Letras Jurídicas | 2 semestre 2016

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ISSN 2358-2685

PUBLICAÇÃO DA ESCOLA DE DIREITO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2O SEMESTRE DE 2016

JURÍDICA

LETRAS



ISSN 2358-2685

publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva Volume 4 | Número 2 | 2O SEMESTRE DE 2016 EDITORA Karen Mryna Castro Mendes Teixeira

JURÍDICA

LETRAS


© 2017, by Centro Universitário Newton Paiva © 2017, by Autores Volume 4 | Numero 2 | 2O semestre de 2016 Impressão 2017

Centro Universitário Newton PAIVA ESCOLA DE DIREITO Unidade Juscelino Kubitschek: Av. Presidente Carlos Luz, 220 - Caiçara Unidade Buritis: Rua Jose Claudio Rezende, 26 - Buritis Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil


apresentação A sociedade contemporânea perpassa por um momento de mudanças inexoráveis, que refletem a complexidade da realidade que nos permeia, e que dialoga com o necessário processo de reconstrução dos paradigmas do Direito. Logo, ao discente-pesquisador impõe-se o desafio de examinar as transformações ocorridas no cenário hodierno do Direito, sob a perspectiva do Estado Democrático do Direito e dos valores e preceitos erigidos pela Constituição da República de 1988. Nessa linha de intelecção, a Revista Letras Jurídicas apresenta-se como relevante instrumento de fomento ao debate e reflexão, de temáticas controversas da seara jurídica, tendo como arcabouço as pesquisas delineadas nos trabalhos de conclusão de curso dos discentes da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Destaca-se, por oportuno, que o periódico tem por escopo publicar os melhores artigos científicos de discentes, permitindo o acesso livre e irrestrito à toda a pesquisa empreendida no âmbito da Escola de Direito, em consonância com o compromisso editorial de elevada qualidade dos trabalhos publicados. Espera-se que o diálogo e as reflexões propostas pelos discentes nos trabalhos publicados possam contribuir para futuras pesquisas, e, para o enriquecimento de toda a comunidade acadêmica. Boa leitura!

Michael César Silva Doutor e Mestre em Direito Privado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenador do Programa de Pesquisa da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Editor da Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/MG.

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expediente ESTRUTURA FORMAL DA INSTITUIÇÃO Presidente do Grupo Splice: Antônio Roberto Beldi Reitor: João Paulo Beldi diretor acadêmico: Celso de Oliveira Braga Diretor Administrativo e Financeiro: Cláudio Geraldo Amorim Sousa Secretária Geral: Denise de Lourdes Oliveira Coordenador geral da escola de direito: Emerson Luiz de Castro COORDENAÇÃO do curso de direito: Campus Buritis: Sabrina Tôrres Lage Peixoto de Melo Campus CCL: Valéria Edith Carvalho de Oliveira

EDITORA Karen Mryna Castro Mendes Teixeira

apoio técnico Núcleo de Publicações Acadêmicas do Centro Universitário Newton pAIVA http://npa.newtonpaiva.br/npa Editora de Arte e Projeto Gráfico: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG


sumário A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E ERRO MÉDICO Arthur Dias Duarte ............................................................................................................................................................................................... 8 O PSICOPATA CRIMINOSO FRENTE À LEI PENAL BRASILEIRA Bárbara de Oliveira Dias ...................................................................................................................................................................................... 20 MEDIAÇÃO NO NOVO CPC: A efetividade da mediação diante de sua obrigatoriedade nas ações de família segundo o novo CPC Emily Matias Assumpção .................................................................................................................................................................................... 29 ESTUPRO DE VULNERÁVEL E ERRO DE TIPO Fabiane Aparecida Floripes .................................................................................................................................................................................36 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: o Supremo Tribunal Federal violou o Princípio da Presunção da Inocência ante a decisão no HC126292(2016)? Fábio Campos de Oliveira ...................................................................................................................................................................................45 A CULPA GRAVÍSSIMA NOS CRIMES DE TRÂNSITO PREVISTOS NO ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL Felipe Giffoni da Silva .......................................................................................................................................................................................... 52 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA EM DECISÕES CRIMINAIS: uma análise dos limites da liberdade de expressão e do direito à informação diante da imparcialidade do juiz Fernanda Beatriz de Souza ................................................................................................................................................................................. 59 MONITORAMENTO ELETRÔNICO NO BRASIL: uma alternativa questionável no que se refere à solução para a superlotação do sistema carcerário brasileiro Leonardo Carvalho Pedrosa de Souza ............................................................................................................................................................... 72 A POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DOS EFEITOS DA JUSTIÇA GRATUITA AO DEPÓSITO RECURSAL: Análise Sob a Luz dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa Lucas Nascimento Saturnino de Castro ............................................................................................................................................................. 79 O PSICOPATA E O SISTEMA PUNITIVO ESTATAL: UMA REFLEXÃO A LUZ DO DIREITO PENAL BRASILEIRO Luma Virgínia Pereira Firmo da Silveira ...............................................................................................................................................................88 EFEITOS DAS DECISÕES JUDICIAIS PROFERIDAS PELOS JUIZADOS ESPECIAIS NAS AÇÕES DE TRANSFERÊNCIA DE VEÍCULOS: análise crítica da vinculação do Estado à ordem judicial que impõe obrigação de fazer Neilane Pinto Ananias ..........................................................................................................................................................................................97 EFICÁCIA DAS NORMAS DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR Patrícia de Souza Lacerda ...................................................................................................................................................................................108 A MEDIAÇÃO NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES FAMILIARES Paula Cristiane Motta Sales .................................................................................................................................................................................117 A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRABALHISTA Rafael Vasconcellos Augusto ..............................................................................................................................................................................126 A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NA LEI MARIA DA PENHA: uma solução diante da ineficiência do Estado em coibir a Violência Doméstica Raíssa Pereira Gonçalves ....................................................................................................................................................................................138 PONDERAÇÕES ACERCA DA ASSERTIVIDADE DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: a elisão como vetor econômico Raquel Ferreira Lima ............................................................................................................................................................................................146

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LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO NAS AÇÕES DE ALIMENTOS AVOENGOS Rayane Caywre Ferreira ...................................................................................................................................................................................154 DISCUSSÃO SOBRE O PORTE DE DROGAS EM AMBIENTE MILITAR: Aplicação dos princípios constitucionais e bens jurídicos tutelados Rodrigo Camões Diogenes de Carvalho ........................................................................................................................................................164 A TOMADA DE DECISÃO APOIADA E O EXERCÍCIO DA CAPACIDADE PLENA DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA Samara Kellen Jardim .....................................................................................................................................................................................175 DEVOTEES E CRIMES SEXUAIS CONTRA DEFICIENTES FÍSICOS Sara Caroline Leles Próton da Rocha .............................................................................................................................................................185 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA PELO DEVER DE INFORMAÇÃO À GESTANTE Stéphanie Lorrany Barbosa .............................................................................................................................................................................197 A IRREDUTIBILIDADE SALARIAL EM MOMENTOS DE CRISE: análise jurisprudencial Otávio Augusto de Oliveira ..............................................................................................................................................................................211 A EFICÁCIA DA CRIAÇÃO DOS JUIZADOS DE INSTRUÇÃO E GARANTIAS DIANTE DA DEMANDA DA SOCIEDADE E OS IMPACTOS NOS ORGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA Tiago Salvador .................................................................................................................................................................................................220 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: uma realidade possível em um país de dimensões continentais Vagner Silva Souza ..........................................................................................................................................................................................229 PESQUISA ....................................................................................................................................................................................................... 239

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A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E ERRO MÉDICO THE THEORY OF LOSS OF CHANCE AND MEDICAL MALPRACTICE Arthur Dias Duarte1

RESUMO: Esse trabalho acadêmico tem como propósito trazer à tona a discussão da temática referente à responsabilização civil do profissional médico, perpassando pelas obrigações de meio e de resultado, atingindo-se a teoria da perda de uma chance, que não está codificada no texto legal, mas se faz presente por meio da doutrina e jurisprudência no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, se verificará que para a condenação por perda de uma chance do profissional médico devem estar presentes os requisitos da responsabilidade civil: culpa, ato ilícito, dano e nexo causal. Destaca-se que haverá a responsabilização pela chance séria, real e concreta frustrada, não cabendo a indenização do valor correspondente a totalidade do dano, já que deve ser verificada a probabilidade de sucesso. PALAVRAS-CHAVE: Erro médico. Perda de uma chance. Responsabilização civil.

ABSTRACT: This academic essay aims to bring out the theme of the discussion regarding the civil liability of the medical professional, passing though the obligations of means and result, reaching the theory of loss of chance, which is not encoded in the legal text, but is present by the doctrine and jurisprudence on the home rights law. Furthermore, it will checked that for conviction in the loss of a chance of the medical professional must be present the requirements of civil liability: fault, tort, damage and causal link. It is noteworthy that there will be accountability for serious chance, real and concrete frustrated, not fitting the compensation of an amount corresponding to all of the damage, as it should be checked the likelihood of success. KEYWORDS: Civil liability. Loss of chance. Medical malpractice.

SUMÁRIO 1 Introdução 2 Saúde como direito fundamental 3 O Erro Médico 3.1 Conceito 3.2 Responsabilidade civil médica 4 A teoria da perda de uma chance 4.1 Conceito 4.2 Evolução histórica 5 A aplicabilidade da teoria da perda de uma chance ao erro médico 6 Conclusão Referências.

1 Graduando em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva

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1 INTRODUÇÃO

2 SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Antigamente, datando do século XVII, há a vivência do Estado Liberal, marcado pelo surgimento dos Estados Soberanos e pela derrocada dos feudos da Idade Média. Nesse contexto, há o surgimento da primeira dimensão de direitos, visto por uma atividade estatal negativista, ou seja, manifestado pela garantia das liberdades individuais e a falta de rol mínimo de direitos fundamentais assegurados aos indivíduos. Com a ebulição da Segunda Revolução Industrial no século XIX, em que os trabalhadores das fábricas de produção em série passaram a pressionar o Estado pelo estabelecimento de um rol mínimo de direitos, acaba por surgir a segunda dimensão de direitos. Essa ordem jurídica é caracterizada pela salvaguarda dos direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, em que o Estado atua de forma positiva, implementando ações que visem a efetividade dos direitos assegurados. No direito pátrio contemporâneo, sob a égide do Estado Democrático de Direito, o direito à saúde é garantido pelo disposto no art. 196 da CRFB/88, marco esse entendido como garantidor do bem-estar social e do princípio fundamental da república da dignidade da pessoa humana. Quanto ao erro médico, se percebe que a proliferação do número de faculdades de medicina, por meio de autorização do Ministério da Educação (MEC), acaba por colocar em pauta a questão da qualificação desses futuros profissionais, situação essa que ocasionou o surgimento da Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM), com o objetivo de garantir o mínimo de conhecimentos necessários para o bom desempenho da atividade profissional. No quesito da responsabilidade civil do profissional médico, vislumbra-se que por se tratar de profissional que labora com onerosidade e habitualidade na prestação de serviços, tem como paradigma jurídico o Código de Defesa do Consumidor, que prevê no art. 14, §4º, que para a responsabilização dos profissionais liberais, como é o caso do médico, é requisito configurador a figura da culpa. Ademais, observa-se que como parâmetro para a reponsabilidade civil pela obrigação de meio, o profissional médico é condenado por imperícia, negligência, falta no dever de informação ou por imprudência; nessa ocasião há o empenho falho na tentativa de se atingir determinado resultado. Por seu turno, a obrigação de resultado ocorre no caso dos cirurgiões plásticos, que garantem o resultado especifico estético almejado pelo paciente. Pondera-se que para que haja a incidência da perda de uma chance, é primordial que essa seja real, concreta e revestida de probabilidade de ocorrência, sob pena de se tratar de mera hipótese ou aborrecimento não tutelado juridicamente. Destaca-se que a teoria da perda de uma chance tem como nascedouro o sistema francês, sendo datado de julho de 1889, ocasião em que um oficial ministerial foi condenado por ter impedido a possibilidade de prosseguimento de um procedimento judicial. Já a aplicação da perda de uma chance ao erro médico, também conhecida como chance da perda de uma cura, acaba por frustrar a chance do paciente de obter um melhor tratamento ou até ocasionar a perda da vida, como é o caso de pacientes com câncer. Muito se discute acerca do papel desempenhado pelo nexo causal, o certo é que esse é mantido, vez que requisito da responsabilidade civil. O que ocorre é a utilização do ângulo de visão por probabilidade, ou seja, em qual grau a conduta do profissional afetou a chance perdida. Nesse contexto, pretende-se com o desenvolvimento desse trabalho absorver a essência da teoria da perda de uma chance, seus requisitos de incidência, bem como sua aplicabilidade ao erro médico, que tem como marco de ocorrência a culpa do profissional.

Importante ressaltar que o surgimento da saúde como direito social advém com o amadurecimento do Estado Nacional como instituição dotada de deveres e direitos. No discurso das dimensões dos direitos fundamentais, têm-se que a primeira dimensão surgida a partir da Magna Carta do rei João Sem Terra da Inglaterra datada do ano de 1215, seria colmatada pela atuação negativa do Estado, sendo constituído em um não fazer, tais como não intervenção na vida privada e na liberdade de pensamento e expressão; fator que contribuiu para a derrocada de diversas ditaduras e o início do Estado Liberal de Direito. Com a ocorrência da Segunda Revolução Industrial no século XIX, teve formato a origem da globalização como conhecemos nos dias atuais, contexto que propiciou que as classes menos favorecidas economicamente percebessem que eram demasiadamente exploradas e detinham poucos direitos. Nessa realidade, surge a constituição de Weimar de 1919, ou como é conhecida, a Constituição da Primeira República Alemã, que dá corpo ao surgimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão, marcados pela atuação positiva do Estado para assegurá-los, é nesse tempo que a saúde é inserida dentro dos novos direitos sociais, culturais e econômicos que passam a ser garantidos. No direito brasileiro, a efetivação da saúde é direito constitucional atestado no art. 196 da Constituição Federal da República de 1988, que relata: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Desse modo, é direito de todos presentes em território brasileiro. Em decorrência disso as prestações dos serviços de saúde são tidas como de relevância pública, podendo ser prestados pelo Estado ou por particulares, nos ditames do art. 197 da CRFB/88, que aduz:

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São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado Ademais, há de se ter em mente que o direito à saúde faz parte de um rol mínimo de direitos assegurados aos indivíduos, a fim de garantir a plenitude da vida digna. Por isso, a Constituição Federal deve ser interpretada de modo sistemático, ou seja, em sua conjuntura, para que os direitos sociais sejam devidamente efetivados. Nesse contexto, o próprio cidadão deve ser intérprete da norma constitucional já que é destinatário da norma. Nessa linha de convicção, Peter Harble relata sobre o cidadão intérprete (1997, pg. 20), arrimando: “A interpretação constitucional é, todavia, uma ‘atividade’ que, potencialmente, diz respeito a todos. Os grupos mencionados e o próprio indivíduo podem ser considerados intérpretes constitucionais indiretos ou a longo prazo”. Já em âmbito internacional, percebe-se que há o estabelecimento da preocupação da garantia da saúde no art. 10.1 do Protocolo de San Salvador (Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos), com entrada em vigor no Brasil por meio do decreto nº 3.321 de 1999. Nesse sentido, vislumbra-se que a saúde é direito basilar garantido a todos, um dos pilares da dignidade da pessoa humana, sendo fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme o art. 1º, inciso III, da CRFB/88. Dessa forma, é imperioso trabalhar para que a

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saúde seja corretamente prestada à população pelos entes estatais e privados, e caso ocorra a prática de ato ilícito, que haja a devida reparação civil pecuniária. 3 O ERRO MÉDICO Nesse tópico será exposto a conceituação do erro médico, da culpa médica, do modus operandi para que ocorra a responsabilização civil do profissional da medicina, destacando-se as obrigações de meio e resultado, bem como a necessidade de existência da culpa para a responsabilização na relação consumerista. 3.1 Conceito O decreto de nº 44.045/58 estabeleceu que para que haja a atuação como profissional da medicina é preciso que o cidadão tenha diploma de faculdade de ensino superior de Medicina reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC). Essa exigência se reveste de segurança, vez que o atendimento de saúde oferecido à população será prestado por profissionais devidamente qualificados e treinados. No panorama atual, identifica-se que por meio de políticas públicas como o Programa de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais (REUNI), Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), a oferta de cursos de medicina sofreram crescimento significativo, tendo aumentado a número de vagas no período de 1991 a 2011 em 115% (Gazeta do Povo, 2013). Esse crescimento é uma meta do Governo Federal, por meio do Ministério da Educação, que tem proferido diversas portarias autorizadoras de novas cadeiras pelo país a fim de melhorar a média de médico por habitante que atualmente é de 2.11 (Conselho Federal de Medicina, 2015). Com a abertura simultânea de diversos novos cursos de Medicina pelo país, surge o questionamento se a qualidade do ensino da profissão seria mantida, situação que poderia aumentar a incidência do erro médico. Por isso, objetivando a manutenção do padrão de ensino e das boas práticas médicas, o Ministério da Educação (MEC), por meio da portaria nº 982 de 25 de agosto de 2016, instituiu a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM), que passa a ser componente curricular obrigatório e condição para a diplomação para os ingressantes a partir do ano de 2015. No que se refere a nomenclaturas, o erro médico resulta de falha procedimental ocorrida durante o tratamento ou procedimento que foi submetido o paciente por parte do profissional que o realiza, é expressão aberta que permite interpretação ampla. Por seu turno, a culpa médica é caracterizada quando ocorre por parte do profissional a falta de diligência de que dele se esperava. Nessa seara, é importante a seguinte operacionalização: Culpa e erro profissional são coisas distintas. Há erro profissional quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta; há imperícia quando a técnica é correta, mas a conduta médica é incorreta. A culpa médica supõe uma falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, consequência inelutável da falibilidade humana. E, embora, não se possa falar em um direito ao erro, será esse escusável quando invencível à mediana cultura médica, tendo em vista circunstâncias do caso concreto”. (CAVALIERI FILHO, Sergio; 2012).

e erro grosseiro. Em linhas gerais, o que diferencia o erro da culpa é o caráter inevitável daquele, quase acidental”. Nessa marcha, o termo técnico a ser utilizado para se tratar de responsabilidade civil é culpa médica, vez que erro médico possui múltiplos significados, não possuindo em seu escopo a figura do dano, fator que afasta a caracterização do ato ilícito e do dever de reparar. Apesar da diferenciação abarcada por Sergio Cavalieri Filho, como essa não é a questão primordial desse trabalho, o termo erro médico e culpa médica serão utilizados como sinônimos. 3.2 Responsabilidade civil médica A responsabilidade civil do profissional da medicina deve preencher os mesmos critérios para a configuração do ato ilícito civil para que ocorra, quais sejam: a) culpa, b) a existência do dano e c) nexo causal. Nessa linha de pensamento, há de se destacar que o ilícito civil compreende a ação ou omissão do agente que acaba por desobedecer a norma jurídica posta com a conduta praticada. Aduz, nesse sentido Cristiano Chaves de Faria (2016, pg. 158): A ideia de ilícito jurídico, em sua acepção comum, refere-se a qualquer fato que constitui transgressão a uma norma, tornando-se assim objeto de reprovação e, correlativamente, de uma reação adequada. Há uma desconformidade entre um fato e o direito, tida como antijuridicidade: seja uma antijuricidade formal, pela contrariedade entre um comportamento e uma regra; ou uma antijuridicidade material, quando há um contraste entre certa conduta e o próprio ordenamento jurídico. Some-se a isso a imputabilidade do agente, portador de discernimento, com aptidão para a compreensão do caráter antijurídico da norma. Já a culpa como requisito para a responsabilização consiste na conduta dolosa, com intenção de produção do resultado danoso, ou culposa do profissional, sem a presença de intenção de ocorrência do dano, marcada pela imperícia, imprudência, negligência e falta no dever de informação. Nessa vertente, (ALTAVILLA, 1950, pg. 12 apud KFOURI NETO, 2001, pg. 67), afirma: “Para a caracterização da culpa não se torna necessária a intenção, basta a simples voluntariedade de conduta, que deverá ser contrastante com as normas impostas pela prudência ou perícia comuns”. Por seu turno, o dano é o prejuízo patrimonial causado a alguém, o instituto não encontra conceito no texto legal, todavia, o art. 186 do Código Civil Brasileiro, assevera: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Acerca da conceituação do instituto, Pablo Stolze Gagliano (2014, pg. 404), finaliza: “Seria, portanto, todo artifício malicioso empregado por uma das partes ou por terceiro com o propósito de prejudicar outrem, quando da celebração do negócio jurídico”. Destaca-se que não é qualquer dano que é resguardado pela norma, esse dano deve necessariamente reverberar no mundo jurídico, trazendo lesão a outra parte, bem como contrariar dispositivo legal. Nessa toada, arremata Cristiano Chaves de Faria (2016, pg. 239):

No mesmo contexto, Octávio Luiz Motta Ferraz (2009, pg. 135), arremata: “Cabe lembrar, nesse ponto, a importante distinção entre erro e culpa aplicável à atividade diagnóstica, ou erro escusável

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Para que o dano venha a ser sancionado pelo ordenamento jurídico, vale dizer, para que a legislação autorize aquele que o sofreu a exigir do responsável uma indenização, indispensável se faz a presença de dois elementos: um de fato e outro de direito. O primeiro se manifesta no prejuízo e o segundo, na lesão jurídica. É preciso que a vítima demonstre que o prejuízo constitui um fato violador de um interesse jurídico tutelado do qual seja ele o titular CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


ou omissão era adequada a produzir o dano, então, este é objetivamente imputável ao agente. O juízo de probabilidades ou previsibilidade das consequências é feito pelo juiz, retrospectivamente, e em atenção ao que era cognoscível pelo agente, como exemplar do tipo do homem médio

Além disso, acerca da constituição do instituto do dano, Cristiano Chaves de Faria (2016, pg. 201), lapida: Ademais, para que o dano se revele é irrelevante a demonstração da consciência do agente de resultar prejuízos ou a intencionar provocá-los, sendo suficiente o fato de ele ter praticado o comportamento antijurídico com a consciência de faltar ao seu dever. Afinal, a culpa lato sensu e o dano são pressupostos autônomos da responsabilidade civil, aferidos em momentos distintos. Por sua vez, o nexo causal é colmatado pelo vínculo entre causa e consequência, desse modo, a ação perpetrada é causa da lesão jurídica suportada, sem o qual não tomaria corpo. Importante destacar que a teoria mais utilizada para verificar a ocorrência do instituto é a da causalidade adequada elaborada por Von Kries2, por meio da qual se determinará qual a causa ou motivo que foi determinante para a ocorrência do fato, desse modo, as causas de menor relevância acabariam sendo excluídas. Nesse caso, o que parecer ser mais adequado e razoável terá sido a causa do resultado produzido. Sobre esse assunto, Sergio Cavalieri Filho (2012, pg. 51), manifesta: [...]. Como estabelecer, entre várias condições, qual foi a mais adequada? Não há uma regra teórica, nenhuma fórmula hipotética para resolver o problema, de sorte que a solução terá que ser encontrada em cada caso, atentando-se para a realidade fática, com bom-senso e ponderação. Causa adequada será aquela que, de acordo com o curso normal das coisas e a experiência comum da vida, se revelar a mais idônea para gerar o evento. Ademais, a previsão contida no art. 927 do Código Civil, alega: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Esse dispositivo acaba por complementar e reforçar a funcionalidade do nexo causal. Nessa senda, lapidar é o entendimento de Elpídio Donizetti (2013, pg. 399):

Dispõe o item IX do Capítulo I do Código de Ética Médico: “A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio”. Daí se verifica a prevalência do caráter humanizado utilizado no exercício da medicina, bem como a plenitude da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/88) e a boa-fé objetiva de que trata o art. 113 do Código Civil. Quando se discute a responsabilidade do médico, questão primordial é se é aplicável ao caso em tela a obrigação de meio ou de resultado. A obrigação de meio trata-se de modalidade em que o profissional irá empenhar todos os meios disponíveis e necessários, com diligência, prudência e boa-fé objetivando-se atingir determinadas metas, sem a garantia de resultado. Por seu turno, a obrigação de resultado consiste primordialmente na garantia de um resultado que deverá ser atingido, independentemente da metodologia empregada para seu alcance. Como regra geral, a responsabilidade médica é de meio, ou seja, não está vinculada a entrega de resultado. Exceção doutrinária e jurisprudencial, como bem aponta Sergio Cavalieri Filho (2012, pg. 407), fica por conta dos procedimentos estéticos, vez que é prometido ao paciente certo resultado vinculado a melhora de sua aparência, não sendo pertinente falar em emprego de meios idôneos para atingir o resultado prometido que não fora entregue, fator esse que acaba por quebrar a legítima expectativa entre as partes. Corrobora esse entendimento o decisum: RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, ESTÉTICOS E MATERIAIS TRATAMENTO DE DISFUNÇÃO ERÉTIL MEDIANTE A COLOCAÇÃO DE PRÓTESE PENIANA COMPLICAÇÕES NO PERÍODO PÓS-OPERATÓRIO QUE CONDUZIRAM AO QUADRO DE GRAVE INFECÇÃO (SÍNDROME DE FOURNIER) E A NOVA CIRURGIA (QUINZE DIAS APÓS À PRIMEIRA) PARA REMOÇÃO DO TECIDO NECROSADO - TRIBUNAL A QUO QUE COM BASE NOS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO DOS AUTOS DECLAROU NÃO CONFIGURADA A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO MÉDICO - RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. INSURGÊNCIA DO AUTOR. Hipótese: Demanda indenizatória proposta sob a alegação de ter o autor sido vítima de erro médico decorrente de cirurgia de implantação de prótese peniana. Ação julgada improcedente pelas instâncias ordinárias, sob o fundamento que a obrigação assumida pelo médico é de meio e não de resultado, pois a cirurgia objeto da contratação (tratamento de disfunção erétil mediante a colocação de prótese peniana) foi de natureza corretiva, inexistindo prova do erro profissional nas complicações do pósoperatório que conduziram ao quadro de grave infecção. 1. A relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral, obrigação de meio, salvo em casos de cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética. Precedentes.[...] (REsp 1046632 / RJ, STJ, 4ª Turma, Rel. Ministro Marco Buzzi, DJE 13/11/2013 – grifo nosso)

A configuração da responsabilidade civil subjetiva – e a consequente obrigação de indenizar – depende, pois, de que o sujeito pratique um ato contrário a direito, com dolo ou culpa; que esse ato cause um dano a uma terceira pessoa, seja ele material ou moral. Deve, ainda, haver uma relação de causalidade, ou seja, o ato contrário a direito deve necessariamente ser a causa do dano. Além disso, a caracterização do vínculo causal deverá ser observada em abstrato pelo magistrado, já que se reveste de instituto de difícil produção de prova, nesse sentido, dispõe o art. 375 do Código de Processo Civil: “O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial”. Nessa esteira de mentalidade, o juiz, ao analisar os fatores que comumente ocorrem, deve levar em ponderação o juízo de probabilidades. É o que advoga Sergio Cavalieri Filho (2012, pg. 53): [...] para se estabelecer a causa de um dano é preciso fazer um juízo de probabilidades. Portanto, se se responde afirmativamente, de acordo com a experiência da vida, se se declara que a ação

2 Faz referência há Johannes Von Kries (6 de outubro de 1853 – 30 de dezembro de 1928), nascido na Alemanha. É o psicólogo que teceu teorias sobre os fundamentos da probabilidade que são utilizados até os dias atuais. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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Mister, para a construção do entendimento sobre a responsabilidade é lançar mão também do Código de Defesa do Consumidor, vez que indubitável é o enquadramento do médico como fornecedor de serviços nos termos do art. 3º CDC, já que há a habitualidade e onerosidade na conduta do médico que oferece seus serviços no mercado de consumo. Do mesmo modo, o paciente é consumidor nos ditames do art. 2º CDC, tendo em vista que é o destinatário final do serviço prestado. Nessa baila, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), já consolidou entendimento que a relação contratual entre médico e paciente é relação de consumo. Lapida:

§3º dos arts. 12 e 14 que é o fornecedor quem deve provar sua inexistência. Nesse particular, aliás, a lei brasileira é mais ousada que a Diretiva Européia que a inspirou, onde o ônus da prova do defeito permanece com o consumidor. [...] O fato é que os tribunais dos diversos países da comunidade europeia valem-se frequentemente da teoria de distribuição dinâmica da prova, facilitando bastante a tarefa do consumidor. No mesmo sentido, é o posicionamento de Sergio Cavalieri Filho (2012, pg. 410): [...]. Não se olvide que o médico é prestador de serviço pelo que, não obstante subjetiva sua responsabilidade, está sujeito à disciplina do Código do Consumidor. Pode consequentemente o juiz, em faze da complexidade técnica da prova da culpa, inverter o ônus dessa prova em favor do consumidor, conforme autoriza o art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. A hipossuficiência de que ali fala o Código não é apenas econômica, mas também técnica, de sorte que, se o consumidor não tiver condições econômicas ou técnicas para produzir a prova dos fatos constitutivos de seu direito, poderá o juiz inverter o ônus da prova a seu favor, como observa oportunamente o insigne Nélson Nery Jr. (Princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Direito do Consumidor 3/5, setembro-dezembro/92).

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. PROPÓSITO INFRINGENTE. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL. ERRO MÉDICO. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ARTIGO 27 DO CDC. PRECEDENTES. 1. A orientação jurisprudencial deste Superior Tribunal é no sentido de que se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos serviços médicos, inclusive no que tange ao prazo de prescrição quinquenal previsto no artigo 27 do CDC. 2. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental a que se nega provimento. (EDcl no REsp 704272 / SP, STJ, 4ª Turma, Reltª. Minª. Maria Isabel Gallotti, DJE 15/08/2012) Como regra geral, a responsabilidade utilizada na relação consumerista é objetiva, desse modo, sem a necessidade de demonstrar a culpa. Contudo, para os profissionais liberais, como no caso da medicina, é incidente a exceção prevista no §4º do art. 14 do Código Consumerista, que relata: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Nesse sentido, a exceção posta acaba por trazer o regime da responsabilidade subjetiva ao médico, com a consequente apuração da caracterização da culpa para gerar o dever de indenizar. Ao encontro dessa premissa é o parágrafo único do art. 1º do Código de Ética Médico, que traz à tona: “A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida”. Nesse ditame, deve haver a culpa, marcada pela imprudência, imperícia ou negligência no atuar com o trato do paciente para a configuração do instituto (ROSÁRIO, 2008, pg. 167). Pondera-se que a culpa deve ser interpretada de modo que abarque a presença ou não da figura do dolo, tendo em vista que a lei privada se molda à tradição unitária e monolítica de nuclear o dolo dentro do conceito de culpa (Cristiano Chaves de Faria, 2016, pg. 2009). Aliás, a figura do erro é protagonista, já que se for grosseiro haverá falha. Nesse ditame, Octávio Luiz Motta Ferraz (2009, pg. 135): Só haverá falha na prestação desse serviço, portanto, se o resultado alcançado (omissão, atraso ou diagnóstico errado) não corresponder àquele que se poderia esperar de um profissional médio naquelas mesmas circunstâncias enfrentadas pelo médico em questão. E o resultado esperado, tratando-se de uma obrigação de meios, não é necessariamente um diagnóstico sempre correto. No que atine ao ônus da prova, na relação consumerista o art. 6º, VIII do CDC, ao elencar os direitos básicos do consumidor, traz a figura do ônus da prova invertido, ou seja, ele sai da esfera de quem alega para o campo do réu fornecedor, que tem mais condições técnicas de provar que o fato alegado ocorreu ou não. Sobre a carga probatória, Octávio Luiz Motta Ferraz (2009, pg. 47), alerta: Quanto ao ônus da prova do defeito, está claro no LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Nesse diapasão, vislumbra-se que ante a hipossuficiência técnica do consumidor-paciente, que não detém conhecimentos para a interpretação dos acontecimentos transcorridos durante seu tratamento, bem como para a devida interpretação dos exames realizados, deverá ocorrer a inversão da carga probatória para o médico-réu, já que ele sim, devidamente cercado pelos conhecimentos específicos, possui meios de produzir a prova necessária para a instrução processual. Sobre esse contexto, Miguel Kfouri Neto (2002, pg. 140), pondera: Muitas vezes, o paciente se vê em situações difícil para provar a culpa do médico. No sistema tradicional das obrigações de meios, o demandado não necessita provar caso fortuito – basta-lhe demonstrar que não houve culpa de sua parte. E o médico prova a ausência de culpa descrevendo a correção com que agiu – desde o correto diagnóstico, ao emprego de técnicas e conhecimentos normalmente aceitos, acompanhamento zeloso do paciente, tudo de acordo com as leges artis. Superada a fase de demonstração da culpa, dano e nexo causal, é a hora de se analisar a fixação do quantum indenizatório, ou seja, o valor a ser auferido como medida compensatória em face dos danos suportados pelo autor. Salienta-se que o disposto no art. 944 do Código Civil Brasileiro deve ser aplicado: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. No mesmo sentido da constituição do dever de indenizar é o previsto no inciso X do art. 5º da CRFB/88, bem como do art. 10 da Convenção Americana de Direitos Humanos, internalizada no direito pátrio por meio do decreto de nº 678 de 1992. O que se pretende com o marco normativo posto é a realização da justiça por meio do reestabelecimento do equilíbrio anterior que fora rompido. Para Eduardo Carlos Bianca Bittar (2012, pg. 266), consiste em: “[...]. Restabelecer o equilíbrio é retomar a igualdade rompida; no julgamento, no entanto, não deve haver acepção da pessoa, mas um julgamento que satisfaça às necessidades de justiça reclamadas pelo caso. O juiz deve dar a cada um o seu (suum cuique tribuere)”.

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No que atine a indenização, busca-se reparar o dano de modo integral, ou seja, retirar a lesão causada em sua totalidade mediante aferimento de determinado valor. Essa fixação deve obedecer às especificidades do caso concreto, pois apenas ele trará o arcabouço necessário para a devida qualificação e ponderação entre o poder econômico do causador do dano, o dano em si, bem como a situação econômica do lesionado. Acerca da mensuração matemática dos danos em valores pecuniários, Cristiano Chaves de Farias (2016, pg. 51) pondera: A reparação integral é de alcance relativamente simples no setor dos danos emergentes puramente patrimoniais, mas a dificuldade de sua avaliação será sentida no cálculo dos lucros cessantes e da condenação pela perda de uma chance. Porém, indiscutivelmente, será no trato dos danos extrapatrimoniais que haverá o maior desafio à valoração da reparação integral, seja pela própria resistência a se conceder equivalência monetária ao maltrato de situações existências e que, portanto, não se reduzem à lógica das coisas, como pela própria tendência – mais do que legítima – de se despatrimonializar a reparação dos danos morais pela via de condenações a tutelas específicas (v. g. o direito de resposta, publicação de sentença, retratação etc.), ou mesmo de uma ênfase ao princípio da prevenção pela via do mecanismo da tutela inibitória dos direitos da personalidade, evitando-se a própria consumação do ilícito e a assim, a necessidade de reparação de danos. Em âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), verifica-se que a regra geral é de não alteração do quanto indenizatório, por afronta a súmula 7º que veda o revolvimento fático-probatório, exceção fica por conta se ocorrer indenização irrisória ou que fira a proporcionalidade (AgInt no REsp 1586566 / RR, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJE 16/08/2016). Por seu turno, deve-se levar em consideração se há a existência de causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade civil para que se atinja a proporcionalidade e razoabilidade. Como causa excludente tem-se o caso fortuito ou motivo de força maior nos ditames do art. 393 do Código Civil. Nessa situação ocorre evento humano ou natural imprevisível, que não possibilita diligência por parte do devedor para se evitar o dano. Nessa linha de convicção, a imprevisibilidade é elemento indispensável para a configuração do caso fortuito (eventos humanos), enquanto que a irresistibilidade é requisito para a força maior (eventos da natureza), bem como que a imprevisibilidade é ponto em comum de ambos (CAVALIERI FILHO, 2012, pg. 71). O fato exclusivo da vítima decorre da ação ou omissão perpetrada por ela própria que a pôs em circunstância determinada, fator que proporciona o dano. Desse modo, há um terceiro causador do dano que figura como ilusório. De mesmo modo, Cristiano Chaves de Farias (2016, pg. 425) aduz: “Se eventualmente a própria vítima se coloca em condições de sofrer um dano, havendo necessária relação entre o seu comportamento e as lesões daí decorrentes, surgirá a excludente do nexo causal do fato exclusivo da vítima”. Já o fato de terceiro consiste em que o agente imputado não é o causador do dano, ou seja, um terceiro, fora da relação processual estabelecida é que é o responsável pela lesão ocorrida. Nesses ditames, Cristiano Chaves de Farias, (2016, pg. 431) afirma: “[...] Dá-se

uma interrupção do nexo causal, na medida em que não é a conduta do agente a causa necessária à produção dos danos”. Por sua vez, a culpa concorrente prevista no art. 945 do Código Civil atua como atenuante da indenização, diferente das demais causas que acabam por excluir o vínculo causal. Nesse caso, haverá participação da vítima na produção do resultado, por isso, deverá ser analisado a cota-parte do agente e do lesionado no resultado causado, atribuindo-se a cada um a responsabilidade. Nessa linha de convicção, Elpídio Donizetti (2013, pg. 415), assegura: “Havendo concorrência de causas geradas pelo agente e terceiros, surgirá a responsabilidade civil de todos, e deverá ser analisada a concorrência de cada um na produção do dano para que se apure o montante da indenização devido por cada um”. Nessa perspectiva, o dever de indenizar deve ser vislumbrado sob a égide dos elementos da responsabilidade civil: dano, nexo causal e culpa, nos ditames do princípio da proporcionalidade e razoabilidade, bem como se deve levar em consideração a existência de situações excludentes ou atenuantes do nexo causal. 4 A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE Aqui, pretende-se trazer à tona a conceituação do que é a teoria da perda de uma chance, bem como a sua natureza jurídica. Para a melhor compreensão do instituto, é abarcado também uma contextualização histórica para entendimento de sua formação. 4.1 Conceito A teoria da perda de uma chance pode ser compreendida como a frustação de uma oportunidade real, provável e plausível de que algum acontecimento tomasse corpo. Nesse sentido: A perda da chance constitui um prejuízo compensável se a chance perdida é séria, isto é, se a probabilidade que o evento ocorresse era importante, a Corte de cassação exerce um controle sobre este ponto. O evento puramente hipotético não tem este caráter, de sorte que se sua ocorrência é claramente impossível, aquele não poderia ter se beneficiado de uma reparação do praticante da perda da chance em uma eventualidade pura. (AREDOC, 2012, pg. 8, original em francês – tradução livre)3. Por seu turno, Rafael Peteffi da Silva utiliza a ideia de interrupção do processo aleatório ou dos eventos corriqueiros para explanar a ocorrência da ilicitude. Nessa esteira, arremata (2013, pg. 13): A chance representa uma expectativa necessariamente hipotética, materializada naquilo que se pode chamar de ganho final ou dano final, conforme o sucesso do processo aleatório. Entretanto, quando esse processo aleatório é paralisado por um ato imputável, a vítima experimentará a perda de uma probabilidade de um evento favorável. Esta probabilidade pode ser estatisticamente calculada, a ponto de lhe ser conferido um caráter de certeza. Nesse ditame, utilizando como exemplo a atividade do advogado, Thatiana Olyntho Rangel (2014, pg. 186), pondera: “Não é sempre

3 La perte de chance ne constitue un préjudice indemnisable que si la chance perdue est sérieuse, c’est-à-dire si la probabilité que l’évènement heureux survienne était importante, la Cour de cassation exerçant un contrôle sur ce point. L’évènement purement hypothétique n’a pas ce caractère, de sorte que si sa survenance devient clairement impossible, celui qui en aurait profité ne peut obtenir réparation du chef de la perte de cette pure éventualité. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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que o advogado perde um prazo que ele será responsabilizado. Deve ser constatada a perda de uma chance real e séria, como por exemplo, jurisprudência consolidada em casos idênticos”. Já aplicando a teoria na seara médica, observa-se que o instituto está intimamente ligado com as questões referentes ao erro de diagnóstico e ao tratamento concedido ao paciente. Nessa toada, Patrick Stoneking (2013, pg. 4), aduz:

institutos para ocorrer sua existência, operando, pois, de modo independente. Nessa perspectiva, sustenta Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 77): A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os tribunais têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima. Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro de abordagem que os tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão “tudo ou nada” da causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa um dano reparável.

“Perda da chance” é um termo que surge frequentemente em casos onde um paciente doente fica sem diagnóstico e tratamento por um período de tempo. Para a maioria das doenças, o tratamento cedo é usualmente melhor que o tratamento tardio. Por isso quando a negligência médica conduz a um atraso no diagnóstico e no tratamento da doença, o paciente perde a capacidade de receber o tratamento mais cedo. Esse atraso é frequentemente associado com a redução da probabilidade de sobrevivência – “perda da chance”. (Original em inglês – tradução livre)4. Nesse contexto, percebe-se que para a configuração da perda de uma chance é necessário estar presente o aspecto da má prática médica, ou seja, quando o profissional não atua com a diligência de que era esperada. Sustenta tal entendimento o disposto no art. II dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médico (2009, pg. 30), que proclama: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”. No que atine a natureza jurídica da perda de uma chance, observa-se que é sui generis, já que se adequa a situação posta no caso concreto, bem como constitui-se em dano passível de reparação. Nesses termos, relata Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral (2015, pg. 137): As nuances ímpares das circunstâncias que ocasionam a perda da chance exigem a análise, como dito, do interesse relacionado ao processo aleatório impedido. Tratando-se de interesse patrimonial perseguido pela parte, o dano pela frustação da chance será patrimonial e, neste caso, em virtude da autonomia da chance diante do dano final, e de seu valor econômico individual, um dano emergente sui generis. Se o interesse da parte for de caráter extrapatrimonial, a subtração da chance põe fim à busca desse interesse, e o dano pela perda da chance terá a natureza jurídica de um dano extrapatrimonial. Como tal, este deverá ser tratado, adequando-se as suas características.

Nesse entendimento, a perda da chance ou perda de cura se reveste na falta de cuidado e presteza despendida ao paciente por parte do médico, que acabou por culminar na frustação da chance certa e provável, dentro do processo corriqueiro, de um tratamento mais fácil ou até na preservação da vida. 4.2 Evolução histórica De acordo com Ana Cláudia Zuin Mattos do Amaral (2015, pg. 57), a intitulada perda de uma chance clássica, ou seja, que não está vinculada ao erro médico remonta a data de 17 de julho de 1889 na França, quando um oficial ministerial foi condenado a pagar indenização por ter impedido a possibilidade de prosseguimento de um procedimento judicial, daí frustrando a possibilidade real de ganho no processo. A partir desse momento é que a Corte de Cassação Francesa acaba por efetuar o entendimento da perda de uma chance aplicável aos serventuários da justiça e ao advogado. No que atine ao sistema judicial do Common Law, David A. Fischer (2001, pg. 608) relata que o primeiro caso da perda da chance ocorreu em Chaplin v. Hicks em 1911 na Inglaterra, em que a autora era uma das cinquenta finalistas de um concurso de beleza, tendo sido impedida de se apresentar perante a banca de jurados e de ganhar prêmios dentre os doze disponíveis. Sobre a ocasião David A. Fischer (2001, pg. 608) esclarece:

Na mesma linha de entendimento de mutabilidade da natureza jurídica da teoria é o Enunciado 444 da V Jornada de Direito Civil, que arrima: Art. 927. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos Ademais, vislumbra-se que se trata de dano autônomo, desse modo, não depende da cumulação ou ocorrência de demais

O réu quebrou o contrato por falhar a dar ao autor uma razoável oportunidade para se apresentar. O autor processou por quebra de contrato, buscando compensação pela perda de uma chance de ganhar um dos prêmios. O júri avaliou os danos em cem libras. O autor apelou, arguindo que os danos eram incapazes de avaliação por serem especulativos. A corte de apelação rejeitou o argumento e afirmou que a sentença do júri, sustentada na perda da oportunidade de ganhar um prêmio é um direito valioso, e que a avaliação dos danos é de competência do júri. Um dos jurados raciocinou que como eram cinquenta competidoras para doze prêmios, a média de chance de sucesso era aproximadamente de vinte e cinco por cento, e a “doutrina da média” poderia ser utilizada no cálculo dos danos. Note, contudo,

4 “Loss of chance” is a term that comes up most often in cases where a patient’s disease goes undiagnosed and untreated for some period of time. When it comes to most diseases, earlier treatment is usually better than later treatment. So when medical negligence leads to a delay in diagnosis and treatment of a disease, a patient loses the ability to get earlier treatment. This delay is often associated with a decreased probability of surviving – a “loss of chance. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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que a sentença do júri era consideravelmente menor do que vinte e cinco por cento do valor do prêmio. (Original em inglês – tradução livre)5. Já sobre a perda de chance de cura, designada para a aplicação da perda da chance na área médica, como bem aduz Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 83), ocorreu em 14 de dezembro de 1965 na corte de cassação francesa em um caso de um menino de 8 anos que havia machucado o braço. A criança foi atendida por um médico que constatou a fratura no braço e iniciou as medidas para curar a fratura. Contudo, as dores no menino persistiam, sendo constatado posteriormente que ele apresentava problemas no cotovelo, tendo ficado com deficiências permanentes nos movimentos do braço em decorrência do erro de diagnóstico. Nesse caso, a Corte de Cassação acabou por entender que a falha do profissional não apresentava uma relação causal direta com o dano final, afirmando que o que havia era apenas a subtração de algumas chances de cura. Já em 10 de março de 1966, em um caso em que uma mulher morreu após o parto, por ter sido acometida de forte hemorragia. A corte entendeu que o médico foi negligente por ter deixado a paciente sem assistência adequada. Contudo, a condenação foi pela perda de 80% da cura, já que peritos afirmaram que mesmo com a terapêutica correta as chances de falecer ficam em torno de 20%. A partir do julgamento desses dois casos é que surge a diferenciação entre a perda da chance clássica e a perda de chance da cura. Por isso, Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 84), elucida: Os dois casos narrados motivaram a primeira manifestação de René Savatier contra a utilização das categorias de perda de uma chance de cura e perda de uma chance de sobrevivência. O autor afirmou que essas decisões estavam em desalinho com os princípios de direito comum sobre a causalidade, divergindo completamente dos outros casos de aplicação da noção da perda de uma chance. Essa manifestação originou a corrente que, ainda hoje, é a mais aceita pela doutrina francesa, diferenciando a aplicação clássica da perda de uma chance, que significa o reconhecimento de um dano específico, da perda de uma chance em matéria médica. Já no ordenamento jurídico brasileiro a primeira tratativa da teoria está relacionada a Apelação Cível nº 589069996 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), de relatoria do então Desembargador Ruy Rosado de Aguiar, que entendeu não ser aplicável a perda da chance, visto que no caso havia uma relação direta entre a ação do réu e os danos causados ao autor. Caso celebre é o do julgado do Resp. nº 788.459, conhecido como o caso do “Show do Milhão”, em que a participante alcançou a ‘pergunta do milhão’ que valia o prêmio final de R$1.000.000,00, optando por não responder o questionamento para manter o valor já acumulado no jogo de R$500.000,00. Contudo, a pergunta com quatro alternativas possíveis não possuía resposta correta. Por isso, o Superior Tribunal de Justiça levou em consideração que a perquirição valia R$500.000,00 no todo e dividiu o valor por quatro alternati-

vas possíveis, atingindo a razão de possibilidade de acerto em 25%, chegou ao entendimento então que a chance perdida no caso foi de R$125.000,00. 5 A APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE AO ERRO MÉDICO Como visto anteriormente, para que a responsabilidade civil do médico ocorra é necessário que esteja presente a figura do ato ilícito, dano, nexo causal e culpa. A culpa se faz necessária em decorrência da incidência do §4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. ” Acerca do instituto da culpa, Miguel Kfouri Neto (2001, pg. 59), expõe: Em síntese, admite-se que a culpa do médico comprometeu as chances de vida e a integridade do paciente. Pouco importa que o juiz não esteja convencido de que a culpa causou o dano. É suficiente uma dúvida. Os tribunais podem admitir a relação de causalidade entre culpa e dano, pois que a culpa é precisamente não ter dado as oportunidades (“chances) ao doente. Milita uma presunção de culpa contra o médico. A culpa presumida deve ser compreendida como a presunção do alegado pelo autor-paciente, em decorrência do direito básico do consumidor da inversão do ônus da prova disposto no inciso VIII do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, cabe prova em contrário a ser realizada pelo médico-réu. Nessa linha de intelecção, Cristiano Chaves de Farias (2016, pg. 196), delineia: Pode-se conceituar a presunção de culpa como uma técnica processual de inversão do ônus da prova. Ou seja, em hipóteses previstas pela lei, não mais caberia ao ofensor a hercúlea missão de provar o erro de conduta moralmente imputável ao agente – o brocardo actori incumbit probatio –, pois em princípio a demonstração do fato ilícito (antijuridicidade + imputabilidade) já equivaleria a um atestado de culpa. Portanto, o ofensor deveria demonstrar que o dano não decorreu de sua falta de diligência e prudência, porém de uma causa estranha ao seu comportamento, tal como força maior, fato exclusivo da vítima ou fato de terceiro. Ademais, acerca da aplicação do marco regulatório do Código de Defesa do Consumidor, Cristiano Chaves de Farias (2016, pg. 798), enumera algumas vantagens para o paciente-cliente: Os médicos são profissionais liberais. Profissionais liberais exercem, com autonomia, seu mister profissional, sem subordinação técnica a outrem. Os profissionais liberais, segundo o CDC, apenas respondem culposamente pelos danos que causem (CDC, art. 14, §4º). Poder-se-ia perguntar: haveria, normativamente falando, vantagem para o paciente em se aplicar o CDC, ao invés do Código Civil, sendo certo que a responsabilidade civil do médico,

5 Defendant breached the contract by failing to give plaintiff a reasonable opportunity to present herself. Plaintiff sued for breach of contract, seeking compensation for the loss of a chance to win one of the prizes. The jury assessed damages of one hundred pounds. Defendant appealed, arguing that damages were incapable of assessment because they were too speculative. The appellate court rejected the argument and affirmed the jury award, holding that the loss of the opportunity to win a prize was a valuable right, and assessment of damages was a question for the jury. One judge reasoned that because there were fifty competitors for twelve prizes the average chance of success was approximately 25 percent, and the “doctrine of averages” could be used in assessing damages. Note, however, that the jury award was considerably less than 25 percent of the value of the prize.

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nos dois casos, é subjetiva, isto é, depende do elemento culpa? A resposta afirmativa se impõe. Podemos, sem pretensão de exaustividade, citar cinco exemplos dessa vantagem para o consumidor paciente: (a) possibilidade de inversão do ônus da prova em seu favor (CDC, art. 6º, VIII); (b) possibilidade de propositura da ação no domicílio do consumidor (CDC, art. 101, I); (c) prazo prescricional mais dilatado (CDC, art. 27: cinco anos, e não três, conforme prevê o Código Civil); (d) deveres de informação, por parte do médico e instituições de saúde, particularmente severos (CDC, art. 6º, III; art. 8º; art.9º; (e) invalidade de cláusulas contratuais que excluam ou mesmo atenuem o dever de indenizar , em caso de dano (CDC, art. 51,I).

ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. 2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional. 5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada. (Resp. nº 1.254.141 – PR (2011/0078939-4), Terceira Turma, STJ, Relª Minª Nancy Andrighi, DJ 04.12.2012).

Nesse sentido, além dos requisitos da responsabilidade civil clássica do médico, é imperioso também a frustação de uma chance, sendo ela de melhor tratamento ou de manutenção da vida. Essa chance não pode se confundir com mera expectativa, ou seja, deve ser séria, real e viável. Sobre essa seriedade, Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 138), lapida: A teoria da perda de uma chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável. Assim, para que a demanda do réu seja digna de procedência, a chance por este perdida deve representar muita mais do que uma simples esperança subjetiva. Como bem apontou Jacques Boré, pode-se imaginar um paciente vitimado por uma doença incurável, mas que ainda mantenha as esperanças de sobreviver. Objetivamente, todavia, não existe qualquer chance apreciável de cura. Além disso, há de se levar em consideração a ocorrência do processo aleatório (incerto e desconhecido) para a caracterização da teoria, ou seja, de que um evento não previsto ocorra e impeça o êxito de sucesso do diagnóstico ou cura. Por isso, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral (2015, pg. 144), defende: [...]. Evidentemente, reflete o entendimento de que um evento interrompe um processo aleatório que poderia conduzir à obtenção de um benefício com potencial para ser alcançado, mas há impossibilidade de demonstrar com certeza que a probabilidade levaria ou não à realização do resultado útil. Esse evento aleatório, portanto, reveste-se da situação em que o médico atua com culpa (má prática médica) e acaba por causar a interrupção de um evento que tinha séria probabilidade de obtenção de sucesso caso não tivesse ocorrido a ação ou omissão do agente, a depender do caso concreto. Exemplo de reconhecimento da aplicabilidade da perda de uma chance na área médica e da ocorrência do evento aleatório é a seguinte ementa do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

Nesse caso, a paciente estava acometida por um câncer de mama, vindo a falecer. No decorrer do tratamento não lhe foi recomendado o tratamento quimioterápico e a mastectomia realizada foi parcial, enquanto que a recomendável para a ocasião era total, ademais o médico negou o reaparecimento da metástase. Em decorrência disso o tratamento empregado foi o inadequado à vista da comunidade médica. Nessa perspectiva, houve por parte do profissional da saúde a produção de um processo aleatório (inesperado), que se constituiu na prescrição do tratamento inadequado, que acabou por impedir a chance da paciente de viver. Essa chance é real e séria, vez que o câncer se diagnosticado tempestivamente e tratado corretamente tem alta probabilidade de cura. Mister destacar que o padrão clássico do nexo causal na responsabilidade civil segue a “regra do tudo ou nada”, que significa que se o nexo causal é provado com certeza, o pedido deve ser procedente, mas de outro modo, se há incerta, o pedido deve ser improcedente. Sobre essa situação, Ralph Frasca (2009, pg. 97), alega:

DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO

A regra do tudo-ou-nada é a regra de negligência tradicional para determinar a responsabilidade e danos, quando a causa é ambígua. A inclusão dessa regra de negligência como perda da chance deve ser enfatizada, porque a regra do tudo ou nada é usualmente apresentada como alternativa às regras da perda de uma chance. (Original em inglês – tradução livre)6.

6 The all-or-nothing rule is the traditional negligence rule for determining liability and damages when the cause is ambiguous. The inclusion of this negligence rule as a loss of chance rule must be emphasized, because the all-or-nothing rule is often presented as the alternative to loss of chance rules

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Em contraponto a regra do tudo ou nada, na perda da chance aplicável ao erro médico, observa-se que comumente é empregado a causalidade parcial, que consiste na verificação das probabilidades possíveis de sucesso da chance perdida em decorrência do evento aleatório praticado pelo profissional da saúde. Nesse sentido, Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 58), relata: Contudo, já se sustentou que não existe certeza absoluta em relação à prova do nexo causal, bastando uma carga probatória que forneça os elementos de convencimento do magistrado ou, no sistema norte-americano, do júri. Pode-se assegurar, mesmo segundo os padrões ortodoxos, que o nexo causal já é determinado por meio de probabilidades. O que Jacques Boré e John Makdisi propõem é que a reparação seja concedida de acordo com a probabilidade efetiva e cientificamente provada. Em consequência da necessidade de análise das probabilidades de sucesso na causalidade parcial, se poderia imaginar uma fragilidade na configuração do nexo causal. Contudo, não é o que ocorre, vez que há a prática da ação e da omissão do profissional, bem como pelo fato da perda da chance ser instituto autônomo, não dependendo de outros acontecimentos para sua instauração. Nessa perspectiva, a Ministra Nancy Andrighi (2012, pg. 8), manifesta:

Nessa ocasião, por exemplo, se há 70% de probabilidade de ocorrência de sucesso em cada premissa, esses 70% deverão ser multiplicados pelo número de premissas existentes. Matematicamente falando é: .7x .7x .7x = 21 (Sendo 7 a porcentagem de sucesso e x o número de premissas). Nesse caso hipotético, portanto, haveria 21% de ter ocorrido o sucesso se não tivesse acontecido o processo aleatório. A conversão das probabilidades apuradas em valor pecuniário se mostra tarefa árdua, vez que não há técnicas legais para tal, bem como os julgados sobre a temática não abordam pormenorizadamente como alcançaram os valores pecuniários indenizatórios. Frente a esta situação, resta ao magistrado, ante o caso concreto que se apresenta utilizar dos princípios do livre convencimento motivado e da persuasão racional. Destaca-se que o aporte da indenização nunca será igual ao valor integral do dano suportado, vez que isso deturparia o instituto da perda da cura e se constituiria na responsabilidade civil clássica, o que se ressarce, ressalta-se, é a chance frustrada e não o dano em si. Nesse ponto de vista, Rafael Peteffi da Silva (2013, pg. 60), arremata: A jurisprudência que aceita a perda de uma chance apenas apresenta o problema da certeza de forma mais clara, pois tenta resolvê-lo com base em dados científicos, negando-se a indenizar os elementos aleatórios do prejuízo, “os quais são eliminados por meio de um cálculo de probabilidades”. Tomando-se o caso do médico que deixa de prescrever um tratamento que poderia salvar a vida do paciente, e os peritos informam que o tratamento teria sessenta por cento (60%) de chances de curar a vítima, mas mesmo assim o juiz decide condenar o médico, é evidente que estará indenizando os elementos aleatórios, representados pelos quarenta por cento (40%) de chances de o tratamento fracassar.

A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. No mesmo ângulo de visão, (PENNEAU, Jean, 1977, pg. 342 apud KFOURI NETO, Miguel, 2011, pg. 59), conclui: “A causalidade resulta, então, fácil de estabelecer, pois, como disse Penneau, já não se trata tanto de demonstrar que tal culpa causou tal prejuízo, mas sim de afirmar que sem culpa o dano não teria ocorrido. ” Para o cálculo da indenização concernente a perda de uma cura é necessária a análise da probabilidade perdida, ou seja, o percentual de ocorrência de sucesso da chance frustrada caso ela tivesse se concretizado. Quem definirá esse percentual será o perito, da área médica, que exporá qual seriam as probabilidades no caso concreto de êxito. Por isso, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral (2015, pg. 254), afirma: “Para a determinação da probabilidade, não raro, apresenta-se como a melhor alternativa o recurso a um experto, um perito que, mediante análise das circunstâncias objetivas, aprecie com maior precisão a porcentagem de sucesso que fora frustrada”. Ademais, embasado nas circunstâncias peculiares do caso, o magistrado não está vinculado as probabilidades apresentadas pelo perito, já que ele detém a livre apreciação das provas, sem haver hierarquia de uma sobre a outra. Acerca da apuração das probabilidades de sucesso no caso concreto, David. A Fischer (2001, pg. 614), advoga: “O conjunto de princípios sustenta que a probabilidade de uma proposição, que depende de um número de premissas fatuais independentes seja igual ao produto matemático da probabilidade de cada premissa (original em inglês – tradução livre)7”.

Nessa toada de aferição de probabilidades da chance subtraída, Ana Cláudia Zuin Mattos do Amaral (2015, pg. 161) traz à tona de como deverá ser o posicionamento do magistrado frente a essa situação, esculpe: Por oportuno, de acordo com os posicionamentos até agora apresentados, escorados no direito francês, vislumbra-se que, a priori, pode-se considerar que o juiz, em um primeiro momento, verificará o grau de probabilidade que entenda suficiente para a existência da chance, que, desde superior a zero, possa indicar uma provável chance e, em seguida, cuidará de analisar uma segunda fase de apreciação, a da probabilidade, com a finalidade de proceder à avaliação do quantum debeatur, para determinação do percentual de probabilidade de ocorrência do dano final (resultado final esperado). Este, por consequência, constituirá o parâmetro para subsidiar o valor da indenização efetivamente devida. Nesse entendimento, o juiz deverá verificar se há probabilidade razoável presente na chance perdida, por meio de perito médico. Ademais, deverá arbitrar o valor a título de indenização conforme as circunstâncias peculiares do caso concreto. 6 CONCLUSÃO Com esse trabalho de pesquisa, se vislumbrou que o direito a saúde fora construído a partir da Segunda Revolução Industrial, com

7 The conjunction principle states that the probability of a proposition that depends on a number of independent constituent factual premises is equal to the mathematical product of the probability of each premise.

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o ápice do Estado Social de Direito, marcado pela prestação positiva do Estado em garantir direitos a sua população. No que atine ao erro médico, tratado como sinônimo de culpa médica, que é a falha do profissional com a presença ou não do dolo no diagnóstico e tratamento de pacientes, observou-se que a quantidade de faculdades de medicina tem se proliferado pelo país com a autorização do Ministério da Educação (MEC). Por isso, se pondera sobre a qualidade dos profissionais que estão sendo formados, em decorrência dessa preocupação, é instaurado a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (ANASEM), a fim de garantir padrões mínimos de qualidade a serem alcançados pelos estudantes de medicina. Acerca da responsabilidade civil do médico, observou-se que se trata de relação de consumo, portanto, incidente as normas do Código de Defesa do Consumidor, que prevê necessidade de culpa do profissional médico para sua responsabilização. Ademais, tem-se como regra geral que a obrigação é de meio, não estando vinculado a entrega de determinado resultado, exceção fica por conta dos cirurgiões plásticos que prometem melhoramento estético. A teoria da perda de uma chance constitui na subtração de uma chance real, provável e concreta de ocorrência de sucesso, que fora interrompida por um agente externo, no caso o médico. Essa teoria teve como nascente o direito francês, desenvolvimento no sistema do commmom law e emerge no ordenamento jurídico pátrio por meio da doutrina e da jurisprudência. A aplicação da perda da chance a atividade médica, também conhecida por perda da chance de cura, se reveste em casos em que o profissional frustrou a chance provável do paciente de obter um tratamento mais eficaz ou até a vida, quando o tratamento realizado não é o recomendado, do ponto de vista da classe média médica. Nesse entendimento, se percebeu possível a incidência da teoria da perda de uma chance a atividade médica, atendendo-se os requisitos da responsabilidade civil (ato ilícito, dano, nexo causal e culpa). Além desses parâmetros, necessita ser verificado a probabilidade e a seriedade da chance perdida pleiteada. REFERÊNCIAS ANDRIGHI, Nancy. Voto no recurso especial n° 1.254.141/PR. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=1254141+&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true .Acessado em: 01/10/2016. ASSOCIATION POUR L’ÉTUDE DE LA RÉPARATION DU DOMMAGE CORPOREL (AREDOC). Quelques aspects de la perte de chance en responsabilité médicale. Disponível em: http://www.aredoc.com/ system/files/Perte%20de%20chance%202012_1.pdf .Acessado em: 25/09/2016. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. V. único. 10ª Edição, São Paulo, Editora Atlas, 2012. BOZO, Aline Maria Hagers. Direito Social à saúde: Análise a partir da perspectiva dos direitos fundamentais no caso brasileiro. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=a2f94d8e28139ce8 .Acessado em: 29/08/2016. BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. (Convenção Americana de Direitos Humanos). Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm .Acessado em: 25/10/2016.

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O PSICOPATA CRIMINOSO FRENTE À LEI PENAL BRASILEIRA THE PSYCHOPATH CRIMINAL IN RELATION TO CRIMINAL LAW BRAZILIAN Bárbara de Oliveira Dias¹

RESUMO: O presente trabalho busca analisar o indivíduo psicopata criminoso, leia-se, aquele que possui transtorno de personalidade antissocial e a resposta da lei penal brasileira mediante sua conduta criminosa. Para tanto faremos estudos acerca das ciências penais e no âmbito da psicologia, afim de entender como se qualifica tal transtorno dentro das referidas áreas. Na esfera penal o objeto em análise é a classificação do transtorno, sendo utilizada a teoria do crime com enfoque na culpabilidade e imputabilidade, já na esfera psíquica o que se busca é o fornecimento de informações que nos levem a entender o que é a psicopatia e como ela se manifesta naquele que a possui. Determinando assim, a figura do psicopata criminoso. Por conseguinte, o objeto de estudo será analisado pela ótica do Direito Penal Brasileiro através do ius puniendi estatal, estudando as sansões aplicadas a estes indivíduos e a eficácia destas. PALAVRAS-CHAVES: Impunidade. Lei Penal Brasileira. Medida de Segurança. Psicopata. Transtorno de Personalidade Antissocial.

ABSTRACT: This study seeks to analyze the criminal psychopathic individual, read it, who has antisocial personality disorder and the response of the Brazilian criminal law by his criminal conduct. Therefore we will make studies of the criminal sciences and in the context of psychology in order to understand how to qualify such disorder within those areas. In criminal cases the object in question is the classification of the disorder, and used the murder theory with a focus on guilt and accountability, as in the psychic sphere what is sought is the provision of information that lead us to understand what is psychopathy and how it manifests in one who has. Thereby determining the figure of the criminal psychopath. The object of study will be examined from the perspective of criminal law through the Brazilian state puniendi ius, studying the sanctions applied to these individuals and the effectiveness of these. KEYWORDS: Liability. Brazilian Penal Law. Security Measure. Psycho. Antisocial Personality Disorder.

SUMÁRIO 1 Introdução 2 A psicopatia e suas características 3 Imputabilidade penal 4 Sansão penal aplicada ao psicopata criminoso 5 Sansão penal adequada ao psicopata criminoso 6 Conclusão Referências.

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva

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excessos sexuais, e abuso de drogas e álcool. Durante a fase adulta, esses antigos padrões continuam e outros aparecem: fracassos no trabalho, no casamento e na paternidade.

1 INTRODUÇÃO O presente trabalha visa demonstrar a aplicabilidade das leis penais ao indivíduo portador de transtorno de personalidade antissocial, leia-se, o psicopata. Analisando o tratamento despendido a este, sua aplicação e eficácia. A psicopatia, mais conhecida como transtorno de personalidade antissocial é tema recorrente e está intimamente ligado às ciências criminais e a justiça. Visto isso, faz se necessária uma análise ao tema referido, pois há controvérsias acerca da psicopatia, sendo considerada para alguns como doença moral, doença mental ou transtorno de personalidade, estendendo os questionamentos a imputabilidade eas sansões penais aplicadas a tais indivíduos. Os conceitos citados serão abordados no desenvolvimento deste trabalho, buscando questionar a efetividade do ius puniendi estatal quando aplicado nessas situações. O exercício do ius puniendi versa sobre a culpabilidade ou periculosidade, sobre a finalidade da sansão, tratando da prevenção, reprovação ou tratamento visando-se a cura. No que que tange aos psicopatas as sansões normalmente aplicadas não geram uma diminuição nas infrações, pois eles possuem peculiaridades, ignorar tal fato faz com que estes indivíduos pratiquem a conduta criminosa, fiquem presos, mas pelo falseamento e dissimulação inerentes as suas características se beneficiem, retornando ao meio social e praticando novos crimes. O objetivo do trabalho é verificar o ordenamento jurídico, entendê-lo como um sistema aberto às demais áreas da ciência, com o intuito de suprir a notável incompletude quando se trata das sanções aplicadas e da eficácia esperada nestes casos, afim de que os psicopatas recebam sansões e o tratamento de que realmente necessitam. 2 A PSICOPATIA E SUAS CARACTERÍSTICAS Para que a aplicação da lei penal ao caso concreto seja adequada, faz se necessária a análise das razões morais e das motivações que levam o indivíduo a cometer delitos, como também analisar em que perspectiva sociocultural o mesmo está inserido. A Psiquiatria Forense é utilizada como ramo da Criminologia e tem por função formular conceitos e trazer à tona aspectos relevantes tanto para a psicologia, quanto para a área jurídica, pois através da mesma é desenvolvida uma análise a respeito da personalidade do indivíduo que comete o crime. A psicopatia é um tipo de personalidade que têm como características a ausência de remorso, culpa e falta de empatia para com os outros. Significa dizer que os indivíduos psicopatas não se importam com o sofrimento alheio, mas demonstram um alto nível de manipulação, egocentrismo, senso de grandiosidade exacerbado e impulsividade. Demonstram comportamento antissocial e controle comportamental pouco desenvolvido. Para a psiquiatra brasileira Ana Beatriz Barbosa Silva (2008, p.89), “ninguém se torna psicopata da noite para o dia: eles nascem assim e permanecem assim durante toda a sua existência”. A partir desta breve explicação, a psicopatia ou Transtorno de Personalidade Antissocial pode ser compreendida como um distúrbio psicológico inerente à personalidade do indivíduo que o incita a praticar comportamentos antissociais e criminosos. Nas lições de Davidoff (2001, p.581): As pessoas com distúrbio de personalidade antisocial [...] são distinguidas por uma longa história de comportamento anti-social, que começa aos 15 anos. Mentira, roubo e vadiagem são típicos na pré-adolescência. Na adolescência, há agressão,

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Entendem também Braghirolli, Bisi, Rizzon e Nicoletto (2003, p. 201): O termo psicopatia se aplica aos indivíduos de comportamento habitualmente anti-social, que se mostram sempre inquietos, incapazes de extrair algum ensinamento da experiência passada, nem dos castigos recebidos, assim como incapazes de mostrar verdadeira fidelidade a uma pessoa, a um grupo ou a um código determinado. Costumam ser insensíveis e de muito acentuada imaturidade emocional, carentes de responsabilidade e de juízo lúcido e muito hábeis para racionalizar seu comportamento a fim de que pareça correto, sensato e justificado. Conforme a doutrinadora Ana Beatriz Silva, (2008, p.114): No Direito Penal pátrio existem três correntes que versam sobre crimes cometidos por pessoas com transtornos de personalidade, em especial o indivíduo psicopata. A primeira entende a psicopatia como doença mental, a segunda discrimina como doença moral e a terceira, que é entendimento majoritário, como transtorno de personalidade. O doutrinador Jorge Trindade (2012, p. 165) afirma que o termo psicopatia é frequentemente utilizado em documentos legais e pareceres jurídicos, especialmente em perícias de matéria penal e em alguns casos de matéria civil. A primeira corrente adotada por Ana Beatriz Silva (2008, p. 114), é interpretada como mais conservadora e versa sobre a psicopatia como doença mental, sendo fiel a etimologia da palavra, que significa doença da mente. Entretanto os profissionais da área da psiquiatria forense criticam esse entendimento por entenderem que a parte cognitiva dos indivíduos psicopatas se mantem preservada e integra, sendo assim estes têm consciência dos atos praticados. A segunda corrente adotada por Robert Hales (2006, p. 771), considera a psicopatia como doença moral, neste norte, a responsabilidade penal dos indivíduos referidos poderia ser amenizada em prol da suposta incapacidade de entender as regras sociais e jurídicas. E por fim, a terceira corrente adotada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (2002, p. 656), majoritária, entende que por conta dos avanços das ciências ligadas a área da saúde mental, a psicopatia tem que ser considerada como um transtorno de personalidade antissocial, onde estão abarcados o caráter, a consciência e a personalidade do indivíduo. Jorge Trindade (2012, p.166) assevera que: A personalidade psicopática refere-se a uma individual característica de modelos de pensamento, sentimento e comportamento, sendo uma característica interna da pessoa, mas que se manifesta globalmente, em todas as facetas do indivíduo. Enfim, é um modelo particular de personalidade. A CID (Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde), entende que “os psicopatas são portadores de transtornos específicos de personalidade, podendo apresentar perturbações graves da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, atacando áreas da personalidade associadas a ruptura social ”.

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Jorge Trindade (2012, p. 179): Mesmo que a psicopatia seja considerada uma patologia social (pelo sociólogo), ética (pelo filósofo), de personalidade (pelo psicólogo), educacional (pelo professor), do ponto de vista médico (psiquiátrico) ela não parece configurar uma doença no sentido clássico, sendo que atualmente há uma tendência universal de considerar os psicopatas como plenamente capazes de entender o caráter lícito ou ilícito dos atos que pratica e de dirigir suas ações.

O art.26 do Código Penal Brasileiro considera inimputável, isento de pena, o agente que ao tempo da ação ou omissão, era portador de doença mental ou possuía desenvolvimento mental incompleto, ou retardo. Tal dispositivo entende que o agente não possuía discernimento para entender o caráter ilícito do fato ou se determinar de acordo com o entendimento. No tocante aos critérios legais que determinam a inimputabilidade, para Mirabete e Fabbrini (2012, p.198): Há que ser feita uma aferição no aspecto intelectivo e volitivo. Nos termos da lei, só é inimputável aquele que ao tempo da conduta, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato: o agente pode entender o fato, mas não o caráter ilícito de sua conduta e, nessa hipótese, é inimputável. Pode o sujeito, porém, apesar de um desses estados mórbidos, ser capaz do entendimento ético, devendo-se nessa hipótese, verificar o aspecto volitivo, de autodeterminação, que pode não existir. É o que ocorre com alguma frequência em indivíduos portadores de certas psiconeuroses, os quais agem com plena consciência do que fazem, mas não conseguem ter o domínio de seus atos.

Na mesma linha Trindade (2009, p. 68): Ademais, pode-se distinguir a psicopatia em primária e secundária, sendo que a psicopatia primária é aquela decorrente de déficits constitucionais, ou seja, aquela presente em sua estrutura biopsíquica, latente desde sua gestação, vindo a se revelar mais tarde em sua personalidade. Nesse caso, a psicopatia não é produto do meio em que o indivíduo vive, mas genética e constitucional. Quanto à psicopatia secundária, trata-se de decorrência da aprendizagem psicossocial, ou seja, é produto das experiências negativas do indivíduo e do ambiente em que se encontra inserido, desenvolvendo-se ao longo da vida, especialmente durante a infância. Do ponto de vista psicológico, pode-se afirmar que o psicopata primário atua, invariavelmente, de maneira intencional e direta para maximizar seu ganho, prazer ou excitação, enquanto que o psicopata secundário age tipicamente como revanche, ou seja, reage em face de circunstâncias que exacerbam seus conflitos interiores, de natureza neurótica.

Sendo assim, é entendimento do doutrinador que o psicopata secundário pode responder a abordagens psicoterápicas, pois sua mente foi danificada durante um desenvolvimento negativo de aprendizado, o que gerou traumas psicológicos. Já o psicopata primário é refratário, não respondendo a nenhum tipo de terapia ou psicoterapia, pois este age motivado pela sua vontade e não por ter sofrido traumas. 3 IMPUTABILIDADE PENAL Nas lições de Ronaldo Passos Braga (2012, p. 121): A lei processual penal refere-se as normas, regras e princípios que regulamentam a forma de composição do litígio penal, permitindo a aplicação do Direito Penal material ao caso concreto e consequentemente a realização do jus puniendi. A corrente tripartida quanto aos elementos do conceito analítico de crime, compreende o delito como uma conduta típica, ilícita e culpável, nesse sentido a imputabilidade penal se apresenta como componente da culpabilidade. A imputabilidade penal reside em atribuir a responsabilidade de um ato a alguém, a mesma é forma de averiguar se o sujeito possuía condições de discernir o caráter ilícito dos seus atos. Quando não é possível identificar tais condições o autor do crime será considerado como semi-imputável ou inimputável. Conforme Zaffaroni (2011, p. 540): A imputabilidade é, como regra geral, a capacidade psíquica de culpabilidade, ou em outras palavras, é a capacidade psíquica de ser sujeito de reprovação, composta da capacidade de compreender a antijuridicidade da conduta e de adequá-la de acordo com esta compreensão.

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E ainda preceituam sobre a mesma se valendo de três sistemas, quais sejam, o biológico, psicológico e o biopsicológico. Nas lições de Mirabete e Fabbrini (2012, p. 196), o sistema biológico é caracterizado em razão de uma anomalia psíquica, promovendo assim a inimputabilidade, que não encontra discussão em relação a origem do ilícito, não levando em consideração se em virtude da enfermidade o agente praticou o ilícito. Tal entendimento é considerado equivocado para os referidos autores, visto que, nessa hipótese o agente fica impune, mesmo quando tiver capacidade de determinar o caráter ilícito da conduta. No sistema psicológico serão observadas as condições psíquicas do agente no momento do fato, afastando-se a hipótese de haver uma doença mental, o que gera uma situação difícil de se verificar. Já o terceiro critério, denominado de biopsicológico, é utilizado na construção do art.26 do CP. O mesmo trata da junção dos sistemas biológico e psicológico, resultando no fato de que se constatado que o agente não possui doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, retardo, a inimputabilidade será excluída. Mas se comprovada sua incapacidade de discernimento ao realizar a conduta, o mesmo gozará da inimputabilidade. Na visão de Rogério Greco (2011, p.150): No âmbito do Direito Penal, a perícia psiquiátrica tem por objetivo estabelecer diagnóstico e auxiliar o juiz a estabelecer a culpabilidade. Dessa maneira, mostra-se a impossibilidade de atribuir culpabilidade para um indivíduo portador de transtorno mental que comete algum ilícito, após diagnosticada a sua insanidade psíquica por meio de perícia. Nesse contexto, existe o reconhecimento de que essa pessoa apresenta incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme este entendimento, não podendo ser estereotipado como criminoso. Luiz Flávio Gomes (2007, p. 573), diz que “a imputabilidade é a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Sendo assim, é de notória percepção que as ideias de cognição e volição são preservadas e que o agente é capaz de entender e praticar o ato típico e antijurídico. Como exposto anteriormente o agente do delito poderá ser classificado como imputável, semi-imputável e inimputável, tal designação é de suma importância para a aplicabilidade do ius puniendi estatal que têm por função estabelecer a culpabilidade ou periculosi-

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dade da conduta, dar finalidade, leia-se identificar o tipo de sanção, podendo estas serem preventivas e reprovativas ou de tratamento e cura. Estabelecendo a pena ou medida de segurança aplicável ao caso. No parecer de Dalila Wagner (2008):

Para Rogério Greco (2012, p. 669), “muitos criminologos clássicos advogam que a “loucura moral”, ou em outras palavras, a perversão moral (sem delírio), caso da psicopatia para a segunda corrente apresentada”. Em consonância Jorge Trindade (2009, p. 127) diz que:

As sanções penais comportam 02 (duas) espécies: as penas e as medidas de segurança, que podem ser diferenciadas, entre outros, pelos seguintes aspectos: fundamento, finalidade e duração. Nesse sentido, o fundamento para a aplicação da pena é a culpabilidade do agente, ao passo que o fundamento para a aplicação da medida de segurança é a periculosidade do agente.

Quando não altera a inteligência, nem destrói a liberdade de escolha, em nada influi sobre a imputabilidade do agente, sendo que esse parece ser o entendimento que mais se aproxima da visão de psicopatia para Cleckley. Neste sentido Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 179) afirma: É preciso muita cautela, tanto por parte do magistrado como por parte do perito, para averiguar no caso concreto se determinado infrator pode ou não ser classificado com um indivíduo psicopata, pois como a psicopatia está inserida no gênero de personalidades antissociais, tais situações são consideradas limítrofes, ou seja, não chegam a constituir normalidade, mas também não caracterizam a anormalidade a que faz referência o artigo 26 do Código Penal brasileiro.

As penas são aplicadas aos criminosos imputáveis e semi-imputáveis, visando a reprovação e prevenção da conduta ilícita, já as medidas de segurança aplicam-se regra geral aos inimputáveis, e excepcionalmente aos semi-imputáveis, buscando o tratamento e cura do agente. O magistrado aplica pena ou medida de segurança, não podendo aplica-las conjuntamente. Conforme art.59 do CPB: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. As penas são fixadas com termo final certo (duração máxima de trinta anos) e as medidas de segurança, aplicam- se por tempo indeterminado e não possuem duração máxima (permanecendo enquanto não acabar a periculosidade do agente). Pelo fato de não haver um lapso temporal determinado em relação as medidas de segurança, o STF emitiu seu posicionamento e afirmou que o limite máximo será o de duração de trinta anos para que o agente seja internado em hospital psiquiátrico. 1.A prescrição de medida de segurança deve calculada pelo máximo da pena cominada ao delito atribuído ao paciente, interrompendo-se-lhe o prazo com o início do seu cumprimento. 2. A medida de segurança deve perdurar enquanto não haja cessado a periculosidade do agente, limitada, contudo, ao período máximo de trinta anos. 3. A melhora do quadro psiquiátrico do paciente autoriza o juízo de execução a determinar procedimento de desinternação progressiva,em regime de semiinternação. (HC 97621/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, 2ª T., j. 2/6/2009).

Em que pese a existência de posicionamento jurisprudencial referindo a posição de que os psicopatas apresentam capacidade penal diminuída, imaginar a psicopatia como uma doença mental clássica e incapacitante sob o aspecto cognitivo e volitivo, fazendo com que, sob o aspecto jurídico, o psicopata seja isento de pena, é o mesmo que privilegiar a sua conduta delitiva perpetrada ao longo da vida e validar seus atos.

Para a doutrinadora Ana Beatriz Silva deve haver uma diferenciação no tratamento despendido ao indivíduo psicopata criminoso e o indivíduo infrator comum. Para a realização de tal fato deveria ser utilizado o PCL (psychopathy checklist), um programa criado pelo psicólogo Robert Hare, que é uma das maiores autoridades mundiais do tema, este reuniu características sobre tais indivíduos e as sistematizou corroborando na criação do PCL, a utilização deste método implica na identificação de psicopatas em populações prisionais. O magistrado ao estar diante de um criminoso com características de psicopatia deve se valer de laudos psiquiátricos, para que seja comprovada a psicopatia e seu grau, o PCL é o exame mais completo nesse sentido. Na visão de Ana Beatriz (2008, p. 134):

Em concordância, afirma Rogério Greco (2012, p. 669): Apesar da deficiência do nosso sistema, devemos tratar a medida de segurança como remédio, e não como pena. Se a internação não está resolvendo o problema mental do paciente ali internado sob o regime de medida de segurança, a solução será a desinternação, passando-se para o tratamento ambulatorial, como veremos a seguir. Mas não podemos liberar completamente o paciente se este ainda demonstra que, se não for corretamente submetido a um tratamento médico, voltará a trazer perigo para si próprio, bem como para aqueles que com ele convivem. Fez se necessária uma breve contextualização sobre os conceitos de psicopatia e imputabilidade, para uma melhor compreensão do tratamento despendido ao indivíduo psicopata. Como apresentado anteriormente, o psicopata não tem sua capacidade de intelecto reduzida, estes por sua vez demonstram um grau de inteligência elevado.

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Assim, explica Jorge Trindade (2009, p.133):

A psiquiatra forense Hilda Morana, responsável pela tradução, adaptação e validação do PCL para o Brasil, além de tentar aplicar o teste para a identificação de psicopatas nos nossos presídios, lutou para convencer deputados a criar prisões especiais para eles. A ideia virou um projeto de lei que, lamentavelmente, não foi aprovado. Mirabete e Fabbrini (2012, p. 374), entendem que: Embora de forma implícita, permanecem os pressupostos para a aplicação das medidas de segurança: a prática de fato previsto como crime e a periculosidade do agente. É o que se deduz dos artigos 97 e 98 do CP. Não basta a periculosidade, presumida pela inimputabilidade, ou reconhecida pelo juiz em casos de semi-imputabilidade. Necessário e imprescindível que, na condição de sujeito ativo, tenha a pessoa cometido um fato típico punível.

As sanções aplicadas a estes indivíduos atualmente podem ser de penas reduzidas ou medidas de segurança, as mesmas serão

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conta que sua capacidade de resistência diante dos impulsos passionais é, nele, menor que em sujeito normal, e esse defeito origina uma diminuição da reprovabilidade e, portanto, do grau de culpabilidade.[...] Os psicopatas, por exemplo, são enfermos mentais, com capacidade parcial de entender o caráter ilícito do fato.

aplicadas aos inimputáveis que cometem o ilícito, e no caso dos semi -imputáveis, caberá ao juiz decidir se aplicará a pena ou a medida de segurança. 4 SANÇÃO PENAL APLICADA AO PSICOPATA CRIMINOSO De acordo com a lei de execução penal (Lei 7.210\84), ao aplicar uma pena ao indivíduo tem que ser feito um estudo prévio de sua condição psicossocial. O mesmo deve levar em consideração as particularidades do infrator no tocante a culpabilidade e a aplicação da pena, visto que desse ato estatal serão geradas consequências. Sendo a sanção indevidamente aplicada, a mesma não logrará êxito em relação a recuperação social do indivíduo. Para alguns doutrinadores e parte da jurisprudência penal: As personalidades psicopáticas são consideradas com culpabilidade reduzida, ocasião em que lhes é aplicada pena de prisão com redução obrigatória ou aplicada medida de segurança, caso seja comprovado, através de laudo pericial, perturbação mental e o indivíduo seja enquadrado na hipótese do caput, ou do parágrafo único do artigo 26, do Código Penal. (BITTENCOURT,2009, p. 134).

Como citado anteriormente, no atual sistema penal brasileiro se aplicam as penas ou as medidas de segurança, o que demonstra a aplicabilidade de um sistema unitário. O posicionamento majoritário é de que a psicopatia é caracterizada como transtorno de personalidade antissocial, que não acarreta em deficiência na capacidade deste indivíduo em entender o caráter ilícito de sua conduta. Atualmente as medidas de segurança são aplicadas ao indivíduo psicopata, estas podem ser executadas com a internação em hospital de custódia e através de tratamento ambulatorial. Conforme Capez (2004, p 400): A medida de segurança é sanção penal imposta pelo Estado, na execução de uma sentença, cuja finalidade é exclusivamente preventiva no sentido de evitar que o autor de uma infração penal, que tenha demonstrado periculosidade volte a delinquir.

O psicólogo canadense Robert Hare, foi o responsável pela identificação dos critérios responsáveis pelo diagnóstico do transtorno de personalidade antissocial. Em entrevista à revista Veja, o mesmo afirmou: No Brasil, os psicopatas costumam ser considerados semi-imputáveis pela Justiça. Os magistrados entendem que eles até podem ter consciência do caráter ilícito do que cometeram, mas não conseguem evitar a conduta que os levou a praticar o crime. Assim, se condenados, vão para a cadeia, mas têm a pena diminuída. O senhor acha que, do ponto de vista jurídico, os psicopatas são totalmente responsáveis por seus atos? Eu diria que a resposta é sim. Mas há divergências a respeito e existem muitas investigações em andamento para determinar até que ponto vai a responsabilidade deles em certas situações. Uma corrente de pensamento afirma que o psicopata não entende as consequências de seus atos. O argumento é que, quando tomamos uma decisão, fazemos ponderações intelectuais e emocionais para decidir. O psicopata decide apenas intelectualmente, porque não experimenta as emoções morais. A outra corrente diz que, da perspectiva jurídica, ele entende e sabe que a sociedade considera errada aquela conduta, mas decide fazer mesmo assim. Então, como ele faz uma escolha, deve ser responsabilizado pelos crimes que porventura venha a cometer. Não há dados empíricos que deem apoio a um lado ou a outro. Ainda é uma questão de opinião. Acredito que esse ponto será motivo de discussão pelos próximos cinco ou dez anos, tanto por parte dos especialistas em distúrbios mentais quanto pelos profissionais de Justiça (Robert Hare, 2009, p.21). Para Mirabete e Fabrini (2012, p. 199): Embora se fale, no caso, de semi-imputabilidade, semi-responsabilidade ou responsabilidade diminuída, as expressões são passíveis de críticas. Na verdade, o agente é imputável e responsável por ter alguma consciência da ilicitude da conduta, mas é reduzida a sanção por ter agido com culpabilidade diminuída em consequência de suas condições pessoais. O agente é imputável, mas para alcançar o grau de conhecimento e de autodeterminação é lhe necessário maior esforço. Se sucumbe ao estímulo criminal, deve ter-se em

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Para os doutrinadores Mirabete e Fabbrini (2012, p. 358), as medidas de segurança quando aplicadas tratam-se de medidas detentivas, pelo fato de haver necessidade de tratamento psiquiátrico, ou na falta deste, de outro estabelecimento equiparado. Renato Flávio Marcão (2009, p.226), mantém um posicionamento crítico em relação as medidas de segurança, alegando que na fase de execução destas existem grandes dificuldades, visto que a demanda é muita e o número de vagas insuficiente. Menciona ainda o fato da inexistência de uma estrutura Estatal, sendo que em muitas vezes a medida não é devidamente aplicada, sendo substituída por cárcere comum, na tentativa de que apareçam vagas em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais mediante a um caso concreto, emitiu o posicionamento de que a paciente detentora de transtorno de personalidade antissocial fosse mantida em cárcere comum, não levando em consideração suas peculiaridades. EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. PACIENTE SUBMETIDO A MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNAÇÃO. PERMANÊNCIA EM PRESÍDIO COMUM. ALEGADA FALTA DE VAGAS EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OCORRÊNCIA. 2. ORDEM CONCEDIDA, EM PARTE. (HC 81.959/MG, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 6ª T, DJ 25.02.2008).

O Supremo Tribunal Federal entende que quando não houver estabelecimento adequado para que a internação seja realizada, o infrator poderá se valer de internação em hospital particular, desde que observada a custódia deste. Compreendendo as referidas peculiaridades em relação ao tratamento, devido ao estabelecimento do cárcere comum ser nocivo ao portador deste transtorno. Para que seja aplicado tal posicionamento, deve haver a sujeição e aplicação aos artigos 100 e 174 da Lei de Execução Penal, que são os exames psiquiátricos, criminológicos e de personalidade. Com o advento da lei 12.403/11 o Código de Processo Penal possibilitou a internação do agente, desde que, sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade seja, reconhecida por perícia e os crimes tenham sido praticados com violência ou grave ameaça, com o risco de novas práticas criminosas. Os requisitos citados atendem e correspondem ao psicopata, devendo o juiz reduzir sua pena de um a dois

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terços ou substituí-la em caso de necessidade de tratamento especial. Além da forma de internação, as medidas de segurança podem ser exercidas através de tratamento ambulatorial, este possui caráter restritivo e se designa as situações previstas no art.26 do CP. Mirabete e Fabbrini (2012, p.359) citam Zaffaroni em seu trabalho e este afirma que:

eficaz, neste caso. Para Garcia (1958), “é inútil qualquer tentativa de reeducação ou regeneração, pois não existe na sua personalidade o móvel ético sobre o que se possa influir”. Na linha de Jorge Trindade (2009, p. 110):

É sabido que, na moderna terapêutica psiquiátrica, a internação ocupa lugar cada vez mais reduzido. Existe uma série de análises que tendem para sua abolição, enquanto se fomenta o tratamento ambulatorial.

Estatísticas apontam que, no psicopata, o índice de reincidência criminal é três vezes maior que nos demais delinquentes que tais indivíduos representam cerca de 33 a 80% da população de delinquentes criminais crônicos. Os psicopatas são refratários, insuscetíveis de aprender com qualquer experiência vivida, e a iminência de punição estatal como resposta à prática de delitos não caracteriza um freio inibidor de condutas delitivas, mas, ao revés, possui um efeito, por diversas vezes, atrativo (TRINDADE, 2009.p.92). Os psicopatas iniciam a vida criminosa em idade precoce, são os mais indisciplinados no sistema prisional, apresentam resposta insuficiente nos programas de reabilitação, e possuem os mais elevados índices de reincidência criminal. (TRINDADE, 2009, p. 89).

Em consonância, o art. 101 da Lei de Execução Penal prevê a modalidade de medida de segurança não detentiva, leia-se, o tratamento ambulatorial. Tal modalidade exige ao sentenciado que compareça ao estabelecimento onde receberá seu tratamento em dias estabelecidos, autorizando a contratação de um profissional de sua confiança para quando não puder comparecer ao estabelecimento. É necessário salientar que tal procedimento poderá ser convertido em internação, caso o tratamento se mostre ineficaz. Conforme preceituam Mirabete e Fabbrini (2012, p.360): Não se pode desconhecer que o inimputável que praticou um delito de lesões corporais leves, punido com detenção, pode facilmente executar um homicídio, e que o semi-imputável que praticou o crime de ato obsceno eventualmente poderá cometer estupro. A substituição prevista em lei, portanto, deve ser aplicada pelo juiz com extrema cautela, mesmo porque todas as doenças e perturbações mentais podem ser ao menos reduzidas em sua intensidade por um tratamento curativo.

No mesmo diapasão, Ana Beatriz Barbosa (2008, p.133) explica que: Estudos revelam que a taxa de reincidência criminal (capacidade de cometer novos crimes) dos psicopatas é cerca de duas vezes maior que a dos demais criminosos. E quando se trata de crimes associados à violência, a reincidência cresce para três vezes mais. O doutrinador Jorge Trindade (2004, p.173) menciona em seu trabalho, Serin e Amos (1995, p.90), e estes afirmam que:

Coadunando com o posicionamento, Renato Flávio Marcão (2009, p. 268):

Estudos mostraram que psicopatas reincidiram cerca de cinco vezes mais em crimes violentos do que não psicopatas em cinco anos de sua liberdade da prisão”. (TRINDADE, 2004 apud SERIN e AMOS, 1995).

[...] a realidade prática destoa por completo da finalidade da lei, e a regra é que o submetido à medida de segurança, seja ela de que natureza for, não recebe o tratamento apropriado à sua recuperação mental, de maneira que a cessação, quando ocorre, advém mais de um acaso ou de condições particulares do agente do que do tratamento propriamente dispensado. Não é por outra razão que o item 158 da Exposição dos Motivos da Lei de Execução Penal assim dispõe: A pesquisa sobre condição dos internados ou dos submetidos a tratamento ambulatorial deve ser estimulada com rigor científico e desvelo humano. O problema assume contornos dramáticos em relação aos internados que não raro ultrapassam os limites razoáveis de durabilidade, consumando, em alguns casos, a perpétua privação de liberdade. Partindo das explicações anteriormente mencionadas, o que se discute é se as medidas de segurança atendem ao fim proposto em seu conteúdo, ou seja, no afastamento e na ressocialização deste indivíduo. Se sua aplicação atende aos requisitos e finalidades do ius puniendi. É perceptível, a complexidade e incerteza que abrangem a psicopatia, no tocante a periculosidade e a recuperação do infrator psicopata, visto que as sansões penais aplicadas a estes não correspondem ao resultado eficaz do ius puniendi estatal. 5 SANSÃO PENAL ADEQUADA AO PSICOPATA CRIMINOSO É de notável percepção o não aprendizado dos psicopatas em relação as sanções penais, o que resulta na reincidência criminal, fazendo com que a punição não seja um meio coercitivo, preventivo e

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Não obstante aos posicionamentos citados, o psicopata mostra se resistente também a tratamentos psicoterápicos ou medicamentosos, revelando esses métodos ineficazes para esse tipo de indivíduo. Jorge Trindade (2012, p. 178) alerta que: Até agora não existe evidência de que os tratamentos psiquiátricos aplicados a psicopatas tenham mostrado eficiência real na redução da violência ou da criminalidade, pelo contrário, alguns tipos de tratamentos que são eficientes para outros criminosos são considerados contraindicados para os psicopatas. Outrossim, os especialistas afirmam que os psicopatas desestruturam as próprias instituições de tratamento, burlam as normas de disciplinas, contribuindo para aumentar a fragilidade do sistema, além de que instalam um ambiente negativo onde quer que se encontrem.

Tais indivíduos demonstram dissimulação, manipulação, frieza e ao serem tratados e mantidos no mesmo ambiente com infratores que não possuem tal transtorno, são capazes de desenvolver a liderança que lhes é inerente, manipulando outros indivíduos ao mal comportamento no cárcere privado, demonstrando assim a ineficácia da aplicação do ius puniendi. Ideal seria que fossem aplicadas penas e não as referidas medidas de segurança. Nestes casos, alguns países como Canadá, parte dos Es-

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realmente está correspondendo àquilo que se espera dele em termos de assimilação dos valores para uma boa convivência social? Haverá algum promotor ou juiz ingênuo que não sabe que, entre os grandes líderes das rebeliões (pelo menos até o momento em que estas eclodem, é claro), entre os traficantes, entre os autores de crimes gravíssimos, enfim, entre os presos já historicamente identificados coma vida do crime, muitos têm ótima conduta, pois são muito bem adaptados à vida carcerária, conhecem muito bem as regras e os valores da vida carcerária, sabem passar ilesos perante qualquer avaliação de conduta, sem que isso represente em absoluto qualquer crescimento interior e ofereça o mínimo de garantia sobre sua adaptação social futura? A boa (ou ótima) conduta significa simplesmente que o preso formalmente está obedecendo às regras da casa.

tados Unidos e Austrália, mantém estes em celas separadas (individualizadas) em relação a demais população carcerária, o que diminui as chances do mesmo conseguir desenvolver seu comportamento utilizando-se das demais pessoas. Para Trindade (2012, p. 178): Os psicopatas necessitam de supervisão rigorosa e intensiva, sendo que qualquer falha no sistema de acompanhamento pode trazer resultados imprevisíveis. Assim, as penas a serem cumpridas por psicopatas devem ter acompanhamento e execução diferenciada dos demais presos, uma vez que não aderem voluntariamente a nenhum tipo de tratamento, sendo que, quando aderem, é com a finalidade de se obter benefícios e vantagens secundárias. Busca-se aqui a aplicação do princípio da igualdade em sentido material, assegurando que a execução penal dos psicopatas se dê de maneira diferenciada da dos demais sentenciados. Isabel Medeiros de Castro (2012, p. 4) assevera que: Um dos motivos principais para que o ambiente penal (seja em penitenciárias, seja em manicômios judiciários) não ressocialize esses indivíduos é o fato de nossa legislação ser extremamente arcaica. É preciso considerar que nosso Código Penal já tem mais de 20 anos sem alterações, e o conceito de psicopatia mudou, ao longo desse tempo. Hoje há novas informações sobre o quadro clinico, as causas, os reflexos neurobiológicos e o julgamento moral desses indivíduos. Por isso, é importante que as medidas punitivas sejam reavaliadas, a fim de que pessoas com esse tipo de transtorno possam retornar ao convívio em sociedade. A legislação arcaica, aliada ao Estado falho (não há, no Brasil, qualquer teste padrão para depurar essas pessoas do meio carcerário) resulta em um encarceramento indistinto de psicopatas e não-psicopatas. Com a utilização do PCL será possível a identificação dos sentenciados portadores de psicopatia, o que acarretaria na separação dos demais, disponibilizando profissionais para lidar com o transtorno de personalidade antissocial (visto que, como já dito, tais indivíduos conseguem dissimular bom comportamento, conseguindo assim benefícios e voltando a delinquir), o que tornaria eficaz o princípio da individualização da pena na fase de execução criminal. Em consideração a todas as peculiaridades do indivíduo em questão, é de extrema necessidade identifica-los e avalia-los de maneira minuciosa, antes de serem atribuídos a eles qualquer benefício na execução penal, visando evitar a reinserção desses infratores pautada tão somente em decisões judicias acerca de bom comportamento e atestados positivos, que não condizem com a realidade cotidiana. De acordo com Alvino Augusto de Sá (2007, p. 200): A Lei 10.792/2003, que reformou a LEP, prevê, como única exigência para concessão dos benefícios legais, em termos de avaliação, a boa conduta, ou o atestado de boa conduta do preso (vide nova redação do art. 112, caput e parágrafos). Portanto, não mais se exige qualquer outra avaliação de mérito, de conquistas e progressos feitos pelo apenado. (...). A prevalecer o argumento de que deve se suprimir qualquer avaliação técnica para a concessão de progressão de regime, por conta de que pouco ou nada de seguro e convincente se encontra nessas avaliações (das quais, é mister reconhecer, muitas são bem feitas), então também se deveria suprimir a avaliação da conduta. Ou por acaso haverá algum promotor ou juiz que acredite ser o “atestado de boa ou ótima conduta” um comprovante seguro e convincente de que o preso

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Mas para que o PCL seja implementado no Brasil, é necessária a edição de uma lei específica que adote o teste como uma das ferramentas para a identificação deste tipo criminal, bem como a exigência da realização de uma avaliação interdisciplinar técnica antes do deferimento de benefícios, durante a execução penal desses sentenciados, evitando-se a reinserção social precoce, além da reincidência criminal. A respeito deste programa, assevera Jorge Trindade (2012, p.78): No momento, parece haver consenso de que o PCL é o mais adequado instrumento, sob a forma de escala, para avaliar psicopatia e identificar fatores de risco de violência. Com demonstrada confiabilidade, tem sido adotado em diversos países como instrumento de eleição para a pesquisa e para o estudo clínico da psicopatia, como escala de predição de recidivismo, violência e intervenção terapêutica. O Estado possui o poder de aplicar ius puniendi quando as pessoas cometem infrações consideradas violações a ciência penal, sendo assim, questiona-se a finalidade da aplicação de uma penalidade quando esta não possui o efeito desejado. É exatamente essa a situação que acontece no caso dos indivíduos psicopatas. Neste norte Maranhão (2008, p. 88.) diz que, “a experiência não é significativamente incorporada pelo psicopata (antissocial). O castigo, e mesmo o aprisionamento, não modificam seu comportamento”. E seguindo este raciocínio Hungria (2002, p. 03) trata que “a modificação da personalidade, no sentido do seu reajustamento social, pode ser, e muitas vezes o é, apenas fingida ou meramente superficial, não atingindo o substrato da intimidade psíquica do indivíduo”. As sanções aplicadas a estes indivíduos possuem caráter atrativo, visto que para eles desobediência e desordem agregam sensações de prazer. Ao observarmos as características de tal transtorno e o tratamento despendido a quem o possui, percebe-se a ineficácia do ius puniendi em promover os resultados esperados, que se efetivam pelo afastamento do indivíduo da sociedade quando demonstrado perigo a mesma, e sua ressocialização quando possível.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme exposto no desenvolvimento do trabalho, a psicopatia é um tema recorrente nas ciências penais, porém a mesma encontrase dentro de uma problemática situação, no que se refere ao seu significado como todo e na forma em que o indivíduo psicopata criminoso é tratado. O questionamento feito é em relação a maneira como o ius puniendi estatal possui ineficácia em relação a estes indivíduos, o poder punitivo do Estado visa a inibição das condutas que desrespei-

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tem e infrinjam o ordenamento pátrio. Como demonstrado as sansões aplicadas ao psicopata estão pautadas nas medidas de segurança, mas estas não atendem a sua função precípua, visto que no tocando ao tema do trabalho, sua aplicação não encontra resultados satisfatórios. Seja pela falta de estabelecimentos onde tais infratores possam cumpri-la, seja pelo notório caráter refratário característico dos detentores de transtorno de personalidade antissocial. É nítida a inutilidade em considerar o psicopata criminoso como um agente passível de recuperação ou ressocialização. O mesmo possui características inerentes a sua personalidade, como inteligência elevada, frieza, dissimulação, liderança, manipulação, entre outros. Neste aspecto o trabalho tem como objetivo demonstrar que a política criminal atualmente aplicada se demonstra insuficiente e ineficaz no tocante a tais indivíduos. O prazo aplicado as medidas de segurança se dão no máximo de trinta anos e o fato de os psicopatas possuírem caráter refratário (segundo as ciências médicas) em relação a aplicação da lei, desenvolvem um grave problema legal, visto que a detenção do mesmo teria um caráter perpétuo o que viola a garantia constitucional. Devido as citadas peculiaridades presentes no objeto de estudo, o que se busca é a efetivação da individualização da pena. Pois quando mantidos com o restante da população carcerária, além de não atender a função preventiva positiva da pena, leia-se, ressocialização, tal indivíduo ainda traz prejuízos ao Estado por manipular outros presos que não sofrem deste transtorno, induzindo-os ao mal comportamento e condutas regressas. A efetivação de tal princípio encontra possibilidade de aplicação através do PCL, que teve sua versão adaptada ao Brasil pela psiquiatra Hilda Morana. O PCL necessita da edição de uma lei especifica, que adote o mesmo como teste, afim de identificar os portadores do transtorno, e submetê-los a realização de avaliações interdisciplinares técnicas antes da concessão de benefícios na fase de execução penal. Evitando ou reduzindo consequentemente, a reinserção precoce destes indivíduos ao meio social e a reincidência criminal.

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MEDIAÇÃO NO NOVO CPC: A efetividade da mediação diante de sua obrigatoriedade nas ações de família segundo o novo CPC MEDIATION IN THE NEW CPC: The effectiveness of mediation due to its obligation in family actions according to the new CPC Emily Matias Assumpção1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo ampliar a discussão sobre a mediação enquanto forma de solução de conflitos obrigatória nas ações de família e discorrer acerca de sua efetividade em nosso atual ordenamento jurídico. Com o advento do Novo Código de Processo Civil (Lei no 13.105/2015), a mediação foi introduzida e recebeu maior destaque, passando a ser aplicada de forma mais abrangente, sendo mencionada em diversos artigos, e de forma inovadora, passa a exercer um papel importante nos litígios familiares. Para tanto, desenvolvemos o estudo a partir de sua definição, finalidade e forma de atuação. Desse modo, iremos analisar sua efetividade e se cumpriu com o objetivo buscado pelo legislador ao inaugurar o instituto no NCPC. Palavras-chave: Mediação. Família. Código de Processo Civil. Autocomposição, Mediador.

Abstract: This article aims to broaden the discussion on mediation as a form of compulsory dispute resolution in family activities and discuss about their effectiveness in our current legal system. With the advent of the new Civil Procedure Code (Law 13,105/2015), mediation was introduced and received greater importance, being more broadly applied, mentioned in several articles, and innovatively, shall exert an important role in family disputes. Therefore we developed the study from its definition, purpose and mode of operation. Thus, we will examine its effectiveness and achievement with the objective pursued by the legislature to launch the institute in NCPC. Keywords: Mediation. Family. New Civil Procedure Code. Auto Composition. Mediator.

SUMÁRIO 1 Escorço histórico processual de como mediar conflitos. 2 Ponderações acerca da mediação como forma alternativa de solução de conflitos. 3 O que é mediação, para que se presta. 4 A mediação no direito comparado. 5 Análise de dados, efetividade da mediação, conclusão.

1 Graduanda do curso de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

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1 ESCORÇO HISTÓRICO PROCESSUAL DE COMO MEDIAR CONFLITOS A proposta de trabalho deste artigo tem como intuito ampliar a discussão sobre a mediação enquanto forma de solução de conflitos obrigatória nas ações de família. Com o advento do Novo Código de Processo Civil - CPC (Lei no 13.105/2015)2 em nosso sistema jurídico brasileiro, a mediação foi introduzida e recebeu maior destaque, passando a ser aplicada com mais frequência, sendo mencionada em diversos artigos, e de forma inovadora, passa a exercer um papel importante nas ações de família. A mediação é conhecida como uma forma de resolução de conflitos, em que o mediador, uma terceira pessoa, facilita o diálogo entre as partes e cria um ambiente consensual e favorável ao entendimento dos mediados, de forma neutra e imparcial, cujo objetivo principal se baseia no acordo de forma autônoma entre as partes (Conselho Nacional de Justiça, 2016). Vale ressaltar, que o mediador, utilizando de seus conhecimentos desenvolvidos, conduz as partes de forma que encontrem uma solução ideal para o conflito. O Novo Código de Processo Civil, em sua redação dispõe sobre o capitulo “Das Ações de Famílias” nos artigos 693 a 699, e especificamente no art. 694 estabelece que “nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.” (Lei 13.105/2015)3. Interpretando referido artigo, tem-se que as ações de família deverão passar pela mediação, antes mesmo de qualquer audiência, onde o objetivo principal é o acordo entre as partes, solucionando assim o conflito, e não havendo a necessidade de o processo seguir pelas vias judiciais. Diante dessa nova imposição dada pelo legislador, iremos analisar a efetividade da mediação enquanto forma de solução de conflitos nas ações de família e através de estudo de campo verificar se tal medida irá de fato “desafogar” o poder judiciário. O cerne da questão busca concluir se a mediação será efetiva nas ações de família e analisar se o poder judiciário está preparado para receber tal inovação. Um dos argumentos mais utilizados por juristas e doutrinadores como, por exemplo, Dierle Nunes (2015), é que a mediação visa desafogar o judiciário. Como bem ponderou a autora Fernanda Tartuce em seu artigo “Mediação no novo CPC: questionamentos reflexivos” (2015), é importante que o mediador seja preparado técnica e psicologicamente para que se chegue em um consenso do conflito, preparo este que não existe em nosso sistema jurídico. A advogada Fernanda Mayumi Kobayashi (2015), acredita ser temerosa a nossa situação atual, uma vez que resta dúvida se estamos preparados para receber a mediação enquanto forma de solução de conflitos, bem como se os Tribunais têm suporte financeiro e físico adequados para esse novo instituto. Cumpre ressaltar que para as demandas familiares, o mediador, terceiro estranho ao processo, necessita de preparo psicológico e jurídico antecedente, para conduzir as partes a chegarem em um consenso de uma forma menos gravosa. Por outro lado, é sabida a deficiência de pessoal do poder judiciário notadamente com a especialização e conhecimento na área de psicologia. Diante do que foi exposto, revela-se inicialmente que a finalidade buscada pelo novo Código de Processo Civil, no art. 694, qual seja, a efetividade da mediação, encontra óbice na estrutura do poder judiciário, colocando-se

em dúvida o resultado pretendido pelo legislador. Neste projeto de pesquisa iremos destrinchar o conceito e funções da mediação, bem como sua diferenciação das demais formas de soluções de conflitos, outrossim, discutir sobre sua eficácia diante da obrigatoriedade da mediação nas ações de família, como disposto no novo Código de Processo Civil. 2 PONDERAÇÕES ACERCA DA MEDIAÇÃO COMO FORMA ALTERNATIVA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS Quando se fala acerca das formas alternativas de solução de conflitos, é necessário trazer à baila um breve histórico sobre as origens e história do direito processual civil. Analisando a partir das sociedades primitivas, as antigas eras, onde ainda não existia o Estado e nem mesmo exercia seu papel intervencionista, a resolução de conflitos não era vista como hoje e não tinha o papel de terceiros, a justiça era feita com as próprias mãos, onde a força definia qual parte seria a melhor, uma vontade prevalecia sobre a outra, a chamada autotutela, que hoje, encontramos em nosso sistema jurídico brasileiro, contudo, adotada de outra forma. Com o passar o tempo, diante das mudanças na sociedade, chegou-se à conclusão de que tal forma de solução de conflitos não se mostrava mais adequada, sendo necessário uma regulamentação, em que os conflitos possam ser submetidos a julgamento de autoridade pública, estabelecendo e adequando a atividade da administração judicial e dando surgimento as normas jurídicas processuais. Observa-se que, nesse primeiro momento, as formas de solução dos litígios eram voltadas para as sanções penais e os litígios civis, somente com o passar do tempo a jurisdição, passou a ter um maior alcance, em diferentes matérias. Noutro giro, a partir da evolução greco-romana, o direito começa a se desvincular de suas raízes religiosas e supersticiosas advinda da Idade Média e passa a ganhar uma forma mais técnica, científica e estudada, onde a matéria probatória de documentos, testemunhas e a oralidade tinha um papel importante para a jurisdição, nos dizeres de Theodoro Junior (2015), o mais importante nesse momento do direito, era o respeito a livre apreciação da prova pelo julgador, que exercia uma crítica lógica e racional, sem se ater a valoração legais prévias em torno de determinadas espécies de prova. Seguindo essa linha histórica tem-se o direito romano, que a aproveita as raízes gregas, mas enfatiza a figura da soberania do Estado é era tido como um instrumento que trazia a certeza e a paz, onde as decisões e sentenças tinham valor para as partes da relação jurídica. O direito romano e a evolução do direito processual podem ser divididos em 3 partes, quais sejam, o período primitivo (desde a fundação de Roma até o ano 149 a.C), o período formulário e a fase da cognitio extraordinária (entre os anos 200 e 565 d.C), todas essas fases serviram de impulso para iniciar a fase do processo comum, que se deu início após a queda do Império Romano, onde o clero e a igreja passaram a ter influência no direito e começam a adotar a chamada “justiça de Deus”, onde a divindade era parte do julgamento e o objetivo era a busca pela verdade formal, baseadas na crença e princípios da época. Com o surgimento das universidades, criaram-se as escolas de interpretação que se expandiram por toda a Europa dando um conceito mais técnico ao direito e servindo de inspiração para o direito moderno.

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm 3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

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Chegando ao cerne da questão, passamos para o processo civil moderno, que apenas no século XX passa a ser aplicada de uma nova sistemática. O processo civil passou a centralizar o poder nas mãos do juiz, visando maior celeridade para os atos processuais, que ainda vigora em nosso atual ordenamento jurídico. A evolução do processo civil desde então, passa por momentos diferentes em que aos poucos o juiz começa a exercer um papel efetivo no processo, visando o interesse público e a pacificação dos conflitos. Importante destacar que no século XXI com o advento do Estado Democrático de Direito e a consagração dos direitos fundamentais previstos na Constituição da Republica de 1988, o direito processual se une com o direito material, onde princípios como contraditório, ampla defesa e devido processo legal passam a ser introduzidos, de forma que tanto o juiz quanto as partes participam da formação do ato processual visando a solução dos conflitos. Em 11.01.1973, o Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº 5.896/73) entra em vigor, se inspirando no direito europeu e definindo o processo civil em três capítulos: “processo de conhecimento”, “processo de execução” e “processo cautelar”, porém, com o anseio de se melhorar a economia processual e a prestação jurisdicional houve a adaptação e reforma para o nosso atual Código. O novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) entrou em vigor dia 18 de março de 2016 e trouxe consigo inúmeras alterações, que não haviam sido expressas no CPC/73 e, também inovando em outros aspectos, como é caso do tema deste artigo, tendo a mediação recebido uma atenção especial e sendo aplicada de forma mais constante no atual Código. Nota-se que o CPC/15, visa a mediação e conciliação como formas de solução de conflitos em diversos artigos, incentivando a prática e direcionando como acontecerá em cada caso. Nesse passo, a Lei da Mediação (Lei nº 13.140/15), foi publicada com o intuito de consagrar os princípios norteadores do instituto, incentivar a prática da mediação judicial, destacar a imparcialidade do mediador e buscar a todo momento o consenso e o acordo entre as partes. No tocante à mediação, o atual Código de Processo Civil, na Seção V, discorre com total ênfase nos auxiliares da justiça: Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. (BRASIL, Lei 13.105/15)

o respeito com aquilo que nos difere; a retomada de confiança em pessoas e situações que nos são sensíveis. É, acima de tudo, a consciência da parcela de responsabilidade que todos nós temos pelos conflitos que surgem em nossas vidas. E enquanto essa nova forma de agir e de pensar não for absorvida pela sociedade, não há como exigir que o novo Código tome conta dessa mudança (KOBAYASHI, 2015, p. 3). Analisando a partir desse ponto, tem-se que a mediação é mais peculiar do que se imagina e merece um preparo e estudo antecedente para que seja aplicada de forma eficaz em nosso sistema jurídico. Como bem ponderou Kobayashi (2015), se a mediação ao ser aplicada com a vigência do atual Código de Processo Civil, não for constantemente aprimorada, não atenderá o anseio esperado pelo legislador e acarretará um enfraquecimento do instituto. Ademais, para que haja sucesso, é necessário um preparo tanto da sociedade ao receber a mediação, quanto do poder judiciário em sua aplicação. Logo, não resta dúvidas do tamanho do desafio que o novo CPC propõe. O atual Código de Processo Civil e todas suas inovações visam uma agilidade no andamento processual do sistema jurídico brasileiro, como toda mudança requer um tempo para adequação, cabe aos magistrados, advogados e juristas se atualizarem para que consigamos cumprir com a proposta do legislador, bem como proporcionar meio mais célere e eficaz em relação ao processo. Ainda em seu artigo, Kobayashi traz à baila um raciocínio já explanado no decorrer deste artigo: Como se percebe, o novo CPC traz um desafio muito maior do que a leitura de seus dispositivos pode indicar. É preciso repensar o quão comprometida está a sociedade com os propósitos da mediação e com as dificuldades que a sua implementação pode exigir. (KOBAYASHI, 2015, p.3) Logo, percebe-se resta duvidosa a efetividade da mediação como forma de solução de conflitos nas ações de família, uma vez que é notório o despreparo tanto do poder judiciário ao implementar tal medida, quanto da sociedade em absorver e saber lidar com o instituto. 3 O QUE É MEDIAÇÃO, PARA QUE SE PRESTA

Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação. (BRASIL, Lei 13.105/15)

Mediação, do termo em latim mediare, que significa “mediar, dividir ao meio ou intervir, se colocar no meio. Estas expressões sugerem a acepção moderna do termo mediação que é o processo pacífico e não adversarial de ajuste de conflitos” (SERPA, 1997, p. 1450). Quando pensamos na mediação como forma de solução dos conflitos, é necessário entender como este instituto funciona e quais são as suas finalidades. Sobre o tema, Douglerson Santos e Leandro Goulart, definem a mediação da seguinte forma:

Percebe-se que um dos principais objetivos do legislador, com a introdução do novo Código de Processo Civil é buscar a adoção de uma solução integrada de litígios, como resultado da garantia do livre acesso à justiça, previsto no art. 5º, XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil. Nessa esteira, a jurista e membro da Comissão de Mediação da OAB/SP, Fernanda Mayumi Kobayashi, defende o seguinte argumento:

A mediação trata-se de um meio alternativo de resolução de conflitos, em que um terceiro imparcial, mediador, através de um método pacífico, confidencial e voluntário, ajudará as partes envolvidas a identificar as suas divergências, de modo que as próprias partes consigam desenvolver possíveis soluções e questões pendentes sobre os problemas, exposto do ponto de vista de cada uma das mesmas (SOUZA. GOULART, 2013).

