Sonhos interrompidos

RAUENA BARRADAS NUNES

SONHOS INTER ROM PIDOS

UMA HISTÓRIA QUE SE CONTA

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Sonhos Interrompidos – Uma história que se conta Primeira edição – Novembro 2019 Trabalho de Conclusão de Curso Graduação em Jornalismo Universidade Cruzeiro do Sul AUTOR

Rauena Barradas Nunes ORIENTAÇÃO

Prof ª Dra. Mirian Meliani Nunes REVISÃO

Maria Aparecida Barbosa Macena de Oliveira DIAGRAMAÇÃO E CAPA

Wesley Gomes FOTOGRAFIAS

Rauena Barradas Nunes e Acervo Prof º José Parada São Paulo - 2019

NUNES, Rauena

Sonhos interrompidors - Uma história que se conta / Rauena Barradas Nunes

São Paulo, 2019.

vida

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Dedico este livro a todos aqueles que foram excluídos, isolado. Aos que sentiram que seu universo era grande demais para guarda para si. Meu universo também é. Eu sou como vocês. Luto minhas batalhas para que um dia todos nós vençamos a guerra.

Aos meus pais e meu irmão, por lutarem ao meu lado.

AGRADECIMENTOS P

rimeiramente agradeço a Deus por nunca me permitir desistir e por sempre escutar o meu pedido de socorro.

Ao Satílio por me dividir comigo sua história e por me ensinar que não importa o que aconteça na nossa vida, se vivermos com gratidão tudo fica mais bonito. A todas as pessoas que fizeram com que esse projeto se realizasse, Dona Genil, Elisabete, Cleber, Ana Paula, vocês foram essenciais.

Aos meus pais que aguentaram todas as minhas crises durante a criação do livro. Minha Mãe Marilene por toda força que me transmitiu nas noites de desespero. Meu Pai Raimundo por acreditar em mim todos os dias. Ao Rayan, meu irmão favorito, por não se importar em ter que me acompanhar em cada tentativa de entrevista, por toda paciência e cuidado e por sempre enxugar minhas lágrimas, mostrando que seria possível.

Ao Edilson Júnior, por me permitir ter o seu apoio e poder encontrar em você todo amor que eu precisava.

As minhas amigas, Alaide e Venithia, por emprestarem seus ouvidos, enquanto eu contava meus dilemas de ser uma escritora novata. Ao Robson pelo apoio na criação do livro. Clayta, Karina e Simone, por acreditarem nesse livro. Ao padrinho Lucas, por sempre responder minhas mensagens de forma positiva, suas orações chegaram até mim.

Ao meu grupo fiel da faculdade, Lele, Jô, Quei e Dê, o apoio de vocês durante todo o período foi essencial na minha formação como pessoa.

A minha professora e best Mirian, é admirável ver o quanto é forte, obrigada por me apoiar em todas as etapas. A todos os professores que sempre me incentivaram a ser uma jornalista extraordinária.

Ao Dheison, Lili e todos os companheiros de trabalho, por sempre se preocuparem e me ajudarem em todos os requisitos.

Um agradecimento especial aos meus padrinhos – in memorie – vocês foram extraordinários comigo. Antônio e Viviane, obrigada por terem visto o meu “além”.

A todos os meus amigos e familiares, por compreenderem todas as vezes que eu tive que me distanciar e mergulhar nas pesquisas.

Todos aqueles que me ajudaram e me apoiaram nessa caminhada. Toda gratidão a vocês.

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SONHOS INTER ROM PIDOS

UMA HISTÓRIA QUE SE CONTA

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Hospital Juquery é descrito por muitos como elemento central da vida da cidade de Franco da Rocha. Todos os moradores possuem uma história para contar que se desenrola naquele espaço, seja como pacientes ou como funcionários.

Não era incomum que o hospital prestasse atendimento médico à população em ambulatórios clínicos.

Na década de 80 e 90, vários nascimentos ocorreram em suas instalações. Marilene, 23 anos, na época mãe de um menino de 1 ano e 3 meses, foi uma das mulheres que deu a luz naquele ambiente.

Durante todo o seu pré-natal foi questionada em relação ao hospital que daria a luz. Ela nunca entendeu o porquê de tantas perguntas sobre isso, afinal, naquela época, de família humilde, o Juquery seria sua única opção. Sua e de quase todas as mulheres da cidade, além dos homens, crianças e idosos que recebiam assistência médica do hospital.

Por algumas vezes ouviu “lá é um matadouro”, mas nunca deu muita atenção para os tais comentários.

No dia 20 de novembro de 1998, a jovem passou o dia sentindo contrações.

Quando a noite chegou, já estava no hospital, deitada em uma maca em um grande quarto, acompanhada de outras mulheres gestantes, que gritavam de dor.

Ao contrário dessas mulheres, Marilene permaneceu quieta enquanto aguardava o atendimento e uma posição médica sobre o seu estado de saúde e de sua filha. A dor das contrações permaneceu por algum tempo, enquanto a jovem sofria sozinha, até que apareceu uma mulher que ela supõe ter sido uma enfermeira que a questionou: “mãezinha, posso estourar sua bolsa?”. Sem condições para falar, apenas balançou a cabeça em sinal de positivo. Poucos minutos depois, as 19 horas gritaram que sua filha estava para nascer, levando-a para a sala de cirurgia.

Na sala do parto, enquanto Marilene olhava ao redor, não podia identificar nenhum médico obstetra. Seu olhar apenas se encontrava com os olhares de cinco estagiários, que tentavam acalmá-la, dizendo que realizariam seu parto.

As 19h30 sua filha nasce, através de parto natural, que mesmo com as dificuldades teria tudo para se sair bem, mas a jovem sentia que sua perna havia sido cortada. A cada minuto, sentia as dores de pontos ao ser costurados em sua pele.

Saiu da sala de cirurgia após as 22 horas.

Cansada, com fome e sozinha. Enquanto permanecia deitada em uma maca pelos corredores do tão falado Juquery, a jovem sentia o ar frio percorrer por seu corpo, chegando a tremer de frio. Após algum tempo no corredor, avistou alguém vindo em sua direção. A enfermeira se aproximou e disse que deveria ir para o quarto, mas teria que subir as escadas, pois os elevadores estavam quebrados.

Aquela jovem que acabará de ser mãe se via mais uma vez sem opção, poderia permanecer no corredor ou subir para o quarto, logo após o nascimento de sua filha, andando.

O que não imaginava é que passaria mal no caminho do quarto, afinal estava sem

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se alimentar. Parou por alguns minutos no meio do caminho e sentou-se no degrau da escada, respirou e logo após continuou. Isso se repetiu por mais algumas vezes até que, enfim, chegou ao quarto.

Deitou-se na cama sua filha. Durante a noite, por algumas vezes, foram colhidos diversos tubos de sangue tanto da jovem quanto de seu bebê. Quando questionava o motivo, a única resposta era que seriam realizados alguns exames. No entanto, nunca houve resultados.

No dia seguinte, por volta das 10 horas, a enfermeira aparece para ajudá-la, pois, ainda fraca, não conseguia se locomover com facilidade. No banho, permaneceu se segurando nas paredes. Em seguida o marido entra para vê-las e, finalmente, Marilene pode comer alguma coisa.

Ao permanecer no Juquery por três dias, a jovem mãe visualizava pela janela os internos andando pelo pátio. Alguns, ela podia ver, andavam sem roupas, outros arrastavam bonecas, a quantidade de internos era grande.

Enquanto observava, Marilene se questionava o porquê daquelas pessoas estarem ali, vivendo aquela situação que nem de longe era agradável. Pensamentos que foram afastados ao escutar filha. O dia da tão sonhada alta, finalmente, chegou.

Porém, pouco tempo depois, a mãe voltou para o hospital como paciente da psiquiatria. Ainda hoje Marilene não entende de fato o que a levou a um quadro psiquiátrico. Durante um ano foi necessário fazer uso de medicamentos e passar por acompanhamento médico. Se a passagem traumática pelo hospital foi o motivo de seu transtorno? Não há comprovação, mas o que ela afirma com certeza, é que os momentos que a jovem viveu dentro do Juquery para que sua filha chegasse ao mundo, nunca sairão de sua mente.

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m pedido de socorro. Um grito no vazio. Um choro preso na garganta. Dor, medo, solidão. O que o homem precisa para acreditar que pode isolar seu igual, apenas por enxergá-lo como anormal? A loucura por muito tempo foi um vazio perdido no tempo. Um muro entre o alienista e o alienado. Entre a realidade e o irreal.

O hospital, que vendeu a cura e assistência para a loucura, e que quebrava os laços dos “loucos” com suas famílias. O Juquery traz na sua essência a vida dos excluídos e dos invisíveis, um verdadeiro depósito de pessoas.

O que separava os internos da população daquela cidade? O que faria com que eles fossem considerados loucos, e nós os normais?

O Juquery faz parte da evolução da psiquiatria brasileira, mas, mais do que isso, é a história da cidade de Franco da Rocha, é a lembrança de toda a população que encontrava, no hospital psiquiátrico, assistência para as doenças do cotidiano.

Durante o processo da pesquisa acadêmica, tive a oportunidade de olhar nos olhos daqueles que desejavam compartilhar suas histórias e experiências que tiveram com o Juquery. Nos olhos, a dor de reviver o passado, e no sorriso, a gratidão pela oportunidade de viverem.

Alguns acreditam que devemos nos distanciar o máximo que pudermos das histórias que foram construídas dentro das colônias e pavilhões do hospital. Outros preferem acreditar que devemos olhar para o passado, conhecê-lo, abraçá-lo, com a certeza de que não podemos trilhar o mesmo caminho.

Afinal, diferença é riqueza e nunca patologia.

