Pulp feek #18

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Sonhos existem para serem sonhados, enfim. Eu sei, é uma redundância gigantesca. Mas estamos tão cercados de gente que diz que nossos sonhos são impossíveis, que é preciso afirmar e reafirmar isso constantemente para nós mesmos. Ser artista hoje em dia não é algo fácil, fazer uma revista como essa é motivo o suficiente para ser chamado de louco. Principalmente se você, como nós, trabalha, estuda e tem outras lutas aparentemente mais rentáveis em andamento. Não acredite em nada disso. Não existem sonhos mais ou menos rentáveis, lucro é um detalhe muito pequeno e, como foi dito para mim pelo próprio Cory Doctorow, “nunca faço algo que você ama pensando somente no dinheiro, antes que você dê conta, você estará fazendo aquilo por uma obrigação, e não pelo amor”. Dinheiro é importante. Na verdade, tudo tem a ver com o dinheiro. Sonhos morrem porque não temos isso. Mas e quanto ao que podemos fazer sem ele? Você realmente acha que precisamos ter um grande caixa pra escrever, por exemplo, um livro de cinquenta mil palavras? Ou uma revista como essa? A Amazon, um dos grandes da indústria literária, acaba de lançar uma revista de contos chamada Day One, lançando-se num mercado no qual nós já trabalhamos. Óbvio que o dinheiro investido e o resultado imediato são diferentes. Uma empresa desse porte não entraria em um mercado de qualquer maneira. É exatamente por isso queremos inaugurar um novo sonho: não queremos perder em qualidade para a revista lançada por eles, nem pra nenhum outro material no nosso formato. Confessamos que este objetivo é algo difícil, mas, como eu disse no início, sonhos existem para serem sonhados. E com a ajuda de vocês nós vamos realizar esse sonho.


Somos capazes de realizar muitas coisas pela revista, corrigir os erros gramaticais, fazer a capa, escrever os textos, as colunas, este editorial que agora escrevo, mas não somos capazes de uma coisa: divulgar esta revista para quem só você conhece. Tome nosso partido, eu te peço isso, e nós vamos juntos acreditar no seu sonho. Se você é um escritor e escreve, procure-nos no nosso grupo do Facebook (https://www.facebook.com/groups/143932675798022/). Lá você poderá pedir para divulgarmos sua obra por aqui, ou procurar nossos editores para mandar seus textos. Outra mudança: anote nossos erros e os mande para nós também pelo grupo do Facebook. Faça uma listinha dos erros que encontrar na revista, a gente não se importa com o que você vai mandar, somos humanos e erramos. Divulgue nossa revista, fale do nosso projeto, faça hoje, de um de seus amigos, um leitor. Vamos trabalhar em conjunto para aumentar o número de textos dentro da Pulp e, assim, poderemos trazer um material mais completo, uma revista cada vez mais bonita. A Pulp Feek foi construída em cima de um sonho: mudar os moldes da literatura nacional. Por isso, para nós, sonhos não são só importantes, sonhos são sagrados. E a gente não vai parar de tentar mudar o mundo, porque o mundo precisa de leitores, e um instante é muito tempo para a gente, porque a gente sabe aproveitar. Peça àquele seu amigo que ainda não leu a Pulp para dar uma chance a revista, ele vai gostar.


PULP FEEK - #18 Séries

A Falha Steinitz Um estranho jeito de encontrar os amigos, Coil Deckard começa a ter cada vez seus mistérios mais aprofundados. O que afinal nos espera no fim dessa caminhada rumo a verdade sobre o Capitão? -- Rodolfo L. Xavier - Pág 4 4x2: De Mãos dadas Lady e seus companheiros começam a caminhar para longe da guerra, entretanto, por algum motivo parece que nem fugindo para longe ela está salvo de algumas coisas, uma delas é seu passado. --- Alaor Rocha - Pág 14

One-Shot

Julgamento pessoais Quando a punição começa ser substituída por favores pessoais, não tarda muito para que a moral e as leis de um estado resultem num implicado processo de alterações legislativas. Mas a que preço? -- Rafero Oliveira - Pág 26

Extra

Fonte de inspiração... Aprenda um pouco sobre a vida de um dos mais inspiradores cientistas do século XX, um dos poucos homens a causar assombro até mesmo em Isaac Asimov. ---------------------------------------------- Lucas Rueles - Pág 38 Como escrever sobre... Na coluna dessa semana aprenda como utilizar seus erros ao seu favor, e como não dar atenção a alguns detalhes pode na verdade salvar sua história de ser um fracasso e não o contrário. ------------------------ Rafael Marx Pág 46 Na próxima semana: Avellar retorna com o Dom das sombras, afinal o quanto alguém está disposto a submergir nas trevas? Amanda começa a desenrolar os fatos neste clássico mundo onde terror e elegância se misturam. E as boas e velhas colunas de nossos editores-chefes.




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Ano 37 P.E. — Neso

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s nós dos dedos da mão direita de Toye acertaram em cheio o lado esquerdo do rosto de Coil, tirando sangue de seus lábios em um arco. O corsário avançou golpeando com o braço metálico, mas seu antigo companheiro de batalhas desviou o ataque com suavidade, como que apenas redirecionando a força do mesmo sem se opor. No bar a música permanecia alta, preenchendo o salão. Formara-se, no entanto, uma roda circundando os dois combatentes e alguns seguranças abriam caminho entre os clientes indo em direção a briga. O cabo sorriu e adentrou a guarda do corsário novamente pela esquerda, em um movimento rápido e que Deckard não conseguiu bloquear, sendo atingido no queixo. — Quer dizer que o merda do Mickail te mandou atrás de mim Toye? — Coil se apoiou em uma mesa, o mundo rodando levemente a sua volta, o lábio já inchado e gotejando vermelho. — Então o velho também me quer morto? — Não capitão, — Toye avançou novamente, chutando uma das pernas da mesa onde o corsário se apoiara, tirando seu ponto de equilíbrio — o almirante me mandou te entregar uma mensagem. — girou o corpo, chutando Coil no lado esquerdo do tórax. O corsário foi atingido novamente, perdendo o ar. Desferiu uma sequência de socos dos quais nenhum furou a guarda de Legião. Era como golpear água, ele sabia. A técnica era uma das favoritas do rapaz na guerra, ele se lembrou. Toye lutava em um embate onde diversos lutadores possuíam poderosos membros biomecânicos com habilidade ou força estendida, enquanto ele mesmo era, como gostava de gracejar, pura carne humana. Dessa forma, o jovem se especializara em um estilo de combate corporal derivado do antigo aiquidô, buscando usar a energia cinética de seus oponentes contra eles mesmos, enquanto tornava seus movimentos fluidos como água, escapando dos ataques que não

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conseguia desviar. — Eu tinha ouvido uns boatos sobre um mercador da morte com um braço e um olho biomecânico, — Legião fintou pela direita, atraindo o olhar de Coil e golpeou com um forte soco o estômago do corsário — mas eu me recusava a acreditar que era o meu capitão! — Eu abandonei essa porra toda garoto, — Coil recuperou o fôlego, e arremessou uma garrafa de whisky na direção do cabo, que se desviou com um giro — não sigo mais as ordens daquele merda. Se é pra matar, eu mato quem eu quero, e mato por mim! — Você só fala merda! — Toye berrou, adentrando a guarda do corsário novamente, agarrando-o pelo colarinho do sobretudo, aplicando uma rasteira que jogou Coil de costas no chão. Sophia assistia à cena quase em choque, o embate acontecendo em uma velocidade que ela mal conseguia acompanhar. O recém chegado era muito difícil de ser atingido, ainda mais por um Coil bêbado como estava. Mordeu o lábio quando o homem de terno italiano derrubou o corsário no chão e subiu sobre seu tronco, desferindo um soco após o outro em sua face. O corsário bloqueava alguns dos socos com as palmas das mãos, mas a maioria atravessava sua guarda, machucando seu rosto. Olhou em busca dos seguranças do pub, mas percebeu que eles apenas cercavam o perímetro, impedindo que a briga incomodasse os outros clientes. A jovem então resolveu agir, sacando da jaqueta uma das facas que pegara na saída do Legionário. Aproveitou a chance momentânea vendo que o forasteiro não parecia perceber nada mais que Coil naquele ambiente. Legião ergueu o punho para mais um pesado soco quando estacou, sentindo o frio metal lhe tocar o pomo de adão. Abaixo de si, o corsário mal se mexia, mas ainda parecia acordado e balbuciava poucas palavras desconexas. A raiva lhe fizera cometer um erro estratégico, esquecendo a morena dos olhos azuis. Respirou de forma contida, avaliando a disposição da mulher em rasgar sua garganta. Franziu o cenho quando no-