A mediação é um filtro a ser aplicado nas relações humanas; uma mentalidade a ser compreendida. É

Na mediação, uma terceira pessoa, não interessada no processo, neutra e imparcial, de forma voluntária facilita o diálogo e acordo

A mediação ganhou maior destaque, no art. 694 do CPC, q ue prevê:

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Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. § 1o A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. § 2o O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem. § 3o O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos (grifo nosso). (BRASIL, Lei 13.105/15)

entre as partes, conduzindo para que o resultado seja a solução pelas próprias partes. O objetivo central é a autocomposição, o acordo entre as partes com a intervenção de um terceiro facilitador. Nos dizeres de Didier (2016, p. 273), “o mediador/conciliador exerce um papel de catalisador da solução negocial do conflito”, ou seja, na mediação, quem toma a decisão não é o mediador, e sim as partes que através da conversa chegam a um acordo. Conforme consignado por Maria de Nazareth de Serpa, em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da UFMG: A mediação é um processo que tem por objetivo a satisfação dos interesses de uma pessoa, quando estes interesses, de alguma maneira, se apresentam em desacordo com os interesses do outro. O importante papel da mediação é identificar estes interesses na sua gênese e sem qualquer comparação com valores pré-estabelecidos, como, por exemplo, os valores impostos pela lei. Na mediação, o desenvolvimento da negociação de interesse é assistido por uma terceira pessoa, encarregada de facilitar todos os passos do processo. Como estão em pauta todos os fatos, que determinam o comportamento humano, cabe a esta terceira pessoa a consideração e administração destes fatores, de forma a conduzir as pessoas em disputa, a uma resolução que atenda, realmente, às necessidades de ambos os litigantes (SERPA, 1997, p. 20-21). Desse modo, a mediação visa o consenso, respeitando os sentimentos e vontades das partes e favorecendo o diálogo. A Lei nº 13.140/2015, já mencionada anteriormente, consagrou a mediação e instituiu princípios referentes ao instituto, que com o advento do CPC/15, passa a ser introduzido e praticado com obrigatoriedade em determinados casos. Analisando a mediação, a partir do nosso atual sistema jurídico, percebe-se que o objetivo do legislador é “desafogar o judiciário”, onde todos os processos irão se iniciar com a realização de audiências de mediação e conciliação com o objetivo de acordo e solução dos conflitos. Retornando ao norte deste artigo, o objetivo da mediação nas ações de família, segundo o CPC/15 é viabilizar a solução consensual, devendo o juiz, se dispor de professionais de diferentes áreas de conhecimento para a mediação e conciliação, podendo, as sessões, inclusive, se dividir em quantas forem necessárias, até que se chegue no acordo. Obedecendo todos os requisitos elencados no capítulo X, a partir do art. 694 do CPC. 3.1 Diferenças entre Mediação e Conciliação As formas de soluções de conflitos tem se tornado um importante instrumento para a sociedade, o NCPC, ratifica e incentiva a todo instante essa nova estratégia, a fim de estimular a autocomposição de acordos no ordenamento jurídico. Insta destacar que os institutos da conciliação e mediação, em que pese serem citados em vários momentos, juntos, são dotados de características e especificidades distintas. Desse modo, vale ressaltar as diferenças e semelhanças entre a mediação e conciliação, para aclarar os objetivos de cada instituto. Embora ambas sejam formas de soluções de conflitos onde uma terceira pessoa, não interessada no processo, intervém com o objetivo de auxiliar e conduzir de forma que as partes chegam à um consenso, o NCPC, consagra os institutos e diferencia da seguinte forma:

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Analisando a partir dessa definição, temos que na conciliação, o conciliador tem um papel mais ativo, de liderança, podendo até mesmo sugerir uma solução para a lide, devendo atuar preferencialmente nos casos em que não haja vínculo entre as partes. Para melhor compreensão da abrangência do termo conciliação, Petrônio Calmon, nos ensina: A conciliação pode ser conceituada como a atividade desenvolvida para incentivar, facilitar e auxiliar a essas mesmas partes a chegarem num acordo, adotando, porém, metodologia que permite a apresentação de proposição por parte do conciliador, preferindo-se, ainda, utilizar este vocábulo exclusivamente quando esta atividade é praticada diretamente pelo juiz ou por pessoa que faça parte da estrutura judiciária, especificamente destinada a este fim. (CALMON, 2007, p.133) A conciliação é direta e objetiva, visa o acordo, na mediação, o acordo é a consequência de uma discussão ampla, onde se estabelece o diálogo e a compreensão entre as partes impulsionada pelo mediador. Ambos os institutos podem ocorrer de forma judicial ou extrajudicial e tanto o conciliador quanto o mediador são chamados de auxiliares da justiça. É importante frisar que, o CPC/15, elucida que a conciliação e a mediação, podem ser realizadas fora do Tribunal, em ambientes públicos e privados, como por exemplo, nas Faculdades de Direito, escolas públicas, associação de moradores e até mesmo na Ordem dos Advogados do Brasil. Na mediação, de acordo com o § 3º do artigo 165 NCPC, ocorre o oposto, o mediado, terceiro não interessado no processo, deverá atuar preferencialmente nos casos em houver vínculo entre as partes, contudo, ele apenas auxilia e conduz as partes, de modo que por si chegam a um consenso, solucionado o conflito, seu papel é facilitar o diálogo entre as partes. A Lei 13.140/2015 elucida, de forma detalhada os objetivos e características da mediação, mais precisamente em seu artigo 11, descreve que:

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Art. 11. Poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos

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pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça. (BRASIL, lei 13.140/15) O CPC/15, também discorre sobre o assunto, apontando que os mediadores e conciliadores podem ser servidores públicos ou voluntários mediante prévio cadastro. Ademais, consoante o art. 166 do CPC/15, nos dois institutos temos de forma marcante o uso dos princípios da imparcialidade, confidencialidade, oralidade, informalidade e da decisão informada, usados para facilitar de direcionar a solução dos conflitos. Nota-se que o Código de Processo Civil, na Seção V, Dos Conciliares e Mediadores Judiciais, explicita de forma detalhada os dois institutos e incentiva a sua prática. É indubitável que apesar de pontos semelhantes no tocante à aplicação, a mediação e conciliação possui diferenças marcantes e peculiares, fazendo com que os institutos tenham objetivos e a forma de se conduzir o processo diferentes.

do tempo se aperfeiçoou a ponto de em 1990 já contarem com mais de 300 centros de solução de conflitos, alcançando a meta de pelo menos um centro por ano em cada estado do país. Fato interessante é a chamada “semana do acordo”, criada para solucionar os conflitos de diversas áreas com o apoio do estado. Em se tratando da América do Sul, a Argentina, desde 1995 vem discutindo e se aprimorando sobre as formas de solução de conflitos, e com a publicação da Lei nº 24.573 de 27/10/1995 a mediação cria forma e passa a ser trabalhada de forma mais ativa. Em 1996, referida lei foi editada e regulamentada pelos Decretos nº 1021 e 477, neste momento, a mediação é vista como procedimento e começa a ter maior aplicabilidade, com o mesmo objetivo inicial do NCPC, diminuir o contencioso do judiciário e acelerar a resolução dos conflitos. No que tange à mediação no mundo, MIRANDA, em seu artigo Aspectos Relevantes do Instituto da mediação no mundo e no Brasil, entende a mediação da seguinte forma:

4 A MEDIAÇÃO NO DIREITO COMPARADO Fazendo um contraponto da mediação com outros países, percebe-se que em países como Alemanha, França, Portugal e outros pertencentes à União Europeia, já possuem legislação que regulamentam a mediação e conciliação como forma de solução de conflitos. Ao longo dos anos e acompanhando a sociedade, a mediação vem crescendo, diante disso, a União Europeia publicou a Recomendação n. R(98)1, do Comitê dos Ministros dos Estados Membros do Conselho da Europa, que visa organizar e regulamentar o instituto da mediação familiar. Em Portugal, a Lei nº 133/99, já traz a regulamentação da mediação e de como tal instituto deverá se nortear no sistema jurídico português. A França introduz a mediação através da Lei nº 95/125, de 8 de fevereiro de 1995, é importante ressaltar que no país, existem diversos centros de mediação e em sua capital, Paris, foi criado uma carta e um código de mediação. A mediação é usualmente praticada na Espanha, que absorve as origens norte americanas e cria os institutos da mediação, conciliação e arbitragem, pelo Real Decreto-Lei n.5, de 26 de janeiro de 1979. Contudo, a mediação passou a ter efetividade somente em 1991, onde foi fundada a Associação Espanhola de Estudos da Família, na Catalunia. Insurge frisar, que a mediação nas demandas familiares teve início em 1988, em São Sebastião e recebeu o nome de “Servicio de Mediación a la familia en conflicto”, onde ali já começaram a se aperfeiçoar para que no futuro a mediação se expandisse por toda a Espanha e tivesse seu principal objetivo alcançado, qual seja, a solução de conflitos através do acordo entre as partes. A Bélgica, através da Lei de 21 de fevereiro de 2005, incorpora não só a mediação, mas as demais formas de soluções de conflitos, porém, que já havia sido desenvolvida a algum tempo no país. Os Estados Unidos serviu como fonte de inspiração para os países europeus, com início da trajetória logo em 1963, criando da “Association of Family ad Conciliation Courts” – AFCC, e ao decorrer

Hoje, nós temos então um sistema, que corresponde desde a negociação, o processo mais informal, até o processo mais formal, o julgamento por tribunais. Mas todos fazem parte de uma única e ampla gama de procedimentos utilizados para resolver questões e contribuir para a pacificação social, todos passíveis de serem utilizadas de acordo com os interesses dos envolvidos. (MIRANDA, 2012, p. 14) Percebe-se que ao discorrermos sobre todos países acima citamos, mostramos o ano de criação e como se aprimoraram no decorrer do tempo. Nos dizeres da jurista Dall’Orto: Diante do estudo das características peculiares dos conflitos existentes no âmbito das famílias, é possível perceber o quão complexos são os mesmos, e como a atividade do Poder Judiciário, da forma como está regulamentada, não tem demonstrado eficiência no trato desses conflitos. (DALL’ORTO, 2014)4 Nota-se que a mediação não se tornou um instituto dotado de efetividade no momento em que foi criada em nenhum dos países, e sofreu diversas alterações para que fosse adaptada e moldada de acordo com o que a sociedade demandava. A mediação acompanhou o crescimento do direito ao longo do tempo. O que se pretende aclarar, é que para que o instituto cresça, são necessárias diversas modificações, um espaço de tempo adequado e prática para o sucesso esperado. Portanto, resta claro que para que se alcance o objetivo, o sistema jurídico brasileiro, por certo irá passar, por modificações e percalços necessários para se chegar numa efetividade plena. 5 ANÁLISE DE DADOS, EFETIVIDADE DA MEDIAÇÃO, CONCLUSÃO Com o intuito de aclarar a questão da efetividade da mediação, foi desenvolvido um estudo de campo com base nas informações disponibilizadas pelo setor de Estatística do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais –TJMG.

4 https://jus.com.br/artigos/32321/a-pratica-da-mediacao-familiar-em-portugal-e-alguns-outros-paises-europeus

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Para a técnica de estudo de campo, utilizaremos o método quantitativo, nas palavras de Richardson (1989), este método caracteriza-se pelo emprego da quantificação, tanto nas modalidades de coleta de informações, quanto no tratamento dessas através de técnicas estatísticas, desde as mais simples até as mais complexas. O Método quantitativo visa garantir a precisão da pesquisa com o objetivo de chegar a um resultado concreto. Desse modo, com base nas informações colhidas de acordo com o método supracitado, chegamos a seguinte conclusão: Logo, percebe-se que a medição não alavancou até o presente momento o sucesso tão esperado pelo NCPC. Cremos que o curto prazo, a desinformação social, dentre outros fatores, a priori, obstam o crescimento do instituto. Ressalta-se, que se trata de instituto novo e precisa aos poucos, com o devido preparo ser introduzido para chegar ao nível de acordos desejado. É de suma importância elucidar, que o objetivo deste artigo não é criticar a mediação, ao revés, o intuito neste momento se concentra em expor as características e especificidades do instituto, bem como analisar a questão de sua efetividade enquanto forma de solução de conflitos e se o poder judiciário está preparado para receber tal instituto. A tese de que os institutos da mediação e conciliação irão “desafogar o judiciário”, não merece prosperar, tendo em vista que o foco não deve ser a aceleração na resolução dos conflitos e nem mesmo a diminuição do contencioso de processos existem atualmente no poder judiciário, e sim o incentivo da parte em chegar ao acordo e solucionar o litigio, através do consenso e diálogo. Evitando o abuso de poder, ou acordos que não beneficiem ambas as partes. Nota-se que, atualmente, com a publicação do NCPC, consagrando os institutos, não houve preparo antecedente ou incentivo para a prática da autocomposição de acordos.

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Cumpre ressaltar que para as demandas familiares, o mediador, terceiro estranho ao processo, necessita de preparo psicológico e jurídico antecedente, para conduzir as partes a chegarem a um consenso de uma forma menos gravosa. Diante do que foi exposto, revela-se que a finalidade buscada pelo novo Código de Processo Civil, no art. 694, qual seja, a efetividade da mediação, encontra óbice na estrutura do poder judiciário, colocando-se em dúvida o resultado pretendido pelo legislador. Ademais, a falta de informação abrange as partes que nem sempre tem ciência e noção da finalidade do instituto, o que pode acarretar em determinados casos, abuso de poder ou um acordo que traga benefício somente para uma parte. Não se pode olvidar que a mediação é sim um instituto interessante, com objetivos que trazem uma nova forma para o direito processual civil, contudo, não se encaixa em nosso atual sistema jurídico, tão pouco nas ações de família que são singulares e carregadas de sentimento. Outrossim, no que tange à sua efetividade, numa perspectiva de longo prazo, considerando uma preparação do poder judiciário e da sociedade, não é distante dizer que a mediação não possa ter sucesso como forma de solução de conflitos. Portanto, conclui-se que a medição, em que pese seja um instituto com riqueza de características, não se mostra adequada, neste momento processual, tendo em vista todos os argumentos discorridos no presente artigo, em destaque o despreparo da sociedade, bem como do poder judiciário, que somente regulamentou o instituto como forma de solução de conflito. Para que se alcance o objetivo de “desafogar o poder judiciário”, é necessário preparo antecedente não só do sistema jurídico brasileiro, mas também da população, que nesse instituto exerce um papel fundamental, por decidirem seus próprios conflitos.

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REFERÊNCIAS BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. BRASIL. Mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 133. CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Conciliação e Mediação. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-mediacao> Acesso: 01 mar 2016. COSTA, Helena Dias Leão. Distinções entre os meios autocompositivos: mediação, conciliação e negociação. Conceito de Arbitragem. Portal Conteúdo Jurídico. Publicado em: 27 jun. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,distincoes-entre-osmeios-autocompositivos-mediacao-conciliacao-e-negociacao-conceito-de-arbitragem,48796.html> Acesso: 28 set. 2016

STRECK, Lenio Luiz; CUNHA, Leonardo Carneiro da; NUNES, Dierle. Comentários ao Código de Processo Civil, Saraiva, 2016. TAVARES, Fernando Horta. Mediação e Conciliação/Fernando Horta Tavares – Belo Horizonte : Mandamentos, 2002. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Direito Processual Civil, processo de conhecimento e processo comum, vol. 1. 56 ed. rev., atual e ampl – Rio de Janeiro: Forense, 2015. THEODORO JUNIOR, Humberto. Novo Código de Processo Civil Anotado. 20ª ed. Forense, 2016. TRIBUNAL DE ALÇADA ARBITRAL BRASILEIRO. Saiba a diferença entre mediação, conciliação e arbitragem. Defensoria Pública de Mato Grosso. Disponível em: <http://dp-mt.jusbrasil.com.br/noticias/3116206/saiba-a-diferenca-entre-mediacao-conciliacao-e-arbitragem> Acesso: 29 set. 2016 Banca Examinadora: Tatiana Maria Oliveira Prates Motta (Orientadora) Luciana Dadalto (Examinadora 1) Carolina Cândido (Examinadora 2)

DALL’ORTO, Hosana Leandro de Souza. A prática da mediação familiar em Portugal e alguns outros países europeus. Publicado em: 09/2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32321/a-pratica-da-mediacao-familiar-em-portugal-e-alguns-outros-paises-europeus> Acesso: 31 out. 2016 DIDIER, Jr, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, 18 ed. Salvador, vol. 1, ed. Jus Podivm, 2016. GOULAR, Leandro Henrique Simões. SANTOS, Douglerson. A Obrigatoriedade da Mediação Incidental à Luz da Reforma do Código de Processo Civil. Revista Eletrônica do Direito. Publicado em março/2013. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=803> Acesso: 29 out 2016 MIRANDA. Maria Bernadete. Aspectos Relevantes do Instituto da Mediação no Mundo e no Brasil. Revista Virtual Direito Brasil – Volume 6 – nº 2 – 2012, p.14. Disponível em: <http://www.direitobrasil.adv.br/ arquivospdf/revista/revistav62/artigos/be2.pdf> Acesso: 01 nov. 2016 MORAIS, Felipe. A entrada em vigor da lei brasileira de mediação. Portal Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI231982,61044-A+entrada+em+vigor+da+lei+brasileira+de+mediacao> Acesso: 28 Set. 2016 NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2011. Disponível em: <http://www.newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_ Newton_Paiva_2011.pdf>. Acesso em: 24 de Maio de 2016. SERPA, Maria de Nazareth. Mediação, processo judicioso de resolução de conflitos. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 1997, p. 20-21.

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ESTUPRO DE VULNERÁVEL E ERRO DE TIPO VULNERABLE OF RAPE AND ERROR TYPE Fabiane Aparecida Floripes1

RESUMO: A lei 12.015 de 2009 reformou o Código Penal no Capítulo dos Crimes Sexuais, excluindo dele a presunção de violência nestes delitos, disposta no artigo 224 (revogado), e instituindo um novo tipo penal, qual seja, o estupro de vulnerável (artigo 217-A), visando a proteção das vítimas menores de 14 anos e aqueles a que lei assim equipara. Neste contexto, tentou-se encerrar qualquer discussão sobre o histórico sexual, o consentimento ou a existência de relacionamento com a vítima, valendo-se de um único critério objetivo: a idade. Essas modificações trouxeram muitas polêmicas no âmbito jurisprudencial e doutrinário, contudo, permaneceu o entendimento que manter relação sexual com menor de 14 anos configuraria presunção absoluta de violência. Corroborando com as teses contrárias, o presente trabalho visa demonstrar que no contexto atual, não é prudente afirmar, sem dar ao investigado a oportunidade de fazer prova em contrário, que todo adolescente menor de 14 anos é vulnerável, incapaz de discernir sobre seus atos sexuais. Ademais, a evolução física apresentada pelas (os) garotas (os) desta faixa etária, pode induzir o acusado ao erro de tipo – excludente de tipicidade, quando não for possível o crime na modalidade culposa. PALAVRAS-CHAVE: Erro de Tipo. Estupro de Vulnerável. Fato Típico.

ABSTRACT: Law 12,015 of 2009 amended the Criminal Code in the sexual crimes chapter, excluding from it the violence presumption in these crimes, contained in Article 224 (repealed), and instituting a new criminal offense, namely the vulnerable rape (Article 217- a), aiming at the protection of child victims of 14 years and those that law so assimilates. In this context, tried to shut down any discussion about sexual history, consent or the existence of relationship with the victim, taking advantage of a single objective criterion: age. These changes have brought many controversies in jurisprudential and doctrinal context, however, remained the understanding that sexual intercourse with under 14 years would set absolute presumption of violence. Corroborating with the opposing views, this paper aims to demonstrate that in the current context, it ‘s not wise to assert, without giving the investigated the opportunity to prove otherwise, that all lower 14 year old are vulnerable, unable to discern their sexual. In addition, the physical evolution presented by the girls and boys in this age group, can induce the accused to the error of type - exclusion of typicality, when the crime of culpable mode is not possible. KEYWORDS: Typeof error. Rape Vulnerable. Typical fact.

SUMÁRIO 1 Introdução. 2 Contexto histórico dos crimes sexuais na legislação brasileira. 2.1 Estupro. 3 Estupro de Vulnerável. 3.1 Presunção de violência e Vulnerabilidade. 4 Adequação típica e erro de tipo. 4.1 Vulnerabilidade e erro de tipo. 5 Crítica aos critérios de condenação no Estupro de Vulnerável. 5.1 Do adolescente vítima de estupro. 6 Considerações Finais. Referências.

1 Graduanda do curso de Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO Diante do atual contexto de violência sexual sofrida por crianças e adolescentes em nosso país, frequentemente noticiada pelas mídias, não restam dúvidas de que o estupro é um dos delitos que mais causa repulsa e intolerância em toda a sociedade. Em vista dessa escalada de violência, resta inquestionável que os direitos garantidos constitucionalmente às vítimas devem ser veementes assegurados; contudo, sem que se esqueça, que o Direito sempre é criado, modificado e, ou extinto conforme o desenvolvimento cultural e os preceitos morais daquela sociedade a que se destina. Destarte, o desvelo com a inocência de uma criança, muitas vezes, é confrontado com a precoce maturidade da mesma, seja esta adquirida pelo convívio familiar, ou pelo fácil acesso a informações expostas em meios de comunicação temerários para determinadas faixas etárias, mas sempre adquiridas em seu meio de convivência. O presente estudo se justifica pela necessidade de se interpretar o Direito, enquanto um conjunto de normas jurídicas reguladoras da vida em sociedade e, portanto, por ela regidas. Há de se verificar um retrocesso no Direito Penal ao considerar a inexistência do crime de estupro de vulnerável na modalidade culposa, ou a impossibilidade de sua imputação a alguém que tenha agido frente à circunstância configurada em erro de tipo. Nesse sentido temse como relevante para este trabalho o posicionamento doutrinário que defende a interpretação de forma isolada dos casos de estupro de vulnerável quando o sujeito passivo for o menor de 14 (quatorze) anos – delito tipificado no artigo 213-A do Código Penal. Assim, por um lado, é assentada a tese pela jurisprudência majoritária e alguns doutrinadores que interpretam o tipo de “estupro de vulnerável” levando em consideração apenas o critério etário da vítima, como sugere o legislador. Nessa hipótese, verifica-se a impossibilidade de prova em contrário, o que, s.m.j., configurará, a presunção absoluta de violência nos delitos praticados contra a liberdade sexual do menor de 14 (quatorze) anos. Na esteira desses posicionamentos, seria relevante verificar se a atual orientação jurisprudencial pacificada no Superior Tribunal de Justiça - STJ e no Supremo Tribunal Federal - STF, de que sempre haverá a presunção absoluta de violência quando o agente praticar ato contra a vítima menor de 14 anos, nos delitos de natureza sexual, pode trazer, em casos específicos e diante de uma determinada condição sociocultural, um dano social superior àquele supostamente imputado ao menor que apresenta um comportamento sexual precoce. Por outro lado, a vista de alguns parcos posicionamentos jurisprudenciais isolados e outros eminentes doutrinadores, como Guilherme Nucci (2014), entendem que a lei penal, além de não modificar a realidade do mundo, deve respeitar os princípios da intervenção mínima, da ampla defesa e do contraditório. Isso significa dizer que, mesmo sendo imprescindível a atuação do Estado, em nenhuma hipótese, pode ser negado ao acusado o direito de provar sua inocência. Destarte, trata-se de uma forma comedida de interpretar o delito de natureza sexual, sem que o investigado seja julgado culpado independente da elaboração de sua defesa; mas, que busque analisar os fatos e circunstâncias da ação criminosa, não bastando, tão somente, a vítima ser menor de 14 (quatorze) anos. Tal visão impede, por exemplo, a possibilidade de um julgamento contrário ao direito, pautado em meras imoralidades, sem que se tenha, de qualquer forma, reduzida a proteção da dignidade da criança e do adolescente, resguardada pela Constituição da República de 1988 (CR/88) em seu artigo 227. Reflexões sobre a aplicabilidade do Direito de forma justa e condizente com a realidade sociocultural é desígnio irrefutável de todo operador do Direito. Assim, a tese aqui exposta poderá ser um meio

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de instigar outros entendimentos, propiciando que os julgamentos na seara penal sejam realizados a partir das minúcias do caso concreto e de um estudo psicológico da vítima e do acusado, quando este for essencial à justiça. 2 CONTEXTO HISTÓRICO DOS CRIMES SEXUAIS NA LIGISLAÇÃO BRASILEIRA A violência sexual, em suas variadas formas, sempre existiu na humanidade, sendo, pois, analisada por cada sociedade a partir do contexto sócio cultural da época. Assim, no Brasil, em virtude do clamor coletivo, alguns atos concupiscentes antes aceitos pelo corpo social, a partir do instante em que passaram a ser moralmente reprováveis, tendo em vista que contrariavam o “bom costume”, vieram a se tornar condutas ilegais. No âmbito nacional, em tempos remotos, a referida violência tinha relevância para a sociedade quando a vítima era mulher e virgem, diziam honrosa, vindo posteriormente, ser imprescindível a sua condição de honesta. Como herança do cristianismo, a sexualidade moralmente aceita, a princípio, não podia destinar-se a satisfação da lascívia, como bem aludiram Nelson Hungria e Romão Cortes (1956, p.88) “a hegemonia teológica, fazia, então, com que a lei do Estado assumisse até mesmo a função de cuidar da pureza das almas, como um bem em si mesma”. Era ela considerada, tão somente, como mero ato de reprodução, consumado, necessariamente, após o casal submeter-se ao casamento cristão, que subentendia uma relação monogâmica e indissolúvel. A memória desse período restou positivada de forma evidente nos primeiros códigos criminais brasileiros; ressalte-se que tanto no Código Criminal do Império de 1830, o crime sexual sob o Título II – “Dos crimes contra a segurança individual”, em seu Capítulo II que tratava dos crimes contra a segurança da honra; quanto no Código Penal de 1890, em seu Título VII que cuidava dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor. Dessa forma, a lei resguardava a sociedade e não a vítima, visto que a tipificação do delito considerava a desonra da família. Já o enquadramento do sujeito passivo dependia da qualidade, no primeiro, de ser virgem ou honesta a mulher, enquanto no segundo, a vítima bastaria ser honesta e, no caso das prostitutas, ocorreria diminuição da pena. No mesmo viés, o Código Penal de 1940, consolidou a intervenção estatal no campo sexual ao estabelecer o Título VI que trata “Dos crimes contra os costumes”. Aparentemente, este é o marco jurídico da diferenciação da cópula, enquanto extinto animalesco desinente do ato de reprodução, do sexo, como ato de vontade mútua e direito de liberdade individual sexual. Não obstante, a vítima ainda não ser o objeto tutelado, permanecendo a delimitação dos crimes sexuais por meio da perspectiva social, de forma a proteger a moralidade pública. Diante desse cenário legislativo, é oportuno assinalar o conceito de costume segundo Julio Mirabete e Renato Fabrini (2014, p. 29): “é uma regra de conduta praticada de modo geral, constante e uniforme, com a consciência de sua obrigatoriedade”. Assim, o ilícito penal originava-se da vontade popular em criminalizar determinados comportamentos reiteradamente praticados e tidos como incorretos. Insta salientar que, nesta época, o pudor ponderava o caráter das mulheres atribuindo-lhes valor moral, bem ainda, dignificava o homem, pois lhe garantia boa reputação. Assim, a postura da mulher era que espelhava a efígie familiar, sendo esta responsável pelo enquadramento de sua família nos moldes dos “bons costumes”. Tal fato influenciava significativamente na elaboração das normas. Com efeito, Noronha (2000) entende que a referida lei poderia usar o nome “Crimes contra o pudor”. Com a evolução social e sexual e a valorização da individualida-

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de, cenário em que a mulher passou a desempenhar papéis expressivos na sociedade, não se restringindo somente a procriação dos filhos e aos cuidados com o lar, a figura feminina, alvo de descriminações em razão do sexo (como, por exemplo, a exclusão do mercado de trabalho, a subordinação física e psicológica no âmbito familiar, entre outras), passou a ser protegida pelo Estado com mais tenacidade. Em virtude das mudanças socioculturais posteriores ao Código de 1940, principalmente em relação ao avanço da paridade profissional, econômica e social entre homem e mulher, o Direito Penal não mais cumpria sua função de acompanhar e suprir as carências e ambições sociais. Por certo, foi necessário fazer alterações no diploma penal a fim de equilibrar suas normas com a nova realidade. A reforma penal advinda da Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009, um apelo feito inclusive pelos doutrinadores, modificou o Título VI para “Dos crimes contra a dignidade sexual”, buscando adequar o objeto ora tutelado aos direitos constitucionais, bem como, proteger a liberdade sexual em consonância com a dignidade da pessoa humana. Com essa mudança garantiu-se uma maior segurança jurídica, pois a adequação do fato ao tipo penal não mais dependia exclusivamente dos ditames sociais, passaria o judiciário a fazer uma interpretação mais racional do dispositivo legal. Nesse sentido, as normas penais com natureza consuetudinária passaram a zelar por bens jurídicos mais expressivos (Princípio da alteridade), deixando de proteger a moralidade pública, o que determinou o resguardo da dignidade sexual da pessoa. Essa ampliação e ajuste do objeto se justificam pela função precípua do Direito Penal em promover a ordem social, contudo, respeitando o Estado Democrático de Direito, ou seja, sendo ele a última opção legislativa a intervir em conflitos (Princípio da Intervenção Mínima ou ultima ratio). Em “Crimes contra a dignidade sexual”, Nucci (2014) discorre sobre a incompatibilização dos preceitos morais e éticos regulamentadores da disciplina sexual da década de 40, com a liberdade de ser, agir e pensar, assegurada pela Carta Magna atual. Ademais, argumentou a necessidade de o legislador, no que diz respeito à liberdade sexual, ater-se às condutas que de fato poderão causar danos desastrosos à sociedade, não importando ações inofensivas ainda atreladas a um contexto histórico superado. Atualmente, o ordenamento jurídico pátrio, no que se refere aos crimes sexuais, ampara o ofendido, independente do sexo, inclusive, salvaguardando aqueles que se encontram em situação mais vulnerável, como as crianças e adolescentes menores de 14 (quatorze) anos, os enfermos ou deficientes mentais, com discernimento insuficiente para consentir e praticar o ato, bem como, os que encontram em situações que os impeçam de oferecer resistência. E, em matéria penal, conforme bem explana Regis Prado (2015, p. 137), “o costume só pode dar lugar à criação de norma penal não incriminadora, favorável ao réu, e jamais ser tido como fator de produção de norma penal incriminadora ou desfavorável ao acusado”; não negando, claro, sua expressiva influência na interpretação da lei penal. De certo, entendendo a função do Direito Penal como ultima ratio, seria paradoxal não fazer um reexame periódico da relevância de um bem jurídico tutelado por este instituto, visto que as relações interpessoais estão inseridas em ambientes construídos por costumes e valores morais em constante evolução. Portanto, apesar da parcimônia do legislador, verifica-se um movimento positivo para o estabelecimento de algumas alterações legais, evitando-se o engessamento de conceitos e perspectivas, refletindo, necessariamente, as mudanças socioculturais de um país inseridas na globalização. 2.1 Do estupro O delito de estupro propriamente dito perpassou por vários con-

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ceitos, com tipificações diversas no Direito Penal brasileiro. Na tentativa de se amoldar ao contexto histórico da época, a descrição da conduta criminosa e a qualidade de sujeitos ativo e passivo foram modificadas ao longo dos tempos de acordo com a conveniência social. Assim, verifica-se que o Código Criminal do Império de 1830 definiu o crime de estupro no artigo 222, como o ato de “ter cópula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta”. Do referido tipo penal extrai-se que a conduta compreende coagir a mulher submetendo-a a introdução do órgão sexual masculino em sua genitália, de forma agressiva ou intimidadora. Destarte, só o homem poderia ser o sujeito ativo, em virtude da sua condição genética, e só a mulher honesta – aquela que se comportava decentemente, de acordo com os bons costumes – sujeito passivo. Não bastando o legislador preceituar condições subjetivas e discriminatórias, pautadas em valores machistas, a caracterizar a vítima, fez distinção na aplicação das sanções aos crimes praticados contra a prostituta e a mulher honesta [a julgar pela diminuição da pena de reclusão de 3 (três) a 12 (doze) anos], importando, inclusive, o pagamento de dote de 1(um) mês a 2 (dois) anos, quando esta fosse a ofendida; e, ainda, previu que o casamento entre os envolvidos extinguia a pena (art. 225). Já o Código Penal de 1890, ao alterar a redação do dispositivo que tratava do ilícito penal em comento (artigo 222 do Código Criminal do Império), assim definiu (artigo 269), o crime de estupro: Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não. Por violência entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcóticos. Depreende-se de tal dispositivo legal serem os sujeitos ativo e passivo, os mesmos, no sentido de serem, respectivamente, homem e mulher. Contudo, ampliou-se o polo passivo, abrangendo também as mulheres virgens – antes tratadas em outros dispositivos – ou não, fato que apenas não restringiu a conduta típica à conjunção carnal e aclarou a diferença da prática de defloramento da de estupro. Porém, todo o preconceito e imposição moral do legislador permaneceram. Com a combinação do supramencionado artigo e as disposições dos artigos 268 e 276 do mesmo código, conclui-se que a modificação, que em primeiro momento pareceu consentir a liberdade sexual, nada evoluiu, pois permaneceram as ressalvas de ter de ser honesta a mulher, assim também a diferenciação negativa de aplicação de pena inferior quando a abusada for pública ou prostituta. Além disso, manteve determinado que a sentença condenatória também obrigaria o criminoso a dotar a ofendida. Ainda que com uma tipificação módica, o delito de estupro, agora previsto no artigo 213 do Título VI, Código Penal de 1940 (que em sua redação original tratava dos crimes contra os costumes), passou a considerar o ato de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Desta forma, o legislador tornou a interpretar o ilícito penal como ato de penetração vaginal, mediante violência física ou moral, não abarcado, portanto, pelos demais crimes de cunho sexual. Ademais, ampliou a abrangência do objeto material do delito, não explicitando nenhuma condição à mulher vítima de abuso sexual. Nas palavras de Nelson Hungria e Romão Lacerda (1956, p. 88) “o direito penal presta sua adesão à ética sexual, mas tão-sòmente para, dentre os fatos reprovados por esta, incriminar aquêles que, por sua maior gravidade, afetam a disciplina, utilidade e conveniência

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social”. A interpretação destes autores demonstra que ainda existia interesse em a norma legal proteger a honra sexual e a moral pública, enquanto apenas deveria se tutelar a liberdade e a dignidade sexual. Com a promulgação da Constituição da República de 1988, o Direito Penal pátrio teve de se amoldar aos princípios e garantias constitucionais, tendo como pilar a promoção de um Estado Democrático de Direito e a reverência ao princípio da Dignidade Humana. Nesse sentido, no que diz respeito ao crime de estupro, algumas alterações legislativas foram necessárias e oportunas, como as advindas da lei 8.072/90, que aumentou a pena, passando de 3 (três) a 8 (oito) anos, para 6 (seis) a 10 (dez) anos, além de torná-lo infração inafiançável, logo, crime hediondo. Outras reformas consideráveis decorreram da Lei nº 12.015/2009, na qual podemos verificar outro conceito do delito de estupro, agora disciplinado sob o título VI - “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Enfim, o poder legislativo avança rumo a uma real e eficaz proteção aos bens jurídicos tutelados pelo tipo penal em tela, com enfoque na pessoa humana, abandonando a ideia de padrões morais de comportamento sexualmente admitido pela sociedade. O objeto a ser preservado passa a ser a dignidade sexual. A referida lei ao conferir nova redação ao caput do art. 213 “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, substitui o sujeito passivo, antes limitado à pessoa do sexo feminino, pelo termo “alguém”, vindo a admitir que qualquer pessoa está sujeita à violência sexual, não importando o sexo. Ainda, fundiu o crime de estupro e atentado violento ao pudor, os quais com o advento da Lei 8.072/90 já incorriam na mesma pena, revogando o artigo 214 do Código Penal. Isto significa que estupro não mais abrangia apenas o ato sexual propriamente dito, também se caracterizava por qualquer outro ato de satisfação da libido que não seja consentido e seja praticado violentamente ou sob coação, seja física ou moral. E por fim, a alteração mais relevante para o presente trabalho foi a maior severidade com que se passa a tratar violência sexual contra menores e aqueles que a lei assim equipara. Sua proteção, antes prevista no artigo 224 do Código Penal de 1940, passou a ter um capítulo específico – “Dos crimes sexuais contra vulnerável”. Assim, cominou penas maiores e desconsiderou a existência do consentimento ou não da vítima, contexto histórico que será abordado a posteriori. Colaborando com esse entendimento, Fábio Suardi (2014, p.61) assim disserta sobre a relevância desta alteração do Código Penal, promovida pela lei em comento: (...) pelo fato de trazer à legislação a figura do vulnerável, antes relegado a uma presunção de violência sem corpo próprio no ordenamento, mas também por trazer como bem jurídico a liberdade sexual, extraindo-se dessa afirmação o livre desenvolvimento da sexualidade, que se demonstra de fundamental importância ao estudo acerca da vulnerabilidade. Como o Direito Penal nada mais é que o reflexo das demandas sociais, não existirá soluções perpétuas e imutáveis. Toda modificação será causa de novas preocupações. Por conseguinte, novos desafios despontam nos dias atuais, com diversas lacunas ainda não preenchidas e tantos entendimentos jurisprudências polêmicos, ainda com intuito de proteger a liberdade sexual do indivíduo, mantendo sua dignidade. 3 ESTUPRO DE VULNERÁVEL É compreensível que o Direito Penal deva ser aplicado o mínimo

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possível com vistas à satisfação do princípio da intervenção mínima, executando suas regras em consonância com as garantias fundamentais previstas na CR/88, como forma de limitar o poder punitivo do Estado e respeitar a liberdade individual. Todavia, há uma série de bens jurídicos substanciais desassistidos ou mal amparados pela legislação, que demandam obrigatoriamente a intervenção estatal, a fim de manter a ordem e a paz social. A complexidade reside em encontrar a linha tênue que separa a obrigação positiva da negativa de atuação do estado, ou seja, quais os casos exigem a interferência penal, pois não são resguardados por outro Direito. O conceito de estupro está intimamente ligado à sexualidade, e por sua vez esta provém de vários fatores internos e externos, isto é, o despertar da busca pelo prazer corporal e mesmo psicológico, obtido através do toque ou contato, depende de fatores genéticos e, principalmente, do meio sociocultural em que o indivíduo está inserido. Por estes motivos que este é um assunto jurídico complexo e polêmico, em que generalizar questões tão peculiares pode causar danos irremediáveis à sociedade. É pela busca incessante da liberdade individual que a evolução sexual vem se apoiando; num cenário hostil em que se identifica a conquista crescente na autonomia econômica e na liberdade de expressão defronte ao fenômeno da globalização condicionando o comportamento humano. O sistema capitalista e o progresso tecnológico aliado à necessidade do adolescente em ser inserido socialmente, têm intervindo nas relações humanas com mais e mais intensidade, não só no contexto mundial como no regional. No que tange ao campo sexual, a ideia do descartável e do imediatismo trazidos pelo capitalismo, bem como, as informações irrestritas e manipuláveis postas “na rede” ou em qualquer meio de comunicação, tem corroborado negativamente com a evolução sexual, despertando precocemente a sexualidade humana e estimulando os pedófilos. Ante o exposto, fez-se necessário a penalização dos atos sexuais praticados contra os vulneráveis – assim tratados na legislação penal brasileira pelo critério objetivo da idade, ou pela condição, estado físico ou psicológico afetado, que torna o indivíduo inerme – pelo Texto Maior, quando do seu artigo 227, §4º, prevê: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”; trata-se de norma programática que servira de diretriz ao poder legislativo quando da elaboração da legislação pertinente ao assunto. Com a ratificação da Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), também conhecida como Protocolo de Palermo, pelo Brasil no ano 2000, para o combate ao crime organizado transnacional, conforme explicita Fábio Suardi (2014), tais compromissos internacionais, em virtude do aditivo que tratava do tráfico de pessoas e em especial das crianças, tornou a figura do vulnerável especialmente protegida pelo Direito Penal. 3.1 Presunção de violência e Vulnerabilidade Com o Código Penal de 1940 o legislador demonstrou sua preocupação em proteger a dignidade sexual daquele que se encontra em situação de fragilidade ante a prática de atos lascivos, abordando critérios mais objetivos, como chancela o disposto em seu artigo 224. Rogério Sanches (2009), assim como o judiciário, interpreta o referido dispositivo legal, a partir do disposto nos artigos 213 (crime de estupro) e 214 (delito de atentado violento ao pudor), o que significa que a violência será presumida quando a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso diverso for praticado contra menores de 14 (quatorze) anos, vítima alienada ou débil mental e em demais circunstâncias que a ofendida esteja impossibilitada de oferecer resistência, hipótese inclusive de aumento de pena (art. 9º da Lei 8.072/90). Havia um desentendimento na doutrina e jurisprudência quanto

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à natureza da referida presunção de violência, se essa seria “relativa (júris tantum), que cederia diante da situação apresentada no caso concreto, ou de natureza absoluta (iuriset de iure), não podendo ser questionada” (ROGÉRIO GRECO, 2015, P. 539). Greco (2015) interpreta como uma presunção absoluta de violência, sob a ótica de que a idade era e permanece sendo um critério objetivo, considerando, portanto, que toda pessoa menor de 14 (quatorze) anos é vulnerável com relação ao discernimento sobre seus atos sexuais. Mas, a jurisprudência não mantinha um posicionamento ímpar. Haviam copiosos julgados em que os magistrados avaliavam o caso concreto, importando para eles a experiência sexual e a aquiescência da vítima. Portanto, entendiam que se tratava de uma violência de presunção relativa, conforme jurisprudências que seguem: Crime contra a liberdade sexual (estupro). Menor de 14 anos (presunção de violência relativa). Consentimento válido da menor (relevância). 1. É missão fundamental do Penal tutelar bens jurídicos, todavia a sua intervenção depende de efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem tutelado pela norma. Não há responsabilidade penal por ato de outrem, tampouco por ato inexistente. 2. Reputase relativa a violência presumida disposta no inciso a do art. 224 do Cód. Penal. 3. O principal fundamento da intervenção jurídico-penal no domínio da sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e contra a violência sexual de homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiem em vontade livre e consciente. 4. No caso, o consentimento não-viciado e o livre convencimento da menor de 14 anos para a prática da conjunção carnal com o namorado elidem a tipificação do crime de estupro. 5. Recurso do qual se conheceu pelo dissídio, mas ao qual se negou provimento. (STJ - REsp: 542324 BA 2003/0102136-5, Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Data de Julgamento: 09/12/2005, T6 – Sexta Turma, Data de Publicação: <! -- DTPB: 20080414</br> -->DJe 14/04/2008</br> RT vol. 873 p. 557) APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - MENOR DE 14 ANOS DE IDADE - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA - ALEGAÇÃO DE VIOLÊNCIA PRESUMIDA ARTIGO 224, ALÍNEA ‘A’ DO CÓDIGO PENAL - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA RELATIVA - MENOR COM CAPACIDADE DE AUTODETERMINAÇÃO EM ASSUNTOS DE SEXO - DEPOIMENTO DA MENOR QUE COMPROVA QUE ERA AUTODETERMINÁVEL NA ÉPOCA DOS FATOS - FALTA DE PROVAS EM JUÍZO QUE COMPROVEM OS FATOS E INCRIMINEM O RÉU - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA - RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. “No crime de estupro, a presunção de violência prevista no art. 224, a, do CP é relativa. Assim, pode ser afastada se a vítima, ainda que com 12 anos de idade, não era ingênua ou inexperiente e tinha capacidade de autodeterminação, com clara ciência da importância do ato que praticara.”. (RT 762/580) (TJ-PR - ACR: 5089127 PR 0508912-7, Relator: Marcus Vinicius de Lacerda Costa, Data de Julgamento: 30/04/2009, 5ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 138)

nal e qualquer outro ato libidinoso diverso. Apreciando o novo dispositivo legal em comento, a partir dos ensinamentos do doutrinador Rogério Greco, têm-se como bens jurídicos a serem protegidos a dignidade, a liberdade e o desenvolvimento sexual do vulnerável. Assim dispõe o referido autor: A lei, portanto, tutela o direito de liberdade que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo no que diz respeito aos atos sexuais. O estupro de vulnerável, atingindo a liberdade sexual, agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, presumivelmente incapaz de consentir para o ato, como também seu desenvolvimento sexual. (GRECO, 2015, p. 547) Não se pode deixar de ressaltar que, nos estritos termos da referida norma, a conduta do agente deve ter a especial finalidade de satisfazer sua lascívia, ou seja, que o autor da ação tenha agido com dolo, não importando atingir ou não seu efetivo prazer sexual. Esse é o entendimento da 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgado recente (processo que tramita sob segredo de justiça), de que não é necessário haver contato físico entre autor e vítima, para configurar tal ilícito penal. Isto posto, conclui-se que qualquer ato libidinoso, ainda que não a conjunção carnal, com escopo de satisfazer sexualmente o autor, seja um beijo lascivo ou mesmo a contemplação de partes íntimas da vítima, podem ser, como de fato já foram, objeto de condenação pelo poder judiciário. Resta considerar que as hipóteses legais que caracteriza o estupro de vulnerável exigem do autor o dolo direto, este entendido por Fernando Galvão (2009, p. 177) como “a vontade livre e consciente que se dirige diretamente para a realização da conduta descrita no tipo objetivo”. Em outras palavras, pode-se dizer que o agente deve ter conhecimento prévio da condição da vítima com quem pretende satisfazer seus desejos sexuais. Em relação à aplicação da penalidade, com a referida alteração a pena para tal delito foi elevada a reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, sanção superior a do estupro comum, cessando as discussões acerca de um provável bis in idem, haja vista o previsto no artigo 9º da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), relativamente ao aumento da pena quando a vítima incorrer em qualquer das hipóteses referidas no art. 224 do Código Penal. Antigos debates com relação à presunção de violência, quando a vítima for menor de 14 anos, como, por exemplo, no caso em que ela consente, ou tenha prática ou conhecimento pertinente à atividade sexual, quer sejam os atos praticados entre um casal de namorados, bem ainda, se a vítima apresentasse desenvolvimento físico avançado a ponto de induzir o agente a erro no que se refere à sua idade, pareciam terminar; posto que o legislador estabeleceu como sujeito passivo o indivíduo que esteja nessa faixa etária, não importando a sua experiência sexual ou seu consentimento, apenas a sua idade. De fato, os tribunais superiores encerraram essa discussão, reconhecendo, nestes casos, se tratar de presunção absoluta de violência. Assim, evidencia o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de recurso repetitivo, ao consolidar o seguinte entendimento:

Com o advento da Lei 12.015 de 2009, originária de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) criada pelo Congresso Nacional para, entre outros, investigar a exploração sexual de crianças e adolescentes (o que resultou na PL 253/04 e suas alterações), o mencionado art.224 foi revogado, sendo os seus dispositivos reproduzidos em um tipo penal autônomo, qual seja: o artigo 217-A. Este novo dispositivo (Estupro de Vulnerável), além de não conter a expressão violência presumida, agregou, no mesmo tipo penal, a conjunção car-

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Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime. (Informativo de Jurisprudência nº. 568/STJ)

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Todavia, apesar de atualmente os tribunais serem pacíficos em anuir com a utilização do critério objetivo da idade para imputar o ilícito penal ao acusado, muitas críticas ainda subsistem a esse entendimento, principalmente pelo contexto atual, em que nos deparamos com o amadurecimento precoce da sexualidade na adolescência, fato que ao longo dos tempos restou refletido no comportamento e no estereótipo dos adolescentes. Junto ao desenvolvimento voltado para estabelecer um padrão de vida melhor, como o controle de natalidade e doenças sexualmente transmissíveis, surgiram vários métodos anticonceptivos, que acabaram por desassociar o sexo da reprodução, oportunizando a prática do sexo pelo sexo. No mesmo sentido, a mídia em geral, por meio de imagens e áudios, cenas e letras, também desperta, indiscriminadamente, curiosidades e estímulos sexuais, não se importando com a abrangência das suas informações, sendo, portanto, prejudicial à formação da sadia sexualidade dos adolescentes. 4 ADEQUAÇÃO TÍPICA E ERRO DO TIPO É sabido que a corrente majoritária no Brasil conceitua o crime do ponto de vista analítico como fato típico, antijurídico e culpável, que nas palavras de Nucci (2015, p. 121) significa dizer: (...) ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuricidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito. Neste sentido, sendo imprescindível à compreensão do presente trabalho, a pesquisa restringir-se-á a análise do fato típico, entendendo por tipicidade a adequação do fato ao tipo – descrição legal da norma proibitiva – obviamente considerando quais as modalidades, culposa e, ou dolosa, o delito admite. Com efeito, na aplicação da lei penal, deverá o julgador identificar a correspondência absoluta da conduta, seja ela omissiva ou comissiva, com a norma penal incriminadora. Assim, esclarece Fernando Galvão (2009, p. 193): A adequação de uma conduta ao comportamento previsto no tipo penal pressupõe a satisfação de todos os requisitos, objetivos e subjetivos, que lhe são próprios. Tais requisitos são relacionados, de modo que, nos crimes dolosos, os elementos objetivos devem ser realizados por conduta que, subjetivamente, oriente-se no sentido de realizálos. Não basta realizar objetivamente a conduta descrita no tipo; também é necessário que o autor do fato oriente sua conduta subjetivamente, no sentido de realizá-la. Para a referida adequação importa os casos em que o agente pratica sua conduta induzido em erro quanto aos elementos objetivos do tipo penal, tratados pela doutrina como erro de tipo. À vista disso, vale diferenciar o erro de tipo do erro de proibição, pois, apesar de ambas serem modalidades de erro de representação, o primeiro recai nas hipóteses em que a intenção ou a percepção do autor do fato sobre a realidade difere de algum dos fundamentos que compõe o tipo penal; enquanto o segundo refere-se às situações em que o autor ignora a ilicitude de determinado comportamento. O erro de tipo está previsto no art. 20, “caput”, do Código Penal, que dispõe, em decorrência da alteração feita pela Lei 7.209/84, o seguinte: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto

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em lei”. Análoga ao referido dispositivo é a explicação sobre erro de tipo essencial feita por Assis (1977, p. 50) que esclarece ser este “o que recai sobre um elemento do tipo objetivo, sem o qual o crime deixa de existir”, ponderação feita em se tratando de crime que inexiste a modalidade culposa. Do mesmo modo, o professor Leonardo Augusto, em seu artigo Erro de tipo e erro de proibição: Um estudo comparado do erro jurídico-penal relevante nos ordenamentos brasileiro e espanhol (2012), articula a incidência de erro essencial “quando o erro do agente recai sobre as elementares, circunstâncias ou qualquer outro dado que se agregue à figura típica”. A doutrina atribui à Teoria Finalista da Ação, formulada pelo alemão Hans Welzel, significativa influência sobre a referida mudança, haja vista a contemplação do dolo e a culpa como elementos da conduta. Assim, verifica-se o entendimento de que a vontade livre e consciente do autor de cometer o ato ilícito, ou mesmo assentir o risco de produzi-lo, é elementar a adequação de um fato típico, sendo, por consequência, sua inexistência, uma excludente da tipicidade. Nesse sentido, não pode o Estado utilizar-se do seu poder punitivo (jus puniendi) em face de uma conduta atípica. 5 CRÍTICA AOS CRITÉRIOS DE CONDENAÇÃO NO ESTUPRO DE VULNERÁVEL Contextualizando-se as hipóteses de vulnerabilidade elencadas no artigo 217-A do Código Penal, relacionando-as a outros direitos e ilícitos penais, tendo em vista que a norma resguarda àquele desprovido de discernimento para a prática do ato sexual, percebe-se que, em regra, todas elas são passíveis de relativização, de forma a considerar o caso concreto na interpretação da norma. A vulnerabilidade discutida no presente trabalho está direcionada para a análise do estupro contra o menor de 14 (quatorze) anos, mas é pertinente avaliar, ainda que de maneira sucinta, os demais vulneráveis, isto é, os casos em que se presume a vítima não ter discernimento para praticar atos de caráter sexual, seja por ser deficiente mental, enferma ou estar impossibilitada de oferecer resistência, no caso de embriaguez, por exemplo. A começar pela previsão da enfermidade e deficiência mental como causa de vulnerabilidade, é leviano presumir a violência sem antes constatar a existência desta condição biológica e a consequente afetação psicológica. Para Cleber Massom (2015) deve haver nexo entre essas causas que resulte na incapacidade absoluta de consentir com o ato sexual, o que seria para ele o sistema biopsicológico. Por conseguinte, entendimento diverso deste, a considerar apenas a redação do tipo penal, viola princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e, com efeito, ofende direito individual à liberdade, atingindo assim, a intimidade e a vida privada (arts. 1º, inc. III e 5º, caput e inc. X da CR/88) das pessoas portadoras de deficiências mentais ou enfermidades. Isto porque, a interpretação literal do dispositivo proíbe o direito à vida sexual de todos estes indivíduos, desconsiderando o particular grau do problema mental, vindo a coibir as chances de eles constituírem família e se realizarem pessoalmente. Em relação àqueles que não podem oferecer resistência ao ato sexual por causas diversas destas acimas apresentadas, como nos casos em que a pessoa se encontra em coma, sob efeito anestésico ou sedativo; ou aqueles com deficiência física que apesar de consciente, encontram-se impotente fisicamente, bem como, quem esteja alcoolizado ou drogado, de fato pode ser constatado, como na primeira circunstância que a presunção da vulnerabilidade e, por consequência, da violência é absoluta. Já no último exemplo verificase de pronto a necessidade da lei penal se amoldar ao fato concreto, isto, pois, pode se tratar de conduta voluntária, intentada à prática de atos promíscuos. Em outras palavras, na ocorrência de o indivíduo se

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embriagar ou consumir entorpecentes e ato contínuo decidir participar de orgia sexual com outras pessoas em estado de embriaguez, vindo posteriormente, por simples arrependimento, alegar ser vítima de estupro, não é causa para punir o agente. Nesta perspectiva Nucci (2014) explana suas razões sob o fundamento de que se não há isenção da responsabilidade penal pela embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos (previsão no art. 28, II, CP), por questão de isonomia, estas não devem ser causa de arrependimento da vítima. Para melhor exemplificar, o mencionado autor considera a experiência do sujeito completamente embriagado que em posse de uma arma branca ataca e violenta sexualmente uma mulher em via pública; enquanto outro homem igualmente bêbado, após conhecer uma mulher também sob efeito de álcool em uma casa noturna, por exemplo, mantém relação sexual consentida com ela que mais tarde alegou ter sido estuprada; nestes casos, ele assenta a arbitrariedade do julgamento, caso o segundo seja igualmente apontado como estuprador. Ademais, o mencionado autor adverte que para tipificar o art. 217-A, § 1º, a incapacidade deverá ser absoluta, pois, se tratar de vulnerabilidade relativa pode caracterizar violação sexual mediante fraude (art. 215, CP). Em ambos os prognósticos, não se pode atribuir de imediato uma imputação objetiva ao agente, pois neste ilícito penal é imprescindível que o autor tenha conhecimento da situação da vítima, vindo a aproveitar desta para satisfazer sua lascívia, vale dizer, que o agente tenha agido com dolo. Além disso, é direito constitucional do acusado o contraditório e a ampla defesa para que se alcance uma efetiva igualdade processual; deste modo, nas palavras de Pacelli (2008), ele faz jus a defesa técnica, autodefesa, defesa efetiva e à produção de prova hábil a afastar sua responsabilidade. Ademais, resta evidente que é relevante analisar o caso em apreço e suas peculiaridades, pois, como reafirma Bitencourt (2012) é necessária uma avaliação casuística, a fim de identificar se há uma presunção absoluta ou relativa de vulnerabilidade, bem ainda, o grau desta. 5.1 Do Adolescente Vítima de Estupro A vulnerabilidade discutida no presente trabalho está direcionada para a análise do estupro contra menor de 14 (quatorze) anos (caput do art. 217-A, CP), principalmente quando o sujeito passivo do delito for adolescente com idade de 12 (doze) anos ou mais, pois como afirma Nucci (não resta dúvida quanto à vulnerabilidade da criança [o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) em seu artigo 2º informa que é criança aquele de até 12 (doze) anos de idade incompletos] em razão da sua imaturidade para aquiescer que com ela seja praticado ato de cunho sexual. Este assunto é pauta de diversas polêmicas acadêmicas e jurisprudências, sobretudo pelo critério objetivo adotado pelo legislador, qual seja o preceito etário. Imperiosa é a proteção das crianças e dos adolescentes em face da atuação dos inúmeros pedófilos; como reafirma Greco (2015, p. 542) “a internet tem sido utilizada como um meio para atrair essas vítimas para as garras desses verdadeiros psicopatas sexuais”. O que não procede é protegê-las de si mesmo, de seu desenvolvimento e da educação que lhe é dada, utilizando para tanto o Direito Penal, visto este ser a ultima ratio. Outras intervenções, que não o poder punitivo do Estado, devem ser adotadas quando o propósito for salvaguardar a infância e a inocência da vítima, e não for o caso de punir pedófilos; ou, do contrário, injustiças serão cometidas em razão da repressão de direitos. Uma vez entendido a figura do erro de tipo e cientes de que o dolo é elemento subjetivo do tipo penal em comento, aliado à informação de que este delito não admite a modalidade culposa, passa-se a analisar um caso hipotético formulado por Cleber Massom (2015):

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um casal se conhece em um evento reservado para maiores de 16 anos. O jovem sente-se seduzido pela menina de corpo apessoado e desenvolvido, de conversa elevada, distinta das adolescentes ali presentes, resolve convidá-la para ir a sua casa, vindo a se relacionarem sexualmente. No dia seguinte, o garoto é surpreendido por policias que diziam ser ele acusado de estupro de vulnerável por manter relação com uma garota de 13 anos. Não diferente deste exemplo, é comum situações em que os adolescentes frequentam lugares impróprios, proibidos para sua faixa etária. Não poucas vezes isto acontece por apresentarem fenótipos incompatíveis com sua idade, fato que colabora nas manobras à segurança do local. Não só neste contexto um homem, ou mesmo uma mulher, pode se iludir em relação à aparência do outro. No dia a dia é notável indivíduos com comportamentos e compleição física diversa daquela esperada para sua idade, os primeiros relacionados ao meio social e ao acesso à informação; e a segunda conexa com a alimentação e a evolução humana. Por conseguinte, nos casos em que restar confirmando no inquérito policial que o agente foi induzido a erro, não há que se cogitar a presunção absoluta de violência; é imprescindível à realização da justiça que sejam investigadas as circunstâncias em que se consumou o ato, qual a relação entre o acusado e a ofendido e, principalmente, se houve consentimento da vítima. Aliás, corroborando com o posicionamento de Nucci (2014), tal presunção absoluta deveria se aplicar apenas àqueles que contam com até 12 (doze) anos de idade, vistos pelo ECA como crianças e que de fato, não possuem maturidade para conduzir sua vida sexual de forma prudente. O adolescente capaz de responder por seus atos infracionais, inclusive tendo direito a visita íntima durante sua internação quando casado ou em união estável comprovada (art. 68 da Lei 12.594/2012), pressupõe uma capacidade de discernir sobre sua vida sexual. Assim, resta necessário recolocar a qualidade de vulnerável, bem como, o grau deste, em harmonia com a evolução dos comportamentos na sociedade, priorizando tão somente o bem jurídico relevante na seara penal. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o advento da Lei nº 12.015/2009, criou-se novo tipo penal (art. 217-A, CP) que particularizou uma modalidade de estupro, atribuindo a este delito condições específicas de proteção à vítima, que poderá ser tanto o indivíduo do sexo masculino quanto do sexo feminino, e maior penalidade ao acusado. Nesse sentido, dentre outras alterações, esta legislação intitulou o estupro de vulnerável como todo e qualquer ato que, praticado com incapaz de consentir o ato sexual, visa a satisfação da libido, seja a conjunção carnal ou ato libidinoso diverso. Inquestionável é a relevância da atuação do Direito Penal quando se identifica consideráveis danos a certa camada social, principalmente, quando se coloca em risco toda uma geração. Assim, resta inconteste a necessidade da intervenção direta do Estado quando da proteção das crianças e dos adolescentes satisfazendo ao ditame constitucional, notadamente o artigo 227 § 4º; sem, contudo, ferir direitos de outros. Nesse sentido, o presente trabalho procura demonstrar a razoabilidade em considerar absoluta a vulnerabilidade e a presunção de violência somente nos casos em que for praticado ato sexual com criança; esta, segundo o ECA, com idade de até doze anos. Isto, pois, a sexualidade tem sido despertada cada vez mais cedo nos adolescentes e, apesar de este ser um problema sociocultural, existem outras formas menos invasivas que não o sistema punitivo do Estado,

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intentadas à proteção daqueles. Nesta linha de raciocínio é possível citar as políticas públicas voltadas para a reeducação e a conscientização sexual. O legislador deve acompanhar a evolução pertinente aos crimes sexuais, os quais já tutelaram a moralidade pública, levando-se em consideração o pudor, e hoje protegem a dignidade e a liberdade sexual, a fim de que não haja retrocesso. Para tanto, faz-se necessário que o próprio Direito Penal abstenha-se de resguardar bens jurídicos de menor valor, que no tema em comento se trata da liberdade do adolescente para praticar atos sexuais, mesmo porque lhe seria retirado o direito à autodeterminação. Restou evidenciado na presente pesquisa a importância de julgar o crime de estupro de vulnerável caso a caso, pois ao consentir que o acusado exerça o contraditório e a ampla defesa lhe será dado a oportunidade de provar sua inocência, como, por exemplo, comprovar que foi induzido a erro, não tendo ciência da idade do suposto ofendido, vez que este aparentava ser mais velho e mantinha um comportamento social semelhante ao de pessoas adultas. Da mesma forma, foi-se pontuado outras situações em que a vulnerabilidade é relativa e caso assim não seja considerada, poderse-á afetar direitos de ambos os envolvidos. Fato é que tentar prorrogar o início da atividade sexual de um adolescente pode ser mais maléfico que benéfico quando da intervenção penal; afinal, aquele julgado como estuprador, pode realmente estar sendo injustiçado e vir a se rebelar contra a imprudência do Estado, já que sua vida tomará rumos lamentáveis. Ante ao exposto, defende-se que a presunção de violência atribuída ao ilícito penal do art. 217-A do Código Penal, nos casos em que o sujeito passivo for adolescente, deverá ser relativa, isto é, deve caber prova em contrário, bem como, haver sobrelevação do consentimento da vítima e de outros aspectos concernentes ao caso concreto. Por conseguinte, depreende-se maior maturidade sexual dos adolescentes da contemporaneidade (entre doze e quatorze anos) e, portanto, presume-se estes serem capazes de consentir com atos sexuais.

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Banca Examinadora: rONALDO PASSOS BRAGA (ORIENTADOR) aNA CAROLINA OLIVEIRA (EXAMINADORA 1) BRUNO CALANDRINI (EXAMINADOR 2)

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O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: o Supremo Tribunal Federal violou o Princípio da Presunção da Inocência ante a decisão no HC126292(2016)? THE PRINCIPLE OF INNOCENCE OF THE ASSUMPTION IN FEDERAL CONSTITUTION OF 1988: the federal supreme court violated the principle of presumption of innocence faced with the decision hc126292(2016)? Fábio Campos de Oliveira1

RESUMO: A importância desse tema em análise é quanto à irregularidade na aplicabilidade do princípio da presunção da inocência mediante nova decisão do STF, que viola uma norma fundamental, tendo em vista a validade da preservação da base principiológica, o perigo de confundir o sentido e o alcance de uma norma, relativizando-a acaba por restringi-la. Demonstrar que o STF como intérprete máximo da CF, é o responsável por estabelecer a força normativa no texto constitucional preservando direitos já consagrados pelo constituinte originário, entre eles a presunção da inocência (artigo 5º, inciso LVII, da CF). E que a nova interpretação do STF violou o supracitado princípio, sem a observância de se garantir ao réu o direito de recorrer em liberdade até o transito em julgado. Explicar que a relevância do tema está voltada também para regular as relações humanas e a sua importância no ordenamento jurídico. Compreender o significado do princípio da irretroatividade bem como a sua aplicação na CF. Analisar o papel do STF de suma importância no controle punitivo, findando o ideal de justiça que se traduz em decisões corretas e justas. PALAVRAS-CHAVE: Aplicabilidade. Papel do STF. Presunção da Inocência. ABSTRACT: The importance of this subject in analysis is how much the irregularity in the applicability of the beginning of the swaggerer of innocence by means of new decision of the Supreme Federal Court, that violates a norm basic, in view of the validity of the preservation of the principled bases, the danger to confuse the direction and the reach of a norm, being relativized finishes it for restringiz it. To demonstrate that the Supreme Federal Court as maximum interpreter of the Federal Constitution, is the responsible one for establishing the normative force in the constitutional text preserving right already consecrated by the originary constituent, between them the swaggerer of the innocence (Article 5º, interpolated proposition LVI, of the Federal Constitution). It is that the new interpretation of the Supreme Federal Court violated the above-mentioned principle, without the observance of if guaranteeing to the male defendant the right to appeal in freedom until the transit in judgeship. Explicit that the relevance of the subject is also come back to regulate the relations human beings and its importance in the legal system. To understand the meaning of the beginning of the retroactivity as well as its application in the Federal Constitution. To analyze the paper of the Supreme Federal Court of utmost importance in the punitive control, ending the justice ideal that if translates correct decisions and jousts. KEYWORDS: Applicability. Paper of the supreme federal court. Presumption of Innocence.

Sumário: 1 Introdução. 1.1 Teoria De Robert Alexy. 2 Principio da Presunção da Inocência. 3 Principio da Proibição de Retrocesso Social. 4 Analise da Interpretação Dada ao Principio da Presunção da Inocência .5 Conclusão. Referências.

1 Graduando curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO Na aplicabilidade do princípio da presunção da inocência (Artigo 5º, inciso LVII, Constituição Federal), pelo Supremo Tribunal Federal (STF) prevalecia que, no entendimento do Egrégio Tribunal era de que o réu poderia recorrer em liberdade enquanto não tivesse o trânsito em julgado, coadunando com o princípio do devido processo legal, as garantias e direitos fundamentais previstas no texto constitucional. Em 17/02/2016, o STF adotou posicionamento contrário, após o julgado do Habeas Corpus (HC) 126292 (breve relato): a situação refere-se a um ajudante-geral condenado à pena de reclusão pelo crime de roubo, em primeiro grau; a defesa recorreu ao TJ-SP, que negou provimento ao recurso e determinou a expedição de mandado de prisão. Recorrendo ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a decisão de 1ª instância foi mantida. O HC em tela foi impetrado contra decisão do STJ que indeferiu o pedido de liminar em HC, lá apresentado. Alegando a defesa, que a expedição de mandado de prisão, sem o trânsito em julgado, da decisão condenatória, afrontaria a jurisprudência do STF (mantida desde 2009) e ao princípio da presunção da inocência (STF, 2016). Após julgamento, o Plenário do STF decidiu, por maioria de votos (7x4), negar o HC 126292(2016), entendendo da possibilidade de início da execução da pena condenatória, na confirmação da sentença, em segundo grau, e que tal posição não ofenderia o princípio constitucional da presunção da inocência. Para o relator do caso, Ministro Teori Zavascki, (2016), a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerraria a análise de fatos e provas que assentariam a culpa do condenado, que consequentemente, autorizaria o início da execução da pena. Mudando assim, o entendimento da Corte que, desde 2009 (julgamento da HC 84078/2009) condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, ressalvando a possibilidade de prisão preventiva. Votaram a favor da prisão, os ministros: Teori Zavascki (relator), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes. Votaram contra a prisão, os ministros: Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Pelo exposto acima é notório que nenhum princípio é absoluto, podendo ser, inclusive, objeto de ponderação, desde que se preserve o preceito fundamental, já conquistado, que correlaciona na devida importância de se instituir um Estado Democrático de Direito, calcado no exercício dos direitos sociais e individuais, na liberdade, na segurança, no bem-estar, no desenvolvimento, na igualdade e na justiça como valores supremos de uma sociedade. Tal assertiva é o núcleo do princípio da Proibição da Evolução Reacionária também conhecido como princípio da proibição do retrocesso, que veda ao Estado desconstituir direitos e garantias fundamentais, já alcançadas pela sociedade, e cuja solução do conflito de interesses, no campo penal, vai ser alcançada por intermédio da jurisdição, deferida ao Estado-Juiz. Com o cometimento da infração penal sempre há uma lesão ao Estado, e este, como Estado-Administração, toma a iniciativa de garantir a observância da lei, recorrendo ao Estado-Juiz para, por meio do devido processo legal, ver concretizado o seu direito de punir. Sendo assim, houve flagrante violação ao princípio da presunção da inocência por parte do Supremo Tribunal Federal, ante a nova interpretação dada na decisão do HC126292 (2016), que no exercício legítimo de garantidor da Constituição Federal, acabou por restringir um princípio ao invés de interpretá-lo. Entendimento este em sentido contrário ao texto constitucional mencionado no artigo 5° inciso LVII, considerado como Cláusula Pétrea (artigo 60 & 4° IV) que são dispositivos que não podem abolir as normas constitucionais por elas definidas.

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1.1 Teoria de Robert Alexy Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição passa a ser vista como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores supremos, no qual os ideais de justiça e de proteção aos direitos fundamentais são de suma importância. A Teoria de Robert Alexy, caracteriza os princípios como mandados de otimização. Aduz em suas palavras: [...] Princípios são mandados de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente de possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (ALEXY, 2000, p. 90). Nessa linha de pensamento, Alexy (2008), atribui que a norma é o gênero do qual princípio e regra são espécies, e que os princípios só podem atribuir-se um sentido operativo, aplicando-os em um caso concreto, por isso são chamados de mandamentos de otimização. A existência de princípios normativos, consagrados na Carta Magna, fornece uma base única para o julgamento dos chamados casos difíceis, ao mesmo tempo em que fornece um mecanismo para a solução de casos não previstos, não positivados, sem que para isso se tenha que recorrer unicamente a decisões pessoais. Consequentemente, tais princípios são de difícil uso, pois possuem alta abstratividade, algo que resulta em sua maior vantagem e seu maior perigo. Pois pode vir a provocar o fenômeno do ativismo judicial, extrapolando os limites de atuação do judiciário. Outra questão importante, relativa ao intérprete, que não pode atuar como legislador positivo, porque não é aceitável a interpretação conforme a Constituição quando, pelo processo de hermenêutica, se obtiver uma regra nova e distinta daquela objetivada pelo legislador e com ela contraditória, em seu sentido literal ou objetivo. Deve-se, portanto, afastar qualquer interpretação em contradição com os objetivos pretendidos pelo legislador. Contudo, se utilizados com a devida cautela e fundamentados, tais princípios se tornam uma ferramenta eficiente para garantir a justiça no sentido de preservação do Estado de Direito. Sob a égide do direito constitucional, a partir de um enfoque hermenêutico e doutrinário, a interpretação e sua teoria passam por um processo contínuo de análises e discussões complexas para se buscar o sentido e o alcance da norma. Impondo ao intérprete uma responsabilidade ainda maior na análise constitucional contemporânea. A importância da estrita obediência a forma de interpretar significa que foi dada normatividade aos princípios, elevando a norma a uma categoria de gênero na qual as espécies a serem examinadas serão o objeto central da interpretação constitucional, sob princípios, atribuindo aos responsáveis o resultado final em suas decisões. No tema, em discussão, fundamentados na teoria de Robert Alexy, indicam a clareza com que o STF violou o principio da presunção da inocência, de natureza duradoura e vinculativa, explicitado na Constituição e, por consequência, também o principio da proibição de retrocesso social, implícito na Carta Magna, afastando assim da compreensão o sentido da supremacia da Norma Fundamental. 2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA Conceitualmente, o Principio da Presunção da Inocência, tratase de uma garantia fundamental em que a inocência é inerente a qualquer indivíduo, só sendo alterada no fim da prestação jurisdicional sob a observância do devido processo legal, conforme aduzido. Segundo este primado, frente a indícios de suposta irregularida-

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de, cabe à administração promover a imediata apuração contraditória, e, em sequência, movida pelo princípio da oficialidade, promover a busca da verdade material, sem perder de vista que tais atribuições vinculadas não possuem o condão de afastar a presunção de que, a priori, o acusado é inocente. Alexandre de Morais (2007) leciona que o princípio da presunção da inocência é uma garantia processual penal que salienta a necessidade de comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é de forma constitucional presumido inocente. Neste sentido, Lopes Junior (2006), destaca que:

da em julgado é que se altera tal estado, assim somente a jurisdição pode modificar a situação de inocência” (ERRERIAS, 2007, p.183). Neste mesmo sentido, Mario Chivarrio, (1982), assevera que:

[...] (a) o princípio do estado de inocência é um princípio no qual em torno dele é constituído todo o processo penal, estabelecendo assim, garantias para o imputado frente à atuação punitiva do Estado. (b) é um postulado, partindo-se da ideia que o imputado durante o processo penal é considerado inocente, deduzindo-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo. (c) Conclui finalmente que a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. Sua incidência é no âmbito probatório, vinculado à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, e se esta não ficar suficientemente demonstrada, impõe-se a absolvição do imputado” (LOPES JUNIOR, 2006, p.187 e 188).

Presumir a inocência é essencial ao exercício da jurisdição, uma vez que limita o poder estatal, garantindo a efetividade do direito e sua proteção à dignidade da pessoa humana, assegurando ao indivíduo a plenitude do direito já declarado. Desconsiderar tal presunção é não valorar os direitos emanados pela Constituição que servem de precaução ou repreensão à arbitrariedade, à ilegalidade ou ao próprio abuso de poder que violam tais direitos. Significa verdadeiro retrocesso no tocante às normas constitucionais, que devem ter seu núcleo essencial preservado, inclusive contra a inobservância ou flagrante violação a um princípio elevado ao status de cláusula pétrea restringido pelo Poder Judiciário. Conforme preconiza Tourinho Filho (2012), a presunção da inocência ganhou força no mundo como um princípio fundamental aos direitos humanitários, em 1789, durante a Revolução Francesa, que culminou na expedição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, prevendo em seu artigo 9° que “Todo acusado é declarado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. Em 1948, o princípio da presunção de inocência foi inserido no artigo 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que aduz: “toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. A importância desse princípio norteia as constituições mais modernas do mundo, e a sua relevância pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que, sintetizando seu art. 8º, 2, estabelece que o acusado de um delito tem o direito de ser presumido inocente durante todo o processo, garantido ao mesmo igualdade de condições entre no contraditório na ampla defesa. O Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, editado pela Presidência da República promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que entrou em vigor no território nacional. Antes de a Constituição de 1988 abordar a questão da presunção de inocência como um princípio de ordem constitucional fundamental, já era debatida nas mais altas cortes do país, porque a Constituição de 1967/69 não trazia expressamente o princípio da presunção da inocência. Neste contexto destaca-se um trecho de um voto proferido pelo Ministro Leitão de Abreu, no julgamento do recurso extraordinário, sintetiza bem a orientação que conduziu o Tribunal Superior Eleitoral à pronúncia de inconstitucionalidade da norma questionada, vejamos:

O Principio da Presunção da Inocência, elencada na Constituição Federal, tem aplicabilidade a todos os procedimentos, com pretensão punitiva e sua incidência no âmbito probatório, em que deve ser demonstrada através desta a culpabilidade do fato de modo que seja imputada punição ao acusado, pois em caso de inexistência, insuficiência, fragilidade ou incoerência acerca desta, aplicar-se-á a absolvição ao respectivo acusado, pois prevalecerá o estado de inocência. O Princípio da Presunção da Inocência com status de garantia constitucional, elencada no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal, dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, desse modo, de forma natural que a inversão do ônus da prova, ou seja, a inocência é presumida, cabendo ao Ministério Público ou à parte querelante provar a culpa. Caso não o faça, a ação penal deverá ser julgada improcedente. De maneira precisa anotam Bechara e Campos, “melhor denominação seria princípio da não culpabilidade. Isso porque a Constituição Federal não presume a inocência, mas declara que ninguém será considerado culpado antes de sentença condenatória transitado em julgado”. De modo que a inocência é inerente a qualquer indivíduo, só sendo alterada no fim da prestação jurisdicional, sob a observância do devido processo legal que, antes de mais nada, busca por uma maior justiça pontual, para aquele réu, proporcionando ao mesmo uma decisão que lhe é devida. Mesmo no início de um processo e sobre o primado do princípio do “in dubio pro societat”, proceder-se-á a devida apuração contraditória para a busca da justiça, tendo por escopo a obediência aos pressupostos e garantias fundamentais alicerçadas no devido processo legal promovendo a ampla defesa e contraditório. Destaca-se também que, embora o termo “Princípio da Presunção da Inocência”, é muito mais amplo que uma simples presunção, ele não se limita ao simples “in dubio pro reo” elencado no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal por expressa dicção do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, mas uma verdadeira condição de inocência até a sentença definitiva. Nesta linha de pensamento, Nancy Bersani Errerias (2007) destaca que: “[...] todos os homens são inocentes e somente através da sentença penal condenatória transita-

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[...] Embora não se trate de perspectivas contrastantes, mas convergentes, é forçoso reconhecer que no primeiro caso se dá maior ênfase aos aspectos concernentes à disciplina probatória, enquanto que no segundo se privilegia a temática do tratamento do acusado, impedindo-se a adoção de quaisquer medidas que impliquem sua equiparação com culpado (CHIVARRIO, 1982, p.12).

[…] Em nosso sistema constitucional, dispensável se faz colocar esse problema, especialmente naquilo que entende com o princípio da presunção de inocência, não tanto em nome do princípio cardial do direito internacional público — pacta sunt servanda — mas principalmente em face da regra posta na vigente Carta Política, regra

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que acompanha a nossa evolução constitucional. Nessa norma fundamental se estatui que ‘a especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota’. Ora, o postulado axiológico da presunção de inocência está em perfeita sintonia com os direitos e garantias do regime e dos princípios que ela adota. O valor social e jurídico, que se expressa na presunção de inocência do acusado, é inseparável do sistema axiológico, que inspira a nossa ordem constitucional, encontrando lugar necessário, por isso, entre os demais direitos e garantias individuais, especificados no art. 153 da Constituição Federal. Além de se tratar, desse modo, (...) de princípio eterno, universal, imanente, que não precisa estar inscrito em Constituição nenhuma, esse princípio imanente, universal e eterno constitui, em nossa ordem constitucional, direito positivo (RE 86.297, Rel. Min. Thompson Flores, RTJ, 79, n. 2, p. 671). Pelo exposto, a presunção de inocência, é um princípio norteador do nosso ordenamento jurídico, expressamente previsto, não somente na Constituição em seu artigo 5°, inciso LVII, mas também conforme supra mencionado: na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, na Convenção Americana de Direitos Humanos, acrescentando o artigo 14, inciso 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que versa sobre direitos e garantias humanitárias, do qual o Brasil é parte signatária. Em tais situações, no confronto entre o poder punitivo estatal e a liberdade do réu, tem de se respeitar o contraditório e a ampla defesa em toda sua plenitude, e a inspiração que se extrai de tal afirmação, em regra, é de que a interpretação deve ser favorável ao acusado, pois o mesmo tem o direito de não ser considerado culpado senão após sentença transitada em julgado, passado todo o devido processo legal e colhidas todas as provas da acusação e da defesa. É um princípio criado para que se evitem punições injustas. Nas lições de Capez (2011, p. 44): [...] O princípio da presunção de inocência deve ser considerado em três momentos: na instrução processual, como presunção legal relativa de não culpabilidade, invertendo-se o ônus da prova; na avaliação da prova, impondo-se seja valorada em favor do acusado, quando houver dúvidas sobre a existência de responsabilidade pelo fato imputado; e, no curso do processo penal, como parâmetro de tratamento acusado, em especial no que concerne à análise quanto à necessidade ou não de sua segregação provisória. Em suma, para caracterizar a culpabilidade de um autor diante de um fato punível, tem que se levar em conta se o mesmo poderia e deveria ter agido de modo diferente (aceitável), tendo como fundamento uma sentença justa e proporcional ao crime cometido quando considerado culpado. Culpa esta demonstrada em um devido processo legal, onde não se pode violar um princípio constitucional garantidor, porque cabe ao Estado provar a culpabilidade e só depois exercitar o jus puniendi, lembrando que o ônus da prova cabe a quem acusa em consonância com o artigo 156 do Código de Processo Penal (Artigo com redação pela lei 11.690/2008 – publicação DOU 10.06.2008) que aduz: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer”. Portanto, o princípio da presunção da inocência é a máxima da interpretação benigna em favor do acusado, também chamada de princípio do favor rei, quando o aplicador do direito punitivo se depara com situação de controvérsia inafastável, comportando conflitantes e antagônicas interpretações de norma. E que o jus puniendi, é o direito que tem o Estado de aplicar o cominado no preceito secundário da LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

norma penal incriminadora contra aquele que, praticando a ação ou a omissão descrita em seu preceito primário, venha a causar dano ou lesão a outrem. 3 PRINCIPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL Ingo Wolfgang Sarlet (2007), em poucas palavras, aduz que o princípio da proibição do retrocesso social, como o fundamento de normas constitucionais que protegem o cidadão contra atos retroativos do Estado, pois o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A proibição de retrocesso social possui natureza principiológica, pela exibição de um elemento finalístico, traduzido na garantia do nível de concretização dos direitos fundamentais sociais e a permanente imposição constitucional de desenvolvimento dessa concretização. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado, no processo de efetivação desses direitos e garantias fundamentais, tanto no âmbito individual ou coletivo, resulta em verdadeiro obstáculo de modo que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. O Princípio do não retrocesso, assim como toda ciência e ramo do direito, tem sua estruturação e fundamentação calcada em postulados fundamentais, os quais dinamicamente se intercomunicam para se reforçarem ou delimitarem mutuamente. Caracterizado de mandamentos nucleares de um sistema, seu verdadeiro alicerce, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2008). O princípio do não retrocesso também conhecido como princípio da irretroatividade, implícito na Constituição Federal de 1988, é fruto do sistema jurídico constitucional pátrio, e que tem por escopo a vedação da supressão ou da redução de direitos fundamentais já conquistados. Nesse pensamento, José Afonso da Silva (2009), interpreta resumidamente que as normas constitucionais definidoras de direitos sociais seriam normas de eficácia limitada e que, inobstante tenham caráter vinculativo e imperativo, exigem a intervenção legislativa para sua concretização, vinculando todos os Poderes e demandando a vedação de retroceder na concretização desses direitos. Desta forma, como os princípios direcionam e informam a elaboração das normas reguladoras, em determinadas situações, pode se revelar muito mais afrontoso ao Direito não observar um princípio do que descumprir uma norma positivada. Como tal, um processo conduzido com inobservância de princípios reitores pode vir a ser objeto de crítica por nulidade, neste sentido Celso Antônio Bandeira de Mello (2008), afirma que:

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[…] Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra (BANDEIRA DE MELO, 2008, p. 943). Neste mesmo sentido, aponta José Armando da Costa (2005): […] Não obstante, destaque-se que os princípios

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jurídicos são bem mais importantes do que as normas escritas, razão por que é bastante correto dizer que se afronta muito mais o direito quando se desacata um dos seus princípios do que quando se desatende a uma de suas normas textuais, posto que uma regra expressa contenha apenas uma diretiva, enquanto que um princípio encerra um conteúdo informador e formador de várias normas (COSTA, 2005, p. 47). Pelo exposto, o direito enquanto objeto de interpretação é indivisível, e se difere da garantia, pois o direito declara, certifica a existência de uma prerrogativa e a garantia assegura a efetividade do direito, que deve ser visto e internalizado em sua completude por ser também um elemento de racionalidade. Nesse sentido, José Alfredo de Oliveira Baracho (1996), resume que nas interpretações com aplicabilidade do princípio, requer também uma decisão que seja socialmente aceitável. Ao mesmo tempo, deve o princípio ser juridicamente coerente com o conjunto de outros princípios jurisprudenciais e outras regras jurídicas, para não ocorrer à contradição e a inoperância. Assim é imprescindível para o processo de interpretação constitucional que o intérprete, especialmente, o aplicador do Direito, conheça todo o sistema, o seu processo de evolução e com a realidade em que vive. É preciso fazer uma correta e adequada interpretação do texto legal, que poderá obter mudanças adequadas à convivência entre a norma e a sociedade. Esse processo de mutação constitucional, que nasce da interpretação sistêmica da constituição, inserida em determinada realidade social, política e econômica, indica um respeito aos direitos e garantias fundamentais que foram conquistadas ao longo do tempo. A interpretação de um princípio constitucional é possível desde que não viole o núcleo de sua existência. Suprimir um direito é não reconhecer a coerência e a ponderação que deve existir entre a hermenêutica e o Estado Democrático. 4 ANÁLISE DA INTERPRETAÇÃO DADA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA A interpretação pelo STF no HC 126292/2016 dada não foi relativizada no conteúdo positivo de uma reinterpretação, e sim restringida no conteúdo negativo de retrocesso a um direito já adquirido. O direito enquanto objeto de interpretação é único, não há como dividi-lo posto que se trata de um sistema. A interpretação é ato inafastável, até mesmo quando se cala se interpreta. A interpretação pluralista e o respeito aos princípios fundamentais, mais que um método dialético de interpretar, são elementos imprescindíveis para a legitimação do processo constitucional. Assinala Baracho (1996), que a doutrina do Constitucionalismo integra-se com o Processo que materializa as normas capazes de impedir a concentração do poder e limitar suas manifestações decisórias por meio de organismo competente. E da sua fundamental importância de se preservar um dos fatores mais importantes na construção do Estado Constitucional democrático que seriam os instrumentos protetores dos direitos humanos, promovidos por meio de um sistema de princípios e regras processuais. Ou seja, a sociedade precisa ficar alerta e cobrar a correta aplicação em grau máximo da Constituição Federal, de todos os Poderes, para se evitar que outros direitos, já consagrados na Carta Magna, possam vir a serem restringidos em nome da evolução, que na verdade provoca um distanciamento dos princípios da dignidade da pessoa humana, da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, da segurança jurídica, do devido processo legal, culminando em um processo retrógrado. Não poderiam ser omitidas algumas repercussões contrárias e

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suas consequências advindas da decisão tomada pelo Egrégio Tribunal, entre elas: Na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a entidade resolveu se manifestar por meio de uma nota curta e objetiva onde destaca considerar que “o princípio constitucional da presunção de inocência não permite a prisão enquanto houver direito a recurso”. O documento ressaltou, também, que o Conselho Federal da OAB e o colégio de presidentes seccionais reafirmam “sua histórica posição pela defesa das garantias individuais e contra a impunidade”. Já o presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Andre Kehdi, acentuou que a decisão, a seu ver, é “extremamente preocupante”. Sua avaliação é de que a nova interpretação do STF, ainda por cima, ignora a questão carcerária no Brasil, onde os presídios já possuem 600 mil presos a mais. Complementa ainda, que todos os países, que são grandes encarceradores, estão reduzindo a população presa, mas o Brasil marcha na contramão da história, determinando que a pena seja cumprida antes de o Estado definir os limites da punição, atropelando o devido processo legal. Os ataques ao direito de defesa têm sido feitos constantemente e o Supremo também se curvou à onda do punitivismo exacerbado. Coadunando com os posicionamentos acima demonstrados, tem-se como consequências: superpopulação carcerária, insalubridade das celas, estabelecimentos penitenciários insuficientes, presos provisórios no mesmo convívio com presos já condenados, falta de políticas públicas efetivas nas atividades de educação e trabalho, visando a ressocialização de ex-detentos, baixa remuneração de agentes penitenciários. Não se pode desprezar também a situação de risco dos reclusos. No ano de 2014, o Ministério da Saúde fez um levantamento comprovando que pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose. A taxa de prevalência do HIV/Aids entre a população prisional era de 1,3% em 2014, enquanto entre a população, em geral. era de 0,4% (fonte: política penal/infopen_2014). Outro ponto a considerar é quanto ao perfil da população carcerária formada, em sua maioria, por jovens, com baixa escolaridade. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em síntese, estima que a população carcerária brasileira seja de aproximadamente de 711.463 reclusos e que destes 147.937 estariam cumprindo prisão domiciliar (fonte: política penal/infopen_2014). O significado de trânsito em julgado da sentença condenatória só ocorrerá quando esgotadas as possibilidades de recurso em todas as respectivas instâncias do poder judiciário brasileiro, ou quando o réu, pelo decurso do prazo, perde o direito de recorrer de uma decisão condenatória, para evitar a inserção de um acusado neste ambiente recluso e insalubre, quando a norma constitucional lhe garante a presunção da inocência até o transito em julgado. Vale citar, em síntese, o caso dos Irmãos Naves, que em 1937, na cidade de Araguari/MG, dois irmãos foram presos e torturados por um crime que não cometeram, sendo vítimas de injustiça e por sucessíveis erros judiciários de maior repercussão no Brasil. Entre os Ministros que votaram contra a prisão e que abriram a divergência neste entendimento, destacou-se Marco Aurélio de Mello, que declarou ter considerado, com o julgamento, que “o Supremo acabou de rasgar a Constituição”. Em seu voto, Marco Aurélio afirmou que “já não sabe se pode mais chamar a Constituição Federal de 1988 de ‘Carta Cidadã’, como o fez Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte”. Neste sentido, o direito de recorrer é inerente ao princípio do duplo grau de jurisdição, que não está expressamente positivado

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em nossa Constituição, mas, está intimamente ligado aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, além disso, está previsto em tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, entre eles: o artigo 8º, inciso II, do Pacto de São José da Costa Rica e artigo 14, inciso V, da Declaração Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Preservar o princípio da presunção da inocência é também não violar outros princípios constitucionais já adquiridos tais como: a ampla defesa, contraditório, devido processo legal e, sobretudo a dignidade da pessoa humana. O fato é que, o instituto dos recursos no ordenamento jurídico brasileiro viabiliza brechas jurídicas que permitem um processo criminal leve anos e anos para se transitar em julgado. Gerando muitas das vezes, a flexibilização da legislação penal, que acaba criando uma sensação de impunidade. A maioria das pessoas em geral não faz ideia do que vem a ser a segunda instância, que em poucas palavras seria o segundo nível de julgamento do processo na Justiça. Quando um réu comete um crime, ele é julgado por um juiz de 1ª instância. Se for condenado, a defesa recorre através de um recurso que é apresentado a um tribunal de 2ª instância que poderá manter a condenação ou decidir pela absolvição. Se a condenação for mantida, o réu ainda poderá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça e depois ao Supremo Tribunal Federal, que seriam os 3º e 4º graus de recurso. Com o novo posicionamento do STF, que interpretou que a Constituição Federal autoriza que um réu comece a cumprir pena após ser condenado em 2ª instância, porque nesta fase os fatos e provas do processo já foram devidamente analisados, não sendo possível usar apenas o princípio da “presunção de inocência” para manter o réu em liberdade até o julgamento de todos os recursos. Em contraposição ao princípio da presunção da inocência, utilizado para orientar julgamentos em todo o país, que aduz que os acusados devem ser considerados inocentes até que sejam condenados definitivamente pela Justiça. O alerta quanto a esse novo entendimento do Egrégio Tribunal é preocupante em termos de se evitar a perda de conquistas constitucionais obtidas durante toda a história da humanidade e de nosso próprio texto constitucional. A inconstitucionalidade de tal posicionamento, se mantido, afeta também outros princípios e garantias fundamentais supracitadas, ou seja, essa decisão viola o princípio basilar da “não retroatividade”, que coloca em risco a prevalência de direitos fundamentais consagrados do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput, CF) e, portanto, de soberania popular. O Supremo Tribunal Federal, como intérprete máximo da Constituição, é responsável por estabelecer a força normativa do texto constitucional, não podendo alterar os direitos e garantias fundamentais classificadas como cláusulas pétreas, que tem seu núcleo essencial assegurado constitucionalmente pelo Poder Constituinte Originário de 1988 que julgou necessário um tratamento especial, devido à sua imprescindibilidade para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Definindo que tais normas não podem ser objeto de proposta de alteração tendente a aboli-las do ordenamento jurídico. Restringindo-se o princípio da presunção da inocência através de um novo entendimento, sem a participação de outros setores da sociedade e inobservando o rito legislativo resulta em uma grave violação constitucional, porque não se ampliou o sentido de um princípio, o que seria aceitável. O que se fez foi proibir um direito no qual imbute o sentido de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, permitindo o cerceamento da liberdade enquanto o próprio Texto constitucional aduz que a regra é a liberdade e por exceção, a prisão. Surge a necessidade de se estabelecerem parâmetros objeti-

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vos e critérios firmes de interpretação, à luz da certeza e segurança jurídica, evitando obter uma regra nova e distinta, fundamentada na Constituição Federal, respeitando a lei, a manifestação de vontade do povo por meio de seus legítimos representantes, preservando-se os princípios constitucionalmente assegurados, entre eles o devido processo legal e, em sua decorrência, a presunção da inocência. 5 CONCLUSÃO A decisão tomada pelo STF foi inconstitucional, com base nos princípios do Retrocesso Social, da Dignidade da Pessoa Humana (art.1º, III, CF) que não é apenas um limite à ingerência do poder público na esfera, de autonomia do cidadão, mas é também tarefa a ser cumprida pelo Estado como um princípio fundamental, norteador do devido processo legal, também inclui a violação a outros tratados internacionais e decretos sobre direitos humanos, em que o Brasil é signatário. Resulta ainda, em flagrante descompasso aos direitos e garantias fundamentais, por se tratar de uma Cláusula Pétrea (art. 60, § 4º, IV, CF), que lhes atribui aplicabilidade imediata, e especial proteção contra reforma constitucional, não poderia essa decisão ter força de entendimento de restringir tal principio, pois a mudança se necessária, “se faz no sentido de relativizar não o de restringir”. O princípio da presunção da inocência é inerente ao acusado, trata-se de um postulado que só ao final de um conjunto probatório e com a devida observância do devido processo legal estará aduzido, estabelecendo assim, garantias imputada frente a atuação punitiva do Estado. E segundo J.J. Gomes Canotilho, recepcionando a doutrina de Robert Alexy, que, em resumo, aduz: “que a fundamentalidade de um direito se relaciona com sua especial dignidade no ordenamento jurídico, a qual assume caráter formal e material manifestadas em valores supremos da sociedade com a efetividade do exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (CANOTILHO,1999). Mas, da análise depreendida desse novo posicionamento do STF não se trata de uma reinterpretação ao princípio da presunção da inocência, e sim uma violação à Constituição Federal de 1988, que tem como uma de suas características ser principiológica; e como regra, a liberdade e por exceção, a prisão. O direito à liberdade é mais que uma conquista do Estado Democrático de Direito, claro que esse direito não é absoluto e pode sofrer limitações desde que respeitados certos limites, traçados pela Constituição. E que tais limites, nesse tema em discussão, foram extrapolados. A decisão do STF ante o HC 126292/2016 trará consequências supramencionadas em todo o sistema penal, seja no acréscimo de presos em penitenciárias já superlotadas, ao se permitir o enclausuramento de um acusado condenado em segunda instância. Também contribuem a falta de recursos humanos e logísticos no Sistema de Defesa Social, seja em caráter preventivo ou repressivo, e a inércia do Estado em cumprir todos os mandados de prisão, por falta de efetivo policial. E ainda tal decisão caracteriza em flagrante descompasso aos direitos e garantias fundamentais inclusas na Constituição Federal de 1988. E, ainda agravado, o risco irreparável de se condenar um inocente, colocando-o recluso, quando, em contrapartida, a Constituição lhe garante o direito de recorrer em liberdade até o trânsito em julgado. Como o Estado pode reparar o dano de encarcerar um réu que não é culpado, a história revela casos de erro judiciário, entre eles, supracitado, o dos Irmãos Naves. Ainda que se argumente a existência de recursos protelatórios que resultam em morosidade nos julgamentos ou no próprio apelo

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legítimo da sociedade pela Justiça ensejando em uma sensação de impunidade deveriam ser adotadas ações efetivas a curto e a médio prazo do Estado, em seu sistema criminal. Além da alteração da legislação e outras medidas de política criminal, com a presença de todos os entes envolvidos, sem que para isso afaste uma garantia constitucionalmente assegurada. O papel do Supremo Tribunal Federal é de suma importância ao Estado Democrático de Direito, de grande relevância nacional, e como Guardião Constitucional está apto a reinterpretar a Constituição Federal desde que não a viole. Contudo, nessa recente reinterpretação ao princípio da presunção da inocência comprova-se pelos argumentos supracitados a sua inconstitucionalidade. Acrescidas da inobservância, ao artigo 60 & 4º da Constituição Federal de 1988, que tem status de Cláusula Pétrea, indicando a incompetência do STF nesse processo retrógrado. Não se entra no mérito dos motivos que levaram o STF a tomar tal decisão, e sim, quanto à sua instrumentalização que foi inadequada, injusta e desastrosa à Norma Fundamental, pela supressão de não se garantir ao acusado o direito de recorrer em liberdade até o trânsito em julgado. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 6. ed. Malheiros: São Paulo, 2006. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BARROSO, Luís Roberto. O direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

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A CULPA GRAVÍSSIMA NOS CRIMES DE TRÂNSITO PREVISTOS NO ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL RECKLESSNESS IN VEHICULAR CRIMES UNDER THE CRIMINAL CODE REFORM BILL Felipe Giffoni da Silva1

RESUMO: O presente artigo trata de uma análise sobre o instituto da culpa gravíssima que foi inserido no anteprojeto do código penal que está tramitando no Congresso Nacional. Segundo o texto elaborado por uma comissão de juristas os crimes de homicídio culposo de transito terão tratamento diferenciado, em razão da temeridade da conduta do agente. Além disso, serão tratadas questões relevantes sobre o tema, iniciando com a forma na qual se diferenciam dolo eventual e culpa consciente, denunciando a forma arbitrária com que os institutos veêm sendo utilizados. Passa-se ainda pelo estudo da diferença entre os dois institutos e, finalmente chegando à inovação que poderá entrar em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, o qual traz formas de gradação da culpa. PALAVRAS-CHAVE: Anteprojeto de Código Penal. Crimes de trânsito. Culpa Consciente. Culpa Temerária. Dolo eventual.

ABSTRACT: This study aims to analyze the application of vehicular manslaughter charges under Brazilian Law, as they currently have been applied and as proposed by the Criminal Code Reform Bill. KEYWORDS: Criminal Code Reform. Vehicular crimes. Vehicular manslaughter. Recklessness. Criminal intente.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Homicídio culposo e lesão corporal culposa nos crimes de trânsito: tratamento jurídico na atualidade. 3 Diferença entre dolo eventual e culpa consciente. 4 A culpa temerária e sua previsão no Anteprojeto de Código Penal. 5 A culpa gravíssima nos crimes de trânsito. 6 Reflexões sobre a alteração legislativa e a lei penal no tempo. 7 Conclusão. Referencias.

1 Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO Atualmente, vive-se no Brasil um momento de sobrelevação do papel do Poder Judiciário, com o intuito de superar as mazelas sociais das quais o Estado de Direito não vem sendo capaz de corrigir. Assim, não raramente, decisões judiciais subvertem a Constituição, as leis e os institutos jurídicos já consolidados, de modo a satisfazer os anseios da massa populacional. Nesta seara, encontram-se as mais variadas aberrações jurídicas, precipuamente na esfera penal, na qual o senso comum, sedento por uma ordem mais punitiva, é totalmente descrente do funcionamento do sistema jurídico pátrio. Isso faz com que o Judiciário, com sua medida particular de justiça, tente suprir os anseios do povo, ainda que ao arrepio da Constituição. Um pontual exemplo de manobra realizada pelo Ministério Público, chancelada pelo Poder Judiciário, ocorre no crime de homicídio culposo de trânsito, quando o condutor se encontra embriagado ou dirige em alta velocidade. Nestas ocasiões, aos infratores da lei, são atribuídas penalidades divergentes da tipificada para o crime cometido. Destarte, a culpa consciente é convertida em dolo eventual, como forma de suprir a leve punição prevista para o delito, em razão da gravidade do resultado. Neste contexto, a comissão de juristas criada para elaboração do Anteprojeto do novo Código Penal que tramita no Congresso Nacional, trouxe grande inovação que, sendo aprovada, pode finalizar o dilema dos crimes de homicídio culposo no trânsito, nas ocasiões em que o condutor se encontra sob influência de bebida alcóolica, ou em prática de corrida e exibição de manobra de perícia na via, sem autorização da autoridade competente. Trata-se do fim do uso indiscriminado do instituto do dolo eventual, como forma de trazer punição mais severa aos infratores que cometem tais crimes. Eis que surge, com o advento do anteprojeto do Código Penal a possibilidade de um novo instituto na dogmática penal brasileira, já conhecido em alguns países europeus, tais como Alemanha, Itália, Portugal e Espanha, chamado de “culpa temerária”, ou ainda, conforme consta do art. 121 § 5º do projeto, “culpa gravíssima”. Uma das grandes novidades no novo diploma, a culpa gravíssima, busca trazer uma punição mais adequada aos crimes de homicídio de trânsito, dependendo da temeridade da conduta com que o agente pratica tal ilícito. Assim, o presente artigo busca realizar uma investigação mais detalhada sobre o novo instituto, destacando sua aplicabilidade prática à luz das situações fáticas surgidas com o tempo. 2 HOMICÍDIO CULPOSO E LESÃO CORPORAL CULPOSA NOS CRIMES DE TRÂNSITO: TRATAMENTO JURÍDICO NA ATUALIDADE O grande número de acidentes de trânsito envolvendo condutores embriagados ou por excesso de velocidade na via, ou ainda, realizando manobras de perícia e corridas sem autorização do órgão competente, tem gerado muitas vítimas e um rastro de sangue por todo país. A violência no trânsito se tornou um dos grandes problemas da sociedade contemporânea, que decorre principalmente da falta de educação e conscientização para um trânsito mais humano. Deste modo, o direito tem sido uma das principais ferramentas que, tenta mudar este quadro, sobretudo nas esferas penal e administrativa, tipificando as condutas lesivas e perigosas praticadas pelos condutores. Neste contexto, a legislação de trânsito vigente, especialmente o art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro descreve o tipo penal do homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, nos seguintes termos: “ Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

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O referido diploma legal, após alteração legislativa ocorrida em 2014, passou a prever uma qualificadora em seu § 2º para o para o homicídio culposo de trânsito. Trata-se da circunstância segundo a qual o condutor encontra-se sob influência de substância psicoativa que gere dependência, ou realizando corrida, ou ainda exibição de manobra de perícia em via pública sem autorização do órgão competente terá a seguinte consequência: § 2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente. Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. A tímida alteração legislativa sofrida pelo Código de Trânsito Brasileiro buscou dar um tratamento diferenciado aos condutores que comentem tal crime sob a influência de bebida alcoólica ou outra substância psicoativa, com punição mais gravosa que a do tipo principal. O fato é que, muitas vezes, os efeitos causados pela inobservância dos preceitos legais supracitados são demasiadamente danosos à sociedade, de tal sorte que as sanções previstas no referido tipo penal, não trouxeram agravamento significativo do tipo, sem aumento da pena mínima ou máxima do delito, ou seja, apenas uma mudança cosmética. Após a inclusão da qualificadora, com o advento da Lei nº12971 de 2014, que apenas transformou a pena de detenção em reclusão, em quase nada se alterou o cenário jurídico atual. Devese ter em mente que a diferença entre a reclusão e a detenção, nos dizeres de Luiz Regis Prado [...]se restringe quase que exclusivamente ao regime de cumprimento da pena, que na primeira hipótese deve ser feito em regime fechado, semiaberto ou aberto, enquanto a segunda alternativa – detenção – admite-se a execução somente em regime semiaberto ou aberto [...] (PRADO, 2013, p.415). Visto que, para efeitos da pena, pouca ou quase nenhuma diferença tal alteração fez, esta tornou-se insuficiente para pacificar a discussão sobre o dolo eventual nestes crimes. Deste modo, o Ministério Público e o Poder Judiciário continuam sua busca implacável por punições mais severas para os motoristas embriagados e amantes da velocidade, não obstante haver o legislador, expressamente, ter dado um tratamento de crime culposo a tais condutas. Neste sentido, decisão da Suprema Corte em sede do HC n° 131861, cujo relator, Ministro Gilmar Mendes apresentou a seguinte tese como forma de denegar o respectivo remédio constitucional, in literis: Além disso, o agravamento de pena promovido pela modificação legislativa é modesto. O total da pena privativa de liberdade para o tipo qualificado segue idêntico ao do tipo base – 2 a 4 anos. É certo que, na figura qualificada, a detenção foi substituída por reclusão. Isso pode ser levado em conta pelo aplicador, especialmente para agravar o regime inicial de cumprimento da pena ou afastar sua substituição por penas restritivas de direito. Ainda assim, nem sequer se pode afirmar que o tratamento mais grave trará um apenamento mais rigoroso na maioria dos casos. Dessa forma, a leitura da lei não aponta para supressão ou redução do espaço de aplicação do dolo eventual a crimes praticados na direção de veículos automotores. (HABEAS CORPUS N° 131861, 2015).