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SUMÁRIO

PRÓLOGO PREFÁCIO 1. A HERANÇA DA CIDADE 2. A LOUCURA 3. O VELHO E O NOVO 4. SOBREVIVENTE EPÍLOGO

A IDEIA DE METER OS LOUCOS NA MESMA CASA, VIVENDO EM COMUM, PARECEU EM SI MESMA SINTOMA DE DEMÊNCIA. O Alienista - Machado de Assis

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HERANÇA DA CIDADE “Eu trabalhei no refeitório, trabalhei com as doentes acamadas, trabalhei de catar fezes no pátio, eram dois baldes de água, um pra colocar as fezes e um pra você lavar o lugar ali. O pátio era lavado duas vezes por semana. Era assim. Olhava as doentes também pra não brigarem, algumas comiam fezes, e tinha que correr atrás delas, outras ficavam trancadas porque batiam nas outras. Eram doentes agressivas”.

Genil Milanez Mendes, funcionária aposentada do Hospital Psiquiátrico, 82 anos.

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o princípio, apenas um caminho que os bandeirantes utilizavam em direção a Minas Gerais. A cidade de Franco da Rocha teve seu destino traçado no ano de 1898. Tudo começou com o projeto de um Hospital Psiquiátrico que tinha a intenção de conciliar a cura e a assistência aos doentes mentais, além de outros grupos excluídos socialmente, utilizando a laborterapia, um tratamento que incluía o auxílio de trabalhos manuais no campo.

O médico Francisco Franco da Rocha, nascido na cidade paulista de Amparo, teve um papel importante na psicanálise no Brasil. Ao lado do arquiteto Ramos de Azevedo, idealizou e ajudou a fundar o Hospital Asilo Colônia, conhecido como Hospital do Juquery, em referência ao rio yu-que-ri que corria por ali.

No século XIX, os hospitais psiquiátricos tornaram-se a principal assistência aos alienados. Uma época em que a exclusão e o isolamento social daqueles que apresentavam algum indício de sofrimento psíquico, fazia parte de uma cultura, onde o diferente não era aceito, sendo ele doente mental ou não, acreditando que o confinamento seria uma prática terapêutica.

No dia 18 de maio de 1898, o Asylo de Alienados do Juquery abriu suas portas para acolher distintos tipos de excluídos, até então, totalizando 80 pessoas, entre eles: doentes

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mentais, mendigos, negros, marginais, todos os que não faziam parte da atividade econômica e todos que eram considerados anormais, de acordo com o padrão da sociedade naquela conjuntura. Os 80 primeiros pacientes que inauguram o Juquery, são trazidos da fazenda de Sorocaba, que Franco da Rocha já havia adaptado para o doente mental, para que ele pudesse trabalhar na lavoura, de forma independente.

A ideia que se criou de isolar os tais loucos, colocando todos em um mesmo ambiente, pareceu positiva, afinal as ruas das cidades urbanas estariam livres, pois o depósito de humanos teria sido criado.

A Avenida dos Coqueiros, escolhida como local para a construção do hospital, era a rua mais famosa do município.

A cidade de Franco da Rocha nasce do Juquery A estação de trem que chegou à cidade no dia 1 de fevereiro de 1888, vinculada ao Hospital de “loucos”, foi decisiva no processo de urbanização e desenvolvimento da cidade. “Mais um trem de doido”, termo criado pelo escritor Guimarães Rosas, em um de seus contos e que faz referência ao Hospital Colônia de Barbacena – MG, também se aplica ao caso do Juquery. Pois a estação ferroviária servia de transporte para os novos internos até o hospital, ou para os raros familiares que se interessavam em fazer visitas.

E assim nasce outro jargão “Juquery, quem é louco desce aqui”, conhecido pelos moradores, e que muitos ainda guardam na memória os comentários que se ouvia pelas ruas da cidade: “Aqui só tem doido”.

Além dos termos em referência ao hospital mais famoso da cidade, os moradores ainda guardam na lembrança o que o Juquery deixou, ou fez em suas vidas, pois, embora nunca tenha sido considerado um Hospital de Clínicas, dentro de suas instalações funcionou uma grande clínica geral. A princípio, foi criado para suprir apenas as necessidades dos internos, mas com a carência de atendimento hospitalar aos moradores da região, o hospital psiquiátrico, acabava sendo a única opção daqueles que moravam próximos, por isso é quase impossível encontrar alguém que viva na cidade e que não tenha utilizado os serviços do hospital. Afinal, grande parte dos jovens teve como cenário, no seu nascimento as paredes brancas do “hospital de loucos”.

Se os serviços eram bons? Não exatamente! Os cuidados eram precários, assim como as instalações, mas era o que naquele momento os habitantes da pequena cidade possuíam. Segundo relatos da população, quando pensam Juquery, lembra-se da dor que ele causou, não só aos internos, mas aos usuários clínicos, que só tinham ele como opção de cuidados hospitalares. Fosse para um problema de saúde menor ou para um parto. O mesmo era a única referência para os moradores, da afastada Franco da Rocha.

Entrelaçado com a loucura e o sofrimento, o Juquery ultrapassou as fronteiras da cidade e transformou-a na “cidade dos loucos”. Buscando o distanciamento do passado e da fama que carregava pelas cidades brasileiras, o prefeito, Bento de Oliveira, solicitou à Assembleia Legislativa autorização para a mudança de nome da cidade. Na ocasião, o deputado Ulisses Guimarães apoiou o pedido e pronunciou a celebre frase: “Juquery, terra de loucos. Loucos por cidadania”. De tal modo, através da lei estadual nº 233, de

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24/12/1948, a cidade ganha o nome do alienista Franco da Rocha, pai de um dos maiores hospícios do Brasil. E embora, ironicamente, a cidade não carregue mais o nome do hospital, ela ainda mantém a herança deixada por ele, o que faz com que sua história siga enlaçada com o antigo hospital psiquiátrico.

VOZES DA MEMÓRIA I Genil Milanez Mendes, de família italiana, nasceu no ano de 1932. Paulistana, foi jogada na rua por seu pai, e desde então lutava dia após dia para sobreviver.

Construiu uma família humilde, e com seu filho Carlos, de 5 anos, Dona Genil, como gosta de ser chamada, veio para Franco da Rocha nos anos 60, na esperança de uma vida melhor. Prestou concurso para ser Cuidadora no hospital Juquery, começou trabalhando na segunda colônia feminina, ao lado de dona Loudes Vouler, sua primeira chefe, a qual tinha muito apreço.

Ao contrário de Loudes, Fátima e Neusa, que também faziam parte da chefia do hospital, segundo Genil, não prestavam, eram ruins. Quando chegava uma funcionária nova, tinha que mostrar serviço, porque as tais “chefes pegam no pé”, e caso contrário, faziam as novatas de trouxa.

- No começo era bem difícil, mas pra mim não foi muito não, eu já entrei fazendo bagunça com as doentes, ensinando elas a dançar.

A ex-funcionária sempre gostou de brincar com as pacientes, e elas gostavam também. Vera, que era uma interna que gostava de arte, desenhou na parede do salão de festa sua imagem e chamou os pacientes e doutores para ver sua arte.

A ex-funcionária lembra-se dos momentos difíceis que passou, quando o governo deixou de pagar seu salário por seis meses. Se não fossem seus vizinhos, passaria fome. Nessa altura, além de Carlos, tinha mais duas filhas, Luzia e Regiane.

- Quando comecei a trabalhar, ganhava 25 cruzeiros por mês, era o dinheiro que a gente ganhava. Teve um período que fiquei 6 meses sem receber nada, quase passei fome com meus filhos, mas existe gente boa nesse mundo que me ajudou.

Além da Colônia Feminina, trabalhou no NATO, onde ficavam 2500 doentes.

Dessas 500 eram nudistas, mesmo que fossem colocadas as roupas em todos, alguns arrancavam tudo.

- Doentes são loucas de tudo, não sabem o que fazem.

Dona Genil não reclamava do trabalho, ia para o setor que lhe mandavam, passou pela CTO, pela primeira colônia, no refeitório, no pátio, na clínica médica, na observação e no pronto socorro. Os médicos preferiam que ela cuidasse dos pacientes, por já ser mais experiente, tinha mais paciência e sabia lidar com os doentes acamados, como os que possuíam patologias mais graves, e até mesmo os mais agressivos.

Como cuidadora, Genil lembra, com tristeza no olhar, os banhos que ela e suas companheiras de trabalho davam nas pacientes.

- O banho começava às 9h30 e terminava às 15h. A gente tinha que tirar a roupa, e ficar só de calcinha, com um vestido de doente. Tinha um latão de plástico,

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esquentava a água na caldeira, e depois temperava com sabão de pedra, feito na saboaria do hospital. Nós raspávamos o sabão até fazer aquela espuma para poder ensaboar os pacientes, só então iam para o chuveiro. Em alguns casos tinha paciente que era necessário deitar no chão para limpar as partes intimas, pois eram gordas e não dava para limpar em pé. Era horrível, mas era a única forma que se tinha, porque doente não se limpa, algumas chegavam a comer fezes.

Genil recorda com pesar que havia muitas doentes agressivas, como a Rotuna, que precisava “ficar sempre sozinha e trancada, porque se não matava as outras”.

Oraziras Soares também era uma paciente muito agitada, comia as pontas dos dedos, da mão e do pé.

- Se deixasse, ela comia. Oraziras teve seus dentes arrancados por esse motivo, eles diziam.

Além dos cuidados, Genil lutava para que os internos tivessem o mínimo de assistência. Chegou a brigar muitas vezes com os médicos e diretores, para que desse um atendimento mais cuidadoso aos pacientes. E não era apenas a alta cúpula do hospital que a funcionaria encarava. Ela também relata que defendia os internos dos maus tratos por parte dos funcionários. Aqueles que deveriam cuidar, muitas vezes, maltratavam e Genil não aceitava, pois doente é doente e não sabe o que faz.

- A doente não queria tomar remédio, ele (o qual a funcionária prefere não revelar o nome) bateu na paciente, eu vi, Adalgiza minha amiga também viu. Entregamos.

