderíamos criar uma espécie de clichê, já que tais rostos nos são velhos conhecidos. Os moradores de rua estão nos mesmos locais por nós frequentados diariamente. Mas, e quando estes locais de passagem para muitos se torna um ponto para fixar moradia e criar alguma condição, por mais precária que seja, para se proteger de um vírus fatal? De fato, pela Praça da Estação se podia ver várias “casas” improvisadas com lonas, papelão, madeira, até algumas barracas, tipo acampamento com fogão, cama, lençóis, muitos lençóis, vários ficavam espalhados por todos os cantos, de dia e de noite. Foi quando tivemos a ideia de fotografar estes lençóis e outros restos. Só a última foto da série é que dá uma indicação mais explícita de que o ensaio gira em torno de um personagem humano, os moradores da Praça da Estação; foto, porém, que não deixa dúvida de que o seu verdadeiro tema trata de restos que uma sociedade de bens e consumo vai deixando nos lugares de maior convivência social e que, no entanto, ninguém os vê.

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Rosa de todas as cores Paula Quinaud

Em julho de 2016, parte de uma pesquisa acadêmica foi feita durante uma visita à Ocupação Rosa Leão, situada na região da Isidora, setor norte da capital mineira. Um movimento que envolve grupos tradicionais ligados a um quilombo remanescente na área e ocupações urbanas de moradia. Alvo de disputa recorrente pela apropriação do território, a comunidade se estrutura e desenvolve a cada dia. Ao lançar um olhar sobre as diversas formas de produção do espaço local, o que se tem é esperança revestida em tijolo, madeira ou lona. Mesmo com dificuldade e precariedade, a semente do pertencimento se expressa na delicadeza de flores de papel ou nas cores dos tecidos nas fachadas. Um cenário de muita luta e sonhos rosas, azuis e de todas as cores. Perseverança cravada no lema: “com garra, com fé, a casa fica em pé!”

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hoje é preciso a cor. o gracejo, um carinho, só um pouco de ar. sacar um poema tão bravo que vire semente, e brote nos muros e tome a cidade. já é urgente o reparo, a bravura, a mistura. o canto do galo, do mato ou do beco. saber entender entre linhas, e gritar só com os olhos, pintar os cabelos. depois se espalhar pela rua, e valsar pela praça até que faltem pés. mostrar cada pedra de chão, cada pano de mão, que a maldade marcou quando a noite caiu. tomar as escritas por armas, e trançar entre os dedos se a voz não sair. contar com o retorno da lua, cuidar do amigo. esconder bem as asas... que ainda se pode voar.

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Primeira Luz Pedro Prates

Primeira Luz é um recorte sobre a incidência dos primeiros raios de luz sobre o centro da capital mineira, refletindo sobre como a verticalização do grande centro de BH altera a forma como a luz chega e interage com a paisagem, as pessoas, os lugares e as cenas. A subjetividade na captura dessa primeira luz permite que possamos, além de entender como essa verticalização altera a entrada de luz, observar a interação das pessoas com espaço/luz. O andar vago e sem rota definida, como o do flaneur de Baudelaire, e as imagens de fotógrafos de rua como Harry Gruyaert, Gueorgui Pinkhassoy, entre outros, fazem com o que o processo vá além do de um mero observador e registrador imagético, e seja também uma participação na vivência do cotidiano dos transeuntes durante os anos de captação das imagens.

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Lapsum

Rafael Sousa Imagine que você pudesse acessar memórias, momentos antigos da sua vida sempre que quisesse, olhar de volta no passado! Essa é a proposta do álbum Lapsum, fragmentos de memória de momentos simples do cotidiano pela visão de uma lente especial, assim como é necessário um telescópio ou lupa para ver coisas de longe ou de perto. Lapsum é necessário para ver o passado. Tecnicamente falando, o álbum foi desenvolvido quando resolvi colocar um copo de plástico (desses de festa de formatura) na frente da lente de minha câmera semiprofissional afim de deixá-la com cara de DSLR, e o resultado da distorção das cores e imagens no reflexo do copo me surpreendeu! Então saí pela casa procurando outros tipos de copo, testei diversos e os que tiveram melhor resultado foram os de cor preta, por refletirem melhor o que estava sendo fotografado. Saí pelas ruas tirando foto de pessoas e objetos a fim de encontrar resultados satisfatórios. O que descobri é que é necessária muita luz para ter um resultado interessante, e que em filmagens o resultado pode ser ainda mais incrível. Assim como um cano de um canhão pode ser de alma raiada ou lisa, as lentes de Lapsum também são assim (às vezes até penso que é como se estivéssemos tendo a visão da bala antes de ser disparada). Assim são dois conjuntos de lente, um em espiral, chamada de vortex, e outra completamente lisa, chamada de buraco negro, seu nome foi dado pois o efeito de distorção é semelhante ao que ocorre quando a luz é sugada pela gravidade desse objeto. Lapsum foi criado ao acaso por experimentação, assim nascem as minhas ideias favoritas! Futuramente pretendo criar um conjunto verdadeiro de lentes que reproduzam e aprimorem este efeito!