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tou que Coil estendia uma das mãos em sua direção com um olhar que lhe mandava uma mensagem clara. “Ela não”. — Tudo bem morena, — sorriu Toye, baixando o punho — você me pegou. Não vou mais bater no seu namorado tudo bem? Isso aqui foi só uma reunião da velha guarda. — Me dá um motivo pra não abrir um sorriso no seu pescoço. — Ora porra se não é o fedelho! — Sophia foi interrompida, sendo desarmada por um movimento que não pôde sequer enxergar. O sargento Manny lhe tomara a faca e a afastara de Toye com um braço, enquanto colocara o pé no peito do forasteiro, colando-o de costas no chão. — É uma puta reunião de esquadrão essa merda? E ninguém me avisa? O barman largou Sophia, que recobrou o equilíbrio e massageou o pulso, algo dolorido pelo movimento do sargento. Percebeu alguma espécie de compreensão nos olhares que os três homens trocaram, pois a rusga imediatamente cessou. O sargento se afastou um passo e ergueu cada um dos combatentes pela roupa, colocando-os novamente de pé. Bateu a poeira das vestes de cada um com um sorriso largo, diante de um Coil de olhar baixo e de um Toye encabulado. Definitivamente havia entre aqueles três alguma coisa que ela não percebia, com certeza consolidada durante os anos de conflito em que tinham combatido lado a lado. — “Venha até Plutão se quer saber o que está acontecendo de verdade”. — Toye ajeitou o terno, abotoando o paletó. — Essa é a mensagem do almirante. Ele recebeu um reporte da sua batalha em Ganimedes, e tem algumas informações sobre a merda em que você se meteu. Ele me mandou aqui pra te oferecer ajuda. — Não quero nenhuma ajuda do Mickail, — Coil franziu o cenho edemaciado — já falei que não sigo mais ordem nenhuma daquele maníaco. — Você que sabe capitão, você que sabe. — o cabo retirou um cartão de dados do bolso e deixou sobre a mesa — Não esquece que por mais

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que você tenha tentado proteger aquelas pessoas, você também puxou muito o gatilho. Eu achava que você estava pelo espaço procurando se redimir. Me desaponta saber que você já desistiu. Forte abraço para todos. — despediu-se com uma mesura debochada e deixou o bar. *** Ano 37 P.E. — Cinturão de Kuiper Há dias uma pequena nave patrulha vasculhava a região singrando entre os planetoides e imensos blocos de gelo à deriva no espaço, nos limites da Via Láctea. Em seu interior podia se ouvir o trepidar de pequenos fragmentos se chocando contra o casco. Kuiper era uma das regiões mais perigosas do espaço conhecido, com o potencial de destroçar uma espaçonave caso seu piloto não fosse competente, o que fez a seleção de Zack ser óbvia para a missão. O jovem se destacara desde muito novo em suas habilidades de pilotagem em quaisquer tipos de terreno, motivo pelo qual tinha sido designado para o Esquadrão Seis. Natasha mantinha os olhos no radar enquanto realizava buscas na tela com o dispositivo em seu pulso, inserindo a cada minuto novas coordenadas no sistema. Fora selecionada para o Esquadrão e assumira o posto de especialista em comunicações com apenas dezesseis anos. Zack costumava comparar a menina com os Androides Navegadores com um sorriso, mas sempre exaltando que a pele negra da menina e seus dread locks eram muito mais bonitos que as fachadas metálicas cromadas dos robôs. Emil polia a metralhadora, sentado em um dos cantos da nave, encurvado em seus dois metros de altura recobertos pela negra carapaça pesada de assalto. O jovem piloto ainda não sabia o que pensar do novo integrante da equipe, que seguia em sua primeira missão. Lera seus relatórios antes do embarque, descobrindo que o artilheiro havia participa-

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do das últimas batalhas da guerra civil, onde tivera seus braços e parte da face destroçados em um acidente com explosivos, tendo os membros e a parte danificada do rosto substituídos por implantes biomecânicos, incluindo os dois olhos. Até ali o gigante pouco tinha se manifestado. — Zack, acho que encontrei, — Natasha se aproximou do piloto, inserindo novas coordenadas no painel — acha que pode nos levar até aqueles asteroides maiores? — É pra já senhorita, — sorriu o jovem piloto — apertem os cintos crianças, talvez tenhamos um pouco de turbulência. — a piada interna nunca o cansava. A nave girou no espaço, em uma rota espiralada que evitava colisões maiores, seus tripulantes se mantendo em seus lugares graças aos solados magnéticos das botas e aos cintos de segurança. Zack conseguiu avistar, incrustada na enorme rocha, o que parecia ser uma escotilha do tamanho de dois homens. As informações da inteligência estavam de fato corretas. Aqueles dissidentes da frota Terrana estavam lançando os ataques sobre a Armada Colonial daquela região, ameaçando a frágil trégua entre as duas forças. O Esquadrão seis tinha sido enviado para localizá-los e eliminá-los, sob os comandos do próprio almirante. Zack aproximou a espaçonave do asteroide, ajustando os motores em uma rota estacionária sobre o corpo celeste, exatamente sobre a escotilha. Ligou os alertas de despressurização, fazendo com que os tripulantes fechassem seus capacetes e dessem partida nos módulos de sobrevivência de seus trajes. Natasha recolheu os instrumentos para dentro da robusta manopla tática em seu braço direito, antes de se dirigir para a saída. Emil se levantou, quase batendo com o topo da cabeça no teto da nave, e colocou nas costas a mochila de munição, puxando a esteira até a metralhadora e alimentando a arma, soltando a trava. Zack deixou o assento do piloto e flutuou alguns metros até a saída. Os três desceram até o asteroide, se aproximando com cautela, suas rotas corrigidas pelos pequenos fluxos de ar pressurizado que seus trajes

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desprendiam. Natasha tocou a escotilha, localizando um painel e soltando os parafusos que o prendiam munida de ferramentas rotatórias saídas de sua manopla, expondo a fiação. Conectou sua manopla aos cabos e invadiu o sistema, ganhando acesso aos controles de acesso, abrindo a porta do local. Emil foi o primeiro a atravessar a escotilha aberta, adentrando um corredor claustrofóbico, com espaço o suficiente para que ele o cruzasse raspando nas paredes. Desceu pelo caminho guiando-se com os pequenos propulsores de seu traje, flutuando em microgravidade, até visualizar um salão hexagonal, com três portas intercaladas nas paredes. Mantinha a metralhadora engatilhada e em mira, mas nada no interior da estação se movia. Zack desceu logo atrás, dando cobertura ao gigante com um rifle, adentrando o salão abaixo e vasculhando cada canto antes de abrirem as portas. Não haviam muitas marcas nas paredes ou no chão, apenas alguns fragmentos de gelo e poeira, sugerindo que a escotilha devia ser aberta de tempos em tempos. Tateou próximo as portas, percebendo que não havia interface de abertura pelo lado de fora e apertou os olhos. Aquela não devia ser a única entrada. — Essa entrada é falsa, — alteou a voz, alertando os companheiros — É uma armadilha! O aviso veio tarde demais. As três portas se abriram e Emil foi arrebatado por uma delas, desaparecendo em seu interior, enquanto uma saraivada de projéteis atravessou o corpo do piloto, espalhando sangue em gotículas flutuantes naquele ambiente. Natasha se precipitou, tentando subir pelo ducto por onde haviam entrado, mas foi agarrada pelo tornozelo e arremessada de volta ao salão interno, chocando as costas contra a parede. Sacou a pistola do coldre com a mão direita, disparando às cegas, confusa pela rotação do corpo que ainda não fora corrigida pelos propulsores do traje. Foi acossada por um homem de grande porte, trajando couraça de batalha fechada.