Após o ocorrido, o funcionário agressor não foi mais visto, mas Genil afirma que existiam outros que não cuidavam bem dos pacientes. Ver ela não viu, pois teria denunciado, mas sabia. Confessa que apanhou muitas vezes das internas, pois queriam fugir, e alguém tinha que ir atrás. Quando não as deixava sair, elas agrediam.

Uma dessas vezes, a paciente tentou sair e ela não permitiu e se virou. Foi quando recebeu em sua cabeça uma pancada, ficou meio zonza e olhou para ver o que tinha acontecido: a interna havia escondido uma caneca de alumínio por baixo de sua blusa, e então Genil entendeu, havia sido agredida com uma caneca. Sua cabeça permaneceu dolorida o restante do dia, mas Genil sabia que não havia o que fazer, não podia bater, doente não sabe o que faz.

Mas quando coisas assim aconteciam, os pacientes tomavam medicamentos que, segundo Genil, eram a forma mais utilizada para tratamento, muitos vezes apenas para acalmá-los, pois sabiam que os surtos voltariam a acontecer. O choque era recorrente também, e funcionava segundo ela. O doente que se mostrava agressivo, após a sessão de eletrochoque, permanecia calmo por alguns dias, mas em troca disso o paciente sofria, se contorcia, vomitava, ficava em estado crítico: Genil se perguntava se, valia apena e recorda de ter participado de uma única sessão de eletrochoque. Sempre que era chamada, arrumava um jeito de fugir dos médicos.

Ela não concordava, não queria ver o sofrimento do paciente. Contudo, era o tratamento da época, e por isso, não se notava nenhum tipo de indignação. O que ela, uma simples funcionária, poderia fazer?

A ex-funcionária ajudava como podia, fazia comida quando os pacientes tinham apenas arroz para comer, tirava para dançar, arrancava sorrisos, via o sofrimento de cada um nos olhos, e sofria por eles também. O choque era brutal, o isolamento na Rotuna também, nenhum ser humano deveria ser tratado daquela forma, isolado,

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sem nenhum fio de esperança ou de laços com familiares. Ela sempre amou o que fazia, mas dentre tudo o que seus olhos viram pelos muros do hospital psiquiátrico, ainda hoje o que mais a entristece é a história de vida da “filha dos Matarazzo”. Ela não recorda o nome, mas lembra bem como ela tornou-se paciente da colônia feminina no Hospital Psiquiátrico, e com certeza, nada tem a ver com sua saúde mental.

Vinda de uma família conceituada no Estado de São Paulo, a “filha dos Matarazzo”, com apenas 15 anos foi deixada sozinha no hospital, apenas por estar grávida.

Não possuía nenhuma patologia, não era demente, mas lá foi deixada, e era tratada como tal. De cabelos longos, pele clara e olhos escuros, ela era linda, e continuou linda de cabelos grisalhos até seus últimos dias. Existiu todos os dias, dentro dos muros do hospício. Sua casa eram as paredes brancas do local, encontrava sua felicidade em um piano velho. Não tinha porque estar ali, mas estava. E até o seu último dia de vida não receberam nenhuma visita de sua família. Ela foi esquecida.

Quem era ela?

Assim funcionava o hospício do Juquery, um lugar de esquecimento. Quem ali estava provavelmente não sairia, não voltariam a ver àqueles que amavam, o sol seria contemplado através das janelas, e se o interno fosse razoavelmente consciente, poderia sair para o pátio e observar a luz do sol ou a água da chuva, mas ainda assim, ao olharem para os lados, veriam os muros que os prendiam. Muros que roubavam a liberdade que desejam ter.

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a loucura “A liberdade, quando se trata de doidos, não pode deixar de ser relativa. A preocupação de evitar o aspecto de prisão, de dar ao asilo aparência de habitação comum, tem sido um pouquinho exagerado por alguns alienistas. O caráter de prisão é, entretanto, inevitável; quando não estiver nos muros e janelas gradeados, estará no regime, no regulamento um tanto severo, indispensável para um grande número de doentes.” 1 Dr. Francisco franco da rocha (1864 - 1933)

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oi no século XIX, que o hospício como instituição tornou-se prática principal na assistência aos alienados.

Antes desse período, em meados do século XVII, a lepra era o maior enfoque de exclusão feita pela sociedade, e é a partir dela e dos hospitais, que tratavam os leprosos, que surge o fenômeno da loucura. O historiador e filósofo francês Michel Foucault 2 afirma que a medicina demoraria em se apropriar da loucura. No entanto, no século XIX a psiquiatria surge para “controlar” a loucura, com a promessa de cura como justificativa para a internação.

A urgência de desenvolver o entendimento e a compreensão sobre a loucura que afetava a sociedade nasce na Europa, precisamente na França. Desde o nascimento, o hospício sofreu várias transformações em questões relacionadas ao foco do tratamento das patologias relacionadas à mente humana. A própria ideia do asilo de alienado, enquanto principal ferramenta de tratamento torna-se um meio de sujeição do louco a uma terapia violenta.

No Brasil, o hospício nasce no dia 30 de novembro de 1852, através de um decre1 FRALETTI Paulo. Juquery, Passado, Presente, Futuro, p.177 2 FOUCALT. História da Loucura, 2005, p.8

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to, para a criação de um local destinado aos alienados, feito pelo Imperador D. Pedro II. “Alienados” o nome usado para todo o grupo de pessoas que não se encaixavam na sociedade: as classes sociais mais baixas, negros, imigrantes ou loucos.

Retrocedendo ao ano de 1832, os considerados loucos deveriam ser mantidos sob a guarda de suas famílias ou responsáveis, alguns até eram acolhidos em casas de saúde, cadeias e nas precárias enfermarias da Santa Casa da Misericórdia, do Rio de Janeiro, que acolhiam os alienados violentos e que não possuíam posses.

Este cenário motivou, em 1830, os primeiros protestos para a criação de um asilo adequado para os alienados, baseados em trabalhos de médicos franceses, como Phillippe Pinel (1745-1826) e outros que realizavam um tratamento considerado mais humano para os doentes mentais, em um lugar mais adequado para recebê-los.

Em 1848, nasce oficialmente a estrutura de atendimento ao alienado em São Paulo, com a promulgação da lei que liberava o desenvolvimento de plantas e orçamentos com o intuito de construir asilos para acolher os “loucos” naquele momento.

Em um casarão, no centro da cidade na Rua São João, no ano de 1852, surge o Hospício Provisório de Alienados em São Paulo, que de forma precária, funcionou até o ano de 1864, quando a superlotação fez com que mudasse seu endereço para o antigo seminário de Tabatinguera, em Várzea do Carmo. Essa mudança para um lugar mais recluso poderia até ser por acaso, mas na verdade ela foi premeditada, afinal São Paulo começava a se tornar uma grande metrópole, principalmente para o comércio alimentício, com a produção de cana-de-açúcar e café.

Ainda nos primeiros anos do século XIX, Dr. Franco da Rocha se deparava com o velho hospício de São Paulo, encontrava pacientes encarcerados e em péssimas condições, além da superlotação. Antes de se tornar diretor do hospício de alienados da capital, em 1896, trabalhou ao lado dos dirigentes da província para construção de um novo hospício adequado às necessidades dos alienados. Dr. Franco da Rocha começa a estudar terrenos que possam oferecer condições para seguir o modelo de hospício, proposto pelo Congresso Internacional de Alienistas, realizado em Paris em 1889, que incluía um asilo central com colônias agrícolas, em área rural de fácil acesso para abrigar um número grande de doentes.

A proposta do asilo-colônia convenceu o presidente da província Dr. José de Cerqueira César, que concedeu a autorização necessária para o alienista Franco da Rocha, construir o novo hospital asilar, que possuía uma proposta terapêutica de afastamento do doente do seu próprio meio social e proporcionaria um novo ambiente, visando a saúde física e mental.

Um fator importante na definição do espaço físico para o hospício foi a implantação de grandes áreas de cultivo para a laborterapia ligada ao trabalho na terra. O local era ideal para a ação terapêutica e planejado para o funcionamento e tratamento que levasse à cura dos internos. Em relação aos tratamentos, o isolamento do doente mental era a principal condição para a existência do asilo. Daí os hospitais serem construídos em locais periféricos aos centros urbanos em formação.3 E assim, foi realizado o local para a instalação do novo asilo de alienados que havia sido escolhido. Antes, apenas um pequeno povoado, a cidade que se tornaria

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LANCAMAN, Selma. Louruca e espaço urbano: Franco da Rocha e o asylo de Juqueri, p.33.

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“Quando, há trinta anos, planejei a reforma completa da assistência aos alienados de São Paulo, tive em mente um grande projeto constituído de duas partes: a primeira seria a organização material do Hospício, com suas colônias agrícolas anexas e assistência familiar econômica”.4 A loucura ajudou a construir uma cultura nacional, na qual o alienista seria responsável pela saúde mental da população, identificando o insano, conforme as condições, físicas, produtivas e morais de cada indivíduo.

VOZES DA MEMÓRIA II Cleber Leme, (idade), franco rochense, historiador da cidade, local em que nasceu e cresceu. O Juquery. Sua mãe (nome da mãe) trabalhava como (profissão da mãe), e Cleber a acompanhava. Cresceu ao redor de pacientes com patologias mentais, ainda assim recorda das vezes em que sorria correndo pelos jardins do hospital. Mas isso não apaga as tantas vezes em que se questionou o motivo daquelas pessoas viverem trancadas, muitas vezes em situações desumanas. Mesmo estando ali dentro, correndo pelos pátios e jardins, nunca pertenceu àquele mundo, que fazia ele diferente dos alienados?

Cleber resolveu entender a história, e assim tornou-se historiador do hospital, conhecendo a narrativa daquele espaço desde o princípio. Acredita que a intenção do Dr. Franco da Rocha tenha sido positiva, ao idealizar um Asylo Colônia, afinal ele buscava compreender a patologia e levar a independência aos doentes mentais, utilizando a laborterapia.