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Paseo al rosedal Renato Duarte

O ensaio foi feito no verão de 2019 em visita ao Rosedal de Palermo, em Buenos Aires, Argentina. O trabalho foi produzido com uma câmera analógica, a "Holga 120n" com filme de médio formato, comprada pelo artista na própria cidade argentina, no MALBA. Dentre as fotos é possível ver retratos, paisagens, plantas, pessoas e aves que estavam presentes no dia. Em termos formais, pode-se perceber o interesse pela sobreposição de imagens feito no momento da exposição. A revelação das fotos foi feita em Belo Horizonte pelo Coletivo Mofo, porém o recorte final do filme para a seleção de imagens é do próprio artista. A combinação (ou não) de cenas ajuda a contar estórias e entrelaça elementos, naturais, urbanos e sociais, para mostrar a visão do artista sobre os temas.

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ENTREVISTA SYLVIA SANCHEZ Sylvia Sanchez trabalha entre a fotografia encenada, a performatividade para a câmera e o audiovisual. Investiga os pequenos desvios da dita normalidade que povoam o quotidiano: o disfuncional, o incontrolável, o mágico, o ilusório, o improvável, o estranho e o que eles podem carregar de poético, divertido ou trágico. Vive e trabalha em São Paulo. É também educadora, diretora de fotografia e filmmaker pela Cardamomo Filmes, da qual é sócia-fundadora. Em 2019, realizou sua primeira exposição individual com a série Crônica de Banalidades Ordinárias, no MIS-SP. Como você começou a fotografar? Minha primeira relação com a fotografia foi durante o curso de Publicidade, na ECA/USP, em 1998. Foi ali que percebi na fotografia uma possibilidade de me relacionar de um modo diferente com o mundo e me conectar mais com ele. Logo em seguida, me aproximei da fotografia de espetáculos: eu sempre tive um fascínio grande pelas artes cênicas e alguns amigos acabaram enveredando por esse caminho – desse modo, as portas da fotografia de espetáculo se abriram pra mim, como forma de me aproximar dos palcos e da encenação. Passei quase 10 anos fotografando espetáculos teatrais e de dança, fazendo capas de CDs e DVDs de música e criando retratos de artistas. A partir de 2013, comecei a me aproximar também do audiovisual e do cinema. Hoje em dia, comercialmente, minha atuação é maior como videomaker e diretora de fotografia do que como fotógrafa still propriamente dita. Em 2010 comecei a dar aulas (de fotografia) na Panamericana Escola de Arte e Design. Paralelamente, fui descobrindo o universo da fotografia autoral e suas possibilidades expressivas.

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Até 2015, orientar os projetos autorais de meus alunos foi suficiente para nutrir minha criatividade. Porém, num dado momento eu simplesmente não conseguia mais deixar minha própria expressão silenciada e, em 2016, comecei a me dedicar à criação de meus próprios projetos autorais. De lá pra cá, minha relação com a fotografia é cada vez mais permeada pela arte e, em sintonia com a tendência contemporânea da arte, vem incorporando outros meios, como a performance e o audiovisual. Quais são suas referências na fotografia, no cinema e na literatura? Na fotografia: Erwin Wurm, Erwin Olaf, Cristina de Middel, Joan Fontcuberta, Broomberg & Chanarin, coletivo Garapa, Larry Sultan, Penna Prearo, Jonathas de Andrade. No cinema: David Lynch, Wes Anderson, Pedro Almodóvar, Wong Kar-wai, Eduardo Coutinho. Na literatura: Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, José Saramago, Mia Couto, Ítalo Calvino. Outras referências fundamentais pra mim: Bill Viola, Yoko Ono, Ivan Grilo, William Forsythe, Ana Teixeira, Theo Mercier. O que você fotografa? Eu trabalho principalmente com fotografia construída, encenada Eventualmente me coloco no quadro, mas não classifico minha produção como auto-retrato, porque quando apareço em minhas próprias imagens, não é para falar sobre mim e sim colocando meu corpo (e sua imagem) a serviço de uma ideia. Interessam-me os pequenos desvios e as incongruências da dita “normalidade”: o incontrolável, o disfuncional, o mágico, o ilusório, o improvável, o estranho. Eu olho para o cotidiano banal, que, para mim, é onde vazam os gestos e escolhas que explicitam nossas formas de ver o mundo. Penso que olhar para o banal e buscar pelos sentidos que ele pode carregar é uma forma de posicionamento micropolítico pela libertação. Nesse sentido, em minhas obras, procuro questionar o utilitarismo e a produtividade, subvertendo um pouco os gestos e os usos dos objetos, dos espaços e do tempo.

