Livro - reportagem - O silêncio delas

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O Silêncio Delas

Por Elioneide Silva


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Texto: Elioneide Beserra da Silva Revisora: Camila Crepaldi e Juliana Gaspar Capa e diagramação: Elioneide Silva e Acza Tertuliano Foto: Elioneide Silva Texto fixado conforme regras do Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).

SILVA, Elioneide. O Silêncio Delas. São Paulo. 2019. 77 p.


Dedico este livro primeiramente a Deus, porque como meu pai sempre diz “Sem Deus não somos nada”.

Papito Obrigado por toda educação, carinho, inspiração, conselhos, preocupação se eu já estava na faculdade e esforços para que eu tivesse a melhor educação possível. Eu te amo. Mãe

Obrigado por toda a preocupação, carinho e cafés feitos às 04h50 da manhã para que eu conseguisse prestar atenção na aula. Sinto muito que você tenha sido privada do estudo quando pesquena, me dói saber que talvez você nunca conseguirá ler este livro. Eu te amo.

Mãe e Pai

Obrigado por me encorajar todas às vezes que chorei, obrigado por todas as vezes que vocês pediram que eu tivesse fé e só acreditasse, porque eu iria conseguir. Devo minha vida a vocês.



Sumário Aviso de gatilhos.....................................................................7 Prefácio................................................................................... 9 Capítulos

Ninguém quer falar sobre isso...........................................11 Mulheres são dados reais....................................................19 Primeiros Relatos.................................................................25 Não era amor, era violência............................................... 33 Desembarque pelo lado esquerdo do trem...................... 41 Uma família, duas histórias................................................53 Quero denúnciar!................................................................ 61 Nossas Vozes........................................................................ 65 Posfácio................................................................................ 67 Agradecimentos...................................................................73 Bibliografia............................................................................74



AVISO DE GATILHOS

Este livro é dividido em seis capítulos e talvez você, leitora, precise tomar cuidado ao ler. Algumas coisas aqui podem ser possíveis gatilhos para você. Preste atenção, este livro contém:

Abuso de crianças, Estupro, Violência física, Violência psicólogica, Violência moral, Feminicídio, Traumas Por favor, tome cuidado durante e após sua leitura. Faça pequenas pausas durante a leitura, pense, reflita, chore, grite e principalmente peça ajuda se precisar. Não foi fácil escrevê-lo e sei que não será fácil lê-lo.

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Prefácio

Querido (a) leitor (a) Como falamos acima, este livro não será uma leitura fácil, ele conversará com você diretamente sobre as questões da violência contra a mulher. Este livro não é feito de dados públicos ou privados mandados para à imprensa. Este livro contará a você a história real de nove mulheres. Algumas histórias podem não têm final feliz, é eu preciso te alertar disso. Durante a leitura você irá se deparar com esses nomes: Isabella Nardoni, Rebeca, Elisa Samúdio, Meiriele Santiago, Rayane Paulino Alves, Gislaine Luiza Herval Cerqueira, Eloá Cristina Pimentel e Rosemiriam Adriana de Azevedo da Silva Leandro. Se você recorda de alguns desses nomes, eles foram manchetes de jornais em todo o país, são meninas e mulheres mortas em decorrência do simples fato de serem mulheres. Isabella Nardoni, morta aos cinco anos de idade, pelo pai e a madrastra. Rebeca, morta aos seis aos de idade, pelo pai; Elisa Samúdio, morta aos vinte e cinco anos, pelo goleiro Bruno e seus amigos “Russo” e Macarrão”. Meiriele Santiago, morta aos trinta anos de idade, pelo ex-namorado. Rayane Paulino Alves, morta aos dezesseis anos de idade, pelo motorista de aplicativo; Gislaine Luiza Herval Cerqueira, morta aos dezesseis anos de idade, pelo ex-namorado;

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Elóa Cristina Pimentel, morta aos quinze anos de idade, pelo ex-namorado; Rosemiriam Adriana de Azevedo da Silva Leandro, morta aos quarenta e sete anos, pelo marido. Esses são nomes de mulheres vítimas de feminicídio, alguns desses nomes você sequer se lembra, correto? Outros estão vivos em sua memória como se você estivesse acabado de ouvir o noticiário. Usarei o nome dessas mulheres e meninas que foram silênciadas para preservar a identidade de minhas fontes.

(IN) memoriam a todas as aquelas mulheres que morreram vítimas do feminicídio.

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Capítulo Um

Ninguém quer falar sobre isso Ninguém quer falar sobre isso e essa é a maior verdade que eu posso te contar. Eu mesma me autossabotei muitas vezes.

“Só vou escrever às quatro da manhã, quando a casa estiver silenciosa.” “Só posso escrever quando estiver com todas as entrevistas prontas.” “Só posso escrever com uma xícara de café.” Essa última parte talvez seja a mais verdadeira, porque qual jornalista consegue escrever sem uma boa xícara de café ao seu lado, não é mesmo? Mas os dois motivos que cotei entre outros que não mencionei, era apenas eu me auto sabotando. Falar sobre a violência seja ela física, sexual, psicológica, moral, entre outras, é dolorido. Penso no dia em que atendi o telefone de casa e a amiga da minha irmã, aos prantos, dizia que o meu cunhado havia atirado em, minha irmã e em seguida, em sua própria cabeça. Lembro do frio na espinha que senti, me arrepio até hoje. Logo em seguida, vem a recordação de quando precisei, instantes depois, dizer isso à minha mãe. Lembro de seus olhos cheios de lágrimas ao me ouvir dizer o que havia acontecido à sua filha mais velha. Fiquei parada vendo o meu mundo girar, enquanto sentava na cama e deixava às lágrimas rolarem.

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Olhando a árvore genealógica de minha família, percebo que o caso de minha irmã não foi isolado. Minha mãe nasceu em mil novecentos e cinquenta e oito em um povoado, na epóca, com menos de mil habitantes chamado Ibirajuba, no estado de Pernambuco. Mais tarde ela tornou-se a irmã mais velha de seis irmãos, três mulheres e três homens. Vinda de uma família simples e humilde, o sustento se dava por meio da agricultura do pequeno sítio. Os anos se passaram e minha mãe tentou ir à escola, pois sabia que tinha o direito de frenquentá-la. Mas meu avô, homem machista, com um pensamento completamente deturpado sobre a realidade, proibia todas as suas filhas mulheres de frequentar a escola. “Lugar de mulher é na cozinha ou aqui na lavoura trabalhando, não em escola”, dizia. Uma de suas irmãs por vezes foi para à escola às escondidas e foi nesse tempo que conseguiu aprender apenas os números, até que o pai descobriu e a tirou da escola. Minha mãe desde pequena foi uma garota cheia de atitude e vontades, o que lhe custou marcas profundas, existentes até hoje. – A última vez que tentei ir à escola seu avô não gostou. Era dia de plantio de milho. Cheguei no sítio já uniformizada com a farda da escola e meus cabelos presos em duas maria-chiquinhas. Eu amava esse penteado – Olho para o rosto de minha mãe, já abatido pelo tempo e ela me encara fixamente com seus olhos cor de mel – Seu avô nunca gostou que nenhuma filha frenquentasse a escola, mas eu sempre quis estudar e sempre fui muito teimosa – Ela conta sorrindo – Naquele dia estava um sol quente, e eu fui pedir a bênção para ir à escola, foi

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quando seu avô me puxou pelo braço dizendo que eu não iria. Eu bati o pé, cansada daquilo e disse que iria sim. O preço por ter vontade de estudar custou-lhe uma marca de chicote de carro de boi, instrumento usado na época para dar açoites no boi a fim de fazer o animal andar, enquanto puxava a carroça.

– Você sabe como eram às coisas naquele tempo, eu respondi ao seu avô e mereci o castigo. Nenhum filho tinha o direito de falar com o pai daquela maneira. Lembro-me quando era pequena e perguntei pela primeira vez à minha mãe o que era aquela marca em suas costas sem entender na época o peso que aquilo tinha em sua vida. Anos mais tarde, agora já uma mulher formada, percebo que minha mãe tem em seu corpo e em seu discurso, as marcas do machismo, enquanto diz: “Eu respodi ao seu avô e mereci”. Daquele dia em diante, após levar a chicotada, minha mãe nunca mais voltou a pedir ao meu avô para ir à escola. Toda vez que o pensamento vinha em sua cabeça, a marca voltava a doer. Hoje, aos sessenta e um anos de idade, minha mãe não reconhece as palavras, ela talvez nunca consiga ler sua história contada nas primeiras páginas deste livro. Neste caso, o machismo venceu, conseguiu silenciar uma mulher. Por mais que ela tente voltar à escola (como já tentou), a chicotada a traumatizou para sempre. Por mais que ela tente e vá à escola, as palavras não entram em seu cabeça pois até hoje quando ela pega o papel e a caneta, sua marca dói.