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Conforme relatório, o Ministro aduz que a nova qualificadora inserida no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro somente será utilizada quando o autor der causa ao crime culposamente. Neste caso, o maior desafio para a defesa é demonstrar a inexistência do dolo eventual, que nestes casos, quase sempre é definido apenas pelo fato da ingestão de bebidas alcoólicas e emprego de alta velocidade. 3 DIFERENÇA ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE Diante deste cenário, o que se tem observado nos tribunais é uma completa manipulação do ordenamento jurídico, aplicando-se uma ideia de justiça altamente controversa e particular, conforme o ideal particular de cada autoridade. Tornam-se cada vez mais comuns, casos em que o réu não é denunciado pelo crime de homicídio culposo, previsto no art.302, qualificado pelo §2º do Código de Trânsito Brasileiro, mas sim pelo crime de homicídio doloso previsto no art. 121 do Código Penal, na modalidade dolo eventual, pelo simples fato deste ter ingerido bebida alcóolica ou de dirigir em alta velocidade. Isso se dá sob a argumentação de que o condutor assumiu o risco de produzir tal resultado. Tratar a culpa consciente como dolo eventual vem sendo a fórmula utilizada pelo Poder Judiciário, inclusive em sede das instâncias superiores, para apresentar à sociedade uma medida particular de justiça pautada em uma punição mais severa do agente. Neste sentido, o esclarecimento do professor Adel El Tasse: A culpa e o dolo, embora tenham contornos distintivos há mais de meio século estabelecidos, a partir da verificação lógico-real dos aspectos subjetivos do ser humano quando pratica um ato, foram deliberadamente inseridos em confusão para impor a pena do crime doloso para quem agiu na modalidade culposa, ou seja, o abandono da estrutura welzeniana é, como sempre proposta para ampliar o poder punitivo e diminuir as liberdades e os direitos e garantias fundamentais. (TASSE, 2015, p.62). Obviamente, a tipificação correta do crime dependerá, em última análise, do caso concreto, em que se deve verificar exatamente qual a intenção do agente. Neste sentido, deve-se buscar ser realmente houve dolo, que nos dizeres de Zaffaroni e Pierangeli trata-se do “querer do resultado típico, a vontade realizadora do tipo objetivo”. (ZAFFARONI, 2010 p.433). Ou ainda, se o agente aceita o resultado como que é tido como provável. Existe uma linha muito tênue que diferencia o dolo eventual e a culpa consciente, devendo a última ser entendida como a situação em que o agente, prevendo a possibilidade de que o dano ocorra, investido de confiança de que o resultado não ocorra, age com imprudência, imperícia ou negligência. Ou nos dizeres do Bitencourt: “Quando o agente, embora prevendo o resultado, espera sinceramente que este não se verifique, estar-se-á diante de culpa consciente não do dolo eventual” (BITENCOURT, 2010, p. 338). Lado outro, no dolo eventual, o agente pode prever o dano, porém age de maneira indiferente ao resultado. A doutrina já cuidou de diferenciar de maneira exaustiva o dolo eventual e a culpa consciente, destacando-se duas teorias que buscam realizar tal distinção, quais sejam: a teoria da probabilidade e teoria da vontade. Para a teoria da probabilidade, encontrando-se dificuldade em se encontrar o elemento volitivo, ou seja, a pretensão do resultado, será considerado o dolo eventual sempre que este seja muito provável e mesmo assim o agente proceda com os atos que o derem causa. Contudo, se o resultado for pouco provável, haverá a culpa consciente. Por outro lado, a teoria da vontade ou do consentimento não veLETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

rifica qual o grau de probabilidade de que o dano ocorra, mas sim se tal probabilidade é incapaz de neutralizar a vontade de agir, em outras palavras, “o valor positivo da ação é mais forte para o agente do que o valor negativo do resultado, que, por isso, assume o risco de produzi-lo”. (BITENCOURT, 2010, p. 342). Assim, haveria a culpa consciente sempre que não estando convencido do resultado, mas conhecendo a probabilidade do dano, erra o cálculo e produz o resultado. Deste modo, o desvalor da conduta no crime culposo nasce da negligência, imperícia ou imprudência, nas situações onde era possível prever o dano, mas o agente não o previu (culpa inconsciente) ou ainda, na situação em que o dano era previsível pelo agente, mas este não aceita que o resultado se produza. Vale dizer, tanto no dolo eventual, quanto na culpa consciente existe a presença da previsibilidade pelo agente, sendo que tal previsibilidade em nada contribui para diferenciar tais institutos. Destarte, deve-se ter muita cautela antes de definir se houve por parte do agente (que se envolve em um acidente com vítima fatal, ou até mesmo lesão corporal), indiferença quanto ao resultado, ou apenas uma inobservância de um dever objetivo de cuidado. Além disso, sobressaindo a dúvida quanto ao elemento volitivo do agente, esta deverá ser dirimida sempre em favor do réu, conforme dispõe o consagrado princípio do “in dubio pro reo”, ocasião em que será sempre mais benéfico responder pelo crime culposo. 4 A CULPA TEMERÁRIA E SUA PREVISÃO NO ANTE PROJETO DE CÓDIGO PENAL Historicamente a ideia de culpa, quase sempre, vinculada à matéria não penal possuía significação técnica de negligência ou imprudência. Em Roma, sob a forma de “luxuria”, “exclacivia”, posteriormente, incorporada pelo direito canônico, sendo desenvolvida pelo Direito medieval, como um quase delito, assumia três formas diferentes, quais sejam, culpa lata ou magna, leve e levíssima. Não obstante a ideia de gradação da culpa existir desde tempos mais remotos, a dogmática jurídico penal brasileira pouco se desenvolveu a respeito do tema. Sobre o assunto, aduz Santana: [...]o atraso da dogmática do delito culposo constitui uma das maiores contradições do Direito Penal, e assim permanecerá enquanto a ciência jurídica não for capaz de apreender, racionalmente, toda a complexidade de matizes que a realidade da culpa representa, pois, em que pesem no plano dogmático alguns notáveis avanços, o estado atual da teoria da culpa constitui um dos maiores fracassos da dogmática jurídico penal. (SANTANA, 2010). Como se observa, há uma grande necessidade do desenvolvimento da dogmática penal sobre o estudo das condutas culposas, sendo a culpa gravíssima um grande avanço neste campo, podendo trazer soluções mais proporcionais e até mesmo segurança jurídica, em se tratando dos crimes de trânsito, nos quais a subjetividade do julgador tem se tornado a principal fonte do direito. Para o estudo da culpa gravíssima é imprescindível o estudo da culpabilidade no direito pátrio. Neste sentido, o Código Penal vigente, em seu art. 59 aduz que a culpabilidade deve ser aferida para que se tenha uma correta dosimetria da pena. Tal preceito deve ser interpretado, salientando que a culpabilidade significa a forma como o agente se porta frente ao bem jurídico tutelado. Conforme bem observa Cezar Roberto Bitencourt a culpabilidade tem um triplo sentido em seu conceito. “Em primeiro lugar, a culpabilidade –como fundamento da pena- refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal”. Numa segunda vertente, a culpabilidade serve para limitar a pena – “como elemento

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da determinação da pena”. Em terceiro lugar, a culpabilidade deve ser entendida como “conceito contrário à responsabilidade objetiva, ou seja, com o identificador e delimitador da responsabilidade individual e subjetiva”. (BITENCOURT, 2010, p. 385). A culpabilidade como delimitadora da responsabilidade individual pode ser percebida como fator de gradação da pena, conforme a postura do agente frente ao bem jurídico, a saber: o agente pode agir com menosprezo ao bem jurídico, configurando dolo direto; além disso, pode agir com indiferença, o que caracteriza o dolo eventual; e por fim, pode agir com descuido, onde haveria o delito culposo. É evidente que os níveis deste descuido podem ser os mais variados, deste modo, faz-se necessário para uma maior efetividade do princípio da culpabilidade que haja um tratamento diferenciado conforme o nível de descuido do agente. A culpa temerária ou culpa gravíssima, como será chamada no novo Código Penal que tramita no Congresso Nacional, tem como objetivo principal dar um tratamento diferenciado às condutas onde o agente deixa de observar um dever de cuidado, agindo com grande temeridade, em situações onde a probabilidade do dano seja elevada. Além disso, a verificação do risco deve ser altamente provável à luz da conduta adotada, fazendo com que ainda que o autor não pretenda o resultado, tal ação seja censurável, demonstrando grande descuido. Em outras palavras, a culpa temerária seria como uma espécie de elo entre a culpa consciente, onde o agente percebe a possibilidade de dano, mas não acredita que este ocorrerá, e o dolo eventual, onde o efeito danoso é previsível, mas o infrator é indiferente caso este ocorra. Selma Pereira de Santana, em sua obra sobre o tema, disserta: A culpa temerária representa um tipo de culpa substancialmente elevado, determinante de uma moldura penal agravada. É indispensável que se esteja perante uma ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada, mas que se tem de alcançar, ainda, a prova autônoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídicopenal. (SANTANA, 2010). Deve-se salientar, que não obstante a punibilidade do delito culposo depender de um resultado lesivo a um bem jurídico, o agravamento da culpa não poderá depender da gravidade do dano que a conduta do agente gerou. Conforme bem salienta o jurista Raul Zaffaroni:

rige, pode trazer resultados catastróficos. E se o resultado fosse o fator que definisse a culpa gravíssima, tal situação seria igualmente tratada como se o condutor estivesse embriagado em alta velocidade. Ou seja, uma completa desproporcionalidade. 5 A CULPA GRAVÍSSIMA NOS CRIMES DE TRÂNSITO A grande inovação que pretende o legislador trazer para o ordenamento jurídico brasileiro é exatamente a possibilidade de aplicação deste instituto nos homicídios culposos de trânsito, envolvendo condutor embriagado ou em prática de corrida e/ou exibição de manobras arriscadas em via pública. Como já tratado, já existe previsão de punições na legislação vigente, especialmente no CTB, da modalidade culposa de tais crimes. Neste sentido, o novo texto que pode entrar em vigor sugere o seguinte preceito em seu art. 121 §§ 5º e 6º: Culpa gravíssima §5º Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado morte, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional temeridade, a pena será de quatro a oito anos de prisão. § 6º Inclui-se entre as hipóteses do parágrafo a causação da morte na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos ou mediante participação em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente. Como bem se percebe, o campo de investigação sobre o qual o operador do direito deve se debruçar é a temeridade da conduta, na qual o agente não pode ter agido com dolo eventual, ou seja, não pode ser indiferente ao resultado. Tal exame dependerá em muito da analise probatória do processo. Vale dizer, o legislador já cuidou de classificar a conduta de dirigir embriagado, bem como participação em via pública de corrida, disputa ou competição automobilística, como temerária. Em outras palavras, a simples confirmação de tais elementos já comprova a temeridade da ação. O relatório da comissão elaborada para realização deste projeto, também trouxe alguns esclarecimentos a culpa gravíssima, bem como seu maior objetivo, que neste caso se resume em apresentar uma resposta mais adequada aos crimes de trânsito, neste sentido: Se todo o homicídio culposo nasce do descuido, existem situações nas quais o desvalor deste descuido é acendrado, indicativo de uma suscetibilidade à produção de tão terrível efeito. Se, conforme a própria Comissão propõe, não há dolo eventual sem assunção indiferente do risco de produzir a mor te, cuidava-se de criar figura intermediária, lindeira tanto da culpa comum quanto da intenção indireta. Daí a culpa gravíssima, capaz de oferecer sanção penal mais intensa para os casos nos quais, sem querer e sem assumir o risco, o resultado fatal advém de excepcional temeridade. A exemplificação trazida pelo parágrafo ajuda a definir o conceito: é culpa gravíssima matar alguém na condução, sob efeitos de álcool ou substância análoga, de veículo automotor, embarcação ou aeronave; é culpa gravíssima fazê-lo mediante racha ou pega. Desta maneira, oferece-se solução que, conjugada à do capítulo dos crimes de trânsito, responde proporcionalmente a estas mui abundantes ocorrências de nossas cidades. Mas não se trata de instituto reduzido a estes exemplos. A culpa temerária pode ser aplicada

Todas as teorias que abordaram a culpa a partir do resultado estiveram completamente equivocadas, precisamente por sobrevalorar a função dele, que no tipo culposo é apenas de delimitar os alcances da proibição. O resultado é um delimitador da tipicidade objetiva culposa, que alguns tem chamado componente de azar. (ZAFFARONI, 2013, p.459). Desta maneira, o resultado é apenas um “componente de azar” não podendo ser considerado fora do tipo culposo, tampouco uma condição objetiva da punibilidade. Assim, da mesma forma que a conduta culposa tradicional, a culpa gravíssima deve ser considerada sempre a partir da violação de um dever de cuidado, cuja temeridade da ação seja excessiva e nunca considerando o resultado lesivo produzido. Afinal, até mesmo uma simples falta de atenção de um condutor ao atender o telefone celular enquanto di-

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noutras situações nas quais vai ser muito além do ordinário, em matéria de descuido.2 A inovação trazida pelo projeto também pode ser observada em outros crimes, tais como a lesão corporal culposa. Contudo, de maneira geral, as condutas culposas, para as quais foram acrescentadas à referida modalidade, ficaram adstritas apenas àquelas onde o bem jurídico tutelado é a vida ou a integridade física. Isso ocorre em consequência do Princípio da Proporcionalidade, pelo qual entre a cominação da pena e a gravidade da conduta deve existir uma proporcionalidade, de tal modo que até mesmo o crime sendo cometido com dolo, haverá uma punição relativamente pequena. Razão pela qual não se justificaria a incidência da culpa gravíssima em crimes tais como os de incêndio, poluição e outros crimes ambientais. Importante observação sobre o instituto da culpa gravíssima no anteprojeto, refere-se à questão dos efeitos não automáticos da condenação, especialmente no crime de homicídio de trânsito. Como é sabido, os crimes de trânsito geram consequências nas esferas penais e administrativas, deste modo, caso o condutor venha a cometer homicídio doloso este ficará inabilitado pelo prazo máximo de cinco anos. Outrossim, tratando-se de culpa gravíssima, haverá a incidência de tal efeito, conforme dispõe o art. 94, III do Anteprojeto, nos seguintes termos: Art. 94 [...] III – a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso ou com culpa gravíssima, pelo prazo de até cinco anos. Parágrafo único. Salvo disposição expressa em contrário, os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. Não se pode esquecer que a culpa gravíssima, não obstante dar um tratamento mais gravoso às condutas culposas, trata-se sobretudo de uma modalidade culposa. Isso faz com que em todo o resto a aplicação da lei penal mantenha os postulados já consagrados no ordenamento jurídico para o crime culposo. Assim, não há que se falar em tentativa, pois a conduta temerária carece do elemento volitivo. Além disso, o foro para julgamento deste tipo de demanda não poderá, em nenhuma hipótese, ser o Tribunal do Júri, pois conforme expresso no texto da Constituição da república, este é competente para julgar crimes dolosos contra a vida. 6 REFLEXÕES SOBRE A ALTERAÇÃO LEGISLATIVA E A LEI PENAL NO TEMPO Assim como nenhuma forma de manifestação de vida consegue evitar a ação corrosiva e implacável do tempo, a lei penal também nasce, vive e morre. E, desde que uma lei entra em vigor ela rege todos os atos abrangidos por sua destinação, até que cesse a sua vigência. A lei anterior, como regra, perde sua vigência quando entra em vigor uma lei nova regulando a mesma matéria. (BITENCOURT, 2010, p.182). Conforme já mencionado, o art. 121 § 5º do Anteprojeto de có-

digo penal que trata da culpa gravíssima, traz uma pena de 4 a 8 anos de prisão, enquanto o homicídio simples previsto no art. 121 do atual Código Penal possui penas que variam de 6 a 12 anos em sua modalidade mínima. Deste modo surge a seguinte reflexão: aquelas situações, nas quais a condenação foi baseada exclusivamente na temeridade da conduta do agente, imputando a este um crime doloso, na modalidade do dolo eventual, seriam ou não passíveis de uma revisão, considerando a entrada em vigor de um novo Código Penal, haja vista a nova lei ser mais benéfica quanto a imputação da sanção? A resposta para este questionamento deverá passar necessariamente pelo estudo da lei penal no tempo. Neste sentido, sempre que há uma mudança na legislação penal, surgem conflitos da aplicabilidade desta, quanto às situações pretéritas à sua vigência. Em suma, tais questionamentos serão resolvidos por um princípio do direito penal, qual seja: o princípio da retroatividade da lei peal mais benigna. Tal postulado aduz que ao entrar em vigor uma nova lei penal ou processual penal, cujo conteúdo seja mais favorável ao réu, esta será aplicada às situações anteriores à sua vigência, trazendo uma melhor condição ao réu, ainda que já transitada em julgado sua sentença. Toda lei penal, seja de natureza processual, seja de natureza material, que, de alguma forma, amplie as garantias de liberdade do indivíduo, reduza as proibições e, por extensão, as consequências negativas do crime, seja ampliando o campo da licitude penal, seja abolindo tipos penais, seja refletindo nas excludentes de criminalidade ou mesmo nas dirimentes de culpabilidade, é considerada lei mais benigna, digna de receber, quando for o caso, os atributos da retroatividade e da própria ultratividade penal”.(BITENCOURT, 2010, p.185). Pelo exposto, caso o novo texto entre em vigor, entende-se que os condenados pelos crimes de homicídio doloso, cujo o elemento subjetivo do tipo tenha sido constatado exclusivamente mediante a temeridade da conduta do agente, incluindo os cometidos na direção de veículo automotor poderão pleitear junto ao Judiciário a revisão de suas penas, uma vez que a culpa temerária traz punição mais leve que a do homicídio doloso. Em outras palavras, o conflito que surge entre o homicídio doloso, de 6 a 20 anos de reclusão, e o homicídio com culpa temerária, de 4 a 8 anos de reclusão, deverá ser resolvido aplicando a lei penal mais benéfica. Assim, mesmo os processos já sentenciados, quando ainda não haja ocorrido a extinção da pena, terão como consequência a aplicação da norma prevista no novo diploma, caso este venha a ser aprovado. Outrossim, o princípio da irretroatividade da lei penal, segundo o qual a segurança jurídica manifesta-se em sua plenitude e que está consagrado do art. 5º, XXXIX, da Constituição Republicana de 1988, preceitua que não se deve aplicar normas que regulam infrações penais, com tratamento mais rigoroso, nas situações pretéritas à sua vigência. Este é um dos pilares do Estado de Direito, pois protege o indivíduo do legislador, obstando a prática da criminalização de condutas já praticadas por aquele que não tem como evitá-la. Deste modo, não há que se falar em aplicação da culpa temerária aos crimes culposos anteriores à vigência do novo instituto. Nesta seara, deve-se destacar que não haverá mais a possibilidade de ocorrer novas acusações de homicídio doloso escudadas,

2 Relatório final do anteprojeto de Código Penal Brasileiro. Para a ordenação dos trabalhos, foram criadas três subcomissões: a da parte geral, a da parte especial e a da legislação extravagante. A primeira, relatada inicialmente por René Ariel Dotti, foi composta também por Maria Tereza Rocha de Assis Moura, Emanuel Cacho, José Muiños Piñeiro Filho E Marcelo André De Azevedo. A comissão da parte especial, relatada Por Juliana Beloque, Incluía Nabor Bulhões, Técio Lins E Silva, Luiz Flávio Gomes, Marco Antonio Marques Da Silva E Luiza Nagib Eluf. A subcomissão da legislação extravagante foi integrada por Tiago Ivo Odon, que a relatou, E Gamil Föppel, Marcelo Leal, Marcelo Leonardo E Luiz Carlos Dos Santos Gonçalves. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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exclusivamente, na ingestão de álcool ou emprego de velocidade elevada. Sendo assim, a continuidade do cumprimento da pena, nas decisões já transitadas em julgado, por homicídio doloso, embasado unicamente nestas circunstâncias, torna-se insustentável, pois a lei passará a afirmar expressamente estar diante da culpa gravíssima. Lembrando que tal condenação deriva da subversão da dogmática penal, tornando-se, com o advento do novo código, contrário à “novátio legis in mellius”, segundo o qual, em seu art. 2° figura com a seguinte redação: Art. 2º É vedada a punição por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. § 1º A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. § 2º O juiz poderá combinar leis penais sucessivas, no que nelas exista de mais benigno. Deve-se, porém, destacar que o novo instituto não elide de vez a aplicabilidade do dolo eventual nos crimes de trânsito, tão somente trazendo uma punição mais proporcional ao condutor que age com grande temeridade. Por isso, o dolo eventual poderá ser ainda atribuído às situações nas quais a indiferença quanto ao resultado seja provada nos autos do processo. Recentemente, o STF no julgamento do HC nº 127774, cujo relator foi o Ministro Teori Zavascki, denegou provimento ao mesmo, pois se tratava de uma situação onde ficou comprovada, não só a embriagues, mas também a indiferença do agente ante o resultado por ele produzido. Segundo o relatório de julgamento, trata-se de um acidente envolvendo vítima fatal, no qual o condutor encontrava-se completamente embriagado, imprimindo alta velocidade pela via, além disso, conforme consta da decisão: Infere-se que, tamanho era o estado de embriaguez do denunciado, que após causar a tragédia o mesmo aumentou o volume do som da camioneta, saiu do veículo, encostou-se na carroceria e acendeu um cigarro, como se nada tivesse ocorrido. Ao olhar para a vítima Joaquim, prensada por seu veículo, o denunciado ainda exclamou: ‘É doido. O que esse cara tá fazendo aí? […]” (HABEAS CORPUS Nº 127774, 2015). Deste modo, o HC 127774, foi denegado pelo Ministro Relator, sendo a decisão acompanhada pela 2ª Turma por unanimidade. Neste sentido, além de se tratar de uma conduta cujo resultado poderia ser previsível, e bastante temerária, restou comprovado que o autor do crime não se importava com todo o mal causado, levando uma pessoa ao óbito e ferindo gravemente outra. Este tipo de conduta é altamente reprovável pela sociedade, razão pela qual deve ser severamente punida, lhe sendo imputado crime de homicídio doloso, aplicando o dolo eventual, ainda que já aprovado o novo Código Penal, sendo mantido o texto original que contempla a culpa temerária. Vale dizer, esta não seria uma das hipóteses em que o sentenciado, seria contemplado com a aplicação da lei nova. 7 CONCLUSÃO As grandes transformações pelas quais o mundo vem passando representam grandes desafios para o Direito, pois este, enquanto ciência responsável pelo regramento da existência humana deve sempre acompanhar sua evolução e transformação, para que possa trazer

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respostas satisfatórias às novas exigências que surgem com o tempo. Assim, novas legislações são criadas, e as velhas deixam de vigorar, sempre na esperança de que a mudança será para melhor. Com o anteprojeto do Código Penal não será diferente, contudo este ainda carece de muita discussão nas casas legislativas, pois se trata de um grande rompimento com antigos paradigmas em meio a uma sociedade representada por congressistas retrógados e conservadores que não serão capazes de aprová-lo sem ressalvas. Alguns assuntos polêmicos contemplados pelo projeto, tais como a descriminalização do consumo de drogas, servirão de palco para grandes debates, com argumentação, infelizmente precária, pautada em convicções religiosas e ideológicas, fazendo com que muitos desses temas não cheguem a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, o instituto da culpa temerária não deverá enfrentar muitos obstáculos em sua aprovação, uma vez que este vem como meio termo, capaz de satisfazer aos anseios por uma resposta punitiva mais adequada, sem, por outro lado, subverter a ordem constitucional, conforme vem sendo feito. A culpa gravíssima, ou culpa temerária, poderá surgir no sistema penal brasileiro como uma possível solução jurídica para os crimes de trânsito no que tange à punição. Contudo, o instituto jurídico, apesar da possibilidade de oferecer uma pena mais adequada, ainda assim, não será hábil a realizar mudanças no comportamento das pessoas frente a responsabilidade da condução de veículo automotor. A grande crítica que deve ser feita à inovação jurídica perpassa a ideia de que a punição dissociada da mudança de mentalidade, esta que se passa dentro de um processo de uma educação para cidadania, não serve para nada. A resposta penal é, quase sempre, inadequada para realizar a transformação que a sociedade necessita. Em verdade, o sistema penal busca reprimir a criminalidade por meio da pena, mas este somente conseguiria realizar tal feito, se houvesse uma estrutura capaz de garantir que sempre que um indivíduo transgrida a lei este seria responsabilizado. Em outras palavras, a eficiência da norma penal não está diretamente relacionada com o agravamento da punição, mas sim como a certeza de que esta ocorrerá. Desta forma, do ponto de vista da efetividade da norma jurídica, a culpa temerária será um importante instrumento, capaz de apresentar respostas penal adequada aos casos concretos de crimes culposos. Lado outro, pouca diferença vai fazer no campo da desmotivação da conduta delitiva. Neste caso específico, por se tratar de crime culposo a pena deveria motivar o indivíduo a assumir um dever objetivo de cuidado, que não ocorre até mesmo pelo fato do infrator, muitas vezes, acreditar que o resultado não ocorrerá. Ademais, a culpa gravíssima se aprovada será de grande valia para individualização da pena, de modo a respeitar o princípio da proporcionalidade das penas. Tudo isso é devido ao fato de a culpa consciente não representar resposta jurídica proporcional à ofensa ao bem jurídico, e ainda, o dolo eventual é dificilmente comprovado, sendo que quase sempre é constatado de maneira indevida e arbitrária. A culpa temerária deve ainda, causar grandes e intrigantes debates com relação à possibilidade de seus efeitos retroagirem atingindo situações anteriores a sua vigência. Assim, só o futuro trará as respostas, positivas ou negativas, quanto à aplicabilidade do novo instituto, bem como a forma com que seus efeitos serão externados para a sociedade. E por fim, uma das maiores transformações deste instituto, ocorrerá no campo da segurança jurídica, pois esta segue trazendo uma punição previsível para o cidadão infrator e aplicável pelos tribunais de maneira uniforme, não dependendo da subjetividade de cada julgador. É o que se espera.

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Banca Examinadora: Marcelo Sarsur (Orientador) Ronaldo Passos Braga (Examinador 1) Hebert Soares Leite (Examinador 2)

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A INFLUÊNCIA DA MÍDIA EM DECISÕES CRIMINAIS: uma análise dos limites da liberdade de expressão e do direito à informação diante da imparcialidade do juiz MEDIA INFLUENCE IN CRIMINAL JUDGMENTS: an analysis of the limits of freedom of expression and the right to information before the judge of fairness Fernanda Beatriz de Souza1

RESUMO: A mídia, por ser tratar de um meio de comunicação, às vezes torna-se lesiva, portanto, tem seu direito assegurado na Constituição Federal da República de 1988, podendo informar aos cidadãos todos os fatos. O direito à informação é oriundo da liberdade de expressão. Todavia, os meios de comunicação podem, de forma negativa, influenciar as decisões criminais prolatadas pelo julgador, pois, antes de ser juiz, o magistrado é um ser humano detentor de princípios e ideologias. O dever do juiz é de ser imparcial, mas tal tarefa é a mais árdua de se concretizar, uma vez que o julgador não pode ser influenciado pelas pressões exteriores e a mídia, ao relatar um caso concreto, tem o poder de moldar opiniões, construir conceitos e gerar uma comoção, não só na sociedade, mas no próprio julgador que dela faz parte. PALAVRAS CHAVE: Imparcialidade. Influência. Liberdade de Expressão.

ABSTRACT: The media, being it is a means of communication sometimes becomes harmful, so has their right guaranteed in the Federal Constitution of 1988 and may inform citizens all the facts. The right to information is derived from the freedom of expression. However, the media may negatively influence criminal decisions handed down by the judge, therefore, before the judge, the judge is a human being holder of principles and ideologies. The duty of a judge is to be impartial, but this task is the most difficult to achieve, since the judge can not be influenced by external pressures and the media, to report a case, have the power to shape opinions, build concepts and create a commotion, not only in society, but the judge himself that it is a part. KEYWORDS: Impartiality. Influence. Freedom of Expression.

SUMÁRIO 1 Introdução. 2 Direito Penal e Processo Penal: Abordagem histórica. 3 O Devido Processo Legal. 4 O papel do julgador no Processo Penal e o princípio do juiz natural. 5 Principio da Imparcialidade do Juiz. 5.1 Garantia da imparcialidade. 5.2 Imparcialidade X Neutralidade. 6 A influência da mídia nos tempos passados e atuais. 7 Analise crítica do princípio da imparcialidade do juiz. 8 Considerações finais. Referências. Anexo.

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO O presente Trabalho de Conclusão de Curso tem como objetivo a análise do princípio da imparcialidade do juiz, o seu papel no desenvolvimento do processo sob a ótica do direito à informação, como também investigar o impacto que a interferência da sociedade e da mídia podem causar nas decisões criminais. Além disso, será realizado uma crítica sobre até que ponto o juiz respeita o princípio da imparcialidade, quando este tem que julgar um fato que causou grande concussão na sociedade, uma vez que o julgador é um ser humano racional com princípios e opiniões próprias. Também será abordado o processo penal e seus respectivos aspectos, o papel do julgador, o princípio do juiz natural e a repercussão de alguns casos concretos que causaram grande comoção na sociedade. Nessa seara, é importante dizer que o julgador deverá manterse afastado das partes e, assim, faz-se necessário uma análise dos conceitos de neutralidade e imparcialidade com o intuito de verificar se o juiz consegue exercer o seu papel sem interesses nas causas a ele submetidas, tendo, como fim, proporcionar um julgamento sem pressões exteriores ou interferências pessoais podendo se distanciar dos apegos emocionais e atingir sua finalidade, protegendo os princípios processuais e constitucionais das ciências penais. Contudo, surge como problematização a possibilidade de uma influência negativa da mídia, intervindo, indiretamente, nas decisões proferidas pelo magistrado. O mecanismo de pesquisa utilizado para desenvolvimento deste trabalho de conclusão de curso é o dialético qualitativo que denota que os fatos não podem ser analisados fora de uma perspectiva social, perpassando por uma visão e agregação de valores individuais daquele que será julgado. Por fim, tem-se como objetivo entender um pouco mais os fundamentos que o julgador utiliza para encontrar a justiça, sem que a influência psicológica da sociedade possa interferir no momento de o juiz imputar uma decisão, fazendo uma ponderação do direito à liberdade de expressão e o devido processo legal. 2 DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL: ABORDAGEM HISTÓRICA O Direito Penal no Brasil transita por um poder punitivo, descrevendo crimes e atribuindo penas. No que diz respeito ao Direito Processual Penal, este se preocupa no como punir, ou seja, o Processo Penal é o modo na aplicação e execução do Direito Penal. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci, aduz que Direito Penal “É o conjunto e normas jurídicas voltadas à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação” (NUCCI, 2001, p.67). E Processo Penal, segundo o autor supracitado: É o corpo de normas jurídicas com a finalidade de regular o modo, os meios e os órgãos encarregados de punir do Estado, realizando-se por intermédio do Poder Judiciário, constitucionalmente incumbido de aplicar a lei ao caso concreto. É o ramo das ciências criminais cuja meta é permitir a aplicação de vários dos princípios constitucionais, consagradores de garantias humanas fundamentais, servindo de anteparo entre a pretensão punitiva estatal, advinda do Direito Penal, e a liberdade do acusado, direito individual. (NUCCI, 2016, p.73) O primeiro Código Processual criado no Brasil foi o Código de Processo Criminal do Império de 1832, denominado Código de LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Primeira Instância. Todavia, em 1941, houve a revogação do referido Código, com a consequente criação do Código de Processo Penal, o qual se encontra vigente até a presente data. O Código de Processo Penal era um Código autoritário, uma vez que fora inspirado no período em que a Itália passava por um regime fascista. No entanto, na década de 70, o Código de Processo Penal sofreu diversas alterações tornando um Código mais flexível e complacente. Pode-se dizer que a história da criação do Código de Processo Penal, que era um Código severo, tornou-se um código transigente, seja em garantias e/ou entendimentos, e, com o decorrer do tempo, tentam respeitar, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. 3 O DEVIDO PROCESSO LEGAL Aqui, será abordado um princípio constitucional com uma importância crucial para o cumprimento das garantias fundamentais, o princípio do devido processo legal. Todos os cidadãos têm o direito de resolver suas demandas e/ ou conflitos diante o poder judiciário, não sendo negado o acesso à justiça, é o que dispõe o artigo 5º, inciso XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Todavia, para que o poder judiciário possa analisar e solucionar o pleito, é necessário que o julgador, ao exercer sua função e praticar os atos processuais, siga diversas regras que assegurem o correto desempenho do processo. Ruy Portanova apresenta em seu livro, Princípios do Processo Civil, que o princípio do devido processo legal tem o intuito de validar a jurisdição e abstrair uma finalidade jurídica, social, moral e acessível para o processo. (PORTANOVA, 2001) Dessarte menciona-se que o princípio do devido processo legal está positivado no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal da República de 1988, no título “Direitos e Garantias Fundamentais”, aduzindo que: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O devido processo legal engloba a coerência, a finalidade e a justiça das leis, podendo o cidadão requerer, diante o juiz, que este não exerça o seu papel de maneira aleatória privando-o de sua liberdade ou bens, garantindo, também, a justiça por meio de atos privativos do processo diante um caso concreto. Nos dizeres de Cândido Rangel Dinamarco, o devido processo legal “constitui um vínculo auto limitativo do poder estatal como um todo, fornecendo meios de censurar a própria legislação e ditar a ilegitimidade de leis que afrontem as grandes bases do regime democrático. ” (DINAMARCO, 2004, p.245) E, complementando o conceito abordado por Cândido Rangel Dinamarco, referente ao Devido Processo Legal, o autor Paulo Henrique dos Santos Lucon, aduz que: É relevante que se desenrole, garantindo o ‘devido processo legal’, mas não apenas a formal igualdade das partes, senão a real e efetiva, isto é, a substancial igualdade, graças a qual se criam os pressupostos para que se alcance não só o resultado formalmente adequado, mas a melhor e mais justa solução, eis que a ideia de Justiça real, cada vez mais, se insere concretamente na elaboração das argumentações jurídicas. (LUCON, 1999, p. 100) Ambos os autores compreendem que o devido processo legal é primordial para limitar os atos praticados pelo juiz no exercício de sua função, pois o princípio em questão evita que o magistrado haja de forma inconstitucional, ou seja, contrário ao que dita as leis, pos-

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suindo sempre a finalidade de buscar a justiça com base naquilo que o legislador traçou. A Constituição da República de 1988, mais precisamente o art. 5º: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, lista nos seus incisos quais os procedimentos e garantias para se ter um processo justo. No que diz respeito ao processo penal, os incisos LV, LVII, LVIII, LX, LXI, LXIII, LXIV, LXVI, LXXV, entre outros do artigo supracitado, regulamentam o direito de defesa e seus respectivos recursos, a presunção de inocência do acusado, os prazos processuais penais, a vulgarização dos atos processuais, o modo como se deve realizar coerção ou prisão do acusado, o direito a uma defesa técnica e do interrogatório, a vedação à incomunicabilidade, o direito à liberdade provisória etc., regras essas que devem ser observadas para respeitar o devido processo legal. Dessa maneira, Eduardo Kochenborger Scarparo, em sua tese de mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Considerações atuais sobre o devido processo legal, atesta que: O devido processo legal brasileiro não pode ser compreendido com simples remissão às escolhas estadunidenses porque somente têm significado e força normativa na medida em que busca significados em sua própria cultura. Busca-se com a inserção do devido processo legal no seio da Constituição Federal o zelo pelas garantias e pelos modelos de defesa e ação do cidadão frente ao poder público, compreendido na estrutura e realidade nacional. O ajuste necessário ao instituto no Brasil não deve partir de premissas construídas na cultura americana, mas sim ser o fruto de uma reflexão voltada às carências e anseios tipicamente brasileiros, orientando a realização de um processo justo, ou melhor, em harmonia com as suas particularidades, com a sua cultura e beleza. (SCARPARO, 2009, p. 15) No entanto, conclui-se que o devido processo legal representase como um montante de garantias constitucionais e sociais, proporcionando às partes o direito a ter um julgamento justo, uma sentença adequada, e, principalmente, uma segurança jurídica dada por um órgão resoluto em normas, sendo este, confiável e imparcial.

obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (RICA, 1969) E o artigo 5º, nos incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal de 1988, aduzem que: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção” (Art.5º XXXVII) e “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (Art. 5ºLIII). Nas palavras de Grinover, a existência de juiz natural é uma premissa do exercício da jurisdição, como também, torna-se um pressuposto para que a relação processual possa se concretizar. (GRINOVER, 1983) Melhor dizendo, o juiz natural é aquele dotado de jurisdição que tem competência material, constitucional e seja, principalmente, garantidor da justiça, motivo pelo qual o juiz é considerado um ser precípuo para o processo. Carreira Alvim, em seu livro Elementos de Teoria Geral do Processo, descreve o princípio do juiz natural da seguinte forma: Juiz natural, juiz legal ou juiz constitucional. Este princípio significa que todos têm, em igualdade de condições, direito a um julgamento por juiz independente e imparcial, segundo as normas legais e constitucionais. Juiz natural é o que tem a sua competência firmada pelas normas legais, no momento em que ocorre o fato a ser apreciado e julgado. É aquele previsto na Constituição (daí, juiz constitucional), investido na função de julgar. (ALVIM, 1997, p.63 e 64) Pode-se dizer que o princípio do juiz natural regulamenta-se, por meio dos dispositivos legais do papel do julgador, e, assim sendo, Aury Lopes Júnior, diz que “a função de um juiz é atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal. ” (JÚNIOR, 2007, p.119) Corroborando com o entendimento supracitado, Ivone da Silva Barros, em sua dissertação de mestrado, menciona que: O juiz assume papel de maior relevância no cenário jurídico brasileiro. Somente o julgador quando da prolação de uma decisão em consonância com os preceitos constitucionais atribuirá eficácia aos direitos e garantias fundamentais, zelando pelo Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. (BARROS, 2008, p. 10).

4 O PAPEL DO JULGADOR NO PROCESSO PENAL E O PRINCIPIO DO JUIZ NATURAL O processo penal é visto como um instrumento punitivo, e, garantidor da atribuição de penas àqueles que praticam crimes. Sendo assim, a presença de um julgador é primordial para garantir a efetivação do processo e do cumprimento de suas garantias constitucionais. Pois bem, antes de adentrar no tema propriamente dito, faz-se necessário refletir se a forma com a qual o juiz exerce sua função é inteiramente neutra, sem interesse nas causas em que estão pendentes de julgamento, e se realmente o papel do julgador atribui uma segurança jurídica a todos os cidadãos. O papel do julgador está enfatizado no princípio do juiz natural, e o mesmo está regulamentado no Pacto de São José da Costa Rica, datado de 1969, no título “Das Garantias Judiciais”, no art. 8º, nº 1, e também em dois incisos do art. 5º da Constituição Federal da República de 1988. De acordo com o Pacto de São José: Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

No entanto, um dos objetivos do presente trabalho é avaliar o papel do julgador diante o processo, bem como realizar uma profunda análise se o seu papel está sendo cumprido de acordo com o princípio constitucional do devido processo legal, e se a sua forma de atuação condiz com o que a lei estabelece. Vale ressaltar que o juiz, como qualquer outro ser humano, se sujeita as informações prévias referentes os casos de maiores repercussões, podendo por inúmeros meios ser influenciado. Nesse contexto, vale mencionar que o juiz encontra-se ligado a preconceitos, preceitos e crenças, que pode aplicar para averiguar os fatos, tornando-se ilusório não associá-los ao caso a ser julgado. Leon Festinger, psicólogo da cidade de Nova Iorque, desenvolveu a teoria da Dissonância Cognitiva, e por esta, Festinger acreditava que é totalmente desconfortante manter uma divergência de entendimento do caso, e do que realmente se confia. Entretanto, este deve ser o impulso para mudar sua atitude e pensamento. De acordo com o psicólogo, uma das formas de se abstrair a dissonância cognitiva é tentar obter novas percepções e aprendizados que abrangerão o conhecimento, podendo ocasionar a redução da divergência do pensamento e dos conceitos preexistentes. Desta feita, as pessoas deverão encontrar a similitude entre o seu conheci-

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mento e o seu ponto de vista para reprimir qualquer contradição entre ambos com objetivo de adquirir um equilíbrio de pensamento. (WEDY e LINHARES, 2016) O Código de Processo Penal, no Título VIII do capítulo I, alude as principais regras do julgador, especificamente, no artigo 251 do referido código, impondo que: “Ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos…”. Isto é, o juiz deverá promover, nas palavras de, Renato Marcão, a solução dos conflitos de forma regular, e, conforme o que é dito pelo autor ao citar Alfredo de Marisco, o processo é um litígio entre as partes, no qual o juiz está sob a responsabilidade de solução. (MARCÃO, 2016. p. 882) Por fim, no que se refere à atividade do juiz, Eduardo Espínola Filho, observou que “a atividade do juiz é vinculada à observância de normas precisas, fixadas pela lei processual, e para cujo cumprimento esta concede fiscalização e meios de impugnação. ” (FILHO, 1955. p. 232). Relacionando a teoria da Dissonância Cognitiva com o papel do julgador e o posicionamento dos autores supracitados, conclui-se que incube ao juiz, no momento de examinar o caso concreto perante as diversas mudanças sociais, políticas e econômicas, apartar-se das pressões exteriores, observando o teor das leis, valendo-se da sua imparcialidade, equilibrando o seu conhecimento e a sua opinião e certificando-se de que os atos processuais serão realizados na sua completude.

Acerca dos fatos suscitados, o italiano Liebman, ditado pelo professor Afrânio Silva Jardim, no livro Direito Processual Penal, menciona que no processo penal moderno há um enorme obstáculo em harmonizar o princípio da imparcialidade do juiz com a verdade real ou material, no sentido de que o papel exercido pelo magistrado pode psicologicamente alvejar a indiferença. (JARDIM, 2001) O juiz imparcial é aquele juiz independente, que tem como dever, tratar as partes de forma igual, não realizando juízo de valor do autor e/ou réu, para garantir a justiça e não ser oprimido política e funcionalmente. A independência do juiz origina-se da separação de poderes e, nesse contexto, Márcia Walquiria dos Santos, Procuradora do Estado de Florianópolis, em seu artigo científico Separação de Poderes: Evolução até a Constituição de 1988 – Considerações realiza alguns apontamentos à teoria de Montesquieu atinando que: “Foi na primeira República que convencionou que fossem os poderes: harmônicos e independentes, onde a separação dos mesmos era essencial à liberdade, e fixou que o poder detém o poder”. (SANTOS,1992). O princípio da imparcialidade tem como intuito a busca da verdade, e esta tem a peculiaridade de ser encontrada na justiça. Todavia, há que se dizer que a mesma só pode ser concretizada desde que não haja influência psicológica da sociedade no momento em que o juiz vai imputar uma decisão. Corroborando com este entendimento, Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco entendem que:

5 O PRINCIPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ Nada obstante, o princípio da imparcialidade do juiz além de assegurar as garantias fundamentais e se submeter ao princípio do juiz natural. Tal pressuposto faz valer o princípio do devido processo legal, uma vez que este último é o alicerce sobre o qual todos os outros princípios se sustentam. O princípio da imparcialidade do juiz abrange diversas áreas jurídicas, tais como a cível, trabalhista, administrativa e penal, que é o destaque deste trabalho de conclusão de curso. Por ser um pressuposto de validade processual, tal princípio está exposto no artigo X da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proferindo que: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. E, por mais que não esteja explícito, é uma garantia constitucional, além de ser também um requisito imprescritível para garantir o processo propriamente dito. A imparcialidade do juiz é um dos atributos mais árduos de se respeitar, tendo em vista que proíbe o juiz agir durante o processo e dar uma sentença, de acordo com suas próprias razões, ideologias e, principalmente, conforme os apegos sociais e opiniões públicas, zelando por um processo probo e garantindo a dignidade humana. Neste sentido, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart dizem que: Com o Estado Social intensifica-se a participação do Estado na vida das pessoas e, consequentemente, a participação do juiz no processo, que não deve mais apenas estar preocupado com “as regras do jogo”, cabendo-lhe agora zelar por um “processo justo”, capaz de permitir: a justa aplicação das normas de direito material; a adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório real e não somente formal; e a efetividade da tutela dos direitos, com um maior zelo pela ordem do processo. (MARINONI e ARENHART, 2003. p.59) LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso, têm elas o direito de exigir um juiz imparcial; e o Estado, que reservou para si o exercício da função jurisdicional, tem o correspondente dever de agir com imparcialidade na solução das causas que lhe são submetidas. (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 1995.p.60). O mesmo entendimento tem o autor Rodrigo da Silva Pontes, em sua tese de monografia, O Princípio da Imparcialidade do Juiz, apresentada para Universidade Federal do Paraná em 2007, conceituando o princípio da imparcialidade do juiz da seguinte forma: O julgador imparcial deve ser entendido como aquele que julga preocupado com o resultado do processo, sempre buscando que nele ocorra a realização da justiça, adotando uma postura equidistante das partes e não julgando a causa em interesse próprio. (PONTES, 2007. p.30). Por fim, no que diz respeito ao princípio da imparcialidade do juiz, este é um princípio garantidor da justiça, no entanto, é direito das partes requerer um juiz imparcial, como também é dever do juiz ser imparcial para solucionar conflitos que lhe é submetido.

5.1 Garantia da imparcialidade Inicialmente será abordado o posicionamento do autor Rodrigo da Silva Pontes, alegando que o modo de garantir a imparcialidade se dá através dos procedimentos que proíbem o envolvimento do juiz para com as partes. (PONTES, 2007) Em razão disso, existem algumas regras que fazem com que a imparcialidade do juiz seja garantida. Estas regras têm o propósito evitar algum interesse do juiz, seja ele subjetivo ou objetivo, bem como que seu papel de julgador tenha sua finalidade alcançada. Motivos estes pelos quais se fez necessário ao legislador, criar normas garantidoras da imparcialidade.

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No ordenamento jurídico brasileiro, estão previstas as regras de impedimento e suspeição que foram feitas para coibir o juiz de agir de forma parcial diante as causas processuais. Impedir significa proibir algo, ou seja, o magistrado fica vedado de atuar em determinada situação. Pontes Miranda aduz sobre o impedimento da seguinte forma: “Quem está impedido, está fora de dúvida, pela enorme probabilidade de ter influência maléfica para a sua função. ” (MIRANDA, 2002.p.94) Noutro lado, suspeição é desconfiança. O juiz, em razão de determinadas circunstâncias, não pode exercer mais a função jurisdicional. Vale ressaltar que a suspeição é uma nulidade relativa, e se as partes não arguirem dentro do prazo, sofrerão os efeitos da preclusão e o juiz poderá atuar normalmente no processo. Certificando do que foi dito, o autor mencionado, Pontes de Miranda, interpreta que “quem está sob a suspeição está em situação de dúvida de outrem quanto ao seu bom procedimento. ” (MIRANDA, 2002.p.94) Uma das regras para assegurar a imparcialidade no processo penal está manifestada no título “Das incompatibilidades e impedimentos” no capítulo III, no art. 112 do Código de Processo Penal, ao prever que os membros do Ministério Público, serventuários e funcionários da justiça entre outros, serão proibidos de atuarem no processo quando declarados incompatíveis ou suspeitos. Neste sentido, outras duas regras importantes estão previstas nos artigos 252 e 254, ambos do Código de Processo Penal, no título VIII, capítulo I “Do juiz”. No artigo 252 é apresentado um rol taxativo que pode impedir a atuação do magistrado e que são decorrentes do juiz e do litígio propriamente dito. Já o art. 254 demonstra as hipóteses exemplificativas de suspeição entre as partes ou até mesmo pela matéria a ser julgada. Portanto, não é suficiente que o juiz tenha somente a capacidade de demonstrar ser totalmente imparcial, deve também não causar desconfiança nas partes dando-as motivos que possam interferir no julgamento. 5.2 Imparcialidade X Neutralidade Como já visto, a imparcialidade é um instituto garantidor da justiça, que tem como objetivo fazer com que o juiz possa abstrair das pressões exteriores e dos seus pré-conceitos, para chegar à verdade real e atribuir uma sentença justa baseando-se nos fatos e provas do processo, ou seja, o juiz atuará em todo momento do processo. Além de ser imparcial, é um ser independente que é um requisito para garantir a imparcialidade, vez que o juiz tem a finalidade de resguardar a transparência do julgamento. A palavra imparcial, no Dicionário da Língua Portuguesa está conceituada como: “1. Que não é parcial. 2. Que não toma partido ou favorece um dos lados numa disputa ou controvérsia; neutral; equitativo. 3. Que coloca a justiça acima de quaisquer interesses; isento; reto; justo. ” Nesse contexto, Plauto Faraco de Azevedo manifesta-se: Para que a imparcialidade, que consiste no abrirse o juiz cuidadosa e honestamente às versões em confronto no processo, se possa configurar, é indispensável que possam as partes exprimi-las de modo tão cabal quanto possível, o que não se pode dar exaurindo-se seu exame de igualdade formal dos interesses em confronto. (AZEVEDO, 1998, p. 150.) No que diz respeito à neutralidade, estamos diante uma situação em que o juiz é cidadão social e busca não se manifestar durante o processo, ou seja, o juiz não tem envolvimento para com as partes, LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

é um ser vago. Neutro está definido no Dicionário de Língua Portuguesa organizado pela “Porto Editora, 2011” como: “1. Que não toma partido; neutral, imparcial 2. Diz-se do país que não participa em conflitos existentes entre outros países. 3. Indefinido, vago, impreciso, 4. Indiferente, insensível” Em específico, os itens 1 (um) e 3 (três) do conceito supracitado, trazem uma real visão do que é ser neutro, e o papel do julgador, como visto no tópico quatro, não é um ser impreciso e/ou insensível, mas sim justo e imparcial. Teresa Arruda Alvim Wambier, ao discorrer sobre a neutralidade entende que: De fato, não raramente deve o juiz agir (positivamente) para restabelecer o equilíbrio entre as partes, para que estas possam litigar em condições de real igualdade. Fala-se em neutralidade no sentido de não envolvimento consequentemente não favorecimento de uma das partes, em especial, em detrimento da outra. (WAMBIER, 2001. p. 106) Nesse contexto, a palavra “neutro” remete-se à imparcial, todavia, ser imparcial não é ser neutro. Ninguém está isento de sofrer interferências políticas, culturais e ideológicas da sociedade. Por diversas vezes as atitudes individuais e/ou coletivas espelham em opiniões que já havíamos construído. 6 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NOS TEMPOS PASSADOS E ATUAIS É notadamente sabido que a mídia está cada dia mais presente na vida das pessoas através dos meios de comunicação de maneira a ter um controle social. Não obstante, a sociedade e o direito penal ganharam uma proximidade por meio dos jornais, revistas, programas de noticiários, rádio, internet etc. As pessoas passaram a ser influenciadas e criar opiniões, moldar os preconceitos e ditar regras no que diz respeito ao conceito de legalidade e ilegalidade, no que é justo ou que não é, e, principalmente, opinar se os juízes conseguem buscar a justiça conceituada por cidadão ao prolatar uma sentença de um caso concreto que causou grande impacto e comoção na sociedade. Assim, temos a liberdade de expressão como preceito resguardado pela Constituição da República de 1988, no seu artigo 5º, inciso XIV, no capítulo “dos direitos e garantias fundamentais”, abordando que todos têm o direito à informação, podendo ser sigilosa sua fonte quando diante de atividade profissional; logo, todos os meios de comunicação têm o direito de informar e a sociedade de ser informada. Ana Lúcia Menezes Vieira diz que “a expressão máxima do livre pensar é poder propagar, por quaisquer meios, opiniões, ideias e pensamentos. A liberdade de expressão é consequência da liberdade de pensamento, é a exteriorização desta. ” (VIEIRA, 2003.p. 24). Entretanto, quando a mídia relata um fato delituoso, na maioria das vezes faz um juízo de valor do acusado, denominando-o como bandido, criminoso, marginal, delinquente, malfeitor, entre outros, ocasionando uma grande lesão ao princípio da inocência e demais garantias constitucionais, de forma a induzir a sociedade como se o acusado já tivesse sido julgado, pois o juiz, como um ser humano e exercendo um papel de se fazer justiça não há de se pensar contrário ao que já foi imposto. Do mesmo modo, o professor Carlos Magalhães, em seu artigo Teorias da Criminalidade: uma abordagem crítica, entende que: Criminosos são pessoas que estão procurando

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internacionalmente alcançar seus objetivos por sem fazer muitos esforços. Esse fato, não os diferencia dos não criminosos. O problema se torna mais complexo na medida em que qualquer sociedade controla de alguma maneira o comportamento de seus membros de acordo com os interesses da coletividade. (MAGALHÃES, 2015) Assim sendo, não é porque se tem a liberdade de expressão como garantia constitucional que não precisa ter limite ao transmitir as informações à sociedade. Diante disso, surge a grande problemática do presente trabalho: Até que ponto a mídia pode interferir de forma negativa nas decisões criminais? Devemos levar em consideração que um juiz, como qualquer outro ser humano, está sujeito a ser influenciado pelos meios de comunicação, uma vez que este tem seus próprios ideais, podendo a qualquer momento ser moldado e constituir novas opiniões, todavia, conforme já abordado no item 5 e 5.1, o juiz deverá ser imparcial. De acordo com o site (noticias.bol.uol.com.br), pode-se verificar alguns casos retratados pela mídia, vide anexo, que causaram grande choque na sociedade desde os tempos passados até os dias atuais.

realizado pela Universidade Federal do Paraná, os magistrados embasam as suas decisões majoritariamente das suas experiências e prospecções pessoais em detrimento da teoria em si. Ainda segundo o referido estudo, em vez de aplicar às questões que chegam aos gabinetes, normas e entendimentos pacificados, os juízes tendem a valer-se de convicções e ideologias construídas com as suas experiências pessoais, sociais, econômicas, políticas e filosóficas. Como se observa, a questão é necessária à prática no sentido da análise dos Direitos e Garantias Fundamentais, e ao papel exercido pelo magistrado na imparcialidade do julgamento. Salienta-se ainda, nos dizeres de Ada Pellegrini Grinover, citada por Renato de Lima Brasileiro, em discordância com as posições acima aduzidas: A imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial, sendo o princípio do juiz natural erigido em núcleo essencial do exercício da função. Mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível. (BRASILEIRO, 2013,p. 35)

7 ANALISE CRÍTICA DO PRINCIPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ Para que o processo penal seja justo, não é satisfatório o juiz atuar valendo-se apenas da sua imparcialidade. É essencial que o juiz tenha uma distância das partes sem qualquer interesse no processo. Contudo, estar distante das partes no processo penal não quer dizer que o juiz se manterá neutro, como já abordado. Deve o juiz, ao prolatar uma sentença, basear sempre no princípio da igualdade e da dignidade humana, pois o conceito de imparcialidade abrange muito mais do que as formas garantidoras da imparcialidade, como, por exemplo, as causas de impedimento e suspeição. Para alcançar a justiça, o magistrado deverá observar algumas circunstâncias inerentes à relação processual, sejam elas sociais, econômicas, culturais etc. Ademais, quando verificado os preceitos supracitados, o juiz atestará a sua imparcialidade atuando sempre de forma confiável e a par do Devido Processo Legal. É necessário que as partes acreditam e reconheçam, nas hipóteses de uma sentença favorável como desfavorável, que a causa foi julgada por um juiz, subjetivo e objetivamente imparcial. Em vista disso, mesmo havendo normas de suspeição e impedimento, informa Edgar Bittencourt que na maioria dos julgamentos, o juiz não foge do impulso de colocar um pouco de si na apreciação das proposições jurídicas e das versões do fato. Julgar procura inspirar as abstrações das tendências pessoais, conduzindo ao rumo da compreensão, que é o ponto de partida da justiça. (BITTENCOURT, 2002) Certifica também, o autor Nereu Giacomolli, ao dizer que: É utópico pensar que as regras positivas, a interpretação e seu estudo cientifico possam ser realizados a margem de valores sociais, de paradigmas históricos, filosóficos e psicológicos, ou seja, de forma neutra. Várias teias interferem no ato de julgar, inclusive os processos inconscientes. O mito da neutralidade e da racionalidade pura é rompido por essa gama de interferências. Por isso, não há julgamento neutro, pois o que se projeta no deciestsum também está nas entrelinhas (densidade invisível ao senso comum). (GIACOMOLLI, 2014. p. 234) Reforçando o que fora acima informado, consoante um estudo

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Por fim, como é sabido que o juiz é mero garantidor do Processo Penal, este deveria ser imparcial e demonstrar sua neutralidade na segurança jurídica dos seus atos e decisões, o que não se mostra vero. Nada impede, contudo, que o juiz exerça sua atividade de forma imparcial, ainda que não detenha uma neutralidade axiológica, pois a imparcialidade está ligada ao respeito aos ditames normativo-jurídicos como devido processo legal, ampla defesa, contraditório, fundamentação das decisões judiciais, previsões legais, ritos e prazos processuais. Neste sentido, o autor Eugenio Raúl Zaffaroni indica que: A jurisdição não existe se não for imparcial. Isto deve ser devidamente esclarecido: não se trata de que a jurisdição possa ou não ser imparcial e se não o for não cumpra eficazmente sua função, mas que sem imparcialidade não há jurisdição. A imparcialidade é a essência da jurisdicionalidade e não seu acidente. [...] Aquele que não se situa como terceiro “supra” ou “inter” partes, não é juiz. (ZAFFARONI, 1995. p. 86-91.) No entanto, pode-se dizer que deve o juiz ser imparcial, para que, conforme já mencionado, possa valer a jurisdição, atribuindo a cada cidadão pendente de julgamento um processo justo com imensa segurança jurídica no momento em que o magistrado praticar seus atos. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante dos fatos acima aludidos, restou comprovado que a imparcialidade como princípio garantidor do Estado Democrático de Direito é fundamental para que não haja vícios na decisão magistral. E necessário aduzir, inclusive, que a imparcialidade e equidistância do juiz natural é de extrema importância para se asseverar a segurança jurídica, não permitindo que forças externas intervenham de forma a prejudicar o com andamento do Processo Penal. As partes devem responder única e exclusivamente pelos atos por elas praticados, não devendo a mídia, metro instrumento informativo, igualmente imparcial, fazer juízo de valor acerca de um caso que, mesmo se tivesse acesso aos autos e aos trâmites processuais, não lhe compete argumentar de tal forma que induza os seus interlocutores a um pensamento acusativo, sem ciência da correlação entre tal

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fato e sua real relevância jurídica. É sabido que a responsabilidade do magistrado é social. Dessarte, caso infrinja os regulamentos internos e os dispositivos e princípios legais e infralegais, entre eles, o princípio da imparcialidade, um dos casos possíveis de desaforamento do julgamento e um dos pressupostos primordiais de validade do Processo Penal, o juiz responderá à sociedade. Válido perpetrar, para o bom fechamento deste trabalho, a justaposição de ideias e ideais inerentes aos conceitos jurídicos de independência e imparcialidade. O juiz, pela natureza da sua função, deve ser independente e agir de forma independente, tanto interno, quanto externamente. Por esse conceito de independência, vemos que o magistrado não deve temer ou sequer ter receio da repercussão que os seus atos possam ter. Nessa seara, entende-se que o magistrado não deverá entibiar-se caso as suas decisões sejam contrárias ao juízo de valor feito previamente pela mídia e com a possibilidade (quase irrisória, mas existente) de sofrer represálias por parte da população. Assim, entende-se que a decisão magistral deverá estar atrelada tão somente ao direito e à justa aplicação das normas. Nada obstante, cumpre dizer que o fato das decisões do juiz ser independente não escusa a responsabilização do juiz pelos seus atos quem atentem as diretrizes legais com fundamento no princípio da legalidade. Independência e imparcialidade se comungam, estando, portanto, intimamente relacionadas. Todavia, a despeito da particular correlação, explica o professor José de Albuquerque Rocha: Independência e imparcialidade, embora conceitos conexos, eis que servem ao mesmo valor de objetividade do julgamento, no entanto têm significações diferentes. Enquanto a imparcialidade é um modelo de conduta relacionado ao momento processual, significando que o juiz deve manter uma postura de terceiro em relação às partes e seus interesses, devendo ser apreciada em cada processo, pois, só então é possível conhecer a identidade do juiz e das partes e suas relações, a independência é uma nota configuradora do estatuto dos membros do Poder Judiciário, referente ao exercício da jurisdição em geral, significando ausência de subordinação a outros órgãos. (ROCHA, 1995. p.23) Ademais, conforme suscitado alhures, o conceito de imparcialidade não necessariamente se confunde com o conceito de neutralidade. Em verdade, conforme explanado, não há neutralidade do julgador. Nenhum ser humano está imune às influências ideológicas, políticas ou culturais do meio onde se acha inserido e com o magistrado não haveria de ser diferente. Em assim sendo, a aquiescência do julgador em determinada decisão judicial, apesar de, indiretamente sofrer interferências externas, não deve se embasar ou sofrer pressão da mídia ou terceiros cuja única finalidade é intervir, de forma lesiva, ao bom curso do processo. REFERÊNCIAS ALVIM, Carreira. Elementos de teoria geral do processo. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.p. 63 e 64 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 150 BARROS, Ivone da Silva, dissertação de mestrado. A identidade Física do Juiz no Processo Penal Brasileiro. 2008; p. 10 LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

BITTENCOURT, Edgard de Moura. O juiz. 3. ed. Campinas –SP: Millenium Editora, 2002. p. 164 BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 09 set. 2016 CALDEIRA, Cesar, Mancha na cidade do Rio de Janeiro: a trajetória de um delinquente notável. 2003, disponível em: <https://www. senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/890/R159-20.pdf?sequence=4>. Acesso em: 24 out. 2016 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.p.60 Declaração Universal de Direitos Humanos. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> . Acesso em: 09 set. 2016 DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal, disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/ Del2848compilado.htm>. Acesso em: 09 set. 2016 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. I. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.245 FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva.1957. GIACOMOLLI, José Nereu. O devido Processo Legal. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2014. p. 234 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1992. p.54 JARDIM, Afrânio da Silva. Direito Processual Penal. 2001. 10 ed. rev e ampl. Rio de Janeiro: Forense, p. 40. JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional –– v. I - Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007. p. 119 LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de processo penal. Volume único. Niterói, RJ: Ímpetus, 2013,p.35 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. In TUCCI, José Rogério Cruz e (org.). Garantias Constitucionais do Processo Civil. Homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.p 100 MAGALHÃES, Carlos. Teorias da criminalidade: uma abordagem crítica. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. ed 25. 2015. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=2026>. Acesso em: 07 nov. 2016. MARCÃO, Renato. Código de Processo Penal Comentado; Editora Saraiva; 2016; p. 882

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MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 p.59 MIRANDA, Pontes de. À margem do direito: ensaio de psicologia jurídica. Campinas: Bookseller, 2002.p.94 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial;7º Edição – Editora Revista dos Tribunais 2001. p.67. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal; Capitulo III.1 – 13º Edição – Editora Forense.2016. p.73

de inocência e a busca pela verdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 119. São Paulo: ed RT – 2016. WAMBIER, T.A.A. Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito direito e de ação rescisória: o que é uma das decisões contrária à lei? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.p.106. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 86-91

ANEXO

Pacto de São José da Costa Rica de 1969 1 CASO PRÁTICO: ÔNIBUS 174 PONTES, Rodrigo da Silva. Tese de monografia. O Principio da Imparcialidade do Juiz, Universidade Federal do Paraná, 2007. p.30 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995,p.23 SANTOS, Walquiria dos Santos, Procuradora do Estado de Florianópolis, artigo científico Separação de Poderes: Evolução até a Constituição de 1988 – Considerações SP,1992. p. 15 SCARPARO, Eduardo Kochenborger; tese de mestrado. Considerações atuais sobre o devido processo legal. 2001. p. 15

“Mais dramático caso de sequestro de ônibus no Brasil, o Gávea Central, linha 174, foi tomado pelo sobrevivente da Chacina da Candelária Sandro Barbosa do Nascimento. No dia 12 de junho de 2000, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, Sandro assaltou um coletivo e manteve 11 reféns após ser interceptado por um carro da polícia. Depois de muita negociação com o Bope, o Batalhão de Operações Especiais, o homem saiu com uma arma apontada para a professora Geisa Gonçalves. Tudo era acompanhado ao vivo por horas na televisão quando um soldado resolveu atirar em Sandro, mas acertou em Geisa, de raspão. O bandido matou a professora e acabou asfixiado no carro da polícia. Os policiais foram absolvidos pela morte de Sandro. O caso rendeu um documentário assinado por José Padilha.”. (UOL, 2015) Neste sentido, podemos verificar abaixo um relato da decisão publicado por Cesar Caldeira, no site (senado.leg.br), a respeito do caso.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2006, Disponível em: <https:// ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea.> Acesso em: 24 out. 2016 TIRBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2013, Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br/portal/imprensa/noticias/integra-da-sentenca-julgamento-caso-eliza.htm#.WBeoIPorLIV.>. Acesso em: 24 out. 2016 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2011 Disponível em: <http:// esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.do?paginaConsulta=1&localPesquisa.cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPROC&tipoNuProcesso=SAJ&numeroDigitoAnoUnificado=&foroNumeroUnificado=&dePesquisaNuUnificado=&dePesquisa=990102513092&pbEnviar=Pesquisar.> Acesso em: 24 out. 2016 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO, 2009, Disponível em: <http://portaltj.tjrj.jus.br/cs/web/guest/home//noticias/visualizar/2032?p_p_state=maximized.> Acesso em: 24 out. 2016 UOL. Relembre os 22 crimes que chocaram o Brasil, 2015. Disponível em: <http://noticias.bol.uol.com.br/bol-listas/relembre-22-crimesque-chocaram-o-brasil.htm> Acesso em: 10 out. 2016 VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.p.24 WEDY, Miguel Tedesco; LINHARES, Raul Marques. O juiz e a gestão da prova no processo penal: entre a imparcialidade, a presunção

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A decisão do juiz Mazza foi fundamentada da maneira seguinte: 1..“A prova é cabal e fartamente clara de que o policial Marcelo, ao disparar contra o marginal, o fez em legítima defesa de terceiro. As imagens exibidas na televisão, gravadas em fitas de vídeo anexadas aos autos, e que com cuidado várias vezes observei, mostram que o 1º denunciado disparou para repelir atual e injusta agressão a direito de outrem, pois Sandro estava com uma refém em seu poder, com um revólver apontado para a cabeça dela e o cão da arma puxado para trás. Em nenhum momento, nenhum mesmo, o marginal disse ou se comportou mostrando que iria se render. Ao contrário, durante todo o tempo, inclusive quando desceu do ônibus, dizia que mataria a refém, que estava possuído etc., conforme revelam fls. 25v, 185 e as imagens da TV. 2. Ademais, é importante deixar claro que Sandro era totalmente imprevisível, aparentava estar drogado (embora não estivesse) e já tinha dado várias demonstrações de sua ousadia, desequilíbrio e de que não tinha absolutamente nada a perder. Com efeito, simulou a morte de uma refém, efetuou disparo no para-brisa, tentou dar partida no ônibus com uma refém no colo, exigiu dinheiro, armas e granadas durante as negociações, gerou pânico ao detonar um extintor de incêndio, isso sem contar as diversas ameaças e o terror causado durante mais de três horas. Nessa conjuntura, qualquer um esperaria o pior ao ver o marginal descer do ônibus com a arma apontada para Geisa, que, ressalte-se, já sofria atual e injusta agressão, podendo ser morta a qualquer momento. Aliás, é bom lembrar que, não tendo sido atingido, Sandro caiu, agarrou-se em Geisa e desnecessária e dolosamente efetuou pelo menos dois disparos, os quais atingiram e mataram a refém. Assim, afirmar que Sandro “já não agredia e nem ameaçava ninguém” é CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


equivocado e dizer que estava disposto a se entregar não passa de uma especulação, de uma suposição ou conjectura que não encontra qualquer respaldo nos autos. 3. Entendo, por isso, que a conduta do 1º denunciado, embora seja típica, não foi antijurídica e, consequentemente, também não foram antijurídicas as condutas dos partícipes Soares e Penteado, já que acessórias e irrelevantes para o direito penal quando consideradas isoladamente. ” [grifos no original]. A mídia que esteve tão presente na transmissão ao vivo do episódio será um fator crucial na fundamentação de um último aspecto da decisão judicial. 4. “Sob o ponto de vista do direito processual, este magistrado conhece e concorda com o entendimento de que, em regra, é vedado ao juiz, no juízo de delibação, reconhecer liminarmente uma excludente de antijuridicidade, pois, assim procedendo, impede que o Ministério Público prove a imputação na instrução criminal. Entretanto, em casos excepcionais, como este por exemplo, toda a ação foi filmada e toda a sociedade viu a conduta do marginal e a reação do 1º denunciado. Estas constituem um fato notório e que dispensam qualquer outra prova, pois as imagens registraram e eternizaram o episódio. Assim, por que aguardar o fim da instrução e impor aos denunciados o constrangimento de um processo temerário, fadado ao insucesso, se, antecipadamente, já se tem certeza do deslinde? Seria isso razoável? QUE OUTRA PROVA, MAIS FIEL E VEROSSÍMIL DO QUE A PRÓPRIA CONDUTA DO AGENTE, FILMADA E TRANSMITIDA AO VIVO PARA O MUNDO, PODERÁ O MINISTÉRIO PÚ- BLICO TRAZER?” [grifos no original]. Com a fundamentação acima citada, o juiz Mazza indeferiu o pedido de denúncia por tentativa de homicídio. O Ministério Público recorreu dessa parte da decisão. No recurso em sentido estrito nº 440/00-51, os desembargadores da Oitava Câmara Criminal, por unanimidade, negaram provimento ao recurso. Em seu voto, o relator, desembargador João Antônio, entendeu que Penteado, Ricardo Soares e Marcelo Oliveira Santos estavam no cumprimento do dever, rejeitando dessa forma a denúncia de tentativa de homicídio. Ele ainda considerou que não existe nada no processo que comprove a participação do ex-comandante do BOPE, José de Oliveira Penteado, na morte de Sandro. Na segunda a parte da decisão, o juiz Mazza aceitou a denúncia do Ministério Público pelos fundamentos seguintes: 1. Os fatos foram gravíssimos, assim como graves são todos os homicídios. Ao meu aviso, a gravidade do crime por si só não autoriza a prisão, devendo ser demonstrada de forma concreta a sua necessidade, o que não ocorreu in casu. Ao revés, como também já mencionei na decisão anterior, estaríamos atribuindo à prisão cautelar aspectos de justiça sumária, com irreparável dano à dignidade e à liberdade individual. 2. Por derradeiro, destaco que o MP mostra desconhecer a realidade ao afirmar que a conduta dos réus gerou clamor público e sensação de impunidade no meio social. Uma vez presentes, realmente justificariam a prisão preventiva postulada. Mas, na verdade, o grande clamor que houve Brasília foi com relação à morte de Geisa, jovem atuante na comunidade da Rocinha, o que inclusive deu ensejo a manifestações sociais. A revolta foi tamanha que populares tentaram linchar Sandro no próprio local e provavelmente matariamno ali mesmo se não fosse a ação dos denunciados. A morte dele, como aduz o MP, pode ter ocorrido na forma de execução sumária, como na época medieval, já que estrangulado e morto por asfixia em momento que estava sob proteção do Estado. Fato grave e que, caso seja comprovado, sem dúvida nenhuma exigirá uma punição exemplar. No entanto, não podemos ser hipócritas e afirmar que a morte de Sandro pela polícia tenha causado um

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clamor por parte da população. Ao revés, ninguém chorou a sua morte, sendo que muitos até a aplaudiram, conforme diversas vezes a mídia noticiou. Que a operação policial foi trágica, desastrosa e quiçá criminosa, não há quem conteste, mas sentimentos de clamor e de impunidade, com relação aos réus, simplesmente não existem. O juiz Mazza indeferiu o pedido de prisão preventiva dos cinco policiais, mas acolheu a denúncia do MP contra eles. O indeferimento da prisão preventiva foi objeto de recurso. A decisão da Oitava Câmara Criminal do TJ-RJ manteve o indeferimento do pedido do MP. Nas duas decisões, do juiz Mazza e da Oitava Câmara Criminal, foram rejeitadas as denúncias contra o Comandante da operação, coronel Penteado, pois não havia prova mínima de que incentivara o assassinato de Sandro. Além disso, Penteado não estava presente na viatura policial. No dia 8 de fevereiro de 2002, depois de um ano e meio, foi finalmente aceita a denúncia do Ministério Público contra três dos policiais militares acusados da morte de Sandro. A juíza Maria Angélica Guimarães Guerra Guedes, do IV Tribunal do Júri, decidiu não incluir o nome do motorista do camburão, soldado Paulo Roberto Alves Monteiro, nem o do soldado Luiz Antônio de Lima Silva, que viajava no banco da frente. Os policiais Ricardo de Souza Soares, Flávio do Val Dias e Márcio de Araújo David foram submetidos a júri popular, em julgamento que durou vinte horas a partir das 9h e 45min. do dia 10 de dezembro de 200248. O júri formado por cinco funcionários públicos, uma bibliotecária e um contador absolveu, por quatro votos a três, os policiais. Esse julgamento teve algumas peculiaridades. Primeiro, o advogado de defesa, Clóvis Sahione, abriu mão de testemunhas e exibiu aos jurados o documentário ÔNIBUS 174 (2002), do diretor José Padilha. “O filme mostra tudo. É a verdade”, disse o advogado no debate. O Ministério Público também recorreu a imagens captadas pelas televisões, comentadas por jornalistas. Todas essas imagens retratavam o que se passou no ônibus. Sobre o episódio do estrangulamento de Sandro ocorrido no camburão, essas imagens nada esclareciam, exceto que mostravam que a vítima entrou viva no veí- culo. É questionável se as imagens exibidas ajudaram a acusação. Mas é certo que favoreceram a defesa, que argumentava que era preciso julgar e condenar a vítima da asfixia, e absolver os policiais militares. Segundo, a atuação do Ministério Público orientouse por uma estratégia inusitada. Participaram da acusação dois promotores. Primeiro, a promotora Ana Cíntia Lazary Serour, que acusou os policiais militares de homicídio doloso duplamente qualificado: um crime hediondo que resultaria em uma pena de reclusão de no mínimo 15 anos para os policiais. Sua acusação foi enérgica e bem fundamentada nos laudos periciais, que evidenciavam que a morte ocorrera devido aos efeitos letais de um golpe de jiu-jitsu conhecido por todos no BOPE com “mata leão”. Segundo laudo cadavérico exibido, o estrangulamento ocorreu por tempo superior a 4 minutos. A foto nº 9 exibida aos jurados mostra que as mãos do policial se dirigem ao pescoço de Sandro. A foto localizada na folha 11, também exibida aos jurados, indica que um policial tira a arma e coloca na barriga de Sandro. Os policiais levaram a vítima fatal para um hospital que ficava a 15 quilômetros (Hospital Souza Aguiar), quando havia um outro hospital a cerca de um quilômetro. Por tudo isso, a acusação argumenta que os três policiais tinham o objetivo de executar sumariamente o rapaz desarmado que estava sob custódia. A promotora Ana Cíntia conclui que o caso do estrangulamento evidencia o confronto entre o “império da lei” versus o “império da força”. Houve um homicídio praticado por três policiais “de forma fria e cruel” contra uma pessoa rendida. “Eles tinham domínio total da situação. Mesmo assim, executaram sumariamente Sandro.

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Ele entrou vivo no camburão e saiu morto na porta de um hospital”, afirma a promotora. Pede, por fim, a condenação dos três policiais, pois a absolvição “seria um passe-livre para matar pela Polícia Militar”. A seguir, a promotora apresenta de forma reverencial o promotor e professor de direito Afrânio Silva Jardim, que foi convidado por ela para participar da acusação e fazer considerações sobre o Direito e a Justiça. Ocorre, então, uma reviravolta no encaminhamento da acusação que gera perplexidade. Primeiro, porque o promotor se expressa como se estivesse ministrando uma aula, meio teórica e tentativamente prática, sobre o “uso alternativo do direito”. Segundo, porque ele expõe uma “proposta” aos jurados e à juiza que não é claramente compatível com a acusação da promotora Ana Cíntia. De fato, o promotor Afrânio Jardim, com sua autoridade professoral, desclassifica os fatos delituosos previamente apresentados no libelo como “homicídio doloso duplamente qualificado” para um “homicídio privilegiado”, no qual os policiais teriam agido “sob domínio de violenta emoção”. Esse exercício de desclassificação e reinterpretação dos fatos visava, segundo o promotor, a obter uma proposta que produzisse uma “decisão razoável”: uma condenação para os policiais por homicídio doloso privilegiado, com uma pena de reclusão de 4 anos em regime aberto. “Justo é condenar mas não botar na cadeia”, afirma o promotor que pretende efetivamente fazer Justiça. A “proposta” do promotor veio em má hora, apesar de ter mérito como “ajuste equitativo”. Pode ser que os dois promotores tivessem imaginado que estavam expondo, no libelo inicial, a versão “dura lex sed lex” do Ministério Público. E depois, oferecendo a “versão alternativa”, humanista e progressista. Porém, a estratégia peca pela ambiguidade. Melhor teria sido que a acusação se apresentasse com uma única promotora de Justiça que viesse, desde o início, com a “proposta” preferida. Seria uma opção plenamente regular e justa. A sustentação do libelo, e depois sua modificação pela “proposta” alternativa, por dois promotores enfraqueceu a tese de que se queria uma condenação efetiva. Foi, aliás, como o promotor sugestivamente concluiu sua intervenção inicial no debate: “E daí? Para se fazer justiça se beneficia os réus”. O advogado de defesa, Clóvis Sahione, frisou na abertura do debate que o promotor Afrânio Jardim não havia sustentado o libelo e que dera uma alternativa ao júri que se aproximava de um argumento de defesa dos três policiais. Habilmente, o advogado fortaleceu uma intransigente argumentação pela absolvição dos policiais, baseado nos pontos seguintes. Primeiro, “quem está sendo julgado hoje é Sandro”, afirmou. Esse filão expositivo e acusatório do advogado rendeu as frases mais bizarras e preconceituosas do debate: “Sandro era a Morte dentro do ônibus”. “Ele ficava enfiando o revólver sujo, imundo, engatilhado, na boca da moça; se encostando nela”. Sandro é o “demônio personificado”; é “irrecuperável”. “É um podre, é um mal, é um demônio”. A afirmação da promotora de que “Sandro é um ser humano e deve ser respeitado” foi rejeitada com veemência pelo advogado. “Ele não é um ser humano. É um mal, um endiabrado, um sujo”. Esse ponto irritou profundamente o promotor Afrânio Jardim, e deu início a um dos inúmeros apartes que visavam assegurar que a vítima fosse minimamente reconhecida como uma pessoa humana perante os jurados, e não assemelhada a um “animal ou uma coisa”. O segundo ponto da argumentação do advogado de defesa era que os policiais encarnavam o Bem. Eram os defensores de uma ordem que precisava ser restaurada com a eliminação dos bandidos como Sandro. “Bandido bom é bandido morto. Alguns defendem essa tese. Eu não a defendo. Mas nesse caso do Sandro...”, continuava Clóvis Sahione. Os policiais eram

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também apresentados como excelentes profissionais, dedicados e premiados. O capitão Ricardo Soares, em particular, havia prendido os temíveis bandidos Escadinha e Orlando Jogador. O terceiro ponto era a sustentação de negação de autoria do homicídio por asfixia pelos policiais. Sandro “sufocou-se”. O advogado chegou a exibir um vídeo em que o perito Roberto Blanco defende a tese de que uma pessoa pode asfixiar-se sozinha caso esteja agitada durante a imobilização. O quarto ponto era a necessidade de se mandar um recado claro para os bandidos mediante a absolvição dos policiais. “Temos, de um lado, Sandro e os marginais, de outro, esses homens (PMs) e a sociedade. Se eles forem condenados, só os marginais baterão palmas”, afirmou Sahione. Na tentativa de afirmar sua “proposta”, a Promotoria solicitou à juíza Maria Angélica Guimarães Guerra Guedes que os policiais fossem reinterrogados. Os réus, orientados por Clóvis Sahione, recusaram-se a responder. A absolvição dos três policiais militares, por quatro votos a três, pelo Conselho de Sentença será, ainda por muito tempo, alvo de interpretações sociológicas. Porém, o relato dos acontecimentos no Tribunal de Júri mostra que as alternativas, de fato, apresentadas aos jurados visavam proteger os policiais da pena de reclusão. A promotoria sugeriu a pena de quatro anos em regime aberto. A defesa sustentou a absolvição dos réus. O poder de punir dos policiais, inclusive por meio de execução sumária, foi socialmente referendado na absolvição dos réus. Esse foi o significado atribuído pelo advogado de defesa ao julgamento, e bem compreendido por aqueles que se pronunciaram sobre o resultado do julgamento. O promotor Afrânio Jardim recorreu, em plenário, pedindo a anulação do julgamento dos policiais militares pelo júri popular. Afinal, existe forte prova técnica de que Sandro foi asfixiado. Ele não se sufocou simplesmente durante a imobilização pelos policiais como argumentou seu advogado de defesa. (CALDEIRA, 2003) Nesse contexto, observa-se que, a decisão prolatada pelo Tribunal do Júri e ratificada pelo juiz Mazza, conforme já citado no relato, fez que com a verdade real dos fatos ficassem reprimida por um temor coletivo e por uma vontade social de impor um castigo. 2 CASO PRÁTICO: SUZANE RICHTOFEN “Suzane Louise Von Richthofen mandou matar os próprios pais na madrugada do dia 31 de outubro de 2002 no Brooklin, bairro nobre de São Paulo. Os assassinos foram Daniel e Christian Cravinhos, sendo o primeiro deles namorado de Suzane. As famílias não aceitavam o relacionamento, segundo dizem, e o trio arquitetou um plano para simular latrocínio, roubo seguido de morte, com o objetivo de receber a herança de Manfred e Marísia von Richthofen. Os criminosos foram condenados. Em março deste ano, a Justiça de São Paulo oficializou a exclusão de Suzane da herança dos pais, que ficará apenas com o irmão, Andreas Albert von Richthofen. ” (UOL, 2015) Como demonstrado acima, abaixo segue o relatório e o voto proferido pelo Ministro Nilson Naves, do Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial de número 871.4943, para que possamos aprofundar mais no caso em questão.

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4.In casu, insurge-se a defesa contra decisão do Tribunal de Justiça paulista, que, por maioria, negou provimento ao recurso em sentido estrito interposto contra a sentença de pronúncia, pretendendo o afastamento das qualificadoras do motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa. 5. Ocorre que a recorrente já foi submetida a julgamento pelo Colegiado Popular, sobrevindo sentença, no dia

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22/07/2006, que a condenou à pena total de trinta e nove anos de reclusão e seis meses de detenção, como incursa nos artigos 121, § 2º, incisos I, III e IV (por duas vezes), e 347, parágrafo único, c/c 69, todos do Código Penal, diante do que, esvaziado o pedido, restou prejudicado o presente recurso especial. Diante do exposto, opino pelo não conhecimento do recurso. (STJ, 2006)

De acordo com os autos de número 0251309-33.2010.8.26.0000, a sentença proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de recurso, impõe que: 9. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sentença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas: a) coréu ALEXANDRE ALVES NARDONI: - pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, agravado ainda pelo fato do delito ter sido praticado por ele contra descendente, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final, art. 13, parágrafo segundo, alínea “a” (com relação à asfixia) e arrts. 61, inciso II, alínea “e”, segunda figura e 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a “sursis”; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMIABERTO, sem direito a “sursis” e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. B) co-ré ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ: - pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final e art. 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a “sursis”; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMIABERTO, sem direito a “sursis” e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo. 10. Após o trânsito em julgado, feitas as devidas anotações e comunicações, lancem-se os nomes dos réus no livro Rol dos Culpados, devendo ser recomendados, desde logo, nas prisões em que se encontram recolhidos, posto que lhes foi negado o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão. 11. Esta sentença é lida em público, às portas abertas, na presença dos réus, dos Srs. Jurados e das partes, saindo os presentes intimados. (TJSP,2011)

3 CASO PRÁTICO: MORTE DE JOÃO HÉLIO “O dia 7 de fevereiro de 2007 ficou marcado para sempre nos brasileiros, após o brutal assassinato de um menino de seis anos. João Hélio Fernandes foi arrastado por sete quilômetros durante um assalto no Rio de Janeiro, pois não conseguiu sair do carro da família, roubado naquele momento. Cinco pessoas foram condenadas pelo crime, sendo uma delas adolescente. João Hélio estava com a mãe, Rosa Cristina Fernandes, e a irmã Aline, de 13 anos.”. (UOL, 2015) De acordo com a notícia publicada pela assessoria de imprensa no portal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 28 de abril de 2009, o Tribunal, ao analisar o recurso de apelação dos envolvidos, decidiu que: A 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio manteve nesta terça-feira, dia 28, a sentença contra os quatro envolvidos na morte do menino João Hélio Fernandes Vieites, cujo corpo foi arrastado por ruas da Zona Norte do Rio, em 7 de fevereiro de 2007. Por unanimidade, os desembargadores rejeitaram o recurso de apelação de Diego Nascimento da Silva, Carlos Eduardo Toledo Lima, Carlos Roberto da Silva e Tiago Abreu Mattos. Em 30 de janeiro do ano passado, o grupo foi condenado pela 1ª Vara Criminal de Madureira a penas que vão de 39 a 45 anos de prisão em regime fechado. Ao recorrerem da sentença, os advogados dos acusados alegaram haver nulidades no processo, como o cerceamento de defesa de seus clientes, suspeição da juíza que julgou o caso e a ausência de fundamentação da sentença. Tentaram ainda desclassificar a imputação de crime de latrocínio (roubo seguido de morte - artigo 157, § 3º, do Código Penal) para roubo simples. Todos os pedidos, porém, foram julgados improcedentes. De acordo com o relator do processo, desembargador Francisco José de Asevedo, o pedido da defesa para absolvição dos réus, sob o argumento de uma suposta falta de provas, é absurdo e sem fundamento. Segundo o relator, não há a menor dúvida da participação de todos os acusados no crime. Da mesma forma, o desembargador classificou de infundada a suspeição levantada contra a juíza Marcela Assad Caran, que proferiu a sentença. “A pena foi devidamente aplicada e não há nenhuma retificação a fazer”, disse. (TJRJ, 2009)

5 CASO PRÁTICO: GOLEIRO BRUNO “Eliza Silva Samudio desapareceu em 2010, com 25 anos. Eliza era amante do goleiro Bruno Fernandes, do Flamengo, apontado como autor do crime, e teria aceitado um convite do jogador para ir do Rio de Janeiro a Minas Gerais para visitar um sítio. Nunca mais foi vista em público. Bruno foi preso e condenado a 22 anos e três meses por assassinato e ocultação de cadáver, além do sequestro do filho Bruninho, que teve com Eliza. Outros condenados por participação no crime foram Marcos Aparecido dos Santos, conhecido como Bola; Fernanda Gomes de Castro, ex-namorada de Bruno; Wemerson Marques, o Coxinha; Elenilson da Silva; e Luiz Henrique Ferreira Romão, o Macarrão. Um livro conta a história do crime.” (UOL, 2015) Nada obsta mencionar, como feito nos casos supracitados, à sentença na íntegra publicada pela imprensa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, prolatada pelo Tribunal do Júri, e ratificada pela Juíza Marixa Fabiane Lopes, aduzindo que:

4 CASO PRÁTICO: CASAL NARDONI “No dia 29 de março de 2008, uma menina de então cinco anos de idade foi arremessada da janela do Edifício London, em um bairro da zona norte de São Paulo. Isabella de Oliveira Nardoni morreu após ser defenestrada do sexto andar do prédio. O pai Alexandre Nardoni e a madrasta Anna Carolina Jatobá foram condenados à prisão. A garota teria sido agredida até desmaiar e jogada por pensarem que ela havia morrido. Isabella passava o final de semana com ambos e com outros dois irmãos, mais novos. Em dezembro de 2014 e em abril deste ano, duas testemunhas que trabalham no sistema prisional disseram ter ouvido conversas que colocam o pai de Alexandre, avô de Isabella, também em suspeita. Detetives investigam a versão.” (UOL, 2015)

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O julgamento pelo Tribunal do Júri, oportunidade em que os Senhores Jurados, ao votarem a

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primeira série de quesitos em relação ao réu Bruno Fernandes das Dores de Souza, no tocante ao crime de homicídio, por 04 (quatro) votos reconheceram a materialidade do fato e a autoria. Por 04 (quatro) votos a 01(um) foi afastada a tese de participação de crime menos grave e negado o quesito absolutório. Por 04 (quatro) votos a 03(três) afastada a tese de participação de menor importância. Por 04 (quatro) votos a 01(um) foi reconhecida a qualificadora do motivo torpe. Por 04 (quatro) votos foram reconhecidas as qualificadoras do emprego da asfixia e do recurso que dificultou a defesa da vítima. Proposta a segunda série de quesitos, ainda em relação ao réu Bruno Fernandes das Dores de Souza, quanto ao crime previsto no art.148, § 1º, IV, do CPB, contra a vítima Bruno Samúdio, por 04 (quatro) votos a 03 (três) reconheceram a materialidade do crime de sequestro. Por 04 (quatro) votos a 02 (dois), foi negado o quesito absolutório. Por 04 (quatro) votos foi reconhecida a qualificadora prevista no inciso IV, do § 1º, do art. 148 do CPB. Na terceira e última série de quesitos, quanto ao crime de ocultação de cadáver, por 04 (quatro) votos reconheceram a materialidade. Por 04(quatro) votos contra 01 (um) voto foi reconhecida a autoria, sendo por 04(quatro) votos a 02 (dois) negado o quesito absolutório. Ao votarem os quesitos em relação à ré Dayanne Rodrigues do Carmo Souza, no tocante ao crime do art.148, § 1º, IV, do CP contra a vítima Bruno Samúdio, por 04 (quatro) votos reconheceram a materialidade. Por 04(quatro) votos contra 01 (um) voto foi reconhecida a autoria, sendo por 04(quatro) votos a 03 (três) foi afirmado o quesito absolutório. Assim exposto e considerando a vontade soberana do Júri, declaro o réu Bruno Fernandes das Dores de Souza incurso nas sanções do art. 121, § 2°, I, III e IV, art.148, § 1º, IV, e art. 211, todos do CPB. Absolvo a ré Dayanne Rodrigues do Carmo Souza do crime previsto no art.148, § 1º, IV, do CP. Passo à dosimetria da pena. Réu Bruno Fernandes das Dores de Souza, pelos crimes do art. 121, 2°, I, III e IV, do CP e art. 148, § 1º, IV, do CP, art. 211 do CPB: Culpabilidade. A culpabilidade dos crimes é intensa e altamente reprovável. O crime contra a vida praticado nestes autos tomou grande repercussão não só pelo fato de ter entre seus réus um jogador de futebol famoso, mas também por toda a trama que o cerca e pela incógnita deixada pelos executores sobre onde estariam escondidos os restos mortais da vítima. Embora para esta indagação não se tenha uma resposta, certamente pela eficiência dos envolvidos, a sociedade de Contagem que em outro julgamento já tinha reconhecido o assassinato da vítima, hoje reconheceu o envolvimento do mandante na trama diabólica. A investida do réu contra a vítima não foi a primeira vez, mas certamente foi a última. Ficou cristalino o interesse do réu em suprimir a vida de Elisa Samúdio. Agiu sempre de forma dissimulada da sua real intenção. Assim Elisa foi sequestrada no Rio de Janeiro e trazida cativa para o sítio em Esmeraldas, onde ficou por quase uma semana esperando a operacionalização de sua morte. O desenrolar do crime de homicídio conta com detalhes sórdidos e demonstração de absoluta impiedade. A culpabilidade é pelos mesmos motivos, igualmente acentuada em relação ao crime de sequestro tendo como vítima a criança Bruno Samúdio, sendo igualmente intensa e reprovável em relação ao crime de ocultação de cadáver. O réu Bruno Fernandes acreditou que consumindo com o corpo, a impunidade seria certa. Conforme se infere das folhas de Antecedentes Criminais de f. 9.519/9.523, 9.724/9.727 e 9.638 bem como Certidões de Antecedentes Criminais de f. 9.524/9.525, 9.686, 9.667,

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9.654/9.655, 9.8361, 13.106/13.110, 9.653 e 15.228 o réu embora tecnicamente primário já conta com condenação criminal, de modo que não pode ser tido como de bons antecedentes. A circunstância atinente à conduta social não lhe favorece, eis que há informações nos autos de que tinha envolvimento com o tráfico de drogas (f. 15865/15870). A conduta social é igualmente desfavorável considerando o comprovado envolvimento do réu Bruno Fernandes na face obscura do mundo do futebol. No tocante à personalidade tal circunstância, igualmente não favorece ao acusado, uma vez que demonstrou ser pessoa fria, violenta e dissimulada. Sua personalidade é desvirtuada e foge dos padrões mínimos de normalidade. O réu tem incutido na sua personalidade uma total subversão dos valores. Os motivos do crime de homicídio já foram apreciados para efeito de reconhecimento da qualificadora do motivo torpe. Os motivos dos crimes de sequestro da vítima Bruno Samúdio e do crime de ocultação de cadáver, não serão interpretados desfavoravelmente, tendo em vista que a motivação exsurgida, no caso em apreço, foi inerente aos tipos penais. As circunstâncias não o favorecem uma vez que a vítima foi atraída para o Rio de Janeiro, onde permaneceu hospedada em hotel, às expensas do réu, até o momento de seu sequestro no dia 04.06.2010, quando foi agredida e rendida com a concorrência do corréu Luiz Henrique Ferreira Romão e do então adolescente Jorge Luiz. Foi levada para a casa do acusado Bruno Fernandes, no Recreio dos Bandeirantes/RJ e de lá foi trazida para Minas Gerais, onde ficou igualmente cativa, juntamente com seu bebê e permaneceram sucumbidos até o dia em que Elisa foi levada para as mãos de seus executores. Tais circunstâncias demonstram a firme disposição para a prática do homicídio que teve a sua execução meticulosamente arquitetada. As circunstâncias do sequestro do bebê são pelos mesmos fundamentos desfavoráveis. Também não lhe favorecem as circunstâncias da ocultação de cadáver. A supressão de um corpo humano é a derradeira violência que se faz com a matéria, num ato de desprezo e vilipêndio. As consequências do homicídio foram graves, eis que a vítima deixou órfã uma criança de apenas quatro meses de vida. As consequências quanto ao crime de sequestro da criança são igualmente desfavoráveis, eis que, no primeiro dia do crime ficou inclusive privada da companhia de sua mãe que tinha sido agredida na cabeça. Foi, ainda, privada de sua liberdade do decorrer dos dias seguintes e depois da execução de sua mãe, passou pelas mãos de diversas pessoas igualmente estranhas. As circunstâncias do crime de ocultação de cadáver, não serão interpretadas em seu desfavor, uma vez que não foram reveladas. No tocante ao comportamento das vítimas, não constam nos autos provas de que tenha havido por parte delas qualquer contribuição. Registro que o fato de a vítima Elisa estar cobrando o reconhecimento do filho e respectiva pensão não eram motivos para serem alvos de tão bárbaros delitos. Com tal diagnóstico, na 1ª. fase, em relação ao crime do art. 121, 2°, I, III e IV, do CPB com preponderância das circunstâncias desfavoráveis e reconhecidas as qualificadoras do motivo torpe, do emprego de asfixia e recurso que dificultou a defesa da vítima, fixo a pena base em 20 (vinte) anos de reclusão. Na 2ª fase, registro que durante todo o processo o réu negou qualquer envolvimento no crime, inclusive por ocasião do seu interrogatório ocorrido na data de ontem. Naquele depoimento, prestou esclarecimentos, identificando o executor do homicídio. Hoje, o réu, pediu para ser novamente ouvido, oportunidade em que reconheceu que sabia que a vítima Elisa Samúdio iria morrer. Não quis mais responder às perguntas. Data vênia, mas essa

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lacônica confissão não merece a mesma redução concedida ao corréu Luiz Henrique Ferreira Romão, no julgamento passado como quer a defesa. Naquela ocasião consignei que a admissão do réu Luiz Henrique de que realmente tinha levado Elisa Samúdio para ser executada, ao afirmar que a levou ao encontro com a morte, colocou uma pá de cal na discussão criada desde o início pela defesa dos acusados que sempre afirmou que Elisa estava viva. Dessarte, dou à confissão do réu Bruno Fernandes hoje no Plenário valoração que permite a redução pela atenuante em 03 (três) anos, ficando, pois, fixada em 17 (dezessete) anos de reclusão. Reconheço a agravante do art. 62, I, CPB, eis que sustentado no Plenário pela acusação que o réu agiu na qualidade de mandante da execução da vítima, fato este comprovado nos autos pela prova oral, mormente pela delação do corréu Luiz Henrique às f. 15898/15.909, de modo que majoro a pena de 06 (seis meses). A pena final, portanto, perfaz 17 (dezessete) anos e 06 (seis) meses de reclusão. Na 3º fase, registro que não há causas especiais de oscilação. A pena será cumprida em regime inicialmente fechado. No tocante ao crime do art. 148, § 1º, IV, do CP, já analisadas as circunstâncias judiciais, na sua maioria desfavoráveis, na 1ª. fase, fixo a pena base em 3 (três) anos de reclusão. Na 2ª fase, registro que não há atenuantes, havendo a agravante do art. 61, II, “e”, do CPB, eis que o crime foi praticado contra descendente, motivo pelo qual, majoro a pena de 03(três) meses. Na 3ª fase, não há causas especiais de oscilação, motivo pelo qual, fica a reprimenda, concretizada em 3 (três) anos e 3 (três) meses de reclusão. A pena será cumprida em regime aberto. No tocante ao crime do art. 211 do CP, já analisadas as circunstâncias judiciais, na sua maioria desfavoráveis, na 1ª. fase, fixo a pena base em 1 (um) ano e 06 meses de reclusão. Na 2ª fase, registro que não há atenuantes ou agravantes. Na 3ª fase, não há causas especiais de oscilação, motivo pelo qual, fica a reprimenda, concretizada em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão. A pena será cumprida em regime aberto. Ficam, pois, as penas totalizadas em 22 (vinte e dois) anos e 03 (três) meses de reclusão, nos termos do art. 69 do CPB. Custas pelo réu Bruno Fernandes. O réu foi preso por prisão preventiva mantida por ocasião da pronúncia. Nesta oportunidade, diante do resultado do julgamento, persistem os requisitos da custódia cautelar. Ademais, não se pode perder de vista a gravidade concreta dos delitos, indicada pelo “modus operandi” com que os crimes foram perpetrados, como no caso em que, além da violência praticada contra Elisa Samúdio, há ainda, a perversidade com a qual foi destruído e ocultado o seu cadáver, impedindo, inclusive um sepultamento digno para que fosse minimamente homenageada por seus familiares e amigos. Indiscutível se torna registrar, que os crimes descritos nestes autos, causam extremo temor no seio da sociedade, não podendo o Poder Judiciário fechar os olhos a esta realidade, de modo que a paz social deve ser preservada, ainda que, para tal, seja sacrificada algumas garantias asseguradas constitucionalmente, dentre elas, a liberdade individual. Não há, ainda, como deixar de falar da natureza de um dos delitos em análise, qual seja, homicídio triplamente qualificado, considerado hediondo, a teor do artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.072/90, crime doloso, punido com pena de reclusão, dotado, pois, de maior censurabilidade jurídico-penal. (TJMG,2013)

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banca examinadora: cristian kiefer da silva (orientador) hebert leite (examinador 1) ana carolina oliveira (examinadora 2)

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MONITORAMENTO ELETRÔNICO NO BRASIL: uma alternativa questionável no que se refere à solução para a superlotação do sistema carcerário brasileiro ELECTRONIC MONITORING IN BRAZIL: an alternative questionable as regards the solution for system overcrowding prison brazilian Leonardo Carvalho Pedrosa de Souza 1

RESUMO: O presente artigo apresenta como tema “Monitoramento Eletrônico no Brasil: Uma alternativa questionável no que se refere à solução para a superlotação do sistema carcerário brasileiro”. Tendo como objeto central de estudo levantar uma análise sobre o monitoramento eletrônico no Brasil e seus reflexos na população carcerária brasileira.Sendo ainda abordados pelo trabalho os seguintes tópicos: um breve relato histórico sobre o monitoramento eletrônico, a legislação federal vigente que regulamenta o monitoramento eletrônico, a implantação da tornozeleira eletrônica no sistema prisional brasileiro, a efetividade do programa de monitoração eletrônica no Brasil, falhas no sistema de monitoramento e reincidência criminal. Tem como escopo responder a seguinte indagação: se a tornozeleira eletrônica é um instrumento capaz de solucionar a superlotação existente nos estabelecimentos prisionais sem causar reflexos em relação à sensação de impunidade e consequente reincidência do apenado no cometimento de novos crimes. O estudo justifica-se em decorrência do amplo aumento da população carcerária, ocasionando à superlotação das unidades prisionais, demonstrando a necessidade de implantação de medidas alternativas ao encarceramento. Portanto, no intuito de trazer maiores informações sobre o tema tratado, optou-se em realizar uma pesquisa do tipo exploratória, através de método dialético e procedimentos técnicos de pesquisa bibliográfica e documental. PALAVRAS-CHAVE: Monitoramento Eletrônico. Sistema Prisional. Superlotação. Tornozeleira Eletrônica.

ABSTRACT: This article presents the theme “Electronic Monitoring in Brazil: An alternative questionable with regard to the solution to the overcrowding of the Brazilian prison system.” With the central object of study raise an analysis of electronic monitoring in Brazil and its impact on the Brazilian prison population. Still being addressed by the work the following topics: a brief historical account of electronic monitoring, the current federal legislation governing electronic monitoring, the implementation of electronic anklet in the Brazilian prison system, the effectiveness of electronic monitoring program in Brazil, crashes monitoring system and criminal recidivism. Is scoped to answer the following question: if the electronic anklet is a tool to solve the existing overcrowding in prisons without causing reflections in relation to the feeling of impunity and consequent recurrence of the convict in the commission of new crimes. The study is justified due to the large increase in the prison population, leading to overcrowding of prisons, demonstrating the need to implement alternative measures to imprisonment. Therefore, in order to bring more information on the topic covered, it was decided to conduct a survey of the exploratory, through dialectical method and technical procedures of bibliographic and documentary research. KEYWORDS: Electronic Monitoring. Prison System. Over Crowded. Anklet Electronic.

SUMÁRIO 1 Introdução. 2 Contextualização Histórica do Monitoramento Eletrônico e a Legislação Federal Vigente no Brasil. 2.1 Breve Histórico do Monitoramento Eletrônico. 2.2 O monitoramento eletrônico e seus dispositivos. 2.3 Modelos de monitoramento eletrônico. 2.4 Legislação Federal Vigente no Brasil. 2.4.1 Lei 12.258/2010. 2.4.2 Lei 12.403/2011. 3 Efetividade do Programa de Monitoração Eletrônica no Brasil. 3.1 Falhas no sistema de monitoramento e Reincidência criminal. 4 Considerações Finais. Referências.

1 Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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1 INTRODUÇÃO Diante da atual situação de crescimento considerável da criminalidade e consequente superlotação carcerária, dos altos custos do encarceramento, bem como dos efeitos nocivos da pena de prisão e da corrupção que gera um enorme desgaste no aparelho estatal, faz-se necessário à criação de novas possibilidades de cumprimento das penas. Considera-se que a pura e simples adoção de medidas preventivas e repressivas tem se mostrado insuficiente para lidar com a elevação da criminalidade. Em virtude desse quadro, o chamado monitoramento eletrônico surgiu como uma interessante alternativa ao encarceramento em diversos países do mundo. O sistema de monitoramento permite que os encarregados da fiscalização do cumprimento da pena do condenado/monitorado tomem conhecimento, a respeito dos seus passos, uma vez que o sistema permite saber, com precisão, se a área delimitada está sendo obedecida. Daí surge uma questão conflitante, pois embora o sistema de monitoramento eletrônico permita em tese o cumprimento das finalidades atribuídas às penas, parte da doutrina iniciou um movimento contra a sua utilização, alegando que essa modalidade de cumprimento de pena é exageradamente benéfica aos condenados, não possuindo, o necessário efeito punitivo, bem como ressocializante da pena. Reiteram também à falta de estudos suficientemente amplos e rigorosos sobre o monitoramento eletrônico, que tenham por finalidade apontar se, realmente, existe uma eficácia da sanção daqueles que foram submetidos ao monitoramento, em comparação aos condenados que cumpriram suas penas, inseridos no sistema prisional. Diante de tais posicionamentos e apontamentos críticos referentes aos “custos x efetividade” do sistema, passa-se a questionar se o Monitoramento Eletrônico no Brasil é realmente uma forma efetiva de se assistir o condenado, haja vista que as tornozeleiras não estão gerando impactando desejável para a redução da população carcerária no país e nem mesmo inibindo o crime, pois as reincidências de delitos cometidos por quem deveria ser monitorado pelo sistema estão cada vez mais frequentes, transformando a economia gerada pelo sistema em um investimento ineficiente e desacreditado. 2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO MONITORAMENTO ELETRÔNICO E A LEGISLAÇÃO FEDERAL VIGENTE NO BRASIL 2.1 Breve histórico do Monitoramento Eletrônico Primeiramente, cientifico-vos que irei discorrer sobre esse tópico da maneira mais sucinta possível, uma vez que por si só este tema seria suficiente para desenvolver outro Trabalho Científico. O monitoramento eletrônico (ou a vigilância eletrônica) teve início nos Estados Unidos. O primeiro dispositivo de monitoramento eletrônico foi desenvolvido nos anos 60 pelos irmãos Ralph e Robert Schwitzgebel. A máquina consistia em um bloco de bateria e um transmissor capaz de emitir sinal a um receptor, sendo utilizado no país em delinquentes e enfermos mentais. Em 1970, L. Barton Ingraham e Gerald Smith idealizaram a vigilância eletrônica como uma alternativa real ao cárcere privado. Contudo, o monitoramento eletrônico foi implantado de maneira efetiva pela primeira vez pelo magistrado norte-americano Jack Love, de Albuquerque, Novo México, que, inspirado por um episódio de desenho em quadrinhos do Homem-Aranha, em que o vilão da história colocava um bracelete eletrônico no braço do herói de modo que

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pudesse localizá-lo onde quer que estivesse, convenceu o perito em eletrônica, Michael Gloss, para que criasse um novo sistema que permitisse supervisionar a conduta dos delinquentes de sua jurisdição. Sobre esse acontecimento, Rogério Greco salienta: O mais interessante é que o juiz Jack Love inspirouse numa edição de Amazing Spider-Man de 1977, na qual o rei do crime havia prendido um bracelete ao homem aranha a fim de monitorar seus passos pelas as ruas de Nova York. Após ler a historia o juiz Jack Love achou que a ideia poderia, efetivamente, ser utilizada no monitoramento de presos, razão pela qual procurou seu amigo Mike Gross, técnico em eletrônica informática, a fim persuadí-lo a produzir os receptores que seriam afixados nos pulsos, tal como havia visto na história em quadrinhos. Em 1983, ou seja, cinco anos depois, após ter realizado, durante três semanas, teste em si mesmo do bracelete, o juiz Jack Love determinou o monitoramento de cinco delinquentes da cidade de Albuquerque, a maior cidade do Estado do Novo México. Nascia, também, naquele momento, conforme nos esclarece Edmundo Oliveira, a National Incarceration Monitor and Control Services, a primeira empresa a produzir instalações eletrônicas destinadas ao controle de ser humanos (GRECO, 2013, p. 522). Desse modo, em 1983, um juiz americano sentenciou o primeiro delinquente a usar o monitoramento eletrônico no país, dando início a uma série de magistrados adeptos que passaram a sentenciar criminosos de suas jurisdições ao uso do dispositivo. O monitoramento eletrônico foi criado com a finalidade de fazer com que o condenado não fosse retirado, repentinamente, do seu convívio social, ocasionando de maneira tênue a limitação de seus direitos, permanecendo, contudo o seu convívio em sociedade. Com o passar dos anos o sistema foi recepcionado por vários ordenamentos jurídicos de diversos países, incluindo-se: Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Reino Unido, Suécia, dentre outros. 2.2 O monitoramento eletrônico e seus dispositivos Conforme discorrido acima, o monitoramento eletrônico nada mais é que um programa de fiscalização à distância utilizado para o cumprimento de determinações judiciais, onde através de dispositivos eletrônicos é possível saber a localização do monitorado, com precisão. Esses equipamentos são controlados por um sistema de posicionamento global por satélite (GPS). Nesse sentido: Conforme aponta Japiassú tem se, pois, o dispositivo transmissor, que emite um sinal, o qual passa por um receptor e, através da linha telefônica, chega até um centro de vigilância. Em seguida, é direcionado para um centro de controle, que monitora o infrator. Caso surja algum problema, uma vez verificado que este não é de ordem técnica (v.g. rompimento do lacre pelo detento), é notificado o juiz (ou outra entidade encarregada), que adota as providências cabíveis. (PRUDENTE, 2013). Atualmente existem quatro tipos de dispositivos adotados para a realização do monitoramento, sendo: a pulseira, a tornozeleira (que é a mais utilizada), o microchip subcutâneo e o cinto, que serão apresentados nas imagens a seguir. Inicialmente será vos apresentando a pulseira eletrônica, cujo formato traz semelhança idêntica a um relógio de pulso, sendo de plástico e à prova d’água.

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sociedade, portanto não será possível a exposição de figuras que demonstram o cinto, pois trata-se de equipamento altamente visível em relação aos já demonstrados, estando praticamente em desuso, impossibilitando o angariamento de suas imagens nos diversos meios de pesquisa.

Em relação à tornozeleira, que é o dispositivo mais utilizado no Brasil, seu material é plástico, a prova d’água e possui um lacre que só pode ser utilizado uma única vez. Trata-se de um dispositivo simples e por ser de plástico facilita o seu rompimento pelo usuário, uma vez que para rompê-lo basta que o monitorado utilize um instrumento cortante. Ressaltando que, caso o lacre seja rompido um sinal de alerta será enviado imediatamente a central de monitoramento.

Sobre os microchips subcutâneos, estes começaram a ser utilizados na Europa como forma de se monitorar crianças em casos de sequestro, por exemplo. Em relação a sua estrutura, possuem aproximadamente a dimensão de um grão de arroz. Os primeiros dispositivos com essas características foram testados em animais e devido à sua alta precisão de localização e aprovação nos testes, faz com que esse equipamento seja cada vez mais aprimorado e ganhe mais espaço em se tratando de monitoração de reeducandos.

Já existem discursos de implantações cirúrgicas de dispositivos de monitoramento no corpo com a finalidade de fornecimento de imagens em tempo real do indivíduo controlado ou até mesmo de indicação de sua localização, deixando clara a finalidade de que as formas de monitoramento sejam cada vez menos perceptível aos olhos de terceiros. Conforme discorrido no parágrafo anterior, a intenção do monitoramento eletrônico é que ele seja cada vez menos perceptível aos olhos de terceiros, tendo em vista à preocupação com a não violação da dignidade da pessoa humana, o preconceito e o repúdio da

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2.3 Modelos de monitoramento eletrônico O monitoramento eletrônico pode ser utilizado como forma de detenção; de restrição de liberdade, se evitando que o monitorado se aproxime, por exemplo, de testemunhas e coautores; e como meio de vigilância, o que neste caso não acarretará restrições à movimentação do monitorado, sendo classificado em três modelos: sistemas ativos, onde o dispositivo conectado ao corpo do controlado funciona de forma contínua enviando as informações à estação central de monitoramento; sistemas passivos, em regra utilizados nos casos de prisão domiciliar, onde o controlado é acionado por meio de telefone ou pagers para garantir que está em concordância com a determinação judicial; e o sistema de GPS, que pode ser utilizado como instrumento de detenção, vigilância ou restrição, de forma ativa ou passiva. Além dos modelos e dos dispositivos tecnológicos utilizados, existem três tipos de monitoração: a localização contínua, onde através da rede de telefonia celular o condenado é vigiado continuamente, e o dispositivo se comunica com a central de controle em intervalos predeterminados; monitoração por exclusão, onde o indivíduo é proibido de transitar por determinados locais; e a localização retrospectiva, onde o sistema emite relatórios diários informando os locais onde o condenado esteve no período. 2.4 Legislação federal vigente no Brasil Em se tratando do continente brasileiro, mesmo não tendo uma legislação específica à época sobre a matéria, no ano de 2007 foram realizadas as primeiras experiências com a utilização das “tornozeleiras eletrônicas”, ocorridas no estado da Paraíba, mediante autorização de um juiz daquele estado. No mesmo ano, o então Senador Magno Malta elaborou o projeto de lei nº 175, que recepcionada por várias emendas de outros parlamentares, se tornou sustentação para o surgimento da regulamentação em âmbito federal para a implantação do monitoramento eletrônico no Brasil. Todavia, após intensos debates, apenas em 15 de julho de 2010, ocorreu a normatização do monitoramento eletrônico no Brasil, regulamentado pela Lei 12.258/2010, modificando vários artigos da Lei de Execuções Penais (LEP), sendo em princípio somente a Execução Penal em alguns casos. Contudo, fez-se necessária uma nova normatização sobre a matéria vinda esta a ser promulgada em 04 de maio de 2011, trazendo alterações no Código de Processo Penal, estabelecendo que o monitoramento eletrônico fosse utilizado como medida cautelar diversa a prisão. Nesse sentido, para Rogério Greco: Merece destaque, ainda, a inovação trazida pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, que, ao prever o elenco de medidas cautelares diversas da prisão, no inciso IX do art. 319 do Código de Processo Penal, inseriu a monitoração eletrônica. Dessa forma, o monitoramento passa a ser possível antes mesmo do transito em julgado da sentença penal condenatória, evitando a desnecessária segregação cautelar do acusado, permitindo-lhe, assim, responder à ação penal em liberdade (GRECO, 2014, p 536-537). Portanto, com a implantação das alterações trazidas no ano de 2011, aumentou-se a possibilidade de adoção do sistema eletrônico

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eletrônico e dos seguintes deveres: I - receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações; II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça; [...] Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa: I - a regressão do regime; II - a revogação da autorização de saída temporária; [...] VI - a revogação da prisão domiciliar; VII - advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo. (BRASIL, 2016)

em nosso país, permitindo que tanto presos condenados, quanto provisórios, pudessem utilizar esse tipo de tecnologia, diferentemente da primeira regulamentação que previa a utilização do sistema somente em presos que se encontrasse na condição de regime semiaberto e prisão domiciliar, conforme versaremos a seguir. 2.4.1 Lei 12.258/2010

Com a promulgação da lei 12.258/2010 ocorreram notáveis alterações no Código Penal Brasileiro, bem como na Lei de Execução Penal, dentre as diversas mudanças ocorridas em vários de seus artigos, há que se destacar o artigo 122 da LEP, que foi acrescido de parágrafo único, que versa sobre a utilização do monitoramento eletrônico nos casos onde não haverá mais vigilância direta: Art. 122. [...] Parágrafo único. A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução (BRASIL, 2016). Com relação ao artigo 124 da LEP, foram acrescidos três parágrafos, proporcionando ao magistrado a capacidade de impor a utilização da tornozeleira eletrônica ao beneficiado pela saída temporária, servindo o dispositivo como forma de vigilância indireta, auxiliando para que caso o beneficiado descumpra qualquer dever estabelecido, este venha a ser punido com a perda do benefício. Condições que poderão ser impostas: Art. 124. [...] § 1o Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado: I - fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício; II - recolhimento à residência visitada, no período noturno; III - proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres. § 2o Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes. § 3o Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra. (BRASIL, 2016)

Em se tratando da possibilidade de revogação do monitoramento,temos como fulcroo artigo 146-D, da LEP, trazendo duas possibilidades, veja-se: Art. 146-D. A monitoração eletrônica poderá ser revogada: I - quando se tornar desnecessária ou inadequada; II - se o acusado ou condenado violar os deveres a que estiver sujeito durante a sua vigência ou cometer falta grave. (BRASIL, 2016) Portanto, notoriamente verifica-se que a lei 12.258/2010 substancialmente alterou os artigos supramencionados, tendo como foco os presos beneficiários do regime semiaberto e aqueles em prisão domiciliar. 2.4.2 Lei 12.403/2011

Trata-se de uma segunda normatização federal a tratar do monitoramento eletrônico no país, trazendo consigo uma mudança substancial no artigo 319 do Código de Processo Penal, aonde se ampliou a possibilidade da utilização do monitoramento eletrônico como medida cautelar em detrimento à prisão. Para tanto, Bernardo de Azevedo e Souza salienta que: Inicialmente restrito à fase de execução penal (nas hipóteses autorizadas pela Lei 12.248/2010, quais sejam, saída temporária do preso em regime semiaberto e no âmbito da prisão domiciliar), o monitoramento eletrônico veio a adquirir nova roupagem somente com a sobrevinda da Lei 12.403/2011, sendo sua aplicação então (como medida alternativa à prisão preventiva) estendida aos indiciados (durante o inquérito policial) e aos acusados (durante o curso da ação penal), de modo a impedir o encarceramento destes antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. (SOUZA, 2014, p. 13)

Em se tratando de acréscimos a legislação, a lei incluiu no artigo 146-B, da LEP, a possibilidade de fiscalização do condenado através do monitoramento eletrônico, quando estiver em saída temporária no regime semiaberto e em prisão domiciliar. Versa o artigo que: Art. 146-B. O juiz poderá definir a fiscalização por meio da monitoração eletrônica quando: [...] II - autorizar a saída temporária no regime semiaberto; [...] IV - determinar a prisão domiciliar; [...] (BRASIL, 2016)

Em comentário ao assunto, Rogério Greco sobrepõe que: A aplicação da monitoração eletrônica se fará, observando-se: - a necessidade para a aplicação da lei penal, para a investigação ou instrução penal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; - a adequação da medida à gravidade do crime, circunstancias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. A monitoração eletrônica poderá ser aplica isolada ou cumulativamente com outras medidas cautelares. (GRECO, 2013, p. 538).

Já no artigo 146-C, da LEP, foi acrescentado os cuidados e deveres que o preso deverá ter com o aparelho de monitoramento, impondo que sua violação poderá acarretar sanções. Nesse sentido, o mencionado artigo faz a seguinte abordagem: Art. 146-C. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento

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Desta feita, o uso da monitoração eletrônica passa a ser assegurada por lei como medida cautelar distinta à prisão, passando a ser utilizada como medida alternativa a prisão preventiva, estendendo sua utilização para as fases pré-processual e processual. A previsão legislativa federal supramencionada passou a ter previsão no artigo 319 do Código de Processo Penal, o qual discorre da seguinte forma: Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX - monitoração eletrônica. [...] § 4o A fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI deste Título, podendo ser cumulada com outras medidas cautelares. (BRASIL, 2016)

Portanto, a aplicação das medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP deriva da prática de delitos que ensejam penas privativas de liberdade, que de acordo com a legislação poderão ser utilizadas de forma autônoma a prisão preventiva, vindo a substituir a pena de prisão.

esvaziar a população carcerária. Ainda de acordo com o diagnóstico realizado, o fracasso no objetivo do programa está diretamente ligado com a forma na qual a tecnologia está sendo empregada no cenário nacional, se concentrando principalmente na fase de execução penal, ou seja, nas penas que já estavam previstas e não alternativas à prisão,predominando o emprego do sistema em presos que se encontram nos regimes aberto e semiaberto em prisão domiciliar, semiaberto em trabalho externo, saída temporária, fechado em prisão domiciliar e liberdade condicional. Desta forma, fica evidenciado que a monitoração eletrônica não vem se configurando como uma alternativa a prisão, mas sim como um instrumento de controle social e de agravamento do poder punitivo. Por fim, outro ponto a ser destacado, estando diretamente ligado com a ineficiência do sistema e o não cumprimento do seu objetivo, são as falhas de segurança dos equipamentos, que são facilmente burlados, sendo avaliados pelos próprios monitorados como ineficazes, não sendo suficientes para evitar que estes não cometam novos crimes.

