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Nos deixem viver
Ser repórter de Cidades é uma das experiências mais enriquecedoras para a carreira de um jornalista. A variedade de pautas que a editoria engloba nos dá acesso livre a diferentes espaços de poder onde decisões importantes para a sociedade são tomadas: parlamento, delegacias, tribunais, embaixadas, sedes de governos, secretarias, ministérios, fóruns, etc. Algo que sempre me chama atenção é a pouca quantidade de mulheres ocupando espaços de liderança nestes lugares. O coração aquece e a feminista em mim sente que vive em um mundo minimamente justo cada vez que vejo uma mulher delegada, juíza, senadora, conselheira, deputada, ministra... Eu também sinto que vivo em um mundo menos desigual sempre que vejo mulheres exercendo funções tipicamente masculinas: pedreiras, garis, motoristas de ônibus, vigilantes, etc.
No entanto, ainda é pouco, ainda há um longo caminho a se percorrer até que possamos dizer que há equidade de gênero nos espaços de liderança no Brasil.
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Ser repórter de Cidades também é ser um dos primeiros a saber quando algum crime brutal acontece na cidade. Tem que ter estômago. Estupros, agressões, assassinatos, pedofilia, homicídios a sangue frio... A gente vê de perto o sofrimento de famílias, a luta da polícia na busca por respostas, a saga por justiça, a angústia quando os criminosos estão foragidos. Muitas vezes, passa pela nossa cabeça a dúvida: “Será que assino a matéria? E se o criminoso vem atrás de mim?” Mas ao mesmo tempo, temos um papel importante na sociedade ao reportar crimes e estatísticas que mostram o que acontece onde as pessoas moram.
Nada me revolta mais do que saber que uma mulher morreu apenas por ser mulher. Isso tem se tornado tão recorrente que ganhou até uma nomenclatura: feminicídio, um homicídio qualificado que compõe o rol de crimes hediondos no código Penal. Um crime cometido em razão de gênero, o trágico ápice da violência doméstica. Só em 2023, já foram 20 casos no Distrito Federal, mais do que a quantidade registrada em todo o ano de 2022. Teve uma semana em que foram registrados quatro casos, dois em menos de 48 horas. A gente estava começando a entrar em um ciclo onde a ocorrência de feminicídios estava se tornando corriqueira. Eu me recuso a normalizar essa rotina. É preciso se indignar, se revoltar, fazer um escândalo, meter a colher e fazer o que for possível para impedir que mulheres sejam agredidas, porque, infelizmente, elas não estão sendo “só” agredidas, elas estão sendo massacradas. E o feminicídio não acontece da noite para o dia, o ciclo da violência começa com pequenas agressões verbais, psicológicas, físicas. É um crescimento gradual que está ligado à dependência financeira e emocional que algumas mulheres têm dos companheiros, que muitas vezes se tornam algozes. A maioria dos feminicídios acontece em casa, às vezes na presença dos filhos. São tantos os órfãos do feminicídio que políticas públicas já estão sendo desenvolvidas diretamente para estas crianças. Mas, infelizmente, ainda há muitas perguntas sem resposta: o que é preciso fazer para frear essa onda de feminicídios? Punições mais severas? Mais rigor no monitoramento de ordem de restrição? Acolhimento mais efetivo das vítimas para que elas se libertem de seus algozes? É uma questão de segurança pública, mas a sociedade civil também tem que agir para impedir qualquer mínimo ato de violência sofrido por uma mulher, pois isso pode ser trágico no futuro.

As mulheres precisam ter sua autonomia conquistada e preservada. As mulheres precisam ser livres. Livres para dizer não, livres para ir embora, livres para usar um batom vermelho, livres para usar a roupa que quiser sem ser julgada e humilhada. Livres para viver e ocupar espaços de poder.
Não podemos normalizar essa opressão às mulheres, pois o ciclo gerado pela normalização de pequenos atos de violência contra a mulher tem culminado em um verdadeiro massacre.
*Mila Ferreira é repórter do Correio Braziliense. Formada em Jornalismo pelo IESB e pós-graduada em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC-RS