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Quando minha mãe contou pela primeira vez essa história, eu sabia que existia algo de muito errado nisso tudo. Quando minha irmã me visitava com um olho roxo ou alguma marca em seu corpo, dizendo: “eu caí da escada”, eu sabia que havia algo de muito errado naquela história. Quando minha melhor amiga chegava na escola chorando dizendo que seu pai batia em sua mãe, nela e nas irmãs e as estavam proibindo de frequentar à escola, no fundo eu sabia que tudo estava completamente errado nas atitudes que o pai dela tomara. Anos mais tarde, já com dezenove anos, comecei a entender que tudo era decorrente do machismo. Mulheres estavam sendo agredidas fisicamente, moralmente e psicologicamente, pelo simples fato de serem mulheres. Diga a uma garota de treze anos que sua irmã levou um tiro e veja seu mundo desabar. Em 2013 as pessoas não usavam o termo “feminicídio” para o que havia acontecido com ela. Quando a TV Record noticiou, lembro de me esconder atrás do sofá, enquanto via meu pai e minha mãe sentados um ao lado do outro assistindo a tudo aquilo. Meus pais e o noticiário apenas me disseram naquela noite “que o marido havia tentado matar a esposa e se suicidado logo em seguida, ao pensar que havia a matado.” Assista a um telejornal e conte quantos casos de feminicídio ou mesmo tentativas que acontecem por semana. Preste atenção, e converse com uma mulher, pois você sempre estará próximo de uma amiga, uma familiar, uma vizinha, uma amiga de uma amiga ou uma conhecida que sabe de alguma mulher que já sofreu ou sofre violência doméstica. Você sempre irá pensar “isso está muito

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distante de mim”, até o dia em que o telefone de sua casa tocar e você recebe a notícia do “assunto” sobre o qual ninguém quer falar. Sempre haverá uma mulher que “caiu da escada”, que “bateu o braço na porta”, entre outras desculpas para não denunciar. Não acredita? Busque na internet pelo termo “mulher agredida por” e a pesquisa retorna com “marido”, “companheiro”, “ex”, “namorado”, “vizinho”, “pai” ou “irmão”. Mais de quinhentas mulheres são agredidas por hora, mostra uma pesquisa feita pelo DataFolha encomendado pelo Forúm Brasileiro de Segurança Pública. Quando perguntadas sobre o que fizeram após a agressão, a resposta dessas mulheres é simples: “nada”. O silêncio delas vem por medo de que a justiça não seja feita e de que eles não sejam presos. O silêncio delas vem porque elas têm medo do julgamento da sociedade, dos amigos e até mesmo da família ou por medo de desestruturar sua família. – Confesso que esse último item mencionado “medo de desestruturar sua família”, eu voltei para escreve-lo quando o livro já estava quase pronto, como o descobri? Uma das minhas melhores amigas Rebeca* contou durante uma conversa entre amigas no laboratório da faculdade, que durante sua infância havia sido abusada pelos primos, mas que não contará a ninguém de sua família por medo de desestrutura-lá. - Convivo com primos que abusavam de mim quando eu era pequena, porque tenho medo sabe? Meu pai é uma pessoa muito ligada à família e eu sei o quão mal isso iria fazer a ele se soubesse de tudo. Hoje convivemos como uma “boa família”, ninguém sequer sonha tudo o

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que aconteceu comigo. Meus primos agem livremente e falam comigo naturalmente como se nunca tivessem tocado em mim e eu faço o mesmo, porque é melhor assim. Eu tenho consciência de que contar qualquer coisa que tenha acontecido no passado iria desestruturar completamente minha família – Ela diz com uma expressão calma, como se por fora aquilo não a afetasse, porém logo vem a próxima confissão – Apesar de nunca ter contato a ninguém da minha família e conviver com cada um deles, eu não confio, sabe? Não fico sozinha com nenhum no mesmo cômodo. Rebeca* ainda confidencializa que aquiriu um trauma, aos vinte e um anos ela namora, mas ainda assim quando o próprio namorado a toca, se esquiva.

- Confio nele e sei que ele nunca me faria mal, mas mesmo assim, eu fico meio tensa sabe? Com o tempo eu contei a ele tudo o que aconteceu, porque algumas coisas aconteceram e eu acabei chorando muito depois, porque lembrei de tudo. Ele me apoia e não força absolutamente nada, a única indignição dele é como meus primos conseguem conviver comigo como se nada tivesse acontecido. Durante o processo de escrita deste livro, essa foi apenas uma das diversas coisas contadas pelas mulheres próximas à mim, que eu sequer imaginava que haviam passado por tudo isso. Não sei se por conta do processo de escrita deste livro elas se sentiram confiantes para desabafar comigo, mas o ponto principal é: Elas começaram a falar e eles terão que ouvir suas vozes.

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Mulher é o sexo frágil Foi o que disseram tanto e por tanto tempo que nós acreditamos. Ou será que fingimos acreditar apenas para não desagradar? Afinal, fomos ensinadas a nunca discordar, nunca reclamar, nunca expor a nossa opinião. Deveríamos sempre ser as filhas, mães, irmãs, tias e avós perfeitas para qualquer homem que estivesse por perto. Balançar a cabeça e sempre sorrir, mesmo que eles digam algo que nos deixe sem graça. Foi exatamente isso que nos foi ensinado, certo? Por muito tempo foi assim, até que algumas de nós resolveram levantar a voz e foram chamadas de “mulheres à frente de seu tempo”. Simone de Beauvoir (1908-1986), quando escreveu “O Segundo Sexo”, foi taxada como louca por ousar escrever aquilo que estava estampado: “a mulher é o Outro”. O livro da importante autora foi escrito há mais de sessenta anos e as coisas continuam da mesma maneira. Nossas leis continuam sendo feitas por homens brancos, para homens brancos e não foram alteradas a contento. É lindo dizer que temos autonomia sobre nossos corpos, mas será que temos mesmo? O estado e a sociedade continuam nos controlando, dizendo, por exemplo, se devemos ou não ter filhos e quando devemos ter. Sempre fomos vistas como o “sexo frágil”. Biologicamente? Não somos. Mulheres podem levantar tanto peso quanto os homens, mulheres podem ser caminhoneiras, motoristas, aviadoras, pedreiras. Entenda mulher, você pode realmente ser o que quiser.

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Capítulo Dois

Dados são mulheres reais Pergunte a uma mulher se ela se sente segura andando sozinha na rua à noite e se quando ela escuta passos atrás de si, prefere ver o próprio capeta ao invés de um homem. Quando li o livro “Os homens explicam tudo para mim”, me chamou atenção uma parte que tratava do medo de uma jornalista sobre voltar para casa à noite, após trabalhar até tarde. Logo a seguir, o questionamento: “será que essa mulher deveria parar de trabalhar até tarde?”. Aquilo foi um soco no estômago, me vi naquela posição completamente. Sempre que fico até tarde no trabalho penso em como voltarei para casa em segurança. Mesmo contando com aplicativos que me permitam voltar de carro para casa facilmente, nunca me sinto segura quando o aplicativo calcula a rota e aparece a foto de um motorista. O medo não é exagerado, pois basta ligar a televisão e assistir a qualquer telejornal. Você verá em uma única noite, três ou quatro casos de feminicídio. Temos conversado muito até aqui e usado muitas vezes o termo feminicídio, mas você sabe o que siginica? Irei explicar, feminicído segundo a Lei 13.104, de 09 de março de 2015 é: o assassinato de mulheres, tal crime é praticado contra mulheres em razão da condição de ser do sexo feminino, ou seja, mulheres são mortas apenas por serem mulheres. A lei configura-se feminicídio, quando é comprovado as causas, podendo ser: agressão física, pisicológica, moral, tortura ou qualquer outra violência que gere a morte

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de uma mulher. Parece insano, mas ser mulher é isso. Durante minha vida universitária, passei quatro anos descendo todos os dias às 5h30 da manhã uma rua escura de minha casa até à estação. Meu maior medo? Olhar para trás e ver um homem. Isso talvez seja surpresa para alguns, mas o meu maior medo não era ser assaltada, mas sim estuprada. Os números são alarmantes. Somente em São Paulo, em 2018, foram 10.768 casos de estupro e 1.250 tentativas de estupro, esses foram apenas os números registrados, sem contar os que não chegam ao conhecimento das autoridades. Violência sexual pode ser definida como o ato sexual ou a tentativa de obtê-lo sem o consentimento da vítima.

Como se reconhecer uma vítima de violência Ou seja: se teu marido, namorado e ou “ficante” tenta transar com você à força, isso é uma tentativa de estupro. Entenda mulher, que você é a dona do seu corpo e por mais que esteja casada, namorando ou saia para conhecer alguém, você não deve absolutamente nada a essa pessoa. Você não tem que fazer sexo por obrigação matrimonial, você não tem que fazer sexo para agradar homem algum, nem mesmo o seu marido. Às vezes é difícil reconhecer uma vítima de violência. Eu mesma não havia percebido que minha amiga, dias antes de eu escrever esse capítulo, havia sido estuprada pelo namorado. Ela estava há cerca de três anos sem se relacionar com, pois seu último namorado veio a falecer, enquanto eles ainda estavam juntos. Após três anos afastada de qualquer tipo de relacionamento, Eliza Sam-

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udio* pensava ter encontrado um cara legal, separado, há pouco tempo, da ex-esposa. O relacionamento dos dois, que tinha pouco mais de quatro meses, estava indo bem, até o dia em que ela permitiu que seu namorado entrasse em sua casa. Eles começaram a se beijar, ela disse que não estava preparada para nada e ele, naquele momento, disse que a respeitaria. O clima entre os dois “esquentou”, até que, sem proteção alguma, ele forçou tudo e eles acabaram tendo relações sexuais. Na hora em que ela me contou, não percebi, mas agora consigo ver que aquilo foi sim um estupro. Ela foi clara, disse que não estava preparada, ele fingiu entender, mas logo em seguida a forçou. Você, mulher, consegue entender a gravidade do problema? A partir do momento em que você está em um relacionamento com alguém, dificilmente irá conseguir enxergar-se como vítima de uma violência sexual. Perceba os sinais e fique atenta, pois você não deve sexo a homem algum. Apesar de estarmos em pleno ano de 2019, ainda existe uma falsa moral conservadora que tende a culpabilizar a vítima pela violência sofrida. Lembro-me de estar no ônibus voltando do trabalho alguns dias depois da tentativa de feminicídio da paisagista Elaine Caparroz, mulher de 55 anos anos que apanhou durante quatro horas em seu apartamento. O agressor era um homem com quem ela mantinha contato há cerca de oito meses por uma rede social. Foi, de fato, nessa época que eu estava voltando de ônibus do trabalho e ouvi a conversa de duas mulheres que diziam: “como ela entra em um apartamento com um desconhecido? Ela não se deu o respeito”. Pasmem! Alguém foi capaz de dizer que uma mulher

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não se deu o respeito e por isso foi estuprada. Ainda existe um número muito grande de pessoas em nossa sociedade com uma visão de mundo completamente machista. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado em setembro de 2019, foram 461 homicídios de mulheres e 136 casos de feminicídio, ainda na cidade de São Paulo são 50.688 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica. A conclusão que se chega é que a violêcia, nesses casos, foi cometido por aquele que jurou amor. Mas não quero fazer um livro reportagem apenas com dados. Não quero encher o leitor com um monte de estatísticas que já foram vistas na grande mídia. Quero que você crie empatia, quero que você conheça de perto o relato dessas mulheres. Elas são reais, poderia ser sua mãe, irmãs, tias, amigas ou conhecidas. Quero que aqui, você se enxergue no lugar de cada uma delas, que você troque de lado e entenda por meio desses relatos, que o pesadelo que assombra tantas mulheres não está tão longe assim de você. Violência não é somente quando você leva um tapa. Violência também são palavras que homens usam pra diminuir você, quando não a respeitam, não respeitam seu corpo, tudo isso podem ser, sim, formas de violência. Por favor, sempre preste atenção aos detelhaes de como ele age e fala com você, vocês estando sozinhos ou acompanhados.