Ainda na gestão de Franco da Rocha, Dr. Antônio Carlos Pacheco e Silva, sempre se interessou pela área de neuropatologia, e foi convidado a organizar o Laboratório de Biologia e Anatomia Patológica do Juquery, que até então não existia. Franco da Rocha escolhe Pacheco para ser seu substituto, e em 1923, Dr. Pacheco e Silva assume a direção do hospital. A partir de então, as decisões do novo diretor começam a entrar em contradição, não sendo mais aquilo que o fundador Franco da Rocha havia idealizado, perdendo completamente a essência original do Asilo Colônia.

Desta forma, Cleber relata que desde o nascimento o Juquery, ocupou um papel importante para a cidade e viveu em constante mutação durante os primeiros anos da sua existência, dividindo os em duas fases.

1ª fase A primeira fase do Asilo Colônia ocorreu entre 1889 à 1924, com estrutura arquitetônica exclusiva do arquiteto Ramos de Azevedo e direção do fundador Franco da Rocha. Ele contava com pavilhões, que abrigavam homens e mulheres, além do isolamento que era destinado aos pacientes com patologias mentais e que 4

YALIN, Mario; OLIVEIRA. Resumo da História da Assistência Psicopatas no Estado de São Paulo, p.28

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não possuíam condições para o trabalho manual. Era também uma única colônia exclusivamente masculina.

Franco da Rocha considerava-se humanista e seguia esse conceito, no qual o doente mental teria que ter independência, onde o asilo deveria ser autossuficiente, o que aconteceu literalmente até 1919, alguns anos antes dele sair da diretoria.

2ª fase Nesta segunda fase o Juquery, que possuía um tratamento com base na laborterapia, considerada positiva, deixa de ser Asilo Colônia para tornar-se hospital psiquiátrico, contando com a nova direção do Dr. Pacheco e com os serviços do engenheiro Ralf Pompeu de Camargo, que trouxe para as terras do hospital novas instalações, como a colônia feminina e o espaço para lazer, que até então, não existia.

Dividido em numerosas colônias e pavilhões, o hospital psiquiátrico passou a seguir a política de controle e segurança, em uma sociedade que possuía a lógica de neutralizar e varrer as ruas dos “inúteis” para que não se reproduzissem ou manchassem a imagem das cidades grandes. Assim, o nascimento do Hospital Psiquiátrico estava fundamentalmente ligado a um projeto de organização manicomial que durou até 1927, Logo depois Dr. Pacheco criou o Manicômio Judiciário destinado aos indivíduos, que haviam cometido algum tipo de crime em decorrência de determinado transtorno mental.

A loucura ajudou a construir uma cultura nacional, onde o alienista seria responsável pela saúde mental da população, identificando o insano conforme as condições físicas, produtivas e morais de cada indivíduo.

A classificação para o diagnóstico das doenças mentais surge somente em 1980, quando a Associação Americana de Psiquiatria, publicou a terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, representando a primeira tentativa de abordar o diagnóstico de doenças mentais por meio de definições e critérios padronizados. A mais recente edição publicada, em 2013, fornece um sistema de classificação que faz uma tentativa de separar as doenças mentais em categorias diagnósticas com base na descrição dos sintomas, isto é o que a pessoa faz, pensa e sente. Em 1992, a Organização Mundial de Saúde, pública a Décima Revisão da Classificação Internacional de Doenças, um livro que utiliza categorias diagnósticas.

Isso significa que os diagnósticos das doenças mentais específicas devem ser realizados de formas padronizadas.5

5

Manual MSD, versão para a saúde da família.

24

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“Nada tenho a ver com a ciência; mas, se tantos homens em que supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”

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Psicóloga do Complexo Hospitalar Juquery, Maria Elisabete Ferreira de Palma, 59 anos

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ciência trouxe para a sociedade descobertas consagradas, entretanto é responsável também por aplicações de experimentos em fases iniciais em seres humanos. No século XIX, o fisiologista francês Claude Berbard tratou da moralidade das observações científicas, em 1852, afirmando que o principio da moralidade médica consistia em nunca causar dano ao ser humano, ainda que o resultado fosse altamente vantajoso para a ciência ou para a sociedade.6 As práticas abusivas sempre existiram, mas foi a partir do século XX que medidas internacionais de controle sobre experimentos com seres humanos foram criadas, após o conhecimento dos abusos cometidos nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, com assassinatos, tortura e outros atos indignos nos experimentos científicos.

Em 1947, uma corte formada por juízes dos Estados Unidos reuniu-se para julgar crimes cometidos pelos médicos nazistas em campos de concentração. O julgamento resultou na criação do Código de Nuremberg, um documento que faz referência à experimentação médica em seres humanos, por isso deve ser cumprido, respeitando o direito de escolha do individuo. Mas infelizmente durante vinte anos de existência do documento, as diretrizes de ética não foram capazes de convencer aos médicos para 6

FIGUEIREDO, A. M. de. Diretrizes éticas internacionais em pesquisa: Critica a Declaração de Helsink, 2011, p. 3

27

respeitar os seres humanos, no quesito de pesquisas e experiências. 7 O Juquery é uma prova de que o Código não sensibilizou os médicos, pois assim como os campos de concentrações nazistas, o Hospital possuía certa semelhança nos quesitos de cárcere e tortura.

Apesar da evolução dos estudos sobre a mente humana, entre 1940 e 1960 algumas terapias beiravam a barbárie. Como o eletrochoque (ainda utilizado, nos dias atuais, em casos graves, e com recomendação médica), a malarioterapia (contaminação do paciente com o protozoário da malária na tentativa de criar distúrbios), a insulinoterapia (coma diabético provocado por meio de injeção de insulina) e o uso do cardizol (droga para provocar convulsões). 8 Na década de 70, quando o Brasil vivia sob o regime ditatorial, o hospício chegou a sua superlotação com mais de 15 mil internos, incluindo presos políticos, que eram retirados do convívio social, sendo atribuídos problemas psicológicos, que na verdade não o tinham.

O hospício e manicômio tornaram-se aliados do Estado, passando a internar pessoas que ameaçavam a ordem instaurada naquele momento, utilizando aparelhos de repressão como o eletrochoque. A prática do eletrochoque ou da lobotomia eram alguns dos procedimentos, travestidos de condutas terapêuticas, quando na verdade tratava-se de métodos violentos ligados à tortura, e para controle dos internos.

A replicação da violência do Estado dentro do hospital confirma a ideia de que o homem reproduz o que a sociedade é. Se ela é injusta, ele também o é. Se ela é violenta, ele não faz por menos. 9

eletroconvulsoterapia Ladislas Von Meduna, nascido na Hungria, neurologista da Universidade de Budapeste, teve a ideia de induzir convulsões para tratar doenças mentais. Da mesma forma que outros médicos que trabalhavam em hospitais psiquiátricos, Meduna reparou que os pacientes com esquizofrenia apresentavam uma determinada melhora após uma crise. As alucinações, falas sem sentidos e delírios costumavam desaparecer, apesar dos sintomas voltarem depois de certo tempo. A partir dessa observação, abriu-se uma nova perspectiva para a criação de tratamentos psiquiátricos. Se fosse possível encontrar uma maneira de induzir convulsões, pensou o neurologista, talvez posse possível acabar ou ao menos controlar a doença mental.

Em 1934, o neurologista utilizou a droga cardizol, que induzia convulsões em questão de minutos, ao ser injetado. Após recuperar a consciência, o paciente se levantava, e em alguns casos, falavam pela primeira vez.

Ao ouvirem falar sobre o estudo de Meduna, Ugo Cerletti, presidente do Departamento de Doenças Mentais e Neurológicas da Universidade La Sapienza, recordou-se que conhecia um método melhor para induzir as convulsões. Há alguns anos estava

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9 ODALIA N. O que é a violência. P 93

28

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realizando um experimento em animais, que consistia em fazer pequenas descargas elétricas para estimular ataques epiléticos. O procedimento era instantâneo e de baixo custo. Em 1930, Lucio Bini, aluno de Cerletti, criou um equipamento baseado nesses dois conceitos. Um mostrador controlava a voltagem e um cronômetro automático capaz de limitar o choque. Conectada à fiação elétrica de um interruptor de luz, o aparelho de eletrochoque emitia a corrente elétrica por meio de dois eletrodos, envoltos em um pano embebido em solução salina. Cada eletrodo era colocado de um lado da cabeça do doente, acima das têmporas para ser exato.

Em 1938, os neuropsiquiatras italianos realizaram a primeira experiência, em um paciente, que possuía uma história de muitas internações e que andava pelas ruas de Roma. A melhora que ele apresentou depois da aplicação do eletrochoque reforçou a ideia de que realmente o estímulo elétrico poderia ser utilizado para induzir convulsões, para fins terapêuticos. Posteriormente, por ser considerado um método de fácil aplicação, o eletrochoque rapidamente se espalha pelas instituições psiquiátricas, fazendo com que o período fosse conhecido na história como a Era dos Eletrochoques.

Na década de 1940, a terapia de choque era tão popular que era feita em regime laboratorial.

No Brasil, dentro dos manicômios e nos hospitais psiquiátricos, o eletrochoque começou a ser associado ao castigo físico e ao controle do paciente, em 1960, sendo referenciado como prática de tortura e punição, aplicado no paciente acordado, sem anestesia e de forma brutal. Após a aplicação do método do choque, o paciente poderia ter algumas reações, como o desmaio, vômito, e se o paciente fosse um pouco mais sensível como crianças e idosos, os ossos eram quebrados. Tamanha era a voltagem do choque, tendo em vista que os médicos da época não possuíam equipamento suficiente para a verificação e controle da voltagem que seria aplicado.

Na década de 80 é abolido o eletrochoque dos hospitais psiquiátricos, mas ainda nos dias atuais pode ser utilizada em últimas instâncias, como recurso no tratamento da esquizofrenia catatônica, quando o paciente apresenta períodos de passividade e negativismo, ou em pacientes que vivem a depressão.