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A garota conseguiu desviar do ataque a tempo de evitar ter sua cabeça esmagada contra a parede e percebeu que Emil ressurgia de trás do portal, armado e pronto para dar combate. Mais um homem encouraçado surgiu da porta que faltava, e o gigante colocou ambos na mira da metralhadora. Natasha recobrou o equilíbrio e se projetou para trás do companheiro, fazendo mira por sobre seu ombro. Natasha gemeu de dor quando Emil esmigalhou seu punho esquerdo com a mão metálica, arremessando-a por cima do ombro no meio do salão. Confusa, a jovem tentou utilizar uma das ferramentas de sua manopla como lâmina, mas o primeiro encouraçado pisara com força sobre seu braço, destroçando ossos e mecanismos. A dor era quase tão insuportável quanto a surpresa da traição. Sem os dois braços funcionais, abandonara as esperanças, flutuando na horizontal em meio aos três agressores. Fechou os olhos antes que os três a dilacerassem. *** Ano 37 P.E. — Neso — Fica tranquila garota, — sorriu o sargento Manny, na porta do quarto onde Coil dormia recoberto de bandagens, no segundo andar do pub — ele é cascudo, vai ficar bem. Qualquer coisa, me chama lá embaixo. — Obrigada. — murmurou Sophia, enquanto o barman fechava a porta. Depois da partida do homem que derrubara Deckard, Sophia e Manny o levaram, sem consciente, escadas acima. O sargento o deitou sobre um catre em um quarto minúsculo, e aplicou analgésicos e bandagens limpas sobre os ferimentos, deixando-o nu do torso pra cima. Sophia se sentou ao lado do corsário e quedou-se pensativa e cansada. Tudo aqui-

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lo estava sendo um pouco demais para ela desde que acordara. — Ei garota, — murmurou Coil, sem olhar para Sophia — me safou mais uma vez hein? Acho que estou ficando endividado contigo... — Quem era ele, Coil? Vocês três lutaram juntos na guerra? — e, ante o silêncio hesitante do corsário completou — Vai, se você me deve, pode começar me contanto a verdade... por favor. — Aquele era o cabo Toye. — respondeu Coil em um suspiro derrotado — Respondia como Legião na guerra, e era meu contato direto em quase todas as missões que eu fiz nos últimos anos de conflito. Ficamos bem amigos, nós dois. — Percebi. — comentou Sophia. — E o que houve depois que a guerra acabou? O que ele quis dizer com “proteger aquelas pessoas”. — A gente fez muita merda na guerra garota, muita merda mesmo. Nos primeiros anos, logo que começou tudo, eu, ele e o Manny fizemos parte de um grupo de busca e extermínio. Matamos mais gente do que eu consigo lembrar, e nem todos eram guerrilheiros. Estávamos cumprindo ordens, mas, no fundo, sabíamos que era a forma errada de vencer a guerra. — Ordens desse tal Almirante? — Isso. Mickail Krilenko, o maior dos comandantes da Armada Colonial, vitorioso em todos os combates que liderou, um verdadeiro herói de guerra... e um grande filho da puta. — Filho da puta por quê? Coil, o que aconteceu? — Esquece Sophia. — o corsário se virou na cama, dando as costas para a garota, encarando a parede, contendo um gemido por conta da dor nas costelas. — Eu não gosto de falar sobre essa merda. — Entendo, — assentiu — mas alguma hora você vai ter que falar, Deckard. Do jeito que a gente está, eu acabo safando esse seu rabo toda hora. — Você anda conversando demais com a Navegadora mesmo. — Coil riu, se arrependendo em seguida por causa da dor. Respirou fundo.

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— E aquele cartão? — São coordenadas, aposto. Mickail deve ter estacionado a armada na órbita de Plutão, como o Manny ouviu falar. Aquele velho deve estar montando algum esquema. — E o que você vai fazer? Vai lá encarar o seu passado ou vai continuar se escondendo? — Garota, você era uma porra de uma psicóloga antes de ser congelada, só pode. — O corsário puxou um travesseiro para debaixo da cabeça, que já começava a latejar em uma ressaca digna da noitada que tivera. — Não sei, — respondeu Sophia, séria — ainda não me lembro de muita coisa. Quando eu durmo tenho alguns sonhos que acho serem pedaços de memórias, mas tudo ainda muito confuso. Queria pelo menos saber quem eu sou. Coil fechou os olhos, enquanto a garota mexeu nos cabelos e se deitou ao lado dele no catre, de costas para o corsário. Com as pálpebras cerradas, o pistoleiro repassou cada movimento da briga de bar. Toye havia melhorado muito suas habilidades, movia-se de forma fluida, golpeava como uma onda quebrando na costa. Enquanto isso ele mesmo tinha parado no tempo, caçando bandidos por aí achando que estava fazendo algo de bom enquanto esvaziava garrafa atrás de garrafa. Se não estivesse bêbado o combate teria sido diferente, pensou. O cabo o deixara em cheque o tempo todo e, não fosse por Sophia, teria sido quase um cheque pastor de tão humilhante. — Sossega garota, — um sorriso antigo brotou em seu rosto — a gente vai descobrir quem você é. O almirante tem um departamento de inteligência todo sob comando, a gente acha alguma informação sobre você. — Então vamos para Plutão? Eu pensei que você não aceitava mais ordens desse almirante. — Eu não aceito, — refletiu — mas acho que você tem razão. To velho demais pra ficar brincando de esconder.

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Alaor Rocha

------------------------------------------------------------------------------ Ainda tenho dúvidas sobre você levar esse capítulo a sério, mas preciso de um descanso. Você sabe o que é viver em prol de uma vida que não é sua? Pois é. Isso cansa o homem, viver algo que não é dele. Talvez minha mesa de trabalho diga bastante sobre o que tem sido minha vida, e a resposta é: A vida de Lady Starbuck. Você não sabe quantas conexões ilegais fiz com a Sul-América para conseguir tantos livros e revistas e até mesmo vinis do ABBA para saber em que estou me metendo (devo ser uma das, hã, cinquenta pessoas do planeta que sabem o que é ABBA). E não posso mentir que, graças à herança cultural, o mundo de Lilah é bem mais físico do que o meu: A falta de material impresso no século XXIII é impressionante. Sabe aquelas ficções onde as cidades são revestidas por redomas de vidro? É assim que funciona, tudo está atrás de uma tela. Livros, imagens, bebidas, pessoas, tudo em um lugar inalcançável e ao mesmo tempo tão próximo. Mas acho que em meados do século XXI a situação já era bem parecida, não? O que importa é que não sei organizar material físico e essa mesa central (não confunda com mesa de centro: mesa central é o aparelho computadorizado instalado em todo estabelecimento de Atlântida e dos EFAS que controla desde a temperatura no local até possíveis infiltrações na parede) está quase toda ocupada e cercada por caixas. É difícil trabalhar assim, muito difícil. Na verdade, anda sendo difícil trabalhar de qualquer maneira, e por isso estou tentando o descanso que já mencionei. Olho para trás, foco a antena no edifício à frente, a visão di-

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lata, relaxa, se recupera. Nossas retinas estão literalmente queimando com tantas luzes artificiais e tão próximas, e provavelmente mês que vem lá estarei eu na mesa de cirurgia para substituí-los por um modelo que permite visão noturna, ‘tá virando moda. (Ah, não te contei? Já faz algumas décadas que saímos da maternidade direto para a cirurgia de, como gostam de chamar, reajuste ocular. Mas isso só nas áreas guiadas pelo Conselho: O resto do mundo ainda tem que se contentar com o que temos de mais orgânico.) Às vezes acho que preciso explicar coisas demais: Você sabe o que é o Conselho? Aposto que não. Pois bem, anote esses nomes: Yves Ulrich, Qatsi Pahana, Giuliano Stancatti, Oleg Van Marx, Andra Magoro e Pluto Mallidias. Empreendedores, donos de dezenas de empresas, unidos pela reforma da civilização terrestre. Construíram uma Atlântida onde antes tínhamos o Ártico e os Estados Federados de Amundsen-Scott foram polvilhados pela Antártida. São um mundo totalmente avesso ao retratado na história de Lady Starbuck: Aqui as pessoas são felizes. Aqui vivemos fora de qualquer espectro de guerra, temos serviços públicos de qualidade, segurança e moradia garantidas. O resto do mundo é ignorado, mas sabemos que o resto é resto. Não que eu pense assim, pessoas morrem todo dia intoxicadas pela radiação e não sou do tipo que fecha os olhos para algo assim. Mas também não creio estar fazendo muito para mudar esse contexto, então... então, bem, talvez eu precise abrir meus

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olhos antes de trocá-los. Ah, isso é muito complicado, meu caro. Minha cara. Meus caros. Tudo é complicado, viu? Não sei quem você é, não deveria estar dizendo essas coisas, mas nem mesmo cometer suicídio eu posso — a mesa central aloca minha memória cerebral diariamente, um suicídio só faria com que eu acordasse de manhã em um John-Smith customizado como se nada tivesse acontecido. Estão me usando. Estão me privando do direito de morrer. Tudo isso por causa de um livro. Por causa do 3x2. Se me lembro bem, o cara que inventou o avião acabou se matando após descobrir que sua invenção era usada na guerra, algo assim. Sempre achei isso uma idiotice. Até viver essa situação na pele. Nessa pele borrachuda de quem viveu os primeiros vinte anos embaixo de radiação. Quando seu projeto de vida se transforma em um captador de dinheiro, ah, amigo (amiga?), não há sistema nervoso que resista. Essa é, acima de tudo, uma história de subversão. Guarde essa palavra: Subversão. Nenhum valor se manterá em pé. Nada será constante, nada será verdadeiro. O outro lado da moeda brilhará mais. Ou talvez eu só esteja estressado por ter acabado de brigar com Elerian. Estão me privando do direito de jantar com minha esposa. E ela, toda perfumada, seus cachinhos delicados roçando seus ombros desnudos, aquele vestido salmão tomara-que-