Minha ex é louca Quando você conhecer um cara, sempre preste atenção no discuro dele sobre a ex-mulher, ex-namorada

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e ou ex-companheira, o que ele diz sobre ela, diz muito sobre ele. Talvez aquela “ex louca”, não tenha sido tão louca quanto ele diz. Por conta do discurso “você é louca”, existem muitas mulheres que permanecem em relacionamentos abusivos, por ouvir tanto a frase que acabam acreditando que realmente são. Existe um termo chamado gaslighting, um tipo de abuso psicológico que atinge mulheres de maneira sutil, mas pode chegar a uma gravidade tamanha onde a mulher acredita que realmente perdeu a sanidade. Sabe aquela situação onde você claramente sabe que tem razão e ele diz “você esta imaginando coisas?”, então, isso é gaslighting, um abusador.

Era uma vez, um abusador Para que você entenda melhor as sutilezas das situações, vamos a uma história. O homem dizia tudo o que ela precisava ouvir, tudo era quase poesia, ele havia se tornado a personificação do príncipe no cavalo branco. O homem se preocupa tanto, que diz o que ela deve vestir, comer, pessoas que ela deveria ou não conversar. Tudo isso por que “ele me ama e cuida de mim”, ela pensa diante de tudo aquilo. Até que aos poucos se afastou de amigos e familiares, deixou de ir em lugares, pois ele sempre dizia que ela não deveria estar ali. Quando a família começa a reclamar de sua ausência ele diz :“eles não querem ver você feliz” e então ela começa a pensar dessa maneira “minha família só não quer me ver feliz, eu estou feliz assim”. Até que a primeira situação aconteceu, ela viu algo de estranho e ele apenas diz “é tudo coisa da sua cabeça,

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você está ficando louca”, e ela se pergunta “será que estou mesmo? Acho que estou exagerando”, até que os dias passam e a situação continua e ela começa a se questionar “o que estou fazendo de errado?”. Os dias avaçam um pouco mais e a desconfiança de que algo está acontecendo permea os pensamento dela, até que ela o questiona ele diz: “o que? Claro que não! isso é coisa da sua cabeça, ela é só uma amiga, você está vendo coisa onde não existe”. Cansada ela refaz mentalmente seu dia se questionando e repensando cada palavra e atitude, até que pensa “ele tem razão, eu sou burra”. E assim, ela passa a acreditar em todo aquele discurso dito por ele, seu único amor, porque ao final ela está sozinha, acabou se afastando da família e amigos a pedido dele, e ele se tornou a única pessoa que resta em sua vida. Pense um pouco como você acha que isso tudo termina?

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Capítulo Três

Os primeiros relatos Como você conversa com mulheres que sofreram violência? “primeiramente, respire fundo”, foi o que disse a mim mesma. Desde o começo eu sabia que seria difícil, mas quando a primeira mensagem chegou em minha caixa de e-mails, perdi o chão. O primeiro relato que recebi foi da Isabela Nardoni*, ela nunca havia contado o que aconteceu para ninguém, apenas Deus era o único que sabia. Nem mesmo quando virou uma mulher adulta teve coragem e essa é a realidade de muitas mulheres. Ela era uma criança quando aconteceu pela primeira vez. Seus pais não tinham um relacionamento saudável, pois seu pai costumava agredir sua mãe. Com apenas 10 anos, ela não aguentava mais aquela situação de ver a mãe apanhar e então resolveu sair de casa, cansada de presenciar todas as brigas. A menina resolveu, então, morar com um tio que tinha filhos e esposa. As luzes de natal enfeitavam o ambiente. Era seu primeiro final de ano longe de casa e ela e a família de seu tio foram convidados a passar o natal na casa de um amigo da família. Seu abusador, na época, tinha entre cinquenta e doise e cinquenta e quatro anos e era considerado bom marido, pai e avô. A família de seu tio confiava no homem que aparentemente parecia ser uma pessoa confiavél, mas o perigo sempre está próximo. Os abusadores podem ser pais, amigos da família, tios, primos, irmãos e ou vizinhos, o perigo mora a espreita, mais

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perto do que você possa imaginar. Isabella* se lembra de estar sentada no sofá quando ele se aproximou, colocou a mão em sua perna e começou a dizer coisas, que até hoje ela não consegue repetir.

“Na hora senti que meu corpo estava congelado. Não conseguia chorar, gritar ou expressar reação nenhuma. Acho que foi aí que ele percebeu meu pânico e colocou a mão dentro da minha blusa. Começou então à beliscar meu seio com muita força, enquanto se tocava ao mesmo tempo. Aquilo doía tanto que eu apenas pedia a Deus para ter minha mãe por perto, para que de alguma forma, mesmo de longe, ela escutasse meus pensamentos e me ajudasse. Foi então que começou o fluxo de pessoas pela casa, foi quando ele colocou a mão em meu ombro e disse: você não vai contar para ninguém, vai?. Eu não conseguia responder, estava em estado de pânico. Graças a Deus aquela noite teve fim. Infelizmente, o “pesadelo” da menina estava só começando. “As nossas visitas àquela casa eram constantes, e a cada visita a coisa piorava, pois ele sempre encontrava uma maneira de me colocar naquela situação novamente. Até o dia em que ele colocou seus dedos dentro de mim”. O relógio marcava exatamente 5h30 quando li essas palavras. Meus olhos estavam cheios de lágrimas e meu estômago, que havia recebido apenas uma xícara de café, revirava-se. A vontade de vomitar aquelas palavras para fora era tão grande que precisei desligar o computador

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e simplesmente respirar fundo por um tempo, o que na minha cabeça parecia uma eternidade. Mesmo assim o ar parecia não entrar em meus pulmões. Quando tomei coragem para abrir novamente o notebook, a mensagem apareceu brilhando na tela novamente. Meus olhos passaram depressa pelo primeiro paragráfo e quando cheguei ao segundo precisei de um pouco de tempo para assimilar tudo aquilo.

“Quando cansei, contei para meu tio e sua esposa, esperando que de alguma forma, aquele homem que me tocava sofresse as consequências por tudo que havia feito. Foi então que fui surpreendida com a informção de que ele já havia feito aquilo antes. Todos eles sabiam e mesmo cientes de tudo, me pediram silêncio. Me pediram para simplesmente esquecer o assunto. Agora sou uma mulher adulta e mesmo sabendo que ele já está morto, parece que ele morreu e deixou minha boca costurada. Peço a Deus que seja lá onde aquele homem esteja ele não tenha paz, pois eu não tenho. Hoje sou mãe de uma menina e tenho medo por ela”. Quando ela mencionou o medo por sua filha, senti medo por minha sobrinha pequena e ainda sinto. Meus olhos se encheram de lágrimas e sou tomada por uma angústia profunda todas às vezes que penso nas coisas ruins que podem acontecer a ela.

A pontinha do iceberg Este foi o primeiro relato, foi apenas a “pontinha” do Iceberg, foi a primeira mensagem de muitas que lotaram

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a caixa de meu e-mail ao longo das semanas. O relato de Isabella* chegou até mim por um formulário que disparei à algumas amigas e pedi que elas divulgassem; eu pedia que as mulheres, que se sentissem confortáveis com a ideia, deixassem o e-mail para que eu entrasse em contato. Conforme os e-mails foram chegando, a sensação nauseante foi aumentando cada vez mais e eu sabia quem era aquelas mulheres, eu as reconhecia, por conta dos sobrenomes contidos no e-mail. Algumas mulheres eram minhas amigas, colegas, conhecidas e mães de amigas minhas. Meu maior medo era que alguma delas, naquele momento, pedisse que a entrevista fosse pessoalmente. Entendo que a profissão de jornalista me peça para sempre me distanciar da fonte, mas eu sabia que em alguns casos ali, meu mundo iria desabar. De certa maneira eu as “conhecia”, portanto nunca iria conseguir olhar em seus olhos enquanto elas me contassem suas histórias. Aquela situação era realmente impossível para mim. A segunda possibilidade de entrevista, chegou quando eu estava me arrumando para ir ao trabalho. Eu havia acabado de sair do banho, quando meu telefone tocou e ouvi a voz de Meiriele Santiago* do outro lado da linha.

– Estou entrando em contato por causa do seu livro. – Oi – respondi ainda meio tonta, enquanto terminava de vestir minha blusa – Obrigado por topar e obrigado por me dar seu relato. – Hoje não me dói mais lembrar do meu passado, pois olho para o meu futuro e penso que preciso cuidar de minha filha, para que coisas que aconteceram comigo não se repitam com ela – Enquanto ela falava, eu ouvia

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um choro de bebê ao fundo – Tenho 23 anos e olha viver em um relacionamento onde seu marido é alcoólatra não é fácil, por esse motivo acabei me separando dele e voltando para a casa de meus pais. E ela continuou: “lá retomei minha vida de antes, sem saber o que me aguardava. Instalei uma rede social em meu celular e comecei a conversar com um rapaz de boa aparência, bom papo, enfim, ele demosntrava ser uma ótima pessoa. Meu coração jovem não aguentou e logo me apaixonei por ele. Perdida de amor, acabei aceitando a proposta dele e me mudando para Santa Catarina, lugar onde não conhecia ninguém, além dele. O primeiro mês foi um verdadeiro conto de fadas, ele morava com a mãe, que por sua vez me tratava feito sua própria filha. Mas, foi no primeiro mês que o ciúme apareceu, ele alegava ciúmes da minha família, que conversava apenas por celular comigo. O tempo passou e as crises de ciúmes aumentaram, até que consegui um emprego, já na intenção de juntar dinheiro e voltar para São Paulo”. O sonho do dinheiro próprio foi por água abaixo, ela conta, pois a sogra e o marido começaram a pegar seu dinheiro.

“Nunca consegui a indepêndencia financeira. Ele me forçava a ter relação sexual com ele sem camisinha e então acabei contraindo uma DST sem saber. Logo depois, descobri que estava grávida e a vontade de ir embora e voltar para minha família era ainda maior. Até que ele me deu o primeiro tapa. O motivo? Ele dizia que o filho que estava em minha barriga não era dele e sim de meu

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ex-marido. Daí por diante a minha história piora cada vez mais”. Meiriele* conta que as agressões, com tapas, socos e chutes se tornaram constantes. Seu maior medo era perder seu bebê.