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Crônica de Banalidades Ordinárias






Como se dá o processo de criação dos seus trabalhos fotográficos? Como o que me interessa é a construção de cenas, meus trabalhos fotográficos são todos muito planejados. Como o que me interessa é o banal, os “temas” específicos de cada projeto nascem da minha vida e de minhas observações sobre o que me circunda: o que pode abranger desde hábitos e relações familiares até a relação com a tecnologia ou com o meio ambiente (pelo viés da sustentabilidade). A partir do momento em que tenho um interesse em vista, começo a visualizar imagens, pensando que tipo de visualidade e de experiência para o expectador me interessa provocar. Começo então a rascunhar algumas ideias (ainda que eu desenhe muito mal) e já sigo para os primeiros testes fotográficos. É só a partir desses primeiros testes que começo a entender de fato o projeto – e, então, começo um movimento circular entre produzir, repensar, listar palavras e conceitos que me interessam, pesquisar referências, produzir novamente e assim por diante. Desse modo, o trabalho vai encontrando sua própria lógica num movimento casado de fazer e analisar.

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Equilíbrio Instável





O que se vê pela janela? Rogério de Souza

Agora, por tempo indeterminado, não há mais “olho no olho”. A ordem da vez: ficar em casa, trabalhar online, conversar por vídeo e talvez resgatar uma antiga invenção que transmite voz e que quase ninguém lembrava o nome. Além disso, é tempo de reinventar os usos de nosso conhecido aparelho de produzir significados em forma de imagem: nossa velha câmera fotográfica, fotografando o que se vê e o que se sente. Para muitos, abrir as janelas serviu de pretexto para se atentar ao mundo exterior e aos eventos cotidianos. Tudo que sempre esteve lá, mas que agora ganhou ares de novidade. Nunca havia me atentado a isso! Pensariam alguns. Para outros, as janelas se abriram para o interior. Olhar para o local de habitação em que passariam a maior parte do tempo levou ao aguçar dos sentidos, transformando angústia em informação visual. Se dermos um passo adiante nessa caminhada, o abrir das janelas levou ao acesso restrito da percepção subjetiva. Afinal, todas as coisas que formam essa teia visual, foram postos ali por nós. Se aciono a sintonia fina ao perceber os objetos à volta, vejo a mim mesmo representado neles. Mais do que isso, agora percebo o tempo. Quase posso tocá-lo, ora passando devagar, ora acelerado, dia após dia. Perceber o tempo passando é perceber a existência de tudo e de todos. Quanto tempo ainda tenho? Pergunta que se tornou comum, numa realidade incerta. Todos os dias, os números gritam para que nunca nos esqueçamos.

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Memórias do que fomos há bem pouco, convivem com lembranças de outros tempos. Penso que a fotografia tenha voltado a ter aquela importância primária que assombrou nossos antepassados: aprisiona o tempo em um retângulo digital ou analógico, em mínimos detalhes tal como aconteceu um dia. Todas as coisas que fotografamos hoje, o que se passa pela janela ou o que se vê pela janela interior será, em segundos, parte de um estranho passado. Quando novamente sairmos às ruas sem restrições, algo terá mudado. Nossa jornada de heróis chegará ao fim e seremos forçosamente chamados a iniciar a próxima. No entanto, olharemos para fotos que fizemos das coisas, lugares e pessoas com um certo saudosismo, na certeza de que um dia “isso foi”. Nos vemos em breve?

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Esta publicação foi composta com a família tipográfica Helvetica. NUDEF – Núcleo de Design e Fotografia da Escola de Design/UEMG. 2020.

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