dia 22 Março

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22 de Março 2011 Caro colega, No âmbito das comemorações da Semana da Leitura 2011, a Equipa da Biblioteca vem solicitar-lhe que, caso não prejudique as actividades que tem programadas, leia aos alunos o texto que se segue. Após a leitura, agradecemos que assine o documento para evitar duplicações. Grata, A equipa da Biblioteca M


ANO: _________ TURMA: _____________ PROFESSOR-LEITOR: __________________

Santideus,santitates, Tira-e-viras, sarapitates… Luísa Dacosta

Era uma vez um lavrador, que tinha de seu, mas que gostava de viver do suor alheio, arranjando sempre maneira de não pagar aos criados. Todos os que lhe batiam à porta se deixavam tentar pela jorna prometida e pela trincadeira, que era bundante, nunca estreme e sem apresigo. E todos regressavam de orelha murcha e mãos a abanar, depois de terem suado nas sementeiras e nas colheitas. Ora uma noite, pelos fins do invemo, quando os animais já estavam recolhidos na corte e as galinhas dormiam nos poleiros, bateram-lhe à porta. Era um desconhecido, de fora da terra, a quem o lavrador perguntou ao que vinha. — Venho-me oferecer para servir, pois fui sabedor que aqui em casa precisavam de um moço de lavoura. — Apareces em boa altura. Mas como és de fora da terra devo fazer-te uma prevenção: tenho tido muitos criados sem préstimo e nenhum tem aquecido o lugar. Sendo assim, não sei... Pois não se lhe dava de experimentar, não senhor. Estava já informado da jorna e do passadio. Faltavalhe apenas saber dos usos e costumes da casa. — Os usos e costumes bons são, e vou-tos ensinar, pois não admito enganos. Saberás que aqui não há patrão nem patroa. Eu sou Santideus e a tua ama, que além está aos arrumos, é Santitates. Olha lá, tu sabes o que é isto? — São umas calças... — Sim. senhor Santideus. Sim, senlior Santideus, náo me esquecerei. — Sáo uns tamancos... — Boa te vail Quais tamancos! São uns sarapitates. E trata de te não esqueceres! Conheces aquele animal? O animal era um bichano, gordo, que, ao borralho, cofiava a bigodeira. Mas foi a medo que respondeu ser um gato.

O homem caía de pasmo em pasmo. E só cabeceava submisso: — Sim. senhor Santideus. Sim, senhor Santideus, não me esquecerei. O patrão parecia medir-lhe, agradado, o arcaboiço do peito. E pesar-lhe a força dos braços fortes, como a avaliar-Ihes o rendimento. De súbito, pareceu disposto a contratá-lo, e ordenou-lhe: — Olha, já agora serve-me aí uma pouca de abundância. Atarantado, o infeliz passeou os olhos pelas traves grossas do tecto, enegrecidas de fuligem, pela farta ramada de fumeiro, luzidia de pingue, pelo escano, pela masseira, procurando descobrir onde se ocultaria a “abundância”, que devia servir ao patrão. De nenhum lado lhe vinha socorro, pois a ama continuava, lenta e calada, a cirandar nos arrumos. Novamente os seus olhos, ansiosos, esquadrinharam a cozinha até que se detiveram, num recanto, onde avermelhava o vidrado da talha de água fresca. Em três passadas, encheu um púcaro, farto, trouxe-o ao patrão. — Vejo que não és um tolitates qualquer, como os que tenho tido. Tomo-te a meu serviço. E agora vamos à deita, que são horas. Cá em casa os dias começam ao nascer do sol. Iodos se recolheram. O criado é que não conseguia pregar olho. Santideus. Santitates. Tiras-e-viras, Sarapitates. Abundância. Papa-ratos. Como é que aquela trapalhada lhe havia de ficar na cabeça?! O pior era que só de se lembrar daquela ramada de fumeiro a escorrer pingue lhe vinha à boca uma aguadilha de fome. Era homem de sustento e já tinha curtido muita lazeira. Não, aquela não era casa de perder. Bem tinha reparado na água da banca, onde a patroa lavava loiça, olhada de gordura, como um caldo. Na lavagem do porco, grossa das varreduras dos pratos, que enchia a selha. No pêlo farto e macio do gato...o gato! Ali estava. Ali estava uma maneira de mostrar ao patrão que já sabia na ponta da língua os usos e costumes da casa. E, contente por a fome lhe ter espevitado o engenho, passou pelas brasas. Mas ainda não luzia o buraco do janelo, esgueirou-se, em meias, e às apalpadelas, até à cozinha. Encaminhou-se para a lareira, ateou o brasume morto e viu que a sorte o favorecia: o gato ronronava à quentura do borralho. Foise acima da mesa, onde estava o candeeiro, desenroscou-lhe a cabeça, derramou uma pinga de petróleo na concha da mão, e passou-a, lestamente, pela ponta do rabo do bichano. Depois, obra de um fósforo, pegou-lhe o fogo. O gato, acordado assim à falsa fé e por tão negregada forma, soltava miados rabiosos e fazia uma restolhada dos demónios cima do escano e do louceiro. Então, sem perda de tempo, o criado atirou-se às punhadas à porta do quarto dos seus amos: — Senhor Santideus! Senhora Santitates! Acudam! Ó senhor Santideus, vista as suas tiras-e-viras, calce os seus sarapitates, venha acudir ao papa-ratos e deite-lhe abundância, senão ele põe-lhe a casa em Bragança! Assim mostrou o espertalhão saber, sem engano, os modos daquela casa. O lavrador arranjou quem o servisse, mas teve de pagar, com língua de palmo, a quem lhe suava o pão.


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