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caia, disse que iria sair sozinha se eu não fosse. Disse que provavelmente daria para o primeiro cara que observasse seu decote com desejo. Mas eu estava ouvindo Bowie na hora e não consegui entendê-la de primeira, então tudo que ouvi claramente foi o bipe da porta se abrindo e os três bipes da porta se fechando. Esqueça aquela parte sobre sermos felizes em Atlântida. Voltemos à vida de Lady Starbuck, é com certeza melhor do que a minha. E isso que ela está morta. ------------------------------------------------------------------------------ Nat não pode pagar por um vinho original assim como Lady Starbuck. Mas tudo bem, Marie se contenta em beber uma lata de suco de maracujá (adora suco de maracujá) enquanto viaja a 400, 500 km/h pelo Oceano Índico. À sua frente, o loiro acanhado não tira os olhos dela enquanto conta, animado, sobre Hankie Christo. — Ele já está por lá há alguns anos, conhece o trabalho — diz, cutucando a cutícula do polegar com a unha do indicador — E é ele quem irá te buscar em Perth, então relaxe. — ‘Tou relaxadíssima, bem — responde a morena, de pernas confortavelmente cruzadas — Mas imagine que até três meses atrás eu nunca havia entrado em um trem, então... — Você é muito corajosa — Nat comenta, tombando o corpo para a mesinha à frente e estendendo a mão para que Marie se conecte com ele. Ela responde ao comando e entrelaça seus dedos gordinhos à magreza dele. — Não sou. Só estava cansada. É o tipo de coisa que fazemos após

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algumas noites de sono perdidas — e sorri, melancólica. — Isso não me faz te admirar menos — Nat retribui o sorriso. Marie sabe que ele a ama mais do que a recíproca. É fácil notar quantas cordialidades bobas o loiro a oferece, coisa de quem só sabe se jogar no mundo se estiver algemado a alguém (exemplo bobo: pediu suco para Marie e nada para ele, alegou falta de sede). Quantas vezes já não ensaiou o gelo definitivo, o não-vai-dar-certo que aquietaria Nat? Mas ele a visitava no Little Wonder com chocolates originais e flores sintéticas — as únicas existentes —, e na maior parte das vezes se limitava a deitar com ela naquela cama quase pública e compartilhar sonhos. Mesmo após o sexo eventual esse ritual se dava, os corpos nus na calmaria da tempestade lá fora, voando alto em suas cabeças utópicas. Agora era tarde para gelar o coração dele: Estava a caminho da Tasmânia, pronta para ingressar no mundo pornográfico e conseguir mais lites do que conseguiria oferecendo seus serviços para o Conselho inteiro em uma noite. Em poucos meses poderia viver onde quisesse, como quisesse, com quem quisesse. Tudo graças a Nat. Mas seria um choque grande demais para ele se soubesse que tudo que povoa a luxúria e afeto de Marie no momento é aquele chumaço cacheado de Lilah se misturando com sua própria cabeleira. Aperta a mão de Nat mais forte. Segura o sorriso no rosto. O trem segue. Lady Starbuck não segue. Bebendo o resto da garrafa de vinho da noite anterior, recosta-se no banco traseiro de seu carro — ainda no estacionamento da CH5 — e olha para a chuva eternamente ácida que cai a alguns pilares de distância. Os carros entram na cobertura respingados, o material fosco perdendo ainda mais brilho com essas gotas radioativas. Já está ali a duas horas e não pretende sair. O motorista à frente ouve música em seu jukeplug, a cabeça alaranjada jogada para trás, per-

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to de dormir. Lady está sozinha como nunca esteve. Tão sozinha que está perto de cometer uma loucura: Visitar sua mãe. As boates seguem. Georg deixa avisado no Spaceboys e no Little Wonder que será o gerente interino por essa noite, e logo segue para o dormitório de Lady Starbuck no abrigo para completar as tarefas delegadas por ela. Ó, abre o armarinho 3B e pega lá as maquiagens pra Luna e pra Jamilla. Estão todas em um pacotinho pardo. O ruivo coloca a caixa sobre a cama. Não deixe de ligar para os rapazes que vão consertar a ventilação do Wonder. Acho que eles chegam no meio da tarde, mas certifique-se. Ele desliga o telefone com o horário marcado: Quatro da tarde. Ontem mataram não sei quantos pais solteiros lá em Barwaldi, avise o pessoal do abrigo para que eles não saiam dali desarmados. Reunião convocada, a maior parte dos abrigados se refugia na ciberdimensão. Georg se tranca no quarto de Lady e ali medita como sua esposa sempre faz. É a primeira vez na vida que ora pela vida de alguém. A guerra segue. Pela primeira vez uma pessoa de Atlântida é assassinada com fortes suspeitas de um ataque marciano: A secretária do SubConselho de Justiça Nicole Leprevaust. Seus pulmões estavam murchos e rasgados, a pele estava retalhada de dentro para fora em suas costas. Encontraram seis pequenos insetoides mortos em seu gabinete que não estão catalogados em livro de Biologia algum, mas assumidamente são parasitas que se alimentam de sangue por compulsão até explodirem. Muitos bairros estão em estado de alerta, e as negociações entre Terra e

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Marte não estão promissoras. A Fissura Morta segue infestada de zumbis, há o cadáver de uma lula de cem metros ao sul da Tasmânia, um vazamento nas instalações de Nada-Nunca¹ está atrasando a dimensão temporal em um raio de dez quilômetros. Giuliano Stancatti e Yves Ulrich convocam uma coletiva de imprensa para tranquilizar a população de todo o planeta: “Não existe moeda que não possamos devolver ao inimigo.” “Todas as medidas são preventivas, não emergenciais.” “A Universidade Ártica está investigando uma provável explosão nuclear no centro da Terra que possa ter desencadeado tais anomalias.” “Estamos com cada um de vocês. Nossas mãos estão dadas.” O carro segue. Lady não troca uma palavra sequer com seu motorista enquanto passam em pouca velocidade pela rodovia. Seus cachos tampando parte da visão, a garrafa vazia em seu colo como um bebê natimorto. Os propulsores sob o veículo seguem com seu ruído branco quase ronronante, convidam Lilah para o sono. — Vo... cê está bem, Lady? — pergunta o tibetano com as mãos no painel luminoso, suas sinapses dizendo para o carro virar à direita, o carro respondendo aos impulsos nervosos. — Eu pareço bem? — ela responde, a voz rouca como a de sua mãe. Tudo que ela havia herdado de Georgia fazia parte de sua pior faceta — e isso que ela nem mesmo era filha biológica dela. — Por... por isso perguntei. — Falta quanto pra chegar ao complexo? — Segundo o GPS, doze minutos.

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Alaor Rocha

— Acorde-me lá, então — e fecha os olhos com direito a uma lágrima escorrendo, tímida e frágil. Marie segue. Cumprimenta Hankie Christo, de quase dois metros e meio (patrocinados por radiação), com um aperto de mão que quase envolve seu braço. Com seus músculos brancos como estrelas agarra a bagagem da morena, sua voz rouca falando ininterruptamente com Nat, intimidado à presença da muralha de marfim. Seu corpo parece uma sombra de poste ao lado de Hankie, que pergunta como foi a viagem. — Pensei que era mais rápida — responde, trêmulo. — E são. O Tibete tem desacelerado para assegurar freios em qualquer incidente. Imagine que há duas semanas uma desgraça de uma lula gigante colidiu com o gerador e mais de cinco mil pessoas ficaram presas nos túneis — o empresário continua, certeiro. Vê a camiseta amarrotada mas também se vê sem poder desamassá-la com as malas em mãos. — Nossa... — As coisas andam difíceis, Bolha. Mas po’deixar que sua menina acaba de chegar ao paraíso — e ri, bonachão mas sem extrapolar — Pelo visto os áliens não se interessam pela Tasmânia... — Ninguém se importa com a Tasmânia, Hankie — Nat retruca, um sorriso envergonhado escapole. — Até o mundo ficar sem gente e todo mundo precisar meter pela sobrevivência. Você vai ver que nossa indús... — Nem perca tempo com isso. O mundo é dos John-Smiths. — Isso é bobagem. — Bobagem não quer dizer mentira.