Márcia de Macedo Soares é médica psiquiatra no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, descreve como é utilizada a técnica do eletrochoque atualmente: A aplicação pode ser realizada com o paciente internado ou em ambulatório. Neste caso ele pode ir até o local apenas receber o eletrochoque e voltar para casa. O preparo inclui o jejum, pois o paciente receberá à anestesia. Ao chegar ele é recebido por uma equipe de enfermeiros e psicólogos. Depois é conduzido a uma sala, onde será anestesiado e receberá relaxamento muscular, oxigenação e monitores cardíacos, cerebrais e de pressão arterial. A partir de então é aplicado um breve estímulo através de dois eletrodos que são colocados na parte frontal da cabeça, o suficiente para induzir a convulsão que é vista apenas no monitor do eletroencefalograma. O procedimento, dura em média 30 minutos, e o paciente é acompanhado por um médico anestesista e por um psiquiatra. 10

10

Eletroconvulterapia – Entrevista: https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/eletroconvulsoterapia-entrevista/

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lobotomia A lobotomia foi uma prática recorrente nos hospitais psiquiátricos do século XX. Estava associada à eletroconvulsoterapia, que era aplicada previamente nos pacientes como alternativa à anestesia. É uma técnica que, ao destruir a substância branca dos lobos temporais do cérebro, provoca uma alteração da personalidade. Essa prática era recomendável em casos definidos como extremos, que tinham ligação com a agressividade, provocando uma degradação cerebral irreversível.

A prática cirúrgica da lobotomia era um dos métodos que também possuía a lógica de tortura e controle do indivíduo, ligada à violência, causadas no âmbito dos hospitais psiquiátricos, afinal o processo de lobotomia danificava o cérebro permanentemente.

Em 1935, Walter Freeman (1895-1972) e o neurologista português Antonio Caetano de Abreu Freire Egas Moniz (1874-1955) foram inspirados por um experimento realizado em um chimpanzé apresentado no Congresso Internacional de Neurologia em Londres. A partir do experimento, foi observada uma mudança no comportamento do animal que, antes selvagem, tornou-se dócil. No mesmo ano realizavam as primeiras cirurgias em pacientes psicóticos.

Egas Moniz veio para o Brasil no ano de 1928, com o intuito de divulgar e auxiliar os neurologistas brasileiros na aplicação da angiografia cerebral através do contraste, que agilizava o diagnóstico de deficiências neurológicas.

Augusto Brandão Filho (1881-1957), professor de clínica cirúrgica da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, durante a visita de Moniz, recebeu orientação do neurologista, e tornou-se o pioneiro na técnica de lobotomia no país. A ligação entre os neurologistas brasileiros e europeus fez com a angiografia e a psicocirurgia chegassem aqui em poucos meses. É possível definir psicocirurgias como “operações sobre o cérebro que modificam as disfunções mentais e de comportamentos”. 11 A psicocirurgia chega às instalações do Juquery em agosto de 1936, quando Aloysio Mantos Pimenta opera os dois primeiros pacientes a terem seus lobos frontais danificados. A partir de então, médicos passam a utilizar a técnica em outras instituições.

Jamais houve explicação que comprove a eficácia da técnica invasiva e violenta que foi aplicada por cerca de 20 anos no Brasil, que submeteu mais de 1000 pessoas, incluindo crianças. Procedimento esse que trazia diversas complicações, incluindo hemorragias, inflamações, infecções, além de paraplegia e sequelas irreversíveis.

A lobotomia foi intensamente realizada nos pacientes em hospitais psiquiátricos brasileiros entre 1942 e 1956. Em 1944, ocorre o primeiro procedimento em massa, com 160 operações realizadas em internos do Juquery, sendo todas mulheres.

Embora o método da lobotomia tenha sido classificado como uma técnica neurocirúrgica, o intuito era realizar uma modificação de comportamento ou eliminar os sintomas dos transtornos mentais. O objetivo era poder intervir em uma região cerebral, os lobos pré-frontais. Não necessariamente o paciente possuía alguma desordem mental, o que segue a mesma lógica do eletrochoque, de controle e domínio do outro. A crítica é feita justamente por não reparar os danos, mas sim modificar o comportamento dos 11

Conselho Federal de Medicina: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20576&catid=46:artig=

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pacientes, que já sofriam com o cuidado precário que o hospital oferecia.

A técnica cirúrgica passou por muitas transformações. Em 1946, Walter Freemam faz uma inovação no método, criando a “lobotomia transorbitária”, o último estudo de psicocirurgia realizada no Brasil. Para que fosse aplicada a técnica o paciente teria que ser submetido a uma série de aplicações de eletrochoques, até que ele perdesse a consciência e fosse submetido à técnica invasiva da lobotomia.

O procedimento foi abandonado no Brasil na década de 50, tão rápido quanto o início da história. Com os avanços nos estudos de neurologia, novas técnicas se formaram inclusive a chegada da Psicofarmacologia, que tem como objetivo estudar os efeitos das drogas sobre as funções psicológicas, com o foco nas alterações de humor, emoções e habilidades psicomotoras, em seres humanos.

Em 1952, os pesquisadores franceses Jean Delay e Pierre G. Deniker obtiveram resultados positivos na ação de psicofarmacologia, com uma nova substância química, a clorpromazina, que poderia exercer influência no processo psíquico. O medicamento revelou-se capaz de reduzir a agitação psicomotora e diminuir a atividade alucinatória e delirante do doente mental. A partir da chegada da clorpromazina, inicia-se uma nova fase da psiquiatria.

“cuidar sim, excluir não” Atualmente, existe uma luta diária para que usuários da saúde mental possam receber um tratamento mais humano e que sejam tratados pela sociedade de forma digna, respeitando a limitação que cada um possui.

No fim da década de 70, alguns movimentos ligados à saúde mental, denunciaram a violência que era cometida em instituições psiquiátricas. Além da precarização, permanecia reflexo o autoritarismo do governo no interior dos hospitais. Daí surgiram os movimentos de trabalhadores de saúde mental, que colocaram em evidência a necessidade de uma reforma psiquiátrica no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) contou com a participação popular, principalmente por parte da família dos pacientes, além do Movimento Sanitário. Foram esses os dois responsáveis pela iniciativa da reforma psiquiátrica brasileira.

No dia 18 de maio de 1987, foi realizado um encontro, para discutir as políticas antimanicomiais. O encontro surgiu com a proposta de reformar o sistema psiquiátrico brasileiro. Pela relevância, a data tornou-se o Dia da Luta Antimanicomial. Com o intuito de acabar com as práticas violentas, nos hospitais e manicômios, possuía o projeto de reforma psiquiátrica, buscando substituir os métodos utilizados até então por um tratamento mais humanista, encorajando os pacientes a viver a cidadania, fortalecendo os laços familiares, ao invés de excluí-los.

A partir da reforma, a lógica de internação deixou de existir, sendo substituída por atendimentos psicológicos, atividades alternativas de lazer e tratamentos que não fossem invasivos, como no passado. A família passou a ter papel fundamental na vida daqueles que possuem patologias mentais, sendo a responsável por eles em todas as instâncias. O Movimento da Luta consistiu principalmente no diálogo de conscientização com as instituições legais e com cidadãos que elaboraram um discurso que consistia

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em defender que os doentes mentais não deviam representar ameaça social.

O respeito ao “ser diferente” seria um grande componente para sua recuperação.

Porém, foi necessário, e ainda é, uma reeducação da sociedade no modo de compreender os transtornos, não como o estigma que foi criado, mas como um modo de estar e viver no mundo. O respeito e a conscientização ainda são indispensáveis para reformular o modo como os pacientes eram tratados nas instituições. É notável que o estigma do insano na sociedade ainda é visto como perigo e ameaça, e por isso é necessário que exista uma reeducação por parte da sociedade. É preciso ressaltar que a reforma psiquiátrica teve inicio nos anos 80, mas foi na década de 90 que novas práticas foram aplicadas para a saúde mental no Brasil. Aos poucos, os tratamentos nos hospitais deram espaço aos atendimentos humanitários.

Desde 1990, o Hospital do Juquery mudou sua lógica de internação e passou a não receber pacientes para viver em isolamento, dando início à tentativa de inserir os internos, na sociedade. O hospital tentou contatar a família dos “loucos”, mas muitos já não possuíam laços afetivos com seus familiares, pois estavam internados há mais de uma década. Aqueles que possuíam uma certa consciência e independência foram transferidos para casas terapêuticas, a fim de que voltassem a ser inseridos na sociedade, vivendo de forma independente, tendo acompanhamentos semanais, com psiquiatras e psicólogos. Mas ainda hoje existem 53 pacientes que vivem internados, sob a tutela do governo, pois são completamente dependentes de cuidados, além de terem ficado mais de 30 anos sob o regime sanitarista e não possuírem capacidade estrutural para serem reinseridos na sociedade.

Através das leis federais 8.080/1990 e 8.148/90, foi estabelecida a Rede de Atenção à Saúde Mental, juntamente com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). As leis atribuem ao Estado a responsabilidade do tratamento em comunidade, não mais o isolamento, mas sim a possibilidade de inclusão dos diferentes, contando com auxilio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UAs), e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III). 12 A lei federal 10.216, de 2001, deu origem ao CAPS, que possui serviços públicos oferecidos em unidades, com tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo, atendimento individualizado, além de rodas de conversas, oficinas e terapias individualizadas e em grupos. O CAPS é dividido em determinadas modalidades, de acordo com a demanda de cada município. O CAPS I possui a responsabilidade de atender o público com transtorno mental mais severo e persistente em cidades, com o número de habitantes inferior a 70 mil; o CAPS II segue a mesma linha do CAPS I, porém sua população deve ser acima de 70 mil habitantes; já o CAPS III, além da população ser acima de 70 mil, possui o funcionamento 24 horas, incluindo finais de semana; o CAPS ad, presta atendimento ao público com problemas de uso excessivo de álcool e outras drogas. Por último o CAPS IJ, presta serviço a dois tipos de públicos: tanto os pacientes com doenças mentais, quanto dependentes de álcool e drogas em geral, com um diferencial que é o atendimento do público infanto-juvenil.