3.1 Falhas no sistema de monitoramento e reincidência criminal Diante das diversas falhas dos equipamentos e dos apontamentos referente a não eficiência do programa no cumprimento de seu principal objetivo, outro ponto a ser destacado é que o monitoramento de criminosos com tornozeleiras eletrônicas não tem sido suficiente para evitar a reincidência criminal. Para elucidar esta afirmação utilizaremos os dados da Secretária de Justiça e Direitos Humanos do estado do Mato Grosso, que no final do ano de 2015 divulgou que 17% dos reeducandos monitorados por tornozeleiras eletrônicas cometeram novos crimes, deixando notória uma falta de fiscalização e de caráter punitivo do sistema. Neste mesmo ano, em entrevista concedida a uma emissora local, os próprios presos comentaram a ineficiência do sistema, ressaltando que quando saem da prisão recebem diversas orientações de como serão monitorados e de como devem utilizar o equipamento, contudo afirmam que mesmo não adotando as orientações repassadas nenhum tipo de fiscalização por parte do estado é realizada. Em um dos casos citados pelos entrevistados, estes relatam que uma quadrilha investigada por roubos de carros em Cuiabá, por exemplo, quatro dos quinze integrantes foram presos enquanto utilizavam a tornozeleira eletrônica. Um deles disse que saía para cometer crimes até mesmo no horário em que a Justiça determinou que ele estivesse em casa e que nunca havia recebido sequer uma advertência. Transcrevendo o Art. 146-B da Lei 7.210 de 15 de 1984:

3 EFETIVIDADE DO PROGRAMA DE MONITORAÇÃO ELETRÔNICA NO BRASIL Com previsão na legislação brasileira desde o ano de 2010, o monitoramento eletrônico de presos experimentou um extraordinário aumento em sua utilização desde então, tendo como principal objetivo a redução da superlotação carcerária. Contudo, de acordo com o primeiro diagnóstico nacional realizado no final do ano de 2015 sobre o uso de equipamentos tecnológicos – como tornozeleiras e braceletes – para vigiar detentos no Brasil, encomendado pelo Ministério da Justiça ao Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), os resultados demonstram que o programa não consegue cumprir com seu principal objetivo. De acordo com o levantamento divulgado, no ano de 2015 haviam 18.172 pessoas monitoradas pelos dispositivos no país, sendo 88% homens e 12% mulheres, representando apenas 3% da população carcerária nacional e mesmo sua utilização tendo se multiplicado em ritmo acelerado pelo país, o programa até agora não ajudou a

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Art. 146-B. O condenado será instruído acerca dos cuidados que deverá adotar com o equipamento eletrônico e dos seguintes deveres: I - receber visitas do servidor responsável pela monitoração eletrônica, responder aos seus contatos e cumprir suas orientações; II - abster-se de remover, de violar, de modificar, de danificar de qualquer forma o dispositivo de monitoração eletrônica ou de permitir que outrem o faça; [...] Parágrafo único. A violação comprovada dos deveres previstos neste artigo poderá acarretar, a critério do juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa: I - a regressão do regime; II - a revogação da autorização de saída temporária; [...] VI - a revogação da prisão domiciliar; CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


VII - advertência, por escrito, para todos os casos em que o juiz da execução decida não aplicar alguma das medidas previstas nos incisos de I a VI deste parágrafo” (BRASIL, 2016) Ainda de acordo com a reportagem, detentos afirmaram haver diversas formas de se burlar o sistema, citando dentre elas “envolver o aparelho em papel alumínio para bloquear o sinal emitido pela tecnologia; e a utilização de animais, devendo o monitorado amarrar o equipamento em um animal para simular o batimento cardíaco humano”. Casos como estes são comuns pelo Brasil, não havendo até o momento soluções tecnológicas para sanar as falhas mencionadas. Mediante este quadro o juiz Sidinei José Brzuska, da Vara de Execuções Penais do estado do Rio Grande do Sul, discorreu sobre o assunto com os seguintes dizeres: Isso mostra que a tornozeleira não é salvação da lavoura. O sistema funciona bem para quem não tem vínculo com criminalidade ou não quer saber mais do crime. Quando o sujeito é ativo no crime, não funciona, ele irá fazer de tudo para burlar o sistema (BBC BRASIL, 2015). Apesar dos problemas, a expectativa é de que o sistema se mantenha em contínua ascensão no país pelos próximos anos, visto que o número de contratos com empresas fornecedoras deste serviço experimenta uma multiplicação de maneira acelerada. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Perante o atual cenário do sistema prisional brasileiro, que sofre com a superlotação do sistema carcerário e diante da necessidade estatal de se encontrar medidas alternativas para a prisão e consequente enxugamento da população prisional, o monitoramento eletrônico é apontado por muitos doutrinadores como sendo, de maneira imediatista, a solução mais viável para a conquista de resultados satisfatórios no que diz respeito à redução de presos no sistema prisional e consequente solução para a superlotação carcerária. Contudo, apesar de o monitoramento eletrônico já ser uma realidade no país, ainda é um tema pouquíssimo discutido se comparado a alguns países estrangeiros, que já discorrem sobre o assunto desde meados dos anos oitenta. Portanto, apesar de o monitoramento eletrônico ser considerado uma alternativa tecnológica à superlotação carcerária, à redução dos custos do encarceramento, bem como dos efeitos nocivos da pena de prisão, sua forma de aplicação e sua baixa fiscalização somada às formas de se burlar o sistema, está o tornando uma ferramenta de baixa efetividade. Observa-se ainda que a legislação federal foi recentemente normatizada, trazendo ainda divergências em relação à constitucionalidade e viabilidade da utilização da tornozeleira eletrônica, demonstrando, na forma que a lei federal estabelece, não ser a melhor saída para o problema, vez que alcança um número reduzido de presos e não traz garantia de que o monitorado deixe de ter sua vaga na unidade prisional. Diante deste dilema, surge a indagação a cerca da relação custo-benefício do sistema, tendo como fundamentos a redução dos gastos acerca do sistema prisional e em contrapartida um sistema ineficiente, que até o momento não conseguiu alcançar o objetivo para o qual foi implantado no país, trazendo consigo notórios reflexos em relação à sensação de impunidade do apenado e consequente aumento na reincidência criminal, presumindo-se apresentar como uma ferramenta tecnológica de vigilância que gera um gasto a mais para

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o Estado, não tendo uma real eficácia no combate a superlotação. Ante ao exposto, conclui-se que o Sistema de Monitoramento Eletrônico necessita de aprimoramentos, pois não está cumprindo com sua finalidade, bem como não está inibindo o crime, gerando uma falsa sensação de impunidade e consequente descontentamento da população para com o Estado. REFERÊNCIAS BBC BRASIL. Uso de tornozeleira eletrônica se acelera no Brasil, mas não esvazia cadeias. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151208_tornozeleiras_ diagnostico_tg>. Acesso em: 02 out. 2016. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 1. 14. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. BLOGSPOT. Vigilância eletrônica de presos e sua ineficácia técnica. Disponível em: <>. Acesso em: 02 out. 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 17 maio 2016. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014, p. 536-537. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 15.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013, pag. 471–530. LAKATOS, Eva Maria. MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1991. LIMA JÚNIOR, Carlos Daniel Vaz de. Novas Tecnologias na Humanização da Pena: Monitoramento eletrônico. Disponível em: <http:// carlosdaniel.net/?p=55>. Acesso em: 25 set. 2016. LOPES, Gilmar Henrique. Microchip será obrigatório em todos os bebês nascidos na Europa?. In: E-farsas.com. Disponível em: <http:// www.e-farsas.com/microchip-sera-obrigatorio-em-todos-os-bebesnascidos-na-europa.html>. Acesso em: 30 set. 2016. LUCAS ROCK’S BLOG. Lula sanciona uso de pulseiras eletrônicas para controlar presos!. Disponível em: <https://lucasrocksp.wordpress.com/2010/07/19/lula-sanciona-uso-de-pulseiras-eletronicas -para-controlar-presos/>. Acesso em: 25 set. 2016. MAGALHÃES, Carlos. O crime é ilusão: considerações sobre os riscos e benefícios das práticas criminosas. Revista Eletrônica de Direito Newton Paiva, Belo Horizonte, número 21, out 2013. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=1335>. Acesso em: 23 set. 2016. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. NUNES, Leandro Gornicki. Alternativas para a Prisão Preventiva e o Monitoramento Eletrônico: Avanço ou retrocesso em termos de garantia a liberdade?. Disponível em <http://www.jornaljurid.com.br/ noticias/alternativas-para-prisao-preventiva monitoramento-eletronico -avanco-ou-retrocesso-em-termos-garantia-liberdade>. Acesso em:

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03 out. 2016. PRUDENTE, Neemias Moretti. Monitoramento eletrônico: uma efetiva alternativa a prisão?. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/neemiasprudente/ 2013/10/25/monitoramentoeletronico-uma-efetiva-alternativa-a-prisao/>. Acesso em: 26out. 2016. REVISTA ELETRÔNICA DE DIREITO. Normas de Publicação. Revista eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva - ISSN 1678-8729, disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?page_id=17>. Acesso em: 21 set. 2016. SOUZA, Bernardo de Azevedo e. O Monitoramento Eletrônico como Medida Alternativa à Prisão Preventiva. Disponível em: <http://repositorio.pucrs.br:8080/dspace/bitstream/ 10923/1782/1/000448461-Texto%2bParcial-0.pdf>. Acesso em 19 set. 2016. VIANNA, Túlio Lima. Transparência pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Banca Examinadora: Cristian Kiefer da Silva (Orientador) Hebert Soares Leite (Examinador 1) Bruno Calandrini (Examinador 2)

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A POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DOS EFEITOS DA JUSTIÇA GRATUITA AO DEPÓSITO RECURSAL: Análise Sob a Luz dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa THE POSSIBILITY OF EXTENSION OF THE EFFECTS OF FREE JUSTICE TO THE APPEAL DEPOSIT: Review under the light of the Principles of Adversary System and Full Defense Lucas Nascimento Saturnino de Castro1

RESUMO: Considerando a garantia constitucional aos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, expressamente contemplados no rol dos direitos fundamentais, no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988, que buscam garantir aos litigantes um processo justo, com a possibilidade de ampla participação de ambas as partes em nível paritário, o escopo do presente trabalho é apresentar as regras gerais do depósito recursal, pressuposto extrínseco de alguns Recursos no Processo do Trabalho, que consiste em um valor em dinheiro que deve ser depositado pelo recorrente empregador para garantir o Juízo e possibilitar a interposição do recurso, de forma a analisar a possibilidade de que os efeitos da justiça gratuita sejam estendidos o depósito recursal, para que se privilegie a efetividade dos Princípios Constitucionais supramencionados. PALAVRAS-CHAVE: Contraditório e Ampla Defesa. Depósito Recursal. Justiça Gratuita.

ABSTRACT: Considering the constitutional guarantee to the Principles of Adversary System and Full Defense expressly included in the list of fundamental rights in art. 5, LV, of the Federal Constitution of 1988, which seek to guarantee litigants a fair trial, with the possibility of participation of both parties in joint level, the scope of this paper is to present the general rules of appeals deposit, extrinsic assumption some resources in the Labour Process, which consists of a cash value that must be deposited by the appellant employer to guarantee the Court and allow the lodging of an appeal, to consider the possibility that the effects of free justice are extended the appeals deposit in order to ensure the effectiveness of the Principles Constitutional above. KEYWORDS: Adversary System and Full Defense. Appeal Deposit. Free Justice.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Acesso à Justiça - Contraditório e Ampla Defesa. 3 O Depósito Recursal – Regras Gerais. 3.1 Conceito e Natureza Jurídica. 3.2 Principais Características. 3.3 Constitucionalidade do Depósito Recursal. 4 Extensão dos Efeitos da Justiça Gratuita ao Depósito Recursal – Análise sob a luz dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. 5 Conclusão. Referências.

1 Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LV, estabelece que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (BRASIL, 1988). No mesmo artigo, agora no inciso XXXV, a Constituição determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (BRASIL, 1988). Tais enunciados consubstanciam, respectivamente, os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e o Princípio do Livre Acesso à Justiça, cuja observância é de caráter compulsório, haja vista tratarem os referidos princípios, de direitos fundamentais. Ocorre que, muitos anos antes, em 1943, a Consolidação das Leis Trabalhistas estabeleceu o depósito recursal, pressuposto intrínseco para a interposição de recursos no Processo do Trabalho, consistente no pagamento, pelo empregador recorrente, de um valor previamente estabelecido, cuja ausência enseja o não conhecimento do recurso interposto. Deste modo, com a Nova Ordem Constitucional instituída em 1988, iniciaram-se as discussões no sentido de definir se as disposições referentes ao depósito recursal teriam ou não sido recepcionadas pela Constituição Federal, tendo em vista os princípios supramencionados. Nesse contexto, cuida o presente trabalho de analisar o instituto do depósito recursal à luz dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Para tanto, em um primeiro momento, faz-se necessário apresentar as disposições constitucionais relativas aos Direitos Fundamentais de Acesso à Justiça, realizando um estudo mais amplo acerca dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, de forma a definir seu conceito, abrangência e regulamentação infraconstitucional, bem como estabelecer sua relação com o depósito recursal. Apresentados os aspectos constitucionais pertinentes, o objeto passa a ser o depósito recursal e as regras a ele inerentes. Neste momento, pretende-se apresentar as disposições legais e os entendimentos jurisprudenciais mais relevantes acerca do tema, bem como as divergências existentes no que tange à constitucionalidade do depósito recursal, que, inclusive, foi objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, conforme se verá. Finalmente, pretende-se adentrar na discussão acerca da possibilidade de extensão dos efeitos da Justiça Gratuita ao depósito recursal, como instrumento de efetivação dos princípios constitucionais já abordados. 2 ACESSO À JUSTIÇA – CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA O Acesso à Justiça é um dos pressupostos adotados pela Ordem Constitucional vigente, previsto no título das Garantias e Direitos Fundamentais, conforme se verifica do disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIL, 1988). Trata-se, portanto, de um conceito amplo e que não pode ser interpretado de maneira estática. Isso porque, em uma primeira leitura, o Acesso à Justiça pode ser entendido como a mera possibilidade de submeter demandas à apreciação do Poder Judiciário, sendo indiferente se a tutela jurisdicional será exercida de forma efetiva e dentro dos limites do que se pode esperar de justiça. Trata-se, porém, de uma interpretação equivocada, uma vez que restringiria o conceito em comento a simples consequência da vedação da autotutela.

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Com a Constituição de 1988, o Acesso à Justiça diz respeito não somente à possibilidade de acessar o Poder Judiciário, mas também significa a razoável duração do processo, dirigido por um Juiz imparcial e que garanta às partes, de maneira igualitária, a oportunidade de se manifestarem no processo e em sua defesa, produzirem a seu favor as provas que o direito admite, além de se manifestarem a respeito da produção das provas da parte contrária. Deste modo, é possível verificar que os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa constituem desdobramentos do Princípio do Acesso à Justiça. Em relação ao Princípio do Contraditório, a lição do constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos: O conteúdo do princípio constitucional do contraditório é sobejamente claro: garantir aos litigantes o direito de ação e do direito de defesa, respeitando-se a igualdade das partes. Por isso, todos aqueles que tiverem alguma pretensão a ser deduzida em juízo podem invocá-lo em seu favor, seja pessoa física, seja pessoa jurídica (BULOS, p. 671, 2010). E, sobre o Princípio da Ampla Defesa, o mesmo autor assevera que: Princípio da ampla defesa é o que fornece aos acusados em geral o amparo necessário para que levem ao processo civil, criminal ou administrativo os argumentos necessários para esclarecer a verdade, ou, se for o caso, faculta-lhes calar-se, não produzindo provas contra si mesmos (BULOS, p. 671, 2010). Uma vez apresentada a visão constitucional dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, é imperioso desenvolver uma análise processual. Isso porque, em relação ao Contraditório, com a evolução do direito processual passou-se a não mais admitir a sua interpretação como uma mera possibilidade de se manifestar no processo, sem que isso refletisse de forma relevante na tutela jurisdicional. Na atualidade, especialmente com o advento do Código de Processo Civil de 2015, que tem aplicação subsidiária ao Processo do Trabalho, o Contraditório passa a ter uma conotação mais ampla, “como uma garantia de influência e de não surpresa no desenvolvimento do resultado do processo, eis que a participação das partes não constitui um acréscimo inútil ou supérfluo” (NUNES, 2013). Deste modo, dentro do paradigma de um Acesso à Justiça íntegro e eficaz, o Contraditório deve ser compreendido como o direito de que as partes efetivamente participem do processo, de forma a influir na formação do provimento jurisdicional. Acerca do tema, vale apresentar a lição de Humberto Theodoro Junior: Quer isto dizer que nenhuma decisão judicial poderá, em princípio, ser pronunciada sem que antes as partes tenham tido oportunidade de manifestar sobre a questão a ser solucionada pelo juiz. O contraditório, nessa conjuntura, tem de ser prévio, de modo que ao julgador incumbe o dever de primeiro consultar as partes para depois formar seu convencimento e, finalmente, decidir sobre qualquer ponto controvertido importante para a solução da causa, ou para o encaminhamento adequado do processo a seu fim (THEODORO JUNIOR, p. 86, 2015). Como forma de efetivar o mandamento constitucional trazido pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal, a legislação infraconstitucional traz diversas disposições relativas ao Contraditório e à Ampla Defesa. Além dos Estatutos Processuais, há normas específicas sobre o

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tema, das quais impende destacar a Lei 1.060/1950, conhecida como Lei da Assistência Judiciária, instituída com o objetivo de tornar possível o acesso à justiça àqueles que não tivessem condições de arcar com as despesas decorrentes do processo. No que diz respeito a quem pode usufruir da Assistência Judiciária, bem como em relação ao rol despesas processuais atingidas por este benefício, as disposições trazidas pela Lei 1.060/1950 foram revogadas pelo Novo Código de Processo Civil, que passou a disciplinar referidas questões. Entretanto, desde 2009, com a entrada em vigor da Lei Complementar 132/2009, a Lei 1.060/1950 previa a possibilidade de concessão de Assistência Judiciária em relação aos “depósitos previstos em lei para a interposição de recursos, ajuizamento de ação e demais atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório” (BRASIL, 1950). E mesmo nos tempos atuais, o Novo Código de Processo Civil adotou a mesma redação acima indicada. Deste modo, uma vez delimitados os conceitos e a abrangência dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, bem como sua relação com o Acesso à Justiça, é possível estabelecer a relação destes princípios com o depósito recursal sob dois prismas. Primeiramente, levando-se em consideração que a Consolidação das Leis Trabalhistas data de 1943, com a Nova Ordem Constitucional, instituída em 1988, faz-se necessário desenvolver uma análise constitucional acerca do depósito recursal, de forma a verificar a constitucionalidade deste instituto. Em segundo lugar, imperioso apresentar uma análise sistemática do depósito recursal em relação à legislação infraconstitucional. Isso porque, é sabido que, no tocante ao Processo do Trabalho, o art. 7902, da CLT disciplina a questão da Assistência Judiciária. Porém, considerando que as disposições trazidas pela Lei da Assistência Judiciária, bem como, hodiernamente, pelo Código de Processo Civil, de 2015, são consideradas mais benéficas, especialmente no que tange ao empregador, surge o questionamento acerca da possibilidade de extensão dos efeitos da assistência judiciária ao depósito recursal. Verifica-se, portanto, a importância dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e a necessidade de sua observância na seara processual, de forma a garantir aos litigantes a efetiva possibilidade de participação e influência na construção da tutela jurisdicional. Diante disso, de forma a estabelecer a relação entre os princípios supramencionados e o depósito recursal, é necessário desenvolver um estudo acerca dos conceitos, características e particularidades deste instituto. 3 O DEPÓSITO RECURSAL – REGRAS GERAIS 3.1 Conceito e Natureza Jurídica O depósito recursal pode ser compreendido como a condição para a interposição de recursos pelo empregador, quando há condenação pecuniária e consiste no depósito, na conta vinculada do

empregado, do valor da condenação até o limite previamente estabelecido pelo Tribunal Superior do Trabalho, a depender do recurso a ser interposto. Sua disciplina é trazida pelo art. 899, da CLT, com redação dada pela Lei 5.442, de 1968, cujo texto se transcreve parcialmente abaixo: Art. 899 - Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora. § 1º Sendo a condenação de valor até 10 (dez) vezes o salário-mínimo regional, nos dissídios individuais, só será admitido o recurso inclusive o extraordinário, mediante prévio depósito da respectiva importância. Transitada em julgado a decisão recorrida, ordenar-se-á o levantamento imediato da importância de depósito, em favor da parte vencedora, por simples despacho do juiz; § 2º Tratando-se de condenação de valor indeterminado, o depósito corresponderá ao que for arbitrado, para efeito de custas, pela Junta ou Juízo de Direito, até o limite de 10 (dez) vezes o salário-mínimo da região; (...) § 4º - O depósito de que trata o § 1º far-se-á na conta vinculada do empregado a que se refere o art. 2º da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, aplicando-se-lhe os preceitos dessa Lei, observado, quanto ao respectivo levantamento, o disposto no § 1º; § 5º - Se o empregado ainda não tiver conta vinculada aberta em seu nome, nos termos do art. 2º da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, a empresa procederá à respectiva abertura, para efeito do disposto no § 2º; § 6º - Quando o valor da condenação, ou o arbitrado para fins de custas, exceder o limite de 10 (dez) vezes o salário-mínimo da região, o depósito para fins de recursos será limitado a este valor; (...) (BRASIL, 1943). Portanto, verifica-se que o depósito recursal não tem natureza de taxa judiciária, uma vez que não remunera serviço específico prestado pelo Poder Judiciário. Para Carlos Henrique Bezerra Leite, o depósito recursal tem natureza de garantia do juízo (LEITE, p. 847, 2014), uma vez que, com o trânsito em julgado da decisão, o valor depositado deverá ser revertido em favor do empregado, conforme disposto no art. 899, §1º, da CLT, sendo, deste modo, a garantia de uma eventual futura execução. Lado outro, Mauro Schiavi entende que o depósito recursal tem natureza híbrida, tendo em vista que, além da natureza de garantia do juízo, constitui pressuposto objetivo dos recursos nos quais e exigido, uma vez que compõe o preparo a ausência de seu recolhimento importa em deserção, e, consequentemente, no não conhecimento do recurso. Assim, assevera o autor:

2 Art. 790, da CLT: Nas Varas do Trabalho, nos Juízos de Direito, nos Tribunais e no Tribunal Superior do Trabalho, a forma de pagamento das custas e emolumentos obedecerá às instruções que serão expedidas pelo Tribunal Superior do Trabalho. (Redação dada pela Lei nº 10.537, de 27.8.2002) § 1o Tratando-se de empregado que não tenha obtido o benefício da justiça gratuita, ou isenção de custas, o sindicato que houver intervindo no processo responderá solidariamente pelo pagamento das custas devidas. (Redação dada pela Lei nº 10.537, de 27.8.2002) § 2o No caso de não-pagamento das custas, far-se-á execução da respectiva importância, segundo o procedimento estabelecido no Capítulo V deste Título. (Redação dada pela Lei nº 10.537, de 27.8.2002) § 3o É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes dos tribunais do trabalho de qualquer instância conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto a traslados e instrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. (Redação dada pela Lei nº 10.537, de 27.8.2002)

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O depósito recursal, no nosso sentir, tem natureza jurídica híbrida, pois, além de ser um pressuposto recursal objetivo, que, se não preenchido, importará a deserção do recurso, é uma garantia de futura execução por quantia certa. Não se trata de taxa judiciária, pois não está vinculado a um serviço específico do Poder Judiciário, e sim de um requisito para o conhecimento do recurso e uma garantia de futura execução (SCHIAVI, p. 882, 2016). É necessário advertir que o depósito recursal não é exigido para a interposição de todos os recursos no Processo do Trabalho. Este somente é exigido para a interposição de Recurso Ordinário, Recurso de Revista, Agravo de Instrumento, Embargos e Recurso Extraordinário, conforme se depreende da leitura do art. 899, da CLT e da Instrução Normativa nº 3, de 1993, do TST. 3.2 Principais Características Conforme se infere do conceito exposto no início deste Capítulo, bem como da leitura do art. 899, §1º, da CLT, o depósito recursal somente é exigido do empregador. Assim, em nenhuma hipótese, a interposição de recurso pelo empregado estará condicionada à realização do depósito recursal. Referida previsão decorre do Princípio da Proteção, que e inerente ao Processo do Trabalho e que visa equilibrar a situação de hipossuficiência socioeconômica existente entre o empregador e o empregado. Entretanto insta destacar que mesmo o empregador, quando condenado em qualquer prestação que não seja pecuniária, não precisará realizar o depósito recursal, uma vez que o recolhimento deste pressupõe a condenação em pecúnia e sua finalidade é garantir o juízo em uma futura execução. Pelo mesmo motivo, não se exige depósito recursal rsal do empregador que recorre de sentença declaratória ou constitutiva, conforme entendimento pacificado pelo TST através da Súmula nº 1613. No que diz respeito à forma de recolhimento, o depósito recursal deve ser realizado através da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, conforme estabelece a Súmula nº 426, do TST4. Em razão do fato de fazer parte do preparo, sendo, conforme já esclarecido, pressuposto objetivo dos recursos supracitados, o depósito recursal deve ser realizado dentro do prazo de interposição do respectivo recurso, sob pena de deserção. Assim determina a Súmula nº 245, do TST5. Como é cediço, o valor do depósito recursal é correspondente ao do montante da condenação, até o limite previamente estabelecido pelo Tribunal Superior do Trabalho, que deve ser anualmente reajustado, através de ato do Presidente do TST, conforme estabelecido pelo item VI da Instrução Normativa nº 3 de 1993. Atualmente, este limite, de acordo com o ATO nº 326/SEGJUD.GP, de 15 de julho de 2016 é de R$8.959,63 (oito mil novecentos e cinquenta e nove reais e sessenta e três centavos) para a interposição de Recurso Ordinário. No que diz respeito à interposição de Recurso de Revista, Embargos, Recurso Extraordinário

e Recurso em Ação Rescisória, o valor do depósito recursal é de R$17.919,26 (dezessete mil novecentos e dezenove reais e vinte e seis centavos). Em relação ao Agravo de Instrumento, a importância devida a título de depósito recursal será 50% (cinquenta por cento) do valor do depósito do recurso ao qual se pretende destrancar, conforme determina o art. 899, §7º, da CLT. Em se tratando do recolhimento a menor, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou o entendimento de que a insuficiência do depósito recursal, independentemente do montante da diferença, enseja a deserção. É o que se depreende da OJ nº 140, da SDI-1, do TST, abaixo transcrita: OJ nº 140, do TST - Depósito recursal e custas. Diferença ínfima. Deserção. Ocorrência. (Inserida em 27.11.1998. Nova redação - Res. 129/2005, DJ. 20.04.2005) Ocorre deserção do recurso pelo recolhimento insuficiente das custas e do depósito recursal, ainda que a diferença em relação ao “quantum” devido seja ínfima, referente a centavos. Acerca de tal enunciado, a doutrina diverge, havendo autores que defendem que a decretação da deserção em razão de diferença de poucos centavos no depósito recursal seria medida demasiadamente radical. Nesse sentido, assevera Mauro Schiavi: No nosso sentir, em caso de diferença de centavos referente ao depósito recursal, a deserção somente deveria ser decretada após intimação da parte para complementação do depósito e, 24 horas, entretanto, a lei não faz qualquer distinção e não prevê a possibilidade de intimação para a parte complementar o depósito faltante. (p. 887, 2016) Assim, o autor defende a aplicação ao Processo do Trabalho, do art. 932, do Novo Código de Processo Civil, que estabelece que antes de inadmitir o recurso, deve o relator conceder prazo de cinco dias para que o recorrente possa sanar o vício. No mesmo sentido, o art. 1.007, caput, do Código de Processo Civil de 2015, estabelece que a comprovação do recolhimento do preparo deve se dar no ato da interposição do recurso, sob pena de deserção e, em seu §2º, estabelece que “a insuficiência no valor do preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, implicará deserção se o recorrente, intimado na pessoa de seu advogado, não vier a supri-lo no prazo de 5 (cinco) dias” (BRASIL, 2015). Entretanto, a Instrução Normativa nº 16, de 1998, que apresenta a interpretação do Tribunal Superior do Trabalho a respeito do Agravo de Instrumento no âmbito da Justiça do Trabalho, traz, em seu item III, a previsão de que o agravo não será conhecido se não for comprovado o atendimento a todos os pressupostos extrínsecos do recurso, o que inclui o preparo, e, consequentemente, o depósito recursal.

3 Súmula nº 161, do TST: Se não há condenação a pagamento em pecúnia, descabe o depósito de que tratam os §§ 1º e 2º do art. 899 da CLT. 4 Súmula nº 426, do TST: Nos dissídios individuais o depósito recursal será efetivado mediante a utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 899 da CLT, admitido o depósito judicial, realizado na sede do juízo e à disposição deste, na hipótese de relação de trabalho não submetida ao regime do FGTS. 5 Súmula nº 426, do TST: Nos dissídios individuais o depósito recursal será efetivado mediante a utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, nos termos dos §§ 4º e 5º do art. 899 da CLT, admitido o depósito judicial, realizado na sede do juízo e à disposição deste, na hipótese de relação de trabalho não submetida ao regime do FGTS.

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A Súmula nº128, do TST6, incorporou em seu bojo três orientações jurisprudenciais as SDI-1, do TST, e traz importantes disposições a respeito do depósito recursal. A primeira delas, prevista no inciso I, estabelece que o depósito recursal deve ser realizado integralmente pelo recorrente a cada recurso interposto, até atingir o valor da condenação, sob pena de deserção. Já o inciso II, traz a previsão de dispensa de recolhimento do depósito recursal na fase de execução, caso o juízo já esteja garantido por penhora. Referido enunciado deve-se a fato de que a função depósito recursal, conforme anteriormente exposto, é justamente garantir o juízo. Assim, uma vez garantido o juízo, dispensa-se o depósito recursal. Por fim, o inciso III, da Súmula 128 prevê que, em se tratando de condenação solidária, o depósito recursal realizado por um dos empregadores aproveita aos demais, exceto no caso de o realizador do depósito pleitear sua exclusão da lide, quando será necessária a realização de novo depósito. A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho consolidou o entendimento, consubstanciado na Súmula nº 4, de que das Pessoas Jurídicas de Direito Público e do Ministério Público do Trabalho não se exige o depósito recursal. No mesmo sentido, a Súmula nº 86, do TST, exclui a massa falida da exigência do depósito recursal. Deste modo, uma vez apresentadas as regras e caraterísticas do depósito recursal, faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito da constitucionalidade do depósito recursal.

Como analisado, a exigência do depósito recursal como pressuposto de admissibilidade dos recursos trabalhistas ofende os princípios da ampla defesa e do contraditório, na medida em que inviabiliza que o recorrente que não disponha de determinado valor para garantir o juízo, tenha negado o direito de levar a sua lide a conhecimento dos tribunais superiores (ROXO e ALMEIDA, p. 81, 2012). Neste contexto, foram ajuizadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 836 e 884, pela Confederação Nacional da Indústria e pela Confederação Nacional do Comércio, respectivamente. Ambas têm como fundamento os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, consagrados no art. 5º, LV, da Constituição Federal. Estas ações não obtiveram êxito, uma vez que as medidas liminares pleiteadas foram negadas e, diante de alteração superveniente no texto da lei impugnada e ausência de aditamento das petições, estas foram julgadas prejudicadas pelo STF. Acerca do tema, segue a lição de Mauro Schiavi: De nossa par te, a exigência do depósito recursal não viola o acesso à justiça do Trabalho (ar t. 5º, XXXV, da CF), pois o princípio do duplo grau de jurisdição não tem assento constitucional. De outro lado, não há violação do princípio da isonomia (ar t. 5º, caput, da CF), pois há desigualdade econômica entre o reclamante e o reclamado na relação jurídicoprocessual (p. 888, 2016).

3.3 Constitucionalidade do Depósito Recursal Como se sabe, o depósito recursal é instituto surgido com a Consolidação das Leis Trabalhistas, tendo sua disciplina sido alterada ao longo dos anos, até a redação atual, datada de 1968. Assim, com a Nova Ordem Constitucional instituída com a Constituição de 1988, é possível questionar a constitucionalidade do depósito recursal, considerando os Princípios da Isonomia, do Duplo Grau de Jurisdição, do Contraditório e da Ampla Defesa, todos consagrados no art. 5º, da Constituição Federal. Essa é a opinião de Carlos Zangrando, que, citado por Mauro Schiavi, adverte: Com a devida vênia, se no passado o depósito recursal até se justificava devido à situação intrínseca do processo, acreditamos agora, ante a nova feição das normas processuais, este se apresenta mais como uma espécie de punição do que de pressuposto ou outra denominação que se queira dar, além de deixar bem claro o intento de vedar a utilização do remédio processual, especificamente para o pequeno e médio empresário, impedindo a fruição da garantia à ampla defesa prevista na Constituição Federal (p.888, 2016). No mesmo sentido, prelecionam Tatiana Bhering Serradas Bon de Sousa Roxo e Hebert Leopoldino de Almeida:

No mesmo sentido, acrescenta Carlos Henrique Bezerra Leite: Para nós, não há que se falar em inconstitucionalidade do art. 899, da CLT, uma vez que o duplo grau de jurisdição não é princípio absoluto, nem está previsto expressamente na Constituição, já que esta admite até mesmo a existência de instância única (CF, art. 102, III). Doutra parte, o depósito recursal constitui mera garantia do juízo, evitando, assim, a interposição temerária ou procrastinatória de recursos. Ressalte-se, por oportuno, que a exigência do depósito recursal consagra, substancialmente, o princípio da isonomia real, sabido que o empregador é, via de regra, economicamente superior ao empregado. (p. 848, 2014) Assim, resta claro que, em que pese a importância dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, consagrados como direitos fundamentais pela Constituição de 1988, grandes nomes da doutrina do Direito Processual do Trabalho mantêm-se na defesa da constitucionalidade do depósito recursal. Desta feita, uma vez que as Ações Diretas de Inconstitucionalidade do depósito recursal restaram infrutíferas, parte da doutrina passou a defender que a efetividade dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa frente à exigência do depósito recursal, pode ser alcançada através da extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal.

6 Súmula nº 128, do TST: I - É ônus da parte recorrente efetuar o depósito legal, integralmente, em relação a cada novo recurso interposto, sob pena de deserção. Atingido o valor da condenação, nenhum depósito mais é exigido para qualquer recurso. (ex-Súmula nº 128 - alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.03, que incorporou a OJ nº 139 da SBDI-1 - inserida em 27.11.1998); II - Garantido o juízo, na fase executória, a exigência de depósito para recorrer de qualquer decisão viola os incisos II e LV do art. 5º da CF/1988. Havendo, porém, elevação do valor do débito, exige-se a complementação da garantia do juízo. (ex-OJ nº 189 da SBDI-1 - inserida em 08.11.2000); III - Havendo condenação solidária de duas ou mais empresas, o depósito recursal efetuado por uma delas aproveita as demais, quando a empresa que efetuou o depósito não pleiteia sua exclusão da lide. (ex-OJ nº 190 da SBDI-1 - inserida em 08.11.2000) LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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CLT. Precedentes da SBDI-2. Recurso ordinário não conhecido. (RO - 5159-59.2014.5.09.0000 , Relatora Ministra: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 21/06/2016, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 24/06/2016)

4 EXTENSÃO DOS EFEITOS DA JUSTIÇA GRATUITA AO DEPÓSITO RECURSAL – ANÁLISE SOB A LUZ DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA Preliminarmente, faz-se necessário apontar que apesar de o art. 790, da CLT e o art. 14, da Lei 5.584/1970, que disciplinam a concessão de justiça gratuita no Processo do Trabalho preverem a concessão de tal benefício apenas ao empregado, tanto a doutrina quanto a jurisprudência já consolidaram o entendimento de que é possível a concessão de justiça gratuita ao empregador, divergindo apenas quanto a seu alcance. Carlos Henrique Bezerra Leite entende que somente os empregadores pessoa física podem ser beneficiados pela justiça gratuita, e assevera: Parece-nos viável, porém, com base no art.5º, LXXIV, da CF, a concessão do benefício da gratuidade (justiça gratuita) quando se tratar de empregador pessoa física que declarar, sob as penas da lei, não possuir recursos para o pagamento das custas sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, como nos casos de empregador doméstico, trabalhadores autônomos quando figurarem como empregadores ou pequenos empreiteiros na mesma condição. (p. 494 e 495, 2014) Acerca do tema, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho editou a Resolução nº 35, de 2007, que, em seu art. 2º, §1º determina que “a concessão de justiça gratuita ao empregador, pessoa física dependerá da comprovação de situação de carência que inviabilize a assunção dos ônus decorrentes da demanda judicial” (BRASIL, 2007). Todavia, o Tribunal Superior do Trabalho admite a concessão da justiça gratuita ao empregador pessoa jurídica, desde que comprovada nos autos a real incapacidade econômica para arcar com as custas processuais. Ilustra referido entendimento a ementa abaixo colacionada: RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DO CPC DE 1973. AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS. PEDIDO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA FORMULADO POR PESSOA JURÍDICA SOMENTE NO RECURSO ORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA IMPOSSIBILIDADE DE SUPORTAR AS DESPESAS PROCESSUAIS. DESERÇÃO. O entendimento desta egrégia Corte Trabalhista é de que os benefícios da justiça gratuita excepcionalmente podem ser aplicados às pessoas jurídicas. Entretanto, verifica-se, em tais casos, a necessidade de comprovação, de forma consistente, da real incapacidade econômica da parte para responder pelas despesas processuais, fato que não ocorreu no presente caso. Na hipótese, a pessoa jurídica realizou, inicialmente, o depósito prévio para ajuizamento da Ação Rescisória no valor de R$31.122,05 (fl. 16), requerendo a concessão da gratuidade de justiça apenas no momento da interposição do recurso ordinário, quando já havia sido condenada ao pagamento das custas processuais pelo TRT, no importe de R$3.112,20 (fl.136). Ocorre que os documentos anexados no momento da interposição do recurso de ordinário, em especial os extratos bancários, não servem para comprovação do real estado de miserabilidade da pessoa jurídica. Assim, a ausência de comprovação do recolhimento das custas processuais, por ocasião da interposição do recurso ordinário, implica inviabilidade do seu conhecimento por faltar-lhe preenchimento de requisito extrínseco do preparo no prazo recursal, tal como previsto no art. 789, § 1º, da

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Este também é o entendimento adotado pelo Código de Processo Civil de 2015, uma vez que seu art. 98, caput, garante expressamente a gratuidade de justiça à pessoa física ou jurídica que se encontre em situação de insuficiência de recursos para arcar com as despesas processuais e honorários advocatícios. Feitas estas considerações, é possível avançar no estudo acerca da possibilidade de extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal. Conforme anteriormente mencionado, uma das maneiras de garantir o Acesso à Justiça é a Assistência Judiciária, disciplinada pela Lei 1.060/1950, que consiste na concessão de gratuidade de justiça às pessoas, físicas ou jurídicas, que se declararem pobres na forma da lei, ou seja, com insuficiência de recursos para o pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios sem prejuízo de seu próprio sustento ou de sua família. Verificase, nesse contexto, que a pretensão desta lei é fazer com que a hipossuficiência financeira não constitua óbice para que o sujeito apresente sua demanda ao Judiciário. O art. 3º, da Lei 1.060/1950 estabelecia quais as espécies de despesas processuais compreendiam a gratuidade da justiça e, em sua redação original, nada dispunha acerca de incluir ou excluir o depósito recursal da sua esfera de incidência. Assim, ante ao silêncio da lei, o entendimento majoritário era o de que a concessão da Assistência Judiciária não abrangia o depósito recursal. Entretanto, a Lei Complementar 132/2009 cuidou de incluir o inciso VII ao art. 3º da Lei 1.060/1950, que estabeleceu que a concessão da justiça gratuita abrange os “depósitos previstos em lei para a interposição de recursos, ajuizamento de ação e demais atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório” (BRASIL, 1950). Deste modo, as discussões acerca da extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal ganharam força, uma vez que, em que pese o Processo do Trabalho contar com disciplina própria a respeito da concessão da justiça gratuita, a Lei 1.060/1950 passou a ter previsão expressa nesse sentido. Contudo, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho manteve o entendimento de que a assistência judiciária não abrange o depósito recursal, conforme se depreende da ementa abaixo: RECURSO DE REVISTA. DESERÇÃO DO RECURSO DE REVISTA. BENEFÍCIOS DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. EMPREGADOR. DEPÓSITO RECURSAL. GARANTIA DO JUÍZO. PROVIMENTO. A jurisprudência desta colenda Corte Superior é no sentido de que o benefício da assistência judiciária gratuita extensível ao empregador não compreende o depósito recursal, que constitui garantia do juízo, à luz do artigo 899, § 1º, da CLT e da Instrução Normativa nº 3/93, I. Assim, ainda que concedido o benefício da justiça gratuita à reclamada, se não efetivado o depósito recursal, o recurso deve ser considerado deserto. Recurso de revista conhecido e provido. (TST - Processo: RR - 105-43.2011.5.15.0100. Data de Julgamento: 30/04/2014, Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 09/05/2014) (BRASÍLIA. Tribunal Superior do Trabalho, 2014). Corrobora com este entendimento o posicionamento de Mauro Schiavi, que assevera:

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Ainda que o empregador (reclamado) obtenha os benefícios da Justiça Gratuita, em nossa visão, não estará isento do depósito recursal, pois este, conforme mencionamos, não tem natureza de taxa judiciária. Além disso, o art. 5º, LV, da CF, não assegura o princípio do duplo grau de jurisdição, devendo a parte, quando recorrer, observar os pressupostos objetivos e subjetivos de recorribilidade. (p. 889, 2016) Desta feita, verifica-se que o argumento adotado tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência para negar a extensão do benefício da justiça gratuita ao depósito recursal consiste no fato de que este tem natureza jurídica de garantia, e não de custa judicial, não sendo mencionada a previsão do art. 3º, VII, da Lei 1.060/1950. Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, algumas das disposições da Lei 1.060/1950 foram revogadas, passando a ser disciplinadas pelo novo Estatuto Processual Civil, dentre as quais, encontra-se o rol de despesas processuais abrangidas pelo benefício da justiça gratuita. Entretanto não houve alteração significativa em relação ao rol previsto no art. 3º do texto legal anterior, tendo sido mantida a previsão relativa aos depósitos, conforme se verifica do art. 98, §1º, VIII, verbis: Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. § 1o A gratuidade da justiça compreende: VIII - os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório (BRASIL, 2015). Considerando a aplicabilidade subsidiária da legislação processual civil ao Processo do Trabalho, e a iminência da entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa nº 39/2016, de forma a esclarecer quais disposições se aplicam ao Processo do Trabalho e quais não se aplicam. Da leitura da Instrução Normativa em comento, verifica-se que, no que tange à previsão trazida pelo art. 98, §1º, VII, que garante que a o benefício da justiça gratuita engloba os depósitos legalmente exigidos para ajuizamento de ações e interposição de recursos, não há nenhuma disposição no sentido de determinar que este artigo não se aplica ao Processo do Trabalho. Ainda assim, mesmo ante a ausência de vedação da aplicação do art. 98, §1º, VII, do Código de Processo Civil de 2015, a doutrina permanece inflexível, conforme demonstra o entendimento de Mauro Schiavi: Pelo exposto, conclui-se que o art. 98, §1º, VII, do CPC, não se aplica ao processo do trabalho quanto ao depósito recursal, pois este tem natureza jurídica não só de um pressuposto recursal, mas também de garantia para a execução. Sob outro enfoque, a regra específica do art. 899, da CLT prevalece sobre a regra geral do CPC, que não fora idealizada para o processo do trabalho (p. 892, 2016). Verifica-se, contudo, que, em que pese a resistência da doutrina e da jurisprudência do TST, conforme acima demonstrado, não há óbice para a extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal. Na verdade, ao contrário do entendimento predominante, a lei traz previsão expressa no sentido de que os depósitos legalmente exigidos para o ajuizamento de ações e interposição de recursos, sendo este o caso do depósito recursal, são abrangidos pela concessão da justiça gratuita, como forma de efetivação do Contraditório e da

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Ampla Defesa. O beneficiário da justiça gratuita tem judicialmente reconhecida sua situação de hipossuficiência financeira, na medida em que este benefício somente pode ser concedido pelos Magistrados àqueles que declarem sua insuficiência de recursos para arcar com as despesas decorrentes do processo. Deste modo, mostra-se inaceitável a negativa de extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal, uma vez que o valor das custas processuais, das quais o beneficiário da justiça gratuita é isento, é consideravelmente inferior à quantia exigida a título de depósito recursal, o que constitui verdadeiro contrassenso. Ademais, conforme já demonstrado, há previsão legal expressa nesse sentido desde a entrada em vigor da Lei Complementar 132, de 2009, que incluiu o inciso VII ao art. 3º, da Lei 1.060/1950 e, atualmente, referida disposição passou a constar do Código de Processo Civil de 2015, que se aplica subsidiariamente ao Processo do Trabalho. O instituto da Assistência Judiciária, do qual deriva o benefício da justiça gratuita, tem a finalidade de garantir que o Acesso à Justiça não fique condicionado à situação financeira dos litigantes. Deste modo, negar a extensão dos efeitos da justiça gratuita ao depósito recursal esvazia a finalidade do benefício da justiça gratuita, vulnerando as garantias constitucionais do Acesso à Justiça, do Contraditório e da Ampla Defesa. 5 CONCLUSÃO Como visto, o presente trabalho teve início com a apresentação do Princípio do Acesso à Justiça, que consiste na garantia de apresentar demandas ao Poder Judiciário, mas que também pressupõe um provimento jurisdicional de qualidade, com a efetiva participação das partes em um processo com duração razoável e dirigido por um juízo imparcial. Neste contexto, demonstrou-se que os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, consagrados pela Constituição Federal de 1988, surgem como desdobramentos do Princípio do Acesso à Justiça e se relacionam com a garantia às partes do direito de participar efetivamente da constituição da tutela jurisdicional, se manifestar sobre os atos processuais, produzir e contradizer provas e se defender de maneira tão ampla quanto o direito admite. Apresentados os princípios supracitados, cuidou-se de estabelecer sua relação com o Depósito Recursal, instituto específico do Processo do Trabalho e que condiciona a interposição de recursos pelo empregador ao recolhimento de elevada quantia em dinheiro para garantir o juízo em uma eventual futura execução, demonstrando que este impede o pleno exercício do Contraditório e da Ampla Defesa pelo empregador. Assim, de forma a elucidar a relação entre o Depósito Recursal e os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, fez-se necessário tecer uma análise mais profunda a respeito daquele instituto, tanto a respeito de sua disciplina legal, tratando de seu conceito, natureza jurídica, recursos aos quais se aplica, forma de recolhimento, prazo, valor do limite estabelecido pelo Tribunal Superior do Trabalho, entre outras regras, como em relação ao entendimento jurisprudencial acerca do tema, consolidado através de Súmulas do TST. Uma vez exposta a disciplina legal e principais características do Depósito Recursal, tornou-se possível apresentar a controvérsia a respeito de sua constitucionalidade, uma vez que parte da doutrina defende que, com o advento da Constituição Federal de 1988, que consagrou os princípios acima descritos, o Depósito Recursal teria deixado de ser compatível com o ordenamento jurídico pátrio, não tendo sido, portanto, recepcionado pela Nova Ordem Constitucional. Neste ponto, foi demonstrada a intensa divergência acerca do

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tema, posto que a doutrina majoritária, assim como a jurisprudência do TST defendem que não há inconstitucionalidade no Depósito Recursal sob o argumento de que este não viola o Contraditório e a Ampla Defesa, uma vez que tem natureza jurídica de garantia do juízo e sua finalidade é impedir a interposição de recursos protelatórios. A discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, conforme mencionado, não decidiu a questão uma vez que as Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas foram julgadas prejudicadas em razão de ausência de aditamento em face de alteração superveniente do texto da lei impugnada. A respeito da inconstitucionalidade do Depósito Recursal, entende-se que esta mostra-se evidente, justamente em razão de não ser compatível o Novo Ordenamento Constitucional, por vulnerar os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Entretanto, uma vez que não há manifestação do STF sobre o tema, nos dias atuais o Depósito Recursal permanece exigível. Entretanto, a legislação infraconstitucional estabelece meios de efetivação do Contraditório e da Ampla Defesa, destacando-se, conforme abordado, a Lei 1.060/1950, que disciplina a Assistência Judiciária, e que concede o benefício da Justiça Gratuita àqueles se declarem impossibilitados de arcar com as despesas processuais sem o prejuízo do sustento próprio ou dos familiares. Ocorre que, com a Lei Complementar 132/2009, os depósitos legalmente exigidos para o ajuizamento de ações e interposição de recursos foram incluídos no rol de despesas processuais alcançadas pela concessão de Justiça Gratuita, razão pela qual tomaram força as vozes que defendiam a possibilidade de extensão dos efeitos da justiça gratuita ao Depósito Recursal. E, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, este passou a estabelecer o rol de despesas englobadas pela Assistência Judiciária, também prevendo os depósitos. Contudo, em que pese a previsão legal expressa, tanto a doutrina quanto a jurisprudência permanecem com o entendimento no sentido de negar a possibilidade de extensão dos efeitos da justiça gratuita ao Depósito Recursal, sustentando que, a natureza jurídica deste instituto, qual seja, a de garantia do juízo, impediria a isenção do Depósito. A minoria que se posiciona de forma contrária, o faz ao argumento de que, desde a Lei Complementar 132/2009, há previsão expressa de que a concessão da Justiça Gratuita inclui o Depósito Recursal e, nos dias atuais em que a previsão passou a constar do Código de Processo Civil, a aplicação subsidiária deste ao Processo do Trabalho permitiria a isenção do Depósito Recursal aos beneficiários da Justiça Gratuita. Acerca do tema, entende-se estar com a razão a minoria. Ora, conforme já amplamente indicado, a lei é expressa no sentido de prever a concessão de Justiça Gratuita incluindo o Depósito Recursal. Exigir o recolhimento de quem sabidamente não tem condições de arcar com as despesas processuais, uma vez que beneficiário da justiça gratuita, contraria todos os princípios nos quais se baseia o Estado Democrático de Direito, uma vez que impede o verdadeiro e efetivo Acesso à Justiça.

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Banca Examinadora: Tatiana Bhering Serradas Bom Roxo (Orientadora) Denise Borges da Costa (Examinadora 1) Julio César Grossi Silva (Examinador 2)

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O PSICOPATA E O SISTEMA PUNITIVO ESTATAL: UMA REFLEXÃO A LUZ DO DIREITO PENAL BRASILEIRO THE PSYCHOPATH AND THE STATE PUNITIVE SYSTEM: A REFLECTION TO THE LIGHT OF BRAZILIAN CRIMINAL LAW Luma Virgínia Pereira Firmo da Silveira1

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é conceituar a psicopatia considerando as características peculiares desse grupo específico que são o transtorno mental incurável e a alta possibilidade de reincidência, bem como avaliar quais são as alternativas que o direito penal pode nos apresentar, tendo em vista que as medidas aplicadas atualmente são ineficazes. Propondo como uma possível solução a criação de leis próprias e presídios adequados com tratamento médico específico, garantindo a dignidade da pessoa humana e a paz social de forma que não traga prejuízo no cumprimento da pena e após esse período. PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Medida de Segurança. Psicopatia.

ABSTRACT: The objective of this study is to conceptualize psychopathy considering the peculiar characteristics of this particular group are incurable mental disorder and the high possibility of recurrence, and assess what are the alternatives that criminal law can provide us with a view that the measures applied are currently ineffective. Proposed as a possible solution to create own laws and appropriate prisons with specific medical treatment, guaranteeing human dignity and social peace so it does not bring prejudice to the sentence and thereafter. KEYWORDS: Psychopathy. Penal Code. Security Measure.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Conceito de Crime e de psicopatia. 2.1 Material. 2.2 Legal. 2.3 Formal. 3 Direito Penal e criminologia. 4 Imputabilidade e semi-imputabilida de penal. 5 Sanções Penais aplicáveis a psicopatas. 6 Medida de Segurança. 6.1 Análise Preliminar. 6.2 Natureza Jurídica. 6.3 Distinção entre pena e medida e segurança. 6.4 Pressuposto de aplicabilidade e periculosidade. 6.5 Espécies de Medida de Segurança. 6.6 Limites Temporais. 6.7 Perícia Psiquiátrica Forense. 7 A dificuldade da aplicação da medida de segurança ao psicopata. 8 A ineficiência da punição aos psicopatas no sistema penal brasileiro. 8.1 A medida de segurança como forma ineficiente de sanção. 9 Solução aplicável aos casos de psicopatia. 10 Uma análise dos casos concretos. 11 Considerações Finais. Referências.

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO A mente criminosa é objeto de curiosidade e estudo, sendo a Criminologia a ciência empírica responsável pelos estudos e análises comportamentais dos indivíduos, buscando as causas e fundamentos da criminalidade. A criminologia é elemento fundamental no Direito Processual Penal, porque visa estipular tratamento adequado ao criminoso, traçando características comportamentais, de personalidade e contextossociais, a que estes indivíduos estão inseridos, auxiliando na aplicação da justiça e tendo como finalidade a eficácia das punições e métodos para a ressocialização e tratamento do réu. A expressão psicopata causa repulsa a maior parte dos ouvintes remetendo a uma ideia popularmente relacionada à “serial-killers” (famosos assassinos em série), filmes americanos, assassinos frios e cruéis distantes da realidade brasileira. Contudo, essa é uma ideia advinda do senso comum e não muito condizente com a realidade. Por mais que não queiramos admitir, fato é que eles estão por toda parte. Para identificar um psicopata é necessário conhecimento técnico e abordagem adequada devido à capacidade de adaptação e persuasão que os estes possuem, normalmente são dotados de personalidade carismática e inteligência elevada, sendo que poucos são os casos em que apresentam característica antissocial. Eles estão ao nosso redor e muito se parecem com os seres considerados “normais”. O presente trabalho visa demonstrar o psicopata como autor de conduta criminosa que possui capacidade de compreensão de seus atos, mas por suas características psicológicas e formação cerebral alterada não podem conviver com outros encarcerados comuns, pois daria a eles incentivo para cometer crimes no sistema prisional, além de manipulação de todos que façam parte de seus grupos de convivência. A aplicação da medida de segurança, bem como a apresentação de tratamento diferenciado a serem dispensados a esses indivíduos tendo como objetivo não só a punição pelo crime cometido, mas também o tratamento adequado, considerando a impossibilidade de prisão perpétua e pena de morte, ambas com vedação expressa na Constituição Federal Brasileira, diferente do que ocorre em outros países que dispensam a estes a pena de prisão perpétua ou pena de morte quando possível. 2 CONCEITO DE CRIME E DE PSICOPATIA O conceito de crime é de forma superficial, segundo entendimento majoritário, todo fato típico, ilícito e culpável, porém, esta resposta não é adequada devendo ser mais técnica e minuciosa considerando três aspectos: material, formal e legal. Material – considerando esse critério crime seria toda ação ou omissão que pudesse oferecer risco ou lesão aos bens jurídicos tutelados que fossem punidos penalmente. Sendo assim a conduta deveria apresentar pertinência jurídica. Legal – nesse critério crime é todo aquele apresentado pelo legislados, como exemplo, o artigo 1° da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/41). Art. 1º – Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (BRASIL,1941) Formal – baseia-se na estrutura do crime, com a posição majoritária, tripartida, onde crime é fato típico, ilícito e culpável. Mas pode LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

ser entendido de forma ampla para conformar um entendimento maior e mais abrangente. A psicopatia é um distúrbio psiquiátrico que afeta toda a personalidade e comportamento do indivíduo, que muitas vezes é associado a uma ideia midiática e sensacionalista criada por alguns personagens fictícios, bem distante da realidade. O conceito de psicopatia está diretamente relacionado à incapacidade de criar sentimentos e relações afetivas, os psicopatas não se adaptam socialmente e possuem total falta de capacidade de lidar com os impulsos e com a raiva. A psicopatia é uma anomalia cerebral que consiste na falta de conexão entre o sistema límbico e o córtex pré-frontal do cérebro onde as emoções são controladas, por isso os não conseguem ter um convívio social de qualidade. É importante salientar que a psicopatia e a psicose são coisas distintas e não devem ser confundidas a primeira, é um transtorno de personalidade incurável e sem tratamento, a segunda, é a completa perda do senso de realidade em determinado período de tempo e podem ser controladas com a administração de medicamentos adequados. Destaca-se também, nesse contexto que nem todos os psicopatas são criminosos e não há como definir se um psicopata vai cometer um crime ou não, eles apenas possuem um potencial maior que os demais indivíduos por terem uma característica de ausência de sentimentos, o que os fazem não ter a capacidade de aprender com a punição, fazendo necessária uma forma diferenciada de tratamento. Os indivíduos que sofrem de transtornos psicóticos sofrem delírios e alucinações e por esse motivo podem chegar a cometer crimes. Já os psicopatas são manipuladores, frios e calculistas, sabem que estão cometendo um crime e tentam controlar as situações de forma que não sejam descobertos. Há de se destacar o grande conflito doutrinário a esse conceito na esfera da ciência psiquiátrica, mas esse é o real motivo para se encontrar o ponto certo dessa questão. 3 DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA Inicialmente, devemos compreender a função do Direito Penal, que não é única e exclusivamente de punir, mas principalmente de tutelar pelos bens jurídicos de fundamental importância para a vida humana, como a vida e a integridade física e psíquica que são primordiais para o cumprimento da função. Todos esses bens tutelados pelo direito penal funcionam na verdade, com fundamento no Princípio da intervenção mínima e só são abarcados pelo direito penal quando nenhum dos outros ramos do direito foi capaz de tutelar e primar por estes. A função do direito penal, além de tutelar esses bens é tipificar os crimes no ordenamento jurídico, estabelecer penas e prever quais medidas devem ser aplicadas como punição para cada crime cometido viabilizando também o cumprimento desta, criando formas e regimes específicos para o efetivo exercício da lei. Considerando o conceito de crime já citado anteriormente, de forma analítica, crime é topo fato típico, por ter previsão legal que proíbe a conduta, ilícita, que é a conduta contrária ao que se previa em lei como ilegal, por fim, culpável que é possuir a consciência da conduta ilegal cometida. Assim sendo, quando há simultaneamente esses elementos há a concretização da conduta criminosa. Para que essa conduta criminosa seja efetivamente punível é necessário que o agente seja imputável, ou seja, possível atribuir a conduta do agente os três elementos que configuram a consciência do autor sobre o ato ilícito cometido. Todavia, o Código Penal brasileiro aduz que “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente

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incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” As características trazidas por esse artigo apresentam os critérios psicológicos que determinas a inimputabilidade penal ao sujeito, sendo que se todos forem preenchidos o autor será considerado completamente inimputável, não cabendo a ele a imputação de fato criminoso. São dois os critérios trazidos pelo código supracitado, primeiro de formação mental incompleta ou doença mental, nesse caso o termo doença mental é de imensa amplitude ficando a cargo dos médicos forenses determinarem com conhecimentos técnicos adequados o que se enquadra nesse critério. Segundo, o de completa incapacidade de entender o caráter ilícito do ato cometido, sendo essa incapacidade permanente ou transitória, sendo que nesse caso deveria ocorrer no tempo da ação. Quando constatada essa incapacidade o Juiz deverá inocentar o réu, conforme disposto no artigo 386, inciso VI do Código de Processo Penal, conferindo ao caso o conceito de absolvição imprópria. Para Nelson Hungria criminologia é “o estudo experimental do fenômeno do crime, para pesquisar-lhe a etiologia e tentar sua debelação por meios preventivos ou curativos”. (HUNGRIA, 2002) A criminologia surgiu ao fim do século XIX, baseando-se na sociologia e psicologia e é o estudo aprofundado da Ciência Penal, que analisa de forma minuciosa a conduta e o comportamento delinquente e das circunstâncias que conduzem o indivíduo a esse ato. A criminologia é de fundamental importância para os estudos sociais criminológicos servindo de alicerce para a criação de Leis e aplicação do Código Penal. Compreender as razões pelas quais o indivíduo comete um crime, quais as razões sociais e psicológicas corroboraram para o ato delinquente é extremamente significativo para identificar a postura da sociedade e do Estado para com indivíduo, concluindo-se que o Direito Penal é a ciência que aplica leis em consequência de atos infracionais, enquanto a criminologia é a ciência que estuda a causa, a primeira é proibitiva estabelecendo pena aos atos proibidos já a segunda é o processo de observação da personalidade e da conduta. 4 IMPUTABILIDADE E SEMI-IMPUTABILIDADE PENAL A imputabilidade penal é um elemento de culpabilidade, que determina a capacidade que o indivíduo possui para discernir sobre sua conduta, compreendendo a ilicitude de seus atos. Essa responsabilidade é divida em dois elementos, intelectivo, que é a plenitude da saúde mental física que possibilita o entendimento da ilicitude dos atos, e o volitivo, que é o controle emocional do indivíduo permitindo a escolha consciente das atitudes praticadas. Esses elementos devem estar elencados de forma simultânea para que sejam caracterizados, sendo que caso haja a ausência de algum desses, como fatos determinantes que são, o agente será tratado como inimputável. Nas palavras de Cleber Masson, a inimputabilidade penal é caracterizada como “a incapacidade mental, inerente ao ser humano de, ao tempo da ação ou da omissão, entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento” (MASSON, 2015, p.504) Para Fernando Capez a semi-imputabilidade é definida como: A perda de parte da capacidade de entendimento e autodeterminação, em razão de doença mental ou de desenvolvimento incompleto ou retardado. Alcança os indivíduos em que as perturbações psíquicas tornam menor o poder de autodeterminação e mais fraca a resistência interior em relação à prática do crime. Na verdade, o agente é imputável e responsável por ter alguma noção do

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que faz, mas sua responsabilidade é reduzida em virtude de ter agido com culpabilidade diminuída em consequência das suas condições pessoais. (CAPEZ, 2011, p.346) A semi-imputabilidade não impede que o indivíduo seja condenado e também não afasta a culpabilidade assim, deve ser condenado pelo fato que cometeu e o juiz deve conforme lei reduzir a pena de 1 (um) a 2/3 (dois terços), como este pode necessitar de especial tratamento devido ao grau de periculosidade, o juiz deverá substituir a pena por medida de segurança conforme disposto no artigo 98 do Código Penal. 5 SANÇÕES PENAIS APLICÁVEIS AOS PSICOPATAS O termo sanção é uma ação punitiva a qual sofre o indivíduo que comete um ato ilícito, para que haja a aplicação ou execução da sanção é necessário processo penal adequado. A sanção pode ser classificada em pena, que é subdividida em restritiva de direitos, de liberdade e pecuniárias ou medida de segurança. Segundo Cleber Masson sanção penal é “a resposta estatal, no exercício do ius puniendi e após o devido processo legal, ao responsável pela prática de um crime ou de uma contravenção penal. Dividese em duas espécies: penas e medidas de segurança.” (MASSON, 2015, p.603) A medida de segurança é a sanção que tem como objetivo principal prevenir para que não ocorram novos crimes por parte do apenado e realizar atividade terapêutica para tratar a enfermidade mental, controlando a periculosidade do mesmo. O artigo 96 do Código Penal Brasileiro dispõe sobre as medidas de segurança: “As medidas de segurança são: I – internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II – sujeição a tratamento ambulatorial.”. O artigo 97, do mesmo código supracitado aduz que o juiz deverá determinar como será a internação ou tratamento ambulatorial do autor. Rogério Greco nos esclarece que se o juiz optar pela aplicação de medida de segurança fica a critério a forma que esta deverá ser aplicada. Em suas palavras, “Independentemente dessa disposição legal, o julgador tem a faculdade de optar pelo tratamento que melhor se adapte ao inimputável, não importando se o fato definido como crime é punido com pena de reclusão ou detenção.” (GRECO, 2015 p.756) A Lei de Execução Penal em seu artigo 171 determina que após o trânsito em julgado da sentença que aplicar medida de segurança deverá ser expedido guia para execução, sendo ilegal o cumprimento da pena sem esse requisito. O artigo 173 da mesma lei preconiza que a guia deverá conter todas as informações importantes ao cumprimento da pena, como dados do agente, documentos do processo, a data de prazo mínimo para o cumprimento da medida e outras peças fundamentais ao tratamento do internado além de ofício para comunicação ao Ministério Publico. 6 MEDIDA DE SEGURANÇA 6.1 Análise Preliminar As medidas de segurança atuam no monitoramento social, tentando apartar o risco eminente do individuo que sofre a medida e que praticou ilícitos penais. Essa é a forma de controle do Estado aos casos concretos. Foi no século XVI que as medidas de segurança começaram a serem aplicadas como forma de correção e adiante foram sendo positivadas em diversos textos legais de direito penal, com sanções

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restritas a aplicação aos incapazes. A escola sociológica positivista se pautava em que a criminalidade emanava de condições biológicas particularizando uma personalidade própria do agente e sua natureza criminosa. Cesare Lombroso foi um dos pioneiros da escola positivista, afirmava que o criminoso já nascia em sua essência com suas características. “Há um determinado absoluto, no qual não tem lugar a vontade humana, pois o individuo já vem ao mundo estigmatizado por sinais de degenerência, malformação e anomalias anatômicas e funcionais relacionadas ao seu psiquismo.” (CAPEZ, 2004, p 284) Assim, mostra-se que o psicopata não possui o controle de suas ações, não conseguem dominar a própria mente devido à ausência de controle emocional pela deficiência causada entre o córtex préfrontal e o sistema límbico.

preceitos para que sejam aplicados às medidas de segurança é que haja ato considerado crime e periculosidade do autor podendo ser aplicados tanta a inimputáveis quanto a semi-inimputáveis estipulando apenas tempo mínimo de sua aplicação. Para que haja aplicação da medida deve haver concomitantemente o preenchimento de todos os requisitos formais do crime. Presentes os requisitos legais da tipicidade da conduta deve ser realizada pericia forense para que seja evidenciada a periculosidade do autor. A periculosidade pode ser considerada a possibilidade de reincidência da conduta criminosa ou o estado mental grave que impeça o convívio social.

6.2 Natureza Jurídica

Conforme dispostos no artigo 96 do Código Penal Brasileiro, as medidas de segurança podem ser classificadas em duas espécies. A primeira é a possível internação em hospital de custodia para o devido tratamento psiquiátrico ou estabelecimento similar ou tratamento ambulatorial.

Alguns juristas entendem que as medidas de segurança são parte integrante do direito administrativo sendo considerados como poder de polícia estatal, sendo materialmente administrativas e formalmente penais, segundo Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Para parte majoritária dos doutrinadores, as medidas de segurança possuem natureza jurídica do direito penal, pois a sanção do Estado na execução penal com o objetivo de impedir que o agente se torne reincidente. Para o Supremo Tribunal Federal, a medida de segurança também é espécie do gênero da sanção penal, conforme o Habeas Corpus nº 86.888. Por fim, resta claro que as medidas de segurança possuem espécie do gênero sanção penal classificada como pena e com objetivo especifico de evitar a reincidência e proteger a sociedade, conforme o grau de periculosidade do agente.

6.5 Espécies de Medida de Segurança

Art. 96. As medidas de segurança são: I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado; II - sujeição a tratamento ambulatorial. Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. (BRASIL, 1940) Acerca das medidas de segurança o artigo 97, §1º e §2º do Código Penal Brasileiro diz que a tempo pré-fixado para estas possuam prazo mínimo, sendo este de 1(um) a 3(três) anos e cessando apenas após a comprovação do termino da periculosidade do agente através de laudo pericial após o cumprimento do mínimo estabelecido em sentença condenatória conforme artigo 176 da lei de Execução Penal.

6.3 Distinção entre pena e medida de segurança 6.6 Limites temporais Em consequência da pena e da medida de segurança serem tidas como duas formas distintas de aplicação sanção penal faz-se necessário caracterizá-los. No conceito de Damásio E. de Jesus, a pena é conceituada como “ sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), com retribuição de seu ato ilícito, consiste na diminuição de um bem jurídico e cujo fim é evitar novos delitos.”(JESUS, 2003, p 339) Para Fernando Capez a sanção penal tem cunho aflitivo e é imposta pelo Estado através de sentença penal condenatória que restringe um bem jurídico objetivando a punição do individuo. Damásio ainda acrescenta que a pena possui caráter retribuitivo – preventivo. O primeiro tem como objetivo a justiça correspondendo ao mal causado. O segundo com objetivo de impedir nova prática delituosa. Mais um ponto que as diferenciam é o marco temporal da pena que aplicada de forma simples possui prazo pré-determinado, já a medida de segurança é por tempo indeterminado, tendo como critério a cessação da periculosidade ou a cura do agente. 6.4 Pressuposto de aplicabilidade e periculosidade Para a aplicação de medida de segurança, seja legitima, é necessário que sejam preenchidos alguns requisitos. Os artigos 97 e 98 do Código Penal Brasileiro aduzem que os

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A legislação penal vigente apresenta apenas período mínimo para a aplicação de medida de segurança, pois isso a prazo de duração é indeterminado sendo comprovada por laudo pericial, sendo se constatada a cessação, o individuo é colocado em liberdade. A critica aplicável ao limite temporal das medias provisórias é de que estas ferem o artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b” da Constituição Federal Brasileira, bem como o artigo 75 do Código Penal Brasileiro que impedem a prisão perpétua não podendo qualquer pena ser superior a 30 (trinta) anos. Porém muitos acreditam na eficácia de sua aplicação, cumprindo com outro direito fundamental previsto na Constituição Federal Brasileira, que é o direito a vida e a proteção social. Para o Supremo Tribunal Federal o prazo máximo para a aplicação da medida de segurança é também de 30 (trinta) anos, legalizando um comparativo com as penas privativas de liberdade, conforme ficou decidido o Habeas Corpus nº 135.504. 6.7 Perícia psiquiátrica Forense Alguns julgamentos não se restringem ao meritório saber jurídico, necessitam de conhecimento técnico especifico por isso os juízes recorrem a outros profissionais para que com laudos técnicos possam fundamentar suas decisões. Nos casos psiquiátricos a pericia tem como objetivo esclarecer

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ao juízo de forma concreta sobre a capacidade do agente em identificar a ilicitude ou não do ato realizado. Por fim, delimita a responsabilidade do periciado, classificando sua imputabilidade. Os laudos periciais dão credibilidade ao julgamento promovendo a justiça em seu sentido amplo. 7 A DIFICULDADE DA APLICAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA AO PSICOPATA Diante o exposto anteriormente, os indivíduos que são considerados inimputáveis sofrem de isenção da pena e aplicação de medida de segurança, considerando que no tempo da ação não eram capazes de discernir sobre a ilicitude da conduta. Quanto aos considerados semi-imputáveis a pena pode ser permutada por medida de segurança caso seja necessário tratamento especial, tendo a cura como objetivo principal, conforme disposto nos artigos 26 e 98 do Código Penal, concomitantemente. Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Redução de pena Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Menores de dezoito anos. Art. 98 - Na hipótese do parágrafo único do art. 26 deste Código e necessitando o condenado de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, nos termos do artigo anterior e respectivos §§ 1º a 4º. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) (BRASIL, 1984). Para Antônio Jose Eça aos indivíduos portadores de personalidade psicopática deveriam ser tratados como semi-imputáveis. Este é o problema: deve ser ressaltado que os portadores de personalidade psicopática não têm a capacidade necessária de autodeterminação. Serão, portanto, considerados semi-imputáveis, pois conseguem entender o caráter criminoso do fato, mas não têm capacidade de se determinar frente ao cometimento do ilícito penal. (EÇA, 2010, p 326) Por isso quando aos tribunais chegarem casos concretos que necessitam ser sanados por perícia forense e caracterizada a psicopatia faz-se necessário defini-lo como semi-imputável. 8 A INEFICIÊNCIA DA PUNIÇÃO AOS PSICOPATAS NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO A medida de segurança é a única sanção cabível aos psicopatas prevista no Código Penal Brasileiro, porém há uma necessidade urgente de criação mecanismos específico de identificação, punição e tratamento desses indivíduos. É certo que devido a sua capacidade intelectual os psicopatas merecem punição, porque no momento do crime tem consciência do ato que estão praticando, o que lhes falta é apenas julgamento moral e sentimental de suas atitudes. É evidente que nos casos em questão a medida de segurança

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perde sua característica essencial de prevenção e cura, porque nas pesquisas psiquiátricas fica comprovado que esta patologia não tem cura. A Lei 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas que possuem transtornos mentais assegura que após o alcance da finalidade do tratamento o paciente deverá ser reinserido em seu meio social, porém para que isso ocorra é necessária a cura do paciente, como essa reinserção pode ser aplicada ao psicopata se essa patologia ainda não possui cura. A crítica que os renomados psiquiatras forenses fazem referente à eficácia da punibilidade aos psicopatas é que na maioria dos casos, os juízes e operadores do direito desconsideram os laudos e diretrizes apostadas pelos profissionais da saúde acreditando cegamente de que essa não é uma realidade nos tribunais do país. A medida de segurança não deve ser aplicada somente ao louco, que sequer sabe as consequências ou a conduta correta, mas sim para todos aqueles que possuem doença mental que configure inimputabilidade ou semi -imputalidade que cause risco e periculosidade eminente ao paciente e a sociedade. Para Antônio José Eça o que deveria ocorrer é o emprego de credibilidade aos laudos psiquiátricos que são baseados em pesquisas e testes aprofundados para caracterização dos indivíduos. Maior parte dos psicopatas não são punidos, por esse motivo, os laudos não são considerados e muitas vezes nem sequer solicitados, fazendo o que é pior ao sistema prisional, juntando presos comuns com psicopatas que aumentam e aperfeiçoam suas técnicas de liderança e manipulação de pessoas causando um transtorno muito maior que se houvesse um real controle do sistema prisional com relação ao traço de personalidade dos presos. Com a devida conclusão de que psicopatas não tem cura e de que a medida de segurança possui prazo de cumprimento máximo pré-estabelecida fica clara a total ineficácia de sua aplicação, porque o objetivo principal da medida é o tratamento com finalidade de cura, infelizmente isso se torna impossível neste caso. 8.1 A medida de segurança como forma ineficiente de sanção A medida de segurança, dentre todas as opões previstas na legislação penal é a mais apropriada aos psicopatas, pois além do caráter preventivo possui caráter curativo. Porém a ineficácia desse instituto é perceptível não só aos juristas, mas também aos psiquiatras e afins, porque diante as características particulares desses sujeitos seria necessário tratamento específico e adequado. O objetivo principal da medida de segurança é advindo de sua natureza preventiva, tentando conter a possibilidade de reincidência do comportamento criminoso. Tornando necessária a comprobação da periculosidade do agente, sendo esta tratada ate sua cessação. Por isso, entende-se que a finalidade da medida é a defesa social evitando assim danos insanáveis. A Lei de Reforma Psiquiátrica nº10. 216/2001 em seu artigo 4º §1º prevê que a finalidade principal do tratamento médico é a inclusão social do agente. Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. (BRASIL, 2001) Para que haja a inclusão social do agente é necessário que cesse sua periculosidade ou haja a cura e sua patologia, podendo ser

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essa no mínimo controlada. Porém, nada do que é apresentado aos casos de aplicação de medida de segurança é aplicável aos psicopatas, pois estes não são considerados doentes mentais e também não possuem cura, salientando que não aprendem e nem sofrem com as ações punitivas. De forma predominante os psiquiatras entendem que o risco de reincidência dos psicopatas é praticamente absoluta. A maior dificuldade encontrada para identificação dos psicopatas é que normalmente esses não sofrem perícia forense e são instalados normalmente no sistema prisional e quando são procurados por psiquiatras para entrevistas de estudo comportamental criam barreiras, por não terem interesse em revelar seus atos ou ate mesmo buscando formas de manipulação ou obtenção de vantagens para livramento. Outro fato que corrobora para a ineficiência da aplicação da medida de segurança é o limite temporal imposto pela Constituição Federal em seu artigo 5º, XLVII, alínea “b”.

possa ser tratado com a importância devida, criando uma legislação específica, para que juntas as áreas jurídicas e psiquiátricas possam criar uma medida que abarque todas as particularidades desses indivíduos, protegendo a sociedade e o doente. É necessário que a lei realize a Justiça que anseia a sociedade, controlando os problemas que surgem ao longo dos anos. Conforme Jurisprudência: STJ - RECURSO ESPECIAL :REsp 1306687 MT 2011/0244776-9 PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INTERDIÇÃO. CURATELA. PSICOPATA. POSSIBILIDADE.1. Ação de interdição ajuizada pelo recorrente em outubro de 2009. Agravo em recurso especial distribuído em 07/10/2011. Decisão determinando a reautuação do agravo em recurso especial publicada em 14/02/2012. Despacho determinando a realização de nova perícia psiquiátrica no recorrido publicado em 18/12/2012. 2. Recurso especial no qual se discute se pessoa que praticou atos infracionais equivalentes aos crimes tipificados no art. 121, § 2º, II, III e IV (homicídios triplamente qualificados), dos quais foram vítimas o padrasto, a mãe de criação e seu irmão de 03 (três) anos de idade, e que ostenta condição psiquiátrica descrita como transtorno não especificado da personalidade (CID 10 - F 60.9), esta sujeito à curatela, em processo de interdição promovido pelo Ministério Público Estadual. 3. A reincidência criminal, prevista pela psiquiatria forense para as hipóteses de sociopatia, é o cerne do presente debate, que não reflete apenas a situação do interditando, mas de todos aqueles que, diagnosticados como sociopatas, já cometeram crimes violentos. 4. A psicopatia está na zona fronteiriça entre a sanidade mental e a loucura, onde os instrumentos legais disponíveis mostramse ineficientes, tanto para a proteção social como a própria garantia de vida digna aos sociopatas, razão pela qual deve ser buscar alternativas, dentro do arcabouço legal para, de um lado, não vulnerar as liberdades e direitos constitucionalmente assegurados a todos e, de outro turno, não deixar a sociedade refém de pessoas, hoje, incontroláveis nas suas ações, que tendem à recorrência criminosa. 5. Tanto na hipótese do apenamento quanto na medida socioeducativa - ontologicamente distintas, mas intrinsecamente iguais - a repressão do Estado traduzida no encarceramento ou na internação dos sociopatas criminosos, apenas postergam a questão quanto à exposição da sociedade e do próprio sociopata à violência produzida por ele mesmo, que provavelmente, em algum outro momento, será replicada, pois na atual evolução das ciências médicas não há controle medicamentoso ou terapêutico para essas pessoas. 6. A possibilidade de interdição de sociopatas que já cometeram crimes violentos deve ser analisada sob o mesmo enfoque que a legislação dá à possibilidade de interdição - ainda que parcial - dos deficientes mentais, ébrios habituais e os viciados em tóxicos (art. 1767, III, doCC-02). 7. Em todas essas situações o indivíduo tem sua capacidade civil crispada, de maneira súbita e incontrolável, com riscos para si, que extrapolam o universo da patrimonialidade, e que podem atingir até a sua própria integridade física sendo também ratio não expressa, desse excerto legal, a segurança do grupo social, mormente na hipótese de reconhecida violência daqueles acometidos por uma das hipóteses anteriormente descritas, tanto assim, que não raras vezes, sucede à interdição, pedido de internação compulsória. 8. Com igual motivação, a medida da capacidade civil, em hipóteses excepcionais, não pode ser ditada apenas pela mediana capacidade de realizar os atos da vida civil, mas, antes disso, deve ela ser aferida pelo risco existente nos estados crepusculares de qualquer natureza, do interditando, onde é possível se avaliar, com precisão, o potencial de auto-

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XLVII - não haverá penas: b) de caráter perpétuo; (BRASIL,1988) Tendo o STJ (Superior Tribunal de Justiça) já pacificado seu entendimento quanto ao prazo máximo para aplicação é de 30 anos mediante o poder coercitivo do Estado, alegando que sem o prazo haveria violação da liberdade em caráter perpétuo. Nesse ponto que se apresenta especificamente a ineficiência do atual procedimento dispensado aos indivíduos psicopatas. Diante todo o exposto, resta claro que a psicopatia não possui cura e suas características frias e cruéis de quem não possui afetividade alguma estarão sempre presentes com o risco iminente de reincidência enquanto este tiver vida. Por isso, mesmo diante a ineficácia do tratamento médico psiquiátrico dispensado ao psicopata este deverá ser solto mesmo presente seu caráter delituoso, para que não haja violação da Constituição Federal Brasileira. Assim, o objetivo principal da aplicação da medida de segurança que é seu caráter curativo não é alcançado, porque, além de não haver cura com o tratamento, nem ambientes hospitalares suficientes e com atendimento de qualidade, também não é atingido seu caráter preventivo, pois mesmo diante o risco social iminente o agente deve ser reinserido socialmente. Devido as características peculiares e marcantes dos psicopatas, esses não podem em hipótese alguma serem considerados criminosos comuns, até mesmo porque quando frequentam o mesmo ambiente prisional dos demais é um risco para todos que estão próximos, pois possuem personalidade dissimulada e liderança criando assim, mecanismos de fuga, manipulação, aperfeiçoamento da conduta criminosa, rebeliões e até mesmo comportamento exemplar, com o objetivo de pleitear benefícios que possibilitem sua liberdade. 9 SOLUÇÃO APLICÁVEL AOS CASOS DE PSICOPATIA Com tudo, conclui-se que a aplicação da medida de segurança torna-se completamente ineficiente perante o sistema penal brasileiro em se tratando de personalidade psicopática, criando dúvidas sobre qual medida seria adequada. Devido ao fato de muito pouco se saber sobre os psicopatas torna-se necessário o conhecimento aprofundado do caso a fim de que

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lesividade ou de agressão aos valores sociais que o indivíduo pode manifestar, para daí se extrair sua capacidade de gerir a própria vida, isto porquê, a mente psicótica não pendula entre sanidade e demência, mas há perenidade etiológica nas ações do sociopata. 9. A apreciação da possibilidade de interdição civil, quando diz respeito à sociopatas, pede, então, medida inovadora, ação biaxial, com um eixo refletindo os interesses do interditando, suas possibilidades de inserção social e o respeito à sua dignidade pessoal, e outro com foco no coletivo - ditado pelo interesse mais primário de um grupo social: a proteção de seus componentes -, linhas que devem se entrelaçar para, na sua síntese, dizer sobre o necessário discernimento para os atos da vida civil de um sociopata que já cometeu atos de agressão que, in casu, levaram a óbito três pessoas. 10. A solução da querela, então, não vem com a completa abstração da análise da capacidade de discernimento do indivíduo, mas pela superposição a essa camada imediata da norma, da mediata proteção do próprio indivíduo e do grupo social no qual está inserido, posicionamento que encontrará, inevitavelmente, como indivíduo passível de interdição, o sociopata que já cometeu crime hediondo, pois aqui, as brumas da dúvida quanto à existência da patologia foram dissipadas pela violência já perpetrada pelo indivíduo. 11. Sob esse eito, a sociopatia, quando há prévia manifestação de violência por parte do sociopata, demonstra, inelutavelmente, percepção desvirtuada das regras sociais, dos limites individuais e da dor e sofrimento alheio, condições que apesar de não infirmarem, per se, a capacidade do indivíduo gerenciar sua vida civil, por colocarem em cheque a própria vida do interditando e de outrem, autorizam a sua curatela para que ele possa ter efetivo acompanhamento psiquiátrico, de forma voluntária ou coercitiva, com ou sem restrições à liberdade, a depender do quadro mental constatado, da evolução - se houver - da patologia, ou de seu tratamento. 12. Recurso especial provido. (STJ - RECURSO ESPECIAL :REsp 1306687 MT 2011/0244776-9PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INTERDIÇÃO. CURATELA. PSICOPATA. POSSIBILIDADE.) Como atualmente não nos encontramos no estudo incessante dessa problemática com uma solução viável e eficiente, uma das formas possíveis de suprir essa real necessidade e poder após os 30 da legislação penal é utilizar do código civil como fonte subsidiária e requerer a interdição do agente conforme disposto no artigo 1.767 e seguintes do Código Civil. A interdição civil é a única forma que o Estado tem de intervir, de forma que controle a atividade do psicopata no meio social, sendo possível também a internação em hospital médico psiquiátrico adequado, caso não seja possível o convívio social assistido com a família. Argumento também apresentado em Jurisprudência: A possibilidade de interdição de sociopatas que já cometeram crimes violentos deve ser analisada sob o mesmo enfoque que a legislação dá à possibilidade de interdição – ainda que parcial – dos deficientes mentais, ébrios habituais e os viciados em tóxicos (art. 1767, III, do CC02). (STJ - RECURSO ESPECIAL :REsp 1306687 MT 2011/0244776-9PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INTERDIÇÃO. CURATELA. PSICOPATA. POSSIBILIDADE.) Diante o exposto, resta claro que a medida viável aos casos de psicopatia é a interdição civil até o momento em que for criada Lei específica que apresente uma medida específica que consiga atender as peculiaridades dos casos concretos formulando ações mais justas tanto ao criminoso quanto a sociedade.

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10 UMA ANÁLISE DOS CASOS CONCRETOS No livro Serial Killers made in Brasil escrito por Ilana Casoy podemos encontrar relatos e entrevistas com os principais e mais famosos psicopatas da História Brasileira, foram selecionados dois casos que serão apresentados a seguir. Um dos casos apresentados é o de Marcelo Costa de Andrade, que matou friamente treze meninos com idade entre seis e doze anos. Marcelo nasceu em Janeiro de 1967(mil novecentos e sessenta e sete) e teve uma infância conturbada devido a separação dos pais quando tinha 5 anos. Morou com avó no Ceará, com a mãe e depois com o pai no Rio de Janeiro, estudou apenas até a quarta série e com treze anos seus pais já não tinham mais o controle sobre sua vida, passou parte da infância na rua se prostituindo sempre com homens. Nunca conseguiu seguir uma vida correta, com trabalho fixo e rotina. Com 24 anos Marcelo cometeu o 1º dos diversos homicídios que viria a cometer, estuprava e matava crianças que o atraiam sexualmente, de cada vítima levava a bermuda que usavam, as vezes os dentes e por algumas vezes chegou a beber o sangue de suas vítimas. De acordo com a entrevista realizada e apresentada com Marcelo é notório o uso de palavras repetidas, reafirmações constantes, ausência total de arrependimento e sentimento de culpa apesar de ter consciência dos atos ilícitos que cometeu, justifica sua conduta pautado no argumento de que matava as crianças para que elas fossem para o céu, porque eram puras e que bebia o sangue das vítimas para ficar jovem e bonito como elas eram. A última entrevista realizada com Marcelo foi em 2007 quando também foram entrevistados os médicos que acompanhavam seu tratamento, o argumento apresentado é de que Marcelo ainda cria problemas no Hospital onde está internado, tirando as calças dos outros pacientes, briga e sabe quando será realizada a avaliação anual da medida de segurança, melhorando o comportamento argumentado que por ser evangélico pode ser solto e que por isso não vai mais cometer crimes. Em entrevista o Dr. José Carlos Pascotto – Diretor do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo afirma que: “Mas não há condição, ainda, de liberá-lo, em hipótese alguma. Seu transtorno é tão grave que, mesmo idoso, pode continuar a cometer delitos.” O caso de Pedro Rodrigues Filho, conhecido como Pedrinho Matador, nasceu de uma família simples, morava com o pai, a mãe, a avó e sete irmãos, enfrentava violência doméstica nas brigas entre os paisfoi rejeitado pela mãe por seguir a religião da avó, sofrendo ameaças de morte. Pedro se descreve como solitário tantos em seus intentos criminosos como no presídio. Com quatorze anos Pedro cometeu o primeiro homicídio, matou por vingança o substituto do prefeito que demitiu seu pai que era vigia da escola, nessa época fugiu para Minas Gerais, onde Conheceu Maria Aparecida Rolim, conhecida como Botinha, viúva de um traficante de drogas, ambos tiveram um relacionamento e Pedro assumiu a “chefia” do comércio de drogas local. Pedro afirma que ao longo de sua vida criminosa matou mais de 30 pessoas, foi preso aos 18 anos e no sistema prisional já matou mais de 100 pessoas, dentre rixas e rebeliões, se considera Justiceiro e diz que hoje não pretende mais cometer homicídios a não ser que façam algo grave a ele. 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou realizar uma análise sobre a aplicação de medida provisória aos indivíduos com personalidade psicopática, criando relação entre ambos os casos. Foi necessário uma

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analise profunda em relação ao instituto da medida provisória para compreensão do instituto. A compreensão sobre a semi-imputabilidade e inimputabilidade abarcadas pelo Código Penal. Diante todo o exposto, não resta questionamentos sobre a ineficácia não só na identificação dos psicopatas como também na aplicação de medida provisória como sanção, sendo necessária a criação de uma legislação criminal específica aos psicopatas, considerando não só os conhecimentos jurídicos que possam ser trazidos, mas também os conhecimentos advindos dos psiquiatras que possuem conhecimento muito mais avançado referente a patologia. A criação de leis e medidas adequadas a serem aplicadas não requer somente conhecimento jurídico, requer também, nesse caso, o conhecimento médico adequado para compreender de forma ampla e completa a solução cabível mais eficaz, tendo como objetivo não somente a sociedade como um todo, mas também uma vida digna ao psicopata. Essa problemática vem se mostrando cada vez mais necessária para o debate em sociedade, considerando suas peculiaridades, características e implicações tendo em vista que cresce a cada ano o número de psicopatas confirmados no mundo. Com os recorridos casos, conforme os que foram apresentados, espera-se que os doutrinadores, legisladores e psiquiatras forenses(peritos) realizem estudos interligados a fim de sanar dúvidas e compreender os casos para que protejam a sociedade e também esses indivíduos que necessitam de diagnóstico precoce e tratamento especializado.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso de Habeas Corpus. Transação. Habeas Corpus nº 86.888, da 5ª Turma. Criminal. Juizado Especial Criminal. Execução penal. Habeas corpus. Art. 157, § 2º, incisos i e ii, docp e arts. 304 e 309, ambos da lei nº 9.503/97. Livramento condicional. Cometimento de novo delito no curso do benefício. Expirado o período de prova sem suspensão ou revogação. Extinção da punibilidade. Relator min. Felix Fischer, DJU, de 14 mar. 2008. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/604654/habeascorpus-hc-86888-rj-2007-0162602-9>. Acesso em:15 jun. 2016.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso de Habeas Corpus. Transação. Habeas Corpus nº 135.504, da 6ª Turma. Criminal. Juizado Especial Criminal. Habeas corpus. Homicídio qualificado. Medida de segurança. Prescrição. Agente internado há quase vinte e quatro anos, tempo que não atinge o máximo de pena cominado á espécie. Periculosidade não cessada. Ordem denegada. Relator min. Celso Limongir, DJU, de 25 out. 2010. Disponível em: <http://stj.jusbrasil. com.br/jurisprudencia/17389875/habeas-corpus-hc-135504-rs-20090084916-0-stj>. Acesso em:15 jun. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: REsp 1306687 mt 2011/0244776-9, da 3ª Turma. Cível. Processual civil. Civil. Recurso especial. Interdição. Curatela. Psicopata. Possibilidade. Relator min. Nancy Andrighi, DJU, de 22 abr. 2014. Disponível em: < http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25054791/recurso-especial-resp-1306687-mt-2011-0244776-9-stj >. Acesso em:30 jun. 2016.

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NÚCLEO DE BIBLIOTECAS. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva, 2011. Disponível em: <http://newton. newtonpaiva.br//NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_2011.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2016. ZAFFARONI, Eugenio Raul, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Brasileiro. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 125. Banca Examinadora: Cristian Kiefer da Silva (Orientador) Laura Maria dos Fernandes Lima (Examinadora 1) Alexandre Auad (Examinador 2)

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EFEITOS DAS DECISÕES JUDICIAIS PROFERIDAS PELOS JUIZADOS ESPECIAIS NAS AÇÕES DE TRANSFERÊNCIA DE VEÍCULOS: análise crítica da vinculação do Estado à ordem judicial que impõe obrigação de fazer EFFECTS OF DECISIONS JUDICIAL DELIVERED BY THE SMALL COURTS ON ACTIONS OF VEHICLE TRANSFER: critical analysis linking the state the court order imposing the obligation to make Neilane Pinto Ananias1

RESUMO: As causas ajuizadas nos Juizados Especiais revelam, sob o ponto de vista qualitativo, que representam a porta de entrada para as demandas mais comuns. Através dos princípios norteadores do Juizado Especial e da intenção de que este propicie à população acesso à justiça de maneira eficaz, que se verifica a necessidade das ações postuladas serem efetuadas com o máximo de cuidado e atinente aos efeitos que as decisões produzem perante o caso concreto. Sob este aspecto, necessário um estudo mais aprofundado das demandas que concernem à transferência de veículos. O descumprimento da obrigação de transferir veículo adquirido em negócio jurídico de compra e venda pode acarretar prejuízos para as partes envolvidas dos quais, dependendo do patamar de gravidade da situação, somente por via judicial poderão ser solucionados. Palavras-chave: Juizado Especial. Transferência de Veículos. Administração Pública.

ABSTRACT: The causes filed in the Small Courts reveal, from a qualitative point of view, representing the gateway to the most common demands. Through the guiding principles of the Special Court and the intention that this propitiates the population access to justice effectively, that there is a need of the postulated actions are effected with maximum care and regard to the effects that decisions produce before the case . In this aspect, necessary a further study the demands that concern transfer the vehicle. The breach of the obligation to transfer the vehicle acquired in legal business of buying and selling can cause damage to the parties involved of which, depending on the level of seriousness of the situation, only through court proceedings can be solved. Keywords: Special Court. Vehicle transfer. Public administration.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Contexto histórico do Juizado Especial. 3 O Juizado Especial na Estrutura Orgânica Do Poder Judiciário. 4 Princípios norteadores dos Juizados Especiais. 4.1 Princípio da oralidade. 4.2 Princípio da simplicidade e da informalidade. 4.3 Princípio da economia processual. 4.4 Princípio da celeridade. 5 Da capacidade de postular em juízo. 6 As decisões no Juizado Especial. 7 Da ordem de transferência de veículos. 8 A obrigação de fazer nas ações de transferência de veículos. 9 A vinculação da Administração Pública às decisões judiciais

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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1 INTRODUÇÃO O Brasil, desde o ano de 1929, passou por graves crises ensejando a criação de Constituições, em conformidade com a época vivenciada com a finalidade de alcançar ordem social e moderna. Promulgada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil precedida da Revolução de 1964 e a Constituição de 1967, marcou o Estado Democrático de Direito. Foi neste contexto que surgiram os primeiros indícios dos Juizados Especiais, evidenciados na Constituição de 1934 e posteriormente, com a edição da Lei n° 7.244, de 7/11/1984, já revogada. Mais tarde criou-se a Lei 9.099 de 1995 que atualmente rege os Juizados Especiais. As causas levadas a juízo nos Juizados Especiais representam a porta de entrada para as demandas mais comuns ou corriqueiras no cotidiano da população. Significa, portanto, garantia de acesso à justiça, haja vista a facilidade e desburocratização no uso do sistema criado. Na estrutura orgânica do poder judiciário, os Juizados Especiais permitem interposição de recurso para a Turma Recursal ou Colégios Recursais, bem como de Recurso Extraordinário, embora contenham limitadores como a exigência de demonstração de repercussão geral. Característica importante da Lei 9.099 de 1995 são os princípios norteadores, quais sejam a oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e a celeridade que orientam a regularidade e condução dos processos judiciais. É nítido que a intenção do legislador em conformidade com o Código de Processo Civil vigente preza pela aceleração com qualidade na condução dos feitos, o que, no entanto, ainda é distante da realidade. Acerca da disposição legal do Juizado Especial, um aspecto que carece atenção especial é a capacidade postulatória. Há a possibilidade de comparecer em juízo sem o patrocínio de um advogado nas causas de valor até vinte salários mínimos. Contudo, a insuficiência de instrução quanto ao caso concreto pode contribuir em prejuízo para a parte futuramente, uma vez que questionada a lide não mais poderá ser levada à juízo. As decisões no Juizado Especial são solucionadas por conciliação, através de sentença homologatória ou por sentença, seja declaratória, constitutiva, condenatória ou mandamental, conforme o caso concreto. Transcorrido o trânsito em julgado da sentença, seja ela qual for, inicia-se a fase de cumprimento de sentença, e ato seguinte, não havendo resolução nesta fase, procede-se com a execução de sentença. Nesta fase é que se observa a demora na satisfação da lide. É frequente a postulação de causas nos Juizados Especiais que versem acerca de transferência de veículos. Em que pese existir legislação específica que regulamente a prática não há obrigatoriedade expressa para cumprimento da medida por aquele que efetuou a compra de um veículo. O vendedor de veículo seja ele particular ou pessoa jurídica, embora possa se valer da comunicação de venda do bem diretamente no órgão responsável, não se afasta da responsabilidade sobre o veículo, ou seja, está sujeito a ser responsabilizado por qualquer situação que envolva o veículo, como por exemplo os acidentes de trânsito e a ocorrência de prática criminal. Demonstrada assim a importância sobre as implicações do tema em questão. O antigo proprietário só consegue se eximir totalmente da responsabilidade sobre o bem alienado por meio da via judicial, o que representa então uma movimentação do judiciário. Sob este contexto, é essencial a análise das decisões judiciais acerca das ações de obrigação de fazer que envolvam a transferência de veículos no Juizado Especial, quanto a sua efetividade e a responsabilidade da Administração que distancia o conteúdo legal da

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segurança jurídica do vendedor de veículo. No que se refere ao Juizado Especial, a informalidade e a simplicidade dos atos poderão postergar a satisfação do exequente quando o executado furtar-se da obrigação, quanto aos pedidos realizados sem coerência com o caso concreto, bem como das peculiaridades que possam surgir no decorrer do feito. As decisões que concernem às ações de transferência de veículos são contraditórias, uma vez que, das possibilidades de satisfação da lide, em alguns casos admitem que a Administração proceda com a transferência compulsoriamente. Atualmente as decisões acerca do tema possuem entendimentos diversos e já está em discussão no STJ. Pertinente que seja avaliada a situação real que abrange a transferência de veículos, seja quanto à vinculação da Administração Pública à decisão judicial, mas particularmente quanto à necessidade de adequação à realidade social. 2 CONTEXTO HISTÓRICO DO JUIZADO ESPECIAL Em 1929 o Brasil passava por grave crise econômica, política e social. Neste cenário, formou-se a Assembleia Nacional Constituinte com o objetivo de elaborar a nova Constituição brasileira buscando assim uma ordem social e moderna. Influenciada pelos movimentos políticos e manifestações sociais ocorreu a promulgação da Constituição de 1934. Embora tenha acrescentado em seu texto importantes modificações, não foi o suficiente para as necessidades da época o que contribuiu para a criação de novas e sucessíveis Constituições, ou, em uma interpretação mais correta, empenhava-se na adequação da lei à realidade social brasileira. No decorrer do tempo, marcada pela necessidade de uma mudança de paradigma importante para a história do país, no Estado Democrático de Direito, foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil precedida da Revolução de 1964 e a Constituição de 1967. No tocante à criação dos Juizados Especiais, tem-se que os primeiros indícios foram evidenciados na Constituição de 1934 como se depreende do seu artigo 113, item 25, em que se admitiu a existência dos Juízos Especiais, mencionando a expressão “natureza das causas”, todavia, não foi implantado. Mais tarde, com a edição da Lei n° 7.244, de 7/11/1984, posteriormente revogada, foi instituído um juizado de pequenas causas considerando o seu reduzido valor econômico. Momento este em que se consagraram os princípios norteadores do Juizado Especial então vigente. As características das causas a serem levadas a juízo nos Juizados Especiais revelam, sob o ponto de vista qualitativo, que representam a porta de entrada para as demandas mais comuns. A celeridade, a resolução rápida e pacífica dos conflitos exprime a extensão do acesso à justiça conferido pelos Juizados Especiais. Em pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (2015, p.100), explicita-se que: A mais forte justificativa para que uma pesquisa sobre acesso à justiça se concentre nos juizados parece ser a maciça adesão da população. Desde a sua criação, na década de 1980, e generalização, em 1990, quando se falava em “reduzir conflitos antes não jurisdicionalizáveis”, o volume de demandas nos juizados especiais aumentou espantosamente. O que seria um “microssistema” da Justiça brasileira hoje divide, com a justiça comum, o papel de grande protagonista do sistema. De maneira tendencial, os Juizados Especiais demonstram a amplitude do acesso à justiça já previsto constitucionalmente:

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O direito de ação, tradicionalmente reconhecido no Brasil como direito de acesso à justiça para a defesa de direitos individuais violados, foi ampliado, pela Constituição de 1988, à preventiva, para englobar a ameaça, tendo o atual texto suprimido a referência a direitos individuais. É a seguinte redação do inciso XXXV do art. 5º: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2015, p.106) Para Silva (2014, p.91), o texto da Constituição era avançado e representava inovações a nível nacional e mundial. Nesse âmbito, precisamente no artigo 98, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), assegurou-se a formação dos Juizados de Pequenas Causas (para causas de valor econômico reduzido) e os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (para causas de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo). Neste contexto, Rocha (2009, p. XXXV), alerta que a divisão ora fixada deu origem a diversas discussões para regularização do disposto no inciso do artigo supracitado ocasionando assim uma fusão entre o Projeto Jobim (PL nº 3.698/89) que especificava os Juizados Especiais Cíveis, com o Projeto Temer (PL nº 1.480-A/89) que abordava sobre os Juizados Especiais Criminais como um único texto. Em 26 de setembro de 1995, a partir da junção dos projetos foi criada a Lei nº 9.099, dispondo sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Com a edição da lei, e a partir do seu contexto normativo verificou-se que não havia distinção entre as causas de menor valor econômico e as de me menor complexidade. Neste sentido, Theodoro Júnior (2013, p. 425) expõe que a unificação das matérias, ou seja, as causas de pequeno valor com as de menor complexidade eram equivalentes juridicamente sob um enfoque diferente. Neste passo, a Lei 9.099 de 1995 mescla concepções distintas de um enredo político e jurídico conturbado, o que revela, por conseguinte, uma propensão para que as lacunas existentes possuam perspectivas heterogêneas, ou seja, diversificadas, para sua interpretação e aplicação nos casos concretos, sob sua égide.

Fonte: http://luizmichaliszyndc1.blogspot.com.br/

A análise do quadro acima verifica-se que os Juizados Especiais permitem a interposição de recurso para a Turma Recursal ou Colégios Recursais, bem como de Recurso Extraordinário. É o que dispõe o artigo 41, § 1º, da Lei 9.099/95 “O recurso será julgado por uma turma composta por três Juízes togados, em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado.” Ao que se refere à interposição de Recurso Extraordinário, deve-se analisar o cabimento deste recurso. De acordo com Marinoni e Arenhart (2014, p.561) tal recurso possui como escopo assegurar o regime federativo, através da aplicação a cada caso concreto, da lei federal e da Constituição Federal. Ou seja, garantir que a interpretação dos tribunais e dos juízes em esfera nacional sejam sempre voltadas para a Constituição Federal. Atualmente, a possibilidade de interposição de Recurso extraordinário em sede de Juizados Especiais possui entendimento sumulado do STF, Súmula 640 “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal.” Importante mencionar que a Constituição Federal não prevê especificamente as esferas que podem ou não interpor Recurso Extraordinário, abrangendo apenas a matéria a ser discutida de modo que:

3 O JUIZADO ESPECIAL NA ESTRUTURA ORGÂNICA DO PODER JUDICIÁRIO

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe: [...] III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

A estrutura organizacional judiciária brasileira é bastante delimitada e carece de atenção no que tange aos Juizados Especiais. Silva (2014, p.559) expõe que o Poder Judiciário possui como função a composição dos conflitos de interesses levando-se em consideração o caso concreto de maneira particular. Logo, têm-se o sistema de composição de lides em que será aplicada a legislação vigente. Neste sentido é sempre valiosa a lição de Ferreira Filho (2006, p. 246), para quem: A independência do Judiciário é uma necessidade da liberdade individual. Que existam no Estado órgãos independentes que possam aplicar a lei, inclusive contra o governo e contra a administração, é condição indispensável para a liberdade e a proteção dos direitos humanos. E não foi outra a razão que levou a doutrina clássica a erigir o Judiciário em poder do Estado, com função própria. Assim, depreende-se que a separação dos órgãos constitui medida necessária à proteção dos direitos individuais já estabelecidos no ordenamento jurídico. Os Juizados Especiais são providos por juízes togados, ou togados e leigos conforme disposto no artigo 98, inciso I da Constituição da República Federativa de 1988. Segue no organograma abaixo a estrutura do Poder Judiciário brasileiro:

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Em que pese haver a possibilidade de interposição do recurso, o §3º do mesmo artigo determina a necessidade da demonstração da repercussão geral das questões constitucionais referentes ao caso questionado para que assim seja examinada a admissão do recurso. Em suma, embora possibilite o questionamento das decisões judiciais, as ações concernentes aos Juizados Especiais estão limitadas à Turma Recursal, haja vista que interposição em sede de Recurso Extraordinário restringe o direito ao exigir demonstração de repercussão geral. 4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS A Lei 9.099/95 que rege os Juizados Especiais, precisamente no artigo 2º, prevê de maneira expressa os seus princípios norteadores:

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“O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível a conciliação ou a transação.”(grifo do autor) Segundo Gonçalves (2016, p.1324) “Esses princípios devem ser harmonizados com os princípios e garantias constitucionais, já estudados, do devido processo legal, contraditório, isonomia, imparcialidade do juiz e publicidade, entre outros.” A simples interpretação literal do artigo mencionado demonstra que a intenção da lei é garantir acesso à justiça de modo menos burocrático. No entanto, a Lei escrita às vezes se distancia da realidade econômica, financeira, administrativa, dentre outros fatores que vão de encontro com os objetivos propostos. Os princípios que norteiam os Juizados Especiais seguem a marcha proposta pelo Código de Processo Civil especialmente quanto à celeridade processual, devendo, com isso serem fiéis às pretensões cada vez mais reafirmadas. 4.1 Princípio da oralidade Assim como os demais princípios, a definição do princípio da oralidade está no próprio nome, ou seja, a concepção de que determinados atos no processo podem ocorrer através da forma oral e não escrita. Como expressa Theodoro Júnior (2013, p.427): Quando se afirma que o processo se baseia no princípio da oralidade quer se dizer que ele é predominantemente oral e que procura afastar as notórias causas de lentidão do processo predominante escrito. Assim, processo inspirado no princípio ou no critério da oralidade significa a adoção de procedimento onde a forma oral se apresenta como mandamento precípuo, embora sem eliminação do uso dos registros da escrita, já que isto seria impossível em qualquer procedimento da justiça, pela necessidade incontornável de documentar toda a marcha da causa em juízo. Note-se que a previsão do princípio da oralidade confere agilidade ao processo, uma vez que contribui para a solução breve da marcha processual. 4.2 Princípio da simplicidade e da informalidade A simplicidade e a informalidade, em conjunto com os demais princípios, confere ao processo um cunho de facilidade, clareza, descomplicação, acessibilidade. Define que as causas devem ser conduzidas de maneira a não sistematizar o feito, ou seja, não obedecer às formalidades da justiça comum que se caracterizam pela extrema complexidade de seus atos. Em uma análise lógica acerca da finalidade da Lei 9.099/95, que abrange as causas de menor complexidade, vê-se que o princípio da simplicidade acontece naturalmente ao passo que o objetivo é tratar das causas que demandam de um despendimento simples e de rápida solução. Nesse ínterim, necessário destacar que a simplicidade abarca a finalidade do ato realizado, ou seja, busca-se a resolução eficaz independente do modo realizado. Noutro ponto, a informalidade é caracterizada pelas várias formas de registro dos atos, o que é demonstrado no artigo 13º da Lei 9.099/95: Art. 13. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios indicados no art. 2º desta Lei. § 1º Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo. § 2º A prática de atos processuais em outras LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

comarcas poderá ser solicitada por qualquer meio idôneo de comunicação. § 3º Apenas os atos considerados essenciais serão registrados resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas, taquigrafadas ou estenotipadas. Os demais atos poderão ser gravados em fita magnética ou equivalente, que será inutilizada após o trânsito em julgado da decisão. § 4º As normas locais disporão sobre a conservação das peças do processo e demais documentos que o instruem. 4.3 Princípio da economia processual O princípio da economia processual é um dos princípios de maior relevância para o direito processual civil, bem como para a lei que rege os Juizados Especiais. Consiste em alcançar a finalidade pretendida com mínimo de atos processuais. Em qualquer processo, é essencial que haja a proporcionalidade entre os fins e os meios utilizados em um litígio para que se possa atingir um equilíbrio entre custo e benefício. Logo, a economia processual prega que se respeite o mínimo de atividades processuais para alcance do resultado máximo no desempenho do direito. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2012, p.82) A economia processual pode ser observada através do aproveitamento dos atos processuais conforme disposto no artigo 283, do Código de Processo Civil/2015, evitando dessa forma a repetição de atos processuais, seja no decurso do processo, seja na tentativa de propor novas ações com mesmas partes e causa de pedir. Segundo Neves (2016, p.246) a economia processual está atrelada à economia monetária, que pode ser atingida, por exemplo, com a redução do valor das custas judiciais. Em conjunto com o princípio da celeridade, a economia processual confere diminuição de gastos para o Estado importando assim em benefício para todos os componentes do litígio, sejam as partes ou o sistema que o conduz. 4.4 Princípio da celeridade Atrelado ao princípio constitucional da duração razoável do processo, o princípio da celeridade em conformidade com os demais princípios da Lei 9.099/95 possui como máxima a celeridade na resolução dos litígios, estando em consonância com a pretensão do Código de Processo Civil em vigor. Não obstante almejar a celeridade processual deve-se atentar para o respeito às garantias das partes, autores e réus. Em que pese a lei prever os princípios supramencionados, bem como estes serem de extrema importância em qualquer lide, são diversos os fatores que contrabalanceiam os objetivos desejados à realidade estrutural e funcional dos Juizados Especiais que contam hoje com demanda alta e quantidade de servidores mínima, além das lacunas existentes na lei. É através dos princípios norteadores do Juizado Especial e da intenção de que este propicie à população acesso à justiça de maneira eficaz, que se verifica a necessidade das ações postuladas serem realizadas com o máximo de cuidado e atinente aos efeitos que as decisões produzem perante o caso concreto. 5 DA CAPACIDADE DE POSTULAR EM JUÍZO O artigo 9° da Lei 9.099/95 dispõe que nas causas de valor até vinte salários mínimos, desde que as partes compareçam pessoalmente em audiência, poderão ser assistidas por advogado, ou seja, a parte pode comparecer à audiência sem a presença de um advogado. Logo, explícito o instituto do jus postulandi, qual seja o compare-

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nos processos de conhecimento pode ser condenatória (declara uma obrigação, condena o vencido a cumpri-la e constitui um título executivo passível de execução), declaratória (reconhece, ou declara, a existência ou inexistência de uma obrigação e, excepcionalmente, provoca a declaração quanto a um fato) ou constitutiva (declara algo e simultaneamente cria, modifica ou extingue determinada relação ou situação jurídica). (CHIMENTI, 2012, p.75)

cimento em juízo sem patrocínio de advogado. Atualmente, nos Juizados Especiais, é muito comum a postulação de ação sem a presença de um advogado devido à relação custo benefício, principalmente quando se trata de pessoas com menor poder aquisitivo. O exercício deste direito é iniciado através de um setor denominado “atermação” onde “A função do atermador se resume em criar um instrumento jurídico que possibilite a análise do direito reivindicado, de tal modo que este apenas descreverá o que o reclamante pressuponha que seja seu de direito.” (RIBEIRO, 2013) Acerca do assunto, muitos são os questionamentos doutrinários, uma vez que a presença do advogado em qualquer situação levada à juízo é de extrema importância. Segundo Ribeiro apud Mamede(2013):

Art. 22. A conciliação será conduzida pelo Juiz togado ou leigo ou por conciliador sob sua orientação. Parágrafo único. Obtida a conciliação, esta será reduzida a escrito e homologada pelo Juiz togado, mediante sentença com eficácia de título executivo. Art. 23. Não comparecendo o demandado, o Juiz togado proferirá sentença. [...] Art. 28. Na audiência de instrução e julgamento serão ouvidas as partes, colhida a prova e, em seguida, proferida a sentença.

De toda sorte, oferecendo solução para postulação direta das partes no âmbito do Judiciário Trabalhista e aos Juizados Especiais, Mamede (2011, p. 23) preleciona que “Para além da constitucionalidade dessa atribuição excepcional de ius postulandi ao não inscrito na OAB, coloca-se o problema de sua adequação, isto é, o debate sobre a oportunidade de manter a regra ou de alterá-la. Parece-me que a quebra da prerrogativa advocatícia de exclusividade na postulação em juízo justifica-se apenas naqueles casos em que a natureza da lide, bem como os valores em discussão, por sua singeleza, tornam inviável o exercício do direito constitucional de acesso ao Judiciário face ao custo da contratação de um advogado. Melhor seria, portanto, limitar a presença no juízo trabalhista, sem a assistência de advogado, a hipóteses bem definidas, tanto no que se refere à natureza do feito, limitando-a às reclamações propriamente ditas, quanto no que se refere ao valor da causa, para o que o parâmetro erigido pela Lei nº 9.099/95, ou seja, teto de 20 salários mínimos, seria razoável.” O desamparo de um advogado coloca a parte desprotegida por não possuir conhecimento suficiente sobre o tema o que consequentemente acarreta um desequilíbrio na composição da lide. (RIBEIRO, 2013) A ausência de procurador constituído demonstra em si uma instabilidade processual observada em uma situação em que se encontram um leigo e um profissional do Direito ao compor um termo de audiência, em que impera a manifestação das partes. (TOSTES; CARVALHO,1998, p.68) Isso posto, em que pese haver a possibilidade de assistência judiciária, qual seja a tutela por Defensor Público ou pela nomeação de Advogado Dativo, é sabido que demandará um despendimento da justiça e por consequência protela o curso do processo. Noutro ponto, o ajuizamento sem instrução específica, tardiamente poderá implicar em prejuízos, especialmente quanto às particularidades de cada caso concreto.

Em audiência de conciliação ocorre a redução a termo que quer dizer a expressão escrita e resumida da vontade exteriorizada pelas partes a fim de findar ao litígio. Este termo, após a assinatura exarada pelas partes e pelo conciliador, é levado para a homologação do juiz togado (quando não for ele o condutor da audiência), que poderá convocar as partes à sua presença para confirmações das informações contidas no termo. (CHIMENTI, 2012, p.66) As sentenças devem ser líquidas, apuradas por meros cálculos aritméticos; o valor da condenação é limitado ao valor da causa, salvo se a sentença for homologatória e não há remessa necessária. (GONÇALVES, 2016, p.1365) Imperioso ressaltar o contido no artigo 6º da Lei 9.099: “O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.”. Caberá ao juiz, por meio da equidade proferir sentença levando em conta o caso concreto, contudo, poderá ser extra petita caso o juiz não exerça o dever de justificar as decisões, embasado nos fatos apresentados. (GONÇALVES, 2016, p.1365) Sentenciada a lide e decorrido o trânsito em julgado ou homologado o acordo, o feito toma outro rumo, qual seja o cumprimento de sentença. Não havendo cumprimento voluntário, mediante solicitação, o juiz procede então com a execução nos termos do artigo 52, da Lei 9.099/95. A execução , portanto, é a tentativa de garantia da satisfação do direito do autor como bem explanado: Seja como for, a sentença em si, não outorga o bem da vida, carecendo ela de operações físicas em benefício do autor, mesmo que isto ocorra dentro da mesma estrutura (“processo”). E convém assinalar que, em alguns casos, não há sequer satisfação do direito, mas simples asseguração dele, denotando o império da função cautelar, sempre mediante atos que, à falta de melhor terminologia, se designam por “executivos”. (ASSIS, 2002, p.28)

6 AS DECISÕES NO JUIZADO ESPECIAL Uma das características mais importantes das ações postuladas nos Juizados Especiais é a solução do litígio através da conciliação, uma vez que torna o processo mais célere e benéfico para as partes envolvidas. No entanto, frustrada a tentativa conciliatória, o juiz determina o percurso dos autos, seja para a marcação de audiência de instrução e julgamento ou para proferir sentença do feito no estado em que se encontrar. A sentença pode ser homologatória, declaratória, constitutiva, condenatória ou mandamental. Nesse sentido: De acordo com o pedido, a sentença definitiva

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A Lei 9.099/95, acerca das sentenças, reforça:

Destarte versar da sentença, o entendimento é totalmente oportuno quanto ao acordo homologado judicial ou extrajudicialmente, uma vez que a conciliação não importa em cumprimento espontâneo do que se tenha avençado em audiência. Notável que a execução é uma fase do processo que posterga o regozijo do direito auferido o que, por sua vez, fere o princípio da celeridade objetivado pelo Juizado Especial.