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Alaor Rocha

— Me deixa sonhar, Bolha. Isso aqui é a terra dos sonhos! Hankie abre os braços, ainda com as malas em mãos. Respira o ar nada puro e glorifica o deus Sol com um leve murmúrio. Marie e Nat ficam passos atrás, procurando o sonho que todos parecem viver naqueles sorrisos e falatórios da estação de trem. — Bolha? — a morena enfim pergunta com um sorriso involuntário no canto da boca. — Época de escola. Muitas espinhas — o loiro responde rápido. — Ah... você se incomoda com ele, Bolha? — Sim. Mas se você me chamar assim, talvez eu mude de ideia — e sorri com ternura, aproximando as bocas do casal por alguns segundos. Hankie já está de braços abaixados mas não atrapalha o beijo. — Saudade — Marie diz após poucos segundos. — Muita. Vou sentir muito sua falta — Nat completa. Os olhos de Marie vacilam, brilham, a boca treme. — Saudade — repete. Mas ela se abstém de dizer do que sentirá saudade quando o abraça. Lady Starbuck segue. Vai ao interfone, aperta o botão. Espera o mordomo identificá-la na câmera, os olhos borrados de vinho e lágrima. Georgia aparece minutos depois, enrolada em pele de urso. O rosto enrugado e chupado feito balão sem gás apenas observando o desespero de sua filha. — Quem morreu? — pergunta a ruiva. — Minha felicidade — Lady responde. — Ai, que clichê. Você não nasceu pra arte mesmo — Georgia clica

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Alaor Rocha

em algo em seu punho e o portão se abre. Lilah se joga aos braços pouco abertos da mãe. — Preciso de ajuda — lamenta. — A sessão é duzentinhos. — Mãe... — É sério. ---------------------------------------------1. O Nada-Nunca é um grande projeto tecnológico do governo com o intuito construir um vilarejo artificial onde o tempo passaria mais devagar — mais ou menos como uma colônia de férias atemporal. Até 2222 ele não foi terminado, mas já existe um casebre transformado em hotel onde você pode passar uma noite e ganhar, pelo tempo vigente no planeta, uma hora de sono. O grande problema da tecnologia é isolar essa alteração relativa do tempo em espaços abertos, já que nenhuma redoma segura os táquions, reduzindo o efeito nesses lugares.

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Julgamentos Pessoais

Rafero Oliveira

Trecho retirado da revista Super Interessante, edição de Junho de 2048, um mês antes dela ser descontinuada no país: “O sistema funcionava. Com menos de 1% da renda do país direcionada aos departamentos jurídicos, o Estado Independente do Sul tinha muitos recursos sobrando para investir em todo o resto. Seu nível tecnológico acelerou e só não passou o Japão ainda por falta de matéria bruta. Mas agora, com o governo se acostumando à nova forma de redistribuição monetária, as projeções financeiras estão bem mais precisas. ‘O Futuro é nosso’, dizem os marqueteiros. A educação já é exemplar na nova pátria. Em pouco tempo serão colhidos frutos, na forma dos melhores profissionais do mundo. A medicina já mostra sinais de que, segundo analistas, abolirá quase todas as doenças existentes. Como eles dizem, no futuro. E os crimes são praticamente inexistentes, desde que a nova medida foi adotada.” “Não importa quão evoluídos formos, ainda vão existir crimes passionais.”, afirma o ex-chefe de polícia, Philipe Poltrão. “Tentar ignorar isso é o mesmo que negar que somos humanos.” Em entrevista, o senhor Poltrão alega que foi demitido de seu cargo, após batalhar durante toda a sua carreira de quase quarenta anos para consegui-lo. Agora, forçadamente aposentado, diz que vê a velhice chegar com cada vez mais força, como se só agora ela o tivesse reparado, e quisesse recuperar o tempo perdido.

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Julgamentos Pessoais

Rafero Oliveira

Autoridades afirmam que as novas leis foram estudadas e votadas até evoluírem até aquele ponto. Mas existe a lenda de que tudo começou com um acordo informal. A lenda conta que um ladrão arrombou uma casa. Ao sair, caiu na escada e ficou desacordado, sem levar nada consigo. Pela invasão e danos, a família lesada decidiu aceitar que o “ladrão” apenas pagasse pela porta e seria fim da história. Mas isso abriu precedentes. Logo, uma vítima de estelionato trocou a prisão do enganador por trabalho não-remunerado na empresa que tentou extorquir, até que sua dívida fosse paga. Quase todas as vítimas pareceram, então, ter desejos diferentes dos especificados em lei. Todos queriam algum tipo de “justiça pessoal”, que não seriam satisfeitas pelo simples fato de saber que o culpado estava sendo punido pelo seu crime. Todos queriam ser ressarcidos. Criou-se uma expectativa para se descobrir até onde iriam essas medidas extraoficiais. Segundo o próprio senhor Poltrão, os rostos surpresos que estamparam os jornais e conversas não poderiam ser mais falsos: Todos sabiam que aquele dia chegaria, afirmou. A jovem estudante tinha sido brutalmente torturada pelo maníaco. O assassino era tão perturbado que riu quando se declarou culpado em juízo. Também fez suas necessidades ali mesmo no tribunal, e as esfregou no rosto, depois de atirar um pouco delas no júri. Normalmente teria sido encaminhado a um hospício, para tratamento psiquiátrico. Mas o pai da garota, aquele operário cheio de sonhos para sua garotinha, se levantou e disse as palavras que, no futuro, transformariam o

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Estado em um país à parte. Ele pediu para matar o assassino com as próprias mãos. Olhares incrédulos, brados dos espectadores divididos entre o apoio e a contrariedade. As marteladas do juiz e as risadas do louco. Talvez tenham sido essas últimas que levaram o juiz a tomar aquela decisão, supostas testemunhas disseram. Talvez o próprio magistrado também quisesse escrever seu nome na história. A princípio ninguém teria entendido o que foi dito. Todos ainda gritavam quando o juiz disse a sentença. Aos poucos todos foram se silenciando. O louco ainda ria, mas viu que sem o burburinho, suas risadas estavam soando falsas demais e, lentamente, ficou calado também. Então viu a expressão no rosto do pai daquela garota. E seu rosto assustado foi são o suficiente para que o juiz não se arrependesse de sua decisão. A partir dali, vendo o quão bem-aceito o julgamento tinha sido pela mídia e o povo em geral, criou-se uma nova forma de Justiça. Obviamente existiram os descontentes. E, é claro, os apoiadores também se mostraram. Pouco a pouco, ofertas de emprego apareceram em outros estados para os que se declaravam publicamente contra a Justiça Pessoal, termo cunhado pelo agora dono da agência de publicidade mais respeitada do Estado, a Zero Hora. Outros discordantes de repente resolviam viajar, para visitar parentes distantes. Alguns poucos foram pegos cometendo delitos leves e, julgados pelo Estado em pessoa, foram extraditados. Outros ainda desapareceram sem deixar rastro. Embora nada pudesse ser comprovado, perguntas começaram a ser feitas e, numa jogada inesperada e inacreditável na época, uma brecha foi “encontrada” na legislação do país, possibilitando que o Estado se tornasse uma nação independente.” #

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O velho Phil teria mantido seu emprego. Tudo estava mudando ao seu redor, mas a polícia ainda precisava existir. Poucos delitos aconteciam, mas, ainda assim, alguém precisava ficar de olho. E, segundo Phil, a humanidade nunca estaria livre do crime. Mas agora, era apenas um velho desempregado que ousou discordar do paraíso e questionar a utopia. Rapidamente decidiu calar suas desconfianças e opiniões. Sabia bem que a ele não seria oferecida nenhuma passagem de primeira classe para alguma praia do Nordeste do Brasil, que agora era um país vizinho. Não haveria ninguém para reclamar seu corpo ou sentir sua falta. Seus dias se passavam em casa, sentado na velha poltrona que sua falecida esposa cuidava tanto para que ninguém mais ocupasse. “Aí não, querido.”, ela diria a seus netos, quando eles ainda se davam ao trabalho de serem crianças e os visitar. “Esse é o lugar do seu avô.” E mesmo assim, os gêmeos sentariam ali, cada um em um braço da poltrona e fingiriam resistir e brigar enquanto o Vovô Phil fingiria se zangar e tentar tirá-los à força. Mas isso foi antes dos Julgamentos Pessoais. Antes das escolas os tratarem como adultos formados. Antes de sua esposa falecer. Tinha uma televisão antiga de LED. Aquele velho televisor era totalmente diferente das atuais, que ele nem sabia pronunciar o nome nem muito menos operá-las. Assistia as poucas reprises de programas antigos que o Canal do Estado passava. Alguns faroestes, sempre com o xerife indo atrás dos bandidos, nunca um justiceiro. Os clássicos da época de seu avô com os bravos heróis que agiam sozinho, como Duro de Matar, Mercenários e Rambo teriam de continuar na memória de Phil. O Estado nunca permitiria filmes onde os indivíduos tomassem suas próprias decisões ou que contrariassem as autoridades.