O tratamento intensivo tem objetivo de reinserir o paciente na sociedade e havendo 12

Luta Antimanicomial: https://www.politize.com.br/luta-antimanicomial-o-que-e/

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Os serviços de internação fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que substitui o confinamento em hospícios, priorizando um tratamento que tem como finalidade a autonomia do paciente.

Apesar de ter sido criado em 2001, o Centro de Atenção Psicossocial só iniciou seus trabalhos na cidade de Franco da Rocha recentemente, no dia 28 de novembro de 2014.

A unidade trabalha em busca da integração e reabilitação das pessoas que possuem transtornos mentais.

O serviço prestado pela Rede de Atenção Psicossocial é o primeiro a ser implantado no município de Franco da Rocha, e atua no acesso à cidadania das pessoas com sofrimento psíquico, além daqueles que foram institucionalizados há anos no Hospital Psiquiátrico do Juquery.

Psicóloga, com 13 anos de atuação no SUS, Ana Paula Batagin Andreto tornou-se gestora do CAPS II de Franco da Rocha. A psicóloga e gestora relata que o complexo do Juquery teve épocas importantes e foi completamente autossustentável em termos de bens e serviços, mas com sua superlotação, a proposta se perdeu e acabou tornando-se um campo de concentração e tortura, que na verdade originou-se o fim total da instituição. Com o movimento da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, notou-se a importância e a necessidade do cuidado em meio à ressocialização, que é fundamental para qualquer tratamento em patologias mentais.

A luta pela reforma é constante e essa necessidade foi confirmada no dia 6 de fevereiro de 2019, quando foi divulgada, pelo Ministério da Saúde, uma norma técnica que reorienta as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental. Em meio às alterações, constavam a compra de aparelhos de eletrochoques, possibilidade de internação de crianças em hospitais psiquiátricos e abstinência forçada para o tratamento de pessoas dependentes do álcool e outras drogas.

O documento, com 32 páginas, retira a política de redução de danos, adotada pela lei da reforma psiquiátrica, criada em 2001, que define as diretrizes humanizadas no tratamento de pessoas com patologias mentais. A norma, técnica, que foi retirada do site do Ministério da Saúde gerou agitação, na comunidade psiquiátrica. A lei 10.216, que estabelece a reforma psiquiátrica, foi lançada após 12 anos de debate no Congresso e na sociedade, desta forma entende-se que a declaração que a norma técnica traz é um ato de desrespeito à democracia. .

vozes da memória ii Maria Elisabete Ferreira de Palma cresceu correndo pelos pátios e jardins do Juquery, enquanto sua mãe trabalhava como telefonista da instituição. Ela passava as horas de seu dia sempre muito próxima dos internos que tinham a permissão de andar pelos arredores do hospital. Elisabete via apenas os mais tranquilos e por isso tinha uma visão distinta do restante dos moradores da cidade.

- Porque, assim, na escola se a gente aprontasse alguma coisa, os professores diziam “cuidado que tem um interno solto por aí e a criançada morria de medo”. Eu não

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tinha tanto medo, pois tinha outra experiência. É por isso que Elisabete acredita que as experiências marcam muito, pois cada um vive com sentimentos produzidos por elas e da mesma forma indivíduo poderá responder, a partir do histórico.

Muitos momentos marcaram a infância da pequena Elisabete, mas algo que ela jamais esquecerá é dos dias que passava com o interno Carlito (Carlos Furine). Na época, ele morava em um quartinho que ficava na portaria do hospital, e trabalhava na própria portaria. Andava na cidade, era bem conhecido dos moradores e as pessoas não tinham medo, até porque ele andava arrumado, de terno e sempre com seu chapeuzinho. É claro que possuía algumas características de interno no jeito de andar e de se comportar, mas na maior parte da cidade, ele passeava tranquilamente.

Carlito, como era chamado, frequentava bastante a casa de Elisabete. Quando sua mãe não estava, ele a colocava de pé em cima de um banquinho e rodava a manivela do telefone, para que ela pudesse falar com a mãe: “olha estou indo pra escola”, “olha já voltei da escola”.

- Ele me dava os livros que ganhava da família dele, alguns clássicos da literatura, então eu desenvolvi um hábito gostoso de ler por conta desse incentivo.

E assim a menina Elisabete cresceu, andando de forma tranquila pelos espaços permitidos dentro do Juquery. O fato da cidade não possuir praças - como ainda não possui - fazia com que as crianças e adolescentes se interessassem em ir brincar nos limites do Juquery.

- Os jardins eram lindos e era onde a gente ia brincar andar de bicicleta, jogar bola no campo, soltar pipa, namorar nos jardins. O prédio central abrigava uma biblioteca que frequentávamos para fazer os trabalhos escolares. Era natural.

Toda essa vivência durante a infância e adolescência, colaborou para que Elisabete escolhesse seu futuro profissional. Enquanto crescia dentro dos muros do hospital psiquiátrico, se questionava o porquê deles estarem presos, ela podia ver o outro lado dessas pessoas, um lado em que a “loucura” não seria um problema. Mas é claro que nunca lhe foi permitido adentrar as colônias e batalhões, mas ela via, ouvia.

Elisabete foi crescendo, e vendo sua facilidade em conversar com amigos, escolheu a Pedagogia e se interessou pela dificuldade de aprendizagem. Lembrando-se das coisas que via no Juquery, decidiu então cursar Psicologia para complementar.

Em 1988, a nova psicóloga Elisabete começa seus primeiros trabalhos justamente no Hospital Psiquiátrico do Juquery, após ser aprovada em um concurso público.

- Na época, a política de saúde mental ditava que os ambulatórios destinados às patologias mentais deveriam estar na comunidade. Já existia uma política de que não se internava como antes. A lógica de que “uma vez louco sempre louco”, vindo até o hospital psiquiátrico e fazendo a internação, não existia mais.

A psicóloga começou trabalhando com uma equipe de saúde mental, em ambulatório localizado na Rua Benedito Fagundez, paralela ao rio Juqueri. A equipe trabalhava atendendo as comunidades a fim de evitar que os casos se intensificassem. “Vamos atender os casos que já não são da atenção básica, são classificados como casos mais sérios, mas que precisam de uma intervenção, para que a internação seja evitada”.

As politicas de saúde mental continuavam evoluindo e em 1990 a política ditava que “os ambulatórios de saúde mental, deveriam estar nos municípios, não mais fora

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da cidade.

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- A saúde mental passou a ser entendida como uma especialidade e não como uma doença em que o paciente que deveria ser apartado.

Elisabete utiliza o exemplo de uma mulher grávida. Se ela tiver um surto, a medida a ser tomada não é a internação, pois o problema pode ter sido desencadeado por outros fatores e isto é algo que deve ser investigado de forma global. O indivíduo não deve ser excluído a partir de um surto, a lógica não necessita ser mais essa.

A partir do momento em que o ambulatório deixa de ser especializado e passa a ocupar espaço dentro do laboratório de especialidades, dentro do próprio hospital, Elisabete sai do ambulatório de especialidades e vai para a unidade de saúde mental do próprio município, seguindo em outro segmento.

- A gente sabe que a política de saúde mental, começa na saúde básica, utilizando equipamentos que diminuam o estresse, por exemplo, para que assim se entendam as problemáticas psíquicas e que ofereçam possibilidades do paciente lidar com esse fator, mantendo o vínculo com a escola, trabalho, família e amigos. Realizando efetivamente a saúde mental e não o adoecimento.

Após algum tempo realizando articulações do município com o estado, a psicóloga foi para o estado, como articuladora estadual de saúde mental. Nessa etapa, Elisabete não tratava apenas de saúde mental na cidade de Franco da Rocha, mas sim em toda região, somando cinco municípios: Francisco Morato, Franco da Rocha, Caieiras, Mariporã e Cajamar. A psicóloga trabalhava na regulamentação da internação nessas regiões.

- Utilizando a internação como último caso do quadro em que a pessoa se encontra, a lógica é que o paciente seja atendido mantendo suas referências pessoais.

Em 2001, quando a internação foi extinta, Elisabete assumiu outra unidade, o Centro Formador, onde está como Coordenadora até os dias atuais.

Mesmo após a internação ser eliminada das politicas de saúde mental, “o Juquery continuou a receber internações do poder público”. “Aquelas pessoas que saíam da penitenciária iam para o Juquey, porque o poder público dizia que tinha que internar até que o caso fosse discutido e houvesse a regulamentação de vagas para que o interno fosse encaminhado a um lugar que possuísse equipamentos que de suporte”.

- A evolução, do conhecimento e do entendimento do que é um transtorno mental ou psicológico, assim como a farmacologia evoluíram muito, fazendo com que as estratégias passassem de muito evasivas para estratégias menos invasivas.

O crescimento da neurociência contribuiu muito para que não fosse mais preciso “abrir o cérebro para experimentos”. Elisabete acredita que foi necessário passar por todas as etapas da psiquiatria, que “eram primitivos” em todos os aspectos, cirúrgicos e farmacológicos. “Não é necessário voltar nesses espaços primitivos para que a assistência continue.”

Com o processo de desinstitucionalização do hospital, nasce o projeto terapêutico, tornando possível o conhecimento da história individual de cada um. “Porque uma coisa é você tentar se aprofundar em 15 mil internos, outra coisa é fazer esse aprofundamento em 2 mil pacientes”.

- Fomos nos aprofundando. Na verdade, fomos descobrindo laços familiares, de onde essa pessoa veio qual o meio que utilizaram para trazer e o motivo que se deu para que ela passasse pelo processo de internação. Tudo isso contribuiu para que fosse

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possível resgatar os laços desses internos, levando essas pessoas de volta para o que um dia foi considerado seu lar.