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7 DA ORDEM DE TRASFERÊNCIA DE VEÍCULOS A compra e venda de veículos, automotores ou automobilísticos, entre particulares, é prática habitual na sociedade. Deve-se, para tanto observar as formalidades legais para que a realização do negócio jurídico seja satisfatória para ambas as partes. O Código de Trânsito Brasileiro é a primeira lei a ser observada cumulativamente ao Código Civil que disciplina a relação contratual e obrigacional dos quais abrangem a compra e venda. O artigo 134, do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que: No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação. O texto da lei é objetivo quanto a obrigação do vendedor, contudo, está explícito que a simples comunicação de venda não importa em transferência imediata do veículo, sendo que a titularidade do bem ainda permanece com o antigo proprietário. Quanto às obrigações do adquirente, a mesma Lei estabelece no artigo 123, § 1º “No caso de transferência de propriedade, o prazo para o proprietário adotar as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo é de trinta dias, sendo que nos demais casos as providências deverão ser imediatas.”. O não cumprimento da medida, de acordo com o artigo 233 constitui infração grave, sob pena de multa e retenção do veículo para regularização. Por se tratar de prática comum, a situação perde ainda mais o controle, tendo em vista que a transferência da posse do bem pode ocorrer por diversas vezes sem que tenha sido transferido administrativamente perante o órgão competente. Embora não tenha a posse direta do bem o antigo proprietário poderá ter problemas futuros quanto a multas de trânsito, não pagamento de impostos, acidentes de trânsito, prática criminal, etc. Reflete então uma insegurança que pode ser contornada com medidas inteligíveis e úteis tanto para o Estado quanto para o particular. Das responsabilidades contratuais que abarcam a compra e venda de veículos, a análise simples do conteúdo legal demonstra a quantidade de lacunas a serem sanadas, de modo a garantir segurança jurídica principalmente para o alienante que não possui meio satisfatório para cumprimento da obrigação de fazer, qual seja a transferência do bem, senão por via judicial. A questão levantada revela a importância do instituto da transferência de veículos, uma vez que o único meio de alcançar satisfação é a esfera judicial. Embora seja garantia jurisdicional à população, é fato que este tipo de ação constitui uma movimentação exacerbada no judiciário, principalmente no Juizado Especial que é o responsável pela tutela destes conflitos. Sob este contexto, cabível a análise das decisões judiciais acerca das ações de obrigação de fazer que envolvam a transferência de veículos no Juizado Especial, quanto a sua efetividade e a responsabilidade da Administração que distancia o conteúdo legal da segurança jurídica do vendedor de veículo. 8 A OBRIGAÇÃO DE FAZER NAS AÇÕES DE TRANSFERÊNCIA DE VEÍCULOS Como já demonstrado, o descumprimento da obrigação de transferir veículo adquirido em negócio jurídico de compra e venda

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pode acarretar prejuízos para as partes envolvidas dos quais, dependendo do patamar de gravidade da situação, somente por via judicial poderão ser solucionados. Evidente a judicialização da transferência de veículos, o que pode ser percebido em consulta simples de decisões judiciais em qualquer sistema eletrônico dos Tribunais de Justiça. Explícito que a ação de transferência de veículo importa em cumprimento de obrigação de fazer. Mas, por conseguinte, ao que se refere ao Juizado Especial, a informalidade e a simplicidade dos atos poderão postergar a satisfação do exequente quando o executado furtar-se da obrigação, quanto aos pedidos realizados sem coerência com as necessidades de cada caso concreto, bem como das peculiaridades que possam surgir no decorrer do feito. O cumprimento da obrigação necessita de uma ação do devedor. Logo, não há como dar início à execução através de um ato coercitivo ou constritivo, a medida cabível é a concessão de lapso temporal para que o devedor cumpra com a obrigação. Somente depois de decorrido o prazo, sem cumprimento é que se inicia a execução. O juiz utiliza como meio de cumprimento dos mandados a coação através de multa diária em decorrência do inadimplemento obrigacional denominada astreinte, sendo a multa paga revertida em favor do exequente. (OLIVEIRA; PIRES; TYSZLER, 2002, p.135) Dos meios praticados pelo juiz para satisfação do exequente, para que a situação possa ser contornada a Lei 9.099/95, de modo à proteger os direitos adquiridos por sentença, prevê as seguintes hipóteses: Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações: [...] IV - não cumprida voluntariamente a sentença transitada em julgado, e tendo havido solicitação do interessado, que poderá ser verbal, proceder-se-á desde logo à execução, dispensada nova citação; V - nos casos de obrigação de entregar, de fazer, ou de não fazer, o Juiz, na sentença ou na fase de execução, cominará multa diária, arbitrada de acordo com as condições econômicas do devedor, para a hipótese de inadimplemento. Não cumprida a obrigação, o credor poderá requerer a elevação da multa ou a transformação da condenação em perdas e danos, que o Juiz de imediato arbitrará, seguindo-se a execução por quantia certa, incluída a multa vencida de obrigação de dar, quando evidenciada a malícia do devedor na execução do julgado; VI - na obrigação de fazer, o Juiz pode determinar o cumprimento por outrem, fixado o valor que o devedor deve depositar para as despesas, sob pena de multa diária. A cominação de astreintes, a conversão em perdas e danos e a possibilidade do cumprimento da obrigação de fazer realizada por outrem estão envoltas por diversos problemas. No que diz respeito à transferência de veículos, a terceira hipótese, qual seja o cumprimento da obrigação por terceiros é a alternativa legal mais controversa, pois fere diretamente os princípios do Juizado Especial, uma vez que o terceiro, neste caso, é a Administração Pública, Departamento de Trânsito Brasileiro, ou seja, o órgão responsável pela normalização do documento veicular perante o proprietário legal e a retirada da obrigação quanto ao bem, do antigo proprietário. Entretanto, verifica-se que o Estado deveria compor a lide desde o início, mas devido à disposição legal, fica impedido de figurar no polo passivo da demanda conforme o artigo 8° da Lei 9.099/95 “ Não poderão ser partes, no processo instituído por esta Lei, o incapaz, o preso, as

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pessoas jurídicas de direito público, as empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil.” A determinação do juiz para que o Estado cumpra com a obrigação é corriqueira e já está em discussão no Superior Tribunal de Justiça. Como se vê na Reclamação nº 10.546 – MG (2012/0236227-7), proferida pelo Ministro Relator Raul Araújo, publicada em 23/11/2012, sendo o Estado de Minas Gerais, reclamante e a Segunda Turma Recursal do Juizado Especial Cível e Criminal de Divinópolis – MG, reclamado, ainda pendente de julgamento: Alega o reclamante que, após a criação dos Juizados Especiais da Fazenda Pública Estadual na Comarca de Divinópolis(MG), a propositura desse tipo de ação passou a se dar por meio de formulário padronizado do próprio Juizado Especial, denominado “Termo Resumo Pedido Verbal” (fl. 10), o qual contém requerimento expresso para que se inclua o Estado de Minas Gerais no polo passivo da demanda, a fim de que, caso o réu/ comprador não transfira o veículo para seu nome no prazo decretado na sentença, o ente público o faça compulsoriamente. Julgada a lide, foi proferida sentença com o seguinte teor: “Ante o exposto, julga-se procedente o pedido, determinando-se que se oficiem ao Detran/MG e à Secretaria de Estado da Fazenda requisitando que transfiram em seus registros a propriedade veículo objeto da lide para o réu José Paulo Santos de Sousa, retroativamente à data de 29/04/2009, isentando-se o autor de qualquer obrigação relativa a taxa, impostos e valores relativos a infrações de trânsito a partir da referida data.” (fl. 42) Essa sentença foi objeto de recurso inominado, o qual foi parcialmente provido para determinar a responsabilidade subsidiária do Estado de Minas Gerais quanto ao cumprimento da determinação de efetuar a transferência de propriedade do veículo, in verbis: “Sendo assim, dou parcial provimento ao recurso aviado pelo recorrente para julgar procedente o pedido inicial, no sentido de determinar ao primeiro réu que proceda, em vinte dias, a transferência, junto aos órgãos de trânsito, do veículo objeto da lide para seu nome, sob pena de incorrer em multa diária de R$ 50,00, limitado ao máximo de R$ 3.000,00, e, no caso de inércia no prazo da sentença, determino que o recorrente (Estado de Minas de Gerais), o faço compulsoriamente, mantida no mais, as demais determinações na r. Sentença (...).” Afirma que essa obrigação de fazer, consistente na transferência compulsória do veículo do nome do comprador para o nome do vendedor, atribuída ao Estado sem nenhum respaldo legal contraria a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que incumbe exclusivamente ao adquirente requerer a transferência da propriedade do bem perante os órgãos competentes. Cita como paradigma o REsp 938.553/DF da relatoria do em. Ministro MASSAMI UYEDA, no qual ficou pacificado o entendimento de que: “Realizada a transferência da propriedade do veículo, incumbe ao novo proprietário requerer, perante os órgãos competentes, a emissão do novo Certificado de Registro do Veículo (art. 123, § 1º, I, doCTB)”. Informa, também, que tramitam perante os Juizados Especiais de todo o Estado de Minas Gerais milhares de ações judiciais em que particulares discutem a propriedade de veículo automotor, em virtude de o adquirente/comprador não ter providenciado a transferência do veículo para o seu nome junto ao Departamento de Trânsito – DETRAN/MG, nos termos do art. 123, I, § 1º, do CTB. Com isso o ora reclamante tem figurado de forma desnecessária e ilegal em incontáveis processos judiciais, o que vem gerando enorme desperdício de tempo e recursos públicos não só para a Advocacia Pública, mas também para o próprio Poder Judiciário.

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O conteúdo da Reclamação exprime a preocupação do Estado com as demandas que envolvem transferência de veículos, sobretudo quando a responsabilidade, mesmo que subsidiária recaia para a Administração Pública. O cerne da questão carece de avaliação minuciosa, posto que, se o executado não cumpre com a obrigação imposta e se o Estado ao conferir direito à alguém em uma tutela jurisdicional, caso a determinação judicial não seja acatada, o autor da ação nunca terá êxito. A ação de transferência de veículo por negligência do proprietário atual do bem não importa em enriquecimento patrimonial, mas tão somente em regularização perante a lei. Destarte, é essencial que sejam tomadas providências para que se faça valer os princípios basilares do Juizado Especial e da Constituição da República de 1988, mormente quanto à garantia de justiça. As decisões que concernem às ações de transferência de veículos são contraditórias, uma vez que em alguns casos admitem que a Administração proceda com a transferência compulsoriamente. Conforme os julgados abaixo, é nítido que o assunto discutido possui relevância, posto que os entendimento acerca do tema são controversos: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - COMPRA E VENDA DE VEÍCULO - ALIENAÇÕES SUCESSIVAS - TRANSFERÊNCIA DO CRVL NÃO PROVIDENCIADA PELO ADQUIRENTE COMUNICAÇÃO DA VENDA AO ÓRGÃO DE TRÂNSITO - INÉRCIA DO ANTIGO PROPRIETÁRIO - DÉBITOS DE IMPOSTOS E TAXAS RELATIVOS AO BEM - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA MITIGADA - IMPOSIÇÃO ÀQUELE QUE EFETIVAMENTE SE ENCONTRAVA NA POSSE E PROPRIEDADE - APURAÇÃO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DO VEÍCULO - ALIENAÇÕES SUCESSIVAS POSTERIORES IMPOSSIBILIDADE DE IMPOSIÇÃO DA OBRIGAÇÃO À PARTE RÉ. A teor dos arts. 123, §1º e 134, do CTB, havendo a transferência de propriedade do veículo, compete ao adquirente providenciar a expedição de novo CRV, competindo ao alienante, por sua vez, comunicar ao Órgão de trânsito competente acerca do negócio, sob pena de responder solidariamente pelas penalidades impostas até a data da comunicação. Todavia, a solidariedade é mitigada quando ficar comprovado que as pendências existentes sobre o bem tiveram origem em data posterior à venda realizada a terceiro, de modo que eventuais débitos com impostos e taxas deverão ser suportados por aquele que efetivamente se encontrava na posse e propriedade do veículo litigioso, o que deverá ser apurado em liquidação de sentença. Tendo referido veículo sido objeto de alienações sucessivas, primeiro entre a parte autora e a parte ré e, após, a terceiros estranhos à lide, mas sem que houvesse a efetiva transferência de propriedade em quaisquer das negociações, não há como impor ao requerido a obrigação de promover tal transferência para o seu nome, seja porque não mais detém a posse e propriedade do veículo, seja porque não se tem conhecimento do paradeiro do bem, nem de quem seria o seu atual proprietário e nem do paradeiro deste último. (TJMG - Apelação Cível 1.0521.07.063405-5/002, Relator(a): Des.(a) Arnaldo Maciel , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/11/2014, publicação da súmula em 07/11/2014) O caso acima expõe que, embora esteja caracterizada a realização do negócio jurídico, a demanda resta prejudicada, uma vez que as alienações sucessivas impediram que se saiba quem está com a posse do veículo, haja vista que não houve a transferência a tempo e modo que pudesse evitar o imbróglio.

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Apelação cível - Ação declaratória - Administrativo e tributário- Veículo - Transferência administrativa - Legitimidade do Estado de Minas Gerais Alienação comprovada - Obrigação tributária mantida - Recurso a que se nega provimento. 1. Apelação limitada a um dos capítulos da sentença. 2. Demonstrada nos autos a tradição do veículo para terceiros, é de se manter a sentença que determinou a transferência administrativa a cargo do Estado de Minas Gerais. 3. Inaplicável precedente do STJ, pois destinado às decisões de Juizados Especiais, situação alheia aos autos. (TJMG - Apelação Cível 1.0003.11.0033309/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo Rodrigues , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/07/2014, publicação da súmula em 14/07/2014) Demonstrada a existência do negócio jurídico entre as partes, determinado de pronto que a Administração procedesse com a transferência do veículo. AÇÃO COMINATÓRIA C/C INDENIZAÇÃO - VEÍCULO ALIENADO - AUSÊNCIA DE TRANSFERÊNCIA PELO ADQUIRENTE - ALIENANTE QUE NÃO DISPÕE DO DOCUMENTO DE TRANSFERÊNCIA - POSSIBILIDADE DE SE OFICIAR AO DETRAN COMUNICANDO A ALIENAÇÃO - DANO MORAL - VALOR DA INDENIZAÇÃO.- Embora não caiba ao Judiciário determinar que o Detran promova a transferência do veículo, é possível a expedição de ofício informando expressamente a ocorrência da alienação e a qualificação completa do adquirente, a fim de que reste afastada a responsabilidade da alienante pelos fatos ocorridos posteriormente à venda do bem, tendo em vista não dispor a mesma do documento de transferência para que possa promover a comunicação àquele órgão;A indenização por dano moral deve ser fixada levando em conta o grau de culpa do ofensor, a natureza do dano e suas conseqüências, as condições financeiras das partes, bem como o seu caráter inibidor e compensatório. (TJMG - Apelação Cível 1.0433.08.2445019/002, Relator(a): Des.(a) Mota e Silva , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/07/2010, publicação da súmula em 06/08/2010) No caso em apreço, a impossibilidade de cumprimento pela Administração Pública não assegura que a parte autora, posteriormente, não terá problemas relacionados ao veículo, objeto da lide, haja vista que ainda constará como proprietária do veículo no Certificado de Registro e Licenciamento de veículos. AGRAVO DE INSTRUMENTO - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - INTIMAÇÃO DO EXECUTADO PELA IMPRENSA OFICIAL - VALIDADE - INTIMAÇÃO POR CARTA PRECATÓRIA - DESNECESSIDADE - LIBERAÇÃO DE VEÍCULO JUNTO AO DETRAN - INÉRCIA DO EXECUTADO - POSSIBILIDADE.Nos termos do art. 236 do CPC as intimações realizadas nas capitais dos estados e no Distrito Federal realizar-se-ão pela imprensa oficial, sendo completamente desnecessária e contrária à celeridade da justiça (art. 5°, LXXVIII da CR/88) a expedição de carta precatória. - Quedando inerte o executado ao cumprimento da decisão que determina a expedição de carta de liberação de veículo objeto de contrato de arrendamento mercantil, mesmo após fixação de astreintes, deve o judiciário oficiar o Departamento de Trânsito para efetivação da medida. (TJMG - Agravo de Instrumento 1.0024.01.082763-2/001, Relator(a): Des.(a) Saldanha da Fonseca , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/03/2009, publicação da súmula em 16/03/2009)

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Como alternativa para garantia de justiça à parte exequente, resta declarada a possibilidade de cumprimento da obrigação pelo Departamento de Trânsito ante à inércia do executado, Diferentes pontos de vistas revelam que as ações que competem a transferência de veículos podem traçar caminhos diversos e a solução do caso concreto poderá ou não existir. Ou seja, caberá ao Estado, seja por meio do judiciário ou do legislativo, garantir a justiça e a segurança jurídica prevista constitucionalmente. As análises dos fatos relacionados às decisões que concernem as ações de transferência de veículos asseveram que o tema requer atenção especial, seja por constituir demandas repetitivas, seja por não conferir segurança jurídica à população. Fato que ao compor uma lide, os envolvidos almejam a solução do litígio, vendo os seus direitos garantidos. Segundo Baracho (1982) “Vários são os sistemas que procuram definir o órgão do Estado que deve surgir como capaz de resolver o conflito”. Embora seja uma análise da época em que foi escrito, a aplicação nos dias de hoje perdura com maior intensidade. Há que se mencionar o ensinamento de Hans Kelsen apud Baracho (1982) quanto à separação de poderes e a organização estrutural do Estado. Atinente à função do Estado, onde, em que pese cada órgão exercer atividade única, não há impedimento para a atuação em forma diversa, seja de maneira excepcional e subsidiária. Na concepção de Theodoro Júnior (2009) “Os poderes de acesso à justiça e os deveres de tutela jurisdicional integram as garantias fundamentais proclamadas pelas Constituição de 1988”. Aduz que é através do judiciário, garantido pela Constituição, que se efetiva a tutela de acordo com as garantias fundamentais. Sob a ótica dos doutrinadores, Baracho, Hans Kelsen e Theodoro Júnior, as decisões judiciais, em que pesem determinar cumprimento de obrigação de fazer pelo próprio Estado mesmo quando não compõem a lide, é forma de garantia dos direitos fundamentais na solução de conflitos. A jurisdição, por conseguinte, é a responsabilidade do Estado, possuindo como finalidade a paz social. (GOULAR; SANTOS, 2013) Contrariando as finalidades constitucionais, a partir do momento em que se questiona o cumprimento de determinação judicial, como é o caso da Reclamação já mencionada, o Estado dá o primeiro passo de insegurança jurídica provocando assim um distanciamento das garantias constitucionais. Qual seria a solução eficaz para o litígio caso a Administração não cumpra a sentença judicial para proceder com a transferência de veículos nos casos em que o executado se furta da obrigação? Os princípios do Juizado Especial, da Constituição e do Código de Processo Civil estão sendo respeitados? As ações de transferência de veículos importam em congestionamento do judiciário, atingindo não só as partes envolvidas, mas todos aqueles que compõem o sistema, demonstra eficácia? Certo é que as indagações ainda não permitem respostas, uma vez que a lacuna existente entre a obrigação e o cumprimento legal não embasa meios alternativos para aqueles que querem estar quites com o Estado. A comunicação de venda realizada junto ao Departamento de Trânsito é um documento simples, porém não exime o vendedor da responsabilidade sobre o bem, uma vez que só a transferência do veículo pode transferir a titularidade do bem. Sob este aspecto, a Reclamação quanto a obrigatoriedade de o Estado cumprir determinação Judicial ou não, leva à explorar qual a opção é ofertada ao vendedor do veículo para que não precise movimentar o judiciário com o objetivo de comprovar a realização de negócio jurídico, bem como para que a transferência seja legalizada.

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Não há previsão expressa para que o infortúnio não ocorra, mas a Administração, diante da situação vivenciada e já constatada, denota que devem ser tomadas providências da atual conjuntura. Em São Paulo, de acordo com o Decreto nº 60.489, de 23 de maio de 2014, que estabelece a forma de prestação de informações pelos notários sobre as transações com veículos automotores terrestres, indica que há possibilidades de evitar o conflito pertinente à transferência de veículos de modo que consequentemente obsta a movimentação judicial. Dispõe que: Artigo 2º - Logo após a efetivação do ato de reconhecimento de firma por autenticidade do transmitente/vendedor no documento de transferência de propriedade do veículo o notário deverá enviar à Secretaria da Fazenda, por meio do endereço eletrônico http://www.fazenda.sp.gov.br: I - as informações relativas à operação de compra e venda ou transferência, a qualquer título, da propriedade do veículo, relacionadas no Anexo Único; II - cópia digitalizada, frente e verso, do Certificado de Registro do Veículo - CRV preenchido e com firmas reconhecidas por autenticidade conforme determinado pela legislação de trânsito, em arquivo no formato “PDF” e com assinatura digital contida em documento do tipo P7S. § 1º - Opcionalmente, a transmissão das informações e da cópia digitalizada gerada no momento do reconhecimento de firma, mencionadas nos incisos acima, poderá ser feita por lote, no prazo de até 72 horas. § 2º - Caso o adquirente do veículo venha a reconhecer sua firma autêntica em momento posterior ao reconhecimento da firma do transmitente, os notários deverão enviar as informações relativas ao ato de sua competência e as respectivas cópias previstas neste artigo. § 3º - Se os atos de reconhecimento de firma por autenticidade do transmitente/vendedor e do adquirente ocorrerem simultaneamente será suficiente uma única transmissão. § 4º - O notário deve consignar no termo de reconhecimento de firma por autenticidade que a cópia digitalizada e as informações pertinentes à transferência do veículo serão transmitidas ao fisco no prazo legal. § 5º - Poderá ser fornecida às partes, quando solicitada, certidão do termo de reconhecimento de firma por autenticidade, com indicação do cumprimento das obrigações impostas por este Decreto, mediante recolhimento de emolumentos, nos termos da Lei nº 11.331, de 26 de dezembro de 2002. § 6º - Ao término do procedimento realizado pelo notário será emitido recibo digital de confirmação da realização da transmissão.

corretamente levado à registro pelo novo adquirente, é a via judicial. Inicia-se assim uma trajetória árdua para que a justiça seja feita. Em que pese haver a possibilidade de solução judicial rápida, através dos Juizados Especiais, principalmente quando ocorre a conciliação e a parte contrária cumpre com a obrigação de proceder com a transferência do veículo, há a movimentação do judiciário gerando gastos públicos. Noutro ponto, quando a parte, em fase de execução furta-se da obrigação estabelecida, qual seja a transferência de veículo, a Administração Pública, que neste caso é o Departamento de Trânsito, é oficiada para proceder com a transferência do bem. O efeito da decisão judicial instalada visa tão somente garantia de justiça à parte que pleiteia o direito de estar em conformidade com a lei. Ante o exposto, questionáveis as situações expostas, haja vista a inobservância dos princípios norteadores dos Juizados Especiais, quais sejam a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade. Não obstante, é imprescindível que os princípios constitucionais da garantia de justiça e da segurança jurídica sejam respeitados para que a lide seja devidamente solucionada. Sob este aspecto, mister o posicionamento de Neves (2016, p.139-141): Dessa forma, também contribui para a tutela diferenciada uma maior liberdade concedida pela lei para que o juiz possa realizar algumas adaptações no caso concreto para colocar o processo efetivamente a serviço do direito material. É natural que essa liberdade nunca será ampla e irrestrita, o que geraria uma insuportável insegurança jurídica, mas em algumas situações o legislador entende que será proveitosa a concessão de uma maior liberdade procedimental ao juiz no caso concreto. Certamente, pensando em termos de tutela diferenciada, o Projeto original do Novo Código de Processo Civil previa em seu art. 151, § 1.º, um amplo poder para o juiz determinar o procedimento no caso concreto. Segundo constava do dispositivo legal, quando o procedimento ou atos previstos em lei se mostrassem, no caso concreto, inadequados, o juiz teria o poder de determinar os necessários reajustes, respeitando os princípios do contraditório e da ampla defesa. No mesmo sentido, o art. 107, V, ao admitir ao juiz a adequação das fases e dos atos processuais às especificações do conflito, de modo a conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico, respeitando sempre o contraditório e a ampla defesa. [...] Nos arts. 497 e 498 do Novo CPC, que tratam da execução de decisão judicial – provisória ou definitiva – que tenha como objeto a condenação a um fazer, não fazer ou entregar coisa, não existe a previsão de um procedimento executivo. As normas referidas somente preveem as medidas executivas de sub-rogação e de execução indireta, de forma exemplificativa, a serem utilizadas de acordo com a percepção do juiz diante das necessidades do caso concreto, que são percebidas pelo juiz, a adoção de uma ou outra.

A desburocratização observada no procedimento, talvez contribua para a diminuição de ações movidas judicialmente, que hoje é demasiadamente morosa. Contudo, não preenche a lacuna existe entre a Lei, o Estado e a justiça. 9 A VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ÀS DECISÕES JUDICIAIS NAS AÇÕES DE TRANSFERÊNCIA DE VEÍCULOS Nas ações de transferência de veículos, a pretensão principal é que ocorra a transferência de um veículo objeto de um negócio jurídico de compra e venda. Simples à primeira vista, contudo, permeia diversos problemas devido à lei que regula tal procedimento apresentar uma lacuna de grande importância. Como demonstrado, a única maneira que o alienante de veículo possui para que não permaneça responsável pelo bem do qual não foi

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A própria legislação, qual seja o Código de Processo Civil, respalda o juiz à tomar iniciativas que assegurem a garantia jurisdicional ao caso concreto, conferindo portanto a legitimidade quando da determinação de obrigação de fazer por terceiro não interessado na lide. Ademais, evidenciada a judicialização das ações de transferência de veículos se depreende das palavras de Barroso (2008, p.3):

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Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo

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decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. Em uma concepção simples o descumprimento de decisão judicial para transferência de veículo pelo Departamento de Trânsito importa em insegurança jurídica evidente, uma vez que garantido o direito de transferência do veículo por sentença, posteriormente a inércia do cumprimento da obrigação pelo executado implicará em necessidade de postulação judicial para qualquer fato ligado ao veículo não transferido que venha a acontecer futuramente. A Administração Pública não permite solução alternativa, bem como não pode a parte ficar à mercê de lacuna legislativa, quando já possui seu direito garantido. Trata-se de dedução óbvia, ou seja, de interpretação lógica sobre o assunto. Pertinente que seja avaliada a situação real que abrange a transferência de veículos, seja quanto à vinculação da Administração Pública à decisão judicial, mas particularmente quanto à necessidade de adequação à realidade, qual seja a iniciativa de adoção de medidas que resultem em benefícios gerais, seja para as partes envolvidas, para a redução de custos no judiciário, para o descongestionamento de ações dentre outros. 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisar os aspectos que produzem consequências para a sociedade de forma negativa é uma das obrigações do Estado. É essencial adequar as leis ao modelo social instalado o que implica em conferir modernização e justiça para a população. A conceituação principiológica constitucional orienta a condução da justiça e, por conseguinte, a forma como a Administração deve proceder perante os fatos a ela apresentados. Não obstante, vê-se que alguns dos atos praticados permanecem retrógrados, uma vez que não se adaptam às necessidades de seus próprios órgãos, como o caso da ordem de transferência de veículos. O desrespeito aos princípios legais fere a Constituição. A garantia de justiça e a segurança jurídica são direitos fundamentais conferidos a toda e qualquer pessoa, o que, portanto, não deve ser questionado quando da sua aplicação. A judicialização da transferência de veículos e a vinculação da Administração Pública à decisão judicial que impõe obrigação de fazer são fatos que evidenciam o respeito à proteção dos direitos fundamentais. Entretanto, suas implicações atingem o Sistema Judiciário num todo, haja vista que, em se tratando de Juizados Especiais, foge à intenção de desburocratizar. A inobservância de medidas que descongestionem o judiciário e o desgaste daqueles que dele se utilizam vai na contramão da celeridade e da economia processual. Isso posto, visível a necessidade de submissão da Administração Pública às decisões judiciais acerca da obrigação de fazer nas ações de transferência de veículos, uma vez que o Estado não dispõe outras formas de satisfação da lide. Destarte as ações de transferência de veículos almejarem a regularidade perante o Estado, é contraditória a atuação da Administração Pública ao permitir que a via judicial seja a solução última ao

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que tange à transferência de veículos. Portanto, deve agir de modo à garantir a justiça em harmonia com o poder judiciário. A garantia de justiça e a segurança jurídica demonstram ser o cerne da relação jurídica e administrativa entre os órgãos do Estado e a população, devendo assim zelar pelo bom funcionamento do sistema. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de. Execução civil nos juizados especiais. 3ª. ed. Ver.., atual. E ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. 222 p. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Aspectos da teoria geral do processo constitucional : teoria da separação de poderes e funções do estado. Revista de informação legislativa, v. 19, n. 76, p. 97124, out./dez. 1982|Revista jurídica mineira, v. 1, n. 5, p. 19-48, set. 1984, 10/1982. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/ id/181410 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Direito do Estado, Salvador, ano 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar 2009. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso em: 19/06/2016 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 outubro 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. BRASIL. Decreto nº 60.489, de 23 de maio de 2014. Estabelece a forma de prestação de informações pelos notários sobre as transações com veículos automotores terrestres. Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/ legislacao/decreto/2014/decreto-60489-23.05.2014.html Acesso em: 16/10/16 BRASIL. Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 24 set. 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9503Compilado.htm. Acesso em: 12/10/16. BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Reclamação Nº 10.546 - MG (2012/0236227-7). Relator: MINISTRO RAUL ARAÚJO. Publicado no DJ de 23 de novembro de 2012, p. 6138. Disponível em: http://www. tjmg.jus.br/data/files/3E/02/3A/D4/C8FAB3100C0ABAB3180808FF/ Reclamacao_10546_MG_liminar.pdf Acesso em: 15/10/2016 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento 1.0024.01.082763-2/001, Relator(a): Des.(a) Saldanha da Fonseca , 12ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/03/2009, publicação da súmula em 16/03/2009. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/ jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=8&totalLinhas=56&paginaNumero=8&linhasPorPagina=1&palavras=oficiar%20Detran&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&referenciaLegislativa=Clique%20na%20 lupa%20para%20pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=Pesquisar& Acesso em: 10/10/16 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível 1.0003.11.003330-9/001, Relator(a): Des.(a) Marcelo Rodrigues ,

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2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/07/2014, publicação da súmula em 14/07/2014. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=16&totalLinhas=34&paginaNumero=16&linhasPorPagina=1&palavras=transfer%EAncia%20ve%EDculo%20obriga%E7%E3o%20 terceiro&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&referenciaLegislativa=Clique%20na%20lupa%20para%20 pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=Pesquisar& Acesso em: 10/10/16 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível 1.0433.08.244501-9/002, Relator(a): Des.(a) Mota e Silva , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/07/2010, publicação da súmula em 06/08/2010. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/ jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=4&totalLinhas=56&paginaNumero=4&linhasPorPagina=1&palavras=oficiar%20Detran&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&referenciaLegislativa=Clique%20 na%20lupa%20para%20pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=Pesquisar&> Acesso em: 12/10/16 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível 1.0521.07.063405-5/002. Relator(a): Des.(a) Arnaldo Maciel , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 04/11/2014, publicação da súmula em 07/11/2014. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/ jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=4&totalLinhas=56&paginaNumero=4&linhasPorPagina=1&palavras=oficiar%20Detran&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&referenciaLegislativa=Clique%20na%20 lupa%20para%20pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=Pesquisar&> Acesso em: 10/10/16

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Banca Examinadora: Célio Stigert (Orientador) Fernanda Alvim (Examinadora 1) Maraluce Custódio (Examinadora 2)

CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos juizados especiais cíveis estaduais e federais . 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2012. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 31. Ed. São Paulo: Malheiros, 2015. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 28. Ed. São Paulo: Malheiros, 2012. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil do acesso à justiça nos juizados especiais cíveis. Coord. Paulo Eduardo Alves da Silva [et al.]. – Brasília, 2015. 92 p. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/ files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/b5b551129703bb15b4c14bb35f359227.pdf > Acesso em: 18/09/16 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado / Marcus Vinicius Rios Gonçalves ; coordenador Pedro Lenza. – 6. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016. GOULAR, Leandro Henrique Simões; SANTOS, Douglerson. A obrigatoriedade da mediação incidental à luz da reforma do código de processo civil. Revista eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva/Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva- nº 19, 2013. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=803>

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EFICÁCIA DAS NORMAS DE SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR SAFETY STANDARDS OF EFFICIENCY AND OCCUPATIONAL HEALTH Patrícia de Souza Lacerda 1

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar a eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador. A pesquisa será abordada segundo a vertente jurídico-sociológica. Para tanto, serão realizadas considerações acerca das referidas normas no contexto histórico e no Brasil. Outrossim, os princípios do direito do trabalho serão tratados, em especial, o princípio da proteção, tendo em vista que permeia toda a legislação trabalhista. Posteriormente, serão feitas considerações no que tange à eficácia das normas, como conceitos e diretrizes que norteiam o direito do trabalho, enfatizando as normas descritivas e as normas de desempenho. Ao longo do texto, serão citadas algumas jurisprudências visando demonstrar o posicionamento dos tribunais sobre o tema estudado. Por fim, propõe-se a adoção das normas de desempenho como solução do conflito analisado, bem com a observância do princípio da proteção, basilar nas relações de trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Direito do trabalho. Eficácia. Normas descritivas. Normas de desempenho. Princípio da proteção.

ABSTRACT: This article aims to analyze the effectiveness of Workers Health and Safety standards. The research will be addressed according to legal and sociological aspects. Therefore, considerations will be made regarding these rules in a historical context and in Brazil. Furthermore, the principles of labor law will be treated, in particular, the principle of protection, given that it permeates all labor laws. Subsequently, considerations will be made regarding the effectiveness of rules, for instance, concepts and guidelines for Labor Law, emphasizing descriptive and performance standards. Within the text will be quoted some jurisprudence for illustrate the understanding the tribunal about the subject studied. Finally, we propose the adoption of performance standards as a solution to the analyzed conflict, as well as the observance of the principle of protection, a cornerstone of labour relations. KEYWORDS: Descriptive standards. Effectiveness. Labor law. Performance standards. Principle of protection. Descriptive standards.

Sumário: 1 Introdução. 2 A segurança e saúde do trabalhador: contexto histórico.3 A segurança e saúde do trabalhador no Brasil.4 Os princípios do direito do trabalho aplicados à segurança e saúde do trabalhador.5 A questão da eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador.6 Normas prescritivas e normas de desempenho.7 Conclusão. Referências.

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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1 INTRODUÇÃO A Proteção Jurídica à segurança e saúde do trabalhador, no contexto mundial, é resultante de um processo de lutas, marcado pelo avanço tecnológico dos modos de produção e pela busca da classe trabalhadora por melhores condições de trabalho e de vida. No Brasil, somente com o advento da Constituição da República de 1988, que o direito à segurança e saúde passou a ser uma realidade jurídica, vez que assegurou aos trabalhadores no at. 7.º, XXII, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (BRASIL, 2016). Consagrou-se, então, o direito de o obreiro ter as suas atividades laborais tuteladas pelas normas técnicas pertinentes ao tema, as quais foram elevadas à categoria de direitos fundamentais. Ressalte-se que, anteriormente ao referido diploma legal, a proteção jurídica à saúde e segurança do trabalhador já havia sido contemplada pela Carta Magna, vigente em 1967, na CLT e por normas infraconstitucionais como as Leis: 6514 de 22/12/1977(alterou o Capítulo V, Título II da CLT, relativo à Segurança e Medicina do Trabalho), 6 986 de 13/04/1982 (alterou o art. 201 da CLT, relativo à Segurança e Medicina do Trabalho), 7855 de 24/10/1989 (alterou o art. 168, § 5.º da CLT, relativo à Segurança e Medicina do trabalho) e a Portaria 3214 de 08/06/1978 (aprovou as Normas Regulamentadoras - NRs - do Capítulo V, Título II da CLT, relativas à Segurança e Medicina do Trabalho). (MARTINS, 2009). De acordo com Oliveira, S. (2002) somam-se à legislação citada as convenções da OIT – Organização Internacional do trabalho, ratificadas pelo Brasil, como, por exemplo, a 148 (Meio Ambiente do Trabalho), 155 (Segurança e Saúde dos Trabalhadores) e 161(Serviços de Saúde no Trabalho) que por força constitucional (art 5.º § 2.º) aderem ao Sistema Jurídico Brasileiro. Conforme o art. 19 da Lei 8.213/91 (BRASIL, 2016a), “o acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”. Segundo Zocchio (1992), o acidente de trabalho pode ser considerado como todas as ocorrências indesejáveis, que interrompem o trabalho e causam ferimento em alguém ou algum tipo de perda à empresa, ou ambos ao mesmo tempo. Como será analisado, dentre os princípios do direito do trabalho, o princípio da proteção permeia toda a legislação laboral, culminando nas regras de proteção à segurança e saúde do trabalhador, tendo em vista que o Direito do Trabalho surgiu em consequência da exploração sem limites que a liberdade de contratar materializava. Constata-se que o reconhecimento quanto ao direito à saúde e segurança do trabalhador não é o maior desafio no Brasil. Todavia, se de um lado observa-se um número expressivo de normas jurídicas que proclamam esse direito, do outro, uma nova forma de organizar o trabalho impõe, em nome da competitividade e lucratividade, um modelo organizacional que depende de um balanço estratégico entre a dimensão social, econômica e ecológica, incorporando, na primeira, as questões de saúde e segurança no trabalho. Com base em Calixto e Quelhas (2016), é possível constatar-se que as resoluções dos problemas de saúde e segurança no trabalho deixaram de ser apenas de ordem técnica para serem também admi-

nistrativas, exigindo a implantação de sistemas de gestão integrada: segurança, saúde, meio ambiente e qualidade. No Brasil, toda a prática da prevenção de acidentes está fortemente centrada no cumprimento de normas de segurança oficiais. Nesse sentido, cursos ou treinamentos de segurança e saúde constituem-se de meios basilares das políticas de segurança e saúde, que promovam o processo de conscientização do trabalhador acerca dos riscos existentes nos locais de trabalho e das condutas de segurança, que devem ser adotadas para se evitar a materialização dos riscos. As deficiências na fiscalização do cumprimento das normas fazem com que a observância ou não de determinado preceito, resulte do juízo que o destinatário faz quanto à possibilidade real de ser autuado ou da ocorrência um acidente. A falta de conscientização ou de como realizar a tarefa de forma segura pode também constituir-se de fator contribuinte para a ocorrência dos acidentes, visto que estes podem ocorrer pelo fato do trabalhador não possuir conhecimentos suficientes sobre a forma de realizar o trabalho ou por não estar conscientizado acerca dos riscos que podem surgir no ambiente de trabalho, seja, pela ausência dos dispositivos de segurança recomendados pelas normas ou por inadequações oriundas da organização do trabalho. O presente trabalho tem por objetivo analisar a eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador. Será abordado dentro de uma vertente jurídico-sociológica, pelo fato da discussão se centrar na eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador para a redução do número de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais. (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNADER, 1999). Portanto, para que as normas de segurança e saúde tenham eficácia social na prevenção ou redução de acidentes é necessário que sejam promovidas intervenções nos projeto dos postos de trabalho, que não sejam baseadas apenas em normas prescritivas, mas também em critérios de desempenho. Dessa forma, será permitido a priori o estabelecimento do grau de segurança almejado e explicitação dos objetivos de segurança; resultando, assim, em um projeto verdadeiramente seguro e na efetiva proteção do trabalhador. 2 A SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR: CONTEXTO HISTÓRICO2 A palavra Trabalho originou-se do latim tripalium, que denominava um instrumento de três peças, a princípio utilizado na agricultura, depois para a sujeição de animais e posteriormente de trabalhadores escravos, consolidando a ideia de sofrimento, danação, expiação, tortura e sujeição. Os Romanos foram os primeiros a estabelecer a relação entre o trabalho e as doenças. Todavia, antes do século XIX, não havia qualquer norma jurídica de proteção à saúde do trabalhador, mas as sementes lançadas especialmente por Ramazzini, com sua obra “De Morbis Artificum Diatriba” (As doenças dos trabalhadores), estabeleceram pilares para assentar futuras construções doutrinárias e jurídicas sobre o tema. [...] de um lado, o trabalho relacionava-se, em sua origem filosófica, ao rebaixamento humano, porque ligava o indivíduo á matéria; de outro, ao sofrimento e à tortura por meio da “escola de preparação”, o tripalium. A ideia de trabalho, então, foi sendo introjetada e consolidada ao longo do tempo como a de algo que humilha, rebaixa, desclassifica o

Contexto histórico baseado em: DWYER, Tom. Vida e morte no trabalho: acidentes do trabalho e a produção social do erro. Tradução de Wanda Caldeira Brant e Jo Amado. Campinas: Unicamp, 2009. 407p. Título original: Life and death at work: industrial accidentes as a case of socially produced error e OLIVEIRA, João Cândido de. Aposentadoria: um lugar que nem sempre leva o caminhante ao melhor lugar. Belo Horizonte: Cultura e Editora, 2001. 271p.

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homem, caracterizando-o como ser inferior na ordem social. (OLIVEIRA, 2001, p.24). Com a revolução Industrial, a busca por lucros crescentes e a expansão capitalista provocam o aumento da miséria, do número de doentes e dos mutilados. Em 1802, o Parlamento Britânico aprova a primeira lei de proteção aos trabalhadores: a Lei de Saúde e Moral dos Aprendizes (12 horas de trabalho por dia, proibição do trabalho noturno, obrigava os empregadores a lavar as paredes das fábricas duas vezes por ano e tornava obrigatória a ventilação destas). A criação do serviço de medicina do trabalho surge, em 1830, da necessidade de se ter o operário sadio, com baixo índice de absenteísmo e alta produção. Entretanto, predomina uma medicina curativa, caracterizada pela ausência de uma investigação científica da relação trabalho-saúde. Além disso, o serviço médico não tinha autonomia para interferir no processo produtivo. Em 1833, foi criada a primeira legislação eficiente no campo da proteção ao trabalhador– Factor Act – que proibia o trabalho noturno aos menores de 18 anos, restrição ao número de horas trabalhadas: 12 por dia e 69 por semana, escolas nas fábricas, idade mínima para o trabalho de 9 anos). A busca pelo reconhecimento dos Direitos Humanos – Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) – afirma que todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Em 1949, surge um novo ramo de pesquisa, com o propósito de melhorar as ferramentas e os métodos de trabalho – Ergonomia – “O necessário é adaptar o trabalho ao homem”. Na conferência Internacional do trabalho da OIT, em 1970, ocorre a aprovação do Programa Internacional para o Melhoramento das Condições e do Meio Ambiente de Trabalho – PIACT. Em1884, na Alemanha, surgem as primeiras leis de acidentes do trabalho e, em 1891, a Encíclica De Rerum Novarum conclamava os povos no sentido da justiça social, influenciando legisladores e estadistas. No período da I Guerra Mundial, ocorrem manifestações de operários e as reivindicações estabelecidas em diversos congressos de trabalhadores levam a Conferência da Paz de 1919, da Sociedade das Nações, e a criação pelo Tratado de Versailles da Organização Internacional do Trabalho – OIT. No que concerne às convenções da OIT, pode-se destacar as seguintes: A Convenção 148, cujo propósito era prevenir e limitar os riscos profissionais no local de trabalho, provenientes da contaminação do ar, ruído e vibrações. A Convenção 155, que estabelece as normas e os princípios a respeito de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho. A Convenção 161, que trata da segurança e saúde dos trabalhadores centrando, porém a regulamentação nos serviços de saúde no Trabalho. 3 A SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR NO BRASIL O Direito do trabalho brasileiro é fruto de uma construção legislativa atrelada aos interesses das classes dominantes, visto que o proletariado ainda não havia afirmado sua posição como classe social. No período colonial, já se observa uma incipiente indústria naval

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na Bahia e de produção têxtil para abastecimento do mercado interno, embora não houvesse um processo ordinário de acumulação de capital. Além disso, desde 1573, existiam as fábricas de açúcar (engenhos), superiores a 1275 no final do século XVIII. (ROSSI; GERARB, 1997). O crack da Bolsa de New York, em 1929, levou a uma grande instabilidade financeira, agravando ainda mais a crise do café, acarretando, assim, investimentos no setor fabril. Nos anos 30, a mão-de-obra brasileira era constituída basicamente pelos herdeiros das tradições anarquistas do movimento operário e camponês europeu e pelos trabalhadores negros, ex-escravos. As condições de trabalho, neste início de industrialização, eram precárias e as jornadas de trabalho eram longas e os trabalhadores mal remunerados. Como forma de reagir à exploração e às condições de trabalho degradantes, os operários brasileiros criam organizações de luta que se tornaram conhecidas como: Associação Operária, Associação de Resistência, Aliança Operária, Centro Operário, Liga Operária. (MOURA, 1993). Em 1906, é realizado o primeiro Congresso Operário Brasileiro, dando impulso aos sindicatos. Greves por melhores salários, condições dignas de trabalho, redução da jornada para oito horas, condições específicas para o trabalho da mulher e do menor foram empreendidas. (MOURA, 1993). Através do Decreto Legislativo n.º 3.724, em 1919, é realizada a primeira referência à proteção legal dos acidentes e das doenças do trabalho. Em 1923, é criada a Inspetoria de Higiene Industrial e Profissional e, em1925, instituída a cadeira Higiene Industrial no curso de sanitarista. O Ministério do trabalho Indústria e Comércio foi criado em1931, no governo de Getúlio Vargas, dando, efetivamente, início à elaboração de leis sociais; ao passo que, em 1943, é aprovado o conjunto de leis denominado CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) inspirada na Carta Del Lavoro de inspiração fascista. (MARTINS, 2009). O Decreto n.º 24.637 de 1943 constituiu-se na segunda lei de acidentes do trabalho, em nosso país, abolindo a exigência da causa única, amparou as doenças resultantes das condições de trabalho, garantiu o pagamento das indenizações, obrigando os empregados a manterem contrato de seguro, facultativamente, no Banco do Brasil ou nas Caixas Econômicas da União. (MARTINS, 2009). Entre 1942 e 1943, foi instituída a Consolidação das leis do Trabalho (convertida em lei pelo decreto-lei n.º 5.452 de 1º de maio de 1943) que, em seu capítulo V do Título II, trata exclusivamente da Segurança e Medicina do Trabalho. (MARTINS, 2009). O Decreto-Lei n.º 7.036/ 1944, terceira lei de acidentes do trabalho no Brasil, traduziu o estatuto que mais se empenhou em proteger os trabalhadores e seus dependentes: transformou o seguro de acidentes do trabalho, até então de caráter privado, em seguro social, integrando-o, obrigatoriamente, na Previdência Social e alargou o âmbito das indenizações. Criou também a CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, para as empresas com mais de 100 empregados. (MARTINS, 2009). O Decreto-Lei n.º 293 de 1967, quarta lei de acidentes do trabalho no Brasil cujas normas mostraram-se extremamente lesivas aos trabalhadores, provocaram reações enérgicas em todo o país. Assim, neste mesmo ano, publicou-se a quinta lei de acidentes do trabalho, a lei n.º 5.316/67, a qual revelou grandes méritos, com a estatização do seguro acidentário, eliminando as atividades das empresas do setor. (MARTINS, 2009). Em 1972, O governo federal editou a Portaria n.º 3237/72, que tornou obrigatória a existência de serviços especializados em segurança e medicina do trabalho em todas as empresas onde trabalhassem 100 ou mais empregados, de acordo com o risco de suas atividades. (MARTINS, 2009).

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A portaria 3214 /78 aprovou as Normas Regulamentadoras - NR, do Capítulo V, do Título II, da CLT relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. Este capítulo foi alterado pela Lei 6514, de 22 de dezembro de 1977(BRASIL, 2016b), quando estava em vigor o Decreto-Lei 229, de 28/02/67. Segundo o art. 19 da Lei 8.213/91 (BRASIL, 2016a), “acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”. Entende-se, ainda, o acidente de trabalho como todas as ocorrências indesejáveis, que interrompem o trabalho e causam ferimento em alguém ou algum tipo de perda à empresa, ou ambos ao mesmo tempo. (ZOCCHIO, 1992, p.42). Em1988, com a promulgação da Constituição da República (BRASIL, 2016) foram consagrados novos princípios, especialmente do Direito do Trabalho. O art. 1.º da CR/88 considera o trabalho um valor social, ao lado da soberania, da cidadania, da dignidade das pessoas humana e do pluralismo político. No art. 6.º do referido diploma, o trabalho é considerado um Direito Social, vez que determina tal artigo que a ordem econômica deverá estar apoiada na valorização do trabalho, enfatizada tal premissa também pelo art. 170. O art. 193 cita que a ordem social terá por base o primado do trabalho. Os arts. 205 e 214 enfatizam que a educação deverá ser voltada para a qualificação e formação para o trabalho. A partir da leitura dos artigos supracitados constata-se que a Constituição da República de 1988, procurou lançar as premissas básicas da dignificação do trabalho, procurando privilegiar o trabalhador e não a ordem econômica. Dentre as Convenções internacionais, que tratam da proteção jurídica do trabalhador, e que foram ratificadas pelo Brasil, destacamos as Convenções, 148, 155, e 161. A Convenção 148, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 56/81, foi ratificada em 14 de janeiro de 1982, sendo promulgada pelo Decreto 93.413/86 e entrou em vigor em 14 de janeiro de 1983. A Convenção 155, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 02/92, ratificada em 18 de maio de 1992, sendo promulgada pelo Decreto 1.254/94 e entrou em vigor em 18 de maio de 1993. A Convenção 161, Aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 86/89, ratificada em 18 de maio de 1990, sendo promulgada pelo Decreto 127/91 e entrou em vigor em 18 de maio de 1991. No entanto, passados vinte e oito anos da promulgação da Constituição federal, ainda se convive com o trabalho infantil e o escravo no Brasil. A acumulação monetária continua sendo o fim para o qual se emprega a força de trabalho, fazendo deste não um fim em si mesmo, mas um meio de servir aos interesses capitalistas de poucos. Desse modo, este avanço constitucional que pressupõe uma ordem jurídica apta a acolher modernas convenções e outros documentos internacionais que protegem a saúde do trabalhador, acaba não se efetivando na prática. 4 OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO APLICADOS À SEGURANÇA E SAÚDE DO TRABALHADOR O vocábulo princípio originou-se do latim principium e significa fonte, origem ou verdade primeira. “Os princípios são ‘verdades fundantes’ admitidos como condição básica de validade das demais asserções que compõem dado campo do saber”. (OLIVEIRA, 2002, p. 50).

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Segundo Delgado (2015), para a ciência do direito os princípios são diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que após inferidas, a ele se reportam, informando-o. Os princípios do Direito do Trabalho constituem o sustentáculo de todo o ordenamento jurídico do trabalho. Com base em tal assertiva Plá Rodriguez (2000, p. 49) entende que os princípios estão acima do direito positivo enquanto lhe servem de inspiração, mas não podem tornar-se independentes dele. Delgado (2015, p.191) parece comungar com tal entendimento, vez que entende que a prevalência dos princípios sobre as regras legais é relativa, sob pena de criar-se total insegurança na ordem jurídica e no meio social regulado, conforme se verifica nos textos abaixo: [...] parece-nos mais adequado sustentar que, em vez de função normativa própria, específica, autônoma, verifica-se que os princípios atuam como comandos jurídicos instigadores, tendo, no fundo, uma função normativa concorrente. Trata-se de papel normativo concorrente, mas não autônomo, apartado do conjunto jurídico geral e a ele contraposto. [...] Nesta atuação, ora estende o comando desta, ora o restringe, ora até mesmo esteriliza-o, a partir de uma absorção de seu sentido no âmbito mais abrangente cimentado pelos princípios correlatos. Nesta linha, se uma regra legal realiza o comando genérico contido em certo princípio, mas entra em choque com outro, pode prevalecer, sem dúvida, em face do peso do princípio realizado. Contudo, isso não significa que o princípio preterido não tenha certa influência na compreensão da norma enfocada, atenuando, adequadamente, seus efeitos pensados na origem. (DELGADO, 20015, p. 191). Com base na enumeração proposta por Plá Rodriguez (2000, p.61), são os seguintes os princípios que fundamentam o direito do trabalho: o princípio de proteção, que se manifesta em três formas distintas, quais sejam, in dúbio, pro operário, regra da aplicação da norma mais favorável e regra da condição mais benéfica; o princípio da irrenunciabilidade dos direitos; o princípio da continuidade da relação de emprego; o princípio da primazia da realidade; o princípio da razoabilidade; o princípio da boa-fé e o princípio de não discriminação. Delgado (2015, p.202) defende que não se desdobra o princípio da proteção em apenas três dimensões, mas abrange quase todos, ou senão todos os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho. Portanto, a noção dos direitos trabalhistas, da inalterabilidade contratual lesiva, da irretroação das nulidades, dentre outros. O fundamento do princípio supracitado está no fato de que a proteção permearia os princípios da imperatividade das normas trabalhistas, da indisponibilidade de o Direito do Trabalho ter surgido em consequência da exploração sem limites que a liberdade de contratar materializava. Desse modo, para que a igualdade entre as partes não fosse apenas jurídica, mas fosse capaz de se concretizar no plano real, buscou-se, ou ainda busca-se com o Direito do Trabalho compensar esta desigualdade econômica entre as partes do contrato de trabalho, com uma proteção jurídica que lhe seja favorável. A regra in dúbio, pro operário consiste em, dispondo o juiz ou o intérprete uma norma passível de diversos entendimentos, optar por aquela que seja mais favorável ao trabalhador, parte hipossuficiente na relação empregatícia. Regra da norma mais favorável, no caso de haver mais de uma norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas. Desse modo, admite-se o predomínio das cláusulas mais favo-

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ráveis de uma convenção coletiva e as normas de uma lei. No entanto, as cláusulas consideradas menos favoráveis não ficam derrogadas, mas tornam-se inoperantes, vez que continuam produzindo seus efeitos em favor dos trabalhadores não compreendidos pela norma de hierarquia inferior, mas que é mais favorável. A Regra da condição mais benéfica estabelece que uma nova norma trabalhista nunca deve servir par diminuir as condições mais favoráveis em que se encontrava um trabalhador. Por fim, o que se constata é que o princípio da proteção, assim como os seus desdobramentos não necessitam de norma expressa como requisito básico para a sua aplicação, visto que pela sua natureza estes estão acima do direito positivo, ao mesmo tempo em que resultam da orientação de todo o conjunto de normas, do propósito que as inspira, da ideia central que opera com razão de ser essencial. (PLá RODRIGUEZ, 2000). O Princípio da Irrenunciabilidade dos Direitos trata da impossibilidade do trabalhador, por vontade própria, privar-se de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio. O Princípio da Continuidade da Relação de Emprego defende a mais ampla duração da relação de emprego, sob todos os aspectos, com o intuito de favorecer o trabalhador, sem que com isso, segundo Plá Rodriguez (2000), possa sustentar que o mesmo seja uma derivação do princípio da proteção, visto que a tutela do trabalhador faria parte da essência de todos os princípios do Direito do Trabalho. O Princípio da Primazia da Realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é ao que sucede no terreno dos fatos. (PLá RODRIGUEZ, 2000, p. 339).

contida e de eficácia limitada. As normas de eficácia plena, como o próprio nome indica, são as regras que têm aplicação imediata e integral, não dependendo de legislação posterior para o alcance de sua operatividade. Por seu turno, as normas de eficácia contida têm aplicabilidade imediata, mas podem ter seu alcance reduzido pelo legislador infraconstitucional, segundo comando oriundo da própria Constituição. As normas de eficácia limitada são aquelas regras constitucionais que dependem da emissão de uma normatividade futura para alcançar plena eficácia. Para Oliveira S. (2002), a eficácia social da norma jurídica é que seria a efetividade, a aproximação entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. As normas de segurança e saúde do trabalhador teriam aplicação imediata, conforme estabelece o art. 5.º, § 1.º da CR/88: “As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” e, com o advento do diploma legal em destaque, o direito à segurança e saúde passou a ser uma realidade jurídica, vez que se assegurou aos trabalhadores a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (Art. 7.º, XXII da CR/88). No Recurso Ordinário (RO) de n.º 0010880-06.2015.5.03.0038, o TRT3 decidiu: CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. POSSIBILIDADE. Trata-se de interpretação evolutiva do art. 193, § 2º, da CLT, de acordo com os ditames da Constituição da República (art. 5º, § 2º, art. 7º, “XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, direito fundamental que prepondera sobre os demais) e do Direito Internacional do Trabalho (Convenção 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, possuindo eficácia supralegal). Aliás, o art. 7º, XXIII, da Carta Magna traz expressa previsão de adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, mas não faz qualquer ressalva quanto à impossibilidade de cumulação. (BRASIL, 2016c).

O Princípio da Razoabilidade sustenta-se na afirmação de que a razão e não a arbitrariedade é que deve regular as relações trabalhistas. O Princípio da Boa-Fé encerra a ideia de que as transações devem ocorrer sob o crivo da honestidade e honradez, em que cada parte cumpre com o seu dever. Abrange este, ambas as partes do contrato de trabalho. O Princípio da Não Discriminação leva a excluir todas aquelas diferenciações que põem um trabalhador numa situação de inferioridade ou mais desfavorável que o conjunto, e sem razão válida nem legítima. (PLÁ RODRIGUEZ, 2000, p.445).

Já a primeira turma do referido Tribunal aduziu no RO de n.º 0010122-37.2015.5.03.0067: ELETRICITÁRIOS. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. BASE DE CÁLCULO. REDUÇÃO EM NORMA COLETIVA. Para a d. Maioria a autonomia coletiva não pode negociar direito do trabalhador previsto em normas de ordem pública que ofereçam garantias em higiene, saúde e segurança do trabalho. Assim, não há como se legitimar a redução de direito definido em norma imperativa, por meio de instrumentos normativos, sob pena de se negar vigência, eficácia e efetividade a texto de lei instituído pelo Poder Legislativo, que é o órgão competente para essa finalidade. Nesse sentido se consolidou a jurisprudência do Col. TST, por meio da Súmula 191 e OJ 272, conforme as quais o cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários deverá ser efetuado sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial. (BRASIL, 2016d).

5 a QUesTÃO Da eFicÁcia Das NOrMas De segUraNÇa e saÚDe DO TraBalhaDOr Inicialmente, para que a eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador sejam analisadas faz-se mister realizar algumas considerações: De acordo com Silva (2015), a eficácia jurídica é tida como a qualidade da norma para produzir efeitos jurídicos e a eficácia social é entendida como a efetiva conduta de acordo com a norma, ou seja, a norma é realmente aplicada e obedecida. Delgado (2015) entende a eficácia jurídica como a aptidão formal de uma norma jurídica para incidir sobre a vida material, regendo relações concretas. Divide tais normas segundo o que denomina vertente tradicional em autoexecutáveis (aplicabilidade imediata) e não autoexecutáveis (dependem de regra infraconstitucional ulterior que as complemente ou especifique). Ainda menciona o autor a divisão destas normas segundo a vertente moderna em: normas de eficácia plena, de eficácia lEtraS JurÍdIcaS | v. 4| N.2 | 2o SEMEStrE dE 2016 | ISSN 2358-2685

Não obstante as normas de segurança e saúde do trabalhador apresentarem força cogente verifica-se que no plano concreto não têm conseguido alcançar os objetivos pretendidos, quais sejam, a redução dos riscos a saúde do trabalhador, tal situação pode ser verificada na Ementa do Recurso Ordinário de n.º 00008041220135020040 do TRT2, que aponta como causa do acidente do trabalho a omissão da reclamada na adoção das medidas preventivas.

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cENtro uNIvErSItárIo NEwtoN paIva


ACIDENTE DO TRABALHO. NÃO OBSERVÂNCIA DA S NORMAS DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRA BALHO. CULPA DO EMPREGADOR. As reclamadas não observaram o teor do artigo 157 , I e II , da CLT , no sentido de cumprir e fazer cumprir nor mas de segurança e medicina do trabalho quant o às precauções a tomar no sentido de evitar acidente do trabalho. Ante o conjunto probatório, reconhece-se que as reclamadas não adotaram medidas necessárias para evitar o acidente do trabalho sofrido pelo reclamante. Assim, manifesta a culpa das reclamadas decorrente de sua omissão quanto à adoção de medidas preventivas à ocorrência de acidente do trabalho. Indenizações devidas. (BRASIL, 2016e). Estatísticas oficiais divulgadas pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (BRASIL, 2016f) demonstram que: em 2011, ocorreram 1813 acidentes por dia; em 2012 foram 1820 e em 2013 foram 1864 acidentes, o que dá uma média, dos três anos citados de 229 acidentes de trabalho por hora, considerando-se 300 dias trabalhados no ano, com jornada de 8 horas diárias.3 Quanto aos custos de acidentes, despesas com aposentadoria especial, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, auxílio-acidente e auxílio-suplementar, o custo em 2011 foi de aproximadamente 15 bilhões de Reais. Quanto aos anos de 2012 e 2013, o Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS) divulgou que foram gastos cerca de 8 bilhões de Reais, em 2012, e de 12 bilhões de Reais, em 2013, com aposentadoria especial; porém, omitiu os totais gastos com aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, auxílio-acidente e auxílio-suplementar. (BRASIL, 2016f).4 Segundo o Anuário Brasileiro de Proteção (2015), os dados relacionados aos números de acidentes levam em conta apenas os 48.948.433 trabalhadores com vínculos formais (celetistas, temporários, avulsos, entre outros). Excluem-se, portanto, os empregados informais, trabalhadores domésticos informais, profissionais autônomos, empregadores, militares e estatutários. Em outras palavras, o que se verifica nas tabelas e gráficos é um recorte (e não o panorama completo) dos registros de acidentes em âmbito nacional. Para todo acidente de trabalho, a lei determina que seja emitida uma CAT (Comunicação de Acidente do Trabalho), em caráter obrigatório, independentemente de haver ou não afastamento. Quando a empresa descumpre essa regra, o acidente não é notificado e fica de fora das estatísticas oficiais. (ANUÁRIO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO, 2015). Desse modo, verifica-se que embora se tenha todo um arcabouço jurídico montado em defesa do obreiro como: leis, decretos, portarias, instruções normativas, ordens de serviço e outros, os índices oficiais nos mostram realidade em prejuízo à saúde e segurança no ambiente laboral. Assim: “O grande desafio agora não é mais o reconhecimento dos direitos, mas a sua efetiva aplicação, para que a norma não seja observada como promessa irrealizável, ou declaração de boas intenções para tornar realidade algum dia.” (OLIVEIRA, 2002, p. 55). Segundo Oliveira S. (2002), a falta de efetividade da norma jurídica se deve a resistência às mudanças por parte dos juristas que continuam apegados às interpretações do passado embora muitas das disposições constitucionais já possam ser aplicadas de imediato. Atribui, também, esta falta de efetividade à inércia ou omissão dos

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titulares dos direitos proclamados que não exigem a sua proteção. Saliente-se que a questão da eficácia da norma jurídica relativa à segurança e saúde do trabalhador é bem complexa; pois, assim como toda norma jurídica, contêm uma prescrição que visa influenciar o comportamento alheio e modificá-lo. De acordo com Norberto Bobbio (2005, p.79), para que a pessoa a quem se dirige a prescrição resolva agir segundo o que esta determina é necessário que ela conheça certos fatos e deseje certas consequências. É necessário para tanto informá-la e suscitar-lhe um determinado estado de espírito. Analisando-se os programas de gestão em segurança e saúde de diversos estabelecimentos, constata-se que um dos pilares sobre o qual estes se sustentam são os treinamentos, considerados ferramentas imprescindíveis para o sucesso de qualquer programa de segurança. Passando pelo Diálogos Diários de Segurança (DDS) aos cursos de treinamento para uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), combate a incêndios, investigação de acidentes, dentre outros. O obreiro, através dos treinamentos práticos e/ou teóricos, que podem vir atrelados a outros instrumentos estratégicos de informação, como o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) ou o Mapa de Riscos, é informado sobre os possíveis riscos que existem em seu ambiente de trabalho para, em seguida, ser sensibilizado acerca da necessidade de adotar as medidas indicadas pelo empregador, no intuito de evitar a materialização destes riscos. Essas medidas são estabelecidas e implementadas por meio de uma equipe de profissionais especializados - o Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) - contratados pelo empregador por força de lei. Essa sensibilização pode se dar a partir da invocação de aspectos punitivos, que vão da simples advertência à demissão por justa causa, ou da invocação de aspectos emotivos ou valorativos, como aqueles que buscam ressaltar a necessidade de se preservar a vida. Portanto, no tocante aos destinatários das referidas normas tem-se de um lado o empregador, a quem por ter assumido os riscos da atividade econômica, compete cumprir os preceitos contidos nas mesmas a fim de que a saúde física e mental de seu empregado seja resguardada. Para tanto, é necessário que o empregador seja capaz de exigir de seu subordinado a observância destes preceitos, o que faz seguindo as exigências que a natureza de uma norma prescritiva impõe: informando e persuadindo o obreiro a cumpri-la, seja através de reforços positivos (premiações pela redução do número de acidentes e/ ou pela identificação da adoção de métodos seguros e/ou corretos de trabalho) ou negativos (punições). Estudando-se os principais aspectos destas normas, observa-se que a violação isolada ao preceito legal, associada à ação ou omissão, não é o único fator causador do acidente. Fatores de ordem técnica, administrativa e organizacional também são relevantes no desencadeamento da série de eventos que levam à ocorrência do infortúnio laboral. (BAUMECKER, 2000). Oliveira, J. (2001) corrobora com este pensamento quando cita que, no que se refere à segurança do trabalho a identificação, qualificação e quantificação dos riscos do trabalho devem ser feitas a partir do estudo criterioso dos métodos, dos processos e da organização do trabalho. Uma análise superficial poderia conduzir à ideia de que bastaria adotar medidas de ordem técnica, administrativa ou organizacional para se evitar a ocorrência dos acidentes do trabalho, entretanto, tal ideia acabaria

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por levar à conclusão errônea de que as normas de segurança e saúde não apresentam papel relevante na prevenção destes acidentes, já que o seu descumprimento pode não ser o real fator desencadeador do sinistro. Ora, adotar tal opção seria o mesmo que admitir que o direito positivo, no tocante ao tema, tem pouca importância, quando se sabe que o reconhecimento ao direito do obreiro ter um ambiente de trabalho seguro; deve-se, sobretudo, ao caráter normativo-jurídico conferido a estas normas técnicas. Portanto, negar a sua importância é retroagir ao tempo em que o empregador por não ter o dever de propiciar condições seguras aos seus obreiros, deixa-os a própria sorte. Há de se ressaltar que, a par de existirem tais normas, que impõem sanções monetárias se o seu descumprimento for reiterado, a experiência tem demonstrado que muitos empregadores não a cumprem; expondo, desse modo, ao risco a integridade física e mental de seus colaboradores. O RO de n.º 00004913020125020511 do TRT2 demonstra tal assertiva: ACIDENTE DO TRABALHO. NÃO OBSERVÂNCIA DA S NORMAS DE SEGURANÇA E MEDICINA DO TRA BALHO. CULPA DO EMPREGADOR. A reclamada não observou o teor do artigo 157, I e II, da CLT , no sentido de cumprir e fazer cumprir normas de seg urança e medicina do trabalho, bem como instruir os empregados, através de ordens de serviços, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidente do trabalho. Ante o conjunto probatório, reconhece-se que a reclamada não adotou medidas necessárias para evitar o acidente do trabalho sofrido pelo reclamante. Assim, manifesta a culpa da reclamada decorrente de sua omissão quanto à adoção de medidas preventivas à ocorrência de acidente do trabalho. Indenizações devidas. (BRASIL, 2016g). Ainda que a norma não consiga isoladamente evitar a ocorrência de um acidente, constitui-se de fator decisivo para o desencadeamento da adoção de medidas de ordem técnica e/ou administrativa que podem evitá-lo, já que acarreta pela sua violação uma resposta externa e institucionalizada: a sanção. Mas no plano fático, diversas limitações como, as que impedem a fiscalização do cumprimento das normas pelas autoridades encarregadas (número reduzido de auditores-fiscais), a falta de conhecimento e conscientização por parte dos seus destinatários (trabalhadores e empregadores) e a ilusão da existência de ambiente saudável e seguro acabam por tornar inócua a sanção, fazendo com que o cumprimento ou não de determinado preceito resulte do juízo que o destinatário faz quanto à possibilidade real de ser autuado ou de ocorrer um acidente pela não observância de determinado(s) preceito(s). 6 NORMAS PRESCRITIVAS E NORMAS DE DESEMPENHO A função essencial de um preceito de caráter prescritivo é modificar comportamentos. Segundo Ferraz Júnior (2003, p. 102), “pode-se entender o comportamento como a troca de mensagens, de comunicação, que ocorre em dois níveis: o cometimento e o relato”. O primeiro diz respeito à mensagem que emana de nós e o segundo a mensagem que emanamos. Quando se diz: “Use o EPI!” O conteúdo transmitido é o ato de usar o EPI, a mensagem que emana, o cometimento, é o de uma relação de subordinação. A expectativa sobre o endereçado de cumprir a ordem de um superior pode ou não se confirmar e vice-versa, isto é o endereçado também tem expectativas sobre as expectativas do emissor. Com isso criam-se situações complexas que se confirmam ou se desiludem. Na medida em que as situações comportamentais são complexas

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(o número de possibilidades de ação é maior que o número de possibilidades atualizáveis) procura-se, então, selecionar expectativas, mas, estas, não são capazes de garantir que a possibilidade selecionada se atualize. Daí concluir-se que a possibilidade de desilusão sempre faz parte das situações comportamentais, demonstrando que as interações humanas são sempre contingentes (podem ocorrer ou não de acordo com a expectativa selecionada). (FERRAZ JÚNIOR, 2003, p.103) Considerando tal enfoque sob a ótica de Norberto Bobbio (2005, p. 152) constata-se o acima exposto: Uma norma prescreve o que deve ser. Mas aquilo que deve ser não corresponde sempre ao que é. Se a ação real não corresponde à ação prescrita, afirma-se que a norma foi violada. É da natureza de toda prescrição ser violada, enquanto exprime não o que é, mas o que deve ser. Analisando a natureza prescritiva das normas de segurança e saúde, verifica-se que estas se baseiam em ações que buscam modificar o comportamento dos destinatários, fazendo com que estes acatem a expectativa selecionada para uma determinada situação. De acordo com as normas prescritivas, as intervenções efetuadas no ambiente de trabalho se dão a partir de procedimentos básicos, imperativos, que devem ser seguidos em qualquer circunstância, sem determinar os resultados (desempenho) que se deseja. Um exemplo do exposto é o que ocorre, na prática, com a indicação do uso do EPI para se prevenir os acidentes. Embora, o EPI deva ser utilizado como medida paliativa, sua indicação acaba sendo generalizada pelo fato de constituir-se de medida de menor custo. Indicado o EPI correto e treinando o obreiro quanto ao seu uso, o empregador tem a expectativa de que este será usado por aquele, conforme o estabelecido pelo treinamento e ratificado no recibo individual de EPI; no entanto, esta expectativa acaba na maioria das vezes sendo frustrada, até porque o EPI não evita o acidente, mas apenas atenua as lesões decorrentes deste. Com isso, embora em tese a prescrição tenha sido seguida, ela como um “dever-ser” não é capaz de se manter estável a todo instante. Assim, as normas de segurança e saúde do trabalhador acabam por ensejar a ilusão de um ambiente seguro, materializando o que se denomina de segurança oficial, na medida em que consolidam a ideia de que o projeto realizado de acordo com as normas técnicas é seguro. Todavia, o nível de segurança desejado deveria ser determinado previamente, tendo em vista a relação custo X benefício, o que depende do quanto se está disposto a investir financeiramente na adoção de dispositivos, que vão garantir o percentual de segurança desejado (LIMA E ASSUNÇÃO, 2016). Portanto, de acordo com Lima e Assunção (2016) o ideal é que as intervenções feitas no ambiente de trabalho sejam baseadas em normas de desempenho, que independentemente do método escolhido visam atender condições pré-determinadas, sem perder de vista as prescrições existentes sobre o tema. Este tipo de norma reúne e padroniza os conceitos de vida: útil de projeto, residual, total, sobrevida e de garantia. São capazes de estabelecer os prazos de desempenho dos diversos sistemas e ainda de aferir a execução dos trabalhos. Como exemplo destas normas, pode-se citar a Instrução Técnica n.º 35, (MINAS GERAIS, 2016) que trata da Segurança contra incêndio em edificações históricas, editada pelo Corpo de Bombeiros de Minas Gerais. Objetivos da norma:

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1.1 [...]. 1.2 As medidas de segurança estabelecidas nessa

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Instrução Técnica visam a atender a condições mínimas aceitáveis de segurança contra incêndio pânico na edificação considerada. Considerações Gerais: 4.3 Condições mínimas aceitáveis de segurança contra incêndio são o conjunto de medidas de segurança ativas e passivas capazes de gerar na edificação o risco máximo admissível de incêndio. 4.4 O risco máximo admissível de incêndio corresponde à exigência de implantação na edificação de medidas de segurança ativas e passivas em certo número, admitida como suficientemente seguras e economicamente viáveis, as quais se sobrepõem aos parâmetros que favorecem a ocorrência de um incêndio de severidade máxima provável admissível. 4.5 O risco máximo admissível de incêndio ou o coeficiente de segurança mínimo aceitável em uma edificação é definido pelo Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais, ouvidos os órgãos federais, estaduais e municipais de preservação do patrimônio histórico e o Ministério Público. Outro exemplo, onde se pode visualizar a aplicabilidade das normas de desempenho diz respeito à necessidade de cumprir o disposto na Norma Regulamentadora n.º 15 (BRASIL, 2016h), Anexo I, que estabelece que a máxima exposição diária permissível sem o uso de EPI é de 85 dB (A), para uma jornada de 8 horas diárias. Sob a ótica da norma prescritiva, o empregador iria fornecer o EPI para atenuar o ruído ou pagar o adicional de insalubridade, caso o ruído constatado atingisse nível maior que 85 dB (A). Sob o enfoque da norma de desempenho, ao projetar-se as instalações ou promover reformas para que a mesma atinja o limite imposto: nível máximo de exposição ao ruído igual a 85 dB (A) para uma jornada de 8 horas, o projeto estipularia que o maquinário utilizado no processo produtivo não pode em seu conjunto produzir nível de pressão sonora, cujo somatório ultrapasse os 85 dB (A). Isto para um desempenho de 100%. Sendo inviável para a empresa trocar todo o maquinário, a fim de atingir o limite em tela, é possível estabelecer-se gradualmente critérios de desempenho de modo que se caia de 88 dB (A) para 87 dB (A), 86 dB (A) até chegar nos 85 dB(A), ou seja, é a norma prescritiva que tem a força cogente de estabelecer o nível máximo de ruído admissível, mas sob as diretrizes da norma de desempenho torna-se mais viável atingir no plano fático o objetivo prescrito. 7 CONCLUSÃO Primeiramente, cumpre esclarecer que a análise da eficácia das normas de segurança e saúde do trabalhador deve passar pelo viés da violação do princípio da proteção, entendido como princípio basilar do direito do trabalho. Entende-se, ainda, que dentre os princípios do direito do trabalho, o princípio da proteção permeia toda a legislação laboral, culminando nas regras de proteção à segurança e saúde do trabalhador. Sendo as normas de segurança e saúde do trabalhador prescritivas, a materialização de sua eficácia no plano social, é reduzida, visto que a prática prevencionista tem demonstrado que não se evita acidentes apenas informando sobre os riscos e treinando sobre o uso adequado de equipamentos ou sobre a adoção de métodos seguros de trabalho ou de condutas seguras, mas, sim, intervindo eficazmente no ambiente de trabalho. Embora as normas preconizem o princípio de que se deve atuar primeiramente no meio para depois atuar no homem, ela procura concretizar este princípio, a partir de uma expectativa pré-selecionada, que em virtude das contingências associadas ao comportamento pode ou não acontecer.

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Assim, para que as normas de segurança e saúde tenham eficácia social ou efetividade na prevenção ou redução de acidentes é necessário que sejam promovidas intervenções nos projeto dos postos de trabalho, que não sejam baseadas apenas em prescrições, que digam como se deve fazer, mas também em critérios de desempenho, que permitam a priori o estabelecimento do grau de segurança que se deseja para um posto de trabalho, explicitando os objetivos de segurança e não os deixando implícitos como fazem as normas prescritivas. Com a utilização das normas de desempenho o que se quer proteger e o nível da segurança no trabalho são conhecidos previamente, havendo a possibilidade de se aumentar gradualmente tais níveis, a partir de modelos matemáticos resultando um projeto verdadeiramente seguro. O que se visualiza é que enquanto a norma prescritiva baseiase em aspectos subjetivos para determinar requisitos de segurança, a norma de desempenho apoia-se em requisitos de ordem objetiva. Acontece que a maioria das normas de segurança e saúde, sobretudo as normas reguladoras da Portaria 3214/78, que se constitui no instrumento infraconstitucional de maior aplicabilidade no dia-a-dia da prevenção de acidentes, nada mais são do que normas técnicas elevadas ao status de lei, daí se poder dizer que são preceitos científicos. Portanto, para se alcançar a eficácia, no que tange às questões de segurança e saúde do trabalhador, é fundamental que se incorpore na prática preventiva a premissa de que as normas de desempenho são complementares às prescritivas, pois do contrário, o número dos infortúnios associados ao trabalho, bem como os custos por ele gerados só tenderão a crescer. REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith; GEWANDSZNADER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999.203 p. ANUÁRIO BRASILEIRO DE PROTEÇÃO. Um olhar abrangente. Revista Proteção, Disponível em: <http://www.protecao.com.br/conteudo/ anuario_brasileiro_de_p_r_o_t_e_c_a_o/anuario_2015/J9yJA5_JayAJa>. Acesso em: 24 mar. 2015. BAUMECKER, I. C. Acidentes de trabalho: revendo conceitos e preconceitos com o apoio da ergonomia. 2000. 134 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Escola de Engenharia de Produção, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Presidência da República, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 24 mar. 2016. ______.Lei n. 8.213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Presidência da República, Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm>. Acesso em: 25 mar. 2016a. ______.Lei n.6514, de 22 de dezembro de 1977. Altera o Capítulo V do Titulo II da Consolidação das Leis do Trabalho, relativo à segurança e medicina do trabalho e dá outras providências. Presidência da República. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l6514.htm>. Acesso em 30 jul. 2016b. ______.Tribunal Regional do Trabalho 3.ª Região. Recurso Ordinário

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A MEDIAÇÃO NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES FAMILIARES THE MEDIATION IN THE CONTEXT OF RELATIONS FAMILY Paula Cristiane Motta Sales1

RESUMO: As demandas relacionadas às questões que envolvem o direito de família se arrastam por anos no poder judiciário que busca solucionar as questões relacionadas a esse ramo do direito através de um olhar patrimonial. Com a evolução da sociedade, e das novas organizações familiares que se encontram envoltas a conflitos mais complexos, o modelo adversarial tornou-se defasado. Modelos autocompositivos foram então propostos com o intuito das partes chegarem a uma solução mais adequada. Nessa perspectiva a mediação aparece como uma alternativa de se construir um novo acesso à justiça. No Brasil a mediação ganhou relevância com a entrada em vigor do Código Civil de 2015 e com a Lei de Mediação. A mediação é uma metódica no qual um terceiro imparcial, através do uso de diversas técnicas, facilita a comunicação entre as pessoas em conflito com o intuito de obter soluções que tragam benefícios mútuos. É eficaz e adequada em situações conflituosas onde as relações intersubjetivas se mostram continuadas. Assim, a mediação no âmbito familiar permite que os indivíduos passem a entender o conflito como algo necessário, repensem seus papeis, respeitem as diferenças e reestabeleçam o diálogo o que permite uma convivência pacífica futura, preservando o núcleo familiar. Palavras Chaves: Conflito. Direito de Família. Mediação.

ABSTRACT: The demands related to issues involving family law drag on for years in the judiciary that seeks to resolve issues related to this branch of law through a patrimonial view. The evolution of society, and the new family organizations that are shrouded the most complex conflicts, the adversarial model has become outdated. Autocompositive models were then proposed with the intention of the parties to reach a better solution. In this perspective mediation appears as an alternative to building a new access to justice. In Brazil mediation has gained prominence with the entry into force of the Civil Code 2015 and the Mediation Law. Mediation is a methodical in which an impartial third party through the use of various techniques, facilitates communication between people in conflict in order to obtain solutions that bring mutual benefits. It is effective and adequate in conflict situations where interpersonal relations are shown continued. Thus, mediation in the family allows individuals start to understand the conflict as necessary, rethink their role, respect the differences and reset dialogue allowing a future peaceful coexistence preserving the family unit. Keywords: Conflict. Family Right. Mediation.

Sumário: 1 Introdução. 2 Teoria do Conflito. 3 Mediação. 3.1 Conceito. 3.2 Parâmetros Legais. 3.3 O Papel do Mediador .3.4 Princípios Informadores. 4 A Mediação Familiar. 5 Conclusão. Referências.

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO O presente artigo científico tem por objetivo trazer uma reflexão sobre a utilização da mediação como uma metódica para solução de conflitos que envolvem questões relacionadas ao direito de família, uma vez que a mediação é eficaz e adequada em situações conflituosas onde as relações intersubjetivas se mostram continuadas. Atualmente a maioria dos conflitos familiares é transformada em litígios processuais, os quais ficam a cargo de uma decisão do Estado-Juiz que já está inflamado e sobrecarregado com a demanda crescente oriunda de infindáveis processos. Assim, a tradição brasileira para resolução de conflitos ainda é a judicialização dos mesmos, o que na prática, mesmo com a sentença judicial, não satisfaz as partes, uma vez que essas não são ouvidas, impedindo quase sempre que os conflitos internos (lide sociológica2) sejam tratados. No âmbito judicial as partes não tem espaço para expor os seus sentimentos e suas emoções. As decisões tem caráter patrimonial, o que pode agravar o conflito. Todo esse contexto pautado em uma esfera adversarial (ganha-perde)3 traz diversas consequências como traumas, desgastes das relações, intermináveis recursos que não põem fim ao processo. Além disso, existe uma resistência das partes no cumprimento da decisão, tendo em vista que, as mesmas, não se veem inseridas no mesmo, e de certa, forma desconhecem a relevância e a importância de cada uma das questões acordadas. Nesse cenário ganham espaço os meios alternativos para a solução de conflitos, dentre eles, foco do nosso trabalho, a mediação que tem diversas finalidades, dentre elas podemos citar: o reestabelecimento da comunicação; a preservação do bom relacionamento interpessoal; a prevenção de novos conflitos, bem como, a pacificação social. Diante de novos paradigmas a atividade jurisdicional é vista em um “modelo multiportas” no qual as técnicas alternativas para solução dos conflitos ganham espaço na perspectiva de uma resposta jurisdicional mais rápida e efetiva; dentre elas se destaca a mediação. Esse fato é corroborado pelo artigo 3° do CPC (Lei n° 13.105) que menciona a possibilidade de se adotar meios alternativos para resolução dos conflitos (arbitragem, conciliação, mediação), de forma a buscar uma solução integrada para os conflitos tendo em vista à garantia constitucional do livre acesso a justiça prevista no inciso XXXV do artigo 5° do texto constitucional. Dessa forma examinaremos primeiramente a teoria do conflito onde o conflito é observado em uma nova perspectiva que permite a utilização de métodos não-adversarias em busca de uma solução adequada. Posteriormente, analisaremos a metódica da mediação de conflitos através de suas características e princípios. E finalmente discutiremos sua aplicação no âmbito das relações familiares, sendo este o um importante meio alternativo de solução de conflitos no sentido de melhor prestação às demandas familiares.

Portanto, demonstraremos que a mediação no âmbito familiar permite que os indivíduos passem a entender o conflito como algo necessário, que possuiu uma face positiva de crescimento e transformação no qual os indivíduos passam a reconhecer suas diferenças e respeitar suas individualidades permitindo o encontro de novos caminhos através da construção de pontes que viabilizam a administração de novas controvérsias no âmbito familiar e social (BARBOSA, 2004; WEIZENMANN, 2009; ISERHARD, 2012). E concluiremos mencionando que a mediação destaca-se no campo específico das questões familiares, tendo em vista que os conflitos familiares são carecedores de uma solução consensual e pacífica. Além disso, ao analisarmos as finalidades da mediação perceberemos que estas são imprescindíveis no âmbito familiar tendo em vista a relação futura, duradoura, a que estão submetidos os indivíduos que compõe um determinado grupo familiar. Para tanto, iremos utilizar o método indutivo, através da análise crítica baseado em obras doutrinárias, tendo em vista que, indução é um processo mental por intermédio do qual, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universal, não contida nas partes examinadas. Portanto, o objetivo dos argumentos é levar a conclusões cujo conteúdo é muito mais amplo do que o das premissas nas quais se basearam (MARCONI E LAKATOS, 2010, p. 110). 2 TEORIA DO CONFLITO Ao longo da história, a família, que sempre foi considerada a base da sociedade, vem passando por transformações contínuas que conduziram a novos contornos. Esses novos e complexos arranjos foram delineados sem abandonar os conflitos antigos e permitindo o surgimento de novos. Existe uma naturalidade no surgimento dos conflitos. Estes são inerentes às relações humanas. Não existe grupamento humano sem conflitos. Conforme mencionado por Hoker e Wilmont, 1991: Os conflitos são inerentes à vida humana, pois pessoas são diferentes, possuem descrições pessoais e particulares de sua realidade e, por conseguinte, expõem pontos de vista distintos, muitas vezes colidentes. (...) Pode-se dizer que os conflitos ocorrem quando ao menos duas partes independentes percebem seus objetivos coo incompatíveis; por conseguinte, descobrem a necessidade da interferência de outra parte para alcançar suas metas (apud SCHNITMAN & LITTLEJOHN, 1999, p. 170). Assim, com a percepção do surgimento natural do conflito devemos buscara sua adequada solução. Apesar da carga cultural negativa ao conflito, é possível mudar este olhar entendendo de forma que o mesmo promove um crescimento e uma transformação das relações humanas. Esse olhar neutro do conflito permite que reconhecer e valorizar as diferenças de cada uma das partes, promovendo um ambiente de diálogo e cooperação.

2 Joel Dias e Figueira Junior descrevem a existência de duas espécies de lide, a sociológica e a jurídica, descrevendo-as da seguinte forma: “a lide sociológica representa a parte do conflito no plano material que não chegou a ser levado a juízo; por sua vez, a lide jurídica significa o contorno estatal ou privativo em busca de uma solução justa”. 3 Negociação distributiva (ou posicional): Caracteriza-se pela tomada e cedência de posições sobre determinado produto serviço ou assunto. Competitiva. Baseada na visão “você ou eu”. Manual de Mediação Judicial - CNJ

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Esse novo olhar, essa nova percepção do conflito é uma concepção trazida pela moderna teoria do conflito. Essa teoria se baseou em concepções trazidas pelo psicólogo social norte-americano Morton Deutsch na década de 70 que mencionou que os conflitos podem ser diferenciados em construtivos ou destrutivos e que podem ser abertos ou explícitos e ainda ocultos ou implícitos. O conflito deveria ser observado, dessa forma, em consequência do surgimento de diferenças entre dois lados. Portanto, a mencionada teoria alude que situações de conflito devem ser analisadas como uma oportunidade de aprendizado, crescimento e de geração de ganhos mútuos (SANTOS, 2012). No entanto, percebemos uma dificuldade da sociedade brasileira de entender o surgimento do conflito e principalmente como gerenciar esses conflitos. Esta situação decorre de diversos fatores dentre eles podemos citar: a globalização mundial que permite um acesso rápido e socializado dos conhecimentos científicos; o imediatismo que não permite aos indivíduos a contemplação para busca criativa de soluções o que a carreta perdas ao longo do processo; a coisificação das pessoas o empobrecimento das relações humanas que gera o isolamento acarretando solidão, tristeza e depressão; a diversidade cultural brasileira imposta por um vasto território, bem como a diversidade social e econômica; o cotidiano acelerado somado à cultura de terceirizar responsabilidades e a busca de soluções para as diversas questões que envolvem a vida de uma pessoa. Lisa Parkinson, (2016), aponta que no caso das relações familiares a essas questões somam-se as novas formas de organização familiar citadas pela referida autora: i) Família monoparental, chefiada por apenas um dos pais; ii)Família recomposta ou reconstituída, em que o pai e/ou a mãe se casam novamente; iii) Família homoafetiva, sendo os genitores de ambos os sexos; iv) Família ampliada, na qual outros parentes e/ou amigos vivem com a família nuclear, formada de pais e filhos; v) Família com filhos naturais, com filhos adotados, com filhos de reprodução assistida; vi) Família com casais sem filhos ou com filhos agregados; vii) Família de dupla carreira, assim denominada nos casos em que pai e mãe exercem suas exercem suas atividade profissionais etc (PARKINSON, 2016, p. 2). Esses são alguns exemplos de como as famílias brasileiras se organizam. Esse cenário somado a outros demonstram que os conflitos, que são inerentes aos seres humanos, encontram solo fértil no contexto familiar. Portanto, a ampla compreensão do conflito de forma que as diferenças possam ser legitimas, os interesses e as necessidades possam ser ouvidos e incluídas é imprescindível para o encontro de soluções, apesar de algumas rupturas, preservem o núcleo familiar. Desta forma, o conflito familiar não pode ser observado e analisado de forma linear e superficial é necessária uma análise mais abrangente que leve em consideração a lide sociológica. À vista disso, percebemos que a judicialização dos litígios no contexto familiar é uma questão extremamente delicada e na grande maioria dos casos ineficaz para tratar dessas questões. A ansiedade gerada na defesa dos interesses individuais faz com que os genitores

aprendam que para “vencer” é necessária a utilização de um arsenal bélico, o outro é visto como o inimigo/adversário que deve ser massacrado, para que seja vencido. E para isso não importa o que e quem será atingido. O interesse e bem estar dos filhos, foco central de todo o processo, são esquecidos, deixados em segundo plano, fazendo com os próprios filhos sejam muitas vezes utilizados como parte do “armamento bélico” contra o outro. O conflito ganha força e se agiganta. Em outra perspectiva existe, incerteza, insegurança e medo, pois ao final, todos estarão presos à decisão de um terceiro, no caso, o juiz (PARKINSON, 2016). Em curto prazo, todos estão inseridos em um jogo de manipulação, onde são frequentes os sentimentos de raiva, mágoa, tristeza e o desejo de vingança. O diálogo não é mais possível, nenhuma outra questão poderá ser resolvida fora da ambiente judicial; os genitores não se reconhecem como parceiros na tomada de decisões das questões que envolvem a vida dos filhos e para tanto buscarão o judiciário por diversas outras vezes. Esse modelo pouco participativo e formalista/processual do judiciário acarreta um aumento do conflito e até mesmo da violência entre as partes envolvidas. Neste sentido a mudança de olhar trazida pela teoria do conflito, permite que outros métodos possam ser utilizados de modo que prestigiem a participação das partes na busca de soluções que apresentem ganhos mútuos e conduzam a pacificação social, principalmente com relação às demandas familiares. A metódica da mediação baseada em suas características e princípios adequa-se a essa visão contemporânea. Portanto, atualmente podemos considerar que a mediação é um dos meios adequados para solução de diversos tipos de conflitos, dentre eles os familiares. A mediação não surge como o único método, mas sim mais uma opção, que deve ser considerada tanto pela sociedade quanto por advogados e pelo próprio judiciário. 3 MEDIAÇÃO 3.1 Conceito A mediação pode ser definida como um procedimento consensual, voluntário no qual uma terceira parte imparcial, encoraja e utiliza técnicas para a resolução das controvérsias (WEIZENMANN, 2009). Os indivíduos envolvidos no conflito são os responsáveis pela decisão que melhor os satisfaças. Logo, a mediação é um mecanismo de pacificação de conflitos que, motivada pelo diálogo, encontra alternativas ponderadas, eficazes e satisfatórias. Segundo o parágrafo único do artigo 1° da Lei de Mediação “Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”. O legislador na referida Lei prevê a utilização da mediação não apenas na esfera judicial (Mediação Judicial) sendo realizadas pelos CEJUSC4 segundo regras específicas previstas na lei, mas também fora do poder judiciário (Mediação Extrajudicial) através das Câmaras Privadas5, através de regras presentes na lei, no contrato estabelecido

4 Art. 24. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, pré-processuais e processuais, e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. Lei de Mediação. 5 Art. 22. A previsão contratual de mediação deverá conter, no mínimo: I - prazo mínimo e máximo para a realização da primeira reunião de mediação, contado a partir da data de recebimento do convite; II - local da primeira reunião de mediação; III - critérios de escolha do mediador ou equipe de mediação; IV - penalidade em caso de não comparecimento da parte convidada à primeira reunião de mediação. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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entre as partes e nas diretrizes previstas pelas câmaras. Em ambas existe a presença de um terceiro imparcial, o mediador (tratado em tópico específico), que atua como um facilitador do diálogo entre as partes, que ao contrário do que ocorre na seara judicial, possuem voz, são ouvidas e tem poder de decisão quantos as questões que envolvem os conflitos. 3.2 Parâmetros Legais A metodologia da mediação6 não é inédita, ela já era empregada pelos nossos ancestrais como um meio pacífico de solucionar disputas e manter as relações dos indivíduos e das comunidades. No entanto, a mediação ganhou novos contornos, em meados da década de 70 e “ressurge” intimamente ligada ao movimento de acesso à justiça iniciado nessa época. No Brasil, suas primeiras aplicações estavam relacionadas com as negociações referentes aos direitos coletivos do Direito do Trabalho, onde o Ministério do Trabalho e Emprego utilizavam facilitadores do diálogo nas negociações entre as categorias de empregados e empresas. Em 2010, o grande marco legal foi a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça que dispôs sobre a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos de interesse na esfera do Poder Judiciário. O objetivo dessa Resolução foi oferecer, no âmbito do judiciário, mecanismos consensuais de resolução de conflitos, em especial a mediação e a conciliação, bem como, disseminar a cultura de pacificação social (FARIAS, 2016). Atualmente, a mediação no Brasil, ganhou notoriedade, força e credibilidade com a entrada em vigor de duas Leis: a Lei n° 13.105/15 (Código de Processo Civil - CPC) e a Lei n° 13.140/15 (Lei de Mediação) que conduzem a novas diretrizes teóricas e práticas que conduzem ao entendimento de que mais do que um método alternativo, a mediação, é um método adequado e eficiente para resolução de conflitos específicos em que é necessário o reestabelecimento da comunicação; a preservação do bom relacionamento interpessoal e a prevenção de novos conflitos, que pode acarretar na pacificação social. Nesta perspectiva, o artigo 6947 do CPC, em um esforço para a busca de consenso entre as partes, prevê a utilização da mediação e da conciliação no âmbito familiar. No mesmo entendimento, caminhou o legislador com relação à Lei de Mediação ao prever no artigo 3° parágrafo 2°8 a possibilidade de serem tratados na mediação direitos indisponíveis que admitem transação, desde que caso as partes che-

guem a um acordo, o mesmo seja levado à homologação do magistrado após oitiva do Ministério Público. Portanto, o legislador nesses dois códigos demonstrou uma valorização e um reconhecimento dos métodos autocompositivos para solução de conflitos, principalmente na esfera do direito familiar. Assim, o legislador privilegiou a participação das partes nas sessões de mediação onde as mesmas assumirão o protagonismo nas resoluções das questões elencadas do conflito, compartilhando responsabilidades e destruindo a litigância através da tomada de decisão conjunta e pacífica que seja benéfica para todos os indivíduos. 3.3 O Papel do Mediador O mediador é uma figura importante na condução do procedimento de mediação. O mediador, nas sessões de mediação, poderá ser escolhido pelas partes ou indicado para atuar como um facilitador ao longo do procedimento da mediação. Tendo em vista a previsão da mediação judicial e extrajudicial o mediador também poderá ser chamado de Mediador Judicial9 ou Mediador Extrajudicial10 de acordo com o âmbito de atuação e requisitos previstos na lei específica. Para tanto, o mediador enquanto terceiro, deve atuar de forma profissional, sigilosa, ressaltando um ambiente de confidencialidade e confiança entre os mediandos. No Brasil é de suma importância e obrigatória a capacitação do mediador conforme previsto em lei específica11. O CPC em seu artigo 165 §3° menciona que: O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vinculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. De acordo com o CPC, artigo 149 os mediadores, juntamente com os conciliadores são considerados auxiliares da justiça. Portanto, o mediador deve atuar como ponte, de forma imparcial, auxiliando as partes a reestabelecerem o diálogo, compreendendo os interesses e necessidades uns dos outros, para que sendo possível, ocorra a celebração de um acordo. Assim, o mediador jamais indica a solução, mas sim através do uso de diversas técnicas (ferramentas)12 auxilia os mediandos a encontrar o caminho para uma

6 Ao longo dos anos passou a ser utilizada por diversos países, como EUA, Canadá, França, dentre outros, em diversas áreas como mediação escolar, nas convenções coletivas de trabalho, no âmbito empresarial e no direito de família. No Canadá e nos EUA a mediação relacionada ao âmbito familiar tem tido resultados positivos, sendo mais satisfatório do que os obtidos nos referidos Tribunais. 7 Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação. Lei 13.105. 8 Art. 3o Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. § 2o O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público. Lei de Mediação. 9 Art. 11. Poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça. Lei de Mediação. 10Art. 9o Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se. Lei de Mediação. 11 Lei 13.140/15 Art. 11. Poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça. 12 Como exemplo de ferramentas podemos citar: escuta ativa, resumo, reenquadre, recontextualização, teste de realidade, brainstorming. ALMEIDA, Tânia. Caixa de Ferramentas em Mediação: aportes práticos e teóricos. DashTransformar (Edição Digital), 2014. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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solução comum e pacífica. Assim, o papel do mediador é de despertar nos mediandos os recursos pessoais para que eles consigam modificar o conflito, criando novas oportunidades de construção de alternativas, não apenas, para o enfrentamento, mas, também para a prevenção de novos conflitos (SALES, 2007; VILLELA, 2008). Portanto, fica claro que o mediador não tem o poder de decisão. A essência da mediação é que os mediandos possam resgatar a responsabilidade de suas escolhas e a condução de suas vidas. Essa abordagem é corroborada com os dizeres de Caetano Lagrasta Neto, (2002): Trata-se de terceiro que intervém no litígio por indicação judicial ou por opção das partes, após ter sido por estas aceito. É definido como negociador neutro, com especialização no assunto e perito na matéria, imbuído de respeitabilidade, com desempenho resguardado por absoluto sigilo. Cabe ao mediador absorver e neutralizar emoções, formulando hipóteses de solução, sobre quaisquer fatos postos em debate. Ao depararse com sentimentos exacerbados ou sequelas morais, deve estar preparado para ouvir e ensinar a ouvir, entender as razões de um e fazê-lo com que entenda as colocações do outro, como forma de se atingir por meio, às vezes, de verdadeira catarse, a solução definitiva do litígio, sem interferir diretamente nas disputas (NETO, 2002, p. 114). Tendo essa visão de negociador imparcial o mediador, após ouvir os mediandos, identificar seus interesses e necessidades, e construir uma agenda selecionando a pauta a ser tratada pelas partes iniciando-se pelos temas de interesse mútuo e geradores de menor tensão. A partir desse ponto, inicia-se a negociação que deve ser pautada em princípios éticos e benefícios recíprocos, na obtenção de resultados adequados e mútuos pela busca de soluções cooperativas baseadas em princípios de ganha-ganha13. Após, havendo consenso entre os mediandos o acordo é reduzido a termo e assinado pelas partes levando ao encerramento da sessão de mediação. Nos casos relacionados a direitos indisponíveis translativos este acordo deve ser homologado pelo juiz após, oitiva do Ministério Público, conforme já mencionado acima. Faz parte das atribuições do mediador conduzir as partes a um ambiente de confiança, respeito mútuo, amenizando os sentimentos negativos e conduzindo as a uma visão prospectiva de um futuro baseado no diálogo. Para que se restabeleça o diálogo entre os mediandos é necessário reconstruir os laços de confiança entre os mesmos e entre os mediandos e o mediador. Por isso, o principio da confidencialidade e a utilização de ferramentas14 como a escuta ativa, o rapport, os resumos, a recontextualização, a validação dos sentimentos e a utilização de perguntas abertas dentre outras, são extremamente relevantes nos momentos iniciais. Neste momento os mediandos percebem que estão sendo ou-

vidos e passarão a ouvir o outro também. Através do silêncio e de se ver na posição do outro15, cada um percebe os sentimentos e como interpretaram e vivenciaram cada uma das situações que conduziram ambos a mediação. Ao ouvir e falar os mediandos passam a perceber o problema (parte objetiva) separado das pessoas (parte subjetiva), o que facilita a compreensão de si mesmo e do outro. “É preciso atacar os problemas e não atacar as pessoas” (NUNES, 2016). Dessa forma, a capacitação continua do mediador se faz necessária, para uma melhor percepção dos temas a serem tratados em cada mediação para que possa atuar de forma neutra e imparcial, despido de preconceitos levando em conta as novas organizações familiares (que surgiram do afeto e da intenção de constituir família) e todas as questões relacionadas a uma sociedade contemporânea onde essas famílias estão inseridas (BITTENCURT, 2008). 3.4 Princípios Informadores A Lei de Mediação traz em suas linhas mestra a busca pela autorreflexão, pois, representa um mecanismo de solução de conflitos, o qual requer a participação ativa dos indivíduos por meio do diálogo, sendo este estimulado por perguntas simples, abertas ao raciocínio, para que os envolvidos no processo busquem dentro de si e daquilo que conhecem e já vivenciaram a solução para seus problemas e questionamentos. Sendo assim, é necessário que a mediação ocorra em um ambiente de confiança, imparcialidade, confidencialidade e boa-fé. Tendo como base o exposto acima verificamos a relevância dos princípios previstos na legislação para o procedimento de Mediação. O artigo 2° da Lei de Mediação prevê que a mediação deve ser orientada pelos seguintes princípios: da imparcialidade do mediador; da isonomia entre as partes; da oralidade; da informalidade; da autonomia da vontade das partes; da busca do consenso; da confidencialidade e da boa-fé. Já a Lei 13.105 (CPC) no artigo 166, prevê que tanto a mediação quanto a conciliação são informadas pelos seguintes princípios: da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada. Esses princípios “devem ser considerados vetores metodológicos e referências conceituais das ações desenvolvidas pelos mediadores” (CORREA, VARELA, STIGERT, 2016). Também vale mencionar que além dos princípios a mediação deve ser compreendida dentro dos seus objetivos como: a boa administração dos conflitos; a prevenção da má administração dos conflitos; a inclusão social (conscientização de direitos e acesso à justiça) e a paz social. 4 A MEDIAÇÃO FAMILIAR A velocidade das transformações relacionadas à evolução do conceito de família, da sua organização e por consequência a complexidade dos conflitos, não foram seguidas pela mudança do Direito.

13 Negociação Integrativa baseada em princípios presenta quatro fundamentos conforme Fisher e Ury (2014), sendo esses: 1. Separar as pessoas dos problemas; 2. Foco nos interesses e não nas posições; 3. Geração de opções de ganho e 4. Utilização de critérios objetivos. 14 Escuta Ativa: Os mediadores através de sua postura e expressão demonstram que estão ouvindo atentamente as partes; Rapport: É a técnica da comunicação bem sucedida; é a capacidade de entrar no mundo de alguém e faze-lo sentir que você o entende; Resumo: repete o que cada pessoa diz utilizando as mesmas palavras; Recontextualização: Repete as declarações feitas reformulando-as de modo positivo, sem alterar o sentido, fazendo com que quem diz se sinta ouvido e fazendo com que a outra parte compreenda o que foi falado; Validação dos sentimentos: Menciona a relevância das questões trazidas pelo orador e quais sentimentos foram percebidos; Perguntas abertas: Perguntas que convidam a respostas genéricas ou espontâneas. 15 Silêncio: Momentos de silêncio são importantes, pois levam as partes à reflexão. O silêncio também é uma forma de comunicação. Inversão de papeis: Os mediandos são levados a refletir e se colocar no lugar do outro. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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Portanto o Direito, em especial o Direito de Família se mantém rígido, inflexível até que o clamor social imponha mudanças. Na sociedade romana, “família” tinha diversos sentidos, designando além do conjunto de indivíduos como também o conjunto patrimonial englobando bens e escravos. Existia a figura do chefe de família pater familias, os descendentes ou não e a mulher, in manu, que possuía uma condição equivalente a de filha. Todos estavam sob o mando do homem, pater familias16. O contexto atual e toda a sua base normativa apresenta uma flexibilidade aos contornos familiares agregando novas garantias, direitos e proteção à família. Como exemplo, podemos citar o reconhecimento da unidade familiar fora do matrimônio; reconhecimento de uniões homoafetivas; igualdade entre filhos havidos fora do casamento lhes conferindo os mesmos direitos dos filhos havidos dentro deste instituto e leis com caráter protetivo como a Lei Maria da Penha e a lei que dispõe sobre a Alienação Parental. No entanto, o judiciário, ao analisar os conflitos oriundos das relações familiares ainda tendênciam a uma visão patrimonial para buscar possíveis soluções. Os indivíduos envolvidos não são ouvidos e a decisão é construída monocraticamente. Seus interesses, sentimentos e necessidades não objeto dessa análise realizada pelo Estado-Juiz. A lide sociológica do conflito não é levada em consideração. Os processos são longos, permeados por diversos recursos, desgastantes emocionalmente e por vezes o conflito se agiganta. Por vezes a parte mais frágil acaba cedendo. Em consequência, processos se acumulam nas varas de família, pois o conflito familiar não gira em torno apenas de questões patrimoniais, mas principalmente em torno de aspectos afetivos. No anseio de procedimentos que analisassem a esfera emocional e afetiva do conflito, surgiram métodos autocompositivos como a mediação. Conforme afirma Tatiana Poltosi Dorneles, (2011): A mediação surge como uma aliada ao assoberbado sistema judicial, abreviando processos e o desgaste da entidade familiar, garantindo a segurança jurídica e a paz social. A mediação é tida como imparcial, veloz e de baixo custo, tendo como principal qualidade o compromisso das partes no cumprimento do acordado, fazendo com que as partes entendam a posição da outra e desta forma cheguem a um consenso. Corroborando com esse pensamento Beatriz Helena Braganholo, 2005, menciona: O Estado, sobrecarregado, mostra-se incapacitado de solucionar situações tão complexas quanto à relação entre o vínculo jurídico e emocional das pessoas envolvidas em processos de separação judicial e divórcio. Sentimentos de amor, ódio e dor inerentes aos conflitos jurídicos acabam determinando consequências permanentes na vida dos envolvidos. As par tes envolvidas acabam discutindo questões afetivas no espaço até agora destinado unicamente à discussão de aspectos jurídicos e patrimoniais (BRAGANHOLO, 2005 p.2). Assim, tendo como base esse fato a mediação no âmbito das relações familiares surge como uma alternativa adequada na busca de soluções para os conflitos desencadeados neste ambiente, como

e apontado por Maria Berenice Dias, (2005), no trecho abaixo: A medição familiar é um acompanhamento das partes na organização de seus conflitos, objetivando uma decisão rápida, ponderada, eficaz e satisfatória aos interesses em conflito. Portanto, a decisão é tomada pelas partes, que orientadas por um mediador, resgatam a responsabilidade suas escolhas. Sendo uma complementação da via judicial que qualifica as decisões, tornando-as mais eficazes e as partes comprometidas com o resultado (DIAS, 2005, p80 apud ISERHARD, 2012). E corroborado por Ganancia (2001, p. 2001 apud NETO, 2008, p. 112): Mediação familiar é o lugar da palavra em que as partes, num face a face, sem outra testemunha, poderão verbalizar o conflito e assim tomar consciência de seu mecanismo e do que está em jogo. É também um lugar de expressão das emoções, que têm tão pouco tempo e lugar na Justiça. Para, mais adiante, concluir: A mediação é, assim, um trabalho sobre o reconhecimento e a reabilitação do outro, um lugar de alteridade e de respeito mútuo reencontrado: ela opera então um fenômeno de “conversão” dos estados de espírito: ao escutar as vivências e os sofrimentos do outro, a raiva decai, a confiança tem possibilidade de ser restaurada. Ainda nessa premissa Lisa Parkison (2005), menciona que a mediação familiar deve levar em consideração, não apenas os casais em via de separação, mas também todos os membros da família – crianças, adolescentes, avôs, padrastos e madrastas. E, que o procedimento, pode ser utilizado tanto em “momentos de crise quanto em momentos de transição”, fazendo com que os acordos sejam estabelecidos com base no diálogo e na confiança mútua preservando os vínculos entre pais e filhos. Portanto, preservando o princípio da voluntariedade, a mediação é apresentada aos mediandos como uma forma consensual de solução dos seus conflitos, onde os autores das soluções para os temas em questão são os próprios mediandos. Dessa maneira, a mediação é um método no qual os mediandos devem superar suas diferenças para encontrarem soluções viáveis que comtemplem de forma positiva todos os indivíduos envolvidos nas questões. Além do princípio da voluntariedade, o princípio da confidencialidade bem como, a participação de um terceiro imparcial, presentes na mediação também demonstram a importância desse procedimento no âmbito das relações familiares, tendo em vista o ambiente de confiança que deve ser obtido nas sessões de mediação. Percebe-se, de imediato que mais do que alcançar um acordo a mediação se presta a uma reconstrução do individuo. Sendo a mediação também um aprendizado do olhar para si, para olhar para o outro entendendo o conflito numa nova perspectiva. Desta forma para busca de um consenso é necessário que todos atuem com boa fé. As cartas devem ser postas com clareza a mesa para que todos tenham confiança de que as soluções propostas sejam justas e mútuas em benefícios. Em consequência disso, as partes adquirem autonomia/poder de decisão. Fortalecem os laços, estreitam as pontes e de adversários iniciais passam a serem parceiros na busca de soluções. Todo este contexto descrito preserva as relações e fortalece os

16 O código civil de 1916 ainda apresentava aspectos conservadoristas herança da visão romana como: a família era constituída unicamente pelo matrimônio e sua dissolução era impossível; havia previsões discriminatórias com relação aos filhos havidos fora do casamento, bem como as uniões feitas fora do casamento (ISERHARD, 2012).

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laços que foram partidos ao longo da espiral do conflito17. Esse ambiente de escuta, onde a questão sociológica do conflito é abordada, onde todos percebem o seu “novo papel”, a sua importância na condução dos filhos (nos casos de divórcio com filhos) faz da mediação um método adequado para os conflitos familiares. Isso é reforçado ao fato de que os mesmos constroem juntos soluções e tem a oportunidade de testa-las antes de assinar o acordo, fato este que só fortalece o cumprimento do que se propuseram. Assim, as pessoas são modificadas para melhor em meio ao conflito, passam a serem autoras de sua história e levam esse aprendizado para outras áreas da vida, bem como para condução de conflitos futuros que possam surgir. Ademais os objetivos da mediação são claros e obter o acordo não é um deles18. O acordo é uma consequência do alcance dos princípios e dos objetivos deste procedimento. Portanto, tendo como base o princípio da oralidade um dos maiores objetivos da mediação, conforme já mencionado, é facilitar a comunicação dos mediandos durante os momentos estressantes de uma separação ou divórcio. Aqui vale mencionar que quando a separação ou divorcio envolve filhos é necessário que o mediador conduza as reflexões para os papeis de pai e mãe e que este percebam as necessidades e os sentimentos dos filhos na busca do consenso. Os filhos deixam de ser parte do armamento que os pais utilizam uns contra os outros, na busca de auferir ganhos e ferir o outro para os atores principais que necessitam do olhar conjunto de ambos para construção de um ambiente estável e saudável durante e após todo o processo. O ambiente flexível, dado em consequência ao princípio da informalidade, possibilita uma mudança na qualidade das relações estreitando os laços entre pais e filhos. Conforme menciona Lisa Parkison: No âmbito do poder familiar, é benéfica, pois proporciona uma mudança de mentalidade e comportamento, em que se deixa de procurar culpados para encontrar interesses comuns, promovendo um diálogo qualificado, que leva os envolidos a serem protagonistas das suas vidas. Ademais, quando há menores envolvidos, ela facilita a construção de alianças entre os pais, para que a guarda seja exercida de forma flexível, possibilitando arranjos e rearranjos rotineiros, de liberdade, seus desejos são escutados, e não ignorados, como ocorre na moldura rígida de convivência (PARKINSON, 2016, p. 24). Além de objetivar a boa administração dos conflitos, a mediação também tem uma visão prospectiva, uma visão do futuro. Isso

é consequência do reestabelecimento do diálogo e do aprendizado de que é possível negociar de forma que todos saiam ganhando. Assim, quando novas situações conflituosas surgem, pais e mães são capazes de focar nas necessidades e interesses dos filhos e chegar a soluções consensuais sem necessidade de buscar novamente um terceiro para ditar a solução. Contudo, os mediandos resgatam suas responsabilidades diante dos conflitos e diante de suas escolhas o que acarreta uma conscientização do papel de cada um e a identificação das necessidades individuais de cada membro da família. A mediação, então, se pauta pelo acolhimento do conflito, pelo reconhecimento das responsabilidades, das diferenças primando pelo alcance da justiça e da paz social. A transformação do conflito, o fim do litígio, a visão cooperativa do outro e a própria contribui para uma cultura de pacificação, uma vez que, a mediação preza pela busca da resolução pacífica do conflito. O contrario ocorre no judiciário, tendo em vista que o Estado-juiz soluciona as questões, as partes não atingem a convivência pacífica. Ao se tratar o conflito de forma ampla e completa, dando às partes a possibilidade de reflexão sobre si e principalmente com relação ao outro, conduz as partes a uma convivência pacífica e não litigiosa, o que consequentemente, conduz a paz social. Corroborado com esta questão Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Junior, 2010, p.609 apud Iserhard, 2008, p. 32, afirmam: A verdadeira justiça com paz social só é alcançada quando todas as questões que envolvem o litígio são discutidas e tratadas de forma completa e satisfatória pelas próprias partes. É o que ocorre, quando se chega a um acordo por meio da mediação, pois representa a expressão do que cada parte aceita como justo e se compromete a cumprir, sendo, por isso, uma solução satisfatória e duradoura. O alcance de soluções satisfatórias e duradouras também demostram a importância da mediação com relação às questões que permeia o direito de família, uma vez que, os laços familiares se perpetuam ao longo das gerações e a cultura de paz é transmitida através destes. Assim, a mediação surge como um caminho novo e transformador na busca do entendimento e na prevenção do conflito, em diversas áreas do direito, mas em especial, no Direito de Família onde os indivíduos por manterem relação futura, necessitam que seus sentimentos, suas necessidades e interesses sejam valorizados, bem

17 Segundo o modelo de espirais de conflito há uma progressiva escalada, em relações conflituosas, resultante de um círculo vicioso de ação e reação. Cada reação torna-se mais severa do que a ação que a precedeu e cria uma nova questão ou ponto de disputa (Manual de Mediação de Conflitos – CNJ). 18 Diversas escolas de mediação surgiram com propostas diferentes de atuação e de como o acordo entre as partes deve ser trabalhado; as quatro principais são: Transformativa de Robert A. Barush Bush e Joseph F. Folger que situa o acordo como uma possibilidade e não como o objetivo central. Dessa forma o objetivo principal é trabalhar os interesses, sentimentos e necessidades dos mediandos e não somente a posição cristalizada do conflito, ou seja, é centrado na transformação das relações. Tradicional-Linear de Willian Ury que teve origem na seara empresarial e posteriormente foi utilizada com relação aos casos relacionados à família. É baseada nos princípios da negociação integrativa. Neste modelo o mediador conduz o processo com neutralidade a fim de identificar os reais interesses das partes, estimulando propostas advindas delas próprias. O objetivo principal é a formalização do acordo. Circular-Narrativa de Sara Cobb sendo que uma das fundamentações desse modelo é a psicologia do Eu desenvolvida por Erikson e White, no qual o mediador atua de forma mais ativa estimulando e motivando as partes envolvidas no conflito. A narrativa é o principal instrumento utilizado neste modelo, que é centrado no intercâmbio de informações entre as pessoas participantes, visando à reflexão e não o arejamento das histórias contadas pelas partes. Esse método enfatiza o aqui e o agora. O presente retorna ao passado em uma espiral para busca de uma solução. Construtivista de Fernanda Lima utiliza-se dos acordos parciais que devem ser cumpridos pelas partes durante todo o procedimento. Para construção das propostas dos acordos parciais, toma-se por base os interesses e as necessidades manifestados pelas partes. O mediador interfere na construção do acordo. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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como, que esses sejam empoderados a fim de compreender que o curso de suas vidas está em suas mãos. 5 CONCLUSÃO A temática ora adotada reclama um olhar mais atento à mediação haja vista que o procedimento é utilizado desde a antiguidade por nossos ancestrais, que baseavam a solução dos seus conflitos no diálogo e no consenso das partes envolvidas a fim de fortalecer os laços futuros desses indivíduos no núcleo familiar e na sociedade. A metódica autocompositiva ganhou força e novos contornos na década de 70 quando surgiram os movimentos de acesso à justiça, principalmente nos EUA, França e Canadá. A mediação, então, disseminou-se por diversos países variando em alguns aspectos e procedimentos. No Brasil, com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (CPC/15) (Lei nº 13.105/15), que atribuiu obrigatoriedade da mediação previamente ao início da ação processual, e também com entrada em vigor da Lei de Mediação (Lei 13.140/15) a mediação vem ganhando espaço e sendo tema de diversos estudos com relação à capacitação de mediadores, suas técnicas e sua aplicabilidade. Conforme mencionado acima, mais do que “desafogar o judiciário” a mediação é pautada em suas finalidades: reestabelecimento da comunicação; a preservação do bom relacionamento interpessoal; a prevenção de novos conflitos, bem como, a pacificação social. A proposta adotada pela mediação, não é por fim aos processos judiciais, mas sim, ser mais uma opção de solução dos conflitos, ampliando o acesso a justiça pelos indivíduos. Porém, as soluções dadas pelo poder judiciário, as questões relacionadas ao direito de família, são carecedoras de uma análise mais profunda da origem do conflito e que permitam o reestabelecimento do diálogo, evitando rupturas desnecessárias. Ademais, de forma geral, os processos judiciais são desgastantes, economicamente caros e se arrastam através de diversos recursos. Neste aspecto, para maioria dos conflitos envolvendo relações familiares o judiciário mostra-se arcaico e ineficiente. Apesar das mudanças sofridas na referida legislação trazendo mais flexibilidade a fim de garantir direitos, aos diversos contextos e conflitos que se abrem às famílias carecem d uma adequada compreensão e solução das disputas oriundas. Por outro lado, baseada em seus princípios e objetivos, a mediação traz uma nova oportunidade para a cultura do conflito que deve ser tratado de forma ampla, tanto no aspecto patrimonial quanto com relação à origem do conflito – a lide sociológica. Essa nova tratativa permite aos indivíduos adentrar num caminho transformador de conhecimento de si, do outro e da pacificação dos temas que os envolvem. Ou seja, a mediação, dentro do contorno aqui trabalhado, deve ser percebida como uma politica publica de pacificação social bem como um instrumento pedagógico-educacional emancipador dos seres humanos que dela participam. Assim, a mediação no âmbito das relações familiares assume enorme relevância, tendo em vista que permite que se faça pelos envolvidos no conflito o que não é possível ser feito pelo judiciário, ou seja, os indivíduos passam a entender o conflito como algo necessário, que apresenta um sentido positivo, algo natural das relações humanas que pode ser trabalhado de maneira pacífica afastando o sentimento adversarial tão propagado nos processos judiciais. Além disso, é despertado nos envolvidos nos conflitos familiares que estes são capazes de decidir sobre suas vidas, e percebem, a importância de trabalharem juntos para resolução do conflito minimizando traumas, gastos maiores financeiros e a insatisfação gerada

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pelo sentimento de vencedor e perdedor. Portanto, a partir deste trabalho pode-se concluir que a mediação, no âmbito do Direito de Família, vai além de um procedimento não-adversarial, remetendo o empoderamento dos indivíduos na busca da solução dos conflitos reafirmando o Estado Democrático de Direito, na medida em que são os próprios envolvidos que se veem responsáveis por seus conflitos e pela resolução pacífica dos mesmos. Assim, os mediandos podem refletir sobre seu papel de homem, mulher, pai e mãe reavaliando questões relacionadas com a conjugalidade e a parentalidade chegando a decisões mutuamente satisfatórias e autônomas do Estado-Juiz. Ou seja, a mediação também é uma ferramenta de implementação da democracia procedimental tão cara aos ditames no âmbito de um Estado que se diz democrático e de direito. Logo, a relevância do presente estudo foi demonstrar que a Mediação, principalmente Direito de Família brasileiro, tem sido uma trajetória transformadora de uma realidade que anseia efetividade dos direitos fundamentais e da democracia, empoderando e conscientizando os cidadãos para a resolução dos seus conflitos construindo assim o caminho para a pacificação social e para o desenvolvimento de uma Politica Adequada de Soluções de Conflitos. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Tânia. Caixa de Ferramentas em Mediação: aportes práticos e teóricos. DashTransformar (Edição Digital), 2014. AZEVEDO, André Gomma. Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Vol. 1 e 2. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: uma cultura de paz. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, 2004. Disponível em: www.ojs.fdsbc.servicos.ws/ojs/index.php/fdsbc/article/ view/395. Acessado em: 25/03/2016. BITTENCURT, Bianca da Rosa. Mediação: uma alternativa para a resolução de conflitos no direito de família. Revista Jurídica, 2008. Disponível em: http://web.unifil.br/docs/juridica/05/ARTIGO_11.pdf. Acessado em: 12/10/2016. BRAGANHOLO, Beatriz Helena. Novo desafio do direito de família contemporâneo: a mediação familiar. Disponível em: www. jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/665. Acessado em: 25/03/2016. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002. CORRÊA, Gustavo Hermont; VARELA, Isabela Dalle; STIGERT, Ludmila Castro Veado. O novo paradigma da ciência do direito: uma nova forma de olhar para o outro. in No meio do caminho havia uma escuta: Diálogos junto da Medição. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva, 2016. DORNELES, Tatiana Poltosi. Breves considerações sobre a mediação no Direito de Família. Ambito Jurídico, 2011. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9859. Acessado em: 12/10/2016. FARIAS, Juliana Guanaes Silva de Carvalho. Panorama da mediação no Brasil: Avanços e fatores críticos diante do marco legal, 2016.