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Talvez tenha sido influenciado por esses filmes que Phil causou todo aquele rebuliço no tribunal daquela vez. Agora não tinham mais salas gigantes, com a tribuna, bancos para os réus e para a audiência. Sem mesas para advogados e promotores. Nada de declarações sob juramento. Uma breve leitura de um pequeno relatório pelo Juiz, seguido da declaração de intenções da vítima e encaminhamento para execução da pena ou para a sala de espera, caso alguma preparação fosse necessária. Pois, se o acusador sentia a vontade de devolver o crime exatamente na mesma moeda ao réu, talvez fossem necessárias certas preparações como correntes, serras, lâminas… Phil não sentia essa vontade. Ele lembrava bem de como sua esposa, Mathilde, abominava essas pessoas. O ex-policial e sua esposa concordavam que essas “vítimas” tinham de ser julgadas por sua crueldade tanto quanto os criminosos. Então Phil, o velho Delegado, pediu que o rapaz fosse julgado sob a legislação antiga. Que cumprisse pena na cadeia. Tinha sido um acidente, mas dirigir bêbado continuava sendo crime na opinião de Phil e isso não iria mudar, não importa o quão diferente o mundo fosse agora. O Juiz não gostou. Disse que as prisões estavam obsoletas e que só serviam para sugar dinheiro do Estado. Que eram pessoas antiquadas e presas ao passado, como o sr. Poltrão, que impediam que o desenvolvimento se acelerasse. O discurso desse Juiz na televisão tinha sido bem bonito, obtendo quase 100% de apoio da população, como era de costume nessa época.

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Não demorou muitos dias até que uma intimação chegasse ao apartamento do ex-policial. Estavam fechando a prisão para onde o assassino de sua esposa seria enviado. O Juiz, com a autorização expressa do Estado, havia decretado que Phil dirigiria um carro igual ao do assassino, ou na impossibilidade de encontrar um modelo idêntico, o mais similar possível. O atropelaria então, em situação idêntica, ou na impossibilidade desta, que também fosse o mais similar possível. Os protestos por telefone de Phil tinham sido educadamente negados. Suas visitas ao tribunal tinham sido gentilmente recusadas. Suas cartas aos jornais cordialmente ignoradas. Phil chegou a começar a pensar em tomar armas e começar uma revolução contra o sistema. Neo tinha conseguido, por que não ele? O velho herói de ação clássico Bruce Willis tinha conseguido em Surrogates, por que não um velho policial? Seria como John McClane em Duro de Matar 4.0, armado e sozinho contra um exército de malfeitores e… E… A quem ele queria enganar? Era só um velho policial que “por sorte” não tinha dado mais que vinte tiros em sua carreira. Por mais vergonhoso que seus antigos heróis teriam achado, Phil teria de fugir. Ele não sabia como, não sabia em quem poderia confiar, mas não mataria outra pessoa, não importa o que acontecesse. O dia da sentença chegava e Phil se sentia tão condenado ao corredor da morte quanto o homem que naquele dia havia decidido que “beber o fazia dirigir melhor”. O ex-policial tinha decidido ver quão seguras eram as fronteiras atualmente, visto que nenhuma informação do tipo chegava aos ouvidos dos cidadãos comuns. Se fosse pego, diria que

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estava apenas viajando pelo Estado, tentando se preparar para o fatídico dia. Mas sequer conseguiu sair da cidade. Ali estavam sendo gastos a porcentagem que antigamente era reservada à força policial. Guaritas e guardas privatizados. Não se viajava pelo país sem autorização por escrito do Estado, que só era emitida ao alto escalão. Escoltado de volta a seu apartamento, um gentil soldado se ofereceu para fazer quaisquer compras que Phil precisasse, de forma que ele pudesse “aguardar confortavelmente a sentença, na poltrona de sua casa”. Eles nem estavam se preocupando em fingir. Disseram claramente que a sentença era tanto de Phil quanto do criminoso. Será que reservavam alguma coisa para ele depois que tirasse a vida do homem? Ou será que ele era apenas um velho paranoico? Sem certezas ou escolhas, Phil esperou. Assistia televisão e esperava. Seu telefone estava mudo, mas também não tinha para quem ligar. Não fazia ideia de onde estavam seus netos, desde que elas foram arrancadas de casa para serem educadas nos moldes dos “Novos Cidadãos”, como tinha acontecido com toda a juventude do país. Não sabia se teria coragem de ligar pra elas também, caso tivesse seus números. Agora todas as ligações requisitavam identificação e autorização do destinatário, mesmo que não fossem ligações a cobrar. Phil não sabia se seu coração aguentaria o baque de ser recusado por elas. # A noite que antecedeu tudo foi cheia de sonhos estranhos. Sua esposa tentava tirar as crianças dos braços da poltrona, mas, de repente,

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ela pegava fogo e não eram mais crianças sentadas, mas um Juiz com peruca branca de cachinhos e o louco assassino, que enfiava as mãos nas calças e… O velho policial acordou assustado e suado. O sol ainda não tinha saído, mas, mesmo assim, ele se levantou, com a dificuldade imposta pelos seus sessenta e poucos anos. Tomou seu banho, empurrou um copo de café sem açúcar em um estômago sem apetite, escovou sua dentadura e a língua e aprumou os poucos fios de cabelo que, corajosos e determinados, ainda se seguravam no topo de sua cabeça. Saiu para a rua, depois de aproveitar no elevador o que sabia serem seus últimos minutos sozinho. O soldado o aguardava no saguão e o guiou até um carro oficial, sem nem responder ao “Bom dia” de Phil. Em menos tempo do que gostaria, chegaram ao tribunal para encontrar um circo já estava montado. Conseguiram recuperar o carro que tirara a vida de sua esposa. Como um monstro, um cachorro raivoso, encarava o velho em uma ponta da rua. No outro extremo, em um camburão com a porta semiaberta, o assassino estava sentado com os braços algemados às costas. Era guardado por policiais vestidos à moda antiga, mas Phil tinha quase certeza que vira algum deles vigiando seu prédio enquanto o dia de hoje não chegava. Os flashes tinham começado na hora que ele escoltado e ainda não haviam parado. E não parariam até que tudo estivesse terminado. Phil torcia para que houvesse um repórter por perto para registrar o que quer que fosse acontecer após o ato. Após algumas breves palavras do Juiz sobre leis, justiça e progresso,

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Phil foi convidado a se dirigir ao veículo. Não sentiu vontade de recusar ou protestar, tantas eram as armas à mostra naquele pátio. Seguiu, arrastando os pés de cabeça baixa até aquele carro maldito. Recebeu as chaves de um guarda que se inclinou para dentro do carro, como se fosse checar o cinto de segurança de Phil — Não tenta nada, por favor. — O guarda sussurrou, com um olhar sincero e quase gentil no rosto. — Faz o que você tem que fazer e todo mundo pode ir embora pra almoçar em casa hoje. Fazer o que tinha que fazer. Essa era a ideia de Phil. Talvez morresse com os tiros, ele pensou, enquanto sentava ao volante e batia a porta. Mas talvez conseguisse jogar o carro no Juiz antes disso. O importante era que morresse. Colocou a chave na ignição. Desejou que existisse vida após a morte, como os antigos acreditavam antes das religiões serem banidas. Apenas para poder assistir aos acontecimentos como uma alma penada. Virou a chave e escutou o motor rugir como um animal. Quase riu, tentando imaginar o que seria feito do criminoso em uma situação dessas. Sem cadeia e sem acusador, o assassino não poderia ser penalizado. O plano do velho policial era perfeito. Mas, quando ele olhou pra cima e viu todas aquelas armas, ele per-

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Julgamentos Pessoais

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cebeu a falha no seu plano. Não tinha coragem. Philipe Poltrão não era um herói. Triste e desanimado, à beira das lágrimas, o Velho Phil engatou a primeira marcha e pisou no acelerador. Até a emoção de dirigir um carro daquele tamanho, em direção a um homem ajoelhado no chão, era demais para aquele senhor idoso. Seu peito doía, sua respiração estava rasa e suava frio. E então, ele entendeu o que acontecia. E riu, perdendo o controle do carro quando seu braço esquerdo repuxou sozinho como reflexo pela dor. De rosto contraído e lágrimas escorrendo, Phil não via nem o painel à sua frente, quanto mais para onde ia. Mas ria. “Decidam o que quiserem aqui e se sintam os maiorais por isso. Mas existe um Julgamento que nenhum de vocês pode contrariar”. Foram seus últimos pensamentos antes de entrar com o carro pela porta da frente do tribunal. E, rindo, o velho policial explodiu em chamas.