Além dos laços afetivos, era importante que a casa do familiar que iria receber o interno possuísse o equipamento necessário para o acolhimento. Pois só seria possível a volta do paciente para a família, se a mesma possuísse suporte para recebê-la. “Afinal, essa pessoa ficou isolada 10, 20 e até 30 anos, sem ter o convívio familiar, então como é que você irá lidar com a situação? De que formar será feita a reinserção?” Em cada etapa desse novo processo a família precisou de um aporte, a visita do profissional que acompanhava o interno junto com o novo profissional que irá dar continuidade ao tratamento, de forma humanista com o propósito de inseri-lo na realidade.

O processo de resgate do vínculo entre o antes interno com a família sofre alguns contratempos pelo caminho, pois em alguns casos o paciente não reconhece o familiar, por ter sido isolado da realidade por um período de tempo muito grande. Nesses casos, a família pode não se sentir confortável e nem possuir as ferramentas necessárias para recebê-lo, e por esses motivos é que alguns são reenviados para casas terapêuticas.

A transferência dos internos para as residências terapêuticas seguiu os critérios inseridos na Le: “se o paciente nasceu naquela cidade, se possui ou não referência e até mesmo se existe outras pessoas que também viveram a internação, no local”, explica a psicóloga. Tudo isso contribuiu para a decisão do tipo de residência, pois a vivência que os internos tiveram no decorrer dos trinta anos de internação, traz a criação de laços afetivos e até familiar entre eles.

“Ainda existem, hoje, uma média de 60 internos no Juquery, que estão em processo de rinserção na sociedade”. A maioria deles não possui autonomia psicológica suficiente para aderir à independência, e por esse fator recebem cuidados de acordo com a maior e menor dependência de cada um.

Elisabete vive no mundo da psiquiatria há 21 anos e durante esse tempo o acompanhamento foi sendo realizado de forma muito diferente, sempre procurando alternativas para que as pessoas não precisassem da internação.

- A gente sabe que a convivência social é de extrema importância para o restabelecimento de vínculos e de sentidos, que é isso que atrai e que melhora a saúde mental, e não o contrário, que é o que a gente já viveu.

Para Elisabete, a evolução da psiquiatria é um ganho para toda a sociedade.

- Os transtornos relacionados à saúde mental foram vistos como uma doença que precisava ser excluída. Mas se a gente ampliar esse olhar para outras coisas, vai ver que ela foi um dos fatores de estigmatização e de exclusão, não muito diferente do que é hoje imposto ao usuário de droga e ao paciente do alcoolismo. Quando eu digo que é um ganho para a sociedade, é porque eu vejo que temos muito a ganhar com o convívio entre as diferenças. Começar a escutar o outro, pensar como uma possibilidade de evoluir, na generosidade, solidariedade. Não olhar para o diferente como alguém que você tem que manter afastado, até porque todos nós somos esquisitos.

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“SE QUEREIS OS NOSSOS CADÁVERES, PODEIS TOMÁ-LOS; MAS SÓ OS CADÁVERES; NÃO LEVEIS A NOSSA HONRA, O NOSSO CRÉDITO, OS NOSSOS DIREITOS.” O Alienista - Machado de Assis

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SOBREVIVENTE “A evolução que se deu ao longo dos anos, no campo do conhecimento e da compreensão sobre o que é de fato um transtorno mental ou psicológico, juntamente com a farmacologia evoluiu muito, então a gente passou de estratégias muito invasivas para estratégias menos invasivas possíveis.”

Ex-interno do Hospital Psiquiátrico do Juquery Antônio Rosa Satílio 56 anos.

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ra 00h00, em algum lugar da cidade de Cajamar. Ele estava vestido com uma roupa branca, colete preto, cabelo por cortar e a barba por fazer. Satílio só podia ver a escuridão que o cercava de todos os lados, quando finalmente avistou alguém. “Você não pode ficar aqui, você esta louco. Quer ir para o Franco da Rocha?” A pessoa referia-se ao Hospital Psiquiátrico do Juquery. Em meio ao barulho dos seus pensamentos, ele se questionava: “Franco da Rocha? Onde é isso? Será que alguém irá comigo?”. Naquele instante apenas respondeu: “Me leva. Se lá tem internação, pode me levar. Me leva”.

E assim foi feito, Satílio entra na ambulância acompanhado do enfermeiro e do motorista, que segue em direção ao hospital psiquiátrico. Logo que chegou pegaram sua identidade e o encaminharam para a médica daquela madrugada. Ao ser questionado sobre o que estava acontecendo, Satílio fecha os olhos.

- É que meu juízo está meio atrapalhado, sabe? Está tudo bagunçado. Tudo e estou sujo.

Ao ouvir a resposta, a médica orientou que o enfermeiro o levasse para dormir, e lhe injetasse uma medicação, colocando-o na ala masculina do hospital.

- Minha cabeça era confusa, eu tinha pesadelos com toureiro, búfalo, cavalo, essas coisas. Eu via, mas não entendia o porquê. Minha cabeça doía, doía muito.

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Quando acordava dos pesadelos pela manhã, Satílio se deparava sempre com uma enfermeira, na maioria das vezes com café e pão. Havia também nesses momentos outro interno, que Satílio consegue sutilmente descrever como um homem careca com barba e roupa de hospital. Esse mesmo interno em algumas manhãs lhe dizia “olha os gatos na porta” e em seguida complementava “acho que você é artista, aquele dos loucos por cinema”. Satílio então começou a entender que não era o único a ver o que, para os ditos “normais”, não existia.

- O tratamento não era tão bom, mas não tinha muito choque. O problema sempre foi a malandragem e o vandalismo do pessoal, era ruim e eu não me sentia bem.

Com relação ao choque, Satílio não consegue recordar em qual momento de sua vida sentiu a eletricidade percorrer seu corpo, mas afirma que passou por variadas sessões de eletrochoque durante três meses consecutivos.

- Três meses tomando choque no hospital e isso confundia minha cabeça. Depois, eu me sentia ruim, acordava em outro lugar, às vezes no banheiro ou no pátio.

Além dos choques, Satílio recorda as vezes que o mantiveram isolado totalmente e, ao lembrar-se desses momentos, recua como quem prefere não lembrar, inclina sua cabeça, e afirma que “aquele era o tratamento da época, não tinha oque fazer”. Ele devia respeito às autoridades, e assim fazia. Satílio decidiu olhar para a vida com gratidão, afinal continua vivo e isso é o que importa.

Permaneceu internado no Hospital Psiquiátrico do Juquery por cerca de três anos - a data exata desse período se perdeu junto com seu prontuário – até o incêndio que ocorreu no prédio da administração do Juquery no ano de 2005.

Segundo Satílio, o médico Carlos de Melo foi quem lhe deu alta. Ainda confuso, questionou o doutor para onde iria, pois não tinha um lugar para voltar e mais do que tudo desejava ter um lugar para viver. O paciente preocupava-se se esse lugar seria limpo. O médico então o acalmou, informando que seria transferido para a Fazenda São Roque, de ambulância.

A Fazenda São Roque era um Centro Pioneiro de Atenção Psicossocial, também localizada na cidade de Franco da Rocha. Durante o período de funcionamento do Hospital Psiquiátrico do Juquery, os internos que possuíssem uma parcela de autonomia eram transferidos para morar e receber tratamento na Fazenda, com a possibilidade de serem inseridos no futuro em Residências Terapêuticas.

Satílio permaneceu na Fazenda São Roque por cerca de 19 anos, um período que prefere não lembrar, pois afirma ter sido uma época ruim de sua vida, mesmo que o Juquery fosse considerado uma concentração para os internos, na Fazenda era vendida uma falsa liberdade para os pacientes, ali eles continuavam isolados do mundo, sem contar que as pessoas entravam diariamente em conflitos e por isso Satílio não gostava de estar ali, infelizmente a vida lhe preparou 19 anos em um ambiente que para ele era insuportável.

A primeira Residência Terapêutica (RTI) do município de Franco da Rocha nasce decorrente de um equívoco ocorrido na Fazenda. Eles montaram casas para oito moradores e comunicaram que precisariam apenas de cuidados simples. Mas quando os cuidadores chegaram à Fazenda, perceberam que nada era tão simples quanto falavam, pois estariam vivendo ali insulinodepentes e pessoas que possuíam quadros graves de transtorno mental como os esquizofrênicos e que dependiam

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Só, então, em 2015 Satílio é transferido para a Residência Terapêutica, deixando a vida de sofrimento para trás, mas ainda assim se vê diante de obstáculos, a relação dele com os novos colegas da residência.

- As pessoas que trabalham na residência eu gosto, o que não gosto é das pessoas que moram lá. A casa é boa, mas as pessoas não.

Na Residência Terapêutica onde vive Satílio ninguém paga nada, mas ainda assim ele não considera sua própria casa. Ele não escolheu viver com aquelas pessoas e nem elas com ele.

- Quando a gente vive com uma pessoa ruim, a gente fica ruim também. Mas fazer o que, não tenho para onde ir, não tenho meus pais, cresci sozinho. Sou sozinho. Sou órfão.

Desde 2016 frequenta o CAPS II, onde possui liberdade para desenhar. Percebendo o amor que Satílio possuía pela arte, a gestora do CAPS II, Ana Paula Batagin Andreto, cedeu um espaço para que o artista montasse seu ateliê. Passando seus dias entre as telas, Satílio deseja que seus desenhos possam traduzir seus sentimentos. Prefere levar a vida desta forma.

Através da arte, Satílio lembra-se da infância ao lado de sua família. Filho de Isaura e Osvaldo, Antônio Rosas Satílio nasceu em 1963, na cidade de Bauru, interior de São Paulo. Nascido em uma família humilde, o menino Satílio, ao lado de seus pais e dois irmãos, viveu em constante mudança de moradia.

Mesmo sem ficar por muito tempo em uma cidade, possuía o que para ele era o mais importante: o amor e cuidado de sua mãe, com quem possuía uma forte ligação, diferente da relação com o pai, que muitas vezes agia de forma agressiva.