“Contei no trabalho o que eu estava passando e então, como minha sogra trabalhava no mesmo lugar que eu, ela começou a espalhar que eu estava mentindo sobre as agressões e todo mundo acreditou. Eu estava sozinha em um lugar onde eu não conhecia ninguém, eu tinha medo de procurar a polícia e sequer podia ligar para minha família. Procurei então ajuda na assistência social de lá, pedi que eles me ajudassem a fugir para São Paulo. Expliquei toda a situação e lá eles entraram em contato com a minha irmã, que me ajudou com duzentos reais para a passagem. A polícia me deixou na rodoviária e consegui voltar para a casa de meus pais. Quando cheguei aqui em São Paulo, meu primeiro ex-marido me procurou, soube da minha gravidez e disse que me queria de volta. Ele havia se tratado do alcoolismo e então acabamos voltando. Hoje ele não bebe e cuida da minha filha como se ele fosse o pai biológico. Resolvi contar minha história porque meu maior medo é que aconteça com a minha filha o que aconteceu comigo”. Meiriele* ao fim da entrevista conta que não têm nenhum contato com o ex-marido e a ex-sogra.

– Ele ainda me ligou algumas vezes depois que voltei para São Paulo, ele queria voltar, mas eu não aceitei. De

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jeito nenhum eu quero voltar para aquela vida, eu sou feliz agora e quero continuar assim. – E se um dia ele quiser ver a filha, você vai deixar? – Por enquanto o pai que minha filha conhece é meu marido, entende? Conforme ela for crescendo e entendendo, eu vou explicar que ele não é o pai biologico, mas que foi ele quem a criou e amou. Um dia quando ela entender e se ela quiser eu deixo ela falar com ele, mas isso será uma escolha dela.

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Capítulo Quatro

Não era amor, era violência O que aconteceu com Meriele* não era amor, era violência. É difícil acreditar que aquela pessoa que te jurou amor possa te agredir. Nenhuma mulher, quando conhece um alguém, pensa que passará por uma situação dessas. A história de Rayane Paulino Alves* muito se parece com a história de Meriele*. Rayane* acabara de sair de um relacionamento quando conheceu o namorado. No começo, tudo se parecia com um conto de fadas. Às coisas começaram a ficar sérias no relacionamento, portanto eles resolveram morar juntos. Quatro meses após o começo do relacionamento, foi então que veio o primeiro empurrão, o primeiro tapa, a primeira humilhação. Ele começou a jogar em sua cara todo o sustento que ele dava a ela e seu filho, até que as agressões passaram a acontecer na frente de seu filho, fruto do primeiro relacionamento. À noite, ele a espancava e de dia jurava amor. Ela não entendia aquela situação afinal, ele jurava amor e prometia que não iria mais machucá-la. Foi então que Rayane* descobriu uma gravidez. Quando o teste deu positivo, ela achou que sua situação iria mudar, mas as agressões continuaram. Por vezes ele dava socos e chutes em sua barriga enquanto ela, deitada no chão, pensava apenas em proteger o bebê. Quando seu filho finalmente nasceu, ela pensou novamente que

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ele iria mudar, mas nada mudou, as agressões continuaram. Até que ela fugiu, deixando os filhos para trás, para tentar salvar sua vida. O marido sempre usava os filhos, criando dramas psicológicos para que ela voltasse para casa. Por diversas vezes ela se sentiu tentada a voltar, mas sempre lembrava de todas as agressões. A história de Rayane* não acaba com um final feliz como a de Meirele *, que conseguiu voltar para a família e até pelo menos o fechamento deste livro, seu relato era de ter um relacionamento saudável e feliz. Rayane* identificou que era violência e não amor, mas mesmo assim continua se envolvendo em relacionamentos que a expõem aos mesmos tipos de humilhação. Segundo Katia Braz, psicóloga voluntária do Mapa de Acolhimento, plataforma que reúne terapeutas e advogadas dispostas a ajudar mulheres que sofrem ou sofreram com a violência de gênero. Katia Braz é voluntária, por isso atende as mulheres que procuram ajuda na plataforma com atendimento 100% gratuito.

– Atendo muitas mulheres vítimas de violência e muitas delas dizem assim (...) eu quero largar, mas, ele sempre diz que vai pôr fogo na minha casa com os meus filhos e eu dentro (...) eu quero me separar mas, eu sou dependente financeiramente dele, eu não tenho ninguém”, “minha família não me aceita de volta, como eu vou sustentar meus filho ou onde eu vou morar? ”. Katia Braz explica que em todos os casos, sempre há algo por trás que mantém a mulher no ciclo da violência.

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– Existe um grupo que chama MADA, mulheres que amam demais. Neste caso, é uma característica da própria pessoa que acaba escolhendo e se envolvendo com pessoas que tenham aquele perfil de tratamento, porque é o que elas conhecem. Por exemplo, uma criança nasceu e vive com um casal e em um ambiente no qual existem muitas brigas, mas, ainda sim o pai fala que ama a mãe. A mãe fala que ama o pai, mas esse pai é um homem muito violento que por vezes acaba batendo na esposa e na filha. Essa criança associa que relacionamento é isso, que o bater está ligado diretamente a uma relação de amor. Ela confunde o padrão, e aquilo se torna sua crença sobre relacionamento e amor, porque foi essa vivência que ela teve, desde sempre isso foi o exemplo de “amor”.

– Existem as questões particulares da própria personalidade, mas a grosso modo existe essa prática. Se formos pensar pelo princípio do MADA, o que acontece é que essa mulher até identifica a agressão, óbvio, porque a situação da violência é muito dolorido, mas é o que ela sabe. Se alguém a tratar cordialmente ela estranha, porque ela não esta abtuada. Então se ela não tem um acompanhamento, não tem ajuda de um profissional ou de pessoas que vão mostrando para ela que esse não é o caminho, ela vai se mantendo cada vez mais nisso. Ela pode até terminar com esse marido que é violento e abusivo, mas ela acaba se envolvendo com outro exatamente igual. Ou seja, as agressões que aquela mulher viu quando

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pequena, com as junções das palavras “eu te amo”, criaram algum sentido que faz com que ela entenda que aquele relacionamento é real e efetivo, e é o que vale a pena ser vivido. Assim, ela não consegue viver outro relacionamento que seja diferente. Sobre as mulheres que mesmo após a denúncia acabam retirando a queixa e continuam a viver com seus parceiros, Braz explica:

– Essa é uma questão bem complexa, existem vários fatores, um deles é o que eu acabo de dizer para você, que tem uma questão muito pessoal no desenvolvimento estabelecido em uma crença, que de repente a pessoa foi tão violentada, tão abusada na infância que ela acaba estabelecendo esse tipo de relacionamento. Existem os casos em que a pessoa vai sendo minada na sua alma, ela vai perdendo o sentido de humanidade. Ela acaba não se reconhecendo e acaba acreditando que de fato a única pessoa que a ama, merece e se preocupa com ela, é o agressor. Ela está com a autoestim tão rebaixada que ela fica pensando “é verdade quando ele diz que quando eu largar dele, eu não vou encontrar ninguém, olha como eu estou, destruída e acabada.” Normalmente quando uma mulher acaba vivendo em um situação de violência, ela fica fisicamente destruída por conta do sofrimento. Existe ainda a pressão da sociedade em estar com alguém e a depêndencia emocional de estar com alguém, e ela acaba não querendo correr o risco não encontrar ninguém e pensa “é melhor ficar com ele”.

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– Ela fica tão desacreditada de si mesma, que acaba permanecendo ou voltando, porque ela quer amor, carinho e atenção. Ela quer ser desejada, e o homem normalmente faz juras de amor, porque existe um ciclo da agressão. O ciclo começa com xingamentos, destratos, humilhações, e depois a agressão física e logo em seguida a lua de mel, onde ele chora e promete que nunca mais vai repetir isso de novo. Nesta parte é onde ele diz que a ama, e apenas perdeu a cabeça e logo começa tudo de novo, “claro que eu perdi a cabeça, você não presta”, “claro que eu perdi a cabeça, uma mulher tão burra desse jeito”. E então recomeça as humilhações que acabam em agressão e novamente na lua de mel, se tornando um ciclo onde a mulher fica presa. Braz, compara a situação da mulher que vive no ciclo mais ou menos como a dependência do usúario de drogas.

– O dependente químico, entende que a droga não faz bem, ele sabe que aquilo esta o destruindo fisicamente, mas existe um ligação tão grande, que ele entende que talvez sem a droga ele não sobreviva. Então ele acaba sucumbindo e voltando sempre. Cada caso é um caso Existe uma particularidade para cada caso de mulher que continua vivendo no ciclo da violência, existem aquelas em que o agressor a persegue mesmo no local de trabalho até que ela perca ou emprego, ou por exemplo,

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os casos em que as mulheres retiram as queixas por contas das ameaças a ela, aos filhos ou a família, como pai e mãe da vítima.

– São situações que para quem está de fora isso ela não conta, dificilmente uma mulher que sofre violência, vai falar para alguém “ai amiga eu quero me separar do João, mas eu não posso, porque ele disse que se eu me separar vai me matar”, assim como a amiga não vai dizer “poxa, vamos resolver isso”. A mulher não conta porque tem medo, vergonha, porque ela se sente tão humilhada, que às vezes, perdeu o sentido da vida.

– Quando vemos uma mulher num caso de vivência assim, o que podemos fazer é oferecer ajuda. Contar para ela que existe relacionamento saudável, sugerir que ela procure ajuda profissional, dizer para ela não se sintir culpada, é incentivar que ela procure um trabalho, claro, sempre prestando atenção se você não vai piorar a situação familiar dela, mas incentivar ela a buscar ajuda, ouvi-lá. Desse jeito, você vai colobrar muito para que essa mulher entenda que existe luz no final do túnel. A falta de empoderamento, muito vezes é um dos principais fatores para que as mulheres continuem nesses ciclos de violência, por isso o projetos como o “Tem Saída”, que tem como objetivo empoderar financeiramente mulheres vítimas de violência, onde empressas privadas oferecem vagas de emprego. O importante projeto foi idealizado pela Promotora de Justiça Maria Gabriela

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Mansur e parcerias entre o Ministério Público do Estado de São Paulo, Tribunal de Justiça, Denfensoria Pública, OAB, Secretaria Municipal do Trabalho e Empreendedorismo da Prefeitura de São Paulo e ONU Mulheres. – Quando a gente vai orientando essa mulher e ajudando ela a se empoderar, a resgatar tudo que existe dela dentro dela, no final ela percebe que tem saída e aos poucos vai se desvencilhando da situação. Não dá pra gente falar “não amiga, larga esse cara, ele não vale nada”, não dá, porque tem muita coisa envolvida nesse ciclo, que faz com que a mulher se mantenha nessa posição.