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“Olhem de novo para esse ponto. Isso é a nossa casa, isso somos nós. Nele, todos á quem ama, todos á quem conhece, qualquer um dos que escutamos falar, cada ser humano que existiu, viveu a sua vida aqui. O agregado da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões autênticas, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e coletor, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilização, cada rei e camponês, cada casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada mestre de ética, cada político corrupto, cada superestrela, cada líder supremo, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu aí, num grão de pó suspenso num raio de sol. A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pensai nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, vieram eles ser senhores momentâneos duma fração desse ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores dum canto deste pixel aos quase indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes as suas incompreensões, quão ávidos de se matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas exageradas atitudes, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no Universo, são reptadas por este pontinho de luz frouxa. O nosso planeta é um grão solitário na grande e envolvente escuridão cósmica. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de lugar algum para nos salvar de nós próprios. A Terra é o único mundo conhecido, até hoje, que alberga a vida. Não há mais algum, pelo menos em um futuro próximo, para onde nossa espécie possa emigrar. Visitar é possível. Assentar-se, ainda não. Gostemos ou não, por enquanto, a Terra é onde temos de ficar. Tem-se falado da astronomia como uma experiência criadora de firmeza e humildade. Não há, talvez, melhor demonstração das tolas e vãs soberbas humanas do que esta distante imagem do nosso miúdo mundo. Para mim, acentua a nossa responsabilidade para nos portar mais amavelmente uns para com os outros, e para protegermos e acarinharmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos.”

-- Carl Sagan

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Começo esta coluna pensando em Carl Sagan, quem foi mais inspirador quando se trata de universo do que o Divulgado Científico que neste dia nove de novembro completaria setenta e nove anos? Poucos. Talvez Arthur Charles Clarke? Talvez Isaac Asimov? Quem sabe Robert A. Heinlein? Mas algo é fato, é impossível comparar o trabalho desses ficcionistas, a base real dada por Sagan para a ficção posterior a ele. Pálido ponto Azul, o discurso feito em 1996 após a análise das imagens feitas pela sonda Voyager 1, é apenas um dos grandes legados de Sagan. Que se embrenhou profundamente em mudar valores e conceitos, que nós humanos tínhamos de nós mesmos. De onde veio? Nascido em uma família ucraniana de tradição judaica reformista, o mais liberal dos três grupos do judaísmo, que residia no bairro do Brooklyn em Nova Iorque. Sagan teve sua vida e personalidade diretamente influenciadas pela personalidade de seus pais De um lado sua mãe, fiel as tradições judaicas, de uma infância pobre e sofrida, que havia tirado dela a oportunidade de alcançar seus sonhos e ambições intelectuais. Ela tinha grande admiração de Carl por isso, ele teria oportunidade de alcançar o que ela não alcançou. Porém, a maior influência veio mesmo de seu pai, operário da indústria têxtil nascido na Ucrânia. Apesar do assombro causado por Carl, em suas perguntas sobre estrelas e dinossauros. Sam colaborou para trabalhar esta curiosidade de seu filho e transformá-la em algo útil para sua educação. Sobre seu país, e esta influência recebida por eles Sagan escreveu o seguinte: “Meus pais não eram cientistas. Eles não sabiam quase nada sobre

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ciências. Mas ao me introduzirem simultaneamente ao ceticismo e ao saber, ensinaram-me os dois modos de pensamento coexistentes e essenciais para o método científico.” Outra lembrança afirmada por ele. Foi um episódio, de quanto tinha quatro ou cinco anos, e seus pais o levaram a Feira Mundial de 1939 (1939 World’s Fair), na cidade de Nova Iorque. Aquela exposição marcaria sua vida, ali ele teria contato com a ciência propriamente dita, e coisas que dentro de alguns anos mudariam realmente a humanidade. Entre estes destaques existia um mapa chamado de a América do Amanhã (“America of Tomorrow”), onde era possível ver diversos arranha-céus e alguns poucos carros da General Motors. Ali ele também pode ter contato com a Televisão, e a célula fotoelétrica. Sobre tudo isso Sagan escreveu: “Claramente, o homem realizou maravilhas de um modo que eu nunca tinha imaginado. Como poderia um tom tornar-se uma imagem e luz tornar-se um ruído?” Nessa mesma exposição foi enterrada uma cápsula do tempo, contendo coisas dos anos 30, estes eventos sempre o deixavam entusiasmado. Quando adulto ele também faria algumas cápsulas do tempo, mas ao invés de enterrá-las no solo, as enviaria ao espaço. Estas cápsulas são a Placa Pioneer e o VoyagerGoldenRecord. Outra coisa que entusiasmava Carl era a natureza, isso se deu a partir do ensino fundamental. Quando tinha cinco anos de idade, sua mãe lhe arranjou um cartão da biblioteca publica, foi então que o futuro cientista começou suas viagens para a biblioteca. Conta ele: “Fui par o bibliotecário e pedi um livro sobre as estrelas... E a resposta

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que encontrei no livro foi impressionante, o Sol também era uma estrela, só que muito próxima. Logo, as estrelas eram outros sóis, mas estavam tão distantes que eram apenas pequenos pontos de luz para nós... A escala do universo de repente se abriu para mim. Era um tipo de experiência religiosa. Houve uma magnificência para ela, uma grandeza, uma escala que nunca me deixou, nunca me deixará” Apesar de ter apresentado grande interesse também por animais, e pelo corpo humano, o fascínio de Sagan era maior pelo espaço, principalmente influenciado pelas histórias de Edgar Rice Burroughs, que agitavam sua mente com a temática de vida em outros planetas como Marte. Ou seja, apesar da grande influência científica e de formação, o que conduziu de vez a imaginação do grande cientista foram às histórias escritas por alguém. Muitas vezes até um grande gênio precisa ser conduzido por um fio de inspiração. Para onde iria? Sagan estudou na Universidade de Chicago, onde integrou a Sociedade Astronômica Ryerson, graduando-se em artes. Em 1954, e com honras especiais e gerais em ciências, em 1955. Obteve um metrado em física em 1956, e por fim, tornou-se doutor em astronomia e astrofísica, em 1960. Passou a maior parte da sua vida lecionando na Universidade de Cornell em Ithaca, mas também este lecionando em diferentes períodos em Cambridge, Berkeley e Harvard. Esteve vinculado ao programa espacial americano desde o seu começo. Na década de 50, trabalho como assessor da NASA, onde foi responsável entre outras coisas por dar instruções para os astronautas do programa Apollo, antes de partirem para a lua.

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Foi o principal colaborador no trabalho de enviar naves robóticas para explorar o sistema solar, foi dele a ideia de incluir nessas naves, uma mensagem universal que pudesse ser decodificada, por seja lá quem a encontrasse. Defendia as missões robóticas e ataca o financiamento de sistemas de transporte espacial, ou de estações espaciais. Devido ao seu alto custo que poderia resultar num mal gasto do dinheiro destinado a pesquisas. Até o ano de sua morte, 1996, permaneceu ministrando um curso de pensamento crítico na Universidade de Cornell. Sagan foi também responsável por contribuir com descobertas vitais para o desenvolvimento científicos. Entre elas a descrição, no inicio da década de 60, de uma possível estrutura do planeta Vênus. Ele o descrevia como um grande planeta seco e quente, que por suas emissões de rádio, deveria ter algo aproximadamente a 500ºC. Como cientistas visitante na NASA, com a sonda Mariner 2, confirmou suas conclusões sobre estas condições descritas por ele. Foi ele também o primeiro a pensar na hipótese de uma das luas de Saturno, Titã abrigar uma camada de compostos no estado líquido pela sua crosta. E que uma das luas de Júpiter, Europa, poderia abrigar oceanos de água subterrâneos. Isto Faria com que Europa fosse potencialmente habitável por formas de vida. Este segundo fato foi posteriormente confirmado de forma indireta pela sonda espacial Galileu. Foi Sagan também o primeiro a apontar o perigo do efeito estufa para a humanidade, o comparando com a evolução natural de Vênus, cujo efeito estufa tornou sua atmosfera descontrolada, e imprópria para a vida. Estes são apenas algumas das grandes descobertas de Sagan no campo científico, entretanto, a influência dele para a humanidade vai além, e o fato que viria a torná-lo realmente conhecido seria a divulgação científica. Sua habilidade de transmitir seus ideais e conhecimentos, fez com

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que levasse o conhecimento científico a um grande publico. Sua série de televisão com treze episódios Cosmos: Uma viagem pessoal, produzida pela PBS, abrange diversos temas que vão desde a origem da vida, até uma perspectiva de nosso lugar no universo. Com este trabalho ganhou o Prêmio Emmy e o Prêmio Peabody, tendo sua série transmitida em mais de 60 países para mais de 600 milhões de pessoas, atingindo a marca de programa mais visto na história. E mesmo na era do Youtube, suas várias cópias espalhadas pela rede possuem consideráveis números de visualizações. De 1969 a 1979, Sagan foi editor da Revista Icarus, publicação para profissionais de astrologia. Cofundador da Sociedade Planetária e membro do conselho de administração do projeto SETI, que busca a existência de vida inteligente em outros planetas, onde era assistido por mais de 70 cientistas. Sagan também foi o responsável junto ao Dr. Frank Drake por preparar a mensagem de Arecibo, uma sequência de sinais de rádio dirigidas ao espaço enviadas através do radiotelescópio de Arecibo em 16 de novembro de 1974, destinada a informar sobre a existência da terra para qualquer um que estivesse lá fora. Também foi autor de um livro que complementa a série, chamado Cosmos, e uma sequência desse, chamado Pálido Ponto Azul, escolhido como livro do ano de 1995 pelo The New York Times. Foi fortemente conhecido pela sua posição a favor do ceticismo científico e contra as pseudociências, como exemplo, podemos citar sua refutação ao caso de abdução de Bett e Barney Hill. Morreu dois anos após ser diagnosticado com mielodisplasia, e depois de se submeter a três transplantes de medula óssea provenientes de sua irmã. Aos 62 anos, no dia 20 de dezembro de 1996, o Dr. Carl Sagan, deixava nosso Pálido Ponto Azul.