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A MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRABALHISTA THE MEDIATION AS AN INSTRUMENT OF COLLECTIVE NEGOTIATION OF LABOR Rafael Vasconcellos Augusto1

RESUMO: A negociação coletiva é realizada através da autocomposição entre as partes que almejam por meio de uma negociação a formalização de Instrumentos Coletivos com a perspectiva de pactuarem melhores condições de trabalho, com abrangência a uma categoria de trabalhadores, ou, meramente, a um grupo específico de trabalhadores. Não obstante, quando a negociação coletiva é infrutífera, as partes recorrem a outros meios jurídicos existentes para solução de conflitos coletivos, nesta, com a presença de um terceiro estranho na relação negocial, podendo atuar como facilitador de diálogo ou até mesmo decidindo a lide por elas. Esse mecanismo é a heterocomposição, e tem como meios de solução de conflitos a arbitragem, a conciliação, o dissídio coletivo, e a mediação. O estudo visa demonstrar a eficácia do instituto da Mediação como o melhor meio para ser utilizado na solução de conflitos coletivos do Direito do Trabalho, demonstrando através das técnicas empregadas pelo mediador com o objetivo de reaproximar os envolvidos que compõe a lide, melhorando o diálogo entre elas, e apresentando estudos que visam alcançar a composição do conflito de maneira célere, satisfatória e eficaz que ponha fim ao conflito. PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho. Fórmula de solução de conflitos. Mediação. Negociação Coletiva. Princípios do Direito Coletivo.

ABSTRACT: Collective bargaining is carried out through the self-composition between the parties that seek through negotiation the formalization of Collective Instruments with the perspective of agreeing better working conditions, covering a category of workers, or merely to a specific group of workers. Nevertheless, when collective bargaining is fruitless, the parties resort to other existing legal means to solve collective conflicts, in this, with the presence of a third party in the negotiation relationship, being able to act as a facilitator of dialogue or even deciding to deal by they. This mechanism is the heterocomposition, and its means of conflict resolution is arbitration, conciliation, collective bargaining, and mediation. The study aims to demonstrate the effectiveness of the Institute of mediation as the best way to be used in the solution of collective conflicts of Labor Law, demonstrating through the techniques employed by the mediator with the objective of bringing those involved that composes the lide, improving the dialog between them, and presenting studies that aim to achieve the composition of the conflict so quickly, satisfactory and effective that puts an end to the conflict. KEYWORDS: Labor Law. Conflict resolution formula. Mediation. Collective Bargaining. Principles of collective law.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Dos Princípios do Direito Coletivo do Trabalho. 2.1 Princípio da Liberdade Associativa e Sindical. 2.2 Princípio da Interveniência Sindical na Normatização Coletiva. 2.3 Princípio da Equivalência dos Contratantes Coletivos. 2.4 Princípio da Lealdade e Transparência na Negociação Coletiva. 2.5 Princípio da Criatividade Jurídica da Negociação Coletiva. 2.6 Princípio da Adequação Setorial Negociada. 3 Negociação Coletiva Trabalhista. 3.1 Instrumentos Coletivos. 3.2 Convenção Coletiva de Trabalho – CCT. 3.3 Acordo Coletivo de Trabalho – ACT. 3.4 Sentença Normativa. 3.5 Possibilidades e Limites. 4 Normas Internacionais de Fortalecimento da Begociação Coletiva Interna. 5 Mecanismos de Solução de Conflitos no Direito Coletivo. 5.1 Negociação. 5.2 Arbitragem. 5.3 Conciliação. 5.4 Mediação. 5.5 Dissídio Coletivo. 6 Ineficácia da Negociação Coletiva sem Mediação. 7 Conclusão. Referências.

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Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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individual, quando submete esse homem isolado à liberação do homem-massa que é assembleia”. A liberdade sindical poderá ser focalizada sob vários primas: como o direito de constituir sindicatos; como o direito de o sindicato autodeterminar-se; como a liberdade de filiação ou não a sindicato e como a liberdade de organizar mais de um sindicato da mesma categoria econômica ou profissional dentro da mesma base territorial, que se identifica com o tema intitulado pluralidade sindical.

1 INTRODUÇÃO O Direito Coletivo regula a autonomia privada dos seres coletivos em sua representatividade de criação de normas coletivas e a sua importância na atuação de pacificação de conflitos coletivos em cumprimento da sua função social e política. A negociação coletiva do trabalho é um procedimento utilizado no Direito Coletivo e disciplinado diretamente no artigo 8º, inciso VI da Constituição Federal, atribuindo aos seres coletivos a obrigatoriedade na participação de criação de normas positivadas constantes em Instrumentos Coletivos, com objetivo de solução de conflitos existentes na relação de emprego, intitulando vantagens e flexibilizando direitos com intuito de proliferar melhores condições de trabalho e a manutenção do emprego a toda categoria. Inevitavelmente, quando as partes não entram em um acordo no momento autocompositivo, recorrem a outros meios extrajudiciais e judiciais existentes hoje campo jurídico, neste com a existência de um terceiro que auxiliará na composição da questão controvertida. Sendo assim, o mecanismo da heterocomposição possui como fórmula de solução de conflitos a arbitragem, a conciliação, a mediação, e, por fim, quando as partes esgotam todos os meios extrajudiciais existentes para composição da lide, recorrem ao processo judicial que é o fruto do dissídio coletivo. Assim questiona-se, se dentre as possibilidades expostas, a mediação seria a melhor forma para realizar a negociação coletiva trabalhista sob a perspectiva de satisfazer os interesses das partes e das categorias representadas. 2 DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO COLETIVO DO TRABALHO No Direito Coletivo do Trabalho é de imensa necessidade a aplicação de princípios e regras para o fortalecimento e desenvolvimento da negociação coletiva. Tais princípios justrabalhistas servem para delimitar toda relação negocial entre os seres coletivos, por um lado o empregador, e por outro lado, as organizações sindicais. Observa-se, a seguir, a importância da aplicação destes princípios em toda esfera do Direito Coletivo. 2.1 Princípio da Liberdade Associativa e Sindical O princípio da liberdade associativa e sindical é garantido a faculdade de ser associado ou sindicalizado em um sindicato. Portanto, é disciplinado na Constituição Federal que na liberdade associativa ninguém poderá ser compelido a associa-se ou a permanecer associado, art. 5º, XX, CRFB (BRASIL, 1988), já na liberdade sindical específica que ninguém será obrigado a filiar-se ou manter-se filiado a sindicato, art. 8º, V, CRFB (BRASIL, 1988). Segundo Delgado (2015, p. 1404), o princípio da liberdade associativa: [...] assegura consequência jurídico- institucional a qualquer iniciativa de agregação estável e pacífica entre pessoas, independentemente de seu segmento social ou dos temas causadores da aproximação. Não se restringe, portanto, à área e temáticas econômico-profissionais (onde se situa a ideia de liberdade sindical).

A autora Vólia Bomfim Cassar (2015), destaca as situações decorrentes a este princípio que atentam contra a liberdade sindical, ou seja, são as cláusulas negociais coletivas de sindicalização forçada, como a Closed Shop (empresa fechada) obriga ao empregador contratar empregados que estejam sindicalizados no mesmo sindicato obreiro; Union Shop (empresa sindicalizada) o empregado se sindicaliza ao sindicato sob condições de continuidade em seu emprego; Preferencial Shop (empresa preferencial), preferência de contratação ao sindicalizados no respectivo sindicato obreiro; e Maintenance of membership (manutenção de filiação) é uma cláusula existe em uma convenção coletiva no qual o empregado é obrigado a permanece-se filiado dentro do período da vigência da respectiva convenção, sob pena de ser dispensado. Outro enfoque destacado pela autora Vólia Bomfim Cassar (2015), é as práticas antissindicais como a Yellow Dog Contracts (contratos de cães amarelos) que sugere ao empregado logo após a sua admissão a não filiação ao sindicato pertencente a sua categoria como aspecto de manutenção de emprego; Company Unions (Sindicatos de Empresa) o empregador mesmo de forma indiretamente controla e estimula o sindicato profissional; e, por fim, Mise à l’index (colocar no index, ou seja, lista suja), que refere que as próprias empresas compartilham entre si os nomes dos repetitivos empregados com atuação sindical, com intuito de exclui-los do mercado de trabalho. Diante deste contexto, ressalta-se a importância da liberdade associativa e sindical com finalidade de fortalecimento das entidades sindicais, sendo esses direitos garantidos na Constituição Federal e também pelas Convenções ratificadas da OIT em que o Brasil é signatário, como por exemplo, a Convenção 98 da OIT que retrata o direito de sindicalização e de negociação coletiva. 2.2 Princípio da Interveniência Sindical na Normatização Coletiva O princípio da interveniência sindical na normatização coletiva propõe que somente terá validade a negociação coletiva com a participação do ser coletivo obreiro, ou seja, o sindicato. Tal condição está assegurada na Constituição Federal no art. 8º, III, (BRASIL, 1988) no qual cabe ao sindicato a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. No mesmo artigo supracitado, no seu inciso, VI, assegura a participação obrigatória ados sindicatos nas negociações coletivas de trabalho. Para a validade da negociação coletiva a lei o art. 8º, III e VI, CRFB (BRASIL, 1988), c/c art. 611 da CLT (BRASIL, 1943), exige a intervenção obrigatória dos sindicatos, salvo raras exceções, como nos casos de ausência de sindicato da categoria ou recusa nas negociações. (CASSAR, 2015, p. 1233) Para Leite (2014, p. 605) a negociação das partes é:

O princípio da liberdade sindical constitui, segundo Barros (2016, p. 799): [...] o alicerce “sobre o qual se constrói o edifício das relações coletivas de trabalho com características próprias”; se ela “sobrepõe ao indivíduo isolado e implica restrições à liberdade LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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[...] um dever jurídico das entidades sindicais representativas dos empregadores e dos trabalhadores, cujo princípio está consagrado no art. 616 da CLT, segundo o qual, os “sindicatos representativos das categorias econômicas ou profissionais e as empresas, inclusive as que não tenham representação sindical, quando

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provocados, não podem recursar-se à negociação coletiva”.

justificativa de existência do Direito Coletivo do Trabalho. A criação de normas jurídicas pelos atores coletivos componentes de uma data comunidade econômico-profissional realiza o princípio democrático de descentralização política e de avanço da auto gestão social pelas comunidades localizadas. A antíte-se ao Direito Coletivo é a inibição absoluta ao processo negocial coletivo e à autonormatização social, conforme foi tão característico ao modelo de normatização subordinada estatal que prevaleceu nas experiências corporativista e fascistas europeias da primeira metade do século XX. No Brasil, a tradição justrabalhista sempre tendeu a mitigar o papel do Direito Coletivo do Trabalho, denegando, inclusive, as prerrogativas mínimas de liberdade associativa e sindical e de autonomia sindical aos trabalhadores e suas organização. Com a Constituição de 1988 é que esse processo começou a se inverter, conforme se observam de distintos dispositivos da Constituição (ilustrativamente, art. 7º, VI e XIII; 8º, I, III, VI; art. 9º).

Ressalta-se a autonomia das entidades sindicais obreiras a legitimidade para negociação coletiva trabalhista. Contudo, em face do princípio mencionado, mesmo que ocorra uma negociação formalmente democrática ou qualquer tratamento direito entre o empregador e seus empregados, não terão legitimidade para normatizar uma convenção ou acordo coletivo, uma vez que somente os sindicatos da respectiva categoria possui legitimidade para isso. Não obstante, é importante destacar que em caso de recusa do sindicato, federação ou confederação para formalização de Acordo Coletivo de Trabalho, poderá o empregador e os seus respectivos empregados prosseguirem na negociação coletiva até o final, conforme disposto no art. 617, § 1º, da CLT. (BRASIL, 1943) 2.3 Princípio da Equivalência dos Contratantes Coletivos Os que se equivalem são os sindicatos, e não os membros da categoria. Em princípio, os sindicatos têm a mesma equivalência jurídica e econômica com igualdade para negociarem. (CASSAR, 2015, p. 1233) Segundo Mauricio Godinho Delgado (2015), a equivalência se subdivide em dois pontos essenciais, primeiramente os sujeitos coletivos do Direito do Trabalho possuem a mesma natureza e são considerados seres coletivos. Veja-se que o empregador por si só, é considerado um ser coletivo, por seu próprio caráter, independentemente poderá unir a alguma associação sindical. Como também poderá atuar através de sua entidade representativa, e, desta forma, mesmo atuando de forma isoladamente, sempre terá natureza e agirá como um ser coletivo. A representação dos trabalhadores é feita pelos sindicatos, e no que tange os seres coletivos obreiros aos empresariais, ambos possuem a mesma natureza. 2.4 Princípio da Lealdade e Transparência na Negociação Coletiva O princípio da lealdade e transparência na negociação coletiva visa assegurar, inclusive, condições efetivas de concretização pratica da equivalência teoricamente assumida entre os sujeitos do Direito Coletivo do Trabalho. (DELGADO, 2015, p. 1415). Por outro lado, preceitua Leite (2014, p. 602): A negociação coletiva deve ter por escopo pacificar o conflito de trabalho, e não instigá-lo ainda mais. Dessa forma, as condutas na negociação devem observar os deveres morais da ética e lealdade entre as partes, sem que haja o intuito de umas prejudicarem as outras. Sendo assim, é essencial para o processo negocial coletivo a lealdade e transparência para objetivar um processo democrático e eficaz. Neste sentido, é evidente que a transparência na pactuação de negócios jurídicos é pertinente a formulação de normas que agregará todo aquele segmento e o seu contexto social respectivo. 2.5 Princípio da Criatividade Jurídica da Negociação Coletiva O princípio da criatividade jurídica da negociação coletiva pressupõe que os processos de negociações de instrumentos coletivos (acordo coletivo e convenção coletiva de trabalho) tem a possibilidade real de criar normal jurídicas com a mesma normatividade, qualidade, efeitos em face das normas heterônoma estatal. Para Delgado (2015, p. 1417): Tal princípio, na verdade, consubstancia a própria

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Portanto, tem-se a necessidade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas no qual tem prerrogativa de criar normas jurídicas através de seus instrumentos e não simplesmente uma cláusula contratual. Em decorrência desse princípio, a regra coletiva negociada que instituir vantagens trabalhista efetivamente nova, não tipificada ou regulada por regra heterônoma estatal, pode moldar e reger a estrutura e os efeitos jurídico da parcela instituída, ainda que restringindo suas potencias repercussões nos contratos de trabalho. (DELGADO, 2015, p. 1418). Desse modo, conclui-se que as regras coletivas que forem negociadas e instituir vantagens coletivas novas que não esteja disciplinada por regra estatal heterônoma, poderá reger os efeitos jurídicos através da parcela instituída, mesmo que restrinja potencial repercussões decorrentes do contrato de trabalho. 2.6 Princípio da Adequação Setorial Negociada Este princípio trata das possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva. Ou seja, os critérios de harmonização entre as normas jurídicas oriundas da negociação coletiva e as normas jurídicas provenientes da legislação heterônoma estatal. (DELGADO. 2015, p. 1419). O grande dilema enfrentado por este princípio é a possibilidade de aplicação das normas negociadas em convenções e acordos coletivos, prevalecendo em face das normas heterônomas do Estado, ou seja, normas legislativas. Considera-se este princípio o que mais influência na condução e na atuação específico do Direito Individual do Trabalho. Segundo Delgado (2015, p. 1420), pelo princípio da adequação setorial negociada: [...] as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômicoprofissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo justrabalhista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos supe­rior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta). Para Mauricio Godinho Delgado (2015), no primeiro critério as normas autônomas possuem a capacidade de alcançarem um pata-

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mar setorial de direitos trabalhistas, em face com o padrão cogente existente. Mesmo se ocorrer, não debate com o princípio da indisponibilidade e de direitos que e próprio do Direito Individual do Trabalho. Logo no segundo critério afronta-se somente a indisponibilidade relativa. Nota-se que as normas autônomas coletivas possuem possibilidade de validade e eficácia jurídica em face das normas heterônomas imperativas, em relação do princípio da adequação setorial negociada. Por fim, a não prevalência da adequação setorial negociada sobre os direitos revestidos de indisponibilidade absoluta, não há a possibilidade de transacionar, nem sequer com a negociação sindical coletiva. O patamar civilizatório mínimo ocorre nas normas constitucionais, em tratados, convenções e normas legais infraconstitucionais, que objetiva assegurar patamar de cidadania aos trabalhadores em seu momento laboral. 3 NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRABALHISTA A negociação coletiva é realizada por meio da autocomposição das partes através de uma negociação de forma consensual, autônoma e pacifica com o objetivo de obterem a solução do conflito juntas sem a interferência de um terceiro. Neste sentido, as autoras Tatiana Roxo e Amanda Bonaccorsi (2015), entendem que tais conflitos ocorrem nas negociações de Instrumentos coletivos, ou seja, de Convenção Coletiva de Trabalho quando celebrada entre os sindicatos com aplicação a toda categoria, e de Acordo Coletivo de Trabalho que neste caso é celebrado entre os sindicatos e as empresas, com objetivo de aplicação aos empregados daquela determinada empresa. O autor Mauricio Godinho Delgado (2015), destaca que a negociação coletiva trabalhista é considerada um dos melhores métodos de solução de conflitos existente hoje sociedade contemporânea. Essa negociação é realizada através das entidades sindicais, e assegurada a sua efetividade através do artigo 8º, inciso VI, da Constituição Federal, que dispõe a obrigatoriedade da participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho. Nesse sentido, a CLT regulamentou os procedimentos necessários que as partes deverão observar para a obtenção de sua validade na negociação coletiva, previstas nos artigos 611 à 625. É assegurado também através de normas internacionais ratificadas pelo brasil e proferidas pela Organização Internacional do trabalho com o objetivo regulamentação negociação coletiva e sua composição de seus conflitos através das convenções 98, 154 e 163. Por sua vez, a autora Vólia Bomfim Cassar (2015), entende que a negociação coletiva é uma forma primária de obter a solução que atende ambas as partes com a função normatizar e flexibilizar a criação, modificação ou supressão de condições de trabalho. Sob esse mesmo viés, a autora destaca a legitimidade de negociação dos sindicatos para firmarem e negociarem acordos coletivos de trabalho e convenções coletivas de trabalho, ratificando sua importância e indispensabilidade na intermediação dos conflitos coletivos. A negociação coletiva vai influenciar as partes não só na função jurídica, mas também nas funções econômicas, políticas e sociais. Sob o entendimento da autora Vólia Bomfim Cassar (2015), no aspecto político a negociação vai ocorrer através dos diálogos entre os grupos divergentes, com o objetivo de solução destes conflitos sem a intervenção Estatal. Na função econômica possui como finalidade a distribuição de riquezas que ordenam a economia através das normas, tendo o caráter excepcional quando ocorre flexibilização no contexto socioeconômico com a redução salarial. Por fim, a função social ocorre nas situações das participações

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dos trabalhadores nas decisões empresarias, contagiando a harmonia daquele ambiente social onde trabalha, ou através da criação de condições mais vantajosas de trabalho, resolvendo-se inúmeros problemas de questões sociais. 3.1 Instrumentos Coletivos Os Instrumentos Coletivos são precedidos de negociação coletiva realizada pelo sindicato da categoria econômica e da categoria profissional, que resultam na formalização da Convenção Coletiva de Trabalho com aplicação a toda categoria, prevendo condições de salário, reajustes, benefícios, garantias e deveres a determinada categoria econômica representada. O sindicato profissional pode também firmar com diretamente com qualquer organização de sua categoria, Acordo Coletivo de Trabalho, com objetivo de negociar condições mais favoráveis aos empregados abrangentes restritivamente a aquele determinado grupo. Isto posto, é importante frisar que os Instrumentos Coletivos são amparados pela Constituição Federal em seu art. 7º, inciso XXVI, que reconhece como direito social e fundamental as convenções e acordos coletivos de trabalho. 3.1.1 Convenção Coletiva de Trabalho – CCT

A Convenção Coletiva de Trabalho é um acordo de vontade negociado por meio dos sindicatos da categoria econômica e da categoria profissional, e na ausência destes, é realizada através das Federações ou Confederações, estipulando melhores condições contratuais para sua categoria, como a fixação do piso, reajustes, benefícios, garantias e deveres. O conceito legal de Convenção Coletiva de Trabalho, está amparado no art. 611, caput, da CLT (BRASIL, 1943): Convenção Coletiva de Trabalho é acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais, estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho. Na falta de Sindicatos representativos na base territorial, as Federações, ou na ausência deste, as Confederações, poderão negociar e celebrar Convenção Coletiva de Trabalho, conforme disciplinado no art. 611, §2º, da CLT (BRASIL, 1943): As Federações e, na falta desta, as Confederações representativas de categoria econômicas ou profissionais poderão celebrar convenções coletivas de trabalho para reger as relações das categorias a elas vinculadas, inorganizadas em Sindicatos, no âmbito de suas representações. Para Carlos Henrique Bezerra Leite (2014), a convenção coletiva de trabalho é aplicada aos empregados pertencentes da categoria econômica e profissional que firmam a CCT, independentemente de ser associada. A única ressalva que se faz é referente aos trabalhadores pertencentes a categoria profissional diferenciada que não enquadra-se na representação dos sindicatos que firmaram as cláusulas normativas da CCT. Além disso, conforme pacificado na súmula 374 do TST, o empregado de categoria diferenciada não fará jus as vontades adquiridas em instrumentos coletivos no qual o seu empregador não foi representado por sua entidade sindical da categoria. Para a formalização e aprovação da Convenção Coletiva do Trabalho, os sindicatos deverão convocar os associados para deliberação em assembleia, e como critério de validade será necessário o comparecimento dos associados em primeira convocação 2/3 (dois

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terços), e em segunda convocação 1/3 (um terço), conforme exposto no artigo 612, caput, CLT. (BRASIL, 1943) Portanto, as organizações sindicais possuem um papel muito relevante no Direito Coletivo, atuando por meio de uma transação privada na relação jurídica e obrigacional das organizações empregatícias, com o objetivo firmarem melhores condições de trabalho, pactuando por meio de uma convenção coletiva, com abrangência territorial dos entes sindicais com aplicação à todos os empregados da categoria, e possuindo uma vigência predefinida entre as partes negociantes de até 2 anos, conforme art. 614, §3º, da CLT. (BRASIL, 1943) 3.1.2 Acordo Coletivo de Trabalho – ACT

O Acordo Coletivo de Trabalho é negociado pelo sindicato da categoria profissional, com qualquer organização empregatícia de sua categoria, visando transacionar condições mais favoráveis aos seus empregados de sua categoria. Faculta-se a organização celebrar Acordo Coletivo de Trabalho, desde que seja de interesse dela estipular outras condições não previstas em Convenção Coletiva de Trabalho da categoria. Esse acordo possui vigência predeterminada de até dois anos, conforme definido no art. 614, §3º, da CLT. (BRASIL, 1943) A definição legal de Acordo coletivo de trabalho, encontra-se no art. 611, §1º, da CLT (BRASIL, 1943): É facultado aos Sindicatos representativos de categorias profissionais celebrar Acordo Coletivo com uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa ou das acordantes respectivas relações de trabalho.

brepor a norma jurídica trabalhista se ela compreender os dois critérios fixados. Conforme preceitua Delgado (2015, p. 1496), são dois critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as noras autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta). Neste sentido é possível observar que existe possibilidade de validade e eficácia jurídica das normas coletivas face as normas heterônomas, sendo estas as normas constitucionais gerais, as normas de convenções internacionais e normas infraconstitucionais que asseguram cidadania ao indivíduo, mas todas elas são limitadas aos direitos indisponíveis do trabalhador. Diante desta perspectiva, o Deputado Julio Lopes (PP-RJ), apresentou em 11/04/2016 o Projeto de Lei nº 4962/2016, que altera a redação do artigo 618 da CLT, cujo o objetivo é de regulamentar a prevalência do negociado sobre o legislado, desde que a negociação não contrarie a Constituição Federal e as normas de medicina e segurança do trabalho. Em caso de aprovação do Projeto de Lei nº 4962/2016, o artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, passará a vigorar com a seguinte redação: Art. 618 – As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de medicina e segurança do trabalho. § 1º - No caso de flexibilização de norma legal relativa a salário e jornada de trabalho, autorizada pelos incisos VI, XIII e XIV do art. 7º da Constituição Federal, a convenção e acordo coletivo de trabalho firmado deverá explicitar a vantagem compensatória concedida em relação a cada cláusula redutora de direito legalmente assegurado. § 2º - A flexibilização de que cogita o parágrafo anterior limita-se à redução temporária de direito legalmente assegurado, especialmente em período de dificuldade econômica e financeira pelo qual passe o setor ou a empresa, não sendo admitida a supressão do direito previsto em norma legal. § 3º - Não são passíveis de alteração por convenção ou acordo coletivo de trabalho normas processuais ou que disponham sobre direito de terceiro. § 4º - Em caso de procedência de ação anulatória de cláusula de acordo ou convenção coletiva que tenha disposto sobre normas de medicina e segurança do trabalho, processuais ou de direito de terceiros, deverá ser anulada igualmente a cláusula da vantagem compensatória, com devolução do indébito.

Por meio da assembleia geral o sindicato da categoria profissional convocará os empregados abrangidos pelo Acordo Coletivo de Trabalho para deliberar em assembleia as condições ali pactuadas, e como critério de validade desta assembleia deverá comparecer em primeira convocação 2/3 (dois terços), e em segunda convocação 1/3 (um terço), com fulcro no artigo 612, caput, CLT. (BRASIL, 1943) Dessa forma, Leite (2014, p. 615), faz a distinção básica entre ACT e CCT, quanto aos sujeitos e sua abrangência: No acordo coletivo de trabalho são sujeitos, de um lado, sindicato representante dos trabalhadores e, de outro, uma ou mais empresas, atuando diretamente, isto é, sem representação do correspondente sindicato patronal. No ACT, portanto, não participa a representação sindical dos empregados. A abrangência dos efeitos normativos do ACT é inferior à da CCT, pois naquele os efeitos jurídicos ficam limitados aos contratos de trabalho dos empregados da empresa signatária da evença, enquanto nesta os efeitos são estendidos aos empregados de todas as empresas pertencentes à categoria econômica representada pelo sindicato patronal signatário da avença. Conclui-se, portanto, sob o entendimento de Mauricio Godinho Delgado (2015), que a negociação coletiva de um Acordo Coletivo do Trabalho independe da presença do sindicato da categoria econômica presente, uma vez que o art. 8º, VI, CRFB (BRASIL, 1988), não estipula a participação do sindicato Patronal, tendo em vista que o empregador é um ser coletivo e os empregados somente obterão essa mesma qualidade com a atuação coletiva do mesmo. 3.2 Possibilidades e Limites A negociação coletiva é limitada pelas restrições da ordem jurídica trabalhista, e, dentro deste conceito, o princípio da adequação setorial negociada estabelece que essas normas coletivas vão se so-

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Insta salientar que no Recurso Extraordinário (RE 895.579) do TST em decisão monocrática do Ministro Teori Zavascki, reformou a decisão do TST, e determinou que o ACT firmado prevalecesse sobre a CLT, ou seja, a recorrente firmou acordo coletivo de trabalho com o sindicato da categoria para que fosse suprimido o pagamento das Horas In Itinere, em troca de outros benefícios mais vantajosos. Observa-se, por fim, que os sindicatos possuem autonomia por meio da negociação coletiva em flexibilizar direitos trabalhistas em situações que empregador esteja passando por dificuldades financeiras ou simplesmente para regulamentar condições mais vantajosas aos empregados, visando sempre a proteção do emprego deste trabalhador, conforme disposto no artigo 7º, incisos XXVI, VI, XIII e XIV da CRFB (BRASIL, 1988).

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4 NORMAS INTERNACIONAIS DE FORTALECIMENTO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA INTERNA A criação de normas internacionais com aplicabilidade no ramo trabalhista parte do pressuposto da inércia legislativa dos Estados em promover melhores garantias nas relações de trabalho. Atualmente, quem exerce esse papel na edição de normas internacionais do trabalho é a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Isto posto, segundo Carlos Henrique Bezerra Leite (2014), a OIT foi criada a partir do Tratado de Versalhes (Parte XII), e atualmente com sede em Genebra (Suíça). A organização é regida por uma Constituição cujo objetivo é garantir a justiça social e a promoção a proteção mundial dos Direitos Humanos nas relações trabalhistas, possuindo como característica compositiva tripartite, e dela participam representantes do governo, empregadores e trabalhadores. Sob a visão de Carlos Henrique Bezerra Leite (2014, p. 693), a competência da OIT:

5.1 Negociação Trata-se de uma modalidade de autocomposição em que as partes objetivam a solução do conflito sem a interferência de um terceiro. Para Mauricio Godinho Delgado (2015), nesta modalidade existem três espécies, ou seja, a renúncia que é a desistência da pretensão, a submissa ocorre quando umas partes renúncia uma parte do seu direito para o interesse da outra, e transação que significa a concessão recíproca efetuada pelas partes. Isto posto, entende-se a aplicabilidade da transação na negociação segundo Delgado (2015, p.1467): A negociação coletiva enquadra-se, como citado, no grupo das fórmulas autocompositivas. Contudo, é fórmula autocompositiva essencialmente democrática, gerindo interesses profissionais e econômicos de significativa relevância social. Por isso não se confunde com renúncia e muito menos com a submissão, devendo cingir-se, essencialmente, à transação (por isso fala-se em transação coletiva negociada).

[...] não se restringe a questões específicas do direito do trabalho e da previdência social, já que lhe cabe, entre outras atribuições, fomentar a plenitude do emprego e a elevação de níveis de vida; a formação profissional e a garantia de iguais oportunidades educativas e profissionais, a proteção à infância e à maternidade e a promoção de alimentos, cultura, habitação, recreação; colaborar com os demais organismos internacionais visando à melhoria da saúde, ao aperfeiçoamento da educação, enfim, à promoção do bem-estar a todos os povos. A OIT é uma agência ligada a ONU (Organização das Nações Unidas), e possui como função a criação de convenções e recomendações a proteção do trabalho. Para Carlos Henrique Bezerra Leite (2014), as convenções da OIT são tratados multilaterais e abertos que regulam as relações sociais. Os Estados Membros podem aderir as convenção, ratificando para aplicação nas relações jurídicas internas. Já as recomendações da OIT, não podem ser ratificadas, e são dirigidas aos Estados Membros para orientação de suas atividades em determinadas áreas. Para formalizar a ratificação da convenção no Brasil, primeiramente é feita a apreciação pelo Congresso Nacional, e em caso de aprovação, será direcionada ao Presidente da República, que deverá ratificar e depositar o instrumento perante o Diretor Geral da Repartição Internacional. No Brasil existem cerca de 81 convenções já ratificadas, e, portanto, existem duas convenções especificamente que buscam incentivar os países signatários o uso da negociação coletiva como forma de solução de conflitos coletivos no âmbito trabalhista: A Convenção 98 que retrata a Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva; e Convenção 154 que regulamenta o Fomento à Negociação Coletiva.

Nas palavras de Roxo e Bonaccorsi (2015, p. 136), a negociação: [...] é a forma conjunta de resolução dos problemas desenvolvidos pelas próprias partes. Nesta alternativa, duas ou mais partes tentar concordar como cada um deve proceder. Aqui não existe a figura do terceiro imparcial, é uma resolução de conflito realizada diretamente entre as partes. Pelo exposto, percebe-se que na modalidade de negociação, as partes objetivam a concessão recíprocas entre elas por meio da transação, buscando sempre a satisfação dos direitos em discussão, sem recorrer a outros meios de solução de conflitos com a influência de um terceiro. 5.2 Arbitragem O seu surgimento é quando as partes em comum acordo convencionam que na ocorrência de um litígio, este será submetido a terceira pessoa alheia ao problema, que antecipadamente é determinada para solucionar o conflito por meio da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral, com força de decisão de eficácia sentença judicial. Arbitragem é, desse modo, o tipo procedimental de solução de conflitos mediante o qual a decisão, lançada em um laudo arbitral, efetiva-se por um terceiro arbitro, estranho à relação entre os sujeitos em controvérsia e, em geral, por eles escolhidos. (DELGADO, 2015, p. 1541). Por sua vez, Cassar (2015, p. 1260), entende que arbitragem é: A arbitragem é uma forma alternativa de solução de conflitos de interesses onde estes são resolvidos pela participação de uma terceira pessoa, qual seja, o árbitro, tendo sido esta modalidade de resolução e solução de conflitos pactuada pelas próprias partes, através da confecção de uma cláusula compromissória ou do compromisso arbitral, onde, voluntariamente, os contratantes avençam que eventual conflito entre os mesmo deverá ser solucionado através da arbitragem, desde que os direitos em jogo sejam patrimoniais e disponíveis – artigo 1º da Lei nº 9.307/96.

5 MECANISMOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO NO DIREITO COLETIVO Quando negociação coletiva é frustrada, as partes recorrem a dois mecanismos pré-processuais para resolução de conflitos coletivos: a autocomposição e a heterocomposição. De acordo com o autor Mauricio Godinho Delgado (2015), a autocomposição ocorre quando o conflito é solucionado entre as partes por meio de uma negociação sem intervenção de outros agentes no processo de pacificação da controvérsia. Logo, na heterocomposição é quando o conflito é solucionado por um terceiro diferente à relação conflituosa. São modalidades da heterocomposição: arbitragem, conciliação, mediação e o dissídio coletivo. Importante ressaltar que estes mecanismos também poderão ser utilizados pelas as partes durante o curso processual judicial. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

A arbitragem é disciplinada pela Lei nº 9.307/96, possuindo um alcance limitado aos direitos patrimoniais disponíveis. Já no âmbito trabalhista através da Emenda Constitucional nº 45/2004, sobreveio a alteração da Competência da Justiça do Trabalho no artigo 114, §§ 1º e 2º do texto máximo, tratando da ampliando da arbitragem como via de solução de conflitos coletivos de trabalho, com caráter facultativo e

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após frustrada a negociação coletiva. No Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) a arbitragem é regulamentada em seu art. 3º, §1º, que retrata a aplicação da arbitragem nas formas da lei, e em seu §2º, que ressalta que a atuação do Estado com a finalidade de promover sempre que possível a solução consensual de conflitos. Há também a ocorrência do processo arbitral na Lei 7.783/1989, art. 3º, “caput”, tratando-se da frustração da negociação coletiva e seguinte inviabilidade de recursos via arbitral. Neste mesmo viés, no art. 7º da Lei 7.783/1989, assegura aplicação do laudo arbitral, acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho, nas relações obrigacionais durante o período de greve. Prevê ainda o procedimento arbitral disposto no artigo 4º, da Lei de Participação nos Lucros (Lei nº 10.101/2000), existindo impasse na negociação coletiva visando a participação dos lucros, as partes poderão recorrer a este mecanismo para solução do seu litígio. Ocorre ainda a aplicação dos critérios da arbitragem para dirimir litígios no âmbito do setor portuário, por meio do Decreto nº 8.465, de 8 de junho de 2015, que regulamenta o art. 62, 1°§, da Lei nº 12.815/2013. O método arbitral é também aplicado na Lei 12.395/11, que modifica a Lei Pelé (Lei 9.615/1998), estabelecendo que as partes interessadas poderão recorrer a arbitragem para tratar de direitos patrimoniais disponíveis, previsto no artigo Art. 90-C, caput, da Lei nº 9.615/98, de acordo com o texto inserido pela Lei 12.395/11. Ademais, no parágrafo único do Art. 90-C, estabelece que a arbitragem deverá está prevista em norma coletiva e com o comum acordo entre as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso arbitral. Por fim, percebe-se que a arbitragem no Direito Coletivo do Trabalho procede da deliberação das partes em comum acordo através da negociação coletiva, ficando expostas a solução do conflito através do laudo arbitral proferido por um terceiro estranho na relação negocial, mas previamente autorizadas pelas partes com o objetivo da solução da lide em questão. 5.3 Conciliação A conciliação ocorre quando um terceiro estranho na relação negocial incentiva as partes a chegarem a um acordo, tratando daquele conflito apenas forma superficial, não importando com a qualidade da relação entre as partes após a resolução do conflito. O conciliador tem uma participação mais ativa no processo de negociação, podendo, inclusive, sugerir soluções para o litígio. (DIDIER JR ,2015, p. 276). Toda via, para Roxo e Bonaccorsi (2015, p. 136), a conciliação se dispõe nos seguintes termos: A conciliação é uma forma de resolução de conflitos administrada por um terceiro, denominado conciliador, que é investido de autoridade ou indicado pelas partes, a quem compete aproximálas, controlar as negociações, sugerir e formular propostas, apontar vantagens e desvantagens, objetivando sempre o acordo entre as partes. Este método é regulamentado no Direito do Trabalho através da CLT nos artigos 831, 846, 850 e 852-E, e mostra seu caráter obrigatório e facultativo na solução de conflitos dentro de um processo trabalhista, e na forma extrajudicial por meio das Comissões de Conciliações Prévias, artigos 625-A a 625-H da própria CLT, que autoriza as empresas e sindicatos a criarem Comissões de Conciliações Prévia, por meio de representação de empregados e empregadores, com objetivo de tentar conciliar os conflitos individuais de trabalho. Desde modo, cabe ressaltar que nesta modalidade o conciliador não objetiva a solução do conflito visando satisfazer as pretenLETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

sões das partes, e de nem reaproxima-las com objetivo de melhorar a qualidade de negociação entre elas, e, portanto, o único objetivo do conciliador é chegar em um determinado acordo. 5.4 Mediação A Mediação equivale-se a um mecanismo jurídico que tem por objetivo eleger, em comum acordo, um terceiro imparcial e tecnicamente capaz, a fim de auxiliar as partes para alcançar a solução da questão controvertida, por meio de compreensão mútua e pacífica, resultando em uma negociação frutífera e eficaz, sem que haja o desequilíbrio das pretensões inseridas na negociação coletiva. Para Roxo e Bonaccorsi (2015, p. 136), a mediação: [...] é um “processo de natureza não adversarial, confidencial e voluntário, no qual um terceiro imparcial (mediador) facilita o diálogo e a negociação entre duas ou mais partes e as auxilia na identificação de interesses comuns, complementares e divergentes, com o objetivo de mantê-las autoras das soluções construídas baseadas no consenso, no atendimento de interesses e necessidades e na satisfação mútua. Para Didier Jr (2015, p.276), o mediador: [...] exerce um papel um tanto diverso. Cabe a ele servir como veículo de comunicação entre os interessados, um facilitador do diálogo entre eles, auxiliando-os a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam identificar, por si mesmo, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos. Na técnica da mediação, o mediador não propõe soluções aos interessados. [...] Constata-se que a forma utilizada pelas partes para solução do seu conflito é com a interferência de um terceiro sem cunho decisório, que auxiliará as partes de caráter imparcial, usando técnicas através de seus estudos aprofundados no tema, com o objetivo de juntos chegarem a um consenso comum e satisfazer a pretensão requerida. Pode-se perceber, ainda, a mediação de conflitos trabalhistas feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por meio de suas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTE), no qual atua nos conflitos de celebração de instrumentos coletivos, não cumprimento de normal legal e de conflitos relativos a representação sindical de categorias. No MTE existe duas pautas, a primeira que é a pauta de interesse (celebrações de ACT e CCT), e a segunda pauta é a de direitos (demandas que envolve descumprimentos). Já no Ministério Público do Trabalho (MPT), sua forma de atuação é em face do interesse público, fiscalizando o comprimento das leis trabalhistas e mediando caso solicitado a relação entre partes (empregado x empregador). Tem-se como prerrogativa fiscalizar o direito de greve em atividades essenciais, promover a ação civil pública em face de interesses coletivos e mediar em situações de dissídios coletivos. A mediação foi disciplinada na Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsia e sobre a autocomposição do conflito no âmbito da administração pública. Já Novo Código de Processo Civil (Lei n° 13.105/2015) é regulamentado no seu art. 3º, §2º, que ressalta a atuação do Estado de promover sempre que possível a solução consensual de conflitos, e no §3º, que se trata do estímulo da aplicação da mediação até mesmo dentro do curso do processo judicial por solicitação de juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público. É importante frisar que o Novo Código de Processo Civil, na

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Sessão V, Dos Conciliadores e Mediadores Judiciais, no artigo 165 regulamenta a criação de centros judiciários de solução de conflitos com a participação do Estado, e no artigo 174, a participação da União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios, na criação de câmaras de mediação e conciliação com o objetivo de buscar a solução de conflitos em processos administrativos. Pode-se perceber ainda, a previsão da mediação para negociação prévia com base no art. 616, §1º da CLT, que permite ao Delegado Regional do Trabalho convocar as partes à comparecerem à mesa redonda, com a finalidade de mediar com as partes o conflito e buscar a possibilidade de um acordo. (BRASIL, 1943) Não Obstante, é uma faculdade para as partes escolherem o mediador para a composição de seu conflito na seara coletiva trabalhista, e, portanto, a sua previsão está expressa através das regras fixadas para mediação coletiva no Decreto nº 1.572/95, c/cart. 11, da Lei nº 10.192/01, e da Instrução Normativa nº 23/2001 da SRT/MTE. Já na Instrução Normativa nº 16/2013 da SRT/MTE, o Ministério do Trabalho e Emprego estabeleceu os critérios para a participação do mediador em conflitos coletivos de natureza trabalhistas. Destaca-se também a atuação deste meio de solução de conflito sob a Emenda Constitucional nº 45/2004, que através desta alteração na Carta Magna, criou-se o Conselho Nacional de Justiça, e por meio disto, o órgão editou a Resolução 125/2010, alterada pela emenda 2/2010, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos coletivos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, e para o aprimoramento da mediação como meio consensual de solução de controvérsias e da criação do Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais. Importante ressaltar ainda que o Ordenamento Jurídico Brasileiro tem valorizado o instituto da mediação e fazendo indicação de legislações especiais para soluções de conflitos trabalhistas, como a regulamentação do TST através do ATO 168/TST.GP, que permite que a mediação como procedimento pré-processual de tentativa de acordo antes de ajuizamentos de dissídios coletivos. Nota-se a importância do papel do mediador nas palavras de Roxo e Bonaccorsi (2015, p. 140): O mediador, por fim, deve desenvolver habilidades diversas, mormente através do estudo de técnicas diferentes, que permitam que cumpra com seu papel essencial. Desta forma é essencial ter conhecimentos, ainda que mínimos, de conflito e gerenciamento de conflitos; relações interpessoais; processo comunicacional; técnicas de resolução pacífica de conflitos; metodologia do processo de mediação e legislação pertinente à mediação. Todo esse conhecimento é necessário a fim de que a solução encontrada seja definitiva e não tão somente momentânea, e posteriormente o mesmo conflito não ocorra, muitas vezes pela reincidência, de forma ainda mais drástica e violenta. A Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015), define como os principais princípios no qual o mediador deverá observar em todo: imparcialidade, isonomia, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca de um consenso, confidencialidade e a boa-fé. Para se tornar um mediador deverá ser uma pessoa capaz, ser graduada pelo menos dois anos em qualquer curso superior e que faça um curso de capacitação feito pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça, que serão ministradas através de entidades credenciadas ou pelo próprio tribunal. Em suma, o mediador exerce um papel muito importante durante todo o processo de mediação, pois através da aplicação de suas técnicas facilitará o diálogo entre as partes, a fim de reestruturar a

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qualidade negocial almejando o comum acordo entre elas para decidir a lide. 5.5 Dissídio Coletivo O Dissídio Coletivo é mais uma forma de solução de conflitos no direito do trabalho, e ocorre quando a negociação coletiva é frustrada, e as partes provocaram o Estado para decidir a lide por elas. Desse modo, preceitua Leite (2014, p. 1304): [...] o dissídio coletivo é uma espécie de ação coletiva de matriz constitucional conferida a determinados entes coletivos, geralmente os sindicatos, para a defesa de interesses cujus titulares matérias não são pessoas individualmente consideradas, mas sim grupos ou categorias econômicas profissionais ou diferenciadas, visando à criação ou interpretação de normas que irão incidir no âmbito dessas mesmas categorias. Para Calos Henrique Bezerra Leite (2014), não apenas as organizações sindicais (categoria profissional e econômica), possuem legitimidade para ajuizamento de ação de dissídio coletivo, estendendo também ao Ministério Público do trabalho conforme disposto no artigo 114, § 3º, da Constituição Federal, nas situações que atingirá o interesse público (greve), e a própria empresa na ocorrência de prejuízo em uma negociação de acordo coletivo ou nas situações de greve. Nesse sentido, Almeida (2006, p. 791-792), classificou o objetivo do dissídio coletivo da seguinte forma: a) de natureza econômica: instaurado para estabelecer normas e condições de trabalho; b) de natureza jurídica: instaurado para a interpretação de cláusulas de sentenças normativas, de instrumento de negociação coletiva (acordos e convenções), de disposições legais particulares de categoria profissional ou econômica e de atos normativos; c) de revisão: destinado a rever normas e condições coletivas de trabalho estabelecidas em sentença normativa que tenham se tronando injustas ou impraticáveis pela modificação das circunstâncias em que foram ditadas; d) de greve: instaurado em caso de greve deflagrada pelos trabalhadores (art. 8º da Lei nº 7.783/89); e) de extensão: que tem por objetivo estender as novas condições de trabalho estabelecidas em sentença normativa a todos os empregados da mesma categoria profissional compreendida na jurisdição do Tribunal prolator da sentença (art. 869 da CLT). Isso posto, sabe-se que, no Brasil, a competência para processar e julgar os dissídios coletivos é originalmente do Tribunal Regional do Trabalho e do Tribunal Superior do trabalho, com fulcro nos artigos 856 e 860 da CLT. Ademais, cabe ainda ressaltar a competência dos tribunais para deliberar os abusos no direito de greve, conforme assinalado no Precedente Normativo nº 29 do TST, e da Justiça do Trabalho nas “ações que envolvam exercício do direito de greve”, art. 114, II, CRFB (BRASIL, 1988), e “em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do trabalho decidir o conflito” art. 114, §3º, CRFB (BRASIL, 1988). No aspecto, destaca-se o cabimento ao Ministério do Trabalho e Emprego promover a mediação antes de ajuizamento do dissídio coletivo desde que seja em comum acordo pelas partes, conforme disposto no art. 11, §§1º, 2º, 3º, 4º e 5º, da Lei nº 10.192/01, in verbis:

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§1º O mediador será designado de comum acordo pelas partes ou, a pedido destas, pelo Ministério do

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Trabalho e Emprego, na forma da regulamentação de que trata o § 5º deste artigo. §2º A parte que se considerar sem as condições adequadas para, em situação de equilíbrio, participar da negociação direta, poderá, desde logo, solicitar o Ministério do Trabalho e Emprego a designação de mediador, que convocará a outra parte. §3º O mediador designado terá prazo de até trinta dias para a conclusão do processo de negociação, salvo acordo expresso com as partes interessadas. §4º Não alcançado o entendimento entre as partes, ou recusando-se qualquer delas à mediação, lavrar-se-á ata contendo as caudas motivadoras do conflito e as reivindicações de natureza econômica, documento que instruirá a representação para o ajuizamento do dissídio coletivo. §5º O Poder Executivo regulamentará o disposto neste artigo. No que tange a dizer da Emenda Constitucional nº 45/2004, que alterou a redação do art. 114 da Constituição Federal, trouxe como forma de resolução de conflitos no Direito do Trabalho à Arbitragem. No §1º do artigo 114 da CRFB (BRASIL, 1988), expõe que as partes poderão recorrer a arbitragem no caso de frustração da negociação coletiva. Já no §2º, do artigo supracitado (BRASIL, 1988), trata-se que na recusa das partes em uma negociação coletiva ou da arbitragem, ambas, em comum acordo, poderão ajuizar ação de dissídio coletivo de natureza econômica, cabendo a Justiça do Trabalho decidir a lide. Nesse contexto, o TST visando a qualidade do método da Mediação como instrumento eficaz para resolução de conflitos pré-processuais no Direito do Trabalho, através do §3º, do ATO 168/TST.GP, de 4 de abril de 2016, determina que a mediação poderá ser requerida por qualquer das partes para resolução de conflito pré-processual de uma potencial ação de dissídio coletivo. Ao final do julgamento do processo de dissídio coletivo será proferida uma sentença normativa, que instituirá normas e condições de trabalho, e à não execução das condições estabelecidas poderá acarretar de acordo com os interesses das partes na propositura da ação de cumprimento. “Tem o nome de sentença normativa a decisão dada no dissídio coletivo, acolhendo ou rejeitando as cláusulas postuladas no dissídio coletivo de natureza econômica ou interpretando e aplicando o direito já existente no dissídio coletivo de natureza jurídica”. (SCHIAVI, 2014, p. 1248). A Lei é bastante clara em traçar dos requisitos mínimos legais para a eficácia da sentença normativa, portanto, o Tribunal deverá fundamentar a decisão de dissídio coletivo e publicada no período de 15 dias, sob pena de nulidade, conforme disposto nos §§1º 2º, do art. 12, da Lei nº 10.192/2001 e art. 93, IX da Constituição Federal. De acordo com o autor Carlos Henrique Bezerra Leite (2014), as sentenças de natureza constitutiva, poderá crias as seguintes condições: a) cláusulas econômicas salariais; b) sociais vantagens sem contudo econômico; c) sindicais no versar da relação processual coletivo das partes; d) obrigacionais com penalidades em caso de descumprimento. Para Schiavi (2014, p. 1252), o não cumprimento das cláusulas previstas em sentença normativa, poderá ser ajuizada ação de cumprimento que: [...] constitui ação individual de conhecimento, de rito especial trabalhista destinada ao cumprimento das cláusulas constantes da sentença normativa e dos acordos e convenções coletivas de trabalho. Tratase de ação de natureza condenatória proposta pelos empregados ou pelo sindicato, com finalidade de fazer comprimir as cláusulas constantes dos instrumentos normativos coletivos (acordos coletivos, convenções coletivas e sentenças normativas). LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Sob esse aspecto, segundo o art. 872 da CLT (BRASIL, 1943), estabelece que caso ocorra o descumprimento das condições estabelecidas em sentença normativa, poderá umas das partes ajuizar ação de cumprimento para a execução de condições estabelecidas em instrumentos coletivos. Frisa-se a importância do dissídio coletivo como um meio de solução de conflitos que implicará na criação de normas e condições de trabalho com intuito de fortalecimento da categoria. Ora, prejudicada a negociação coletiva considera-se infrutífera, e nesse aspecto, as partes em comum acordo poderão propor o ajuizamento de ação de dissídio coletivo. Destaca-se, por fim, que a Constituição Federal indica a arbitragem como meio de solução de conflito no dissídio coletivo, e, sob esse mesmo viés, o TST projetando a eficácia, celeridade e a satisfação das partes, regulamenta a mediação como instrumento pré -processual de solução de conflitos coletivos, podendo qualquer das partes requerer a mediação com intuito de solução da controvérsia, conforme disciplinado no art. 3º do ATO 168/2016 do TST. 6 INEFICÁCIA DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA SEM MEDIAÇÃO Todos os mecanismos utilizados na negociação coletiva para solução do conflito que ultrapassa a autocomposição estão resguardados de validade jurídica pelo Direito do Trabalho. Assim, demonstra-se que a mediação é o único instrumento eficaz para a negociação coletiva trabalhista, já que outros meios jurídicos de solução desses conflitos não possuem uma negociação frutífera, eficaz e duradora para as partes envolvidas. A Negociação é uma ferramenta básica autocompositiva em que os atores sociais buscam a solução dos conflitos de uma forma direta, livre e sem a participação de um estranho. Entretanto, existem situações em que as partes para obterem sucesso na negociação, serão necessárias haver concessão de interesses ou parte deles, para chegar à solução do conflito. Contudo, quando não ocorre o sucesso estimado na autocomposição e perdurando os conflitos, as partes inevitavelmente optam pelos meios heterocompositvos de soluções de conflitos que possuem a intervenção de um terceiro visando resolver o impasse, sendo extrajudicial ou judicialmente. O primeiro meio é a Conciliação, embora esse Instituto seja parecido com a mediação, ambos possuem particularidades diferentes, e, portanto, deve haver um terceiro na relação negocial, cujo objetivo é chegar em um acordo, não importando na qualidade da relação entre as partes, tratando daquele problema apenas de forma superficial. Para Mauricio Godinho Delgado (2015), a atuação deste terceiro na dinâmica conciliatória muitas vezes não consegue chegar a um resultado não imaginado ou estimado pelas partes, ou seja, o conciliador poderá sugerir as partes soluções para composição do conflito, interferindo na relação original em as partes, instigando-as a chegarem a um acordo que nem sempre satisfará a sua pretensão. Ressalta-se, portanto, que o meio conciliatório somente é aplicado nas varas trabalhistas durante o processo judicial, sendo direcionado por um Juiz em casos típicos do Direito Individual do Trabalho. Já no Direito Coletivo do Trabalho a sua aplicação foi regulamentada juntamente com a Mediação através do ATO 168/TST.GP, como procedimento de tentativa de acordo antes de instauração de dissídios coletivos. Contudo, mesmo que sua aplicação esteja disciplinada no âmbito coletivo, evidentemente que neste caso o meio que será utilizado será a mediação, uma vez que é mais valorosa para as partes estarem submetidas as técnicas utilizadas pelo mediador para composição do conflito. A Arbitragem por sua vez é quando as partes elegem um arbitro, conferindo-lhe poderes para decidir o conflito, mesmo que não haja

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comum acordo ou que alguma das partes julgue ter sido prejudicada, devendo ser pactuada através da confecção de uma cláusula compromissória ou do compromisso arbitral. Aqui o laudo arbitral equivale-se a um título executivo judicial, faz coisa julgada e somente poderá ser recorrida perante as autoridades judiciárias em situações de nulidades. Ressalta-se que a arbitragem no plano trabalhista é mencionada em alguns diplomas legais, entretanto, não é aplicada na prática, mesmo sendo de competência do Ministério Público do Trabalho. Diferentemente o que ocorre na Mediação, onde as partes em comum acordo elegem um terceiro imparcial a fim de auxiliá-las na composição do seu conflito. Para Tatiana Roxo e Amanda Bonaccorsi (2015), o diferencial desse meio é que o mediador possui habilidades diversas, sabendo empregar os conhecimentos técnicos que são necessários para cumprir a sua função de facilitador do diálogo entre as partes, reaproximando os envolvidos no conflito, e, em comum acordo, encontrem a solução da questão, sem que haja insatisfação de uma das partes, pois a finalidade do mediador é encontrar a resolução do conflito naquele momento e para o futuro, além de medir esforços para satisfazer ao máximo a vontade das partes. O mediador não possui cunho decisório, e ao final da audiência de mediação será emitida uma ata que equivale a um título executivo extrajudicial, podendo ser executada a qualquer tempo pela parte prejudicada em caso de descumprimento do acordo firmado. Por fim, o último meio utilizado na heterocomposição é o dissídio coletivo, e ocorre com o intermédio do Judiciário, que, aplicando o Direito, põe solução ao litígio, transformando a lide no corpo do processo formal. Como as partes em negociação coletiva não almejam a resolução de seus conflitos judicialmente, o TST por meio do ATO 168/TST.GP, tem valorizado ainda mais o método de mediação como procedimento pré-processual de tentativa de acordo antes de ajuizamento de dissídio coletivo. À exemplo disto, imperioso ressaltar o contido na Ata de Audiência de Mediação e Conciliação Pré-Processual com base do ATO 168/TST.GP: [...] Registra-se que a presente audiência tem por finalidade promover a homologação de acordo voltado à solução do conflito coletivo objeto do presente procedimento, com a prévia apuração da validade da manifestação da vontade das partes e do respeito ao princípio da decisão informada. O representante do requerente entregou cópia de minuta de acordo coletivo, informando que esta havia sido revisada pelos representantes do requerente, com o acompanhamento dos responsáveis pelo seu assessoramento jurídico. O representante da requerida informou também ter analisado a mesma minuta de acordo, nas mesmas condições informadas pelo representante do requerente. Seguindo a finalidade do presente ato, o Ministro Vice Presidente indagou aos representantes das partes, diretamente, pessoalmente e de forma separada, sendo primeiramente indagado o representante do requerente e em seguida o representante da requerida, se tinham pleno conhecimento do conteúdo de todas as cláusulas, se compreenderam o conteúdo e não havia dúvida quanto ao seu alcance, bem como se estavam de acordo com os termos da minuta. Os representantes das partes responderam positivamente à pergunta formulada, esclarecendo que praticavam a presente manifestação de vontade de forma espontânea, contando com poderes para tanto, tendo pleno conhecimento da decisão tomada, tudo em respeito ao princípio da autonomia da vontade e da decisão informada. Em seguida os representantes das partes assinaram a minuta que havia sido entregue ao Ministro Vice Presidente, neste ato

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e na sua presença. Após a assinatura da minuta de acordo, a qual deverá ser juntada aos autos, com extração de cópia às partes, o Ministro Vice Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, nos termos do Ato 168/TST.GP, de 04 de abril de 2016, HOMOLOGA o presente acordo, para que surta os seus jurídicos e legais efeitos, determinando a juntada aos autos do presente procedimento. Registra-se congratulações e agradecimentos do Min Vice Presidente aos representantes das partes, pelo empenho, disposição e boa vontade, não apenas por conta da solução do presente conflito coletivo, bem como por contribuírem com a pacificação social. Registra-se ainda, em especial, o caráter louvável da iniciativa de terem recorrido à mediação e conciliação pré processual em conflitos coletivos, criada no âmbito do TST por meio do Ato 168/2016, tendo sido este o primeiro procedimento formulado. [...] (TST Processo N.º TSTPET-7102-92.2016.5.00.0000, Ministro Emmanoel Pereira (Vice-Presidente do TST), e Robério Neiva Ferreira (Juiz Auxiliar da Vice- Presidência), Data da Audiência: 16/09/2016, Tribunal Superior do Trabalho, Distrito Federal/Brasília). Conclui-se que a valorização do mecanismo da mediação como o instrumento eficaz na negociação coletiva trabalhista é perceptível após estudo dos institutos existentes no ordenamento jurídico brasileiro, sendo ele o único que prima pela qualidade da negociação, a intenção, expectativa e interesse das partes, com foco não só na resolução imediata do conflito como em uma solução pacifica que aproxima e perdura a relação negocial dos envolvidos. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante o exposto, observa-se que na negociação coletiva as partes (sindicatos e empregadores), quando não entram em comum acordo, podem recorrer a vários meios jurídicos pré-processuais de soluções de conflitos existentes hoje no Direito Coletivo Brasileiro. Ademais, cabe ainda destacar que a mediação é o único meio utilizado que põe fim ao litígio de forma satisfatória para ambas as partes, com o auxílio de um terceiro imparcial escolhida por elas, este buscará sempre a facilitação dos diálogos, para que juntas, em comum acordo, construa uma decisão que vai pôr fim ao litígio, impedindo que o mesmo impasse aconteça novamente no futuro. Importante salientar, que o Ordenamento Jurídico Brasileiro tem valorizado o instituto da mediação e fazendo indicação de legislações especiais para soluções de conflitos trabalhistas, como a regulamentação do TST através do ATO 168/TST.GP, que permite que a mediação como procedimento pré-processual de tentativa de acordo antes de ajuizamentos de dissídios coletivos, como também a aplicação subsidiária do Novo Código de Processo Civil previsto no artigo 3º, §§ 2º e 3º da Lei nº 13.105/2015, e da resolução 125/2010, alterada pela emenda 2/2016, editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos coletivos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, que estabelece a criação do Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais. Conclui-se que a mediação, ainda que facultativa, por vezes possui inclusive previsão legal expressa, para solução de conflitos trabalhistas, e diante da essência, intenção e autonomia dos entes que compõem o direito coletivo, a mediação observa os interesses dos atores da negociação e representados, desenvolve através de técnicas precisas o exercício do comum acordo, legitima as partes aproximando-as da negociação, não interfere na autonomia, e busca sempre uma negociação satisfatória e eficaz.

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Banca Examinadora Adélia Procópio Camilo (Orientadora) Daniela Lage Meija Zapata (Examinadora 1) Tatiana Bhering Serradas Bom Souza Roxo (Examinadora 2)

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A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NA LEI MARIA DA PENHA: uma solução diante da ineficiência do Estado em coibir a Violência Doméstica THE APPLICATION OF RESTORATIVE JUSTICE BY MARIA DA PENHA LAW: a solution face the State’s inefficiency on extinguing Domestic Violence Raíssa Pereira Gonçalves1

RESUMO: O presente artigo propõe um estudo sobre a aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito da Lei Maria da Penha, exibindo a ineficiência da tutela estatal em exaurir e solucionar os casos de violência doméstica, sendo que na maioria das vezes, a vítima objetiva o esgotar das agressões e uma mudança genuína na postura do agressor, sem que para tanto se desfaça o vínculo familiar. Nessa seara, dificilmente a Justiça Retributiva poderá amparar essas mulheres, visto que enxerga a vítima como mera coadjuvante, tendo o Estado o principal papel de punir o agressor. Dessa forma, a aplicação da Justiça Restaurativa é vista como uma possibilidade de compreensão das necessidades da vítima, bem como, forma de impor ao ofensor a reparação do dano cometido. PALAVRAS-CHAVE: Ineficiência do Estado. Justiça Restaurativa. Lei Maria da Penha. Violência Doméstica.

ABSTRACT: This article proposes a study of the application of Restorative Justice in the scope of Maria da Penha Law, showing the inefficiency of State’s protection to end and solve cases of domestic violence, as in most of them the victim is a woman that aims to stop the aggression, but also expects a genuine change in the aggressor’s behavior without having a break up on the family bond. In this matter, the Retributive Justice can hardly support these victims, since it sees it as secondary figure and gives the State the main role of punishing the aggressor. In this regard, Restorative Justice is seen as a possibility of understanding the needs of the victim, as well as a way of imposing the offender the reparation of the committed damage. KEYWORDS: Inefficiency of the State. Restorative Justice. Maria da Penha Law. Domestic Violence.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A origem e o conceito da Justiça Restaurativa. 2.1 Diferença entre Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva. 3 Violência Doméstica contra mulher. 3.1 Desenvolvimento histórico, dados e estatísticas sobre a violência contra as mulheres. 3.2 A lei Maria da Penha e os tipos de violência doméstica contra mulher. 3.2.1 A quem alcança a Lei Maria da Penha. 3.2.2 Das Medidas Protetivas de Urgência. 4 A ineficiência do Estado em atuar nos casos de Violência Doméstica. 4.1 A aplicação da justiça restaurativa na Lei Maria da Penha, uma solução frente a ineficiência do Estado em coibir a Violência Doméstica. 5 Considerações Finais. Referências.

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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1 Introdução É notória a crescente disseminação da violência doméstica em todo o território nacional, não que seja mérito apenas do nosso país ou da modernidade, dado que casos assim ocorrem desde os primórdios das civilizações. No entanto, nas últimas décadas, esse assunto ganhou relevância e status de grande mazela social, obrigando o Estado a voltar sua atenção e esforços a erradicá-la. O número de mulheres agredidas, mortas ou lesionadas gravemente crescem de forma avassaladora, exigindo toda a atenção do Estado para a situação, que na tentativa de contê-la, criou-se a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, em distinta homenagem à mulher que após inúmeras agressões domésticas acabou se tornando paraplégica. A respectiva Lei foi uma tentativa estatal de atender os anseios sociais contrários a sensação de impunidade e mostrar eficiência em promover maior segurança para as vítimas, bem como, uma punição mais severa para os agressores. Todavia, apesar de ser grande o avanço do ponto de vista jurídico, existem demasiadas fragilidades e lacunas na efetividade dessa legislação, tornando-se visível quando de sua aplicação a ineficiência prática ao se comparar com a eficácia pretendida na lei seca. A análise de dados é precisa em demonstrar que grande parte das vítimas não desejam efetivar a denúncia, nem verem seus agressores presos ou afastados dos lares, o que de fato anseiam é apoio e soluções que cessem as agressões, ocasionando mudança genuína nos companheiros. Diante do exposto, dificilmente a Justiça Retributiva poderá ajudar essas mulheres a conseguirem o que desejam, tornando ainda mais traumática e conturbada a situação vivida, afastando maridos ou esposas de seus lares e fazendo com que a raiva e o ressentimento, inerentes a situação, gerem ainda mais violência no ambiente familiar, para aquelas mulheres que optam por permanecer e manter os seus relacionamentos. Isto posto, o presente trabalho tem o intuito de trazer a Justiça Restaurativa na aplicação da Lei Maria da Penha como solução coibitiva à violência doméstica, nos casos em que as diretrizes do Estado não são suficientes. 2 A ORIGEM E O CONCEITO DA Justiça Restaurativa Existem indícios de mínimas ocorrências da Justiça Restaurativa no final do século XIX, em disputas entre os trabalhadores das estradas de ferro nos Estados Unidos, porém, as maiores ocorrências só surgiram na década de 1970, sob a expectativa da mediação entre os envolvidos em conflitos. Nos anos noventa espalhou-se essa ideia por toda a Europa e em alguns outros países. No Brasil a Justiça Restaurativa teve suas atividades iniciadas em 2004 com a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário na Escola AJURIS e várias instaurações de projetos em todo o país no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, na Infância e Juventude e, atualmente, no âmbito da violência doméstica. Esse instituto, que vem sendo implantado no nosso ordenamento jurídico, tem seus pilares no estudo realizado pelo pesquisador e psicólogo americano Albert Eglash, publicado em 1977 sobre o título de “Beyond Restituition: creative restitution” que posteriormente denominou-se, em nosso país, como Justiça Restaurativa. O objetivo de Albert era um modelo terapêutico alternativo de reabilitação do ofensor, utilizando-se o auxílio de um supervisor na tentativa de que infrator alcançasse o perdão de sua vítima e, mais tarde, ajudasse outros como ele a buscar a redenção.

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A fim da compreensão deste novo conceito de justiça, é necessário entender que o foco principal deixa de ser a punição do indivíduo infrator ensinada nos primórdios pela lei de Talião, e passa a ser o modo de reestabelecimento do equilíbrio abalado pelo delito, envolvendo a vítima, o infrator e a comunidade, como ensina Horward Zehr em seu livro Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça Restaurativa. O conceito principal de Justiça Restaurativa é a reparação do dano causado a vítima e a coletividade, sendo a punição forma secundaria. Nesse contexto, temos o que preceitua Leonardo Sica (2007): A Justiça Restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria. Sob a denominação de Justiça Restaurativa projeta-se a proposta de promover entre os protagonistas do conflito traduzido em um preceito penal (crime), iniciativas de solidariedade, de diálogo e, contextualmente, programas de reconciliação. Mais amplamente, qualquer ação que objetive fazer justiça por meio da reparação do dano causado pelo crime pode ser considerada “prática restaurativa” (SICA, 2007, p.10) No que lhe concerne, o Conselho Econômico e Social da ONU, através da Resolução 2002/12, de 24 de julho de 2002, dispõe que: Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2002). Em suma, Justiça Restaurativa nada mais é que uma alternativa ao modelo tradicional para o tratamento dos delitos, com envolvimento do coletivo e das partes envolvidas, com o intuito da restauração da ordem social maculada pelo crime, por meio de mediação, conciliação ou círculos restaurativos. 2.1 Diferença entre Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva Para se distinguir Justiça Restaurativa de Justiça Retributiva, é necessário traçar um paralelo entre as duas: A Justiça Retributiva enxerga o crime como ato contra a sociedade representada pelo Estado, atribuindo a este o monopólio da aplicação da Justiça Criminal, sendo a vítima mera expectadora, sujeito passivo da infração, a ensejar o papel principal para o Estado e o infrator. O procedimento é solene e público, contencioso e contraditório, tem como foco a intimidação e punição do infrator em regime carcerário e é regido pelo princípio da Indisponibilidade da Ação Penal. Em contrapartida, a Justiça Restaurativa analisa o crime como ato que traumatiza a vítima, causando-lhe danos, figurando essa como protagonista do fato juntamente com o infrator. O procedimento é comunitário, com as pessoas envolvidas, além de ser voluntário e colaborativo, informal com confidencialidade regido pelo princípio da oportunidade. Assim, objetiva as relações entre as partes para restaurar e reparar os traumas morais e os prejuízos emocionais, além da ressocialização do infrator ao convívio social. Pedro Scuro Neto assevera que:

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“Fazer justiça” do ponto de vista restaurativo significa dar sistemática às infrações e a suas consequências, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou

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reputação, destacando a dor, a magoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça, significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstituir, reconstruir, de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo. (SCURO NETO, 2000). Por conseguinte, a Justiça Retributiva expressa necessariamente o dever de castigar aquele que cometeu algum ilícito, contrapondose à Justiça Restaurativa que afirma a indispensabilidade da tentativa de remissão com a vítima e a sociedade ao se cometer um ilícito. 3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER Ao analisar os dados sobre a violência doméstica contra a mulher, percebe-se que o medo e a vergonha dentro das relações abusivas são os principais fatores que levam grande parte das vítimas a permanecerem nesse ciclo vicioso de abusos e humilhações, o que corolariamente, eleva a posição do Brasil no ranking de países com maior número de mortes de mulheres. Segundo Kofi Annan, ex-secretário Geral das Nações Unidas, “a violência doméstica contra mulheres é talvez a mais vergonhosa violação dos direitos humanos, não conhecendo fronteiras geográficas, culturais ou de riqueza”. (ANNAN. IN: CUNHA; PINTO, 2014, p. 07). A Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela OEA em 1994) explana “que violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Por sua vez, o artigo 5º da Lei nº 11.340/06 define Violência Doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. 3.1 Desenvolvimento histórico, dados e estatísticas sobre a violência contra as mulheres A violência contra a mulher possui raízes nos períodos mais remotos da civilização, onde as mulheres eram vistas como propriedade da família, e posteriormente do marido ao contraírem matrimônio. Estando introjetada em no íntimo, solidificada em séculos de escravidão, submissão e servidão, fortificada por uma cultura machista que legitima um suposto direito do homem sobre a mulher. Diversos fatores foram imprescindíveis para que a violência doméstica se tornasse hoje uma questão de segurança pública, uma vez que se contabilizou nos dez primeiros meses do ano passado, 63.090 denúncias de violência contra mulheres, gerando, um relato a cada 7 minutos no País. Os dados são da Secretária de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), fundamentados nas denúncias feitas pelo Ligue 180. Entre estes registros, quase metade (31.432 ou 49,82%) corresponde a denúncias de violência física, registrou-se também, 19.182 denúncias de violência psicológica (30,40%), 4.627 de violência moral (7,33%), 3.064 de violência sexual (4,86%) e 3.071 de cárcere privado (1,76%). Os atendimentos registrados mostram ainda que 77,83% das vítimas têm filhos, que mais

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de 80% destes filhos presenciaram ou também sofreram a violência e que 85,85% corresponderam a situações em ambiente doméstico e familiar. A maior parte dos relatos (67,36%), são de violências cometidas por homens com os quais as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo, como cônjuges, namorados, ex-cônjuges ou ex-namorados. Em cerca de 27% dos casos, o agressor era um familiar, amigo, vizinho ou conhecido, dados esses disponibilizados pelo Jornal Estadão, em 07 de abril de 2016. Assim, o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking mundial de países com maior incidência de violência doméstica contra a mulher. Seguindo tal raciocínio, a percepção de que a violência contra mulher é resultado de uma valorização exacerbada da figura masculina em detrimento da imagem feminina se faz evidente. Fomentando uma cultura machista patriarcal não condizente com os moldes de uma sociedade democrática de direito. 3.2 A lei Maria da Penha e os tipos de violência doméstica contra mulher Em agosto de 2006 entrou em vigor a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, atuante na busca de prevenção e punição dos casos de violência doméstica contra mulheres. A supracitada legislação foi registrada com o nome do símbolo da luta contra a violência à mulher. Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmaceutica cearense, que ficou paraplégica após sofrer duas tentativas de homicídio pelo seu marido. Sua luta perdurou 20 anos, com apoio de grupos de mulheres em todo o país, para contemplar a justiça ser feita e seu ex companheiro ser merecidamente punido. Segundo o artigo 5º da Lei Maria da Penha, violência doméstica é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito doméstico, familiar e em qualquer relação íntima de afeto independentemente de coabitação e orientação sexual. Em seu artigo 7º a Lei nº 11.340/06 ainda define cinco formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres, podendo ser cometidas em conjunto ou isoladamente. Quais sejam: a violência física, incluindo qualquer contato físico que provoque dor, podendo ou não deixar marcas ou lesões, é praticado com o uso de força física não acidental. São beliscões, mordidas, puxões de cabelo, tapas, cortes, chutes, queimaduras, socos, entre outros. A violência psicológica é bastante ampla e resulta de ato que coloque em risco o desenvolvimento psicoemocional da mulher. É toda ação ou omissão que causa ou objetiva causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. São os insultos constantes, humilhações, desvalorizações, chantagens, isolamento de amigos e familiares, ridicularizações, rechaços, manipulações afetivas, explorações, negligências, ameaças, privação arbitrária da liberdade (impedimento de trabalhar, estudar, cuidar da aparência pessoal, gerenciar o próprio dinheiro), confinamento doméstico, entre outros. É o assédio moral, que ocorre com a humilhação, a manipulação e controle por parte do agressor. A violência sexual abrange qualquer ação cometida para obrigar a mulher, por meio da força física, coerção ou intimidação psicológica, a ter relações sexuais ou presenciar práticas sexuais contra a sua vontade. É o caso do estupro, sexo forçado ainda que no casamento, abuso sexual infantil, abuso incestuoso e assédio sexual. Ocorre também quando a mulher é obrigada a se prostituir, a fazer aborto ou mesmo fazer uso de métodos anticoncepcionais. A violência patrimonial, promove-se quando o agressor subtrai parcial ou totalmente, retém ou mesmo destrói os bens pessoais da vítima, seus instrumentos de trabalho, documentos e objetos de valores, como joias, roupas, veículos, dinheiro, a residência onde vive e até mesmo animais de estimação. Podendo ser consumada também

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quando há por parte do companheiro, inadimplemento de pensão alimentícia ou nenhuma participação nos gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar. A violência moral se dá quando a mulher sofre com atitudes que configurem calúnia, difamação ou injúria praticadas por seu agressor. A calúnia ocorre quando este afirma falaciosamente que a mulher praticou um crime por ela não cometido. Já a difamação quando atribui à mulher fatos que maculem a sua reputação, e a injúria acontece nos casos em que ofende a sua dignidade chamando-a, por exemplo, de safada, prostituta entre outras coisas. Atualmente esse tipo de violência vem ocorrendo geralmente pelas redes sociais, como Facebook , Instagram, Twiter e Whatsapp.

de seu patrimônio. Adentra hipótese de prisão preventiva em qualquer momento da investigação policial ou no curso da instrução criminal, sendo decretada pelo juiz de ofício, a requerimento do MP ou por representação da autoridade policial. O magistrado ainda poderá revogar a prisão preventiva no curso do processo, se entender que falta motivos para mantê-la, como igualitária autonomia para decreta-la novamente se houverem razoes que a justifiquem. A Lei Maria da Penha divide suas medidas protetivas em duas espécies: Das Medidas Protetivas de Urgência que obrigam o Agressor e Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida. Elencadas no artigo 22 da referida Lei encontramos as Medidas Protetivas de Urgência que obrigam o Agressor:

3.2.1 A quem alcança a Lei Maria da Penha

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. § 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público. § 2º Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6º da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de desobediência, conforme o caso. § 3º Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4º Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5º e 6º do art. 461 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).

A lei foi formulada para abarcar diversos tipos de violência que as mulheres são ou poderiam ser vítimas dentro das relações cotidianas de convívio afetivo ou mesmo consanguínea. Partindo dessa premissa, a lei se aplica a maridos, companheiros, namorados que morem ou não na mesma casa que a mulher, e também aos ex, que agridem, ameaçam ou perseguem as vítimas. Adentrando na sanção a violência cometida por outros membros da família, como pai, mãe, irmão, irmã, padrasto, madrasta, filho, filha, sogro, sogra, desde que a vítima pertença ao sexo feminino, em qualquer faixa etária. Além de valer para relacionamentos femininos homoafetivos. No que tange a mulher agredida a lei traz a possibilidade de atendimento em programas assistenciais do Governo Federal, Estadual e Municipal, manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, proteção policial ou garantia de ser abrigada em local seguro e assistência judiciária gratuita. Para o agressor a lei pode vir a sancionar com detenção de três meses a três anos, encaminhamento a programa de recuperação e reeducação, possibilidade de ter a prisão preventiva decretada a qualquer momento, bem como, possibilidade de ser afastado do lar e impossibilidade de substituir a condenação por penas alternativas, quais sejam: cestas básicas ou multas como era feito quando os crimes eram processados pelo juizados especiais criminais. Fato de relevância na lei Maria da Penha está na criação dos Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher e das Delegacias de Atendimento, esses possuem especial papel ao promoverem a integração entre Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, áreas de segurança e assistência. 3.2.2 Das Medidas Protetivas de Urgência

A Lei nº 11.340/06 dispõe em seu Capitulo II sobre as Medidas Protetivas de Urgência contra o agressor e a favor da vítima, na busca por promover a preservação da integridade física, moral, patrimonial e psicológica da mulher submetida a violência doméstica, garantindo o amparo jurisdicional. Após ser provocado, o Juiz determinará em 48 horas o consentimento ou não a Medida Protetiva de Urgência, encaminhará ainda a vítima ofendida para assistência judiciaria se for o caso e comunicará o Ministério Público. A concessão dessas medidas se dá por intermédio do Juiz através de requerimento do MP ou a pedido da vítima, podendo ser deferidas de imediato, independente de audiência, e serem aplicadas isoladas ou cumulativamente. Caso não se mostrem na plenitude de sua eficácia podem ser substituídas por outras que alcancem o escopo legislativo. Ocorrendo sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. Ressalta-se que, o Juiz a requerimento do MP ou a pedido da vítima poderá permitir novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, uma vez que julgue necessário a proteção da vítima, de sua família e

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Por sua vez, encontra-se nos artigos 23 e 24 da referida Lei as Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida:

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Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos. Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade

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particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos nos incisos II e III deste artigo. Conclui-se assim, que apesar da Lei Maria da Penha, na tentativa de trazer segurança jurídica para as mulheres vítimas de violência doméstica, bem como reprimir futuras situações de agressão, proporcionou grandes mudanças em nosso ordenamento jurídico, contudo, evidencia-se ainda um vultuoso número de mulheres que continuam a serem ofendidas sem que ao menos o Poder Público seja cientificado. 4. A IneficiÊncia do Estado em atuar nos casos de violência domÉstica A violência doméstica existe desde o princípio da sociedade civilizada, que valora demasiado uma visão conservadora do matrimônio, e subjetiva um conceito do pátrio poder. A partir dessa premissa há silêncio, vergonha e medo por parte da vítima, que opta por ocultar a violência sofrida. Com o avanço temporal e o crescimento alarmante dos casos de violência cada vez mais reiterados e notórios o Estado se viu obrigado a intervir na tentativa de coibir essa prática. A lei Maria da Penha surgiu no intuito do Estado de conter a violência doméstica, e promover maior segurança para as vítimas, bem como uma punição mais severa para os agressores. Nessa seara, o mestre Ronaldo Braga e a graduanda Ana Carolina Oliveira, preceitua: [...] a Lei propôs uma nova ótica aos atos ocorridos indevidamente no cotidiano de um casal, ambiente extremamente privado e de difícil acesso do Estado. Entretanto, a legislação apenas penaliza o agente, mas não consegue coibir a prática dos atos, que, na grande maioria das vezes, ficam esquecidos em meio à submissão feminina, institucionalizada pela cultura machista. A prioridade deveria ser a conscientização social à prática dos delitos, não apenas através das vias punitivas ao agente, mas também com atendimento adequado à vítima em resposta rápida e eficiente do Judiciário, tendo em vista o déficit monstruoso de informação e preparação da sociedade brasileira perante a violência. (BRAGA; OLIVEIRA, 2012) Todavia, é sabido que apesar dos esforços do Estado em garantir a eficiência na aplicação da Lei Maria da Penha é visível a crescente onda de violência contra a mulher e o alargado número de casos que nem se quer chegam a ser denunciados ou processados, quase sempre pela resistência da própria ofendida em ver seu parceiro preso ou afastado do lar, desejando apenas um meio de por fim a violência e prosseguir vivendo em plena harmonia familiar. A Lei Maria da Penha acabou se tornando mais uma das tentativas de atender os anseios sociais contrários a sensação de impunidade, ao mesmo tempo que objetiva demonstrar um Estado eficiente e ativo, e não uma solução instantânea e absoluta para a situação de risco vivida por tantas mulheres. É teoricamente um avanço do ponto de vista jurídico, perfeita e com diversas inovações inteligentes, entretanto, existem tantas fragilidades e lacunas que a aplicação evidencia,

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precisão formal e, em limitada proporção, efetividade material. É necessário medidas que valorizem as relações familiares, projetos que abranjam acompanhamentos psicológicos para vítimas e agressores, tentativas de se chegar a origem da violência erradicando -as e nos casos de acentuada gravidade aplicar todo o rigor da lei e buscando formas de que essa aplicação seja eficiente e segura para a vítima. É válido compreender que a violência doméstica é um problema amplo, de cunho social e como tal é preciso que Estado juntamente com a sociedade assumam seus papeis no combate efetivo a tal pratica, implementando políticas públicas, investindo em educação, em centros e também em profissionais aptos a atender as vítimas de violência doméstica e o próprio agressor, além é claro de um serviço jurisdicional eficiente e equipe de policiamento capacitada para lidar com os diversos tipos de casos de violência doméstica. Não obstante, prender ou afastar de casa o agressor, ainda que nos casos em que a própria vítima não deseja tal consequência e pretenda apenas que as agressões cessem e a paz no seu lar seja reestabelecida. Diretrizes como essas, fazem surgir a ideia de que a justiça retributiva não é suficiente para alcançar o êxito pleno objetivado, e que para tal necessita-se de uma solução mais eficiente fazendo nascer a possibilidade de aplicar a Justiça Restaurativa na Lei Maria da Penha. 4.1 A aplicação da justiça restaurativa na lei Maria da Penha, uma solução frente a ineficiência do estado em coibir a violência doméstica Em se tratando de um caso de Violência Doméstica é necessário uma análise precisa, e despida de qualquer preconceito, não contaminada pela filosofia de que aos meus inimigos o rigor da lei. É comprovado que em alguns casos de violência doméstica a aplicação da Justiça Retributiva é pouco eficiente e satisfatória, isso porque não alcança o maior desejo da vítima a perpetuação do laço familiar. A partir daí, é possível que a solução esteja nos próprios princípios norteadores da Justiça Restaurativa. Ao se observar a Lei nº 11.340/06, nota-se que seu artigo 35, inciso IV dispõe que “a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar; ” Nesse ponto, faz-se válido analisar a possibilidade de uso dos princípios da Justiça Restaurativa, uma vez que essas campanhas de enfretamento nada mais são do que o diálogo entre vítima e agressor intermediado por um facilitador (terceiro) no intuito de resolver as questões provocadas pelas diferentes formas de violência, permitindo aos delituosos assumirem a responsabilidade de suas ações e auxiliar a vítima a superar as consequentes agressões sofridas sem, proporcionar rompimento do vínculo familiar. Ao descrever o papel da vítima na Justiça Retributiva, Zaffaroni preceitua: Há a necessidade de se devolver às vitimas uma maneira em que elas sejam respeitadas dentro do sistema punitivo, existindo uma reestruturação do sistema no controle de violência do sistema e da sociedade. Os direitos humanos devem controlar a irracionalidade da guerra, assim como a criminologia do direito penal não apresenta uma relação com a racionalidade. (ZAFFARONI, 1991, p. 87) De acordo com Zehr (2008, p, 13), na Justiça Restaurativa o crime não faz referência a uma violação contra o Estado, mas às pessoas e aos relacionamentos, que envolvem a vítima, o agressor, a família e a comunidade. Entende-se que, esses vínculos que foram afetados pela violência precisam ser reparados através da correção dos erros, mediante a reconciliação.

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A Justiça Restaurativa almeja promover o diálogo entre os afetados diretamente e indiretamente pelo dano, retomando a vivência perdida e a vigência de paz nas relações entre os envolvidos. É uma alternativa de justiça comunitária, humana e menos punitiva. Sobretudo, a Justiça Restaurativa oportuniza a condição de realizar o desejo de muitas vítimas, que buscam auxílio judicial sem, no entanto, intencionar a privação de liberdade de seu companheiro. Seguindo o âmbito de entendimento preceitua Maria Lucia Karam:

Como na jurisprudência abaixo: RECLAMAÇÃO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA MULTIDISCIPLINAR PARA EXAME DE ADEQUAÇÃO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA. ARTIGO 19 DA LEI 11.340/06. MANUTENÇÃO DO ATO PROCESSUAL. ATO PROCESSUAL DIVERSO DA AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 16 DA REFERIDA LEI. RECLAMAÇÃO IMPROCEDENTE. 1 O Ministério Público ajuizou reclamação contra ato do Juízo do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Riacho Fundo que deferiu medidas protetivas de urgência e designou audiência multidisciplinar, com base no artigo 19 da Lei Maria da Penha. Sustenta que a única audiência prevista na Lei Maria da Penha é a de justificação e aqui não há indícios da vontade da vítima de se retratar. 2 A audiência designada difere da prevista no artigo 16 da Lei de Regência, a qual somente ocorre quando a vítima manifesta interesse de renunciar à representação ofertada contra o agressor. A audiência multidisciplinar designada auxilia o Magistrado a compreender de forma mais profunda o contexto social e familiar dos envolvidos e prestigia as facetas da Justiça Restaurativa, pois permite, já no início do conflito entre os protagonistas, desenvolver trabalhos de orientação e prevenção voltados para a ofendida e o agressor, dando ênfase em solucionar o problema de modo permanente. Assim, permite-se conscientizar as partes sobre seus atos e atingir a real pacificação social, e não somente a punição do agressor. 3 Reclamação improcedente. (TJ-RJ-MS Nº 0019273-14.2010.8.19.0000)

Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente ofendida, o seu direito e o seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar o direito à liberdade de que é titular para tratá-la como coisa fosse, submetida à vontade dos agentes do Estado, que, inferiorizando-a e vitimando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar. E sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é, ou não, um agressor, ou que, pelo menos, não deseja que seja punido. (KARAM. IN: CUNHA; PINTO, 2014, p. 204-205). Nessa seara, a Desembargadora Maria Berenice Dias elucida: Não há como pretender que prossiga a ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com definição de alimentos, partilha de bens e guarda de filhos e visitas. A possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito das Famílias, que são bem mais relevantes do que a imposição de uma pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros. Há um argumento que precisa ser considerado. A vítima tem enorme dificuldade de denunciar um ente amado com quem convive, que é o pai de seus filhos e provê o sustento da família. Quando consegue chegar a uma delegacia para registrar a ocorrência, vai buscar auxílio para que a paz volte a reinar na sua casa. Não tem o desejo de se separar e nem quer que seu cônjuge ou companheiro seja preso, só quer que ele pare de agredi-la. A denúncia na delegacia e a busca de apoio do Poder Judiciário são os recursos encontrados pelas mulheres para fazer cessar períodos de agressão contínua. A condenação criminal, na grande maioria dos casos, não é a intenção da vítima. Ora, se a mulher souber que necessariamente ele será processado, havendo a possibilidade de ser levado para a cadeia, é capaz de desistir. Tal irá inibir a denúncia e a violência doméstica continuará envolta em silêncio e medo. Legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade. Ao interpretar-se uma lei, mister atentar à sua matriz, que revela a intenção do legislador. É preciso compreender seus motivos, as necessidades que o orientaram e os princípios que o inspiraram[...] (DIAS, 2007, p. 124-125) O intento da Justiça Restaurativa é compatibilizar as exigências de todos os envolvidos no conflito utilizando de diálogos e reflexões, anulando o uso de força e coerção punitiva, e atuando de forma a complementar ao sistema judicial criminal quando assim se fizer necessário. É possível aferir em hipóteses reais a veracidade do arrependimento comportamental do agressor em respectivos casos.

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A Jurisprudência em questão diz respeito a um Mandado de Segurança, cujo número é 0019273-14.2010.8.19.0000, interposto pelo Sr. Lourival Gaspar em face da Sra. Maria das Dores Araújo Gaspar, representada pelo III Juizado De Violência Doméstica De Jacarepaguá, com intuito de desconstituir a decisão que, conforme alega o impetrado, determinou o afastamento do impetrante de sua ex-esposa, vítima antiga de uma agressão. A primeira decisão pretendeu resguardar a integridade da ex-esposa e sobrinha, as quais foram agredidas pelo impetrante, vinculando a caracterização da violência doméstica naquela época, conforme os ensinamentos da Lei n° 11.340/06. Após sair do lar que residia há 58 anos junto a Sra. Maria das Dores, o Sr. Lourival foi surpreendido com o retorno da suposta vítima a sua nova residência. Tal fato originou a impetração do mandado para que pudesse cassar a medida anteriormente imposta. Contudo, a solução judicial para a problemática não conseguiu satisfazer os interesses em jogo, primeiro, pela morosidade em julgar o caso, bem como pela frieza e caráter punitivo do direito penal, que não consegue avaliar concretamente as peculiaridades do caso concreto em face da decisão tomada, da medida protetiva, que foi de encontro ao interesse das partes envolvidas. Ascende-se, assim, a necessidade crucial da aplicação da justiça restaurativa para a solução dos conflitos no âmbito familiar e social, já que esta almeja a reabilitação do ser humano, mormente do ofensor, propiciando as situações corretas e apropriadas a fim da recuperação deste. 5 CoNSIDERAÇÕES FINAIS É notório que a violência contra mulher cresce de forma avassaladora, tornando-se um grande problema social onde os esforços do Estado em combater são por vezes infrutíferos.

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Inúmeros são os casos em que a vítima não quer ver seu parceiro preso ou processado e afastado do lar, desejando apenas uma solução para que as agressões cessem na esperança de uma reconstrução da vivencia familiar. Contudo, no nosso sistema judiciário vigente não existe tal opção, mormente porque o Poder Judiciário, a vítima e o agressor não se comunicam. Sendo assim, aquelas são relegadas a papel secundário, sem a garantia de informação acerca do procedimento penal e os resultados que podem advir dele. Os interesses das vítimas são ceifados, em detrimento dos interesses jurídicos em punir o agressor e demostrar um Estado eficiente. Portanto, percebe-se que nesses casos aplicar a Justiça Restaurativa seria muito mais benéfico e eficiente para a equidade do conflito. Nesse processo passa a vítima a assumir junto ao agressor o papel principal, sendo promovido um diálogo entre ambos na tentativa de sanar as consequências dos danos causados pela agressão, restaurando quando possível o elo familiar. O Estado assumiria papel coadjuvante, ofertando programas de reabilitação, acompanhamento psicológico, programas para controle da raiva e promovendo campanhas de conscientização da importância de valorizar as relações familiares e o respeito à mulher. O presente trabalho teve como proposito apresentar a Justiça Restaurativa na aplicação da Lei Maria da Penha como meio de solução à ineficiência do Estado em retificar uma problemática a muito existente, qual seja: a Violência Doméstica.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013. 114 p.

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Banca Examinadora: Ronaldo Passos Braga (Orientador) Bernardo Barbosa Nogueira (Examinador 1) Karen Myrna Castro Mendes Teixeira (Examinadora 2)

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PONDERAÇÕES ACERCA DA ASSERTIVIDADE DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: a elisão como vetor econômico WEIGHTINGS ABOUT TAX PLANNING ASSERTIVENESS: elision as economic vector

Raquel Ferreira Lima1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo geral refletir sobre o planejamento tributário como ferramenta que possibilita redução dos gastos empresariais com tributos, bem como é um meio de aumentar a eficiência do setor, preceito este consagrado pela Constituição da República de 1988 primordialmente a ser perseguido e alcançado pela administração pública. Além disso, buscará apresentar a diferença entre o planejamento tributário e a evasão fiscal, demonstrando a licitude do primeiro, assim como a sua previsão e status de garantia constitucional. Analisará também um caso concreto para demonstrar as agruras enfrentadas pelos contribuintes que lançam mão de um direito constitucional qual seja o da eficiência na gestão de seus negócios. Palavras-chave: Planejamento Tributário. Elisão Fiscal. Evasão Fiscal. Constituição Federal.

Abstract: This article has the general objective to reflect on the tax planning as a tool that enables reduction of corporate tax expenses, as well as a means to increase the sector’s efficiency, rule this enshrined in the Constitution of 1988 primarily to be pursued and achieved by public administration. In addition, it seeks to present the difference between tax planning and tax evasion, demonstrating the legality of the first, as well as its forecast and constitutional guarantee status. It will also analyze a specific case to demonstrate the hardships faced by taxpayers who resort to a constitutional right which is the efficient management of their business. Keywords: Tax Planning. Tax avoidance. Tax evasion. Federal Constitution.

SUMÁRIO: 1Introdução. 2 Breve Histórico. 3 Planejamento Tributário. 4 Evasão fiscal x elisão fiscal. 5 Exemplo Prático para Demonstrar os Efeitos do Planejamento Tributário para as empresas. 6 Estudo de Caso. 7 Conclusão. Referências. ANEXO I.

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva.

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A complexidade tributária brasileira é um grande obstáculo enfrentado pelo empresário que opta por investir em nosso país. A dificuldade das empresas em acompanhar as mudanças na legislação é compreensível, tendo em vista que novas alterações legais ocorrem quase que diariamente, demandando-se tempo e investimentos para adaptar as empresas às novas exigências impostas. Assim, as fiscalizações costumam identificar erros de apuração em impostos ou de indicador de fatos geradores, impondo as pesadas multas previstas na legislação tributária, fato este que desestimula sobremaneira a iniciativa privada. Existem atualmente no Brasil mais de oitenta tipos diferentes de taxas, impostos e outros tributos, sendo este custo suportado, direta ou indiretamente, pelos consumidores finais e empresas. A estes fatores é imputado o fato da baixa competitividade dos produtos brasileiros frente aos importados, e o fraco desempenho da indústria nacional e exportadora. Em vista disso, surge a figura do planejamento tributário como ferramenta útil ao empresário que busca um meio lícito de economia de impostos. Na contramão, tem-se o fisco, ávido pela arrecadação, que utiliza indiscriminadamente o previsto no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional3 para justificar a desconsideração da personalidade jurídica das empresas, com o objetivo finalístico da arrecadação a qualquer custo. O presente trabalho tem por fito abordar o planejamento tributário, também chamado de elisão fiscal, apresentando a licitude de sua figura, bem como demonstrando a ilicitude da evasão fiscal ou sonegação fiscal. Além disso, serão analisados alguns dos desafios enfrentados por aqueles que lançam mão desta ferramenta lícita para organizar seus negócios, qual seja, o planejamento tributário, tendo em vista o caso concreto de uma autuação aplicada pela Receita Federal a uma empresa de renomado treinador de futebol brasileiro.

res acreditam que o princípio do não-confisco originou-se do pavor da burguesia nascente em face do poder de tributar dos reis. A partir do século XI, os povos europeus, sobretudo os ingleses, já propugnavam a necessidade de leis que antecedessem a cobrança de tributos, além do que estas deveriam ser elaboradas por Assembléias representativas do povo, que em última instância suporta a carga tributária, uma vez que esta é repassada pelos comerciantes aos consumidores finais. Tem-se aí a origem do princípio da legalidade que se configura como uma importante limitação do poder do Estado de tributar, consequentemente, protegendo o particular do confisco e do resguardo de sua propriedade. A Carta Inglesa de 1215 inspirou o Direito Constitucional Moderno e influenciou sobremaneira as demais constituições posteriores, principalmente no que diz respeito à limitação do poder de tributar dos reis. As revoluções francesa e americana, consequência do descontentamento do povo pela opressão e pela insuportável carga tributária imposta pelos monarcas às massas, levaram à determinação dos princípios que são basilares do direito constitucional, quais sejam os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração, bem como a limitação do Estado em relação ao particular. Confisco seria o ato de apreender a propriedade em prol do fisco, sem que seja oferecida ao prejudicado qualquer compensação ou troca. Neste sentido, o confisco reveste um caráter de penalização, resultante da prática de algum ato contrário à lei. A Constituição da República de 1988, bem como o Código Tributário Nacional consagraram princípios e normas de forma a limitar o poder do Estado de tributar, tais como o princípio do não-confisco, e da capacidade contributiva, por meio dos quais o Estado fica impedido, em todas as esferas, de criar tributos ou de os majorar as alíquotas, confisque bens ou diminua a capacidade econômica por via indireta do contribuinte, tirando-lhe ou diminuindo-lhe significativamente sua condição mínima existencial.

2 Breve Histórico

3 Planejamento Tributário

O peso da carga tributária sempre foi suportada herculeamente pelos brasileiros, desde a colonização até os dias atuais. Colônia de exploração, tem-se que grande parte das riquezas brasileiras foram consumidas pela Coroa Portuguesa. A alta tributação sobre a produção do açúcar e do fumo, principais culturas do Brasil Colônia, bem como a cobrança do quinto sobre o ouro extraído das jazidas brasileiras entre 1750 e 1770 enriqueceram sobremaneira o país d`além mar. Por isto, os autores de história costumam chamar o Brasil do país do confisco. O instituto do confisco é historicamente notado em vários países do mundo, desde o Direito Romano até os tempos atuais. Historiado-

Para auxiliar o entendimento de um assunto de tal importância e complexidade, necessário se faz aclarar o sentido da palavra “planejar”, que aponta para ações que visem antecipar algo, antever situações por meio de uma análise prévia dos fatos e situações para as quais deseja estar preparado. O planejamento objeto deste artigo se refere a aspectos tributários, assim entendidos como aqueles que visam estudar uma situação fática, ainda não ocorrida, vislumbrar as possibilidades de otimização dos meios legais para obter economia lícita de tributos em uma dada situação sujeita à tributação. O artigo 170 da Constituição da República de 19884, prevê ex-

1 Introdução

2 Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os efeitos: I tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios: II tratandose de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. 3 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003);VII - redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno emprego;IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995). Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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pressamente a liberdade de atuação da livre iniciativa, da valorização do trabalho humano, do livre exercício de qualquer atividade econômica, e, ressalte-se que o próprio artigo menciona que esta atuação se dará independentemente de autorização de órgãos públicos, exceção feita aos casos previstos em lei. Decorre daí a licitude da iniciativa dos contribuintes de se planejar a fim de obter a forma de tributação menos onerosa em suas atividades. Outra previsão legal que sustenta a necessidade do planejamento tributário para a economia em geral é o artigo 1.011 do Código Civil de 20025, que atribui ao administrador da sociedade a obrigação de utilizar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios. Andrade FILHO (2008, p. 765) corrobora deste entendimento, na medida em que entende que o planejamento tributário tem no princípio da eficiência sua justificação ética e axiológica. Neste sentido, este autor considera ainda se tratar de um direito subjetivo de qualquer pessoa. Em suas palavras: o planejamento tributário visa, em última análise, otimizar nos marcos da ordem jurídica, o montante dos encargos tributários a serem suportados por uma pessoa natural ou coletiva. Em relação a relevância do princípio da eficiência em matéria tributária, faz-se importante citar a ilustre passagem do autor Andrade FILHO (2008, p. 765): A otimização da carga tributária decorre do inalienável direito de ser eficiente; na ordem jurídica brasileira, o Estado deve ser eficiente e os cidadãos tem – ao menos – o direito de serem eficientes. Portanto, a partir este ponto de vista, o planejamento tributário situa-se na esfera jurídica de toda pessoa como um direito de proteção de seus interesses individuais, posto que a ordem jurídica os protege tanto quanto o faz em relação aos interesses da coletividade que são resguardados pela lei que prescreve sanções para aqueles que não cumprem o que é obrigatório ou fazem o que é proibido. Alguns exemplos clássicos de planejamento tributário comumente percebidos e utilizados são a possibilidade de opção pelo contribuinte entre os regimes de apuração de impostos pelo Lucro Presumido, Lucro Real ou Simples Nacional; ou a opção de instalar uma fábrica em determinado município em detrimento de outro, devido à alíquotas de impostos mais favorável ou mesmo a concessão de incentivos fiscais ou financeiros.

Ainda para Andrade FILHO (2008, p. 766): O dever de diligência que é cometido a todo administrador deve nortear a sua atuação na busca da otimização da carga tributária. De fato, se o planejamento tributário é sempre uma ação ou omissão lícita adotada antes da ocorrência do fato gerador, que observa as formas e as condições exigidas em lei e não causa prejuízo ao Estado arrecadador, ele está inserido no âmbito do “dever de diligência” e lealdade que é inerente à condição de administrador. O administrador deve tomar decisões ponderadas, equitativas e oportunas, que somente serão possíveis àqueles que desempenham suas funções com a diligência e dedicação necessárias ao monitoramento das informações da empresa e de sua investigação, para que possam ser implementadas as providências que se fizerem necessárias, segundo as circunstâncias do momento, decisões que sejam plena e adequadamente justificáveis segundo os padrões inerentes à ação de todo homem ativo e probo. Segundo Andrade FILHO (2008, p. 766): No âmbito das relações de Direito Privado, a busca da eficiência no cumprirmento das obrigações tributárias em função das demandas dos interesses estabelecidos em torno da empresa constitui um dever de todo administrador. A eficiência vai além do princípio da economicidade (a melhor relação entre custo e benefício); ela abrange a busca da citada relação e também da melhoria contínua dos processo econômicos de produção e distribuição de bens, o que abrange o uso adequado dos melhores recursos tecnológicos e pessoais no atendimento das funções da empresa em geral. E é neste contexto que cabe a utilização do planejamento tributário, também chamado de “elisão fiscal”, que envolve a opção, entre alternativas legais e igualmente válidas, de situações fáticas e jurídicas que objetivem reduzir ou eliminar o ônus tributário. Não se pode confundir elisão fiscal com evasão fiscal, esta última também chamada de sonegação fiscal, atitude ilícita com o objetivo de burlar o sistema legal com a finalidade única e exclusiva de lesar o Estado através do não recolhimento de impostos. Verifica-se sempre após a ocorrência do fato gerador do imposto, e ganhou renovado interesse após a Lei Complementar no. 104/2001, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional6, o qual

4 O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.§ 1o Não podem ser administradores, além das pessoas impedidas por lei especial, os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos; ou por crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno, concussão, peculato; ou contra a economia popular, contra o sistema financeiro nacional, contra as normas de defesa da concorrência, contra as relações de consumo, a fé pública ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação.§ 2o Aplicam-se à atividade dos administradores, no que couber, as disposições concernentes ao mandato.§ 3o Aplicam-se à atividade dos administradores, no que couber, as disposições concernentes ao mandato. 5 Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os efeitos: I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios: II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. 6 É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. § 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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prevê que a autoridade tributária poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Tal dispositivo prevê ainda a necessidade de edição de lei ordinária que a complemente, o que até o presente momento não ocorreu. Porém, em detrimento ao que está expressamente determinado na lei, os órgãos fiscalizadores tem fechado os olhos à esta lacuna legislativa e vem adotando a interpretação mais favorável ao Estado, qual seja, a de que, na dúvida, desconsidera a operação tal qual se apresente e classifica-a conforme o entendimento da fiscalização, imperando assim a subjetividade e a insegurança jurídica, vez que o próprio dispositivo sempre invocado nestes casos, carece de adentrar no campo material dos atos ou negócios dissimulados, ao menos para definir o que estes vem a ser, fixar seus elementos caracterizadores, relacionando-os aos fatos geradores previstos para cada tributo. 4 Evasão fiscal x elisão fiscal A doutrina classifica os diversos meios para se fugir da tributação baseada na licitude da conduta adotada pelo contribuinte. Desta forma, tem-se que a elisão fiscal ocorre quando os meios utilizados estão lastreados na lei, ou seja, na licitude. Pelo contrário, caso o contribuinte faça uso de meios ilícitos, tem-se a evasão fiscal ou sonegação fiscal. Faz-se necessário trabalhar com os seguintes conceitos expostos por José Eduardo Soares de MELO (2007, p. 210): O planejamento tributário constitui procedimento legítimo, em que se opera minuciosa análise do ordenamento jurídico que acarrete comportamento (obviamente lícito), objetivando evitar ou reduzir a carga tributária, sem resvalar em nenhuma antijuridicidade, especialmente no que tange aos crimes tributários (incluindo os previdenciários). As lições de Alecio Adão LOVATTO (2000, p. 143), destacam que “elisão fiscal é a forma lícita de o contribuinte buscar um caminho menos oneroso dentro da ordem tributária” e quanto à evasão fiscal, discorre que “(...) alguns autores definem a evasão como sinônimo de sonegação. (...), desde logo se descarta, por incabível como economia tributária, toda a conduta que se apoia na fraude, na simulação ou no abuso do direito”. A elisão fiscal é a conduta do contribuinte que consiste na prática de ato ou celebração de negócio legalmente enquadrado em hipótese objetivada pelo contribuinte, importando em redução ou eliminação da carga tributária. O momento em que a elisão ocorre é de fundamental importância para a caracterização de sua licitude, tendo em vista que esta é elaborada antes da ocorrência do fato gerador. Não visa lesar o fisco, tão somente por em prática o revisto no ordenamento jurídico, levando-se em consideração que ninguém é obrigado a optar pela maneira mais onerosa de tributação.

A doutrina dominante também é clara em afirmar que a elisão fiscal ocorre antes da concretização do fato gerador. Exceção feita quando da elaboração da Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física, pois aqui o fato gerador é posterior ao fato gerador; ainda assim é cabível optar pela forma menos onerosa de tributação deste imposto, escolhendo pela forma completa ou simplificada da declaração. A regra, porém, é que a conduta elisiva se verifique antes da ocorrência do fato gerador do tributo. Por outro giro, a evasão fiscal é ato ilícito em que o contribuinte pratica atos que visem evitar o conhecimento do nascimento da obrigação tributária ensejadora do recolhimento de tributos. Geralmente, estes atos são posteriores à ocorrência do fato gerador: este realmente ocorreu, porém, o contribuinte utiliza-se de meios que escondem do fisco o imposto devido. Importante ressaltar que a evasão fiscal pode ocorrer também quando o contribuinte utiliza de um formato artificioso, não necessariamente ilícito, em sua essência atípico para o tipo de ato praticado, tendo como resultado a não-incidência ou a redução tributária. Uma das hipóteses seria quando o contribuinte simula determinado negócio jurídico com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador, adotando uma figura jurídica atípica, a rigor lícita, com o objetivo de se furtar artificiosamente à tributação. Na simulação, o negócio tem uma aparência contrária à realidade, seja porque não existe em absoluto, ou porque é diferente da sua aparência. O artigo 167 do Novo Código Civil7 prevê que é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Além disso, elenca as situações em que se constata a presença de simulação nos negócios jurídicos: quando aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; quando contiverem declarações, confissões, condição ou cláusula não verdadeira; e quando os instrumentos particulares forem antedatados ou pós-datados. Objetivando proteger os interesses do Estado frente à evasão fiscal ou sonegação fiscal, entrou em vigor a Lei Complementar 104/2001, que na exposição de motivos de seu projeto de Lei, menciona que esta seria um instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma e de direito. A referida norma acrescentou o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional8, a partir do qual a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Ocorre que a doutrina majoritária considera ser o caso de “interpretação econômica” do fato gerador, adotada pela doutrina alemã, que privilegia a essência econômica dos fatos em detrimento das características meramente formais. Porém, cabe ressaltar que o Código Tributário

7 Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 10.1.2001). 8 Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

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Nacional, no artigo 108, parágrafo primeiro, veda expressamente que, do emprego da analogia, resulte a cobrança de tributo não previsto em lei. O Supremo Tribunal Federal ainda não pacificou entendimento a respeito deste assunto, porém, o Superior Tribunal de Justiça externou a posição de que “a interpretação econômica se impõe, uma vez que a realidade econômica há de prevalecer sobre a simples forma jurídica”, no julgamento do REsp 696.745/CE, Rel. Min. Luiz Fux, J. 07.06.2005, DJ 28.08.2005. E em meio a esta celeuma jurídica, estão os contribuintes que mesmo coma a previsão constitucional do direito de planejar e escolher a melhor forma de pagar seus tributos, sempre conforme a lei, constantemente são surpreendidos pela atividade da fiscalização que aplica indiscriminadamente o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional9, desconstituindo os negócios celebrados, entrando na essência dos fatos, para cobrar o tributo e a penalidade porventura devida, e ao final, retira-se do cenário, deixando um rastro de subjetivismo e insegurança jurídica que abala e desestimula a iniciativa privada a investir em novos negócios, o que diretamente afeta a economia brasileira.