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Capítulo Cinco

Desembarque pelo lado esquerdo do trem Voltemos ao assunto de assistir ao jornal, ligue a televisão ou pesquise na internet por: número de casos de mulheres que sofreram assédio dentro do transporte público e privado. Pode pegar o celular e pesquisar, eu espero. Se você pesquisar da maneira que mencionei, talvez você tenha encontrado o mesmo link que eu e se deparou com uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva, com apoio da Uber. Os números são assustadores né? Vamos nos concentrar na parte da pesquisa que cita a região Sudeste onde 38%, ou seja 416 mulheres entrevistadas, alegaram já ter passado por ao menos uma situação, como olhares insistente ou cantadas indesejadas no transporte coletivo, no transporte por aplicativo e ou taxi. A pesquisa ainda fala que 71% das mulheres conhecem alguma mulher que já sofreu assédio em espaço público. Chegamos então no ponto em que queria relatar neste capítulo. Há dois anos e meio, eu estava indo para a faculdade, correndo de um metrô ao outro como todos os dias para não chegar atrasada. Neste dia em específico faríamos um ao vivo no programa de rádio da faculdade. Uma das pautas do meu grupo era justamente esse, assédio no transporte público, dias antes um caso havia estourado na mídia. Um homem havia sido detido no dia 02 de julho de 2017, ele já tinha sido preso na mesma semana por ejacular em uma mulher dentro de um ônibus e depois

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foi solto pela Justiça de São Paulo pois, segundo a própria Justiça “não houve constrangimento” da vítima no ato. Logo após sua soltura, ele foi detido novamente por atacar uma passageira dentro de um ônibus na região da Avenida Paulista. O homem de nome Diego, segundo a Secretária de Segurança Pública, já havia sido preso quatro vezes por estupro e outras treze vezes por ato obsceno e importunação ofensiva ao pudor, totalizando 17 passagens na polícia. Podemos apenas por um momento pensar que o caso deste homem foi apenas um delírio coletivo de toda a sociedade paulista, e principalmente dos juízes que o julgaram dezessete vezes e o soltaram. Mas, como disse anteriormente não quero trazer para você leitor apenas dados, quero que você tenha consciência que todos esses casos, por mais distantes que pareçam, pode acontecer com você ou com uma mulher que você conhece. Nós mulheres que pegamos o transporte público todos os dias, seja para estudar, trabalhar, passear ou simplesmente exercer o direito de ir e vir quando quisermos, estamos sujeitas a muitas coisas, inclusive o assédio no transporte público. Voltando a história. Naquela mesma semana, teríamos um ao vivo no programa de rádio da faculdade e uma das nossas pautas era justamente aquela, o assédio nos transportes públicos. Estava tudo marcado, meu grupo seria o segundo a entrar no estúdio de rádio, a psicóloga que nos daria entrevista sobre o assunto estava a caminho, até que minha amiga chega assustada no corredor. No momento em que ela saiu do elevador e começou a andar em nossa direção eu sabia que algo ali esta-

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va errado, muito errado. Foi então que ela começou a chorar, nós entreolhamos sem entender nada e a apenas a abraçamos. Nos quatro fomos ao banheiro e lá nossa amiga nos contou, havia acontecido com ela. Ela havia sido assediada sexualmente dentro do trem, no dia não perguntamos os detalhes, apenas consolamos nossa amiga, que precisava de apoio naquele momento. Somente agora, durante a produção de escrita sobre o livro voltei a conversar com Gislaine Luiza Herval Cerqueira* sobre o assunto. Eu jamais poderia olhar nos olhos de uma de minhas melhores amigas e perguntar o que havia acontecido naquele dia. Portanto pedi que se ela se sentisse confortável com o assunto, me contasse o que havia acontecido naquele dia por áudio. Foi quando apertei o play e veio o primeiro choque: aquela não havia sido a primeira vez.

– Ando de transporte público todos os dias, há quatro ou cinco anos. E eu gosto, é rápido, prático e me ajuda a ir a lugares que eu nunca imaginei ir – É assim que ela inicia a conversa – Porém, dentro desse tempo eu já fui assediada algumas vezes. Pauso o áudio para tentar respirar uma ou duas vezes, até que tomo coragem e continuo a ouvir:

– Sofri a violência, através do olhar e no toque também. A um tempo atrás um homem, um senhor de idade já, aproveitou do trem cheio para poder me tocar – tento assimilar suas palavras e relembro novamente de seus olhos cheios de lágrimas no banheiro da faculdade

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no momento em que apenas a abraçamos em silêncio, a memória estava viva em minha mente, como se tudo tivesse acontecido ontem – Ele tocou nas minhas regiões íntimas, como o trem estava cheio eu não consegui sair de perto dele, então sofri calada tudo aquilo e fui para a faculdade em prantos. Tento respirar mais duas ou três vezes e bebo um pouco de água, ouvir o relato de alguém próxima a você que sofreu algum tipo de violência nunca será fácil.

– Era o trem da linha onze coral da cptm. Um trem velho, antigo, era um dia de calor, os trens estavam com problema. Tinha muita gente, lembro de estar de frente para esse homem, eu não olhava para ele. Mas, lembro que ele estava com uma camisa verde e alguns botões abertos, e um cheiro muito forte de cigarro. Gislaine* mora em Poá, região leste de São Paulo, portando precisaria ir até a estação de Guaianazes, para realizar a baldeação até o metrô, o que leva em torno de quinze minutos.

– Ele aproveitou desses quinze minutos, passando as mãos nas minhas coxas, minha cintura e tentando abrir o botão da minha calça. Eu tentava desviar, porém eu ficava com medo de apertar a pessoa que estava atrás de mim, lembro de ficar bufando, para que ele percebesse que eu estava incomodada com toda aquela situação. Lembro que neste dia eu estava rezando o meu terço, com as mãos baixas. A única coisa que eu sabia era pedir a Nossa Senhora ‘Mãezinha por favor, toca no coração

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deste homem para que ele não enconste mais em mim e em nenhuma outra mulher’ Sorrio serena enquanto ouço minha amiga dizer que recorreu a Nossa Senhora naquele momento, sempre admirei que mesmo nos momentos dificeis a fé dela não se abala.

– Fazendo essa súplica, desci na estação de Guaianazes. Eu estava em choque, eu não tive uma reação, sabe? Eu sei que eu só foi cair a ficha quando eu sai do trem e eu estava na estação Luz a caminho do metrô, quando vi uma publicidade bem grande escrito assim: assédio sexual é crime. Quando vi aquilo comecei a chorar, a ficha havia caído quando pensei “Cara, eu acabei de ser assediada sexualmente”, fui chorando para a faculdade e só encontrei forças quando encontrei você e as meninas, naquele momento consegui me restaurar um pouco. Aquele dia ficou marcado na minha memória para sempre. Gislaine* conta que nunca teve coragem para contar aos pais o que havia acontecido naquele dia ensolarado com o trem lotado, enquanto ela corria para chegar a tempo na faculdade.

– O assedio acontece de outras maneiras, por exemplo no olhar, o homem pode não te tocar, mas quando ele fica encarando e metindo dos pés a cabeça, incomoda para nós mulheres. Hoje, quase um ano depois do assedio, Gislaine*

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conta que aprendeu a se defender e assim como Rebeca*, evita ficar perto de homens, quando o trem está muito cheio, ela empurra e sempre diz: ‘Por favor, da um espaço’, sem medo de julgamentos. Entretando, a memória daquele dia ainda à acompanha.

– Eu estava vindo para casa quando um senhor sentou ao meu lado e eu não queria, eu automaticamente me lembrei da situação que havia acontecido. Ele não fez nada de errado, só sentou do meu lado, mas eu me senti incomodada, sabe? Gislaine* desabafa que deu umas cotoveladas no homem ao seu lado e proseguiu o caminhando bufando para perceber que ela estava incomodada.

– Ele não teve culpa, porque não fez absolutamente nada de errado, mas aquilo ficou marcado na minha cabeça. Lembro de outra situação que aconteceu em 2013, quando fui para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro Ela conta que na volta para casa, ainda dentro do transporte público um homem que também havia participado do retiro de jovens da igreja, começou a perseguilá dentro do trem – Ele veio por trás e ficava encostando o orgão dele em mim. Eu saia de perto e ele vinha para mais perto. Eu era muito novinha, tinha entre dezesseis e dezessete anos. A namorada dele estava lá, porque naquele vagão só esta-

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vam as pessoas da igreja. Lembro que eu estava no meio do vagão e eu fui indo e fiquei de frente para a porta e ele atrás de mim. Ninguém percebeu, então eu sofri calada durante a viagem de uma hora. “Abuso sexual é crime”, “Omissão também é violência. Rompa o silêncio”, essas são apenas duas das frases impactadas que se podem ouvir ou ler durannte suas viagens nos trens da CPTM ou do metrô da Cidade de São Paulo. Os anúncios espalhados pelas estações dizem que basta apenas um SMS denúnca no número (11) 971504949 para os trens da CPTM e um para o (11) 973332252 para as denúncias no metrô. O serviço ainda diz que basta a vítima ou qualquer pessoa que queira denunciar o abuso, mandar via sms as características do agressor para que os guardas das estações possam encontra-ló com mais facilidade. Segundo os últimos dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), publicado pelo Governo do Estado, diariamente, as empressas Metrô e CPTM transportam 7,8 milhões de pessoas na região metropolitana da Capital Paulista. Mesmo com a forte publicidade que nos deparamos todos os dias entre o vai e vem dos trens e metrôs, segundo pesquisa dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, com apoio da Uber, 97% das mulheres afirmam que já passaram por situações de assédio sexual no transporte público, esse número não deveria ser baixo? Já que o Governo do Estado investe tanto em publicidade contra o assédio? Se o número é alto, siginifica de que alguma forma, mesmo ouvindo e lendo diariamente os anúncios de como as denúncias funcionam, os agressores

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se sentem protegidos pela densa camada de rostos que circulam dentro dos trens e metrôs, ele sabe que não será pego, por isso sente coragem para continuar.