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Lucas Rueles

Considerações de uma grande mente Isaac Asimov descreveu Sagan como um dos dois homens cujo intelecto superava o dele próprio. O outro segundo ele próprio foi o cientista de computadores, perito em inteligência artificial, Charles Minsky. Ou seja, para Asimov, Sagan conseguia pensar o mundo em linhas de raciocínio que iam além de seu intelecto e potencial. Concordo, se você pensar em duas ou mais mentes brilhante nesse período, mas quero que você enxergue aqui a base do argumento do grande mestre da Ficção. Afinal, com que tipo de coisas o grande humanista trabalhava em sua obra? Com os efeitos da tecnologia e das mudanças cientificas na vida humana. Da produção cientifica e em que molde ela seria feita. Da sociedade e de sua evolução racional ou não, ao redor dos anos. Então ele iria avaliar a intelectualidade de um homem, pela sua capacidade de pensar e trabalhar estes mesmos problemas, ou de lidar com a tecnologia nestes mesmos parâmetros, sem se desapegar da coisa mais importante: A própria ciência. Afinal, me diga um conto dele que não trabalhe este detalhe, mesmo que indiretamente, mesmo quando se abstêm da ficção científica, ele não se deixa ficar de fora da ótica do avanço científico. Falar isso de Sagan, para Asimov, era reconhecer nele, um homem que via a humanidade como o que ela é, pessoas de todos os tipos, que se estão contra a ciência, é porque a temem. Se a ciência apresenta obscuridade, ela irá apresentar terror a humanidade, e esta se voltará contra ela, buscando argumentos que para sua mente pareçam mais seguros. A vista dos homens que não aceitaram Copérnico, uma vez que era muito difícil para o homem não ser mais o centro do mundo, quem dirá para ele se sentir um pálido ponto azul jogado na imensidão do universo.

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Rafael Marx

Todo escritor abomina o erro. Não há nada pior do que descobrir que você colocou um personagem em um lugar onde seria impossível que ele estivesse, ou trocou o nome de um coadjuvante pelo de outro já morto na história. Pior ainda: já imaginou dizer em certo ponto da história que uma arma mágica se quebrou e, no final, permitir que o protagonista a use para derrotar o grande vilão? Erros são ruins e fazer a má fama de qualquer escritor. Mas não precisar ser necessariamente assim. Existem alguns “erros calculados”, pequenas omissões ou alterações da realidade, que nos permitem desenvolver a história no rumo que queremos. Só é preciso um pouco de coragem. Um exemplo que preciso citar é o da série de videogames Call of Duty. Eu, particularmente, prefiro Call of Duty a Battlefield, uma vez que, enquanto a segunda é mais um campo aberto a ser explorado, a primeira é quase como ver um filme interativo, seguindo por uma trilha que serve de guia para a nossa história. Mas algo sempre me incomodou na que é minha série preferida entre as duas. O problema, para mim, é a facilidade com que os personagens conseguem ingressar em prédios supostamente estratégicos e, apenas quando estão lá dentro, são descobertos e começam os tiroteios. Além disso, os inimigos ficam horas procurando pelo seu grupo, sem efetivamente encontrá-lo. Bem, Call of Duty começou com histórias sobre a Segunda Guerra Mundial, nas quais torres de vigia eram tudo o que servia para o monitoramento das bases. Quando a história deu um salto para a modernidade, com a série Modern Warfare, ficaria complicado contar histórias com o mesmo estilo de missão de invasão de antes se fosse levada em conta a possibilidade de sistemas de alarme e câmera. A desculpa dada, então, é a de que algum especialista técnico “hackeou” a rede de câmeras e alarmes (isso quando alguma desculpa é dada). Bem, isso, na verdade, não faz o menor sentido, uma vez que esse tipo de rede não é “conectado”, e os cabos de informação das câmeras são meramen-

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te adaptados para enviar dados em vídeo. Seria absurdo acreditar que qualquer tipo de hack, seja ele através de uma conexão distante ou acessando o cabo de uma câmera, serviria para tanto. Parece um erro absurdo, mas é necessário. Nesse caso, a história apela para nossa “suspensão de descrença”. É como pedir que você releve isso, pois sem esse fato a história não poderia se desenrolar. Outro apelo para nossa suspensão de descrença vem dos quadrinhos. Tanto a Marvel quanto a DC, por exemplo, pedem que aceitemos alguns fatos absurdos como reais para que possam nos contar suas histórias. Afinal de contas, não faz sentido o Superman voar sem impulsão (como é o caso do Thor). Também não faz sentido que um personagem como o Hulk ganhe tanta massa e energia para usar como força em questão de meros segundos, sem tirar essa massa e força de lugar algum, e também sem se autoconsumir. Outra questão seria o Wolverine, que, com seu esqueleto metálico, teria uma densidade tão grande que jamais conseguiria sair por conta própria de dentro de um lago. O Wolverine, aliás, não deveria nem ao menos se mexer. Mas sem esses elementos, as editoras estariam incapacitadas de nos contar grandes fatos e histórias. O Hulk, por exemplo, é um dos meus personagens favoritos. A razão disso é que ele é uma versão moderna da história O médico e o monstro. Mas o Hulk foi mais além, incluindo outras personalidades e versões (como o Hulk cinza, vulgo Senhor Tira-teima), tudo isso levando em conta a teoria de que todos nós contamos com uma personalidade dominante e algumas outras “satélites”, e que alguém com Múltiplas Personalidades é, na verdade, uma pessoa que tem um conflito entre as personalidades em busca do domínio. Minha versão favorita do Hulk, aliás, é aquela na qual o monstro verde é completamente bestial, matando e destruindo sem controle, trazendo a culpa toda para o pobre Doutor Bruce Barner. Se eu não suspendesse minha descrença científica, essas histórias nunca teriam me alcançado. Ou seja, alguns pequenos erros, quando calculados e negociados

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com o leitor, são bem aceitáveis. Estamos, claro, falando de erros cuja presença será relevante. Erros inúteis são e sempre serão rechaçados pelo público. Aliás, mesmo os erros mais aceitáveis muitas vezes sofrem reprovação. É realmente complicado calcular até onde se estende o ponto onde o público aceita fatos que escapam da nossa realidade. Há uma forma de aproximar o cálculo, entretanto: o realismo da sua história indica, mais ou menos, até onde o público aceitará algo. Se vocês estiver contando uma história sem nenhum elemento fantástico, ficará complicado para o leitor aceitar que um personagem que levou doze tiros na cabeça sobreviva. Ou que a muralha ao redor da arma secreta inimiga não tenha guardas. Em uma história fantástica, entretanto, será mais fácil aceitar um personagem sortudo demais ou a ausência de algo tão banal como sentinelas sobre uma muralha. Entretanto, mesmo essa forma de medir pode resultar em erros não aceitos. O bom, na verdade, é nunca abusar deles.

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EDITORES-CHEFES LUCAS RUELES RAFAEL MARX

EDITORES SEMANAIS ERIC PARO JOÃO LEMES LUIZ LEAL DIOGO MACHADO

DIAGRAMADOR JOÃO LEMES

REVISOR ANDRÉ CANIATO

REDATOR ALAN PORTO VIEIRA


AUTORES: SEMANA FANTÁSTICA

SEMANA HORROR

Fantasia Épica: Marlon Teske

Horror: Amanda Ferrairo

Espada e Magia: Victor Lorandi

Noir: Philippe Avellar

Semana Científica

SEMANA FANTASIA MODERNA

Ficção Científica Social (Cyberpunk): Steampunk: Rafero Oliveira Alaor Rocha Ficção Científica Space Opera: Rodolfo Xavier

Fantasia Urbana: Thiago Sgobero



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