5 EXEMPLO PRÁTICO PARA DEMONSTRAR OS EFEITOS DO PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO PARA AS EMPRESAS Para que se possa ter uma noção da essencialidade do planejamento tributário para a economia das empresas, necessária se faz uma simulação entre as três formas mais utilizadas para a tributação das empresas, quais sejam apuração pelo Lucro Real, pelo Lucro Presumido e pelo Simples Nacional, observando os parâmetros abaixo definidos: a) Empresa que pretenda atuar no ramo de prestação de serviços; b) Local do estabelecimento: Belo Horizonte/Minas Gerais; c) Alíquota de ISSQN: 5% (cinco por cento); d) Faturamento anual de R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais); e) Os serviços prestados sujeitar-se-ão à presunção de 32% (trinta e dois por cento) para o Lucro Presumido; f) A tabela dos impostos do simples nacional considerada será a seguinte:

TABELA DO SIMPLES NACIONAL ANEXO III (Vigência a Partir de 01.01.2012) Alíquotas e Partilha do Simples Nacional - Receitas de Locação de Bens Móveis e de Prestação de Serviços

9 Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos: I - tratando-se de situação de fato, desde o momento em que o se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios; II - tratandose de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos de direito aplicável. Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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Os valores estabelecidos no faturamento estão de acordo com o planejado para o período de um doze meses, visto que o objetivo aqui é verificar por qual regime de tributação a empresa deve optar, objetivando a redução da incidência de tributos. Primeiramente, foi calculado o imposto devido pelo método do Lucro Real, com base nos mesmos parâmetros de faturamento anual. Estes impostos foram calculados com base nas alíquotas do Lucro Real que, para o PIS: 1,65%, COFINS: 7,6% e ISSQN: 5%, visto que foi estipulada referente à prestação de serviços em Belo Horizonte/Minas Gerais (tomou-se a maior alíquota vigente para este município). Também foi considerado não haverem despesas dedutíveis na base de cálculo dos impostos, tendo em vista a atividade de presta-

ção de serviços. No Lucro Real, a base de cálculo é o Lucro auferido pela empresa durante o período de apuração, grosso modo: receitas – despesas = lucro (este seria a base de cálculo dos impostos, e não o faturamento da empresa). Após o cálculo do Lucro Real, foram analisados os cálculos caso a empresa optasse pelo regime de tributação: Lucro Presumido. As alíquotas utilizadas são de 0,65% para o PIS, 3,0% para o COFINS e também 5% para o ISSQN, pelos mesmos motivos. O cálculo do IR e CSLL, diferente do Lucro Real, é apurado sobre o faturamento da empresa. Considerando os parâmetros definidos, far-se-à simulação entre a tributação pelo Lucro Real, Lucro Presumido e pelo Simples Nacional, conforme quadros abaixo:

Pelos dados apresentados, o empresário poderá optar pela tributação que se lhe apresente mais vantajosa. No exemplo acima, a forma de tributação menos onerosa será pelo simples nacional, que representará uma economia de:

6 Estudo de caso

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O Acórdão escolhido para o exame objeto deste artigo foi o de no. 106-14.244 de 20/10/2004 (Anexo I), no qual um consagrado treinador de futebol era sócio controlador da L. F. Promoções, Serviços e Representações Ltda., constituída em 1996, e durante o ano de 1999 foi contratada pela Sociedade E. P. para o treinamento da equipe profissional de futebol e supervisão de todas as equipes amadoras, com participação obrigatória do referido treinador. A fiscalização considerou que o contrato foi ajustado de forma

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simulada, através da interposição de pessoa, tendo em vista que o verdadeiro prestador e serviços era a pessoa física do treinador e não a pessoa jurídica. Assim, o negócio jurídico simulado foi realizado entre o clube e a pessoa jurídica, mas com o objetivo de dissimular a existência do verdadeiro negócio jurídico, que foi ajustado entre o clube de futebol e a pessoa física do treinador. Em função disso, a fiscalização exigiu o imposto de renda da pessoa física, incidente sobre os rendimentos reconhecidos e tributados ela pessoa jurídica, com os acréscimos de multa e juros, sob o argumento de que teria ocorrido omissão de rendimentos, por ter a pessoa física deixado de incluir em sua declaração de rendimentos o valor da remuneração pela prestação de serviços que havia sido contratada apenas formalmente com a pessoa jurídica. O Relator refutou a alegação de que a L. F. Promoções seria uma sociedade civil tributável como pessoa jurídica, afirmando que tais sociedades seriam apenas aquelas cujos sócios tenham a mesma profissão regulamentada e exerçam atividades por conta e em nome da sociedade civil. Como a atividade de treinamento esportivo não é profissão regulamentada, a L. F. Promoções não poderia ser considerada sociedade civil sujeita ao imposto de rerenda das pessoas jurídicas. A 6a Câmara do 1o. Conselho de Contribuintes considerou procedente os trabalhos fiscais no caso concreto, por entender que os serviços prestados possuíam caráter pessoal, exercido pela pessoa física do sócio, e não pela sociedade constituída. Entendeu também que não seria o caso de simulação por falta de conluio entre a L. F. Promoções e o Palmeiras. Porém, a mesma Câmara não concordou com a aplicação da multa agravada de lançamento de ofício, sob o argumento de não ficar configurada a simulação alegada pela fiscalização. A questão permanece controversa nesta Câmara, uma vez que a decisão só foi favorável à Fazenda pelo voto de desempate de seu presidente a favor da Receita, placar final de 5 a 4. Neste sentido, obtempera Hugo de Brito MACHADO (2007, p.116) considera que o Acórdão em estudo é desprovido de validade jurídica, e ressalta que o propósito de pagar menos imposto não pode ser motivo para a desconsideração da personalidade jurídica. Alega ainda que o objetivo do fisco é sempre o de dificultar a opção pela forma menos onerosa de tributação pelo contribuinte, relembrando que já houve época em que o lucro distribuído pelas pessoas era tributado como rendimento dos sócios da pessoa jurídica como pessoa física. Nestas ocasiões, o Fisco não se opunha à constituição de pessoas jurídicas. Ocorre que esta regra mudou: os lucros distribuídos já não são tributados como rendimentos da pessoa física que os recebe. O referido autor ainda lembra que questão de ser ou não vantagem operar como pessoa física, ou como pessoa jurídica, não pode justificar a imposição desta ou daquela forma de tributação. Reflete ainda que o cidadão tem a liberdade de escolher o que lhe seja mais vantajoso, inclusive do ponto de vista tributário, desde que o faça licitamente, vale dizer, sem violação da lei. Ainda Hugo de Brito Machado (2007, p. 118) ressalta que, após a Lei 11.196, em seu artigo 129, as atividades de prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com a designação de quaisquer obrigações a sócios, serão tributadas na pessoa jurídica, somente se permitindo a desconsideração da personalidade jurídica para fins fiscais e previdenciários nos casos previstos no artigo 50 do Código Civil, ou seja, quando houver desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o que não se verificou no caso concreto. O autor Ives GANDRA (2007, p. 148) ressalta que as normas dos artigos 170 e 174 da Constituição Federal permitem que as soluções empresariais sejam as mais variadas possíveis, sendo vedado ao Estado obstacularizar atividade lícita, seja ela qual for, o

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que evidencia o crescimento do direito privado alimentado pela necessidade de redução de custos, despesas e encargos em face da competitividade do mundo moderno, in verbis: Artigo 170. (...) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemene de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Artigo 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Ressalta ainda que a arrecadação fora dos limites suportáveis pela sociedade representa afronta ao artigo 170 da Constituição Federal supra mencionado e, ao mesmo tempo, não promove a solidariedade ou os valores sociais, impedindo que os princípios constitucionais que formam e conformam o Estado Brasileiro possam ser implementados na íntegra, da maneira em que foram idealizados pelo legislador constituinte à época. Ainda Ives GANDRA (2007, p. 151) conclui que o planejamento tributário resta plenamente válido no direito brasileiro, principalmente em sua vertente constitucional, não se admitindo para o uso deste a conivência com o abuso de direito e de personalidade jurídica, bem como da fraude à lei. A conclusão de Sacha CALMON (2007, p. 371) segue o raciocínio dos ilustres autores acima citados, senão vejamos: A nosso sentir, portanto, a decisão do Conselho de Contribuintes Federal consubstanciado no Acórdão no. 106-14.244 é equivocada, posto que afronta a liberdade de contratar e não reconhece como lídimo um modelo societário que é plenamente válido à luz da legislação pátria, em especial a tributária. O artigo 129 da Lei no. 11.196/05, portanto, como norma interpretativa dirigira à fiscalização, deve ser observado pelos fiscais da SRF e da SRP, os quais devem – agora por imperativo legal expresso (a nosso sentir, repise-se, desnecessário) – admitir a validade das sociedades simples e empresárias constituídas para a prestação de serviços intelectuais em caráter personalíssimo. 7 Conclusão A realização deste estudo demonstra o quão importante é a elaboração de um planejamento tributário, pois são itens que com certeza, se não analisados a tempo, poderiam gerar um péssimo resultado, e é por consequência disso que muitos empresários chegam a praticar atos ilícitos com relação aos tributos, visando à sonegação fiscal. Um planejamento tributário eficiente ajudará o empresário na análise das informações geradas pela própria empresa, possibilitando um correto enquadramento fiscal, auxiliando na economia de impostos, além de dar suporte para a tomada de decisão. Cabe ao profissional das Ciências Contábeis e do Direito conhecer a legislação tributária, além de entender as peculiaridades da atividade da empresa, de modo a apontar as várias opções à disposição da administração, diante de cada situação analisada. Diante desse contexto, torna-se indispensável a utilização do planejamento tributário, uma ferramenta fundamental para a empresa manter a sua competitividade no mercado. Competitividade sim, pois mesmo que, na maioria das vezes, quem reclama da alta carga tributária sejam os empresários, quem deveria reclamar seria o consumidor, pelos aumentos excessivos da mercadoria/serviço. Com o auxílio deste planejamento, resultaria obviamente em economia tributária, é aí que o empresário ganha, pois poderá oferecer os mesmos produ-

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tos ou serviços com menor preço. Para um planejamento tributário eficiente, necessário se faz o estudo individualizado de cada caso, evitando padronizações e generalização de estratégias por setor ou faturamento. A avaliação da relação custo/benefício por parte do profissional, deve ser feita com ponderação e sempre em conjunto com a administração da empresa, perseguindo seus objetivos de forma lícita, respeitando a Constituição da República de 1988, o Código Tributário Federal, e as demais legislações vigentes no país. Referências ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 10a. ed., São Paulo: Método, 2016. ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Imposto de renda das empresas. 5. ed., São Paulo : Atlas, 2008. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 13. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015. CASSONE, Vittorio. Processo Tributário: teoria e prática. 6. Ed., São Paulo: Atlas, 2005.

apresentação dos trabalhos acadêmicos : padrão Newton Paiva. / Elaborado pelo Núcleo de Bibliotecas: Centro Universitário Newton Paiva. Belo Horizonte, 2011. ANEXO I Acórdão: 106-14244 Número do Processo: 11020.003823/2003-26 Data de Publicação: 20/10/2004 Contribuinte: LUIZ FELIPE SCOLARI Relator(a): José Ribamar Barros Penha Ementa: IMPOSTO DE RENDA DAS PESSOAS FÍSICAS - São rendimentos da pessoa física para fins de tributação do Imposto de Renda aqueles provenientes do trabalho assalariado, as remunerações por trabalho prestado no exercício de empregos, cargos, funções e quaisquer proventos ou vantagens percebidos tais como salários, ordenados, vantagens, gratificações, honorários, entre outras denominações. Decisão: Pelo voto de qualidade, em preliminar, RECONHECER a inexistência de simulação, e, no mérito, DAR provimento PARCIAL ao recurso para: a) excluir da base de cálculo os valores recebidos a título de pro-labore; b) desqualificar a multa de ofício; e c) considerar, na liquidação do crédito tributário, os valores recolhidos pela pessoa jurídica relativos aos rendimentos da pessoa física.

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 14. ed., São Paulo: Forense, 2015. GALUPPO, Marcelo Campos. Da ideia à defesa. – Monografias e Teses Jurídicas. 2. ed., Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.

BANCA EXAMINADORA: tatiana maria o. prates motta (orientadora) marco túlio c. figueiredo (examinador 1) paula maria tecles lara (examinadora 2)

LOVATTO, Alecio Adao. Crimes Tributários : aspectos criminais e processuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30. ed., São Paulo: Malheiros, 2015. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 37. ed., São Paulo: Malheiros, 2016. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto, relatório, publicações e trabalhos científicos/Marina de Andrade Marconi, Eva Maria Lakanos. 7. ed. – 5. reimpr. – São Paulo: Atlas, 2010. SABBAG, Eduardo. Elementos do Direito Tributário. 8. ed., São Paulo: Premier Máxima, 2005. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2015. YAMASHITA, Douglas (Coord). Planejamento Tributário à luz da jurisprudência. São Paulo: Lex Editora, 2007. PINTO, Grazielle Reis de Morais. Evasão Fiscal: referente ao ICMS no transporte ilegal de passageiros no âmbito intermunicipal no Estado de Minas Gerais. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, edição 21, out. 2013. Disponível em <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=1479> Acessado em 10/06/2016. Oliveira, Elma Aparecida de (Coord). Manual para elaboração e

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LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO NAS AÇÕES DE ALIMENTOS AVOENGOS PROCEDURAL ALIMONY ACTIONS WHICH INVOLVES PASSIVE CO-DEFENDANT GRANDPARENTS Rayane Caywre Ferreira1

RESUMO: A obrigação alimentar avoenga, em se tratando de hipótese de extensão da obrigação alimentar prevista nos artigos 1.696 e 1.698 do Código Civil de 2002, é alvo de grande discussão em relação à necessidade de formação de litisconsórcio passivo nas demandas em que os avós figurem como devedores de alimentos. O Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido de que a previsão de chamamento dos demais avós do alimentando ao processo constitui imposição legal de litisconsórcio passivo necessário, tendo em vista a inovação trazida pelo novo código e a priorização da garantia de que o alimentando tenha satisfeitas suas necessidades. O presente artigo visa elucidar a importância do litisconsórcio passivo necessário nas ações de alimentos avoengos, não apenas como forma de garantia da obrigação, mas como meio de preservação da dignidade de todos os sujeitos envolvidos na demanda, tornando mais efetiva a proporcionalidade empregada no binômio necessidade/possibilidade. PALAVRAS-CHAVE: Alimentos. Avós. Litisconsórcio. Necessário. Subsidiariedade.

ABSTRACT: The hypothesis of extending the obligation for child support payments to grandparents is foreseen in the 2002 Brazilian Civil Law Code article numbers 1.696 and 1.698, which causes a huge argument in relation to the necessity of finding grandparents responsible for the child support payments. The Brazilian Supreme Court established its understanding that holding the grandparents responsible is legal due to the innovation brought by the new Brazilian Civil Law Code due to the prioritization of guaranteeing that the child has its needs met. The main purpose of this term paper is to clarify the importance of holding the grandparents responsible for child support payments, not only as a form of guarantee and obligation, but with the idea of preserving the dignity of all involved in the demand, becoming even more effective the proportionality used in the binomial need/possibility. KEYWORDS: Child Support. Grandparents. Joinder. Needed. Subsidiarity.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Da Obrigação Alimentar. 2.1 Características gerais. 2.2 Binômio alimentar. 2.3 Sujeito ativo e sujeito passivo. 3 Princípios Norteadores. 3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 3.2 Princípio da solidariedade social e familiar. 4 Aspectos Processuais das Ações de Alimentos. 5 Litisconsórcio. 5.1 Noções gerais. 5.2 Litisconsórcio passivo necessário. 5.2.1 Hipóteses de cabimento. 6 Obrigação Alimentar Avoenga. 6.1 Conceito e previsão legal. 6.2 Natureza jurídica. 7 Igualdade. 8 Vulnerabilidade Econômica do Idoso. 9 Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 10 Conclusão. Referências.

1 Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO A importância da obrigação alimentar traz à baila diversas discussões sobre formas de garantia de seu cumprimento, dentre elas a necessidade de formação de litisconsórcio passivo nas ações de alimentos avoengos, levando-se em consideração a ótica da obrigação assistencial familiar prevista pela Constituição Federal de 1988, em seus artigos 227 e 229. Além disso, crucial é a análise dos artigos 1.696 e 1.698 do Código Civil de 2002, que prevêem a extensão da obrigação alimentar aos ascendentes, quando esta não puder ser suportada pelo parente que a deve em primeiro lugar, no caso, os pais. Diante da relevância da obrigação alimentar, ajustes foram feitos para que seja de fato prestada e, a partir disso, surgiu a possibilidade de extensão desta obrigação aos ascendentes em linha reta de segundo grau do alimentando. Em razão disso, far-se-á uma análise da natureza subsidiária da obrigação alimentar quando atribuída aos avós e a importância da intervenção de todos os ascendentes desta classe, com vistas a garantir a assistência de que o alimentando necessita, em atenção à possibilidade de fracionamento da obrigação que está sendo apreciada. Em um primeiro momento, a atenção será voltada à obrigação alimentar, abordando-se a conceituação, as características gerais, o binômio alimentar e os sujeitos que integram a relação, como forma de contextualização. Em seguida, a abordagem se concentrará em uma análise principiológica, notadamente do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da solidariedade social e familiar, vez que consistem em princípios basilares para a constituição da relação obrigacional. Ademais, serão analisados os aspectos processuais das ações de alimentos, como forma de esclarecimento do trâmite especial atribuído a esse tipo de ação, seguida por explanações acerca do litisconsórcio e, mais especificamente, sobre o litisconsórcio passivo necessário, que compreende o tema central do artigo. Além disso, tratar-se-á da obrigação alimentar avoenga, em que consiste e a sua natureza jurídica, seguida da abordagem da igualdade, sob o prisma constitucional, relacionando-a a isonomia material necessária na instituição da obrigação alimentar avoenga. De mais a mais, faz-se necessário versar sobre a vulnerabilidade econômica a que os idosos, em sua maioria, são expostos, haja vista que, por se tratar de auxílio no sustento do alimentando, é imprescindível que se observe a disponibilidade de recursos dos avós, de modo a não prejudicar-lhes o próprio sustento. Por fim, o tema será abordado sob o prisma da jurisprudência do STJ, que faz uma análise da previsão contida no Código Civil de 2002 e ressalta a necessidade de formação do litisconsórcio passivo para que se obtenha maior sucesso na satisfação da obrigação alimentar. Desse modo, apreciar-se-á a obrigação alimentar, de um modo geral, a necessidade da composição do polo passivo por todos os avós do alimentando e os precedentes do STJ que abordam esta temática. 2 DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR A obrigação alimentar apresenta-se como uma respeitável obrigação tratada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo abordada por diversos diplomas legais, especialmente o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O Código Civil possui um capítulo específico para tratar dos alimentos, concentrado nos artigos 1.694 a 1.710, e traz a definição de seu conteúdo no artigo 1.920, estabelecendo que “o legado de alimen-

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tos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor” (VENOSA, 2013, p. 371). Nesse sentido, os alimentos são vistos como um direito essencial, que visa garantir o sustento daqueles que são determinados por lei como alimentandos e não conseguem prover a própria subsistência, de forma a proteger sua dignidade. Segundo as lições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 673), “em concepção jurídica alimentos podem ser conceituados como tudo o que se afigurar necessário para a manutenção de uma pessoa humana, compreendidos os mais diferentes valores necessários para uma vida digna”. Desse modo, os alimentos constituem um direito que vai além do parentesco e atinge o objetivo constitucional de garantir uma vida digna a todo e qualquer ser humano, incluindo despesas ordinárias e extraordinárias (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 673). Ademais, Venosa (2013, p. 373) ressalta a importância de se distinguir que o ordenamento jurídico reconhece que o dever de alimentar decorre não só do parentesco, mas também do âmbito conjugal, em razão do dever de assistência mútua entre cônjuges e companheiros. Nessa mesma linha de raciocínio, há distinção doutrinária entre obrigação alimentar e dever alimentar, sendo a primeira decorrente do poder familiar, ou seja, aquela devida pelos pais aos filhos; enquanto o segundo abrange uma obrigação recíproca existente entre cônjuges, companheiros ou outros parentes que não se enquadram no poder familiar (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 694). 2.1 Características gerais As principais características da obrigação alimentar são: caráter personalíssimo, reciprocidade, proximidade, irrenunciabilidade, irrepetibilidade, incompensabilidade, impenhorabilidade, transmissibilidade, imprescritibilidade, anterioridade, atualidade, futuridade, condicionabilidade, divisibilidade, incessibilidade, alternatividade, não transacionável e periodicidade (BERALDO, 2012, p. 18). Sendo assim, em uma sucinta análise, a obrigação alimentar é: Personalíssima: trata-se de um direito pessoal, que visa garantir o sustento do alimentando, não podendo ser cedida; Recíproca: os parentes, cônjuges e companheiros podem pedi-la uns aos outros, conforme artigos 1.694 e 1.696 do Código Civil, podendo figurar como devedor ou credor, desde que não seja de forma simultânea; Próxima: o artigo 1.696 do Código Civil estabelece que tal obrigação deverá recair sobre os parentes que possuam grau de parentesco mais próximo. Irrenunciável: segundo o artigo 1.707 do Código Civil, o credor, ainda que não exerça, não pode renunciar o direito a alimentos; Irrepetível: o devedor não tem o direito de pleitear a restituição do valor que tenha sido pago a maior ou de maneira indevida; Incompensável: não pode o alimentante requerer a compensação de valores devidos pelo alimentando no valor pago a título de alimentos; Impenhorável: não pode, em regra, ser objeto de penhora, conforme prevê o já mencionado artigo 1.707 do Código Civil. Transmissível: “transmite-se aos herdeiros do devedor” (artigo 1.700, CC/02); Imprescritível: pode ser requerida a qualquer momento, já que não ocorrerá a prescrição do direito aos alimentos, o que se difere da prescrição do direito à cobrança dos alimentos, que ocorre em dois anos a contar da data de vencimento, conforme artigo 206, §2º do Código Civil; Anterior: deve ser paga de forma antecipada e no início do mês correspondente;

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Atual: conforme artigo 1.710 do Código Civil, questões inflacionárias não podem interferir no valor dos alimentos de modo a retirarlhe a função; Futura: não pode ser requerida para períodos passados, apenas para o futuro. Condicionada: necessária a observância da necessidade do alimentando e da possibilidade do alimentante; Divisível: pode ser dividida entre os coobrigados na medida de suas possibilidades; Incessível: não pode ser objeto de cessão, seja onerosa ou gratuita; Alternativa: sendo possível que seja prestada em pecúnia ou in natura, a depender de como fora fixada. Não transacionável: não há possibilidade de transacionar a verba objeto da obrigação; Periódica: cumprida com intervalos preestabelecidos para que as necessidades do alimentando possam ser atendidas. 2.2 Binômio alimentar A fixação de alimentos, segundo determina o Código Civil, deve observar a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante, o que usualmente é denominado como binômio alimentar ou binômio possibilidade/necessidade, através do qual se busca uma proximidade de fixação justa do valor devido a título de alimentos. O binômio em análise está previsto expressamente pelos artigos 1.694, §1º, e 1.695, ambos do Código Civil, que impõem limites à fixação dos alimentos, com vistas a se preservar a integridade financeira do alimentante e garantir, simultaneamente, o sustento do alimentando, de modo que seja atingido o objetivo sem causar ônus excessivos ao devedor dos alimentos. Assim, resta claro que o legislador se preocupou em estabelecer como pressuposto para a fixação de alimentos a combinação do sustento do alimentando e o não prejuízo ao sustento do alimentante, de forma a manter amparada a dignidade vital de ambos. Nesse norte, Caio Mário da Silva Pereira (2013) entende que: Os alimentos hão de ter, na devida conta, as condições pessoais e sociais do alimentante e do alimentado. Vale dizer: serão fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. Não tem cabida exigi-los além do que o credor precisa, pelo fato de ser o devedor dotado de altas posses; nem pode ser este compelido a prestá-los com sacrifício próprio ou da sua família, pelo fato de o reclamante os estimar muito alto, ou revelar necessidades maiores (§1º do art. 1.694). (PEREIRA, 2013, p. 585) Destarte, vislumbra-se que os alimentos devem ser fixados de forma proporcional, levando-se em consideração a disponibilidade do alimentante e a necessidade do alimentando, atingindo-se, assim, o objetivo constitucional de proteger e garantir a dignidade de cada indivíduo. 2.3 Sujeito ativo e sujeito passivo Inicialmente, importa ressaltar que o sujeito ativo da obrigação alimentar, credor dos alimentos, é denominado alimentando; ao passo que, o sujeito passivo, devedor dos alimentos, é denominado alimentante. Os sujeitos da obrigação alimentar são previstos por lei, especialmente pelo Código Civil, em seus artigos 1.694, 1.696 e 1.697, que elencam que podem ser pleiteados alimentos por parentes, cônjuges e companheiros, uns dos outros, recaindo a obrigação sobre ascendentes, descendentes e colaterais de 2º grau, e sobre cônjuges LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

e companheiros, em caso de dissolução da sociedade conjugal ou da convivência (DINIZ, 2010, p. 611 e 619). Ademais, em se tratando de obrigação recíproca, os sujeitos previstos pelo referido Código podem figurar tanto no polo passivo quanto no polo ativo, a depender do caso concreto, desde que isso não se dê de forma simultânea. 3 PRINCÍPIOS NORTEADORES Inicialmente, far-se-á a conceituação do que vem a ser princípio. Nas palavras de César Fiuza (2016): Princípios são, em palavras bem simples, normas gerais e fundantes que fornecem os pilares de determinado ramo do pensamento científico ou do ordenamento jurídico. Informam, portanto, o cientista ou o profissional do Direito. Daí o nome, princípios informadores, porque informam os fundamentos dos quais devemos partir. São gerais porque se aplicam a uma série de hipóteses, e são fundantes, na medida em que deles se pode extrair um conjunto de regras, que deles decorrem por lógica. (FIUZA, 2016, p. 747) Sendo assim, os princípios se apresentam como normas basilares, positivadas ou não, que são utilizadas para nortear determinado instituto. A obrigação alimentar, conforme entende a melhor doutrina: O fundamento da “prestação alimentar” encontra assento nos princípios da dignidade da pessoa humana, vetor básico do ordenamento jurídico como um todo, e, especialmente, no da solidariedade familiar. (STOLZE; PAMPLONA, 2012 p. 595) O pagamento desses alimentos visa à pacificação social, estando amparado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, ambos de índole constitucional. (TARTUCE, 2011, p. 1.147) Destarte, a obrigação alimentar encontra respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade social e familiar, ambos constitucionalmente previstos, conforme será abordado a seguir. 3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado pela melhor doutrina como um macroprincípio previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, que constitui fundamento do Estado Democrático de Direito e visa garantir direitos fundamentais, além de servir de norte para vários outros princípios (PEREIRA, 2013, p. 56). A essencialidade deste princípio em relação à obrigação de prestar alimentos resta evidenciada pelas regras legislativas, que prevêem que tal obrigação visa garantir a subsistência do credor, de forma a permitir-lhe uma vida digna, sem que isso prejudique a integridade do devedor. Nesse aspecto, são os dizeres de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015):

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Aplicando o princípio vetor constitucional no âmbito alimentício resulta que os alimentos tendem a proporcionar uma vida de acordo com a dignidade de quem recebe (alimentando) e de quem os presta (alimentante), pois nenhuma delas é superior, nem inferior. Nessa linha de ideias, resulta que fixar o quantum alimentar em percentual aquém do mínimo imprescindível à sobrevivência do alimentando ou além das possibilidades CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


econômico-financeiras do devedor ofende, de maneira direta, o princípio da dignidade humana. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 669) Outro não é o entendimento adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: ALIMENTOS. IMPRESCINDIBILIDADE DE VERBA ALIMENTAR PARA CONCLUSÃO DOS ESTUDOS. PENSÃO ALIMENTÍCIA DEVIDA. INTELIGÊNCIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Os alimentos são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si. Compreende o que é imprescindível à vida da pessoa como alimentação, vestuário, habitação, tratamento médico, estudo e lazer. O fundamento da obrigação de prestar alimentos a quem deles necessita decorre do princípio fundamental constitucional da solidariedade (art. 3º, I, da CR) e do princípio fundamental constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CR). (TJMG - Apelação Cível 1.0414.03.0030285/001, Relator(a): Des.(a) Maria Elza , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/01/2006, publicação da súmula em 21/02/2006). Sendo assim, nota-se que a dignidade da pessoa humana é o norte principal para a instituição da obrigação alimentar, visando garantir a dignidade de ambas as partes envolvidas, sem desamparar qualquer delas. 3.2 Princípio da solidariedade social e familiar Ao se tratar da obrigação de prestar alimentos, consequentemente, trata-se do princípio constitucional da solidariedade social e familiar, que é pautado pela reciprocidade existente entre as pessoas e que visa a imposição do dever de cuidado entre aqueles que tenham vínculo de parentesco. O princípio da solidariedade social está exposto no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, que prevê como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988). Tal princípio possui desdobramento no artigo 226 do mesmo diploma legal, já que para que se possa construir uma sociedade solidária é preciso que isso envolva a base da sociedade que, segundo o artigo mencionado, é a família, sendo este o passo inicial para que se atinja os objetivos constitucionais, razão pela qual a família é merecedora de especial proteção do Estado (PEREIRA, 2013, p. 59). Dessa forma, percebe-se que a solidariedade familiar, prevista pelos artigos 227, 229 e 230 da Constituição Federal, decorre da solidariedade social, visto que ambas visam proteger a pessoa humana (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 672). Assim, como bem apontado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 671), “a obrigação alimentar é, sem dúvida, expressão da solidariedade social e familiar (enraizada em sentimentos humanitários) constitucionalmente impostas como diretriz da nossa ordem jurídica”. Carlos Roberto Gonçalves (2014) explicita que: Malgrado a incumbência de amparar aqueles que não podem prover à própria subsistência incumba precipuamente ao Estado, este a transfere, como foi dito, às pessoas que pertencem ao mesmo grupo familiar, as quais, por um imperativo da própria natureza, têm o dever moral, convertido em obrigação jurídica, de prestar auxílio aos que, por enfermidade ou por outro motivo justificável, dele necessitem. (GONÇALVES, 2014, p. 158)

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Destarte, vislumbra-se que a obrigação alimentar é aliada da proteção da pessoa humana e, como tal, se afigura como direito social previsto no artigo 6º da Constituição, bem como nos já citados artigos 227, 229 e 230, servindo de amparo à pessoa humana, que será oferecido pelo próprio núcleo familiar. 4 ASPECTOS PROCESSUAIS DAS AÇÕES DE ALIMENTOS As ações de alimentos possuem rito especial de procedimento previsto pela Lei nº 5.478/1968, chamada de Lei de Alimentos, que visa garantir celeridade a essas ações, em razão da finalidade dos alimentos. Maria Berenice Dias (2015), a esse respeito, explica: Deixando o obrigado de alcançar espontaneamente os alimentos, é necessário que o credor tenha acesso imediato à justiça. Afinal, trata-se de crédito que visa garantir sua subsistência, sendo indispensável que a ação tenha rito diferenciado e mais célere. Esta é a proposta da Lei de Alimentos (L 5.478/68). Havendo prova do vínculo de parentesco ou da obrigação alimentar, é assegurado o uso de uma via especial para buscar o seu adimplemento. (DIAS, 2015, p. 607) Assim, é necessário que a parte autora apresente, no ato da propositura da ação, prova do parentesco ou da obrigação alimentar advinda do fim da sociedade conjugal ou do companheirismo, para que faça jus ao procedimento especial previsto pela Lei de Alimentos. A legitimidade para propor a ação de alimentos pertence ao alimentando que, se se tratar de menor ou incapaz, deverá ser representado ou assistido por quem detenha a sua guarda, sendo que o ajuizamento da ação dar-se-á por petição, solicitação verbal do interessado ou termo, podendo, ainda, ser proposta pelo Ministério Público em favor de criança, adolescente ou idoso. Ao passo que a legitimidade passiva pertence àquele que deve prestar alimentos. A competência interna é da Vara de Família, se houver, e nos termos do artigo 53, II, do Código de Processo Civil, o foro competente para processar e julgar as ações de alimentos é o de domicílio ou residência do alimentando, isso porque, nos dizeres de Farias e Rosenvald (2015, p. 746), “há uma presunção de que o alimentando, pela sua natural necessidade, teria dificuldades em promover a ação em local diverso do seu próprio domicílio ou residência”. A definição da competência e a desnecessidade de pagamento de custas, bastando a declaração de hipossuficiência por parte do alimentando, evidenciam a intenção do legislador de favorecer o credor dos alimentos, já que a sua insuficiência financeira é presumível. Ademais, a Lei de Alimentos, em seu artigo 1º, estatui que a ação de alimentos independe de distribuição prévia, sendo posteriormente determinada de ofício pelo juízo, bem como prevê, em seus artigos 2º e 3º, os requisitos da petição inicial, devendo esta atender também aos requisitos do artigo 319 e respeitar o valor da causa fixado pelo artigo 292, II, ambos do Código de Processo Civil. O juiz, em sede de despacho inicial deverá determinar o registro e a autuação da inicial, a designação de dia e hora para a audiência de conciliação, instrução e julgamento, a expedição de ofícios, a concessão da gratuidade judiciária, a citação do réu e notificação do autor a respeito da audiência única e, por último, mas não menos importante, fixar alimentos provisórios em favor do alimentando, a requerimento ou de ofício (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 751). De acordo com o artigo 5º da Lei de Alimentos, “o escrivão, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, remeterá ao devedor a segunda via da petição ou do termo, juntamente com a cópia do despacho

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do juiz, e a comunicação do dia e hora da realização da audiência de conciliação e julgamento” (BRASIL, 1968), ocorrendo a citação, em regra, por via postal, salvo quando encontradas dificuldades para encontrar o réu e se faz necessária citação por oficial de justiça ou, frustrada esta tentativa, por edital. Nos termos dos artigos 9º e 11 da Lei de Alimentos, em conjunto com o artigo 178, II do Código de Processo Civil, é crucial a intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica (custos juris) nessas ações. A audiência nas ações de alimentos é una, englobando a tentativa de conciliação das partes, a colheita de provas e o proferimento da sentença, devendo estar presentes autor e réu, acompanhados de seus representantes, sob pena de arquivamento no caso de ausência do autor ou revelia no caso de ausência do réu. Por fim, o artigo 15 da Lei de Alimentos estabelece que “a decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados” (BRASIL, 1968), o que possibilita o ajuizamento de ação revisional ou de exoneração de alimentos posteriormente, com pedidos e causas de pedir distintos da ação de alimentos, já que motivadas por novos fatores. 5 LITISCONSÓRCIO 5.1 Noções gerais Inicialmente, vale dizer que o litisconsórcio é tratado pelos artigos 113 a 118 do Código de Processo Civil e compreende a pluralidade de sujeitos em um dos polos da demanda, seja o ativo ou o passivo, o que se justifica pelo fato de ser o direito material tocante a mais de uma pessoa ou haver conexão entre os pedidos formulados pelos autores ou entre os pedidos opostos aos réus (THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 354). Ademais, o litisconsórcio pode ser ativo, quando há pluralidade de autores, passivo, quando há pluralidade de réus, ou misto, quando há pluralidade de réus e de autores; bem como pode ser inicial, quando ocorre juntamente com a propositura da ação, ou incidental, quando ocorre durante o curso do processo. Além disso, existe a possibilidade de que o litisconsórcio seja facultativo, que é a regra, nas hipóteses elencadas pelo artigo 113 do Código de Processo Civil, podendo haver, inclusive, limitação pelo magistrado com vistas a garantir a celeridade processual, quando é denominado multitudinário; ou necessário, que se dá por determinação legal e não pode ser dispensado (MONTENEGRO FILHO, 2016, p. 342/343). Por fim, o litisconsórcio poderá ser unitário ou não, afigurandose “unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes” (BRASIL, 2015), conforme assim disposto pelo artigo 116 do mencionado diploma legal. 5.2 Litisconsórcio passivo necessário O litisconsórcio passivo necessário consiste na espécie de litisconsórcio na qual as partes não têm a faculdade de formação de litisconsórcio passivo, de forma que o polo passivo da demanda deverá ser composto por todos os réus aos quais serão opostos os pedidos iniciais, vez que trata-se de uma imposição legal que deve ser respeitada. No entanto, embora a lei exija a formação do litisconsórcio passivo, a sentença não precisa ser, necessariamente, uniforme para todos os litisconsortes (THEODORO JÚNIOR, 2015, p.356). Merece destaque, ainda, o fato de que, se a sentença for profe-

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rida sem a formação do litisconsórcio passivo necessário, será considerada nula, quando deveria ser uniforme para todos os litisconsortes que deveriam integrar o polo passivo, ou ineficaz em relação àqueles litisconsortes que não foram citados, cabendo ao magistrado determinar que a parte autora proceda ao requerimento da citação dos demais litisconsortes, com observância do prazo definido, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito (artigo 115 do CPC). 5.2.1 Hipóteses de cabimento

O litisconsórcio passivo necessário é exigido quando ocorrer qualquer das situações elencadas pelo artigo 114 do Código de Processo Civil, quais sejam: por disposição de lei; quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes. Nesse norte, tem-se que, em observância ao artigo 117 do Código de Processo Civil, os litisconsortes serão tratados como litigantes distintos, tendo em vista se tratar de caso de litisconsórcio unitário, de modo que os atos e omissões de uns não poderão causar prejuízos a outros, mas poderão causar-lhes benefícios. Ainda nesse sentido, tem-se que o litisconsórcio passivo necessário ora tratado se enquadra na hipótese de exigência de formação de litisconsórcio justificada por disposição legal, sendo necessário que todos os litisconsortes, no caso os avós, sejam citados para integrar a relação processual. 6 OBRIGAÇÃO ALIMENTAR AVOENGA 6.1 Conceito e previsão legal A obrigação alimentar avoenga consiste no dever atribuído aos avós de prestar alimentos aos seus netos, em observância aos já famigerados princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da solidariedade social e familiar. Assim, tem-se hipótese de extensão do dever de prestar alimentos a ascendentes, que pode ser justificada pela ausência dos ascendentes de primeiro grau em linha reta, que são os pais, ou pela insuficiência financeira destes, que não são capazes de prestar alimentos sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família. A esse respeito, Farias e Rosenvald (2015) defendem que: De regra, os alimentos devem recair, prioritariamente, sobre os pais ou os filhos (parentes na linha reta, no primeiro grau). Entretanto, não havendo parente no primeiro grau na linha reta ou, caso exista, não tendo condições de atender a todas as necessidades básicas de quem pede os alimentos, admite-se que a cobrança seja dirigida aos parentes em graus subsequentes (avós e netos, bisavôs e bisnetos...), à luz da reciprocidade alimentar. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 721-723) A obrigação alimentar sob análise encontra respaldo no artigo 227 da Constituição Federal:

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Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988) O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nesta mesma CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


com a obrigação em relação à prole. O reiterado inadimplemento autoriza à propositura de ação de alimentos contra os avós, mas não é possível cobrar deles o débito dos alimentos. Não cabe intentar contra os avós execução dos alimentos não pagos pelo genitor, o que seria impor a terceiro o pagamento de dívida alheia. (DIAS, 2015, p. 588)

linha, prevê: Art. 4. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990) No Código Civil, está prevista nos artigos 1.696 e 1.698, que assim dispõem: Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. (BRASIL, 2002)

Conclui-se, a partir disso, que não se pode aliar a possibilidade de chamamento dos avós ao processo para que complementem a obrigação à possibilidade de que estes arquem com despesas já existentes, até porque uma das características da obrigação alimentar é a futuridade e, além disso, não há razões para que se atribua aos avós o pagamento de débito relativo a pensionamento que não lhes diz respeito. Corroborando com o já exposto, o Enunciado 342 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, elucida:

Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide. (BRASIL, 2002)

Observadas as suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não-solidário, quando os pais destes estiverem impossibilitados de fazê-lo, caso em que as necessidades básicas dos alimentandos serão aferidas, prioritariamente, segundo o nível econômico-financeiro dos seus genitores. (BRASIL, 2016)

Desse modo, conclui-se que a obrigação alimentar avoenga trata-se de uma medida excepcional para que se alcance o cumprimento do dever de prestar alimentos, ainda que os pais não estejam em condições de fazê-lo e desde que isso seja provado ao longo da ação de alimentos. 6.2 Natureza jurídica A natureza jurídica da obrigação alimentar avoenga, em interpretação aos dispositivos legais anteriormente transcritos que tratam sobre o tema, se apresenta como sucessiva, subsidiária e complementar. Isso porque a obrigação alimentar só será extensiva aos avós em casos excepcionais, vez que, em regra, a obrigação alimentar recai sobre os pais do alimentando, em razão do poder familiar. Logo, se restar cabalmente comprovado nos autos da ação de alimentos que o devedor que deveria prestá-los não tem condições de arcar com a obrigação sem que isso afete o seu sustento ou o sustento de sua família, a obrigação poderá alcançar aos avós, de forma a complementar aquilo que não puder ser prestado por quem deveria fazê-lo. Nessa perspectiva, Maria Cecília Nelson da Silva (2014) concluiu: Dessa feita, conclui-se que a obrigação alimentar dos avós é subsidiária e complementar quando ficar comprovada que os pais não conseguem manter a subsistência dos filhos. Caso não haja comprovação dessa insuficiência, os avós serão exonerados do encargo. Assim, é imprescindível destacar que os dispositivos legais que asseguram essa obrigação devem ser cumpridos, de forma a não prejudicar a conservação de vida do progenitor e assegurar a manutenção da vida dos netos. (SILVA, 2014) Na mesma linha de raciocínio, Maria Berenice Dias (2015) explica: Os avós são chamados a atender a obrigação própria decorrente do vínculo de parentesco, tratando-se de obrigação sucessiva, subsidiária e complementar. Em face da irrepetibilidade dos alimentos, é necessária a prova da incapacidade, ou da reduzida capacidade do genitor de cumprir LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Nesse seguimento, Paulo Lôbo (2011) assevera: A razoabilidade está na fundamentação, por exemplo, da natureza complementar da obrigação alimentar dos avós, a saber, é razoável que estes apenas complementem os alimentos devidos pelos pais, quando estes não puderem provê-los integralmente, sem sacrifício de sua própria subsistência. Não é razoável que os avós sejam obrigados a pagar completamente os alimentos a seus netos, ainda quando tenham melhores condições financeiras que os pais. (LÔBO, 2011, p. 380) Desse modo, observa-se que para que seja razoável a fixação dos alimentos, quando a obrigação incumbir aos avós, deve ser levada em consideração a natureza jurídica da obrigação alimentar avoenga. 7 IGUALDADE A Constituição Federal de 1988 traz em seu texto várias previsões que visam garantir o direito à igualdade, como, por exemplo, os artigos 3º, incisos III e IV, 5º, caput e inciso I, 7º, incisos XXX e XXXI, 170, inciso VII, e 196. O direito à igualdade, também considerado princípio fundamental, tem um importante papel social e, em razão disso, é tratado de forma marcante também pela Declaração Universal de Direitos Humanos. A igualdade se divide entre a isonomia formal e a isonomia material, em que a formal, visa dar tratamento estritamente igual a todos os indivíduos, sem observância das suas distinções, enquanto a material visa tratar os desiguais na medida de suas desigualdades, de forma a alcançar mais plenamente a equiparação dos indivíduos (SILVA, 2014, p. 216-217). Nesse sentido, André Ramos Tavares (2013, p. 191) afirma que “cada qual tem uma situação própria, peculiar, a demandar cuidados específicos, que o Direito resguarda e tutela na medida de suas necessidades”. Isso porque, no Estado em que se busca a aplicação efetiva dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real, não se restringindo apenas àquela formalizada em face da lei (LENZA, 2015, p. 1.647).

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Ainda sob esse aspecto, Tavares (2013), defende que: Os elementos ou situações constitucionalmente arrolados (sexo, cor etc.), na realidade, relacionamse a ocorrências discriminatórias atentatórias de direitos fundamentais, muito comuns em determinadas épocas históricas, utilizadas indiscriminadamente e gratuitamente como forma de distinção e, o mais das vezes, punição. Foram situações de injustiça, que marcaram profundamente o espírito dos Homens, e que, por isso, o constituinte brasileiro pretendeu pôr a salvo os indivíduos para o futuro. Assim, a título exemplificativo, foi o caso da escravidão dos negros (distinção em função da raça), da submissão das mulheres (por força do sexo), e outros tantos casos. (TAVARES, 2013, p. 291) Assim, tem-se que o princípio da igualdade visa garantir a todos o tratamento merecido, dando a cada um o que lhe pertencer2. A esse respeito, a percepção de Kildare Gonçalves Carvalho (1999, p. 213) é no sentido de que “a ideia de igualdade se relaciona com a da própria justiça quando se trata de exigir de cada um aquilo que sua capacidade e possibilidade permitirem, e conceder algo a cada um, de acordo com os seus méritos (justiça distributiva)”. Em conseguinte, tendo em vista a importância da igualdade, não há como negar a sua atuação em todos os Poderes, de forma que será aplicada também no âmbito processual, como já afirmado por consagrados doutrinadores. Confira-se:

em estrita observância à disponibilidade financeira de cada qual, de forma a manter dignidade e sustento preservados. 8 VULNERABILIDADE ECONÔMICA DO IDOSO Em se tratando de obrigação alimentar a ser prestada pelos avós, há que se falar da vulnerabilidade econômica a qual os idosos, em sua maioria, são expostos. Embora os padrões da sociedade estejam em constante mudança e seja perceptível que atualmente não mais se pode atrelar necessariamente a velhice aos avós, estes ainda são majoritariamente idosos. Sob essa ótica, é importante destacar que muitos idosos enfrentam problemas financeiros, seja pela insuficiência dos benefícios que recebem, seja por problemas de saúde, seja por quaisquer outras questões, a maioria dos idosos não dispõem de recursos suficientes para garantir o cumprimento de uma obrigação alimentar. Daí a imprescindibilidade de ser analisado o caso concreto e dado o devido tratamento a cada um dos avós que integram o polo passivo da demanda, incumbindo ao magistrado averiguar a disponibilidade de recursos para que a fixação dos alimentos seja proporcional e viável o seu cumprimento. Hugo Rios Bretas, em sua brilhante obra O Idoso no Ordenamento Jurídico: Reflexões acerca das (in)congruências concernentes às definições teóricas do idoso (2014), explana: É possível abstratamente atribuir ao idoso, antes de um caso concreto, uma fragilidade econômica? Não. Certamente em diversos casos existe a miserabilidade em desfavor do idoso, porém, em recorrentes hipóteses não é vislumbrada a miserabilidade. Diante disso, se constatada for a vulnerabilidade econômica importante será o tratamento diferenciado. (BRETAS, 2014, p. 28)

A igualdade aplica-se, sobretudo, em face da atuação do Executivo, mas não apenas deste. Impõe-se, igualmente, como comando dirigido ao Legislativo e, também, ao próprio Poder Judiciário, no desenrolar do processo judicial (por ocasião do tratamento a ser dispensado a cada uma das partes). (TAVARES, 2013, p. 290) O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social. (MORAES, 2016, p. 99) Diante do exposto, a igualdade muito se relaciona com a obrigação alimentar, haja vista que o próprio legislador, no artigo 1.698 do Código Civil determina que, “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos” (BRASIL, 2002), que exterioriza a divisibilidade desta obrigação. A ser assim, resta demonstrado que a aplicação do direito à igualdade nas ações de alimentos avoengos é crucial para que os avós integrantes do polo passivo da demanda sejam tratados conforme a disponibilidade de recursos de cada um. Tem-se, portanto, a evidenciação de uma igualdade material, vez que a fixação dos alimentos a serem prestados pelo avós se dará

Assim, diante das vulnerabilidades que atingem os idosos, em especial a econômica, já que é a obrigação de auxiliar o sustento do alimentando que está sob análise, é inegável a necessidade de tratamento diferenciado aos avós devedores de alimentos que sejam idosos. Isso porque, conforme já debatido anteriormente, há que se respeitar a dignidade da pessoa humana em relação a ambos os sujeitos da obrigação alimentar, de forma a não sacrificar ou prejudicar o sustento de nenhum dos indivíduos envolvidos. Portanto, a fixação de alimentos avoengos deve ocorrer de forma cautelosa, para que não seja prejudicado o sustento do idoso ao qual será atribuída a obrigação, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. 9 PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A obrigatoriedade de formação de litisconsórcio passivo necessário nas ações de alimentos avoengos é motivo de divergência na doutrina e na jurisprudência pátria, sendo a parte final do artigo 1.698 do Código Civil interpretada por uns como hipótese de litisconsórcio passivo facultativo e por outros como hipótese de cabimento de litisconsórcio passivo necessário. A esse respeito, o Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ)

2 Segundo as lições de Celso Antônio Bandeira de Melo (1993, p.18), “com efeito, por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para atingir este bem, este valor absorvido pelo Direito, o sistema normativo concebeu fórmula hábil que interdita, o quanto possível, tais resultados, posto que, exigindo igualdade, assegura que os preceitos genéricos, os abstratos e atos concretos colham a todos sem especificações arbitrárias, assim proveitosas que detrimentosas para os atingidos”. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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sedimentou seu entendimento no sentido de que a obrigação alimentar avoenga comporta formação de litisconsórcio passivo necessário, in verbis: CIVIL. ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE DOS AVÓS. OBRIGAÇÃO COMPLEMENTAR E SUCESSIVA. LITISCONSÓRCIO. SOLIDARIEDADE. AUSÊNCIA. 1 - A obrigação alimentar não tem caráter de solidariedade, no sentido que “sendo várias pessoas obrigadas a prestar alimentos todos devem concorrer na proporção dos respectivos recursos.” 2 - O demandado, no entanto, terá direito de chamar ao processo os co-responsáveis da obrigação alimentar, caso não consiga suportar sozinho o encargo, para que se defina quanto caberá a cada um contribuir de acordo com as suas possibilidades financeiras. 3 - Neste contexto, à luz do novo Código Civil, frustrada a obrigação alimentar principal, de responsabilidade dos pais, a obrigação subsidiária deve ser diluída entre os avós paternos e maternos na medida de seus recursos, diante de sua divisibilidade e possibilidade de fracionamento. A necessidade alimentar não deve ser pautada por quem paga, mas sim por quem recebe, representando para o alimentado maior provisionamento tantos quantos coobrigados houver no pólo passivo da demanda. 4 - Recurso especial conhecido e provido. (STJREsp 658.139/RS, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 11/10/2005, DJ 13/03/2006, p. 326) CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. INSUFICIÊNCIA DOS ALIMENTOS PRESTADOS PELO GENITOR. COMPLEMENTAÇÃO. AVÓS PATERNOS DEMANDADOS. PEDIDO DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ENTRE AVÓS PATERNOS E MATERNOS. CABIMENTO, NOS TERMOS DO ART. 1.698 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. PRECEDENTES. I. Nos termos da mais recente jurisprudência do STJ, à luz do Novo Código Civil, há litisconsórcio necessário entre os avós paternos e maternos na ação de alimentos complementares. Precedentes. II. Recurso especial provido. (STJ- REsp 958.513/ SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 01/03/2011) O STJ baseou-se na alteração trazida em relação à hipótese de chamamento ao processo, já que o artigo 397 do Código Civil de 1916 dispunha que “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros” (BRASIL, 1916); ao passo que o artigo 1.698 do Código Civil de 2002 prevê que, “se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide” (BRASIL, 2002). Nessa sequência, embora a disposição do artigo 1.698 se trate aparentemente de uma faculdade, o STJ entendeu que o legislador pretendeu assegurar o cumprimento da obrigação alimentar, de modo a amparar o credor dos alimentos, o que pode ser interpretado como hipótese de litisconsórcio necessário dos avós do alimentando (tanto maternos quanto paternos). Do mesmo modo, Paulo Lôbo (2011) defende que: LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Assim, na ordem de classe, em primeiro lugar estão os pais (parentes em primeiro grau), depois os avós (parentes em segundo grau), e assim sucessivamente; entre os avós, supondo que os quatro estejam vivos, o valor dos alimentos é dividido proporcionalmente entre eles, de acordo com suas possibilidades. Mas, como entre os graus a relação é de complementaridade, os avós assumem proporcionalmente a parte dos alimentos que o genitor não guardião do filho menor (pai ou mãe) não puder suportar. Note-se que são devedores de obrigação proporcional e divisível todos os avós vivos, e não apenas os pais do genitor alimentante não guardião. Se o pai é o alimentante e seus pais são pobres, sem condições econômicas de complementar os alimentos devidos pelo primeiro, a responsabilidade recai sobre os avós maternos do alimentando. (LÔBO, 2011, p. 385) Sendo assim, resta patente que a formação do litisconsórcio passivo necessário visa a garantir o direito do devedor dos alimentos, para que sejam atendidas suas necessidades para viver de forma compatível com a sua condição social e para sua educação (artigo 1.694 do CC/02). Lado outro, além de garantir o cumprimento da obrigação alimentar, o litisconsórcio passivo necessário entre os avós resguarda também a dignidade vital destes, de forma que a obrigação é distribuída de acordo com a disponibilidade de recursos de cada um, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, o que atende a todas as exigências trazidas pela Constituição Federal e pelo Código Civil. 10 CONCLUSÃO A obrigação alimentar apresenta-se como um respeitável conteúdo tratado no ordenamento jurídico brasileiro, com previsão tanto na Constituição Federal, quanto na legislação infraconstitucional, de modo que devem ser empregados tantos métodos forem necessários para resguardá-la. Uma das possibilidades previstas pelo Código Civil, em seus artigos 1.696 e 1.698, é a extensão da obrigação alimentar aos ascendentes de grau imediato, que gera a denominada obrigação alimentar avoenga, pautada pelo princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da solidariedade social e familiar. O cerne da questão reside em analisar a necessidade da indispensabilidade da participação, não só dos que sejam ascendentes do sujeito passivo da obrigação que não conseguiu suportar o encargo alimentar sem prejudicar o seu próprio sustento e o de sua família, mas de todos os avós do alimentando na ação, de modo a viabilizar o equilíbrio na aplicação do binômio possibilidade/necessidade. O Superior Tribunal de Justiça firmou seu posicionamento no sentido de que nas ações em que se discute a obrigação subsidiária dos avós, há a necessidade de formação de litisconsórcio passivo entre os avós paternos e maternos do alimentando, que responderão, na medida de sua disponibilidade de recursos, pela fração da obrigação alimentícia que lhe foi atribuída por decisão judicial. Considerando a natureza subsidiária da obrigação alimentar avoenga, conclui-se que, por se tratar de uma prestação complementar, que só é utilizada quando o parente responsável pela obrigação não consegue suportá-la, afigura-se necessário o chamamento de todos os ascendentes de grau imediato e mesma classe para integrar a lide, de forma que tal obrigação seja fracionada entre os avós paternos e maternos na medida da disponibilidade de recursos de cada qual, com vistas a garantir a manutenção da dignidade vital. Desse modo, há que se dizer que o litisconsórcio passivo ne-

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cessário viabiliza uma maior garantia de que ocorrerá o pagamento dos alimentos devidos ao alimentando, o que preserva a intenção legislativa de resguardar tal direito, com observância da necessidade do alimentando e a possibilidade financeira dos avós, ora alimentantes, sem prejudicar-lhes o próprio sustento e o de sua família. Assim sendo, além de amplificar a possibilidade de recebimento dos alimentos, o litisconsórcio passivo estrutura de maneira mais justa a relação obrigacional em questão e, levando em consideração a disponibilidade de recursos de cada avô integrante do pólo passivo da demanda, distribui a obrigação de forma a tornar plausível o seu cumprimento.

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Banca Examinadora: Hugo Rios Bretas (Orientador) Daniel Guimarães Medrado de Castro (Examinador 1) Paula Maria Tecles Lara (Examinadora 2)

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DISCUSSÃO SOBRE O PORTE DE DROGAS EM AMBIENTE MILITAR: Aplicação dos princípios constitucionais e bens jurídicos tutelados A DISCUSSION ON DRUG POSSESSION IN A MILITARY ENVIRONMENT: The application of constitutional principles and protected legal assets Rodrigo Camões Diogenes de Carvalho¹

RESUMO: O objetivo do presente artigo é discutir a diferenciação entre a lei civil e militar no que se refere ao tipo penal de porte de drogas para consumo pessoal. Foi apresentado um breve histórico sobre a introdução das drogas na sociedade e sua subsequente criminalização através de leis internacionais chanceladas pela Organização das Nações Unidas. A legislação brasileira em matéria de entorpecentes, criada nos anos 60 e modificada com o passar do tempo, atualmente segue as tendências mundiais sobre tal temática, principalmente no que tange ao vício e seus respectivos tratamentos. Porém, a doutrina penal militar, traduzida pelo Código Penal Militar, não seguiu essa propensão, permanecendo estagnada desde sua publicação, na década de 60, principalmente no tocante à interpretação e aplicação penal quanto ao usuário militar de drogas. Discute-se neste artigo a questão da legalidade desta diferenciação, consubstanciada principalmente nos princípios constitucionais da proporcionalidade e insignificância e também sob a ótica dos bens jurídicos envolvidos. PALAVRAS-CHAVE: Bens jurídicos. Código Penal Militar. Drogas. Princípios Constitucionais.

ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the distinction between the civilian and military laws as regards to the type of penalty for drug possession for personal use. A brief history of the introduction of drugs in the society and its subsequent criminalization through international laws endorsed by the United Nations was presented. The Brazilian legislation on narcotics, which was created in the 60s and has been modified over time, currently follows the global trends on the above-mentioned subject, especially when it comes to the addiction and its respective treatments. However, the military criminal doctrine, translated by the Military Penal Code, has not followed this propensity, remaining stagnant since its publication, in the 60s, particularly with respect to the interpretation and criminal application concerning the military drug user. The question of the legality of this differentiation, based mainly on the constitutional principles of proportionality and insignificance and also from the perspective of legal assets involved is discussed in this article. KEY WORDS: Legal Assets. Military Penal Code. Drugs. Constitutional Principles.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 As drogas e sua ilicitude. 2.1 As regras mundiais sobre a questão das drogas. 2.2 A legislação brasileira em relação às drogas. 2.3 A lei penal aplicável em relação às drogas em ambiente militar. 3 O usuário de drogas e seu tratamento no direito brasileiro. 3.1 As Forças Armadas e o usuário de drogas em ambiente militar. 3.1.1 Características da profissão militar. 3.1.2 Os pilares das Forças Armadas. 3.1.3 O usuário de drogas em ambiente militar: a visão do Código Penal Militar. 4 O consumo pessoal de drogas em ambiente militar: discussões. 5 Conclusão. Referências.

¹ Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva; Oficial do Exército Brasileiro; Bacharel em Ciências Militares, pela Academia Militar das Agulhas Negras. LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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conflitantes, chegando-se a uma conclusão sólida e transparente sobre a temática em tela.

1 INTRODUÇÃO O presente artigo científico tem como justificativa para sua pesquisa, uma análise pormenorizada da discrepância entre a Lei 11.343/06 e o Código Penal Militar no que trata do porte para consumo pessoal de drogas. O novo panorama legislativo mundial afasta o tratamento do usuário de drogas como criminoso, sinalizando para a necessidade de tratá-lo e ajudá-lo a livrar-se da dependência química. Na doutrina militar, o usuário é tratado diferentemente do dependente comum, apenas por pertencer à classe militar, embora suas necessidades de atenção por parte do Estado são exatamente iguais ao dependente que está do lado de fora muros dos quartéis. Como objetivo, visualiza-se discutir a diferenciação entre civil e militar no que se refere ao tipo penal de porte para consumo pessoal de drogas. Como estudo de hipótese, analisa-se a possibilidade da aplicação do princípio constitucional da insignificância na questão do usuário de drogas em ambiente militar e quais seriam os bens jurídicos tutelados, sempre utilizando parâmetros comparativos com as legislações civis. Como metodologia, será utilizado o método dedutivo-indutivo, com ampla pesquisa bibliográfica, tanto em relação à evolução da legislação brasileira e mundial sobre a temática das drogas, quanto às particularidades da profissão militar e suas doutrinas, buscando justificativas para a diferenciação entre civil e militar no mundo jurídico. O ser humano tem uma longa história de convivência com as drogas. Substâncias entorpecentes foram usadas desde rituais de celebrações religiosas ou festivas, medicamentos para a cura de doenças, anestesias para dores, até para o prazer pessoal e alívio de sofrimentos emocionais. Será feita uma abordagem inicial sobre a história das drogas, sua evolução de uso pela sociedade, o início da ilicitude e suas consequências sob o aspecto familiar, legal, social, econômico e político. O combate ao uso e tráfico de entorpecentes inicia-se com três convenções internacionais da Organização das Nações Unidas: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988, conhecida como Convenção de Viena. A legislação brasileira em relação às drogas iniciou-se na década de 60, sofrendo diversas modificações com o passar do tempo, sempre se adaptando as mudanças de paradigmas da temática. Irá ser abordada a evolução cronológica das legislações brasileiras de drogas, traduzidas na Lei 6.368/76, Lei 10.409/02 e na Lei 11.343/06, atualmente em vigor. Também se fará alusão ao ordenamento militar em relação ao uso de drogas, traduzido pelo Código Penal Militar, em especial o Art. 290, que tipifica o crime de porte para consumo pessoal de drogas em ambiente militar. Um capítulo será reservado para os apontamentos das especificidades da profissão militar e sua missão constitucional. Além disso, os pilares basilares das Forças Armadas serão apresentados e explicados: a hierarquia e a disciplina. Será feita um adendo sobre o tratamento do usuário de drogas no contexto civil, sob o manto da Lei 11.343/06 e também acerca da visão do Código Penal Militar em relação ao usuário militar. Em linhas gerais, o último capítulo abordará o entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação ao usuário de drogas em ambiente militar, sob o manto dos princípios constitucionais e bens jurídicos tutelados. Também serão elucidadas visões de alguns juristas que discordam do posicionamento da Suprema Corte Brasileira. Ao final, serão feitos apontamentos em relação aos posicionamentos

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2 AS DROGAS E SUA ILICITUDE Segundo Antonio Escohotado (2000, p. 134), em seu livro “A história elementar das Drogas”: [...] data-se aproximadamente cinco mil anos atrás, o primeiro contato do homem com as drogas. A tribo centro-africana dos pigmeus notou que, após comer determinada planta, os animais perdiam o comportamento agressivo e apresentavam certa desorientação locomotora. Os membros da tribo começaram a consumir e venerar a árvore Tabernanthe iboga. Há milênios o ser humano conhece e consome drogas vegetais, derivadas de plantas, com fins medicinais, rituais tribais, porém somente no século XIX, tais plantas começaram a ser sintetizadas e estudadas em pesquisas laboratoriais. Mudanças socioeconômicas, aliadas ao fácil acesso, fizeram crescer o uso indiscriminado de drogas para fins recreativos, começando a causar dependência em seus usuários, além de doenças e conflitos de poder. No início do século XX, iniciaram-se proibições ao uso destas substâncias. Segundo Juçara Machado Sucar (2003, p.25): As substâncias psicotrópicas naturais, utilizadas em rituais de celebrações religiosas ou festivas, passaram a ser comercializadas e sintetizadas por grupos à margem da lei do Estado como forma de obtenção de lucro fácil e/ou para o financiamento de atividades ilícitas, chegando ao ponto de serem utilizadas em larga escala mundial, de maneira crescente, atingindo cada vez mais a faixa etária de menor idade. As palavras de Nereu Giacomolli (2008, p.03), corroboram a mudança de pensamento em relação à ilicitude das drogas: Mas, na contemporaneidade, a problemática não se situa mais, essencialmente, na ritualística religiosa, nos aspectos culturais e de protesto das décadas de 60 e 70. Diferentemente dessas décadas, na droga não mais se busca, com preponderância, a integração espiritual ou social; mas sim a maneira de sobreviver num mundo cada vez mais individualista, egoísta, competitivo, de produção e de consumo, onde tudo tem preço. Não mais se fala em solidariedade, em afetividade, em compreensão, em realização plena do ser humano, mas em poder, lucro e ganho. Com uma concordância entre a maioria dos países do mundo sobre a ilicitude a determinadas drogas, iniciam-se debates para a imposição de regras a respeito do assunto. 2.1 As regras mundiais sobre a questão das drogas A Organização Mundial de Saúde, órgão das Nações Unidas, responsável, dentre outras missões, pela saúde pública dos países, classificou, em 1960, as drogas em dois ramos: as drogas lícitas e as drogas ilícitas. No lado lícito, há a definição de droga como qualquer substância química natural ou artificial que tem a sua produção e seu uso permitido por lei, sendo liberadas para comercialização e utilização das pessoas. Já drogas ilícitas são substâncias proibidas de serem comercializadas, consumidas ou administradas em qualquer forma e

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espécie, previstas em lei. Essas drogas são proibidas devido à confirmação científica dos seus efeitos nocivos a saúde. A posição dos diversos países do mundo contra as drogas tornadas ilícitas foram expressas internacionalmente em três convenções das Organizações das Nações Unidas sobre o assunto, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou convenções anteriores e foi revisada através de um protocolo em 1972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988, conhecida como Convenção de Viena. A Convenção Única sobre os Entorpecentes de 1961 teve como objetivo principal substituir os acordos anteriores estabelecidos pelos países por um único. Segundo A.G. Lourenço Martins (1994, p.09):

e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. As duas primeiras já foram revogadas, sendo a Lei 11.343/06 atualmente em vigor no país, porém há de se comentar alguns aspectos sobre as primeiras leis para o entendimento geral do assunto. A Lei 6.368/76 foi elaborada sob uma forte influência da lei norte-americana de drogas da época, vigorando um forte rigor penal ao usuário e traficante de drogas ilícitas. Durante trinta anos esta lei ficou em vigor, assim tipificando o usuário de entorpecentes, em seu Art.16: Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 a 50 dias-multa. (BRASIL, 1976, p. 09)

A Convenção de 1961 também teve a finalidade de reduzir o número de organismos internacionais criados para o assunto drogas e assegurar o controle das matérias-primas das substâncias entorpecentes. Limita-se, exclusivamente, a fins médicos e científicos, a produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio e uso de determinadas drogas. Nas relações de comércio internacional, adotam um conjunto de medidas que impedem o desvio das substâncias para o mercado ilícito e aplicam disposições de caráter penal aos comportamentos violadores dos preceitos convencionais. A crítica mais aguda feita à Convenção Única sobre os Entorpecentes de 1961 foi em relação à fragilidade dos métodos de controle, em particular da ausência de poder coercitivo do Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes das Nações Unidas (OICE). O Protocolo de 1972 visava cobrir essa brecha, mas não obteve o sucesso esperado. O OICE continuou a não deter grandes poderes de inspeção e suas fontes de informação tendem a serem apenas as oficiais. A Convenção de 1988 teve como aspecto principal os efeitos devastadores e crescentes do tráfico de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas e seus respectivos reflexos na economia, política e cultura das nações. O tráfico de drogas é tratado como um problema primordial, requerendo uma maior cooperação internacional para seu combate. Em suma, estes diplomas internacionais pretendem restringir a fins exclusivamente médicos e científicos a produção, a distribuição e o consumo das substâncias e matérias primas ilícitas, mediante a criminalização de condutas relacionadas àquelas atividades que se realizem com quaisquer outros fins. 2.2 A legislação brasileira em relação às drogas A ilicitude de determinadas drogas foram oficializadas em 1961 no Brasil, com a adesão do país às determinações da Convenção Única sobre entorpecentes de 1961. Na história brasileira, três legislações são de grande importância para o entendimento da evolução da lei penal em relação à temática das drogas. São elas: A Lei 6.368/76 que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica; Lei 10.409/02 que dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencadas pelo Ministério da Saúde; e a Lei 11.343/06, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção

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E o Art. 12, tratando do crime de tráfico de drogas: Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 a 360 dias-multa. (BRASIL, 1976, p. 08) Vemos nos artigos citados que a lei em questão tratava o usuário e o traficante de drogas ilícitas com pena privativa de liberdade, sendo tidos como criminosos. Segundo Samuel Miranda Arruda (2007, p.18): [...] impingia-se, em tese, ao mero usuário da droga sanção privativa de liberdade, o que acarretava uma estigmatização do agente flagrado e propiciava inclusive a utilização do tipo penal como instrumento de constrangimento de pessoas dependentes. Diante das mudanças socioeconômicas, avanço da medicina e da mudança de paradigma em relação ao dependente químico, no ano de 2002, entrou em vigor a Lei 10.409/02, que teve como principal destaque a regulamentação do crime de tráfico de drogas. Porém, no que tange a diferenciação da sanção do traficante e do usuário de drogas, pouca coisa foi alterada. O Art. 12 da lei revogada pouco foi alterado, mantendo-se a pena de reclusão, com um aumento de um ano da pena mínima (de três para quatro anos) e também o aumento de 10 dias de multa (de 50 para 60 dias-multa). A nova lei gerou polêmica e discussões por sua deficiência técnica e pouca fundamentação. Segundo Fernando Capez (2007, p. 680): A legislação básica era composta das Leis n. 6.368, de 21 de outubro de 1976, e 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Esta última pretendia substituir a Lei n. 6.368/76, mas o projeto possuía tantos vícios de inconstitucionalidade e deficiências técnicas que foi vetado em sua parte penal, somente tendo sido aprovada a sua parte processual. Diante do fracasso na tentativa de correção dos defeitos e vícios da Lei 6.368/76, através da Lei 10.409/02, começaram os estudos e

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discussões para a elaboração de uma nova lei que, resolvesse com certa urgência, os problemas não corrigidos anteriormente. Acrescenta Fernando Capez (2007, p.681): Dessa forma a anterior legislação antitóxica se transformara em um verdadeiro centauro do Direito: a parte penal continuava sendo a de 1976, enquanto a processual, a de 2002. Acabando com essa lamentável situação, adveio a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, a qual em seu art. 75 revogou expressamente ambos os diplomas legais. Iniciou-se então, a estruturação de um projeto de lei, que se transformaria na atual legislação brasileira de drogas – Lei 11.343/06. Esta lei inovou o ordenamento jurídico brasileiro na medida em que se utilizou unicamente das penas restritivas de direito e não privativas de liberdade ou pecúnia para o usuário de drogas. Percebe-se assim, que o Legislador tinha como objetivo romper a tradicional justiça penal e instalar um novo modelo de justiça terapêutica no ordenamento. Os programas sociais com a finalidade de prevenção ao uso indiscriminado de drogas também foram inéditos. Estes comportam três espécies de medidas, todas contempladas na nova Lei, que são: a preventiva, terapêutica e a repressiva. Traduz-se a principal mudança o Capítulo III – Dos Crimes e Das Penas, Art. 28: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. (BRASIL, 2006, p.12) Assim, a nova lei brasileira antidrogas se ocupou, mais detidamente, com atividades voltadas à prevenção, atenção e de reinserção social de usuários ou dependentes de drogas. Apesar de seguir uma tendência mundial, e apresentar mais resultados positivos do que negativos, a crítica sobre a atual lei antidrogas faz-se, principalmente, em relação ao abrandamento de sanção ao usuário e suas possíveis consequências. Nas palavras de Germana Queiroz (2014, p.02): A falta de uma medida mais efetiva, como por exemplo, uma internação compulsória ou involuntária, fez surgir outros problemas, dentre eles o sentimento de impunidade e a certeza de que jamais será preso por consumir drogas, bem como o aumento de pessoas que se tornaram dependentes químicas. Outro fator importante a ser observado é que a ação dos traficantes com pequena quantidade de drogas ficou evidente, o que tornou difícil a identificação de quem realmente é usuário e de quem é traficante, pois esses, ao saírem para vender a droga, levam consigo pequena quantidade dela, para que ao serem abordados pela polícia aleguem ser apenas usuários. Portanto, a descriminalização do usuário de drogas afeta a sociedade como um todo, visto que influi no tráfico de drogas e, indiretamente na violência urbana. O tratamento ao dependente químico se faz necessário por parte do Estado, porém com mais severidade, como por exemplo, através da internação compulsória em casos de reincidência. 2.3 A lei penal aplicável em relação às drogas em ambiente militar A mobilização de uma força nacional para defesa de território

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começou no Brasil desde o início de sua colonização, sendo a mais marcante efetuada contra as tentativas de colonização francesa no Brasil, na década de 1550. Porém, na Batalha de Guararapes, em 1648, os efetivos militares portugueses eram formados majoritariamente por brasileiros (brancos, negros e ameríndios). Este é o marco inicial da formação das Forças Armadas brasileiras e a consequente criação da classe profissional militar. Segundo Heleno Fragoso (1962, p.14), O Direito Militar está presente no mundo desde o período romano. No Brasil, ganhou contornos legislativos com a vinda da família real portuguesa e a publicação dos Artigos de guerra do Conde Lieppe, em 1763. Com a proclamação da República, foi editado o Código Penal da Armada, em 1891. A matéria Direito Militar foi disciplina obrigatória no Brasil para o 5º ano do Curso de Direito, no período compreendido entre 1925 e 1930. A Justiça Militar recebeu disciplina constitucional a partir da Carta Magna de 1934. No mesmo ano, foi aprovado o primeiro Código Penal Militar Brasileiro, que, posteriormente foi aperfeiçoado em 1969, vigorando este até os dias atuais. O atual Código Penal Militar (Decreto-lei 1.001, de 21 de outubro de 1969), se divide em: Parte Geral e Parte Especial. Na primeira parte, trata da aplicação da lei penal militar, dos crimes, da imputabilidade penal, das penas, condenação, etc. Já a Parte Especial, fala sobre os crimes em tempos de paz e dos crimes em tempos de guerra. No título VI – Dos crimes contra a incolumidade pública, Capítulo III – Dos crimes contra a saúde em seu Art. 290, tipifica o crime de porte para consumo pessoal de drogas em ambiente militar, o qual nos interessa no presente artigo científico: Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um até cinco anos. (BRASIL, 1969, p. 17) O Código Penal Militar, que data sua publicação no ano de 1969, encara o porte para o consumo de drogas em ambiente militar como um crime contra a saúde, com pena de prisão de 1 a 5 anos. Após a abordagem da tipificação na lei civil e militar sobre o porte de drogas para consumo pessoal, será discutido nos capítulos seguintes sobre o choque do Art. 290 do CPM com a nova política nacional sobre a questão das drogas, especificadas na Lei 11.343/06, onde o usuário não é mais visto como um criminoso que precisa ser privado de sua liberdade, e sim sob o aspecto de um indivíduo que necessita de cuidados médicos, psicológicos e assistência social. 3 O USUÁRIO DE DROGAS E SEU TRATAMENTO NO DIREITO BRASILEIRO A Lei 11.343/06 trouxe para o Brasil uma nova tendência mundial em relação à temática das drogas ilícitas. Seu texto, em linhas gerais, dá ênfase à sociologia da conduta, visualizando o indivíduo como um ser passível de influências sociais, e que o uso de drogas é um vício da sociedade moderna que precisa de tratamento médico. Constatou-se que o problema das drogas não envolvia apenas o aspecto penal, mas também esferas de assistência social, saúde pública, economia, políticas públicas do Estado e fatores facilitadores para o tráfico de drogas.

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O maior paradigma quebrado pela nova lei foi em relação ao usuário de substâncias entorpecentes. Como foi tratada no capítulo anterior, a sanção imposta ao usuário de drogas na lei anterior (Lei 6.368/76), incluía a prisão, sendo suprimida pela lei atual para advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Reflete-se com isso uma nova política criminal para o usuário de drogas no Brasil. Estudos comprovaram que a prisão não estava cumprindo a função reeducadora da pena. O usuário tornava reincidente em pouco espaço de tempo e, muitas vezes, até cometia o crime de tráfico de drogas. Em alguns países, o avanço em relação à legislação de entorpecentes é ainda maior que a dos outros, demonstrando a grande mudança de paradigma sobre o assunto. Em uma reportagem realizada pela Rede de Comunicação BBC, destaca-se a grande mudança da legislação norte-americana: Os Estados Unidos foram pioneiros na proibição de drogas nos anos 1970, quando o ex-presidente republicano Richard Nixon declarou a “guerra às drogas”. Nos EUA, as drogas consideradas nocivas são proibidas, inclusive a maconha, e tanto a porte quanto o tráfico são considerados crimes. No entanto, leis estaduais tornam o cenário mais complexo. Em 2012, os Estados de Washington e Colorado legalizaram, após um referendo, o uso recreativo de maconha. Dois anos depois, Alasca, Oregon e a capital, Washington, seguiram o exemplo. Califórnia, Massachusetts, Maine, Nevada e Arizona estão entre os Estados que podem votar a legalização do uso recreativo em 2016, quando ocorrem eleições presidenciais nos EUA. Atualmente, 18 Estados permitem o uso medicinal da substância sob prescrição médica. A permissão para o consumo recreativo, no entanto, se choca com a lei federal, cujo cumprimento é responsabilidade da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês). Em 2013, o presidente Barack Obama afirmou, em uma entrevista, que os funcionários da DEA não devem priorizar a aplicação da lei sobre consumidores e, sim, traficantes. (In: REDE BBC DE TELEVISÃO, 2015) Como outro exemplo de resultado positivo, temos a nova lei de drogas de Portugal que, em 2001, descriminalizou a posse de todas as drogas para fins pessoais e conseguiu reduzir o consumo entre adolescentes, bem como aumentar o acesso a tratamento.

3.1 As Forças Armadas e o usuário de drogas em ambiente militar

Serão abordadas algumas destas características, as quais o uso de substâncias entorcepentes revela um forte risco à segurança do próprio militar e de outrem. Ao longo da carreira, o militar convive de perto com o risco de vida. Em situações de treinamento, durante o serviço de guarda ao quartel, na sua vida diária na caserna ou no ambiente extremo de guerra ou de garantia da lei e da ordem interna do país, a possibilidade iminente de um dano físico ou da morte é uma característica permanente da sua profissão. O uso de armamento nas diversas situações expõe o perigo que um militar sob efeito de substâncias entorpecentes pode exercer em relação a sua própria vida e a das outras pessoas. A carreira militar exige de seus componentes a sujeição aos preceitos rígidos de disciplina e hierarquia. O militar deverá obedecer a severas normas disciplinares e a estritos princípios hierárquicos, pois é formado para lidar com situações extremas, com risco de vida. Em uma situação de guerra, deverá seguir ordens emanadas pelos superiores, mesmo sacrificando sua própria vida em favor do país. Um militar drogado, muitas vezes não terá o mínimo discernimento para o cumprimento de ordens, podendo comprometer o sucesso da missão, além das vidas das pessoas que protege. Uma característica da profissão militar é a disponibilidade permanente. O militar tem que se manter disponível para o serviço ao longo das 24 horas do dia, podendo ser acionado em qualquer tempo para o cumprimento de missões diversas. Atualmente, as Forças Armadas são muito utilizadas em questões de pacificação de favelas e também quando a força policial dos estados faz greve. Estas situações exigem um célere emprego da tropa, e se o militar não tiver condições de rapidamente compor a força, por estar entorpecido por drogas ou bebidas, prejudicará a atuação do grupo, colocando em risco vidas, materiais e instalações. As atribuições que o militar desempenha, não só por ocasião de eventuais conflitos, mas também, no dia a dia, exigem-lhe elevado nível de saúde física e mental. Tanto em treinamentos, quanto em situações reais, a exigência física e mental é grande para o militar, e este sob efeitos de drogas, terá precárias condições de cumprir seu papel, além de comprometer a segurança dos demais. Este, muitas vezes, terá que tomar decisões rápidas e que afetam o grupo ou a população civil, ou pode estar operando um armamento ou dirigindo uma viatura, causando assim, possíveis consequências negativas. As características acima citadas mostram algumas especificidades da profissão militar, que refletem nas particularidades das leis, normas e doutrinas aplicadas somente à classe militar. 3.1.2 Os pilares das Forças Armadas

3.1.1 Características da profissão militar

O regime constitucional dos militares está previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e na Emenda Constitucional 18, de 15 de fevereiro de 1998, trazendo juntamente com a Lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980 – Estatuto dos Militares, as seguintes características da profissão militar, resumidas no site eletrônico do Exército Brasileiro: São características da profissão militar: Risco de vida; Sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia; Dedicação exclusiva; Disponibilidade permanente; Mobilidade geográfica; Vigor físico; Proibição de participar de atividades políticas; Proibição de sindicalizar-se e de participação em greves ou em qualquer movimento reivindicatório; Restrições a direitos sociais; Vínculo com a profissão; e Pensão militar. (In: EXÉRCITO BRASILEIRO, 2014)

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A instituição militar é secular, e envolve tradições, princípios e valores, que são transmitidos aos que nela ingressam. A Lei 6.880/80 – Estatuto dos Militares, em seu Art. 2, diz dos dois pilares básicos as quais as instituições militares se sustentam: Art. 2. As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. (BRASIL, 1980, p. 01) Sob os pilares hierarquia e disciplina, são construídos todos os valores militares e também a própria existência das Forças Armadas. Situações extremas de conflitos armados acarretam o fiel cumprimen-

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to das ordens emanadas, sendo esses pilares, a base sólida da construção de uma força militar nacional. A Constituição Federal de 1988 trata, em seu Art. 142, sobre o papel das Forças Armadas: Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988, p.39) Hierarquia e disciplina militares têm natureza jurídica de princípios constitucionais, não apenas por estarem expostos na Constituição, mas pelos valores que abrigam em si. As Forças Armadas foram criadas para serem empregadas em situações extremas, quer seja de guerra ou de garantia da lei de da ordem nacional, nas quais não é possível haver o questionamento de ordens ou determinações. Ao arriscar sua vida em situações diversas, o militar deve elevar os interesses de sua pátria acima dos interesses pessoais. Para chegar a esse nível de abnegação, ele deve aprender e internalizar esses valores durante os treinamentos e a vida no quartel. Deverá obter o grau máximo do espírito de equipe, base importante em qualquer teatro de operações de guerra. O promotor de justiça Ythalo Frota Loureiro, em um artigo publicado, diz:

3.1.3 O usuário de drogas em ambiente militar: A visão do Código Penal Militar

A Lei 6.880/80 dispõe sobre o Estatuto dos Militares e, em seu Art. 46 diz que: “O Código Penal Militar relaciona e classifica os crimes militares, em tempo de paz e em tempo de guerra, e dispõe sobre a aplicação aos militares das penas correspondentes aos crimes por eles cometidos” (BRASIL, 1980, p. 08). O atual Código Penal Militar, Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969, período em que o Brasil vivia o auge da ditadura militar, foi instituído pelos ministros das Forças Armadas da época (Junta Militar), que, na oportunidade, exerciam a Chefia do Poder Executivo no Brasil, autorizados pelos Atos Institucionais nº 16 (que teria declarado vagos os cargos de presidente e vice-presidente da República) e pelo de nº 05 (que autorizava à Junta Militar, dentre outras coisas, a legislar sobre todas as matérias). O Código Penal Militar tem em seu texto matéria específica sobre o uso, consumo e tráfico de drogas. O Título VI – Dos Crimes Contra a Incolumidade Pública, Capítulo III os Crimes Contra a Saúde, Art. 290: Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, até cinco anos. § 1º - Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar: I - o militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar; II - o militar que, em serviço ou em missão de natureza militar, no país ou no estrangeiro, pratica qualquer dos fatos especificados no artigo; III - quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício. § 2º - Se o agente é farmacêutico, médico, dentista ou veterinário: Pena - reclusão, de dois a oito anos. (BRASIL, 1969, p. 17)

A hierarquia e a disciplina militares são princípios constitucionais de caráter fundamentalista, pois constituem a base das organizações militares. E como princípios fundamentalistas, condensam os valores militares, como o respeito à dignidade da pessoa humana, o patriotismo, o civismo, o profissionalismo, a lealdade, a constância, a verdade real, a honra, a honestidade e a coragem. São princípios que pretendem dar máxima eficácia às instituições militares. (LOUREIRO, 2014, p. 02) Para a existência de uma unidade militar, além dos homens e mulheres, deve existir uma estrutura de segurança a ser preservada, tendo em vista a própria estabilidade social. Existe um aparato bélico e de informações que devem ser altamente controlados e protegidos. E essa segurança é feita pelos militares de modo diuturno, que estão em missão de guarda, não podendo haver desídia ou negligência. Atualmente, além de seu papel na defesa da pátria, garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, as Forças Armadas brasileiras atuam em algumas missões de paz da Organização das Nações Unidas. A principal é a Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti, onde há atualmente 1.831 militares brasileiros. Novamente, veem-se militares atuando em uma situação real e extrema, sendo necessária uma competente ação de comando e liderança por parte dos chefes, e o fiel cumprimento de ordens nos diversos panoramas pelos subordinados. Uma sólida hierarquia e disciplina fazem-se necessária, diante da responsabilidade de salvar vidas. Suponhamos que um militar, numa missão de paz da Organização das Nações Unidas, diante de um ambiente hostil, onde não só sua vida está em jogo, mas também a de seus companheiros de farda e da população civil, consome uma pequena quantidade de drogas antes de iniciar uma patrulha. Este indivíduo estaria em condições de exercer sua função? O consumo de drogas prejudicaria somente sua própria saúde ou comprometeria vidas alheias?

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Nota-se a não separação de usuário e traficante, também presente no Código Penal civil da época (Decreto-lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940), em seu Art. 281, modificado pelo Decreto-lei 385/68:

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Art. 281. Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou de desacordo com determinação legal ou regulamentar: (Comércio, posse ou facilitação destinadas à entorpecentes ou substância que determine dependência física ou psíquica.) Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa de 10 a 50 vezes o maior salário-mínimo vigente no país. § 1º Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: I - importa ou exporta, vende ou expõe à venda, fornece, ainda que a título gratuito, transporta, traz consigo ou tem em depósito ou sob sua guarda matérias-primas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substância que determinem dependência física ou psíquica; Il - faz ou mantém o cultivo de plantas destinadas

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à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determinem dependência física ou psíquica. III - traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. (Matérias-primas ou plantas destinadas à preparação de entorpecentes ou de substâncias que determine dependência física ou psíquica.) (BRASIL, 1940, p. 04)

Aplica-se, ao delito castrense de porte (ou posse) de substância entorpecente, desde que em quantidade ínfima e destinada a uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar, o princípio da insignificância, que se qualifica como fator de descaracterização material da própria tipicidade penal. Precedentes. (STF, HC 97131/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. em 10.08.2010, v.u.).

A lei penal civil e a militar da época eram similares em relação ao consumo pessoal e tráfico de drogas, refletindo o pensamento jurídico brasileiro no período supracitado. Com o passar dos anos, a legislação brasileira mudou, refletindo um novo panorama legislativo mundial em relação ao usuário de drogas. A principal ideia seria não tratar mais o usuário como criminoso, e sim como um dependente químico que precisa de tratamento. Porém, o Código Penal Militar continua com sua redação original, fazendo com que o dependente de drogas militar continue sendo tratado como um criminoso, com todas as consequências para seu futuro desta rotulação. O usuário militar é tratado diferente do usuário comum, apenas por exercer a profissão militar, embora tenha as mesmas necessidades de assistência social e tratamento de saúde que o Estado dispõe para o ambiente civil. Além disso, temos na atual lei brasileira antidrogas, a separação entre traficante e usuário, asseverando a pena para o crime de tráfico, de acordo com o Art. 33:

Segundo GOMES (2010, p. 02): “Na visão dos ministros, o porte de quantidade insignificante de substância entorpecente é conduta incapaz de causar lesão significativa à saúde pública, enquanto bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora”. Porém, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal modifica sua posição e decide a não aplicação do princípio da insignificância no caso de porte de pequena quantidade de drogas em ambiente militar. GOMES (2010, p. 03), destaca alguns pontos que foram argumentos dos ministros para a mudança de pensamento:

Inicialmente,

destacou-se que o problema em questão não envolveria a quantidade ou o tipo de entorpecente apreendido, mas sim a qualidade da relação jurídica entre esse usuário e a instituição militar da qual ele faria parte, no instante em que flagrado com a posse da droga em recinto sob administração castrense. Em seguida, consignou-se que essa tipologia de relação não seria compatível com a figura da insignificância penal. Explicitou-se que esta consubstanciaria vetor interpretativo cujo propósito seria o de excluir a abrangência do Direito Penal de condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico tutelado. Reputou-se que o uso de drogas e o dever militar seriam inconciliáveis, dado que a disposição em si para manter o vício implicaria inafastável pecha de reprovabilidade cívico-profissional por afetar tanto a saúde do próprio usuário quanto pelo seu efeito no moral da corporação e no conceito social das Forças Armadas. Aduziu-se que a hierarquia e a disciplina militares não atuariam como meros predicados institucionais, constituindo-se, ao revés, em elementos conceituais e “vigas basilares” das Forças Armadas. Enfatizou-se, nesse ponto, que o maior rigor penal da lei castrense, na hipótese, se harmonizaria com a maneira pela qual a Constituição dispusera sobre as Forças Armadas. Ante o critério da especialidade, rejeitou-se a aplicação do Art. 28 da Lei 11.343/06. Mencionouse que a referida lei revogara, expressamente, apenas as Leis 6.368/76 e 10.409/02 e que o CPM trataria da matéria de forma específica, embora em termos mais drásticos.

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (BRASIL, 2006, p. 14) O Código Penal Militar permanece com o pensamento jurídico da década de 60, não havendo a diferenciação da sanção do traficante e do usuário de drogas, demonstrando a falta de sintonia com a atual legislação brasileira em relação ao tratamento a ser dado ao usuário/dependente de drogas. O novo pensamento jurídico em relação às drogas nos mostra dois pontos-chave: a descriminalização do usuário de drogas e o rigor penal do crime de tráfico. Em contrapartida, a lei penal militar permanece estagnada num passado distante, com a igualdade de tipificação entre usuário e traficante, sendo que, em comparação a atual lei antidrogas, há um rigor na penalidade do usuário e um abrandamento na sanção do traficante. 4 O CONSUMO PESSOAL DE DROGAS EM AMBIENTE MILITAR: DISCUSSÕES O Supremo Tribunal Federal, na maioria das decisões, era de acordo com a aplicação do princípio da insignificância no crime de porte de drogas para consumo em ambiente militar. Segundo a corte, a pouca quantidade de droga significava ausência de perigo em relação ao bem jurídico tutelado: a saúde pública. A suprema corte brasileira, em algumas ocasiões, reconhecia que o Art. 28 da Lei 11.343/06 revogava o Art. 290 do Código Penal Militar, pelo motivo da nova concepção sobre o tratamento jurídico dos usuários de drogas dado pela legislação, onde não há mais pena privativa de liberdade ao infrator. Em agosto de 2010, a 2ª Turma, reafirmou a decisão do Supremo Tribunal Federal, decidindo que:

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Os ministros também afastaram a questão da ofensa ao princípio da proporcionalidade, onde foi alegado que não havia a distinção entre traficante e usuário no Art. 290 do Código Penal Militar. Segundo a Corte, havia no artigo supracitado o intervalo de pena de 1 a 5 anos, o que permitiria ao juiz sentenciante estabelecer a medida justa entre os atos praticados e o crime, a partir da avaliação das circunstâncias (objetivas e subjetivas) da situação concreta. O jurista Silvio Maciel (2010) contesta a argumentação do maior rigor do Código Penal Militar, nos seguintes termos:

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Na lei 13.343/06, o crime de tráfico, que tutela a saúde pública, tem pena de 5 a 15 anos de reclusão. O mesmo delito, no Código Penal Militar, que estaria tutelando saúde pública e também à disciplina e hierarquia militar, é apenado com 1 a 5 anos de reclusão (sanção três vezes inferior à cominada na Lei de Drogas). Se traficar em local sujeito à administração militar não é mais grave do que traficar fora desses locais, o mesmo deveria ser

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quanto ao delito de porte para consumo pessoal, o que não acontece na realidade. O Código Penal Militar não trata, portanto, a questão das drogas no ambiente militar em termos mais drásticos do que a legislação comum. O traficante do quartel é punido com pena máxima de 5 anos, enquanto o traficante das ruas com pena máxima de 15 anos.

[...], a conduta questionada não representa alta periculosidade social, nem lesividade material a bens jurídicos. O argumento da Justiça, calcado na disciplina e hierarquia militares, vai contra uma questão maior que deve ser considerada. O paciente, sem antecedentes criminais, deve ser recuperado do vício das drogas, não condenado a um futuro comprometimento. Sendo usuário e dependente da substância proibida, não de ser confundido com o traficante de drogas, esse sim merecedor de todos os rigores da lei. A aplicação ao acusado de sanções administrativo-disciplinares é suficiente. Aliás, um fato penalmente irrelevante pode receber tratamento adequado em outro ramo do Direito.(...) Entendo, entretanto, pela aplicação do princípio no âmbito militar, tendo em vista o atendimento de seus requisitos objetivos, quais sejam: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica causada. Sua aplicação atende aos princípios da isonomia, racionalidade e proporcionalidade. Não pode haver discriminação ao militar, nos casos de porte de pequena quantidade de droga, porque, na prática, ocorreu um fato isolado, sem afetar a Instituição Militar, estando, o paciente, por isso mesmo, na mesma condição do civil. (STM, HC 92.961/SP, rel. Min. Carlos Alberto Marques Soares, j. em 10.12.2007, v.u.).

Na opinião da ministra do Superior Tribunal Militar Elizabeth Rocha (In: REDE GLOBO DE TELEVISÃO, 2015): Hoje, a lei militar é muito rigorosa para quem consome e tem uma pena mais branda para quem trafica dentro do quartel. Veja, que distorção imensa há: ele pode pegar 15 anos de prisão se for flagrado vendendo lá fora na esquina enquanto que, se for dentro da unidade, é de até 5 anos. A decisão do Supremo Tribunal Federal também teve como base a questão dos bens jurídicos envolvidos. Na visão da Corte, os bens jurídicos hierarquia e disciplina sofreriam relevante perigo no caso do usuário de drogas em ambiente militar. Não poderia ser aplicado nesta situação o princípio da insignificância da conduta ou do resultado. O procurador-geral Marcelo Weitzel (In: REDE GLOBO DE TELEVISÃO, 2015), em entrevista para a Rede Globo de Televisão, concorda com a visão do Supremo Tribunal Federal: “A questão, no meio militar, deve ser enquadrada com maior rigor. A posse de drogas, mesmo que em pequena quantidade, oferece risco à hierarquia e à disciplina militar, como também enorme risco a incolumidade física das pessoas”. Mais uma vez, o jurista Silvio Maciel discorda da ótica do Supremo Tribunal Federal, agora em relação aos bens jurídicos invocados: hierarquia e disciplina militares. Segundo Silvio Maciel (2010, p. 01): O Código Penal Militar, no Título II de sua Parte Especial, tipifica “os crimes contra a autoridade ou disciplina militar” (Art. 149 a 182), tais como motim, omissão de lealdade militar, conspiração, incitamento, violência contra superior, desrespeito a superior, reunião ilícita, rigor excessivo, violência contra infrator, resistência etc. No Título III o estatuto castrense tipifica “crimes contra o serviço militar e o dever militar”, tais como deserção, insubmissão etc. No Titulo VII prevê crimes contra a administração militar, como por exemplo, desacato, desobediência, abandono de cargo, usurpação de função, recusa de função da Justiça Militar etc. O Código Penal Militar ainda prevê no Título II, os crimes militares em tempo de guerra, como coação a comandante, cobardia, espionagem etc. Em todos esses crimes, a disciplina e a hierarquia militares estão inegavelmente tuteladas direta ou indiretamente. Porém a lei militar referida tipifica outros delitos que não tutelam hierarquia e disciplina militares, como por exemplo, crimes de homicídio, genocídio, lesão corporal, crimes contra o patrimônio (furto, roubo), crime de rapto e outros delitos sexuais, violação de domicílio, ameaça etc. Crimes estes que podem ser praticados inclusive contra civis (ex. furto, rapto, genocídio, violação de domicílio) o que afasta eventual argumento de que todo crime militar tutela, ainda que indiretamente, a hierarquia e disciplina militares. Dentre esses crimes está o porte de drogas para consumo pessoal, que consta no capítulo “dos crimes contra a saúde”. O bem jurídico protegido nessa norma incriminadora é a saúde pública, tal como na Lei 11.343/06, e não a hierarquia e disciplina, como diz a decisão do Supremo Tribunal Federal. O Ministro do Superior Tribunal Militar, Carlos Alberto Marques Soares, no julgamento do HC nº 92.961/SP (julgado em 11 de dezembro de 2007), também discorda da visão do Supremo Tribunal Federal: LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Porém, há de se analisar alguns detalhes entre as visões discrepantes acima citadas. Existe uma teoria, defendida pelo Ministro da Suprema Corte Argentina Eugenio Raúl Zaffaroni, chamada de teoria da tipicidade conglobante. Segundo essa teoria, tipicidade de um fato não deve ser enquadrada apenas em um dispositivo, independente do ordenamento jurídico. A conduta deve ser observada englobando todo o ordenamento legal existente. Segundo Capez (2007, p. 197): De acordo com a teoria acima aludida, o fato típico pressupõe que a conduta esteja proibida pelo ordenamento jurídico como um todo, globalmente considerado. Assim, quando algum ramo do direito, civil, trabalhista, administrativo, processual ou qualquer outro, permitir o comportamento, o fato será considerado atípico. O direito é um só e deve ser considerado como um todo, um bloco monolítico, não importando sua esfera (a ordem é conglobante). Seria contraditório autorizar a prática de uma conduta por considerá-la lícita e, ao mesmo tempo, descrevê-la em um tipo como crime. Rodolfo Rosa Menezes (2010, p. 04), acrescenta: Observa-se que a intenção da inovação da teoria da tipicidade conglobante é que a conduta seja analisada na ótica de todo o ordenamento jurídico, considerando o fato em relação a todas as normas e preceitos que regulam as condições envolvidas. Não basta observar uma norma e concluir tudo apenas focando o que está tipificado nela. A teoria acima citada reforça a decisão do Supremo Tribunal Federal que o bem jurídico protegido no caso de porte de drogas para consumo em ambiente militar, tipificado no Código Penal Militar, não é apenas a saúde, tal qual na Lei 11.343/06. A criação do Código Penal Militar tem como principal objetivo diferenciar crimes comuns de crimes militares e também a proteção de bens jurídicos especificamente militares, tais como a hierarquia, a disciplina e a singularidade da instituição militar. Durante o decorrer do presente artigo científico, demos diversos

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exemplos legais da importância dos bens jurídicos hierarquia e disciplina para as Forças Armadas. O Art. 5, LXI da Constituição Federal, traz mais uma vez esse destaque: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; (BRASIL, 1988. p. 07) Nota-se no artigo supracitado uma exceção feita em relação à prisão nos casos de crimes ou transgressões militares. Trata-se da importância dada à manutenção da hierarquia e da disciplina militar como uma rápida resposta aos demais militares, evitando a desordem e mantendo a regularidade da instituição. Segundo Pedro Lenza (2007, p. 641): “Assim, os superiores hierárquicos e o Presidente da República do Brasil, como chefe maior, com base na hierarquia e na disciplina poderão aplicar sanções disciplinares de natureza administrativa.” Tomemos como exemplo algumas situações que demonstram a tutela dos bens jurídicos hierarquia e disciplina em casos de usuário de drogas militares: Um militar está de serviço de guarda em uma unidade militar, serviço este que utiliza como armamento o fuzil FAL 7,62mm. Em seu horário de descanso, o militar resolve consumir pequena quantidade de crack. Após o descanso, retorna ao seu posto de vigilância. Temos então um militar portando um armamento e sob efeitos de entorpecentes e responsável pela segurança das instalações militares. O que poderá acontecer? O militar soldado poderá atirar em alguém achando estar sendo perseguido. Não teria a atenção e coordenação motora necessárias para a defesa da instalação militar, facilitando o roubo de munições e armamentos. Outro exemplo: Um oficial é dependente de drogas e consome-as dentro do aquartelamento, apresentando os efeitos da droga durante o expediente. Fazem-se as seguintes indagações: O soldado cumpriria a ordem de um Oficial drogado? Haveria respeito por parte dos subordinados para com o superior hierárquico nesse caso? Nas palavras da Ministra do Superior Tribunal Militar Elizabeth Rocha (In: REDE GLOBO DE TELEVISÃO, 2015): “Imagine um controlador de tráfego aéreo que fumou maconha, o perigo que isso representa para a aviação”. Portanto, o consumo pessoal de drogas em ambiente militar fere não só a saúde pública, mas também a hierarquia e disciplina. As situações acima expostas, em consonância com toda argumentação apresentadas no presente artigo científico, mostram que os bens jurídicos tutelados na Lei 11.343/06 são diferentes dos protegidos pelo Código Penal Militar, apesar das citadas normas tipificarem condutas aparentemente semelhantes. Portanto, há uma concordância com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação à temática do usuário militar, pois nenhum princípio jurídico é absoluto, sendo necessária a análise em cada caso específico.

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6 CONCLUSÃO O presente artigo científico buscou apresentar um breve histórico sobre a origem do uso de substâncias entorpecentes, utilizadas em rituais de celebrações religiosas ou festivas, como medicamento para a cura de doenças e também como busca de prazer. Foi abordado sobre o início da ilicitude das drogas diante das mudanças socioeconômicas e da comercialização e sintetização das drogas à margem das leis dos Estados. Diante do novo panorama sobre os malefícios do uso de substâncias entorpecentes, foi apresentado como os órgãos internacionais legislaram a respeito. Foram criadas três convenções das Organizações das Nações Unidas sobre o assunto: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988, conhecida como Convenção de Viena. Dentro deste contexto, foram abordadas as leis que vigoraram no Brasil do início da ilicitude das drogas até a lei atualmente em vigor. Na Lei 6.368/76, o usuário e traficante de drogas eram tratados com um forte rigor penal e ambos recebiam uma pena privativa de liberdade, sendo tratados como criminosos. Diante de um novo panorama mundial sobre a questão do usuário/dependente de drogas, surge a necessidade de uma nova legislação brasileira sobre drogas. Cria-se a Lei 10.409/02. Porém esta lei continha muitos vícios de inconstitucionalidade e deficiências técnicas, sendo vetada em sua parte penal, somente tendo sido aprovada a sua parte processual. Acabando com esta lamentável situação, surge então a atual legislação - Lei 11.343/06, onde foi dada ênfase às inovações penais e processuais penais trazidas pelo art. 28, que trata sobre a posse e uso de pequena quantidade de drogas ilícitas para consumo pessoal. Na esfera militar, foi apresentada a legislação em vigor, Código Penal Militar, que seguindo a linha de pensamento da época de sua publicação, encara o porte para o consumo de drogas em ambiente militar como um crime contra a saúde, com pena de prisão de 1 a 5 anos. Nota-se a divergência de tratamento do usuário militar em relação ao civil, no que tange a privação de liberdade. Foi dada ênfase na questão da penalização do usuário de drogas, tanto no contexto civil como no militar. A Lei 11.343/06 inaugurou uma clara opção de política criminal de tratar o usuário como um dependente químico que necessita de tratamento, e não de forma criminosa, mandando-o para a prisão. Isentou-o da pena privativa de liberdade, aplicando advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. No entanto, dentro dos muros castrenses, o usuário de drogas militar é tratado com a pesada rotulação de criminoso, tipificado no Código Penal Militar, com pena privativa de liberdade de 1 a 5 anos, além de algumas consequências, como expulsão das fileiras militares, ficha criminal, etc. Para um melhor entendimento sobre a especificidade da profissão militar, foram explanadas as características da profissão militar, assim como sua missão constitucional. Em especial, foi dada ênfase aos pilares basilares das Forças Armadas, considerados também bens jurídicos: a hierarquia e a disciplina. Foi colocado em pauta o entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação ao porte de drogas para consumo em ambiente militar. Inicialmente, a Corte vinha decidindo que o princípio da insignificância se aplicava ao delito de porte de drogas em ambiente militar. Porém, o Supremo Tribunal Federal mudou seu posicionamento, não

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autorizando a aplicação do princípio da insignificância no caso do usuário militar. Em sua argumentação, os ministros afirmaram que o uso de drogas e os princípios éticos militares seriam incompatíveis, por ter uma grande reprovação profissional e por afetar tanto a saúde do próprio usuário quanto pelo seu efeito no moral da instituição. Aduziu-se também que, além da saúde pública, a hierarquia e a disciplina militares também eram bens jurídicos tutelados no caso, constituindo estes, em elementos conceituais e “pilares básicos” das Forças Armadas. Foram mostradas visões de alguns juristas contrárias ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, principalmente no que tange ao argumento da necessidade de um maior rigor penal nas Forças Armadas e também em relação à afirmação sobre os bens jurídicos (hierarquia e disciplina) tutelados no caso específico. Após a elucidação de visões conflitantes, foi justificado por este autor, através da teoria da tipicidade conglobante, e também com casos práticos que mostram as particularidades da profissão militar, o correto posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação aos bens jurídicos tutelados. Constata-se também que a Lei Penal Militar não mais retrata a realidade social para a qual foi criada, necessitando ser reformulada com brevidade, principalmente no que tange ao usuário e traficante de drogas em ambiente militar. Apesar das incontestáveis especificidades da profissão militar, sua norma jurídica deve acompanhar a mudança mundial de paradigma em relação às drogas, se aproximando o máximo possível das normas do Direito Brasileiro.

res. Diário Oficial da União, 09 de dezembro de 1980. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/cCivil_03/Leis/l6880compilada.htm>. Acesso em 12 set. 2016.

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Banca Examinadora: Maraluce Maria Custódio (Orientadora) Bruno Calandrini (Examinador 1) Karen Myrna Castro Mends Teixeira (Examinadora 2)

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A TOMADA DE DECISÃO APOIADA E O EXERCÍCIO DA CAPACIDADE PLENA DA PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA THE SUPPORTED DECISION-MARKING AND THE EXECISE OF THE FULL CAPACITY OF THE PERSON WITH DISABILITY Samara Kellen Jardim1

Resumo: O presente artigo aborda em breve passagem a definição de capacidade civil desde o código civil de 1916, bem como a influência da Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) na teoria das incapacidades, no que se refere ao novo instituto assistencial à pessoa com deficiência, denominado de Tomada de Decisão Apoiada. Tal instituto será analisado em comparação com o instituto da curatela, que também sofreu alterações após a vigência do novo estatuto, bem como com o instituto do admmnistratore di sostegno do sistema jurídico italiano e, por fim, será apresentado o impacto na capacidade plena da pessoa com deficiência. Palavras-Chave: Capacidade. Curatela. Estatuto. Lei 13.146/15. Tomada de Decisão Apoiada.

Abstract: This article discusses in brief the definition of civil capacity since the civil code of 1916 and the influence of the Law 13.146/15 (Statute of the Person with Disability) in the theory of disability in regard to the new health care institute of the person with disabilities, called Supported Decision Making. This institute is analyzed in comparison to the trusteeship of the institute of curatorship, also changed after the term of the new statute, as well as the Institute admmnistratore di sostegno the Italian legal system, and finally, the impact presented in the full ability of the person with disabilities. Keywords: Capacity. Curatorship. Law 13.146/15. Statute. Supported Decision Making.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Breve Histórico da Capacidade Civil no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 3 Capacidade Civil: o que é pessoa para o direito?. 3.1 Incapacidades no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 4 O Instituto da Curatela. 4.1 A Autocuratela. 5 Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15). 5.1 Alterações na Teoria das Incapacidades. 6 Tomada de Decisão Apoiada. 6.1 Semelhanças e Diferenças Com o Admministratore di Sostegno do Sistema Italiano. 6.2 Curatela x Tomada de Decisão Apoiada. 7 A Tomada De Decisão Apoiada, Instituída Pela Lei 13.146/15 e o Exercício da Capacidade Plena da Pessoa com Deficiência. Conclusão. Referências.

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Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO Hodiernamente, discute-se acerca da capacidade civil dos indivíduos, à luz do ordenamento pátrio. Ao longo do tempo, a pessoa que, por qualquer motivo – transitório ou permanente – não pudesse expressar sua vontade de forma consciente, era afastada de sua vontade por meio de interdição, instituto civil que limita a atuação do sujeito de direitos na sociedade. Historicamente, a limitação ao exercício da vontade imposta a algumas pessoas é conceito criado pelo homem, acerca do que seria capacidade e de suas espécies, as quais são definidas em capacidade de fato e capacidade de direito. A capacidade de direito é atributo do indivíduo nascido com vida, enquanto sujeito de direito a adquirir personalidade jurídica; lado outro, a capacidade de fato ou de exercício se relaciona com a possibilidade de a pessoa exercer pessoalmente os direitos subjetivos ora conquistados. Assim, aqueles indivíduos privados das capacidades acima referidas foram, pela normatização pátria, classificados como absolutamente ou relativamente incapazes, conforme o seu grau de compreensão do mundo, podendo ser representados ou assistidos respectivamente. Desde a promulgação do Código Civil de 1916, o rol de pessoas consideradas relativamente ou absolutamente incapazes sofreu diversas alterações, conforme a evolução do conhecimento psíquico e jurídico. A modificação mais recente ocorreu após a ratificação da Convenção de Nova York sobre a pessoa com deficiência (2009), através do Decreto nº 186 de 2009, que fundamentou a criação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), este ampliou o rol de direitos das pessoas com deficiência e retirou-as do rol de pessoas consideradas incapazes para conceder-lhes a capacidade plena. Com tal mudança, o instituto da curatela não é mais utilizado para a interdição da pessoa com deficiência, que conserva sua capacidade relativa, sendo somente passível de recaimento em casos excepcionais. O Estatuto fundou um novo instituto de assistência no direito brasileiro no que diz respeito à pessoa com deficiência, com o propósito de promover a sua inclusão social e cumprir o objetivo da Convenção de Nova York. A transformação do entendimento jurídico permeia o mecanismo da Tomada de Decisão Apoiada, e através dele a pessoa com deficiência, capaz de manifestar sua vontade, pode instituir no mínimo duas pessoas idôneas para auxiliá-la nos atos da vida civil, nos quais se julgar necessários a nomeação de apoiador. Aqui, surge dúvida sobre até que ponto o Estatuto realmente cumpriu o seu objetivo de inclusão social da pessoa com deficiência, sem reduzir a proteção a essas pessoas que são vulneráveis ou até mesmo se ele é realmente capaz de assegurar a capacidade plena da pessoa portadora de deficiência. 2 BREVE HISTÓRICO DA CAPACIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Com o objetivo de promover a proteção das pessoas que por motivo transitório ou permanente não pudessem expressar sua vontade, criou-se o instituto da interdição no ordenamento jurídico pátrio anterior ao Código Beviláqua. Assim, já existiam dispositivos no Código Comercial de 1850 que disciplinavam a atuação das pessoas consideradas incapazes. (Requião, 2016). Desde a promulgação do Código Civil de 1916, os dispositivos

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referentes a capacidade civil sofreram diversas alterações, tanto na própria redação, quanto na ampliação de direitos às pessoas consideradas relativamente ou absolutamente incapazes Conforme a leitura do artigo 5º do Código Civil de 1916 eram considerados absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade e os ausentes, declarados por ato do juiz. Por sua vez, os relativamente incapazes considerados pelo artigo 6º, do Código Civil de 1916, se limitavam aos maiores de dezesseis e os menores de vinte e um anos, as mulheres casadas, pelo tempo de durar a sociedade conjugal os pródigos e os silvícolas. As mulheres, também eram consideradas relativamente incapazes após o casamento, como um reflexo da mentalidade da sociedade patriarcal e machista, a qual tornava a mulher submissa aos desejos de seu marido, sendo que os atos praticados pela mulher sem o auxílio de seu pai, tutor ou marido era considerado anulável, diante de sua incapacidade relativa. (MOSER, 1966) Posteriormente, com a promulgação do Estatuto da mulher casada (Lei 6.121/62), estas deixaram de serem consideradas relativamente incapazes após o casamento, sobrevindo a Lei do Divórcio de 1977, que ampliou significativamente os direitos da classe. Contudo, não houve alteração quanto ao rol de incapazes previstos no Código Beviláqua, até a edição do novo Código Civil que somente ocorreu no ano de 2002. Com o novo ordenamento civil de 2002, os dispositivos sobre a incapacidade foram alterados, sofrendo mudança direta o artigo que versava sobre a incapacidade absoluta, que incluiu no rol os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos, bem como os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Quanto aos menores de dezesseis anos nada mudou, permanecendo, como antes, neste agrupamento. (TARTUCE, 2015). Os ausentes foram retirados do rol de incapazes pelo Código Civil de 2002, em razão da inexistência de motivos que levem a crer sua incapacidade. Continua-se nomeando curador para o ausente, mas apenas para gerir seus interesses até que retorne, ou até que seja declarada a sua morte presumida. Outras reformas foram sentidas nos artigos que tratam da capacidade, como a expressão “loucos de todo gênero”, que foi substituída por “aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”, englobando ainda os surdos-mudos. Nessa seara, não passou despercebido o rol dos relativamente incapazes, que ganhou nova redação, incluindo os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido e os excepcionais, antes considerados loucos de todo o gênero. (Requião, 2016) Com a incorporação da Convenção sobre as pessoas com deficiência da ONU, pela legislação brasileira no ano de 2008, por meio do Decreto Legislativo nº 186, abriu-se precedente para a ampliação dos direitos das pessoas com deficiência física ou mental. Assim, tal Convenção fundamentou a criação da Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), que busca proporcionar maior integração social das pessoas com deficiência, garantindo-lhes o exercício dos atos da vida civil como pessoas plenamente capazes, conforme nova redação dada, atualmente, ao artigo 3º, do Código Civil, em que a incapacidade absoluta é apenas é em relação ao requisito etário, ou seja, somente se aplica aos menores de dezesseis anos. Por sua vez, foram retiradas do rol de relativamente incapazes do artigo 4º as pessoas com deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; além dos excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. Buscou-se com essa lei promover a inclusão social das pes-

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Com esteio em avançada visão civil-constitucional, a personalidade jurídica é o atributo reconhecido a uma pessoa (natural ou jurídica) para que possa atuar no plano jurídico (titularizando as mais diversas relações) e reclamar uma proteção jurídica mínima, básica, reconhecida pelos direitos da personalidade.

soas com deficiência, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana. Mas para se aferir o impacto do Estatuto da pessoa como Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro, primordial que se entenda a definição de alguns institutos, como os da capacidade civil e da própria curatela. 3 CAPACIDADE CIVIL: o que é pessoa para o Direito? Antes de adentramos ao conceito de capacidade civil, é necessária a definição do que é pessoa, que no âmbito jurídico pode ser física ou jurídica. Assim, pessoa é todo sujeito de direitos capaz de assumir direitos e deveres, passiva ou ativamente. A pessoa natural/física/humana é aquela que nasce com vida, portadora de atividade psíquica e biológica (LÔBO, 2015). Por sua vez, as pessoas jurídicas ou entes morais são pessoas criadas por pessoas naturais, com objetivo específico, distinguindose de seus criadores, em relação à existência, direitos e patrimônio (FARIAS; ROSENVALD, 2015). Analisando a definição de pessoa física, assevera a Declaração Universal de Direitos dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 1º, que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” (ONU, 2009). Enquanto sujeito de direito, o indivíduo possui personalidade jurídica que nada mais é do que o atributo da pessoa enquanto ser humano, dotado de capacidade psíquica para compreensão do mundo; assim sendo, a personalidade integra a pessoa. Para o direito, a personalidade jurídica é atributo inerente a pessoa natural ou jurídica para que possa ser titular de direitos, estando sob proteção jurídica. Em relação a pessoa natural, a personalidade jurídica relaciona-se ao próprio ser humano, para que este seja capaz de gerir seus interesses, “[...] É uma parte juridicamente intrínseca, permitindo que o titular venha a adquirir, exercitar, modificar, substituir, extinguir ou defender interesses.” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 136). Nada obstante, a concepção social de pessoa e personalidade nem sempre foi o mesma, a exemplo dos escravos do período romano e até mesmo dos escravos durante o período Brasil Colônia. Estes não eram considerados pessoas, mas sim propriedade de seus senhores, sem personalidade, sem qualquer direito existencial ou patrimonial, pois se assemelhavam a coisas. (LÔBO, 2015). Conforme assevera Castro (2010, p. 94). Para ter capacidade Jurídica o indivíduo tinha que ser livre. Escravos não tinham direitos, nem privados, nem públicos, eram apenas objeto de relações jurídicas. [...] Escravos eram coisas (res) e, como tal, não possuíam personalidade, estando sujeitos ao poder de seu senhor (Dominica potestas); esse poder, em sentido jurídico, tinha caráter absoluto.” (CASTRO, 2010, p. 94)

A capacidade de direito ou capacidade jurídica é aquela, vinculada a pessoa, reconhecida a qualquer indivíduo simplesmente por ser pessoa, seja natural ou jurídica, que seja sujeito de direitos. Esta não pode ser suprimida e vincula-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, basilar da Constituição Federal de 1988, que determina a existência digna da pessoa, buscando a realização pessoal do indivíduo. Em contrapartida, a capacidade de fato ou de exercício, segundo PEREIRA (2007, p. 263) “é a aptidão para utilizar e exercer pessoalmente os direitos adquiridos através da capacidade de direito”. Com esta última capacidade a pessoa, além de poder adquirir direitos e contrair obrigações poderá exercer tais atos pessoalmente, ultrapassando as condições biológicas. Além do mais, tal capacidade se define também pelo preenchimento de requisitos legais, nascendo deste ponto a incapacidade do indivíduo. (FARIAS; ROSENVALD, 2013) A capacidade plena consiste na possibilidade do sujeito de exercer pessoalmente os atos da vida civil, sem o auxílio de terceiros, o que ocorre quando a pessoa possui tanto a capacidade de fato quanto a capacidade de direito. Nas belas palavras de GOMES (2001, p. 172, apud GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 128): A capacidade de direito confunde-se, hoje, com a personalidade, porque toda pessoa é capaz de direitos. Ninguém pode ser totalmente privado dessa espécie de capacidade. E mais adiante: A capacidade de fato condiciona-se à capacidade de direito. Não se pode exercer um direito sem ser capaz de adquiri-lo. Uma não se concebe, portanto sem a outra. Mas a recíproca não é verdadeira. Pode-se ter capacidade de direito, sem a capacidade de fato, adquirir o direito e não poder exercê-lo por si. A impossibilidade do exercício é tecnicamente, incapacidade. Em caso de ausência da capacidade de fato, possibilita-se a aplicação da incapacidade relativa ou absoluta, que podem ser supridas através da tutela ou curatela, conforme o tipo de incapacidade. 3.1 Incapacidades no Ordenamento Jurídico Brasileiro Do outro lado da face normativa, as incapacidades no ordenamento jurídico brasileiro possuem previsão legal nos artigos 3º e 4º do Código Civil, os quais dispõem acerca dos relativamente ou absolutamente incapazes, com redação atualizada pela Lei 13.046/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência):

Dessa forma, por se tratar de uma criação social, com o passar dos anos e conforme a mentalidade da sociedade, o conceito foi se alterando para melhor atender as expectativas humanas, constituindose a personalidade jurídica como atributo da pessoa natural e adquirida após o nascimento com vida ou da pessoa jurídica, após o seu registro. Lado outro, a personalidade jurídica não se confunde com a capacidade civil ou jurídica que pode ser descrita como a possibilidade do indivíduo adquirir direitos e obrigações pessoalmente ou por intermédio de terceiros, e divide-se em capacidade de fato e capacidade de direito. FARIAS; ROSENVALD (2015, p. 135)

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Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer

pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.

O incapaz, no nosso ordenamento, recebe proteção jurídica es-

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pecial, com o objetivo puramente protecionista, vez que há compreensão reduzida dos atos da vida com um todo, por parte dessas pessoas. Não há exclusão de sua autonomia, mas apenas uma redução dos atos que podem praticar sem auxílio, conforme as suas necessidades, valendo-se de tutor ou curador para suprir esta incapacidade, a depender do tipo, como se demonstrará. (PEREIRA, 2015). Explana-se que a incapacidade é sempre excepcional e atinge os direitos patrimoniais. Quando há incapacidade absoluta nomeia-se representante legal para gerir os interesses do incapaz, ao passo que os relativamente incapazes são apenas assistidos e agem dependendo apenas da confirmação do ato pelo seu assistente. (REQUIÃO, 2016). Outrossim, a incapacidade não se confunde com vulnerabilidade, na medida em que essa é um estado da pessoa que lhe deixa em situação desfavorável em face de outro diante de uma relação jurídica específica, como a esposada entre o consumidor e o fornecedor, enquanto a incapacidade é a ausência de discernimento necessário para a prática de atos, não restritos a uma situação específica. Desta feita, antes da entrada em vigor da Lei 13.146/15, a fim de resguardar os direitos dos incapazes, poder-se-ia ser proposta a ação de interdição ou curatela dos interditos, hoje apenas é facultada a denominada ação de curatela, dado que não mais existe a interdição da pessoa. 4 O INSTITUTO DA CURATELA Utilizada para suprir a incapacidade de exercício da pessoa maior com impossibilidade de exprimir sua vontade, por ausência de discernimento, seja em razão de enfermidade ou alguma situação externa, como no caso da ausência e dos nascituros, a curatela é o meio pelo qual afasta-se a pessoa de sua vontade, para que seja expressa a vontade de seu representante. A limitação da capacidade de fato através da curatela não atinge os direitos existenciais, já que os direitos de personalidade são intransferíveis. Dessa forma, conserva-se a capacidade de fato para os atos que envolvam a satisfação de um direito pessoal, em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana. (TEIXEIRA, 2009) A curatela também pode atingir menores entre 16 e 18 anos, quando estes possuírem algum transtorno mental que impossibilite a manifestação de vontade. Assim, pode ser instituída para aqueles que por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade, que apesar de constarem no artigo 4º do Código Civil como relativamente incapazes, em casos excepcionais podem ser curatelados. Por sua vez, a curatela do nascituro, de pouca aplicabilidade, segundo LÔBO (2015) ocorre somente se o genitor vier a falecer estando a mulher grávida, mas destituída do poder familiar. Caso em que o curador da genitora será legitimado para propor a curadoria do nascituro. O antigo artigo 1.780 do Código Civil, revogado pela Lei 13.146/15, previa a possibilidade de interdição do enfermo ou portador de deficiência física e em razão de sua dificuldade de locomoção estabelecia uma curatela em forma de mandato para melhor atender aos seus interesses, uma vez que encontra-se em pleno exercício de suas faculdades mentais. A curatela total ou parcial ocorre após a propositura de ação judicial, pelos legitimados previstos no artigo 1.775, do Código Civil, quais sejam, o cônjuge ou companheiro, o pai ou a mãe, os descendentes e, por fim o juiz. Somente após decisão judicial pode a pessoa ser considerada incapaz. Dessa maneira, depois da sentença de interdição os atos praticados pelo incapaz são considerados nulos, tendo em vista que os efeitos desta são ex nunc.