- Meu pai sempre batia muito na minha mãe.

No final da década de 60, a família de Satílio saiu em busca de tentar uma nova vida na grande São Paulo, trazendo apenas as malas nas mãos e a esperança na alma. A família acreditava que aqui poderia encontrar um futuro melhor. O que não esperavam é que seriam abandonados por Osvaldo, o pai, assim que chegassem à estação da Luz. Utilizando a desculpa de que compraria alimento para a família, ele sumiu com o único dinheiro que tinham.

Isaura se viu sozinha, com três crianças e sem dinheiro. Olhava para si e não podia ver um futuro. A única saída que encontrou foi deixar seus filhos na antiga Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que na época funcionava como um abrigo para crianças e adolescentes em situação de rua. Satílio não se recorda de quantos anos tinha exatamente nesse período, acredita que entre 9 a 12 anos. O que ficou vivo em sua memória foi a imagem de uma das cuidadoras.

- Uma das mulheres que trabalhava lá me disse: “Satílio, senta perto da tia.

Olha, um dia, quando você for grande, você será um artista”. Eu tinha desenhado um elefante e ela viu. Foi a primeira pessoa a me motivar.

Satílio recorda-se de ter ficado na FUNABEM com seu irmão, Carlos Satilio Rosa, hoje com 50 anos. A última vez que o viu, ele estava morando em Guarulhos.

Outro ponto de parada de Satílio foi a escola Educa Andrade. Lá, ele continuava desenhando, mas o que não esperava era ter que realizar trabalho manual forçado, carpindo e plantando. Permaneceu na escola até seus 18 anos, tempo limite de permanência.

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- Quando fiz 18 anos, tive que sair e fui encaminhado para trabalhar em uma gráfica. Uma das mulheres que trabalhava no Educa Andrade era dona da gráfica e me colocou lá.

O trabalho que realizava era como ajudante de artes, executando projetos de desenhos no papel. Nesse período, conheceu Daniel, um cinegrafista que ensinou para Satílio técnicas de estamparia, levando-o a conhecer outros artistas. Através do seu talento natural, o jovem foi encaminhando para a Panamericana Escola de Arte e Design, a fim de aperfeiçoar suas técnicas.

Mesmo vivendo entre os rascunhos e desenhos, Satílio se via sozinho, sem sua família. “Após a morte da minha mãe e com instruções erradas, ainda criança, fiquei doente e comecei a ver coisas, desde então meu juízo nunca foi o mesmo.”

- Eu vou pintar minha vida na tela, para todo mundo ver, os médicos, pesquisadores. Para todo mundo ver quem é o Satílio por dentro e por fora, porque só conhecendo que as pessoas poderão resolver o meu problema, que é a esquizofrenia.

Dependente de remédios, o maior sonho de Satílio é casar-se, mas o médico sempre orienta o contrário.

- Eu estou aqui, dependendo do remédio. O médico disse que não posso parar a medicação, não posso casar, não posso ter filhos. É a vida.

Por esse motivo, Satílio faz do seu ateliê seu mundo. “Faço desenhos o tempo todo, o tempo todo, não tenho ninguém, mas tenho a minha arte. Não sei falar, mas sei pintar.” Para ele, isso é motivo suficiente para agradecer.

- Não faço desenho de prédios altos, nem de nada luxuoso, porque eu nunca vivi isso. Gosto de pintar a natureza, transmitir a humildade que sempre foi minha vida, principalmente pintar a casa da minha mãe que me faz lembrar de onde eu vim.

Ao explicar o que gosta de expor nas telas, Satilio para por um momento e solta espontaneamente um “eu lembrei”.

- Por todos os lugares que passei, os desenhos sempre me acompanharam. Às vezes, para fazer os rascunhos, eu só tinha a tela em branco do chão. Apenas na Fazenda São Roque que eu não desenhava muito, gosto nem de lembrar. Mas no Juquery, eu pintava com tinta suvenil, com o psicólogo, no consultório dele.

Ainda no Hospital Psiquiátrico, Satílio foi questionado sobre dois filmes, de qual gostava mais, Zorro ou Capitão Simbad. Na época, Satílio achava que era o Zorro, por ser mais conhecido. Mas hoje ele percebe que gosta mais do Simbad.

“Ele parece comigo, com barba.”

Esse questionamento mexeu tanto com Satílio, que hoje, com seus 56 anos, ele ainda vê no Capitão Simbad, seu filme favorito, aquilo que traz inspiração para sua vida. Tanto que uma de suas pinturas favoritas é uma imagem do Simbad, sorrindo e chorando ao mesmo tempo.

- Esse é o Capitão Simbad, minha obra mais bonita. Nela, Simbad me representa. Está sorrindo e chorando. Agradeço a Deus por estar vivo, mas às vezes choro por tudo o que vivi e por não ter uma família ao meu lado.

Satílio, bem receptivo, termina dizendo uma frase do seu filme favorito: “Isso não é um sonho, mas sim uma profecia”. O filme, feito em 1963, mesmo ano de seu nascimento, trouxe para Satílio um significado só seu. Sua história nunca foi um sonho, mas foi e é real, e ele vai mostrá-la para o mundo através de suas telas.

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star no Juquery, mergulhar um pouco que fosse na história, me fez enxergar o mundo com outros olhos. Ainda temos muito que aprender e, o passado do hospital psiquiátrico tem muito a nos ensinar. A escuridão, aos poucos, vai dando lugar à luz dentro dos muros do hospital, mas não podemos nos conformar, o Juquery é a prova viva de que o estigma do isolamento, exclusão e do encarceramento, existiu. Mas será que evoluímos o suficiente para que o diferente seja aceito no nosso meio? Parece que não, afinal ainda vivemos em uma sociedade segregada.

Poder olhar ao meu redor e refletir que esse foi o cenário que vi assim que nasci.

Pensar que chegara o momento de voltar a ver esse mesmo cenário, agora de forma diferente, afinal eu cresci e, os loucos não ocupam mais esse espaço. O que ficou foram as grandes histórias dos internos cravadas nas paredes.

Andar pelos corredores do hospital trouxe um misto de sentimentos que me envolveram completamente. Voltar ao lugar onde nasci, pesquisar, estudar, sentir a eletricidade pelo meu corpo, mesmo sem estar em uma sessão de eletrochoque. Pude sentir o desespero de olhar para as janelas e ver a quantidade de barreiras, mesmo sem estar por trás delas. Adentrar a rotunda, observar as quatro paredes brancas à minha volta e, em seguida, entrar em pânico mesmo que com a porta aberta.

Ir até o pátio e admirar o céu. Por um momento poder soltar a respiração, enfim, estar livre. Ou não? Afinal, ao olhar adiante do lado esquerdo, muros. Do lado direito, portões. A sensação de falsa liberdade entristece e ao fechar os olhos e pensar nos milhares de internos que andaram por esses corredores desde 1898, vivo a sensação estranha de, após 121 anos, poder andar por esses mesmo espaços.

Ainda é possível sentir a escuridão e a angústia que por muito tempo cercou o hospital, mas também se pode experimentar o alívio e a esperança de que podemos ser melhores e que estamos em constante evolução. Contemplar a arquitetura e os jardins faz pensar que a história deve ser conhecida, porque só assim poderemos aprender e não cometer os mesmos erros do passado.

Aos poucos, toda a estrutura do Juquery vai se desfazendo, caindo por terra, assim como a história vai sendo esquecida pela população de Franco da Rocha. O Juquery foi, sim, importante para a nossa cidade. A nossa herança são os “loucos”, mas quem disse que nós não somos? Aliás, ouso dizer que as melhores pessoas são.

Após refletir, olho o mundo aqui de dentro. Depois de guardar na memória cada detalhe, fecho meus olhos e me despeço do meu ciclo, que começou há 20 anos. Até mais Juquery, não sei se voltaremos a nos ver, mas se depender de mim, todos conhecerão essa história.

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viver é estar em uma linha tênue entre a sanidade e a loucura.

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ntre a oucura.

e ninguém poderá entender, a não sermos nós mesmos.

tรณria singu

referências bibliográficas

ASSIS, Machado. O Alienista

CLEBER LEME - Historiador

EVOLUÇÃO DO PLANO DIRETOR

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2005.

SILVEIA, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.

TARELOW, Gustavo. Antonio Pacheco e Silva: psiquiatria e política em uma trajetória singular (1898 - 1988)

Nascid nou o en Por amor colheu? M Transform rante os 4 ter ĂŠ viver

Nascida em 1998, na cidade de Franco da Rocha, Rauena terminou o ensino médio como técnica em administração e cursando espanhol.

Por amor ou intuição escolheu a comunicaçao, ou será que a comunicação lhe escolheu? Mergulhando em um mundo desconhecido, em busca das respostas certas.

Transformou-se em estudante de Jornalismo na Universidade Cruzeiro do Sul, durante os 4 anos, descobriu que Oprah estava certa, “a maior aventura que podemos ter é viver a vida dos nossos sonhos”.

A minha e para sempre Sophi, por ser o meu milagre, através de você aprendi que mesmo nos tempos mais difíceis, nasce um ponto de luz.

Você é minha inspiração.

SONHOS INTER ROM PIDOS

UMA HISTÓRIA QUE SE CONTA

O

lhar para o passado do Hospital do Juquery nos faz lembrar que não é necessário excluir o diferente, mas sim acolher e aprender com a diferença, Sonhos Interrompidos traz à tona pouco da memória do Hospital Psiquiátrico do Juquery, que nasceu entrelaçado com a cidade de Franco da Rocha. Neste trabalho a inspiração se deu pelo interesse em conhecer e penetrar no universo da psiquiatria praticada no município.

Sua fama ultrapassou os limites da cidade, tornando-se conhecido como um dos maiores hospitais psiquiátricos da América Latina. Mas quem estava por trás dos muros do Juquery?