– Eu como pobre e estudante de jornalismo, chegar aqui no Governador do Estado e falar ‘Olha eu fui assediada’, não vai adiantar. Meu nome só vai para uma lista como milhares de mulheres, que assim como eu foram assediadas. Aprendi a me defender a me desviar. Peço sempre a intervenção de Deus, porque nós mulheres não estamos dando liberdade a ninguém para nos encostar, hoje percebo que só posso contar com Deus, porque nesse assunto o Governo e o Estado nunca irão ajudar. Já em seu último aúdio da entrevista, meu coração dói, porque sei que ela está correta, sei que não podemos contar com o Governo e ou o Estado. É triste admitir, mas denunciar via sms, quando se existe outras milhões de pessoas usando os metrôs e trens não vai adiantar, as pessoas vem e vão e podem ir para qualquer lugar, assim como nossos agressores que podem ir a qualquer lugar e fazer mais vítimas no mesmo dia.

– Hoje eu estou muito mais tranquila pra falar em relação a isso, é pesado, chato. Eu lembro e tenho vontade de chorar, mas eu não posso ficar queita e nem calada. Porque temos tanto medo de gritar? Escrevendo este capítulo, lembrei de vários episódios que aconteceram em minha vida dentro dos trens nesses quatro anos contínuos de uso.

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Naquele dia os trens da linha doze Safira estavam operando com velocidade reduzida, por consequência eles paravam nas plataformas completamente lotados. Esperei pacientemente até que eu conseguisse entrar em algum trem, até que entrei. Como sempre, pego o trem na estação Ermelino Matarazzo, onde eu teria que descer na estação Brás, para fazer baldeação e pegar o metrô, que assim como o trajeto de Gislaine*, leva em torno de quinze minutos, mas naquele dia o trem demoraria em torno de vinte e cinco minutos para chegar até a estação final. Assim que entrei, notei um homem com forte cheiro de bebida próximo à mim, me afastei tentando colocar a bolsa na região das costas para evitar que ele encostasse em mim, mas nada adiantou, ele continuava a se aproximar. Minha cabeça começou a pensar em tudo o que poderia acontecer ali, olhei para o lado desesperada e percebi que estavámos chegando na estação USP Leste, pensei na possibilidade de gritar, mas a voz não saía. Quando a porta abriu anunciando a chegada na estação, meu primeio impulso foi correr para fora do trem, sem olhar para trás. Já na plataforma vi o trem se afastar aos poucos até sumir de minha vista. Encostei na pilastra da plataforma e respirei fundo diversas vezes, eu sentia que meu coração iria saltar para fora da boca, peguei a garafa de água da bolsa e tomei alguns goles, por um instante achei que iria vomitar. O próximo trem apareceu pensei em entrar, mas o pânico tomou conta de mim novamente e paralisei, olhei o trem que estava voltando e pensei em entrar e simplesmente voltar para casa e chorar no colo da minha mãe, mas eu sabia que nunca iria conseguir contar aquilo a ela ou ao meu pai.

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Respirei fundo como faço todas as vezes que sinto o ar sumir ao meu redor e mais dois trens passaram, até que finalmente dei alguns passos e me aproximei da linha amarela que demarcava o limite para a entrada no trem. Quando o trem apareceu, cogitei mais um vez voltar para casa, mas eu sabia que não poderia faltar a aula, então quando a porta se abriu tomei a coragem de entrar.

Eles se sentem realmente seguros Assim que entrei e a porta estava quase se fechando, notei que alguém entrou depressa atrás de mim e logo em seguida a porta se fechou, ao me virar notei que aquele homem estava novamente ali. Ele havia descido comigo na estação e esperado até que eu entrasse em outro trem, naquele momento o pânico já havia novamente se instalado dentro de mim. Ele se movimentou até que sua genitalia ficasse encostada ao lado de minha perna, naquele momento eu não respirava, tentei movimentar a bolsa para impedir que ele encostasse em mim e foi em vão. Pensei que iria vomitar ou desmaiar naquele momento, eu sentia que o ar estava denso e pesado, pensei qual seria a próxima estação e lembrei que o trem não abriria em Engenheiro Goulart que estava a anos fechada para reforma e sim somente no Tatuapé. Naquele momento eu só queria sumir, chorar e gritar, mas nada disso aconteceu. Quando senti que a mão dele iria se aproximar de mim, institivamente arregalei meus olhos que se encheram de lágrimas, olhei de forma despeserada de um lado para o outro, até que um rapaz fez contato visual comigo e disse.

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não.

– Ei cara da um espaço para moça, não fica tão perto

Não sei se ele percebeu o que estava acontecendo, mas apenas consegui assentir com a cabeça devagar enquanto o homem se afastava, no mesmo momento coloquei a bolsa ao meu lado como se fosse um escudo para que ele não encostasse em mim novamente. O trajeto seguiu e o rapaz que havia pedido que o outro se afastasse passou o caminho todo o encarrando, me senti protegida naquele momento e consegui sentir o chão sob meus pés. A estação Tatuapé chegou e meu então possível abusador desceu apressado, respirei fundo aliviada quando senti o trem esvaziando e seguindo caminho até o Brás. Não é fácil lembrar daquele dia e principalmente escrever sobre, pensei muitas vezes se colocaria ou não o meu próprio relato neste livro-reportagem. Lutei contra muitas vezes, mas percebi que seria hipocrisia pedir à outras mulheres que me contassem seus traumas, enquanto eu escondia os meus. A verdade é que tive diversos pesadelos com aquele dia, passei um grande tempo acordando mais cedo e pegando um ônibus que vai até a estação de Itaquera, só para no final não pegar o trem lotado. Meu coração ainda acelera quando a porta do trem ou metrô se abrem e vejo aquela massa de gente. Meu primeiro instinto é sempre colocar a bolsa na parte de trás, sempre carrego um livro na mãos para de que alguma forma, mesmo que minimamente possa proteger a frente de meu corpo. Tenho medo que tudo aquilo volte a acontecer um dia comigo, porque sei que enquanto nós mulheres temos

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medo de gritar, nossos agressores realmente se sentem seguros fazendo tudo aquilo, mesmo que o ambiente esteja cheio de pessoas.

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Capitulo Seis

Uma família, duas histórias Uma família e duas histórias, você irá compreender mais adiante. Para você entender a primeira história, precisamos começar bem do início da vida de Eloá*, ela cresceu sem pai, foi criada pela avó e quando sua mãe se casou novamente seu pesadelo começou a acontecer.

– Minha avó tinha um centro espírita, então eu sempre tentei me aproximar da minha mãe. Eu ia para a casa dela e passava os fins de semana lá, e por diversas vezes acordei com meu padrasto. Eu sempre acordava com ele em cima de mim ou com a mão em um dos meus seios, e essas coisinhas assim, e quando criança a gente tem medo de tudo, não sabe né, não entende. No final, a infância conturbada de Eloá* foi o motivo para os traumas em sua vida adulta.

– Eu superei sabe? Mas ainda assim, dói lembrar de algumas coisas do passado – ela desabafa e posso sentir sua fala embargada pela vontade de chorar – No dia em que minha mãe viu meu padrasto tocando em mim, ela me deu uma surra. No final eu acho que o que mais me traumatizou não foi o abuso em si, mas a surra depois. São coisas que interferem na minha vida agora, nos meus relacionamentos, nunca tive nada tão duradouro e sei que é por conta disso.

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A infância de Eloá* nunca foi um mar de rosas, no lugar em que ela deveria se sentir segura era onde mais tinha medo de tudo e todos. Na casa de sua mãe era abusada por seu padrasto e quando estava na casa de sua avó, a figura materna que deveria lhe transmitir cuidado no lugar de sua mãe, a história se repetia.

– Como minha avó tinha um centro espírita, muita gente entrava e saía de lá, muito homem na verdade, e ela começou a se aproveitar da situação. Ela deixava que os homens que frequentavam o centro, tocassem em mim e na minha irmã em troca de dinheiro. Até hoje não sei como consegui ter forças para superar toda essa situação. Quando sua avó faleceu, Eloá* com apenas doze anos na época, precisou voltar a morar com a mãe, onde os abusos do padrasto se tornaram constantes. Aos quinze anos ela começou a namorar e se abriu para o parceiro, contanto todos os seus traumas do passado.

– Quando contei tudo ele ficou indignado e disse que iríamos casar, prometeu me tirar daquela situação, na época pensei que fosse uma promessa em vão como todo homem faz para uma mulher, mas na hora do aperto ele me tirou mesmo. – Ela conta pela primeira vez demonstrando felicidade na voz – Quando me recusei a fazer sexo com meu padrasto pela última vez, minha mãe me colocou para fora e jogou minhas coisas em um saco de lixo pela janela ao invés de me defender, lembro até hoje das palavras ditas por meu padrasto “Se você entrega teu corpo para o namoradinho, tem que entregar para mim também”, então eu me recusei e briguei, e acabei sendo

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posta para fora de casa. Foi então que seu namorado na época a levou para morar com ele, aos quinze anos havia se tornado uma mulher casada e aos dezesseis anos seu primeiro filho nasceu. Nesta época também começaram as agressões verbais, ele a humilhava e ela apenas se calava, dependia financeiramente do marido e agora pai de seu filho.

– Bem ou mal com dezesseis anos ainda se é uma pessoa inocente, eu tinha medo. Não tinha para onde ir sozinha, imagina com um filho. Um ano e meio após o nascimento do seu primeiro filho, sua filha veio ao mundo. O que antes era apenas humilhação e agressão verbal, se tornou o primeiro tapa.

– Meu marido tinha outras mulheres e então ele se achou no direito de me bater. Eu não tinha para quem correr, eu estava sozinha no mundo, ele tirou proveito disso e então começou as agressões, ele me batia e isso percorreu por um ano ou dois. Até que eu comecei a reagir também e foi onde veio a separação. Depois que se separou, o ex-marido continuou perseguindo-a, ele ia até sua casa onde vivia com os filhos e quebrava as coisas e a agredia.

– Nisso foram mais sete anos de inferno na minha vida. Mais sete anos que eu tive que aturar tudo isso mesmo separada.

