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Médicos e a Sociedade: Turbulência à Vista!
Cada vez mais observamos situações de conflito em cenários de cuidado à saúde. Demora no atendimento, falta de empatia do profissional que atende, insatisfação com o tratamento e até suspeitas de erro médico são alguns dos motivos. Desentendimentos entre médicos e pacientes não são novidade, mas com o advento das redes sociais, notícias sobre esses embates podem atingir grandes públicos e ter repercussões gigantescas. Muitas vezes, soma-se um sensacionalismo aos fatos, buscando autopromoção de alguma das partes e aumento da audiência.
O caso mais triste, ocorrido recentemente e que exemplifica bem um mal entendimento entre médicos e sociedade, foi o de um cirurgião pediátrico do Piauí, de 50 anos, que tirou a própria vida após ter sido indiciado por homicídio culposo de uma criança de 6 anos. O experiente médico teve uma complicação grave indesejada após realizar uma punção venosa profunda na criança, que acabou resultando em óbito. Polícia e imprensa o acusaram duramente, condenando-o publicamente antes mesmo de um julgamento adequado. O médico não suportou a pressão. Procedimentos como esse podem, ainda que raramente, apresentar complicações fatais. O desfecho não pode ser considerado erro médico, mas foi assim interpretado pela opinião do público leigo.
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Há muitos motivos para a tensão existente entre médicos e usuários de serviços de saúde. Toda situação de doença já é, por si só, geradora de stress, medo e insegurança e leva à exigência de uma rápida solução. Por outro lado, nos cenários de atendimento, é preciso lidar com a falta de infraestrutura e de investimento adequado, a desigualdade de acesso aos serviços médicos, o mal entendimento do sistema e má comunicação entre as partes envolvidas. Há muitos intermediários no contato médico-paciente, como seguradoras de saúde e centrais de regulação, que podem atrasar e dificultar o atendimento da pessoa doente. A visão mercantilista da saúde gera honorários médicos cada vez mais baixos, o que resulta em consultas cada vez mais breves. Há menos tempo para a criação de uma relação adequada entre o paciente e o médico e para um correto processo de diagnóstico e tratamento. A crença de que exames diagnósticos são mais importantes que o raciocínio clínico faz com que esses sejam priorizados, em detrimento da consulta médica.
Em meio a essas distorções, é fundamental lembrarmos da importância de humanizar a relação médico-paciente.
Isso é uma via de mão dupla. Assim como é esperado que o médico demonstre empatia e respeito pelo problema de quem lhe pede ajuda, é igualmente importante que aquele que recebe o cuidado confie que está diante de um profissional ético e íntegro, cujo propósito primordial é ajudar. Mas é preciso lembrar que esse ser humano, apesar de investido de um papel de curador, sofre de inseguranças, incertezas, medos e imperfeições. É um ser humano cuidando de outro ser humano. A atividade médica não garante resultados. Há, sim, o compromisso de se fazer o melhor possível em busca do bem-estar do paciente. É certo que essa atividade vem sofrendo, aos poucos, de uma grande perda de credibilidade, agravada por omissões, posicionamentos inadequados e corporativismo dos órgãos regulatórios.
No dias 14 e 15 de agosto, como ocorre a cada 5 anos, serão realizadas eleições para os Conselhos Regionais de Medicina em todos os estados do país. Os médicos escolherão conselheiros que representarão a classe perante a sociedade. As funções do Conselho vão desde a fiscalização da prática da Medicina, reprimindo más condutas e o charlatanismo, até a mediação do debate com outras entidades em questões relacionadas à atividade médica. Devem também promover ações educativas, atuar na divulgação de informações confiáveis e no combate às fake news na área da saúde. Nesse momento, terão a responsabilidade de trabalhar seriamente para reconstruir as boas relações entre médicos e pacientes, bem como a credibilidade da prática médica na sociedade. É do interesse de todos que esses órgãos sejam imparciais e apartidários, comprometidos apenas com a ética, a ciência e o humanismo. Vamos ficar atentos a isso.
Em última análise, a relação entre médicos e a sociedade é fundamental para a construção de um sistema de saúde eficaz. Ambas as partes devem buscar a compreensão mútua, o respeito e o diálogo aberto para superar as tensões e desafios existentes. A valorização da Medicina como uma profissão de cuidado e a busca por uma relação mais harmoniosa e confiante entre médicos e pacientes são pilares essenciais para uma saúde melhor para todos.
*Luciana Campos é mestre em Ciências Médicas pela USP, gastroenterologista atuante no setor público e privado e pesquisadora clínica no L2iP Instituto de Pesquisas Clínicas. INSTAGRAM: @lucianatcampos