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Eloá* conta que não guarda mágoas, hoje com os filhos criados, fala com o ex-marido e sua atual esposa. Quando seu padrasto descobriu um câncer ela tentou passar por cima de tudo:

– Até seu último natal em vida ele passou na minha casa, hoje minha mãe mora comigo e eu cuido dela, mas apesar de tudo, essas coisas ainda me machucam. Hoje em dia eu consigo passar pelas dificuldades um pouco melhor, por conta de tudo o que eu já passei. Tenho hipertensão, problema cardíaco por conta de nervosismo e traumas, tudo isso que eu passei acarretou todas essas doenças. Além dessas doenças ela convive diariamente com a depressão.

– Sou uma pessoa extrovertida, mas tenho depressão. Um dia o médico me falou assim: “A depressão é uma luta diária entre você e você mesmo. Você pode tomar o remédio e se tornar dependente dele pelo resto dos seus dias ou você pode batalhar e lutar todo dia pela sua vida”. Eu escolhi batalhar, tem dias em que a depressão é um pouquinho mais forte, e eu perco um pouco a batalha, mas não perco a guerra. Hoje, após criar os filhos sozinha, ela encontrou uma nova pessoa, mas o medo pelos traumas de seu passado e de sua família ainda à assombram

– Meus relacionamentos não duram muito e eu tenho muito medo quando começa uma briga de casal

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comum, eu já corto. Tem algumas coisas na vida que se tornaram traumas, tem gente que tira a própria vida, tem gente que acaba perdendo a vida. Eu tive uma prima que o marido a matou. Duas histórias se cruzam aqui A história de Elóa* acaba aqui e acaba entre muitas aspas bem, mas a vida de sua prima Rosemiriam Adriana de Azevedo da Silva Leandro termina aqui também. Quem relata a vida de Rosemiriam em entrevista é Elóa*.

– Na minha família é um assunto abafado os pais dela não falam sobre o que aconteceu com ninguém a dor de ter perdido a filha foi muito grande. Rosemiriam casou-se muito nova com o primeiro marido e neste relacionamento aconteceram diversas agressões:

– Ela era agredida pelo marido até que ela se separou, e ele a perseguia e ameaçava, com medo ela foi embora. Nos primeiros anos ela não contava para ninguém nem para a família onde ela estava. Depois de fugir de seu ex-marido, ela conheceu um homem e com um tempo resolveu morar com ele e tentar uma vida feliz ao lado de alguém que demonstrava ser tão diferente de seu ex-marido.

– Com o tempo, ela começou a relatar agressões.

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A família pediu para ela voltar para casa e largar tudo. Na mesma época eu estava me separando também e então combinamos de irmos embora juntas para Guaratinguetá. Porém a Rosemiriam era apegada a bens materiais e não queria deixar tudo para ele, como eu fiz. Deixei carro, casa e todas as minhas coisas para trás e vim embora. Eloá* relata que Rosemiriam enfrentava o então marido e dizia que quem tinha que sair de casa era ele, porque tudo era dela.

– Infelizmente isso não acabou bem, porque ele a matou com golpes de faca, dentro de casa. Depois de morta ele a violentou e mandou as fotos para a filha dela, dizendo que havia matado a mãe dela. Nesta época a filha da vítima morava no estado Nordeste do Brasil quando as fotos enviadas por seu padrasto Sílvio, chegaram em seu celular.

– Ela não conseguia acreditar naquilo e entrou em contato com uma tia, ela entrou em contato com o assassino por chamada de vídeo e ele mostrou a Rosemiriam morta. Segundo a Secretária da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), quando os policias chegaram à rua Alcântara Malaquias Tiago, localizado no bairro Helena Maria, por volta das 19h o imóvel estava trancado. Os policias pularam o muro e quando adentraram na

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casa o então assassino Sílvio estava na casa, enquanto o corpo de Rosemiriam estava caído no chão da cozinha com golpes de faca na barriga e pescoço. Quando questionado, o assassino confessou o crime e disse aos policias que durante uma discussão com Rosemiriam ela teria “ferido sua honra” e ele a matara. Caso você leitora não saiba, em tempo presente, nenhum acusado pode usar defesa alegando “legítima defesa de honra”, pois na Constituição Federal de 1988, não é mais admitido impunidade daqueles que decidem cometer atos criminosos como forma de vingança e ódio. Atualmente qualquer um que use a tese, é considerado inconstitucional por afrontar disposições previstas na Constituição Federal. Ao fim da entrevista, Elóa* relata que o ocorrido foi um transtorno para toda a família.

– O que mais assustou foi porque cada foto que ele a mandava, ela estava com uma roupa diferente, ou seja, ele ficava trocando a roupa dela, para mandar a foto. O crime que aconteceu no dia sete de abril, repercutiu em diversos jornais, o crime a sangue frio chocou as pessoas não só da família como do país inteiro. O assassino preso em flagrante na época foi encaminhado à Cadeia Pública de Osasco e o crime cometido por ele foi registado como homicídio qualificado de feminicídio e violência doméstica no 10º DP de Osasco.

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Capítlo Sete

Quero denúnciar! Durante o processo de entrevistas para realizar a materialização deste livro, perguntei a muitas das mulheres que entrevistei se alguma vez elas chegaram a denunciar seus agressores, e a resposta em massa foi “não”. Apenas Rayane* uma das entrevistadas tentou denunciar seu agressor, mas não conseguiu.

– Quando tomei coragem para ir até a delegacia recebi a resposta “se você não tem marcas, não pode fazer o boletim de ocorrência”. Tomei coragem para realizar o boletim muitas semanas depois que havia fugido dele, então todas as marcas em meu corpo haviam sumido, sai da delegacia frustrada e me questionando se as marcas que haviam ficado no meu psicológico não valiam de absolutamente nada. A Lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada em agosto de 2006. Se você não se recorda, Maria da Penha, biofarmacêutica que sobreviveu duas vezes as tentativas de seu marido de mata-lá, em uma delas ela ficou paraplégica. Desde então, ela dedica sua vida ao combate da violcência. A lei que leva o nome de Maria da Penha e cria mecanismo para coibir e prevenir a violência contra a mulher, mas para a lei funcionar é preciso que desde o primeiro passo do atendimento exista um quadro de pessoas preparadas para o mesmo.

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Segundo o advogado Renato Ferreira

– As mulheres agredidas não se sentem seguras em conversar com um policial, delegado e ou advogado. Mulheres não se sentem confortáveis em falar “olha meu marido me agrediu” para outro homem. No escritório onde eu trabalho, por emplo, lá temos um advogada que cuida apenas dos casos de mulheres que sofreram violência. Por isso é necessário que o quadro de funcionários seja apenas composto por mulheres, preparadas para atender outras mulheres vítimas de violência. Talvez no caso de Rayane* se ela tivesse sido atendida desde o primeiro momento por uma agente e por uma delegada preparada para colher seu depoimento e oficializar seu boletim de ocorrência, talvez hoje ela não tivesse mais medo do ex-marido se aproximar dela. Segundo a advogada Monica Barbosa Martírio, Membro da Comissão da Mulher Advogada. . – O primeiro passo quando uma mulher é agredida, é procurar uma delegacia de defesa da mulher, cabendo a autoridade policial registrar o boletim de ocorrência e instaurar o inquérito policial, que é composto pelos depoimentos da vítima, do agressor, das testemunhas e de provas documentais e periciais, bem como, remeter o inquérito policial ao Ministério Público. Em alguns casos, a autoridade policial pode requerer ao juiz em 48 horas, que sejam concedidas medidas protetivas de urgência ou seja o afastamento do agressor

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do lar. A lei também permite prender o agressor sempre que houver qualquer forma de violência contra a mulher, desde que por exemplo, o agressor seja pego no ato.

– Em alguns casos também, é possível a autoridade policial solicitar ao juiz a decretação da prisão preventiva, que pode chegar até 180 dias. Casos assim acontecem quando o agressor acusado pode atrapalhar a investigação. A Lei Maria da Penha permite que o agressor tenha a pena de até três anos e ainda termina o encaminhamento de mulheres que são vítimas de violência, assim como seus dependentes para programas e serviços de proteção a vítima e de assistência social. Em briga de marido e mulher se mete a colher Não adianta levantar a bandeira da violência contra a mulher e se omitir quando você sabe que sua vizinha, amiga, colega de trabalho, prima distante ou qualquer outra mulher sofre. Não adianta levantar a bandeira a bandeira e falar “em briga de marido e mulher não se mete a colher’, porque se mete sim, pois nós mulheres não podemos nos calar enquanto outras mulheres sofrem em silêncio. Dizer “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, pode ter sido aceitável a muito tempo atrás, mas agora não aceitamos mais isso. Essa frase impede com frequência que crimes como a violência doméstica sejam denunciados e por vezes evitando a morte de muitas mulheres. Durante o processo de escrita deste livro, meu sobrinho presenciou um caso de violência doméstica,

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consciente de que aquela situação era errada ele me contou e eu não me calei. Em cerca de 38 minutos relatei o ocorrido pelo canal 180 e a denúncia foi formalizada de forma anônima. Não se omita, salve uma mulher, salve uma vida, mediante a um caso de violência disque 180.

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Capítulo Oito

Nossas vozes Quase não consigo acreditar que chegamos até aqui, no útlimo capitulo deste livro, não sei quais foram os seus sentimentos o lendo. Mas posso confessar a você que durante todo o processo de entrevista e escrita, chorei, senti uma enrome angústia os relatos começaram a chegar em meu e-mail, chorei mais um pouco. Precisei de longas pausas para escreve-lô, refleti, mas também sorri quando ao final dos e-mails elas diziam que estavam felizes, apesar de qualquer coisa que tenham vivido em seu passado, apesar de toda a dor. Espero que você tenha chegado até o final deste livro inquieta, indignada e incomodada e com uma vontade imensa de mudar a vida de alguma mulher próxima ou distante de você. Porque nós começamos a falar e eles terão que ouvir nossas vozes. Este livro contém diferentes vozes de mulheres que confiaram a mim suas histórias, alguns com finais felizes, tristes e alguns incertos. Posso dizer que escrevendo estas palavras já não sou mais a mesma pessoa desde o começo do processo de escrita, posso com toda a certeza dizer criei mais empatia e até mesmo coragem para não ficar em silêncio quando mulheres próximas sofriam. Espero que ao final deste livro, alguma voz queira gritar dentro de você. Precisamos nos unir e lutar, dar voz as mulheres que sofreram e aquelas que ainda sofrem em decorrência da violência. Lembre-se sempre, seja empática, não julgue, não aponte o dedo, deixe que a mulher vítima fale, ela precisa desesperadamente ser

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ouvida. Lembre-se sempre de dizer que ela não é culpada e principalmente, cada caso é um caso, porque só assim iremos aos poucos conseguir mudar a sociedade.

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Posfácio Ninguém esperava pelo que estava por vim, e quando tudo aconteceu foi um choque para todo mundo. Nós não imaginávamos que algo daquele jeito poderia acontecer, quinze dias antes de tudo lembro-me de quando meu ex-cunhado, meu então cunhado na época chegou em minha casa para buscar sua filha mais nova, ele estava com um olhar transtornado. Lembro de meus pais conversarem e pedirem para ele ter calma e não fazer nenhuma besteira, como se eles já pressentissem o que estava por vir. Minha irmã na época não estava contente com seu casamento, e a cerca de um pouco mais de um ano vinha tentando pacificamente se separar de seu marido, ele já havia batido nela diversas vezes e ela estava cansada de todas a agressões. Era um dia comum como qualquer outro, meu pai havia saído para o trabalho às dez para as cinco da manhã e a casa estava calma, mais tarde eu havia tomado café e estava terminando de me arrumar para ir à escola, o telefone ficava em meu quarto por conta da internet, portando no segundo toque eu o atendi.

– É da casa da Dona Quitéria? – Uma voz feminina e abafada disse do outro lado da linha. – É sim! Com quem eu falo? – Perguntei. – Eu sou amiga da filha dela. Moro aqui no condomínio e eu liguei para avisar que o marido dela está aqui armado no estacionamento, ele vai matar ela!

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– Como é? – Perguntei com meu coração acelerado, já querendo chorar. – Eu preciso desligar, já retorno a ligação. Ouvi apenas o tu, tu, tu do outro lado da linha enquanto a voz falou apressada “Eu preciso desligar”, meu corpo parecia congelado naquele momento, coloquei devagar o telefone no gancho novamente e fiquei ali parada, esperando a próxima ligação dizendo que aquilo tinha sido apenas uma brincadeira, uma brincadeira de mal gosto, mas ainda assim uma brincadeira. Até que o telefone tocou e minhas mãos o agarraram forte levando até minha orelha.

– O marido dela acabou de matá-la e se matar, eu sinto muito, ele atirou algumas vezes nela e depois no próprio ouvido. – Eu, eu, não acredito – disse sentindo ânsia – Ele matou minha irmã? – Eu sinto muito. Desliguei o telefone e sentei na cama, senti naquele momento meu mundo girar. Quando minha mãe entrou em meu quarto olhei para ela chorando, ela não merecia ouvir aquilo, minha irmã não merecia tudo aquilo.

– Mãe, ela está morta está morta, o pior aconteceu.

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Naquele instante às lágrimas de minha mãe começaram a cair, não sabíamos o que falar uma para a outra e nem sabíamos o que fazer, ficamos paralisadas cada uma presa em seu próprio pensamento. Não consegui raciocinar tudo o que havia acontecido, na época em que tudo aconteceu eu tinha apenas treze anos, minha mãe pediu que eu fosse para a escola e assim fiz, não lembro o que disse durante a aula ou as matérias que estudei, liguei apenas o piloto automático que foi desligado no momento em que o sinal tocou. Estudei quase minha vida inteira na escola que ficava uma rua abaixo de minha casa, então assim que o sinal tocou, corri para o portão e subi a rua até minha casa correndo. Assim que avistei minha casa, vi o carro de meu pai parado no portão e aquilo era um sinal de que ele já sabia de tudo, aquilo era um sinal de que tudo aquilo tinha realmente acontecido. Quando me aproximei mais, vi meu pai e minha mãe sentados na varanda de casa, eu não conseguia pensar naquele momento, mas senti as lágrimas molharem meu rosto quando comecei a subir os primeiros degraus de minha casa.

– Ela não morreu – foi o que ouvi assim que pisei na varanda de casa – Ela está no hospital As palavras de minha mãe ecoavam em minha cabeça, e enquanto eu assimilava tudo aquilo sentia os braços de meus pais me abraçando. Eles me levaram para dentro de casa e lá me explicaram o que havia acontecido.

– No momento em que ele atirou na perna dela,

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ela caiu no chão – foi meu pai quem disse as primeiras palavras – Depois ele atirou novamente e ela colocou a mão e se fingiu de morta, ele a chamou três vezes e ela não respondeu, foi quando ele deu alguns passos e atirou no próprio ouvido. Quando ela ouviu o tiro levantou a cabeça e viu que ele estava jogado no chão, foi quando ela percebeu que ele estava morto e começou a gritar que estava viva. – O pior é que as meninas viram tudo quando a sua irmã desceu correndo pelas escadas depois de ligar para a amiga dela falando o que estava acontecendo, as meninas desceram correndo atrás. Mais tarde vi a Record repetir em uma matéria com um pouco mais de 5 minutos toda a história que meus pais haviam me contato, eu não queria assistir tudo aquilo, então me escondi atrás do sofá enquanto meus pais viam juntos as fotos de minha irmã e meu cunhado na tela da televisão. Depois que minha irmã saiu do hospital e ficou conosco por um tempo, entendi que ela havia sofrido muito mais do que apenas com os tiros. O marido havia passado a noite toda batendo nela na frente das duas filhas, uma delas na época com 6 anos e a outra de 12 que sentava no colo da mãe enquanto o pai ameaçava as duas com uma arma carregada. O terror durou a noite toda no pequeno apartamento localizado no Conjunto Habitacional José Bonifácio. A incerteza tomou conta da filha de 12 anos quando o pai, ameaçando a mãe com uma arma a arrastou-a para fora do apartamento, e ela viu a mãe entrando no carro sem saber se a mãe voltaria com vida.

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Anos depois, minha mãe contou o que havia acontecido a partir do momento em que ele a colocou dentro do carro.

– Ele me levou para o matagal perto de onde nós morávamos, pensei que ele ia me matar ali, senti tanto medo de não ver mais as meninas, pensei nas duas sozinhas dentro daquele apartamento, sem poder gritar, foi isso que me deu forças para suportar o estupro que sofri naquela noite. Depois de estuprá-la e fazer terror psicológico ameaçando-a de tirar sua vida ali, ele apontou novamente a arma para ela e fez voltar para o carro e de volta para o apartamento. A noite passou com ele fazendo ameaças o tempo inteiro, enquanto a filha de seis anos ficava imóvel no sofá sem chorar e a filha de doze anos implorava para que ele parecesse com tudo aquilo. As agressões e ameaças com a arma em punho foram até os primeiros raios de sol apareceram na janela do apartamento.

– As meninas ainda estavam com a roupa da escola e eu também, porque assim que ele nos trouxe para a casa as agressões começaram. Quando vi o sol nascer, comecei a implorar que ele deixasse as meninas irem à escola e eu ficaria ali com ele, talvez ele tenha acreditado, foi quando ele foi até o quarto pegar uma camisa e eu corri para o interfone e pedi para que minha amiga ligasse para a casa da mãe. Ela conta que quando o marido a ouviu falar no tele-

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fone e correu para a cozinha, ela correu para a sala.

– Gritei para as meninas correrem para o estacionamento e corri atrás, nos três descemos correndo com ele atrás e entramos no carro eu achei que iria conseguir sair com elas do condomínio. Mas não deu certo, ele correu atrás e deu um tiro para o alto, foi quando as meninas correram para a frente do carro e eu fui na direção dele e aí o resto você já sabe, quando chegamos no estacionamento tudo aconteceu. Lembro de ouvir ele me chamar, não sei o que aconteceu naquele momento, mas resolvi não responder, logo em seguida ouvi um tiro. Naquele instante eu tinha certeza que ele havia se suicidado, foi então que levantei a cabeça e vi o corpo dele no chão e comecei a gritar “me ajudem, eu estou vida”. Lembro-me dessa conversa que tivemos sobre o dia da tentativa do feminicídio de minha irmã como se fosse ontem. Foi então que naquela conversa decidi que um dia iria escrever algo sobre aquilo, foi então que surgiu o desejo de dar voz a outras mulheres.

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Agradecimentos Meu agradecimento em espcecial à todas as mulheres que confiaram à mim suas histórias, espero ter contato da forma mais fiel possível seus relatos nestas páginas. Obrigado por me ajudarem a realizar o sonho de escrever meu primeiro livro. Obrigado à todas as mulheres que me ajudaram de alguma forma no processo de escrita, seja lendo, comentando, divulgando meu formulário para conseguir fontes, seja me motivando a não desistir. Mãe, Vera, Juliana, Ellity, Flavia, Thaina, Rauena, Queila, Joana, Adenize, Acza, Camila e à todas as minhas professoras, muito obrigado por todo apoio.

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Bibliografia BRASÍLIA. Governo Federal. Secretaria Especial de Políticas Para As Mulheres (Org.). Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher: Plano Nacional: Diálogos sobre a violência doméstica e de gênero: Construindo Políticas para as Mulheres. Brasília, 2003. 68 p.  BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Volume 1 Fatos e Mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 339 p. Tradução de Sérgio Milliet.  BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Volume 2 a experiência vivida. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 557 p. Tradução de Sérgio Milliet.  MILLER, T. Christian; ARMSTRONG, Ken. Falsa acusação uma história verdadeira. Rio de Janeiro: Leya, 2018. 336 p. Tradução de Daniela Belmiro.  ELUF, Luiza Naib. A Paixão no Banco dos Réus: Casos passionais cêlebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 267 p.  PENA, Felipe. Jornalismo literário. 1. São Paulo (SP): Contexto, 2006. 144 p.  PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. 3. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2017. 235 p.

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ARMAND; MATTELART, Michèle. História das teorias da comunicação. 16. ed. São Paulo: Editora Loyola, 2014. 227 p. Tradução Luiz Paulo Rouanet. YOUSAFZAI, Malala; LAMB, Christina (Comp.). Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 342 p. Vários tradutores. SOLNIT, Rebecca. Os Homens Explicam Tudo Para Mim. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2017. 204 p. Tradução: Isa Mara Lndo.

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