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Na curatela, nomeia-se pessoa idônea para administrar e zelar pelos interesses do incapaz, podendo ser instituída de três formas, legítima, testamentária ou dativa. A forma legítima é concedida àqueles que estão previstos no artigo 1.775, do Código Civil, e em razão de grau de parentesco com a pessoa a ser curatela, seguindo se a ordem de sucessores descrita no artigo e somente na ausência de um nomeia-se o próximo. Em contrapartida, na forma testamentária o curador é nomeado em testamento deixado pelos pais da pessoa a ser curatelada, podendo aceitar ou não o encargo. E por último, temos a curatela dativa, prevista no § 3º, do artigo 1.775 do CC, hipótese em que por ausência de curadores legítimos é nomeada, judicialmente, pessoa idônea para administrar os bens do incapaz. Atualmente, após a inclusão do artigo 1.775-A, no Código Civil, pela Lei 13.146/15, passou a permitir a curatela compartilhada a mais de uma pessoa, permitindo que duas ou mais auxiliem conjuntamente o curatelado. Saliente-se que o Estatuto criou um novo instituto de assistência a pessoa com deficiência, que acabou por tornar a curatela medida excepcional, até porque, como já exposto, as pessoas com deficiência tiveram sua capacidade plena declarada após a promulgação da Lei 13.146/15. (CHAVES, 2016) Vale dizer que o curador passou a servir apenas para as necessidades específicas de cada caso, conforme aduz Gagliano; Pamplona Filho (2016, p. 740) “desaparece, a partir do Estatuto, a figura do curador com ‘superpoderes’, na medida em que a sua a atuação é limitada à atividade negocial do curatelado.” Assim como demonstrado em recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, AC 70070966890, tendo como relatora a desembargadora Liselena Schifino Robles Ribeiro (2016). Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE INTERDIÇÃO. CONTRADIÇÃO DAS PROVAS ANGARIADAS AO FEITO. NECESSIDADE DE NOVA PERÍCIA POR EQUIPE MULTIDISCIPLINAR. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. Razoável a desconstituição da sentença, a fim de que seja realizada nova perícia por equipe multidisciplinar, nos termos do artigo 1.771 do Código Civil (com a nova redação dada pela Lei 13.146 /15), com vistas a especificar minuciosamente a capacidade e as responsabilidades de Jéssica, em conformidade com a ótica do Estatuto da Pessoa com Deficiência ou, se for o caso, o procedimento especial de Tomada de Decisão Apoiada, destinado às pessoas que possuem algum tipo de deficiência, mas que podem exprimir vontade, na forma prevista no artigo 1.783-A do Código Civil , introduzido pela Lei nº 13.146 /15. RECURSO PROVIDO. (Apelação Cível Nº 70070966890, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 28/09/2016). Para tanto, não há que se falar atualmente em processo de interdição, mas sim em processo de curatela, pois o indivíduo mesmo curatelado, a teor do novo Estatuto permanece com sua capacidade, ainda que de forma relativa. 4.1 A Autocuratela Instituto de grande relevo para o presente trabalho também é a autocuratela, que no ordenamento jurídico brasileiro, relaciona-se unicamente às diretivas de vontade, que consiste em termo pré-definido por pessoa que passará por procedimentos médicos com alto risco ou que possuam doença mental degenerativa e receiam por uma eventual impossibilidade de manifestarem sua vontade (ROSENVALD, 2016).

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Com tal diretiva é possível que a pessoa nomeie seu curador, estabelecendo o âmbito de sua atuação, seja ela patrimonial, pessoal, ou ainda, os cuidados médicos aos quais quer ser submetida, conforme disposto no artigo 1º, da Resolução número 1.995 de 2012, do Conselho Federal de Medicina (CFM, 2012), “Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.” O objetivo principal circunda a prevenção de possíveis conflitos após a perda da capacidade cognitiva plena da pessoa e até mesmo de que não faltem cuidados a esta. O documento a comprovar a diretiva antecipada de vontade deve ser feito por instrumento público, devidamente registrado e somente nas situações previstas na resolução supracitada. Nesse viés, cumpre expor que, não obstante a Lei 13.146 ter revogado o artigo 1.768 do Código Civil, ela trouxe como legitimado para promover a curatela a própria pessoa, ou seja, reafirmou o instituto ora estudado, e apesar da discussão entre os doutrinadores a respeito da validade da autocuratela após a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil. A legitimidade da pessoa para promover a sua curatela não foi suprimida após a vigência do novo Código de Processo Civil, tendo em vista que a promulgação Estatuto é posterior ao Código de Processo Civil e trata-se de lei especial. Assim defende Farias (2016, p. 324) “[...] o Código de Processo Civil não poderia ter afastado a legitimidade da própria pessoa para a curatela, o que só veio a ser reconhecido pelo legislador posteriormente, durante a vacatio legis do novo Código de Ritos. A harmonização é imperativa no caso.” Portanto, há previsão legal que oportunize o indivíduo a se autocuratelar, além das diretivas antecipadas de vontade. 5 ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA (LEI 13.146/15) Com o Decreto nº 186 de 2008, a Convenção sobre o direito das pessoas com deficiência realizada em Nova York no ano de 2007, foi recepcionada e recebeu cunho de emenda à Constituição no ano de 2009. Conforme entendimento de Menezes (2015, p. 4) a convenção que embasou o Estatuto da Pessoa com deficiência “constitui o primeiro tratado do sistema universal de direitos humanos do Século XXI cujos princípios cardiais são o ‘in dubio pro capacitas’ e o da ‘intervenção mínima’.” Tal Convenção estabeleceu em seu artigo 12, 3 que “os Estados Partes tomariam medidas para promover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”. (BRASIL, 2009) Assim, para cumprimento do disposto e a fim de equiparar a pessoa com deficiência às demais, institui-se o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), que remodelou a definição de capacidade civil e ampliou o rol de pessoas capazes, conforme a redação do artigo 1º do referido estatuto que assegura a igualdade de condições no exercício de direitos e liberdades fundamentais, com o objetivo de incluir a pessoa com deficiência na sociedade (BRASIL, 2016): Depreende-se da leitura do artigo 2º legislação atual como pessoa com deficiência aquela que “tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” (BRASIL, 2016) A preocupação com as barreiras que impedem o exercício da

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capacidade plena pela pessoa com deficiência não é novidade. Em meados da década de 1980, surgiram movimentos reivindicatórios de acessibilidade arquitetônica das cidades e, desde então as pessoas com deficiência vêm angariando direitos e, principalmente sendo incluídas na sociedade. (SOBREIRA; CHAVES, 2012) Além de conceituar quais seriam as pessoas com deficiência, o estatuto também prevê os critérios para a aplicação das normas peculiares a tal situação como acerca da acessibilidade, das barreiras urbanísticas e arquitetônicas etc., tudo isso para assegurar a eficiência da sua aplicabilidade. O estatuto mostra-se ampliador dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência que antes de sua entrada em vigor, era considerada incapaz somente em razão de sua deficiência, sem que fosse observada a sua autonomia para os atos civis sem repercussão jurídica, como os direitos personalíssimos. Nesse ponto o artigo 6º do Estatuto apresenta diversas inovações quanto a esses direitos, permitindo a pessoa com deficiência o direito a sexualidade, a privacidade, a constituir matrimonio, a realizar o planejamento familiar e a adotar. A autonomia para agir que liga-se a capacidade conceitualmente, não era observada casuisticamente para melhor compreender as limitações das pessoas com deficiência, o que foi alterado pela Lei 13.146/15, pois conforme assevera Menezes (2015, p. 5-6) “[...] a autonomia, substrato material da capacidade de agir, constitui uma necessidade humana da qual decorrem vários direitos. Todos têm, em menor ou maior medida, uma capacidade de agir.” Outra inovação perceptível está relacionada a curatela. Com a entrada em vigor do Estatuto da pessoa com não interdição de pessoa em razão de sua deficiência, limitando-a de forma plena, mas sim, uma aplicação casuística, nos limites das necessidades da pessoa, sem restringir-lhe a manifestação de vontade. 5.1 Alterações na teoria das incapacidades Corolário da nova caracterização da pessoa com deficiência, a Lei 13.146/15 provocou enorme revolução na teoria das incapacidades, alterando os artigos 3º e 4º, do Código Civil considerando apenas como indicador da incapacidade absoluta apenas o fator etário (menores de dezesseis anos) e como relativamente incapaz, em razão da existência de algum tipo de deficiência, somente aqueles que por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade. O estatuto, apresenta nova definição de pessoa com deficiência, não a classificando como sujeito vulnerável, mas sim, pessoa apta a dirimir seus atos de forma consciente e, melhor, nem a vinculando à intervenção ou ao auxílio de terceiros em seus atos. (ROSENVALD, 2015). Buscou-se com a declaração de capacidade plena das pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, incluí-las na sociedade, em atenção aos princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, a cumprir a premissa contida no artigo 5º do texto constitucional. Além das alterações apresentadas, o artigo 114 da Lei 13.146/15, também trouxe diversas modificações em dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil. Tais alterações vão desde a impossibilidade de anulação do casamento em razão do desconhecimento de enfermidade grave ou deficiência física antes da celebração do casamento até a impossibilidade de afastamento da pessoa com deficiência do rol de testemunhas em um processo. Neste contexto, existem diversas críticas sobre a validade dos atos praticados pelas pessoas com deficiência, isso porque persiste hoje o entendimento de que aqueles que por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade são relativamente incapazes, conforme preceitua o artigo 4º do Código Civil, sendo os seus atos praticados anuláveis no ordenamento jurídico brasileiro.

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Tal fato pode ocasionar insegurança jurídica, tanto para quem celebra um negócio jurídico com pessoa com deficiência, quanto para o próprio portador de deficiência. A solução para Farias; Cunha; Pinto (2016, p. 314) seria interpretar “conforme a boa-fé, para tentar emprestar a melhor solução possível, privando o ato de efeitos em situações limítrofes.” Além disso, critica-se ainda a contagem do prazo prescricional e decadencial para as pessoas com deficiência que antes não era contado, sendo totalmente desfavorável ao portador de deficiência, e fugindo ao objetivo principal do Estatuto que consiste na proteção da respectiva pessoa. Conforme explicita Requião (2016, p. 187) [...] a retirada da condição de incapaz do portador de transtorno mental lhe seria prejudicial, pois passariam aquelas a correr contra este, o que antes não aconteceria [...] A mudança, portanto, afeta a alguns dos sujeitos tidos como deficientes, vez que aquele que antes se enquadrava como relativamente incapaz já não era atingido pela proteção legislativa do CC-2002. Insta salientar que, tal modificação atinge àqueles hoje tidos como plenamente capazes e não aqueles previstos no artigo 4º do Código Civil. Mas a visão protecionista tende a ser prejudicial a pessoa com deficiência. Pelo fato de serem vulneráveis para algumas situações não significa que o sejam para todas, bem como que na medida de seu discernimento saibam julgar o que lhes convém ou não. Tal entendimento demasiadamente protecionista limita a autonomia da pessoa com deficiência. 6 TOMADA DE DECISÃO APOIADA A tomada de decisão apoiada, conforme redação do artigo 116, da Lei 13.146/15, consiste num instituto assistencial de jurisdição voluntária, voltado a auxiliar a pessoa com deficiência no exercício de sua capacidade, com a nomeação de pelo menos dois apoiadores idôneos, de sua confiança para que lhe preste informações necessárias conforme determinado previamente. Tal instituto, preferencial a curatela, está previsto no artigo 1.783A do Código Civil, inserido pela Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e estabelece que o apoiador será nomeado pela pessoa com deficiência, através de processo judicial, em que será avaliada por uma equipe multidisciplinar a fim de verificar o seu grau de deficiência, bem como a viabilidade do apoiador para os atos que julgá-lo necessário. Conforme previsão do §3º do artigo 1.783-A o processo de tomada de decisão apoiada deverá ser acompanhado por um representante do Ministério Público que atuará conforme interesse da pessoa com deficiência para salvaguardar seus interesses. (BRASIL, 2015) Não há prazo de duração determinado em lei para o apoio, mas o apoio deve ser por prazo determinado segundo as especificações do caso, podendo a apoiado convencionar o prazo de duração com seu apoiador. Preceitua Requião (2016, p. 182) “privilegia-se, assim, o espaço de escolha do portador de transtorno mental, que pode constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida civil.” O instituto agora estudado pressupõe discernimento mínimo da pessoa, possibilitando sua manifestação de vontade judicialmente e se assemelha ao instituto da curatela, tanto que o próprio Estatuto prevê que nos demais casos que não estão previstos no artigo 1.783-

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A, aplica-se subsidiariamente o determinado para esta. O mecanismo garante às pessoas com deficiência física e mental leve que exerçam sua capacidade de fato, mesmo após a nomeação do apoiador para tratar de interesses patrimoniais e existenciais. Da mesma forma assevera Farias; Cunha; Pinto (2016, p. 336): “a tomada de decisão apoiada é um modelo protecionista para pessoas plenamente capazes, porém em situação de vulnerabilidade por conta de uma deficiência.” Justamente neste ponto, critica-se o instituto da curatela pelo seu viés de proteção patrimonial do indivíduo, que o priva de sua própria vontade, o que não aconteceria com a tomada de decisão apoiada, já que não há afastamento da pessoa de sua capacidade de fato, sendo os apoiadores meros representantes da pessoa com deficiência. Corrobora com este entendimento Rosenvald (2015): Cuida-se de figura bem mais elástica do que a tutela e a curatela, pois estimula a capacidade de agir e a autodeterminação da pessoa beneficiária do apoio, sem que sofra o estigma social da curatela, medida nitidamente invasiva à liberdade da pessoa. Para tanto, este novo instituto terá validade perante terceiros, para os atos em que a pessoa encontra-se apoiada, de forma irrestrita, podendo o terceiro solicitar que os apoiadores contra-assinem os contratos ou acordos realizados com o apoiado, especificando quais as influências sobre aquelas decisão, conforme previsão do §5º, do artigo 1.783-A, do Código Civil. Havendo divergência entre os apoiadores e a pessoa apoiada, a controvérsia deverá ser levada a juízo para que o magistrado opine sobre a melhor decisão a ser tomada. Isso porque, os apoiadores respondem pelos prejuízos que causarem ao apoiado. Assim como a pessoa com deficiência pode instituir os apoiadores, poderá destituí-los a qualquer momento conforme sua conveniência. Também há permissão legal para que o apoiador requeira ao juiz a seu afastamento do encargo, que só ocorrerá depois de ouvido o magistrado. Ademais, conforme Menezes (2015, p. 13). É possível que alguns casos requeiram apoio apenas quanto às decisões jurídicas patrimoniais, enquanto outros demandem apoio para as decisões que impactam na esfera não-patrimonial. A necessidade da pessoa requerente é que justificará e identificará o âmbito no qual será apoiada Conforme se observa a tomada de decisão apoiada poderá atingir atos fora de esfera patrimonial, ao contrário da curatela que possui aplicação somente quanto aos interesses patrimoniais da pessoa com deficiência. 6.1 Semelhanças e diferenças com o admministratore di sostegno do sistema italiano A tomada de decisão apoiada já encontra diversos institutos semelhantes em outros ordenamentos jurídicos, como o Francês e o Italiano, sendo este o que mais se assemelha ao modelo adotado no Brasil. Tais métodos também funcionam como medidas alternativas à curatela e com ela coexistem, sendo que esta, com o passar do tempo, é cada vez menos utilizada, dando lugar a medidas menos invasivas à vontade da pessoa. O amministrazione di sostegno do sistema italiano, disciplinado nos artigo 404 à 417 do Código Civil italiano, também prevê a nomeação de dois apoiadores para auxiliar o portador de deficiência no exercício de sua capacidade de fato, não havendo prazo determinado

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para a duração do apoio. Vale ressaltar que o amministrazione di sostegno, está em vigor desde 2004 e tem refletido eficácia durante todo esse período, conforme discorre Rosenvald (2015), “Dos 11 anos de experiência italiana, extrai-se que, mais do que uma reforma, a introdução da administração apoiada se tornou uma verdadeira revolução institucional.” Somente com o tempo será possível afirmar que os mesmos reflexos serão vistos no Brasil, por ora, basta esperar a aplicação do instituto e se realmente a curatela será posta em desuso. 6.2 Curatela x Tomada de decisão apoiada Analisando os institutos da curatela e da tomada de decisão apoiada, percebe-se que houve uma mitigação nesta, visto como limitadora de direitos, dando lugar a um instituto mais maleável que permite ao portador de deficiência, mental ou física, o exercício de sua vontade. Ademais, curatela incide somente sobre questões patrimoniais daquele que hoje é considerado relativamente incapaz, enquanto a tomada de decisão apoiada alcança também o âmbito pessoal, existencial da pessoa independente de ser relativamente incapaz ou plenamente capaz. Não há limitação da vontade do apoiado ao contrário da curatela, em que a sua vontade é suprimida, permitindo, inclusive que o curador realize negócios jurídicos em nome do curatelado. (MENEZES, 2015). Em sequência, na curatela podem ser nomeados um ou mais curadores pelo período de dois anos, enquanto que na tomada de decisão apoiada o mínimo de apoiadores é dois e ocorre pelo prazo determinado pelas partes. São legitimados para propor a curatela aqueles dispostos no artigo 1.775 do Código Civil, enquanto que a Lei 13.146/15 concede-se a prerrogativa de nomeação de apoiador somente a pessoa a ser apoiada. A curatela sujeita os relativamente incapazes, enquanto a tomada de decisão apoiada aplica-se aos deficientes que mantêm sua capacidade plena. A par das diferenças salientadas, os institutos muito se assemelham quanto à prestação de contas, à forma de instituição, qual seja, judicial, à forma de exoneração do encargo que depende de requerimento feito ao juiz e somente ocorrerá após a sua manifestação e à forma de responsabilização, que tanto do apoiador quanto do curador será averiguada pelos prejuízos que causarem. Ademais, aplica-se subsidiariamente a tomada de decisão apoiada o disposto referente a curatela. Da comparação entre os institutos da autocuratela e da tomada de decisão apoiada, conclui-se semelhanças relevantes, levando inclusive a crer que a tomada de decisão apoiada prevaleceria, sendo substituída somente para questões patrimoniais, pela autocuratela. 7 A TOMADA DE DECISÃO APOIADA, INSTITUÍDA PELA LEI 13.146/15 E O EXERCÍCIO DA CAPACIDADE PLENA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. Com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com deficiência todas as pessoas portadoras de deficiência, seja ele física ou mental foram consideradas plenamente capazes, em observância ao Decreto 186 de 2008, que incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro o tratado sobre a inclusão da pessoa com deficiência assinado na Convenção de Nova York, de 30 de março de 2007. Isso porque a deficiência não deve estar atrelada a incapacidade da pessoa, que apesar de possuir limitações, deve ser tratada em igualdade de condições, obedecendo aos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, conforme disposto na alínea “e” do preâmbulo do próprio Decreto: (BRASIL, 2008).

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a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e barreiras devidas às atitudes e ao meio ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Contudo, algumas modificações de direitos trazidas pelo Estatuto da pessoa com deficiência, causam espanto quando analisada sob a óptica da proteção do indivíduo em seus direitos pessoais. Vale dizer que a curatela era amplamente criticada, pois restringia-se aos direitos patrimoniais do curatelado que tinha sua autonomia de vontade suprimida em detrimento da vontade do representante, mas aparentemente houve uma mitigação do instituto para abranger o âmbito pessoal. (TARTUCE, 2015). O objetivo legislativo com a criação da tomada de decisão apoiada mostra-se constitucional, pois trata-se de ratificação da Convenção realizada em Nova Yord como emenda a Constituição e, à primeira vista demonstra-se garantidor da dignidade do indivíduo em relação aos direitos da personalidade; porém, ao analisar detidamente o instituto, verifica-se brechas em alguns dispositivos, que podem ocasionar dúvida quanto à capacidade plena da pessoa com deficiência e acerca da segurança empreendida dos negócios jurídicos celebrados com as pessoas com deficiência. (REQUIÃO, 2016). Desta maneira, verifica-se no texto legislativo que a tomada de decisão apoiada consiste num meio assistencial pelo qual o portador de deficiência pode nomear, judicialmente, duas pessoas de sua confiança para auxiliá-lo em atos que julgar necessário, de acordo com as suas limitações, sendo que haverá avaliação das necessidades do indivíduo e da capacidade do apoiador de auxiliá-lo. Somente nessas primeiras considerações verifica-se que o procedimento que visa a promoção do exercício da capacidade de fato de forma ampla, encontra diversos complicadores. Primeiro em relação à exigência do mínimo de dois apoiadores e segundo em relação a instauração de processo judicial. Ora, se o objetivo principal é de assistência, o procedimento de nomeação poderia ocorrer via cartorária, considerando que a pessoa conserva sua capacidade plena, não necessitando de procedimento judicial e inclusive de análise do portador de deficiência por equipe multidisciplinar. (SCHREIBER, 2016) Ademais, a própria curatela considerada rígida exige somente um curador e não dois para a instituição da curadoria, ao contrário da tomada de decisão apoiada. Noutro ponto, é questionável a participação de representante do Ministério Público, uma vez que este deve atuar nas ações com interesse social e individuais. Além disso, o artigo 178 do atual Código de Processo Civil não mais prevê a atuação do Ministério Público nas ações sobre o estado da pessoa, tutela, curatela e interdição (em desuso), conforme antes previsto no artigo 82 do CPC/73 (BRASIL, 2015). Dessa forma, não se justifica a atuação do Parquet nas ações de tomada de decisão apoiada. Outra matéria que merece discussão é a possibilidade da pessoa que celebra negócio jurídico com a pessoa com deficiência poder exigir do apoiador que aposte sua assinatura no documento e especifique a sua influência sobre o apoiado, o que é inconcebível, uma vez que segundo o texto legal o negócio jurídico é realizado por pessoa capaz. (SCHREIBER, 2016) Assim, o que se verifica é que houve, na verdade, uma mitigação do instituto da curatela, que ao invés de proporcionar a pessoa portadora deficiência um meio menos burocrático e realmente assistencial acaba por mascarar a ausência de capacidade plena do portador de deficiência, sendo instituto de pouca aplicabilidade na prática.

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A pessoa com deficiência capaz e com autonomia para os atos da vida civil, somente nomearia um apoiador em caso de ter o discernimento reduzido, não necessitando de equipe multidisciplinar para avaliar o grau de necessidade do apoiador frente as suas necessidades, uma vez que se trata de jurisdição voluntária. (REQUIÃO, 2016). Ao que parece o objetivo deveria ser o mesmo do admministrazione de sostegno italiano, que busca inutilizar a curatela, colocando-a em desuso, mas na verdade ao modificar o sistema da curatela e interdição das pessoas, que não possuem nenhum grau de discernimento, os institutos se aproximaram quanto à sua aplicabilidade, motivo pelo qual não há aplicabilidade visível da tomada de decisão apoiada, pela ausência de praticidade. Anderson Schreiber (2016) entende que Mais prático será ao deficiente, plenamente capaz, recorrer ao mandato ou a outros instrumentos semelhantes quando necessário lhe parecer, sem se submeter a processo judicial, com todas as agruras que o ingresso em juízo implica especialmente para a população mais carente de recursos econômicos – e mais necessitada, por isso mesmo, da proteção que o Estatuto deveria oferecer. Sendo assim, não houve cuidado do legislador ao redigir a norma para que de fato o instituto da tomada de decisão apoiada não se assemelhasse a um limitador da capacidade, mas fosse apenas uma medida assistencial, prática, célere e que de fato proporcionasse ao portador de deficiência o apoio necessário para exercer sua capacidade de fato, pois da maneira apresentada não há exercício da capacidade plena pelo individuo, mas sim uma flexibilização da vontade quanto aos direitos da personalidade (capacidade de direito). CONCLUSÃO O objetivo deste trabalho versou sobre a igualdade estabelecida pelo Estado, que deve observar o princípio constitucional da isonomia, que busca assegurar tratamento igualitário para os iguais e desigual para os desiguais. Apesar de legalmente as pessoas com deficiência possuírem capacidade plena para os atos da vida civil, tanto assim que podem manifestar sua vontade para instituição de um apoiador, não encontra sentido tal previsão, uma vez que cientes de seu discernimento não necessitariam de um apoiador para o exercício dos direitos da personalidade. Desta feita, a pessoa com discernimento suficiente para os atos da vida civil, conforme faz crer o texto legal, jamais se restringiria à vontade de terceiro para gerir seus interesses de forma assistida, e principalmente, não se submeteria à avaliação profissional para determinar suas limitações, tendo em vista que a lei lhe assegura a capacidade plena, conforme o caput do artigo 84, da lei 13.146, “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.” (BRASIL, 2015) Caso a limitação de discernimento ou compreensão fosse em relação ao âmbito patrimonial, poderia a pessoa portadora de deficiência instituir um curador, visto que a curatela não mais interdita a pessoa com deficiência, conservando-a capaz. Não só nestes pontos residem as críticas, mas, conforme já explanado acima, a tomada de decisão apoiada possui diversos fatores conflitantes, seja em relação ao procedimento, quanto às formalidades, ou ainda quanto as exigências para validade, que em nada corroboram com o objetivo principal do Decreto nº 186 de 2008, que permeia o tratamento igualitário para as pessoas com deficiência.

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O que se percebe é uma mitigação do instituto da curatela com um viés liberal, mas sem o devido cuidado em realmente proporcionar a maior inclusão social, sem ferir ou reduzir a proteção e a dignidade da pessoa portadora de deficiência. Somente o tempo demonstrará os reflexos da Lei 13.146/15 e permitirá o esclarecimento do alcance da inclusão social pretendida. REFERÊNCIAS BRASIL. LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: < https://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/L3071impressao.htm>. Acesso em: 14 out. 2016. BRASIL. LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406.htm>. Acesso em: 28 abr. 2016. BRASIL. LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ L10406compilada.htm>. Acesso em: 14 out. 2016. BRASIL. LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>. Acesso em: 28 abr. 2016. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2016. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação cível nº. 70070966890, Sétima Câmara Cível. Relator Liselena Schifino Robles Ribeiro. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/ search?q=AC+70070966890+RS&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&entsp=a__politica-site&wc=200&wc_mc=1&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&lr=lang_ pt&sort=date%3AD%3AR%3Ad1&as_qj=&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as_eq=&as_q=+#main_res_juris>. Acesso em: 06 nov. 2016. BRASIL. Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: decreto legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008: decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. - 4.ed., rev. e atual. – Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2011. Disponível em:<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&sqi=2&ved=0ahUKEwiz35X2zcvMAhWJIpAKHcvXCWAQFggcMAA&url=http%3A%2F%2Fwww. pessoacomdeficiencia.gov.br%2Fapp%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fpublicacoes%2Fconvencaopessoascomdeficiencia.pdf&usg=AFQjCNHHuCAKtw8OEPJFDBfhkY2dDJ-kTQ&bvm=bv.121421273,d. Y2I>. Acesso em 28 de abril de 2016. CASTRO. Flávia Lages de. História do Direito: geral e do Brasil. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 93-96. COELHO, Thaís Câmara Maia Fernandes. Autocuratela evita discussões entre familiares. IBDFAM. Entrevista concedida ao Boletim.

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Banca Examinadora: Omar Narciso Goulart (Orientador) Valéria Edith Carvalho (Examinadora 1) Marco Flávio Sá (Examinador 2)

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DEVOTEES E CRIMES SEXUAIS CONTRA DEFICIENTES FÍSICOS DEVOTEES AND SEXUAL CRIMES AGAINST PHYSICALLY INCAPACITATED PEOPLE Sara Caroline Leles Próton da Rocha1

RESUMO: O presente artigo visa a, por meio da literatura existente, do cinema e da pesquisa de campo, suscitar a reflexão sobre o impacto da ausência de discussões e esclarecimentos sobre a sexualidade do deficiente físico nas relações devotees e a incapacidade de opor resistência, no contexto dos crimes sexuais que envolvem os mesmos. Cabe a cada cidadão exigir o cumprimento das leis, bem como a concretização de seus direitos, e ao Estado, zelar pelo efetivo direito de viver, e viver com dignidade e respeito. Faz-se mister ressaltar que pessoas com deficiência física também figuram no polo passivo de agressões sexuais, e estas poderiam ser evitadas caso o Estado e as famílias não se omitissem diante da sexualidade dos mesmos. PALAVRAS-CHAVE: Deficiência física. Devotees. Estupro. Vulnerabilidade.

ABSTRACT: This term paper, through literature, movies and field research, aims to clarify and raise awareness about the impact of the absence of discussion on sexual relationships between devotees and physically disabled people and the latter’s inability to resist in the context of sexual crimes. It is up to every citizen to demand the enforcement of laws and the implementation of their rights, and it is up to the State to ensure the effective right to life, dignified and respectful life. It is of crucial importance to emphasize that physically disabled people can be victims of sexual assault, which could be avoided if the State and their families took necessary precautions against sexual assaults. KEYWORDS: Physical disability. Devotees. Rape. Vulnerability.

Sumário: 1 Introdução. 2 Direitos sexuais. 3 Breve apontamento histórico acerca da deficiência física. 3.1 A superproteção da família versus os desafios sexuais. 4 Criminosos sexuais e parafilias. 4.1 Caracterização do criminoso. 4.2 Características físicas da vítima. 4.3 Sadismo sexual versus violentador sádico. 4.4 Parafilias e o cinema. 4.4.1 Peeping tom – a tortura do medo. 4.4.2 Encaixotando helena. 4.4.3 Crash, estranhos prazeres. 5 Devotees. 5.1 Origem e conceito. 5.2 Benefícios e malefícios. 5.3 Devotees e as bonecas sexuais na deep web. 6 Enquadramento legal dos crimes sexuais contra deficientes físicos. 6.1 Estupro, estupro de vulnerável, exploração sexual, assédio sexual, coação sexual e abuso sexual. 6.2 Aplicabilidade do princípio da proporcionalidade no estupro de vulnerável. 6.3 Inexistência de inimputabilidade. 6.4 Código penal português. 6.5 Vítima prostituída e a presunção de violência. 6.6 Homicídio por parafilia. 6.7 Fotografias. 6.8 A palavra da vítima, denúncias e aborto humanitário. 7 Pesquisa de campo. 7.1 Instituto Médico Legal BH. 7.2 Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e ao Idoso (DEADI). 7.3 Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). 7.4 Pesquisa virtual sobre devotees. 7.5 Censo. 8 Conclusão. Referências.

- O que aconteceu de errado com você? - Estou inacabado. Edward Mãos de Tesoura

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Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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domínio do instinto pela sublimação, defletindo as forças instituais sexuais do seu objetivo sexual para fins culturais mais elevados, só pode ser efetuado por uma minoria, e mesmo assim de forma intermitente, sendo mais difícil no período ardente e vigoroso da juventude. Os demais, tornam-se em grande maioria neuróticos, ou sofrem alguma espécie de prejuízo. A experiência demonstra que a maior parte dos indivíduos que constituem a nossa sociedade não possuem a constituição necessária para enfrentar com êxito a tarefa da abstinência. Os que teriam já adoecido sob restrições sexuais mais brandas, adoecem ainda mais rapidamente e com maior gravidade ante as exigências de nossa moral sexual cultural contemporânea. A meu ver, a satisfação sexual é a melhor proteção contra a ameaça que as disposições inatas anormais ou distúrbios do desenvolvimento constituem para uma vida sexual normal. (FREUD, 1977, p. 198)

1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem o objetivo de trazer reflexões sobre os direitos sexuais dos deficientes físicos, sob a seara dos direitos humanos e as consequências da atual ausência estatal no cenário atual. Precípuo se faz um debate jurídico e multidisciplinar sobre a sexualidade das pessoas com deficiência. No início da civilização, com a ausência da evolução moral e mental do homem, sua libido era satisfeita por meio de uma brutalidade quase animalesca, isenta de limites. Aos poucos a humanidade ascendeu sua perspicácia, bem como a moral e princípios aplicados ao indivíduo e à coletividade. Surgiu assim a transformação de um comportamento sexual quase animal, para um comportamento baseado no afeto. Emergiram diversos mitos ao longo da história no que diz respeito a sexualidade do deficiente, colocando-os à margem das discussões e negando-lhes os direitos e garantias da sua liberdade sexual. Entretanto, assim como qualquer ser humano, o deficiente físico também tem desejos sexuais. A sexualidade deveria ser discutida de modo natural, afinal todo ser humano tem direito a ela, porém, a negação desta por parte da família, das instituições de ensino e pelo próprio Estado colocam em risco a vida emocional e física das pessoas deficientes, pois se veem obrigados a trilhar por caminhos obscuros, desconhecidos e sem qualquer segurança ou modo de repressão as possíveis violências ocorridas. No Brasil poucas são as discussões concernentes ao tema, o que na prática significa um verdadeiro apartheid, invisível aos olhos dos que estão de longe; entretanto, os abusos sexuais, estupros, perversões, explorações, prostituição, exclusão, preconceito, dor, agressão e impunidade são vivenciados dia após dia. Analisar as consequências da ausência do Estado diante da sexualidade do deficiente físico permite adentrar na esfera das parafilias, especificamente o devoteísmo e suas consequências. O devoteísmo, em si, é perfeitamente aceitável assim como qualquer outra parafilia que não atinja outra pessoa incapaz de consentimento, entretanto, no mundo dos devotees, encontram-se também indivíduos sem princípios, e estes que causam preocupação e sofrimento. Os deficientes físicos possuem para sua defesa, no ordenamento jurídico brasileiro, apenas o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, que, embora seja específico a tais indivíduos, não aborda as práticas sexuais criminosas incididas contra eles. Tal ausência de um recorte específico, que verse sobre as peculiaridades que envolve a deficiência física, proporciona um tolhimento do exercício livre, pleno e consciente da sexualidade dos mesmos, uma vez que reflete a falta de segurança jurídica. O constrangimento de sofrer algum abuso sexual, interligado a sua condição física que não deveria ser um separador social, conjuntamente a falta de preparo do Estado em recepcionar tais indivíduos, prejudica denúncias, o que consequentemente impede a prevenção de tais atos criminosos. Meio ao século XXI, vive-se ainda a marginalização e obscuridade da sexualidade dos deficientes físicos. Essa obscuridade proporciona a formação de perversos, que praticam todos os tipos de atos levianos com a certeza da impunidade, uma vez que não existe lei que puna exclusivamente tais crimes, nem debates a respeito. 2 DIRETOS SEXUAIS Podemos afirmar que a tarefa de dominar um instinto tão poderoso quanto o instinto sexual, por outro meio que não a sua satisfação, é de tal monta que consome todas as forças do indivíduo. O

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Existe uma complexidade no tema, pois a sexualidade em geral sofre estigmas, e a sexualidade do deficiente físico, além dos estigmas corriqueiros, passa por diversas formas de preconceito. Socialmente existe um tabu, falsas ideias de que deficientes físicos não têm desejos sexuais, não obtêm prazer, logo são proibidos de fazê-lo, recebendo o status de assexuados. Engano da maioria da população, pois a limitação do corpo não anula a capacidade de sentir o prazer. Deficiência física não torna o indivíduo desprovido de sexualidade, pelo contrário, torna-a mais aflorada à medida em que se aceita a própria deficiência e se aumenta a sua autoestima. Esse afloramento, que é reprimido e a falta de informações e ações preventivas, fazem desse público um alvo para abusos e crimes sexuais. A Declaração dos Direitos Sexuais, aprovada em 1999 durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, estabelece que toda pessoa humana tem: “ direito à liberdade sexual, direito à autonomia sexual, direito à privacidade sexual, direito à igualdade sexual, direito ao prazer sexual, direito à expressão sexual, direito às livres escolhas reprodutivas livres e responsáveis, direito à informação baseada no conhecimento cientifico, direito à educação sexual compreensiva e direito à saúde sexual.” (WAS, 2014) Pedagogicamente tal declaração é belíssima e evidencia que todos são sujeitos de direitos. Todavia, os direitos sexuais, na prática, são negligenciados aos deficientes físicos e a capacitação dos profissionais da saúde ainda é aquém para atender dignamente estes indivíduos, tornando-os invisíveis em sua maioria. O Ministério da Saúde conjuntamente a Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, após a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), elaboraram algumas diretrizes concernentes aos direitos sexuais e reprodutivos do deficiente, porém, com pouca publicidade e divulgação, e uma parcela mínima do país sabe algo a respeito. A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (2006) tem por base a Declaração Universal dos Direitos Humanos e possui status de emenda constitucional, sendo responsável por guiar as políticas públicas tanto em âmbito nacional como internacional. Embora a Declaração dos Direitos Sexuais seja da década de 90, e a Convenção tenha sido ratificada pelo Brasil em 2008, esses direitos são novidades para as políticas públicas, o que ressalta ainda mais a necessidade de diálogos sobre o tema e uma verdadeira e transdisciplinar acessibilidade à informação, à saúde, e à segurança sexual. Erroneamente acredita-se que pessoas com deficiência física são poupadas de crimes sexuais, porém, além de ser uma inverdade, essa fantasia tem como consequência a ausência de prevenção

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a doenças sexualmente transmissíveis, HIV e até mesmo cuidados básicos como mesa de exame ginecológico aptas a receberem mulheres cadeirantes, ou cuidados específicos ao público homossexual e suas variantes. Há a noção equivocada de que estes indivíduos não são sexualmente ativos, não fazem uso de drogas ilícitas ou álcool, e que são menos suscetíveis à violência sexual e ao estupro do que pessoas não portadoras de deficiência. No entanto, as poucas pesquisas existentes indicam que, na realidade, elas se encontram em situação de maior vulnerabilidade para todos os fatores de infecção pelo HIV/Aids (GROCE, 2004, p. 2)

Conforme o Censo do IBGE de 2000, um terço das pessoas com deficiência no país não completaram o ensino médio e 90% está fora do mercado de trabalho. Embora nessa pesquisa não tenha apenas deficientes físicos, o número permanece elevado, e baseado nessa estatística pode-se entender um dos motivos que levam alguns deficientes físicos a se prostituírem, o que eleva o risco de doenças sexualmente transmissíveis, assim como diversas formas de violência sexual pela ausência de orientações e diálogos plausíveis. 3 BREVE APONTAMENTO HISTÓRICO ACERCA DA DEFICIÊNCIA FÍSICA A compreensão do tratamento imputado ao deficiente físico tem por base um extenso período fatalista, ou seja, que o indivíduo nascia ou adquiria a deficiência simplesmente por existir. Independente da cultura ou da época, o que se percebe é a marginalização e depreciação do mesmo. Desde a pré-história existem relatos de infanticídio (hoje considerado crime, Art. 123 Código Penal de 1940), passando pela Grécia, que cultuava o corpo perfeito, Roma e Índia. Em outras culturas, os pais abertamente deixavam os filhos com deficiência física para adoção, e os que sobreviviam, tornavam-se atrações de circo. Datam do século V as crenças de que a causa das deficiências seria a ausência de luz divina, ou seja, espíritos, o que trouxe aos indivíduos o caráter diabólico, de poderes malignos e sobrenaturais. Na Pérsia, bem como na religião judaico-cristã o caráter demonológico da deficiência se propagou. O livro Malleus Maleficarum, 1487, dos autores e monges Sprenger e Kraemer, conhecido como o “martelo das bruxas ou o martelo das feiticeiras”, foi um manual utilizado para justificar a brutalidade da queima de bruxas, e entre as bruxas, estavam os deficientes físicos, pois os demônios e espíritos maléficos apoderaram do seu corpo e alma, o que, segundo os autores, teria causado tal deficiência. Embora em 2016 não se queimem mais os deficientes físicos, as formas de marginalidade e segregação persistem, tanto pelo falso conceito de incapacidade, quanto pelo preconceito. Mudaram-se os “apelidos”, de “endemoniados” para sexualmente incapazes. 3.1 A superproteção da família versus os desafios sexuais O enredo da vida humana propícia a mudança de paradigma, e não seria diferente quanto ao tratamento dado à deficiência física. O tabu sobre a espiritualidade, bruxaria e maus espíritos foi superado, e o século XX ostentou progressos relevantes aos cidadãos com deficiência, por exemplo, as bengalas e cadeiras de roda. Os direitos humanos, a Organização das Nações Unidas, a Constituição Federativa do Brasil de 1988 permitiram a agregação dessas minorias na sociedade brasileira, entretanto, até os dias de hoje tem predominado o caráter assistencial.

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O assistencialismo não vem só pelo Estado, mas pela família que continua vendo o seu ente como um incapaz, não em sua totalidade, mas no âmbito da sexualidade. Os pais e os parentes próximos criam um tabu gigantesco, que sequer mencionam a palavra sexo ou relacionamento perto do deficiente físico. Ignorar uma área tão importante da vida não a impede de florescer. Os seres humanos têm pulsões, e segundo Freud uma delas é a pulsão sexual (trieb), que após surgir não pode ser inibida ou desfeita. O deficiente físico é um ser humano como outro qualquer, revestido de pulsões, logo, não há porque ignorá-las. A família tem um papel primordial na vida do deficiente, principalmente para a reconstrução ou criação de uma autoestima elevada, o que consequentemente ocasionará relacionamentos saudáveis. A ausência de diálogos e orientações sexuais por parte da família proporciona uma caminhada obscura, solitária e arriscada. Todo e qualquer relacionamento tem seus riscos, suas dores, perdas e sofrimentos, entretanto, quando o indivíduo não teve a instrução necessária para se envolver com outra pessoa, pois lhe foram tolhidas tais informações, junto às dores e traumas convencionais e possíveis de acontecer, acresce a possibilidade de violência, manipulação, entre outros. A superproteção da família em negar a sexualidade do seu ente, simples e meramente por ser deficiente físico, não protege, mas coloca em risco a integridade física, mental e psicológica, da pessoa que dizem amar. Amor é cuidado e compreensão e não impor ao outro aquilo que se acha que ele precisa, sendo que as necessidades nem sempre são iguais. 4 CRIMINOSOS SEXUAIS E PARAFILIAS O fetiche, em francês, do português “feitiço” e do latim “factitio”, como todo objeto fálico imaginário, ocupa o lugar de um objeto interno que foi gravemente danificado. Esse objeto imaginário deve ser eternamente ressuscitado, para ser outra vez reparado ou controlado na cena sexual perversa. Em todo ato perverso existe, pois, uma cena primitiva condensada ou, mais exatamente, cena compensada por objetos simbólicos e com uma função lúdica. É preciso ainda que o sujeito possua uma aptidão para utilizar simbolicamente esses objetos externos para preencher o vazio interior resultante de uma falha simbólica. (DOUGALL, 1983, p. 51) A parafilia se diferencia do fetiche no que tange à habitualidade. O fetichista sente excitação por meio de algum objeto ou situação, entretanto, não age de modo obsessivo, já o parafílico só consegue obter prazer sexual e excitação utilizando o seu fetiche. Indivíduos parafílicos excluem outras formas de prazer, sendo obcecados e realizando-se sexualmente apenas com seus objetos de prazer, considerada uma psicopatologia. A Parafilia, pela própria etimologia da palavra, diz respeito à “para” de paralelo, ao lado de, “filia” de amor à, apego à. Portanto, para estabelecer-se uma Parafilia, está implícito o reconhecimento daquilo que é convencional (estatisticamente normal) para, em seguida, detectar-se o que estaria “ao lado” desse convencional. (BALLONE, 2005) As parafilias possuem diversos graus mas ao direito criminal, psicologia forense e ao presente trabalho, interessam apenas as formas gravosas de parafilia, pois estas ocasionam delinquências. Fazse mister ressaltar que a parafilia por si só não é fato gerador de crimes, na medida em que um cidadão portador de transtornos sexuais nem sempre os exterioriza, e tampouco causa prejuízos a terceiros.

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Ao transgredir as regras socialmente impostas, buscando exclusivamente satisfazer sua devassidão, o parafílico enseja a psicopatia sexual. Esse sexopata ou criminoso sexual não se importa com suas vítimas, nem com o sofrimento imposto às mesmas, sofrimentos físicos, psicológicos, emocionais e morais. 4.1 Caracterização do criminoso O facínora tem compreensão do ato perverso que praticou e, em grande maioria dos casos, não sofre de transtornos obsessivos compulsivos. Os crimes mais comuns praticados por tais indivíduos são: estupro, assédio, abuso, sadismo e voyeurismo. Isentos de problemas mentais, mas despidos de livre arbítrio em seus atos, ignoram o consentimento de suas vítimas. Os criminosos sexuais predominantemente são vistos como pessoas comuns, saudáveis, educados, sedutores, e raramente apresentam antecedentes criminais, exceto os habitualmente delinquentes, que utilizam seus crimes, por exemplo roubo, como meio para a pratica sexual perversa. 4.2 Características físicas da vítima Agressores sexuais comumente apresentam transtornos sexuais, como já mencionado, entretanto, neste trabalho, será observado o criminoso sexual que tem parafilia com deficientes físicos. Ao adentar na esfera das deficiências físicas, existe um rol de preferências: amputações; paraplegia; tetraplegia; triplegia; poliomielite e outros tipos de deficiência congênitas, adquiridas ou hereditárias, em quanto maior a gravidade e incapacidade causada pela deficiência, maior a atração. 4.3 Sadismo sexual versus violentador sádico O sadismo consiste em cumplicidade entre os companheiros ou parceiros, e nem sempre tem como finalidade o coito. Trata-se de uma agressão e violência premeditada, atendendo a uma finalidade erótica. O violentador sádico, entretanto, é o criminoso sexual que lesiona suas vítimas psicofisicamente, não tendo que se falar em parceiros, mas em vítimas. Tal violentador pode portar algum transtorno sádico de personalidade, e age segundo o seu livre arbítrio, egocentricamente e revestido de caráter criminoso 4.4 Parafilias e o cinema 4.4.1 Peeping Tom – a tortura do medo

Michael Powell traz uma sensibilidade fascinante em seus personagens. Produzido em 1960, está bem à frente do seu tempo por abordar temas que ainda hoje pouco se fala, exceto nos ramos da psicologia e criminologia. Mark Lewis, o personagem principal, é um jovem fotógrafo que utiliza do seu trabalho e hobby, para satisfazer e nutrir a sua personalidade voyeur. Influenciado pela sua infância, que era filmado e observado 24 horas por dia, como cobaia para os estudos do seu pai, neurocientista, adquiriu tais hábitos e desvios. Além de voyeur, Mark Lewis pratica homicídios por parafilia, também conhecido como crimes sádicos sexuais. A facilidade de satisfação da lascívia acarretada pelo seu trabalho é o ambiente ideal para a prática sexualmente delituosa, o que é comum entre os criminosos sexuais. Com o escopo de fotografar mulheres, se aproxima filmando e no momento ideal usa uma faca inserida no tripé da câmera, para cortar a jugular da sua presa. A finalidade do personagem é captar o auge do medo nos olhos das suas padecentes e na sequência ver as filmagens. Isento de qualquer atividade sexual com suas vítimas, o personagem elucida o transtorno sexual voyeur, colecionando também as cenas das suas experiências perversas.

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4.4.2 Encaixotando Helena

O enredo tem um cirurgião renomado, deslumbrado por uma garota de programa e sua beleza, que o rejeita. Entretanto, não aceita a rejeição e faz de tudo para ficar com a jovem, e após Helena sofrer um acidente, o médico vê a oportunidade para ficar com ela. Nick Cavanaugh amputa as pernas da prostituta e ao longo do filme, amputa também seus braços, para aumentar a dependência de sua amada e objeto de desejo. No desenrolar da trama, Helena sente-se atraída pelo médico e embora a sua condição física tenha sido provocada, demonstra a realidade de todo e qualquer deficiente físico no que concerne a sexualidade. O médico tem relações sexuais com sua namorada, e supera as expectativas da mesma, e Helena observa sua desenvoltura. Observar a performance do Nick mexe ainda mais com a libido de Helena. Independente da condição física, todos os seres humanos têm necessidades sexuais, e com os deficientes físicos não seria diferente, como demonstra o filme. 4.4.3 Crash, Estranhos Prazeres

Baseado no livro com o mesmo título e de autoria de J. G. Ballard, há uma rica exposição das pulsões sexuais humanas, bem como exemplifica e ilustra vários aspectos que serão trabalhados no presente artigo, além de ricas metáforas. Para alguns, o filme é perturbador, entretanto, retrata as possibilidades que envolvem as parafilias e até mesmo os crimes que podem ser praticados para a satisfação das mesmas. Após James Ballard sofrer um acidente automobilístico, que ocasionou a morte do motorista do outro carro, e companheiro de Helen Remington, que sobreviveu à colisão, passado algum tempo, tornam-se amantes e frequentadores de um grupo que tem fetiche com acidentes de carro. O grupo reproduz acidentes automobilístico famosos e se excitam com as mutilações decorrentes dos acidentes. Faz mister ressaltar que as encenações dos acidentes não possuem qualquer equipamento de segurança, o que aumenta a excitação sexual dos envolvidos. Os veículos utilizados facilitam a satisfação da lascívia, mas a libido se desenvolve com as desfigurações que os acidentes causam, e não com o acidente em si. As feridas sempre foram exaltadas, erotizadas, desde a religião, com Jesus Cristo sangrando, e toda a devoção que os ferimentos acarretaram, bem como na psicanalise, Freud relaciona as feridas sangrentas às diferenças sexuais e a castração masculina. O que o filme faz é mais uma vez trazer todo o erotismo que as feridas envolvem. Assim como devotees que fotografam deficientes físicos sem a devida autorização ou compartilham tais fotos, a película exemplifica a violação à imagem, à privacidade e à honra das pessoas acidentadas, quando têm suas fotografias tiradas pelo personagem Vaughan, após os acidentes, e que servem para estimular sexualmente, tanto no filme, quanto na vida real. Outro aspecto importante do filme é expor que deficiência física não é impeditivo para a realização da sexualidade do indivíduo, e o cineasta David Cronenberg não teve qualquer receio em mostrar esse desejo, representado por Gabrielle. A esposa de James, Catherine Ballard, também se envolve sexualmente com Vaughan após observar suas cicatrizes e se sentir atraída por elas, e ao final do filme, presencia-se a cena em que Catherine se revela uma wannabe, que é uma espécie de devotee, ao provocar seu acidente em busca de prazer sexual, mas também de causar dano ao seu próprio corpo.

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É muito prazeroso! Não sei se entendi bem. É o futuro, Ballard, e você já faz parte dele. Você está vendo isso pela primeira vez. Há uma psicopatologia CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA


benevolente que sinaliza em nossa direção. Por exemplo, acidente de carro é uma forma de semear, em vez de um evento destrutivo... A explosão da energia sexual. Mediando a sexualidade daqueles que já morreram. Com uma intensidade que é impossível ser mensurada de outra forma. Experimentar isso, viver isso, “isto” é meu projeto. (CRASH, 1996.)

5 DEVOTEES

A sociedade “burguesa” do século XIX e sem dúvida a nossa, ainda é uma sociedade de perversão explosiva e fragmentada. Isso, não de maneira hipócrita, pois nada foi mais manifesto e prolixo, nem mais abertamente assumido pelos discursos e instituições. Não porque, ao querer erguer uma barreira demasiado rigorosa ou geral contra a sexualidade tivesse, a contragosto, possibilitado toda uma germinação perversa e uma série de patologia do instinto sexual. Trata-se, antes de mais nada, do tipo de poder que exerceu sobre o corpo e o sexo, um poder que, justamente, não tem a forma da lei nem os efeitos da interdição: ao contrário, que procede mediante a redução das sexualidades singulares. Não fixa fronteiras para a sexualidade, provoca suas diversas formas, seguindo-as através de linhas de penetração infinitas. Não exclui, mas inclui no corpo à guisa de modo de especificação dos indivíduos. Não procura esquiva-las, atrai suas variedades espirais onde prazer e poder se reforçam. Não opõe uma barreira, organiza lugares de máxima saturação. Produz e fixa o despropósito sexual. A sociedade moderna é perversa, não a despeito de seu puritanismo ou como reação á sua hipocrisia: é perversa real e diretamente. (FOUCAULT, 1990, p. 46)

5.1 Origem e conceito O termo devoteísmo foi implementado na medicina na década de 1980 e surgiu no país em 1990, sendo, porém, até hoje pouco discutido, limitando-se ao mundo virtual. Grande parte da sociedade não sabe do que se trata o termo mencionado e tampouco ouviu essa palavra, já que fazem da deficiência um tabu. Devotee, também denominado devoto, é aquele que tem devoção ou admiração. “Homens e mulheres que, independente de sua opção sexual, idade, credo, raça, origem, nível intelectual, nível social econômico ou condição física, sente-se atraído por pessoas com deficiência. Tendo essa atração, em muitos casos, um forte cunho sexual” (KRONOS, 2010, p. 71). Devotees sentem amor pelo individuo com deficiência, por exemplo os pais e familiares, entretanto, alguns sentem atração física, uma espécie de fetiche, assim como outro qualquer. Todavia, existem os devotees interessados apenas na deficiência e estes, certamente são parafílicos e merecem atenção especial, por possivelmente causarem danos a terceiros. 5.2 Benefícios e malefícios Faz-se mister ressaltar a positividade dos devotees na vida dos deficientes físicos, que muitas vezes estão com problemas de baixa estima, e sentem-se bem, sentem-se vivos e desejados por esses admiradores. A devoção dessas pessoas, muitas vezes, permite o passo inicial para a redescoberta da sexualidade e da sua própria beleza, de modo saudável e construtivo. Nas palavras de Jacques Lacan, “o que o ser humano mais quer é ser desejado por outro ser humano”, e é exatamente isso que alguns devotees proporcionam. Os devotos possibilitam uma fenda meio aos estereótipos hollywoodianos de beleza. Algumas pessoas têm atra-

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ção por barba, loiras, morenas, altos, baixinhas, carecas, tatuados, fortes, magras, outros por deficientes físicos. A atração de um devotee nem sempre é consumada, às vezes por medo, por vergonha, por serem pretenders/wannabes (o primeiro sente prazer em se passar por deficiente físico, enquanto o segundo quer ser um deficiente físico e comumente causa danos a si mesmo, inclusive amputações), ou porque conseguem fotos na internet e saciam seu desejo por meio delas. No entanto, não existem apenas admiradores nessa seara, mas exploradores sexuais, criminosos sexuais, homicidas por parafilia, sexopatas, pessoas sem qualquer pudor. Os malefícios de um devotee despido de respeito e bondade são imensos. Encontram-se relatos em diversos sites dos próprios deficientes físicos quanto a fotografias publicadas sem autorização, a ofensas e humilhações, violência doméstica (especificamente mulheres), a tristeza de se sentir um objeto, a melancolia por ter a sua deficiência como atração e não o ser humano que é. Dificilmente depara-se com algum relato de crime sexual, mas não porque inexista, e sim pelo constrangimento que o envolve. Parafílicos adentram no mundo virtual e também em ambientes físicos, como centros de reabilitação, reuniões, institutos voltados a deficientes físicos. São eles muitas vezes médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e familiares. Alguns são sutis, outros mais agressivos e incisivos, mas o estrago psicoemocional e por vezes, físico, é imensurável. Diversas vezes, por falta de informação, as vítimas acreditam ser simplesmente um assédio e sucumbem ao mesmo, e depois percebem ser um criminoso sexual, dada as consequências sofridas. 5.3 Devotees e as bonecas sexuais na deep web Países do Leste Europeu, a Tailândia por exemplo, são conhecidos por perversões e crimes sexuais, e entre a vastidão de delinquências sexuais, é de conhecimento geral, as bonecas sexuais humanas. Essas bonecas sexuais, conhecidas como Lolita slave toys, consistem em crianças, que são vendidas pelos pais ou abandonadas em orfanatos, e levadas a centros cirúrgicos para retirada dos membros inferiores e superiores e uma série de modificações físicas, que as transformam em verdadeiros brinquedos sexuais. As Bonecas sexuais são encomendadas por meio dos “Doll Makers”, e são totalmente dependentes de seus donos, para comer, beber e evacuar. Tornam-se escravas sexuais e mentais, incapazes de emitir sons, ou mover-se, ainda virgens e impúberes. O filme “A Centopéia Humana” traz uma experiência semelhante às Lolitas slave toys, mas não quanto ao cunho sexual, e sim cientifico, com as alterações físicas nos seres humanos, bem como o livro “Frankenstein” de Mary Shelley. Tais obras nada importam quanto aos devotees, foi uma mera elucidação no que concerne às transformações físicas. Entretanto, as bonecas sexuais exprimem o anseio de diversos devotees, emanados de caráter criminoso. O domínio doentio e prazer com a deficiência física, mesmo que provocada por seu criador ou proprietário, exemplificam o caráter perverso e parafílico do mesmo. A história biológica e ambiental de cada criminoso sexual é formadora da personalidade deste, que executa sua atividade sexual mediante violência, psicológica ou física. Contudo, a criminogênese não será abordada no presente trabalho. Basta a informação de que a composição biológica e ambiental influencia o devotee parafílico e psicopata sexual, não sendo necessário adquirir uma boneca sexual para se enquadrar como tal.

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Art. 217. A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem

6 ENQUADRAMENTO LEGAL DOS CRIMES SEXUAIS CONTRA DEFICIENTES FÍSICOS Diz-me Eutidemo, acreditas que a liberdade seja um bem nobre e magnifico, que se trate de um particular ou de um Estado? – É o mais belo que é possível ter, responde Eutidemo. – Mas aquele que se deixa dominar pelos prazeres do corpo e que, em seguida, torna-se incapaz de praticar o bem, tu o consideras um homem livre? – De jeito nenhum, diz ele. (FOUCAULT, 1984, p.73)

pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. §2º (Vetado.) § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a a

20 (vinte) anos.

6.1 Estupro, Estupro de vulnerável, exploração sexual, assédio sexual, coação sexual e abuso sexual A palavra estupro vem do latim stuprum, que significa relação culpável. Inicialmente, como o Brasil não possuía uma legislação autônoma, baseava-se nas Ordenações Filipinas, e o tratamento das mesmas para o estupro era a pena de morte, mesmo que o agressor se casasse com a moça, salvo em caso de tal mulher ser escrava ou meretriz. Ao longo dos vários códigos penais que entraram em vigor no país, observa-se a reestruturação do conceito de vítima e a mudança de paradigmas quanto à mulher no que diz respeito à prostituição e comportamentos desviantes. Em 1830, o Código Penal brasileiro, denominado Código Criminal do Império, trouxe o crime de estupro, entretanto, esse código não se orientou por meio da Constituição do Império de 1824, que dizia que todos são iguais para a lei seja no âmbito da proteção, seja no âmbito do castigo. Diferenciava mulher honesta e prostituta, conforme seu artigo 222:

§ 4º Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos Pessoa vulnerável é uma denominação recente, criada por meio da Lei nº 12.015/2009, e diz respeito a criança, adolescente, mentalmente incapazes, mas diz respeito também, a pessoas com qualquer forma de incapacidade física, que impeça a sua resistência a prática criminosa, sendo tal conceito apresentado de forma taxativa. O presente artigo traz um lamentável simplismo no que concerne aos deficientes físicos, porém, esse simplismo, ou quase um silêncio, não significa que tais crimes sejam impunes. Nem mesmo a Lei nº 13.146/2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência Física, aborda o tema com a devida amplitude. Entretanto, ao final do artigo 217-A, do CP, existe menção à incapacidade de esboçar reação, e nesta, pode-se enquadrar a ausência de mobilidade física, ou restrições motoras (exemplo: tetraplegia, acidente vascular encefálico, poliomielite). Nesse mesmo entendimento: Se a vítima não tiver ou não puder usar o potencial motor, é evidente que não pode oferecer resistência. Assim, doenças crônicas e debilitantes (tuberculose avançada, neoplasia grave, desnutrições extremas); uso de aparelhos ortopédicos (gesso em membros superiores e tórax; gesso aplicado na coluna vertebral; manutenção em posições bizarras para ossificação de certas fraturas, etc.); paralisias regionais ou generalizadas; miastenias de várias causas etc. São casos em que a pessoa não pode oferecer resistência (MARANHÃO, p. 209, apud GRECO, 2014, p. 545).

Art. 222. Ter cópula carnal, por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três anos a doze anos e de dotar a ofendida. Se a violada for prostituta. Penas- de prisão por um mês a dois anos. O Código de 1890 abrandou a pena do estupro. Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão celular por um a seis anos. § 1º Si a estuprada for mulher pública ou prostituta: Pena - de prisão celular por seis meses a dois anos. § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será aumentada da quarta parte. Em 1940 surge o novo Código Penal, que veda a pena de morte, e no que diz respeito a diferenciação que os códigos anteriores trazia sobre as mulheres, este código deixa de condicionar a honestidade da vítima a existência do crime. “Constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Pena - reclusão, de três a oito anos”, artigo 213. Com a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, o Código Penal acrescentou os parágrafos ao artigo 213: § 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

O cumprimento da pena para o estupro de vulnerável é inicialmente fechado por se tratar de um crime hediondo (art. 1º, VI, Lei 8.072/90), e sua progressão ocorre após 2/5 para réu primário ou 3/5 em caso de reincidência. Quanto a prisão temporária, o prazo é de 30 dias, e para o benefício do livramento condicional, o réu deve cumprir 2/3 da pena. Destarte, a concessão da liberdade antecipada ocorre apenas na ausência de antecedentes criminais ou não exista reincidência em crime hediondo ou equiparado. O estupro de vulnerável ocorre pela conjunção carnal, bem como pela prática de ato libidinoso, independente de violência ou grave ameaça. Independente da pluralidade de atos sexuais, o agente delituoso responde por apenas um crime, o que impede a cumulação, e seu reflexo na dosimetria da pena.

No que concerne ao ponto principal do presente trabalho, que é a definição de crimes sexuais contra deficientes físicos, praticados por devotees, o mesmo enquadra-se no artigo 217- A do Código Penal de 1940, e incluído pela Lei nº 12.015, de 2009, e denomina-se estupro de vulnerável.

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HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR PRATICADOS COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. LEI 12.015/09. NOVA TIPIFICAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. DESFAVORABILIDADE. MULTIPLICIDADE DE ATOS LIBIDINOSOS. REFORMATIO IN PEJUS. NÃO OCORRÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. A Lei 12.015/09 promoveu sensível modificação nos dispositivos que disciplinam os crimes contra os costumes no Código Repressivo, ao reunir em um só tipo penal

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as condutas antes descritas nos arts. 213 (estupro) e 214 (atentado violento ao pudor), ambos do CP. 2. Reconhecida a tese de crime único pela Corte Estadual, a quantidade de atos libidinosos deve ser sopesada na aplicação da reprimenda na primeira etapa da dosimetria, pela desfavorabilidade das circunstâncias do crime (STJ, HC 171243 / SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, j. 16/08/2011).

No que concerne à tentativa, a mesma deve ser permitida, por se tratar de crime plurissubsistente, ou seja, que se perfaz com diversos atos. Entretanto, existe entendimento diverso, por exemplo o do julgamento do REsp 1313369/RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 25/06/2013 pela 6ª Turma, STJ. Em tal julgamento, o STJ se manifestou acerca da inadmissibilidade da aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade para o reconhecimento do estupro de vulnerável na forma tentada. O STJ entende que o estupro de vulnerável independe da gravidade da conduta, e que para a caracterização de tal crime, basta a prática de qualquer ato libidinoso, o que contraria os princípios da individualização da pena, proporcionalidade, razoabilidade e dignidade da pessoa humana. O crime praticado é de enorme relevância, mesmo que tentado, porém o agente deve ser julgado e tratado com o que realmente praticou, não pela sua intenção inicial. O STJ, assim como o legislador, quer imputar um crime mais gravoso do que a conduta praticada pelo sexualmente desvirtuado. Segundo tal entendimento, basta a prática de qualquer ato libidinoso para a caracterização do estupro de vulnerável. A pena de um estuprador não deve ser a mesma de quem forçou um beijo, um toque físico ou impôs algum tipo de violência ou ameaça, que embora também viole o corpo da vítima, os traumas e lesões são ínfimos perto de um estupro consumado. Não se pode mensurar os danos impostos à vítima, mas punir o agente por um resultado que não ocorreu viola os princípios basilares da Constituição Federal. Além do estupro de vulnerável, os deficientes físicos podem sofrer outros tipos de violência sexual, entre elas, a mais comum e sutil, é a exploração sexual. A exploração sexual é típica e pouco comentada devido a sua imperceptibilidade. É comumente praticada por médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, e pessoas que têm um certo poder. Esse crime consiste em algum tipo de envolvimento sexual entre o prestador de serviço ou pessoa de confiança, com o deficiente físico que procurou o explorador para receber algum auxílio ou ajuda profissional. Diversos devotees trabalham nas áreas ligadas a medicina e fisioterapia para se aproximarem de suas vítimas com maior facilidade e se camuflarem nos ambientes frequentados por deficientes. Outro crime comum sofrido pelos deficientes físicos impostos pelos devotees é o assédio sexual. Esse delito diz respeito a aproximação sexual, oferecimento de favores, ou seja, qual for o comportamento verbal ou físico de cunho sexual, quando não é bem-vindo. O assédio sexual se diferencia da coação sexual, pois esta necessariamente tem a grave ameaça. Pode ser a prática repetitiva de aproximação sexual, pressões psicológicas e violências emocionais, como também pode ser o contato sexual em si. Na coação sexual, simplesmente não existe o consentimento real. Exemplo: uma mulher conversa com um devotee por algum tempo, está apaixonada, porém ainda não se sente preparada para uma relação real, e o mesmo faz a mulher se sentir ameaçada e com medo dele encerrar o “romance”, por não ter suas expectativas sexuais satisfeitas; ou um casal de devotees e deficiente saiu para jantar e como a deficiente comentou anteriormente que eles teriam relação sexual, houve insistência para a consumação deste. Abuso sexual é a atividade sexual proveniente da incapacidaLETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

de de oferecer resistência da vítima. Essa incapacidade no caso dos deficientes físicos, diz respeito a própria limitação física que as vezes possuem. Por exemplo: um cadeirante entra no carro com uma mulher devotee e sem o seu consentimento, é impelido ao sexo oral e a masturbação. Além de não consentir, não pode descer do carro, pois a sua cadeira de rodas está no banco de trás e precisa de um pequeno auxilio para descer do carro. Na realidade, os crimes sexuais praticados por um devotee contra um deficiente são os mesmos que qualquer outra pessoa pode sofrer. A diferenciação está na vulnerabilidade física e muitas vezes psicológica e emocional, assim como a privação de discursos sobre a sexualidade, o que impede a devida inclusão e preparo quanto a existência de predadores sexuais. 6.2 Aplicabilidade do princípio da proporcionalidade no estupro de vulnerável O princípio da proporcionalidade, nas palavras de Alberto Silva Franco, “exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena).” (FRANCO, 2011, p. 110) Conforme mencionado anteriormente, no tópico da tentativa, o STJ não utiliza de tal princípio para aceitar a conduta criminosa mais amena, porém, utiliza-se desse princípio na dosimetria da pena. O estupro de vulnerável contraria a ética e moral da sociedade, bem como desestrutura psicologicamente e fisicamente a vítima, além de desnortear as ideias que dizem respeito a proteção com o deficiente físico, todavia, nem todo parafilico devotee, com intuito criminoso, pratica o estupro, mas alguns atos que o precedem. É desproporcional a aplicação de uma pena que supera a pratica delitiva. É certo que a vulnerabilidade dos deficientes físicos deve ser resguardada e protegida pela sociedade como um todo, e não violentada, mas deve-se utilizar desse princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro para a aplicação da exata pena, de acordo com o concreto comportamento do criminoso. É de conhecimento que alguns devotees extrapolam em seus encontros, porém, nem todos efetivam o estupro. E a estes, cabem a individualização da pena, pautada na proporcionalidade. 6.3 Inexistência de inimputabilidade A presença de desvio sexual (parafilia), como no presente trabalho, o devoteísmo, não caracteriza alienação mental considerável para os fins de inimputabilidade, mesmo que os criminosos sejam homicidas por parafilia, ou seja, indivíduos com um desejo obsessivo e de origem sexual. Também denominados criminosos sádicos seriais, os mesmos atuam com livre arbítrio, dolo e capacidade de compreensão da ilicitude de sua conduta, não tendo que se falar em medida de segurança de tratamento ambulatorial, exames de sanidade mental e tampouco surtos psicóticos. 6.4 Código Penal Português O abuso sexual de pessoa incapaz de resistência tem fulcro no artigo 165 do Código Penal Português, e refere-se a incapacidade precedente que a vítima possui, logo, o agente criminoso aproveita de tal incapacidade para a prática de algum ato sexualmente relevante ou cópula, coito anal ou coito oral. Um dos cenários passíveis de designar essa incapacidade de oferecer resistência da vítima é a deficiência física. Diferentemente do Código Penal brasileiro, o Português adota a denominação abuso sexual, enquanto no Brasil, o termo estupro de vulnerável, todavia ambos permitem refletir em torno do impacto

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consentida pela família, como forma de sustento para seus lares. Parece que estamos falando de um mundo surreal, mas está embaixo dos nossos olhos e insistimos em não enxergar. Outra situação que também temos notícias é o tráfico destas pessoas para fora de nossas fronteiras, para serem usadas como prostitutas ou escravas sexuais para fetichistas ou sabe-se lá o que a mente humana permite. (GORI, 2013, p. 7)

da incapacidade de opor resistência. Mais uma diferença é quanto a ação penal, no primeiro, a ação penal é incondicionada, já no Código Português ação penal é privada (queixa). Art. 165 Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência - Quem praticar ato sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de 6 meses a 8 anos. - Quem, nos termos previstos no número anterior, praticar com outra pessoa cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos Art. 177 Agravação - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. - As agravações previstas no número anterior não são aplicáveis nos casos do n.º 2 do artigo 163.º, do n.º 2 do artigo 164.º, da alínea c) do n.º 2 do artigo 169.º e da alínea do n.º 2 do artigo 175.º - As penas previstas nos artigos 163.º a 167.º e 171.º a 174.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se o agente for portador de doença sexualmente transmissível. Art.178 Queixa O procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163 a 165, 167, 168 e 171 a 175 depende de queixa, salvo quando de qualquer deles resultar suicídio ou morte da vítima. Nos casos previstos no número anterior, quando o crime for praticado contra menor de 16 anos, pode o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima de opuser.

Enquanto o Código Penal brasileiro trata a morte como um crime preterdoloso (não era a vontade do agente), e tem tal acontecimento como qualificadora do crime de estupro de vulnerável, o artigo acima, referente ao Código Português, trata a morte da vítima para fins de ação penal. 6.5 Vítima prostituída e a presunção de violência A maioria das pessoas traz um preconceito e concepções acerca da sexualidade e espera que todos respondam e atuem de forma idêntica. Independente do grau de instrução, é comum a ideia errônea sobre a vida sexual de deficientes físicos. O Estado é omisso, escolas e a própria família também, na maioria das vezes. Prefere-se não admitir que um deficiente físico é sexuado e muitas vezes sequer imaginam, pelo preconceito existente. Faz-se mister ressaltar que assim como existem famílias “superprotetoras”, que temem que o filho se envolva com alguém, mas tentam orientá-lo, existem famílias que simplesmente abandonam os filhos, afetivamente ou fisicamente, por meio de maus tratos, abusos sexuais e em outros casos, ainda auferem lucros com a deficiência física do filho. No e-book Textos Especiais no Mundo das deficiências, a autora Márcia Gori, cadeirante e candidata a vereadora de São José do Rio Preto/SP, escreve: Existem sim em nosso meio, pessoas com deficiência, conscientes de seus encantos que usam desses mecanismos para a prostituição LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Embora a prostituição seja comum entre devotees e deficientes físicos, a experiência sexual da vítima não pode representar empecilho para a punição do estupro de vulnerável, tampouco se o deficiente físico aufere lucro com seu próprio corpo. Os códigos penais anteriores diferenciavam meretriz e honestidade, entretanto, o mesmo não pode ser aplicado ao presente código, sob pena de violação e desrespeito ao valor constitucional da liberdade. Qualquer conduta descrita no tipo penal do artigo 217-A do Código Penal é criminosa, sem exceção. O legislador adotou um caráter absoluto de presunção de vulnerabilidade, assim como ofensa a dignidade sexual. Ao tratar de violação a dignidade sexual, não é possível aplicar as teorias de direito penal mínimo, pois tal violação contraria o princípio da dignidade humana, inerente a todo e qualquer ser humano, e princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro. Independente das circunstâncias da prática criminosa, por exemplo, a prostituição da vítima, o bem jurídico tutelado pela normal penal é o mesmo. Não cabe ao direito julgar a conduta da vítima do delito e seu modus vivendi, mas zelar pela segurança, aplicabilidade da lei e resguardar o direito de se exercer a atividade sexual em liberdade. O direito não se confunde com moral, logo, aplica-se também a presunção de violência ao caso de deficientes físicos que fazem programas com devotees, e são violentados sexualmente. 6.6 Homicídio por parafilia O homicida por parafilia, também chamado de sádico sexual, foi abordado anteriormente por meio da análise do filme Peeping Tom, entretanto, no filme, o criminoso sexual era voyeur e o homicídio em questão é sobre a parafilia devoteísmo. Mas em qualquer deles, tratase de portadores de disfunções sexuais, sem qualquer doença alienante, ou seja, agem conscientemente e de forma autônoma. 6.7 Fotografias Entre os devotees é comum a troca e coleção de fotografias de deficientes físicos, porém, nem sempre a divulgação das mesmas é autorizada e estão disponíveis em diversos sites. Para alguns, o devoteísmo é apenas um fetiche, como quem tem atração por pés, por exemplo. Mas, para outros, a aproximação de alguém pela deficiência é uma espécie de doença ou desvio de personalidade. Para Lia, o impacto que causa na vida dessas pessoas com deficiência, que são vítimas dos devotees, é imenso, uma vez que fotos são tiradas sem permissão e divulgada na rede. (TEMPERANI, 2010). 6.8 A palavra da vítima, denúncias e aborto A palavra da vítima tem um papel primordial, segundo o Ministro Marco Aurélio Bellizze, pois os crimes contra a liberdade sexual são praticados em locais isolados, e na maioria das vezes não deixam vestígios. Ausente de respaldo pericial, exame de corpo de delito, não se impede a condenação, desde que haja concordância entre a palavra da vítima e outro meio de prova. Por vez, denunciar gera um constrangimento à vítima, além de

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dar vida às lembranças do estupro, durante as declarações, interrogatórios e reconhecimento do criminoso. Nem sempre a autoridade policial está preparada para lidar com a situação, ainda mais quando a condição física desacredita as pessoas por falta de informação e preconceito. Quando a vítima, deficiente físico, é prostituída, o tratamento é apático e pouco é feito por ela, como se nada tivesse acontecido ou que a culpa foi dela. Falta preparo do Estado em receber tais vítimas e propiciar segurança, justiça e tranquilidade. A deficiência física não gera incapacidade de autodeterminação, todavia, por se tratar de uma incapacidade permanente de oferecer resistência a prática sexual criminosa, a ação penal é publica incondicionada. Como consequência do estupro de vulnerável, pode ocorrer gravidez, e sendo vontade da vítima, pode-se aplicar extensivamente o aborto consoante o artigo 128, II, do Código Penal. 7 PESQUISA DE CAMPO 7.1 Instituto Médico Legal BH Durante visita ao Instituto Médico Legal para o levantamento de dados concernentes a crimes sexuais sofridos por deficientes físicos, contatou-se um enorme descaso com esse grupo de vulneráveis. Não existe qualquer relatório que separe as vulnerabilidades, o que impediu a constatação da porcentagem de crimes sexuais sofridos por essa categoria. 7.2 Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e ao Idoso (DEADI) Conforme entrevista com a Delegada Larissa Maia Campos, da Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e ao Idoso (DEADI), na Av. Augusto de Lima, nº 1942, Barro Preto, Belo Horizonte/MG, embora o atendimento seja especifico para o público deficiente, não existe qualquer relatório que especifique quantitativamente os crimes sexuais sofridos por estes cidadãos. A Delegacia segue a Resolução PCMG nº 7.196, de 29 de dezembro de 2009, que até em seus termos de tratamento, “pessoa portadora de deficiente”, se mostra aquém do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146 de 2015, que não denomina os deficientes como “portadores”. Essa resolução está voltada para os empecilhos impostos ao deficiente no que concerne a sua acessibilidade, trabalho, educação e outras formas de discriminação. Foi informado pela Delegada Larissa, que têm ciência do lapso a respeito da catalogação dos dados concernentes a violência sexual do público que atende, que tais crimes ocorrem, entretanto, inexiste um relatório. Baseado nesse lapso, foi criada uma delegacia especializada em crimes sexuais, porém esta ainda está em desenvolvimento e não tem os dados necessários à presente pesquisa, mas que o intuito é que essa nova delegacia resolva tamanho descuido. Mais uma vez, assim como o IML não possui qualquer estatística que abordem os crimes sexuais sofridos pelos deficientes físicos, a delegacia que atende tal público também não tem. Essa realidade mostra o completo descaso e desinteresse por parte do Estado. Não se pode afirmar que tal descaso se pauta no preconceito em acreditar que deficientes físicos não figurem no polo passivo de crimes sexuais, entretanto, é assustador em meados de 2016 não existir qualquer estatística a respeito. Faz-se mister ressaltar que existem dados concretos e em diversos locais do país, sobre a taxa de crimes sexuais envolvendo deficientes mentais e crianças, que também são vulneráveis, mas ocorre uma completa abstenção do Estado no que diz respeito ao deficiente

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físico. Tal fato é incompreensível. 7.3 Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) A primeira vez que foi divulgado o número de estupros de vulneráveis em Minas Gerais ocorreu em 2013, o que revela por si só o descaso com esse tipo de crime. Ocorre que em 2016, embora as estatísticas sejam mais transparentes, nada foi revelado acerca de crimes sexuais envolvendo deficientes físicos. O próprio site da Secretaria de Estado de Defesa Social revela que os “estupros de vulneráveis representam mais da metade de todos os estupros registrados no Estado”, todavia, não aponta qual a porcentagem inclui os deficientes físicos. Estatísticas mostram que Minas Gerais em 2015 teve 1.763 casos de estupro de vulnerável consumado, mas dentre esse número encontramos crianças e deficientes mentais. Não há qualquer registro que diz respeito exclusivamente a deficientes físicos. A base do problema é a falta de diálogo e debates a respeito de toda expansão e totalidade do estupro de vulnerável. Na prática ocorre uma limitação do artigo 217-A, do Código Penal, abarcando apenas crianças, adolescentes e mentalmente incapazes. Segundo os gráficos analisados na página www.numeros.mg,gov.br, de janeiro a setembro de 2016 só em Belo Horizonte, ocorreram 218 casos de estupro de vulnerável, tentado ou consumado. O grande problema é: qual a percentual desses estupros pertencem aos deficientes físicos? Tal omissão é grave e impede a criação de medidas protetivas eficientes, bem como repressão e sanção. 7.4 Pesquisa virtual sobre devotees Joan é uma jovem negra de 19 anos de idade. Ele teve queimadura em mais de 80% do seu corpo como resultado de um acidente. Seu rosto ficou gravemente cicatrizado e ela perdeu quase totalmente o uso de um braço. Quando caminhava próximo à sua casa, ela foi agarrada por um agressor que a forçou a entrar em seu carro e a levou a uma área isolada, estuprando-a em seguida (GOCHENOUR, 1981). Foi realizada uma pesquisa informal, com um questionário enviado a pessoas aleatórias, sem qualquer vínculo e encontradas em páginas do facebook voltadas para deficientes físicos, cujo link do questionário foi disponibilizado por mensagem que solicitava o preenchimento especifico para o presente trabalho. O título do questionário é “Relacionamento e opinião sobre devotees” e o mesmo se encontra no endereço: https://docs.google. com/forms/d/e/1FAIpQLSdu6Svyq_ CG3pxkaukxg73X1SGmmqAJsOuxGnNlYEYhDHJ_0Q/viewform. Através de tal pesquisa, onde apenas 20 pessoas responderam, concluiu-se que 65% é do sexo feminino enquanto apenas 35% do sexo masculino, com faixa etária predominante (30%) de 25 a 35 anos. Dos 20 indivíduos que contribuíram com a pesquisa, 85% já manteve ou mantém algum tipo de relacionamento com um devotee, mesmo que esse relacionamento seja apenas virtual. E um resultado alarmante tange ao tratamento dado pela família à sexualidade dos mesmos, quando 72,2% responderam que os familiares não tocam no assunto e preferem ignorar. Questionados sobre devotees que colecionam fotos ou vídeos de pessoas com deficiência, 55% conhece alguém que tenha tal prática, entretanto, 75% desconhece a publicação e divulgação de fotos ilegais e tampouco teve alguma foto tirada a força ou sem autorização. No que diz respeito aos sentimentos despertados por um devotee, 30% não se sente bem nem confortável em saber que alguém

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sente desejo pela sua deficiência física; enquanto 40% se sente muito bem e gosta de se relacionar com eles. Alguns deficientes se relacionam apenas com devotees, 20% e entre essas 20 pessoas que responderam o questionário, uma (10%) respondeu que aufere lucros e benefícios ao se envolver com devotees. Baseando-se nas próprias experiências, 65% disse que existem diferentes tipos de devotees, por exemplo os que querem nutrir um relacionamento de modo saudável, e os que querem apenas satisfazer suas fantasias egoisticamente. A violência psicológica em conversas ou encontros é de apenas 30%, enquanto a violência sexual 35%. Perguntados se devotees podem causar algum tipo de violência, 60% respondeu que sim, porém, em casos de violência ninguém denunciou, 25% sequer comentou a respeito e 75% contou a algum amigo. Embora não sejam vistos como devotees por sem encontrarem em ambientes diversos do virtual, 40% já sofreu algum tipo de assédio sexual no trabalho, local de estudos, centros de reabilitação ou qualquer outro local, por parte de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, familiares, professores, superiores hierárquicos, entre outros. Repontaram que é necessário a criação de órgão ou entidade que proteja e discuta os direitos sexuais dos deficientes físicos (85%), não obstante, caso exista uma delegacia especializada em crimes sexuais contra deficientes físicos, e sofressem algum tipo de violência sexual, 55,6% não procuraria a delegacia. Por meio dessa pesquisa, apesar de apenas 20 pessoas responderem, pode-se confirmar alguns dados que levaram a realização da mesma: a inexistência de diálogos entre os familiares e o deficiente físicos no que tange à sexualidade deste, e os diversos abusos sexuais que sofrem, mas preferem contar a algum amigo ou guardar para si, que procurar uma autoridade competente. Importante ressaltar que a pesquisa também comprovou a existência de vários tipos de devotees, o que demonstra a existência de malefícios, mas também de benefícios por parte desses fetichistas ou parafílicos, o que inclusive torna-os importantes personagens na descoberta ou redescoberta da sexualidade dos deficientes físicos. Todavia, a realização de diálogos efetivos e abertos sobre a sexualidade e suas possibilidades evitaria o emaranhado de devotees que utilizam da inexperiência do deficiente físico para a exteriorização de suas imaginações perversas e criminosas. 7.5. Censo Conforme a Cartilha do Censo 2010, sobre Pessoas com Deficiência, apenas 71,6% das pessoas com deficiência física são alfabetizadas, e a taxa de atividade se restringe a 41,3% para os homens e 27,4% para as mulheres. A incidência de deficiência física entre as mulheres é maior que no público masculino, 8,5% para elas e 5,3% para eles. Dentre os tipos de deficiência, 7% é física, e entre esse percentual, 1,62% não consegue se movimentar. O nível de escolaridade trazido pelo Censo comprova o descaso do Estado e dos familiares, 61,1% tem o ensino fundamental incompleto ou não tem instrução; 17,7% tem o ensino fundamental completo; 14,2% ensino médio completo e apenas 6,7% tem graduação. Quando se compara a deficiência física com outros tipos de deficiência e a taxa de alfabetização, constata-se que 83,1% dos deficientes visuais são alfabetizados, 52,8% de quem possui deficiência metal ou intelectual também é alfabetizada, ficando a deficiência física com 71,6%, ou seja, entre as deficiências, é a segunda com o maior índice de alfabetização. Entretanto, apenas 71,6% de alfabetização não é motivo de orgulho. No que tange a taxa de atividade, ou seja, pessoas economicamente ativas, encontra-se os números de 41,3% para os homens e 27,4% para as mulheres com deficiência física. Se contraposto a taxa

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de atividade das pessoas com deficiência visual por exemplo, 63,7% e 43,9%, ou deficiência auditiva 52,4% e 31,3%, observa-se que a falta de oportunidade no mercado de trabalho para o público deficiente físicos se sobrepõe a estas duas deficiências, ficando à frente apenas da deficiência mental ou intelectual 22,2% e 16,1%. 7 CONCLUSÃO Diante da pesquisa de campo em ambientes diversos, Instituto Médico Legal (IML), Delegacia Especializada de Atendimento à Pessoa com Deficiência e ao Idoso (DEADI) e Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), conclui-se que o Estado é paternalista e ao mesmo tempo omissivo, despreparado e despreza a sexualidade do deficiente físico e que esse público também é vítima de agressões sexuais. O Estado pouco se manifesta sobre a sexualidade dos mesmos. Os deficientes físicos são vítimas da família, que negam a existência de sua sexualidade, das instituições de educação e do Estado, que deveriam zelar pela liberdade sexual de cada indivíduo que o compõe, mas se abstêm até mesmo quando já existe a consumação do estupro de vulnerável. Vários indivíduos encontram-se em processo de recuperação, adaptação e aceitação da deficiência, quando passam pelo trauma de um estupro e outras formas de violência sexual. O agressor utilizase exatamente de tal vulnerabilidade, física, e por vezes psicológica e emocional para a impunidade. Trata-se de um crime vil, e praticado em diversos casos por pessoas que deveriam resguardar, proteger e auxiliar o deficiente físico, encontrando-se na função e garantidor, entre eles fisioterapeutas, médicos, e até mesmo familiares. Os devotees e o ambiente virtual propiciam uma válvula de escape para esse grupo que tem sua sexualidade tolhida pela sociedade, entretanto, pela abstenção de diálogos reais com a família, e a devida discussão do Estado com a coletividade, alguns devotees buscam mais que conversas, trocas de experiências e relações sexuais, buscam a satisfação de seus desejos criminosos e pouco se fala a respeito, pois as vítimas não são levadas a sério. A omissão do Estado é tamanha, que em Minas Gerais, por exemplo, não existe qualquer estatística sobre estupro de vulnerável voltada aos cidadãos deficientes físicos, enquanto existem estatísticas sobre crianças, adolescentes e deficientes mentais. Deficientes físicos também precisam de respeito como qualquer outra pessoa. É inconcebível tamanha diferenciação, que existe até mesmo dentro um grupo de pessoas elencadas como vulneráveis. O papel do Estado não é tolher a liberdade sexual do deficiente físicos, ausentando-se como se a mesma não existisse, a fim de permear o tabu culturalmente existente, mas assegurar a cada um desses indivíduos que viva dignamente, e isso inclui o exercício pleno e livre da sua sexualidade. É inaceitável a manutenção de criminosos sexuais e homicidas por parafilia, por mera ausência e preconceito estatal. Deficientes físicos têm direito a uma vida sexual saudável, e o direito a uma saúde sexual saudável é um direito fundamental. A sexualidade é integrante dos direitos de personalidade, e nela se inclui os direitos à autonomia sexual, integridade sexual, à segurança do corpo sexual e a educação sexual, com fulcro na Declaração dos Direitos Sexuais, de 1999. Não cabe à sociedade capacitar ou incapacitar as pessoas para o exercício da sexualidade pautando-se em achismos, preconceitos e assistencialismo, mas reprimir e punir todas as formas de agressão e violência sexual impostas aos vulneráveis, em especial, os deficientes físicos, pois estes recebem um tratamento insuficiente por parte do Estado e de todo o corpo social. Negar a sexualidade a uma pessoa é impedir que se faça um ser humano completo.

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RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA PELO DEVER DE INFORMAÇÃO À GESTANTE MEDICAL LIABILITY FOR DUTY OF INFORMATION TO PREGNANT Stéphanie Lorrany Barbosa1

RESUMO: O presente trabalho acadêmico tem como intuito trazer à tona discussões que giram em torno da responsabilidade civil médica pelo dever de informação à gestante, passando pela natureza jurídica da obrigação médicas, respondendo se as atividades prestadas por tais profissionais são de meio ou resultado, bem como demonstrar o posicionamento nos dias atuais do judiciário se esta relação é contratual ou não. Ademais buscará esclarecer as possibilidades de responsabilidade civil médica, sendo subjetiva com a presença da culpa ou dolo, ou objetiva quando estas serão excluídas. Por derradeiro mostraremos as diversas informações que devem ser passadas a gestante durante o pré-natal e as consequências pelo seu descumprimento. PALAVRAS-CHAVE: Gestante. Informação. Obrigação. Responsabilidade Civil.

ABSTRACT: This academic work has the intention to bring up discussions revolving around the medical liability the duty of information to pregnant women through the legal nature of medical liability, accounting if the activity provided by such professionals are a support or, and demonstrate the positioning in the current court days if this relationship is contractual or not. Moreover, it seeks to clarify the possibilities of medical civil liability, being subjective in the presence of fault or objective when it is deleted. On the last, the study shows the various information to be passed to pregnant women during prenatal care and the consequences for noncompliance. KEYWORDS: Pregnant Women. Information. Obligation. Civil Responsibility.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Natureza Jurídica da Obrigação Médica. 2.1 Obrigação de meio. 2.2 Obrigação de resultado. 3 Responsabilidade Civil Médica. 3.1 Responsabilidade civil médica subjetiva. 3.2 Responsabilidade civil médica objetiva. 4 O Princípio da Boa-Fé Objetiva e O Dever de Informação. 4.1 Princípio da boa-fé objetiva. 4.2 O dever de Informação. 5 Responsabilidade Civil Médica Pelo Dever de Informação à Gestante. 6 Conclusão. Referências.

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Graduanda da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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mais nos dias de hoje. Entende-se esta ser uma relação contratual de prestação de serviço, como coloca Miguel Kfouri (2001):

1 INTRODUÇÃO Segundo informações da ONU (Organização das Nações Unidas) de 2014, cerca de três bebês nascem por segundo no mundo, cento e oitenta bebês por minuto, e só no Brasil, 320 bebês nascem por hora segundo o IBGE (2014), ou seja, inúmeras mães dão à luz todos os dias, mas nem todas têm acesso às informações pertinentes tais como os vários tipos de partos existentes e quais os reais riscos que cada um pode ocasionar à mãe e ao bebê. Portanto, o que se buscou com a pesquisa foi esclarecer algumas questões relacionadas a responsabilidade civil médica pelo dever de informação a gestante. Para tanto, torna-se importante o estudo da natureza jurídica da obrigação médica passando pela superação de paradigmas que perduraram durante um tempo no ordenamento: se a relação médica era contratual ou extracontratual, entendimento que foi superado e prevaleceu a compreensão de uma relação contratual de consumo. Semelhantemente, houve o questionamento no que tange a essa obrigação ser de meio ou resultado. Entende-se hoje que se trata de uma obrigação de meio e não de resultado. Observa-se exceções que trazem a doutrina no decorrer do presente artigo. Já a responsabilidade civil médica será analisada no aspecto subjetivo quando está condicionada ao ato médico que agiu por negligência, imprudência e imperícia, ou seja, quando este agir com culpa ou dolo, previsto no Código Civil artigo 186 e Código de Defesa do consumidor no artigo 14 §4º. A responsabilidade civil médica no aspecto objetivo ocorre, ao contrário da subjetiva, quando há a exclusão da culpa. Essa modalidade geralmente é aplicada aos hospitais, clínicas, laboratórios, etc. O médico que atua de forma liberal, direta e pessoal responde de forma subjetiva, mesmo que este preste serviço ao hospital. Contudo, as exceções serão trabalhadas no decorrer do trabalho, onde neste caso, poderá, o médico responder objetivamente, pelo descumprimento do dever de informação, dever anexo ao princípio da boa-fé objetiva. O princípio da boa-fé objetiva é um princípio geral, presente nas relações contratuais e nas relações consumeristas, portanto, também foi analisado neste trabalho. Sendo um princípio base, presente na relação médico-paciente como uma presunção do que se pode esperar da conduta do médico, bem como de seu paciente. Trata-se de um princípio que mesmo não estando de forma explícita, estará sempre presente nas relações, seja civil, consumerista ou na relação médico-paciente. A informação tratada no presente artigo está diretamente relacionada ao princípio da boa-fé objetiva. O médico está condicionado a este dever de informar, pois não se trata apenas de uma questão ética, mas um direito do paciente e, portanto, um dever médico. No que tange a responsabilidade civil médica pelo dever de informação, o trabalho busca mostrar a diversidade de partos existentes no Brasil e quais as informações que devem ser passadas, bem como a consequência que a ausência destas informações podem ocasionar ao profissional que não as passarem de forma clara. Afinal, só assim, a gestante poderá escolher o melhor parto, aquele que a fará se sentir segura, evitando dessa forma, possíveis danos causados pela ausência dessas informações.

A jurisprudência tem sufragado o entendimento de que, quando o médico atende um cliente, estabelece-se entre ambos um verdadeiro contrato. A responsabilidade médica é de natureza contratual. Contudo o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. (KFOURI, 2001, p. 65) Atualmente, entende-se que com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade médica deve ser analisada com base na prestação de serviço exercida pelo médico. Se esta ocorre de forma liberal, direta e pessoal ou se essa prestação de serviço deriva de uma sociedade médica, exercendo atividade empresarial, em que serão incluídas clínicas laboratórios, hospitais, etc. Desta forma, a discussão hoje giras em torno de esta relação médico-pacienteser de consumo ou uma relação civil, mas segundo posicionamento majoritário da doutrina é de que esta relação é de consumo. Contudo, a responsabilidade do profissional médico que atua de forma liberal é subjetiva, mesmo que haja uma prestação de serviço por parte deste à um hospital, ou seja, necessita que haja culpa ou dolo para caracterização da responsabilidade civil conforme artigo 14, § 4º do CDC, e artigo 186 do Código Civil. Já as clínicas e hospitais respondem de forma objetiva como coloca Carlos Roberto Gonçalves (2012): O Código é claro ao asseverar que só para a ‘responsabilidade pessoal’ dos profissionais liberais é que se utiliza o sistema alicerçado em culpa. Logo, se o médico trabalhar para um hospital, responderá ele apenas por culpa, enquanto a responsabilidade civil do hospital será apurada objetivamente”. Se o médico tem vínculo empregatício com o hospital, integrando a sua equipe médica, responde objetivamente a casa de saúde, como prestadora de serviços, nos termos do art. 14, caput, do Código de Defesa do Consumidor. No entanto, se o profissional apenas utiliza o hospital para internar os seus pacientes particulares, responde com exclusividade pelos seus erros, afastada a responsabilidade do estabelecimento. Estão também sujeitos à disciplina do referido Código, com responsabilidade objetiva e de resultado, os laboratórios de análises clínicas, bancos de sangue e centros de exames radiológicos, como prestadores de serviços. (GONÇALVES, 2012, p. 335) Ademais, o hospital ainda que não tenha culpa também responde civilmente pelos atos praticados pelo seu empregado no exercício de suas funções como dispõe o artigo 932, inciso III, e artigo 933 do Código Civil que traz: Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: [...] III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. (BRASIL, 2015, p. 910)

2 NATUREZA JURÍDICA DA OBRIGAÇÃO MÉDICA Durante muito tempo, a natureza jurídica da obrigação médica foi pauta de discussões, pois, alguns doutrinadores diziam ser uma relação contratual,ao contrário de outros que alegavam se tratar de uma relação extracontratual.Entretanto, essa discussão não perdura

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No que tange a obrigação da atividade exercida pelo médico durante um longo tempo,perdurou a discussão sobre a atividade exercida por tais profissionaisseria esta obrigação de meio ou resultado, o que será visto adiante.

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2.1 Obrigação de meio A obrigação de meio está atrelada ao dever de diligência, ao cuidado na prestação de serviço que o profissional de saúde tem que ter para com seu paciente, não garantindo um resultado. O médico por mais competente que seja não pode garantir a cura de um paciente que se encontra em estado grave, nem pode garantir a vida do ser humano. Por isso, a afirmação de que a atividade, ou melhor, a obrigação é meio e não de resultado. Neste sentido, dispões Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016): Os médicos, pelos serviços que prestam, desempenham uma obrigação de meio. Nessas obrigações não se assume o dever de se chegar a determinado resultado (a cura por exemplo), mas apenas o dever de se portar com diligência e atenção, à luz dos dados atuais de sua ciência, de cujo conteúdo se espera que tenha notícias atualizadas. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 810) Segundo posicionamento jurisprudencial e doutrinário, esse entendimento encontra-se pacificado e presente no ordenamento jurídico brasileiro como regra geral. Assim, a atividade exercida pelos profissionais de medicina é de meio, resulta do cuidado e não de um resultado final, como pode-se vislumbrar a ementa do recurso de Apelação Civil apresentada em 2014 ao Tribunal de Justiça de Minas Geras de número 10027081610803001, que teve como relator o Desembargador Luiz Carlos G. Mata:

paciente (credor). Implica diagnóstico, prognóstico, e tratamento: examinar, prescrever, intervir, aconselhar. A prestação devida pelo médico é sua própria atividade, consciente, cuidadosa, valendose dos conhecimentos científicos consagrados em busca da cura. (KFOURI, 2002, p. 226) Contudo, ocorre uma exceção para regra geral aplicada no ordenamento jurídico brasileiro, em que para a doutrina, a obrigação será de resultado, podendo desta forma ser o profissional responsabilizado caso não alcance o resultado prometido. Essa exceção está diretamente relacionada às cirurgias plásticas estética, pois, neste caso o médico se compromete a entregar um resultado desejável pelo paciente que o procura, seja para colocar uma prótese de silicone, ou afinar o nariz, diminuir a rugas, enfim, busca algum procedimento que ao seu ver vai trazer um resultado agradável e deixá-lo mais feliz consigo mesmo. Neste sentindo, tem-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que trouxe a exceção no Agravo Regimental. A confirmação da responsabilidade civil médica atrelada à cirurgia plástica estética pela natureza jurídica da obrigação ser de resultado e não de meio, mantendo a indenização concedida na sentença no valor de cinquenta mil reais. AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ERRO MÉDICO. CIRURGIA PLÁSTICA EMBELEZADORA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. SÚMULA 83/STJ. POSSIBILIDADE DE O PROFISSIONAL DE SAÚDE ELIDIR SUA CULPA MEDIANTE PROVA. PERÍCIA QUE COMPROVA O NEXO DE CAUSALIDADE. REEXAME DE PROVAS. ANÁLISE OBSTADA PELA SÚMULA 7/STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO FIXADO COM RAZOABILIDADE. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. De acordo com vasta doutrina e jurisprudência, a cirurgia plástica estética é obrigação de resultado, uma vez que o objetivo do paciente é justamente melhorar sua aparência, comprometendo-se o cirurgião a proporcionar-lhe o resultado pretendido. 2. A reforma do aresto no tocante à comprovação do nexo de causalidade entre a conduta médica e os danos experimentados pela recorrente, demandaria, necessariamente, o revolvimento do complexo fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula n. 7/STJ. 3. A revisão da indenização por danos morais só é possível em recurso especial quando o valor fixado nas instâncias locais for exorbitante ou ínfimo, de modo a afrontar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Ausentes tais hipóteses, incide a Súmula n. 7/STJ a impedir o conhecimento do recurso. 4. No caso vertente, verifica-se que o Tribunal de origem arbitra o quantum indenizatório em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), pelos danos morais que a recorrida experimentou em decorrência do erro médico produzido pelo recorrente, que além de ter contrariado as expectativas da paciente com os resultados alcançados na cirurgia íntima de natureza estética a que foi submetida, gerou-lhe prejuízos em sua saúde. 5. Agravo regimental não provido. (STJ - AgRg nos EDcl no AREsp: 328110 RS 2013/0110013-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/09/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/09/2013)

APELAÇÃO CÍVEL - PROCEDIMENTOS MÉDICOS TEORIA SUBJETIVA - FALHA NÃO COMPROVADA - OBRIGAÇÃO DE MEIO E NÃO DE RESULTADO DANO MORAL NÃO RECONHECIDO. - Ressoando do conjunto probatório dos autos, que o profissional médico realizou os procedimentos médicos nos exatos termos recomendados pela medicina e não havendo prova de eventual negligência, imperícia ou imprudência, não há que se cogitar em reconhecimento do dano moral indenizável, mormente quando a obrigação do profissional médico é de meio e não de resultado. (TJMG - Apelação Cível 1.0027.08.161080-3/001, Relator(a): Des.(a) Luiz Carlos Gomes da Mata , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 08/05/2014, publicação da súmula em 16/05/2014) Desta forma, resta claro que a regra geral no que tange a natureza jurídica da obrigação médica é de meio e não de resultado,havendo algumas exceções em que o médico poderá responder pelo resultado prometido como será visto a seguir. 2.2 Obrigação de resultado Segundo dicionário da língua portuguesa, Aurélio (2000, p. 604), a palavra resultado possui os seguintes significados: “1. Ato ou efeito de resultar, 2. Termo, fim, 3. Lucro proveitoso”. Assim, a obrigação de resultado entende-se por ser algo fim, o que se busca no final, o resultado final de um serviço, e no caso do profissional médico, o resultado de um procedimento, por exemplo. Como citado anteriormente, o posicionamento do judiciário em relação a obrigação do médico ser de meio e resultado, entende-se por ser uma atividade de meio. Miguel Kfouri em sua obra Culpa Médica e Ônus da Prova (2002) discorre com demasiada veemência demonstrando mais uma vez a atividade exercida pelo profissional de saúde, e diz: A obrigação contraída pelo médico é espécie do gênero obrigação de fazer, em regra, infungível, que pressupõe atividade do devedor, energia de trabalho, material ou intelectual, em favor do

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Importante dizer que essa exceção é para cirurgia plástica estética, pois, para a cirurgia plástica reparadora, o entendimento jurisprudencial é de que a obrigação do profissional neste caso é de meio, pois, não se trata de assegurar um fim proposto, mas o que se busca é minimizar cicatrizes ou corrigir algo decorrente de um acidente, uma fatalidade. Ao contrário da cirurgia estética em que o que se busca é

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uma conduta ativa ou omissiva, suscetível de ser qualificada como obrigatória ou proibitiva. Esta ação ilícita se opõe a uma norma que prevê um comando, pois somente normas que proíbem ou obrigam definem ações. O fato ilícito nada mais é do que o fato antijurídico, isto é, aquele acontecimento cujos potenciais jurídicos são contrários ao ordenamento jurídico. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 158)

melhorar a aparência, corrigir alguma imperfeição física, e caso não atinja o resultado final prometido pelo médico, este poderá responder por responsabilidade civil médica nos termos que serão estudados no próximo tópico. 3 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA A Constituição Federal no artigo 5º garante o direito à liberdade ao indivíduo. Contudo, essa liberdade para fazer ou deixar de fazer sofre limitações pelo ordenamento jurídico para quenão haja violação do direito de outros, violações estas, que são chamadas de ilícito e quando ocorrida acabam gerando uma nova obrigação, ou seja, um novo dever, sendo este de reparar o dano causado anteriormente. A palavra responsabilidade tanto no sentido jurídico como etimológico traz uma ideia de encargo, contraprestação e obrigação. Desta forma, encontra-se entrelaçada a uma noção de desvio de conduta, quando há um comportamento contrário às normas jurídicas e que geram danos a outros. Ao definir responsabilidade civil, o doutrinador Sergio Cavalieri traz com primazia da seguinte forma (2012, p. 2): “Em apertada síntese, responsabilidade civilé um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente daviolação de um dever jurídico originário”. Como visto,a responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo ao dever jurídico originário, ou seja, quando há um descumprimento de uma obrigação, a responsabilidade é a consequência deste fato. Assim, para que haja a caracterização da responsabilidade deve sempre haver uma obrigação e estas devem estar sempre interligadas. Ademais, para configuração da responsabilidade civil, é necessária a existência da conduta humana; o dano e nexo causal sendo está a modalidade de responsabilidade objetiva epara que seja caracterizada a responsabilidade subjetiva, ainda será necessária a presença da culpa ou do dolo. No que tange a responsabilidade civil médica, como posto anteriormente, a prestação de serviço do profissional médico não pode ser de resultado, uma vez que o médico não tem como garantir um o sucesso final da prestação de serviço, sendo observado as exceções que a doutrina traz. Percebe-se então, queo papel exercido por tais profissionais é de conselheiro, guarda e protetor dos enfermos, sendo a natureza da prestação de serviço de meio. Desta forma, a obrigação médica como regra geral, só será penalizada quando este agir com culpa ou dolo, quer dizer, pela responsabilidade subjetiva que é amparada pelo Código Civilartigo 186 e pelo Código de Defesa do Consumidor no artigo 14 § 4º. A responsabilidade civil objetiva não é a regra, é a exceção quando tratar da relação médico-paciente. No geral, como citado anteriormente, o profissional médico que exerce atividade liberal será responsabilizado quando agir com culpa ou dolo, e o hospital em que presta o serviço responde de forma objetiva, modalidades distintas de responsabilização que serão pautadas adiante. 3.1 Responsabilidade civil médica subjetiva A responsabilidade civil médicasubjetiva é regulamentada pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do consumidor. Os requisitos para configuração do ato ilícito estãocondicionados aos seguintes elementos: conduta humana;o dano; nexo causal; culpa ou dolo. Entende-se por ilícita, a conduta do agente que por ação ou omissão viola as normas jurídicas. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016) trazem: O ilícito pode ser definido como um ato contrário a uma norma que disciplina um comado. Em outras palavras, uma ação em sentido lato, isto é, LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

Para que haja penalização, ressarcimento é necessário que esteja presente o dano, e este pode ser patrimonial entendido por dano material, ou, extrapatrimonial, ou seja, o dano moral, aquele que traz uma lesão ao patrimônio imaterial, existencial do indivíduo. O doutrinador Carlos Roberto Gonçalves complementa dizendo que quando não há dano, não há que se falar em indenização, com suas palavras: (2013, p. 320): “Mesmo que haja violação de um dever jurídico e que tenha existido culpa, e até mesmo dolo, por parte do infrator, nenhuma indenização será devida, uma vez que não se tenha verificado prejuízo. A inexistência de dano torna sem objeto a pretensão à sua reparação”. Outro elemento fundamental para a configuração da responsabilidade subjetiva é o nexo causal, sendo este uma ligação atrelada a conduta e o dano, ou seja, o um elo entre ação e resultado, e neste caso deverá ser indenizado. Importante definir o conceito de culpa, visto que ela é um dos requisitos essenciais para caracterização da responsabilidade subjetiva. A culpa deriva da conduta do agente que age com imprudência, negligência ou imperícia. Complementa Carlos Roberto Gonçalves (2012): Só se pode, com efeito, cogitar de culpa quando o evento é previsível. Se, ao contrário, é imprevisível, não há cogitar de culpa.O art. 159 do Código Civil de 1916 [atual art. 186] pressupunha sempre a existência de culpa lato sensu, que abrange o dolo (pleno conhecimento do mal e perfeita intenção de o praticar) e a culpa stricto sensu ou aquiliana (violação de um dever que o agente podia conhecer e observar, segundo os padrões de comportamento médio). (GONÇALVES, 2012, p. 52) Assim, a culpa lato sensutambém abrange o dolo e por este, entende-se ser a conduta maliciosa, onde um indivíduo induz o outro ao erro, ou a prática de um ato jurídico que o prejudica. À luz de Pablo Stolze (2014. p. 400), “seria, portanto todo artificio malicioso empregado por uma das partes ou por terceiro com o propósito de prejudicar outrem, quando da celebração do negócio jurídico”. Desta forma, o profissional médico que atua com culpa ou dolo, responderá civilmente pela responsabilidade civil médica subjetiva conforme traz a legislação brasileira, que dispõe no Código Civil no artigo 186, que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2015, p. 169). Também se encontra amparado pelo Código de defesa do Consumidor, no artigo 14 § 4º, que dispõe que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL, 2015, p. 759). Assim, nesta modalidade de responsabilidade, o médico só responderá quando tiver atuado com culpa ou dolo, pois, seria um ônus muito elevado para o profissional responder por um risco inerente, tornando a profissão inexequível. Para que haja responsabilização do médico todos os elementos devem ser provados e no que tange a culpa é um critério essencial e indispensável. Não basta apenas o insucesso do tratamento ou da cirurgia. O ônus da prova é de quem alega, mas poderá o juiz entender pela inversão devidoà dificuldade na sua produção. O que

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traz a doutrina com relação a esta prova é que na maioria dos casos torna-se quase impossível sua comprovação, vez que o juiz não tem o conhecimento técnico-científico. Complementando o pensamento,o doutrinador Sergio Cavalieri (2012) traz: [...] a matéria é essencialmente técnica, exigindo prova pericial, eis que o juiz não tem conhecimento cientifico para lançar-se em apreciações técnicas sobre questões médicas. E, nesse campo, lamentavelmente, ainda funciona o esprit de corps, a conspiração do silêncio, a solidariedade profissional, de sorte que o perito, por mais elevado que seja o seu conceito, não raro, tende a isentar o colega pelo ato incriminado. (CAVALIERI, 2012, p. 404) Ressalta-se que a perícia não é o único meio de prova que o juiz vai analisar, mas quando trata da relação médica, ela ainda continua sendo o melhor meio, pois, não cabe ao Judiciário adentrar no conhecimento técnico-científico e nem definir qual o melhor tratamento a ser adotado. Aqui, o que será analisado serão os meios que foram utilizados e se há erros grosseiros. Entretanto com base no Código de defesa do consumidor em seu artigo 6º que dispõe: Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: [...] VIII - a facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência. (BRASIL, 2015, p.758) Assim, pode o juiz entender pela inversão do ônus da prova e desta forma, transferir a responsabilidade da prova ao médico, com o fundamento na hipossuficiência do consumidor, não apenas financeira, mas principalmente, devido à complexidade técnica para se conseguir a prova, visto que o conhecimento dos pacientes ou responsável não seria o suficiente, fazendo esse jus ao benefício que traz o referido código. Portanto, com base nessa complexidade na produção de prova, o papel do perito como auxiliar da justiça torna-se fundamental para ser averiguada a conduta exercida pelo profissional médico. Assim, é verificado se houve culpa ou dolo, e se desta forma, observa-se se enquadra o médico na responsabilidade subjetiva amparado pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor.

3.2 Responsabilidade civil médica objetiva Para sustentar a responsabilidade civil objetiva, surge na França no final do século XIX, a teoria do risco. A palavra risco neste sentido possui o significado de perigo e quem exerce uma atividade perigosa por consequência assume o dever de indenizar segundo o entendimento doutrinário. Neste sentido, Sergio Cavalieri lapida (2012):

haja falha ou lesão neta prestação, não buscando o culpado, mas sim quem deve indenizar. Neste ditame, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016): Pois bem, aquele que delibera por assumir um risco inerente a uma atividade deverá se responsabilizar por todos os danos dela decorrentes, independentemente da existência de culpa. Se a opção do agente é se aventurar, necessariamente arcará com os custos relacionados à trasladação dos danos sofridos pela vítima, sem considerar licitude ou ilicitude da conduta. (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 456) A previsão legal que ampara a referida teoria no ordenamento jurídico brasileiro está pautada no artigo 927 do Código Civil que aduz: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, é obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2015, p. 210) Em suma, a teoria do risco no Brasil possui algumas modalidade, sendo elas; a teoria do risco administrativo:aplicado a responsabilidade civil objetiva do Estado (Art 37 § 6º CR88); teoria do risco criado:a pessoa que gera o risco, em virtude de outra pessoa ou coisa(Art. 938 CC); teoria do risco integral: empregada na esfera ambiental, aqui há a exclusão do nexo causal (Art. 14 §1º); teoria do risco-proveitos: adotada quando os riscos provém de uma atividade lucrativa, o agente se beneficia do ocorrido; teoria do risco profissional ou da atividade: e esta teoria é empregada quando atividade acaba por gerar risco à terceiro (Art. 927 segunda parte). Assim, será aplicada a responsabilidade civil objetiva quando enquadrar em qualquer umas das modalidades supracitadas (TARTUCE, Flávio. 2015, p. 445). Como posto, a responsabilidade civil objetiva é pautada na teoria do risco, sendo isto o que a difere da responsabilidade subjetiva, pois, na primeira, há exclusão da culpa ou o dolo do agente, tornando uma modalidade muito mais abrangente e, portanto, devendo ser analisada com muito critério, para que não haja erro na responsabilização. Com isso, a responsabilidade civil objetiva aplicada à atividade médica, o profissional, neste caso, não responde por um erro ou falha a quem ele deu causa, mas sim, por um fato inerente que normalmente, não responderia. Deve então, responder por haver uma violação no dever de informar, um descumprimento da boa-fé objetiva. Esse dever de informação refere-se ao risco de procedimento que podem ocorrer como por exemplo, em uma cirurgia, caso as informações sobre tais risco sejam desconhecidas ao paciente a responsabilidade, que antes seria do paciente, transfere-se ao médico, ou, até mesmo ao hospital. Complementa o doutrinador Sergio Cavalieri (2004):

A doutrina do risco pode ser, então, assim resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano. (CAVALIERI, 2012, p. 152) Nesta teoria, a culpa e o dolo são excluídos assumindo o prestador de serviço, cuja a atividade é arriscada o dever de indenizar caso

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Em princípio, o médico e o hospital não respondem pelos ricos inerentes. Transferir as consequências destes riscos para o prestador de serviço seria ônus insuportável; acabaria por inviabilizar a própria atividade. Daí resulta, entretanto, a extrema relevância do dever de informar do médico. A falta de informação, a violação do dever de informar, pode levar o médico ou hospital a ter que responder até mesmo pelo risco inerente, não por ter havido defeito do serviço, nem culpa pelo insucesso do tratamento, mas pelo defeito de informação; pela omissão em informar ao paciente os reais riscos do tratamento. (CAVALIERI, 2004, p. 84)

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Quando o doutrinador diz não haver um defeito na prestação de serviço, quer dizer que o serviço pode ter sido prestado com excelência, até mesmo alcançado o resultado desejado. A violação estariaatrelada ao vício de informação, ao princípio da boa-fé objetiva, princípio este presente nas relações contratuais e relação de consumo. Que serão aprofundadas no capítulo seguinte. Desta forma, a responsabilidade objetiva do médico, pode ser enxergada no artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, pelo vício de informação. E quando este for violado, poderá o profissional de saúde responder por um risco inerente da profissão, ou seja, pela responsabilidade civil objetiva porque houve uma violação ao princípio da boa-fé objetiva que será estudado no próximo capítulo.

dos contratantes, e quando esse comportamento for contrário ao esperado haverá de se falar em um ilícito pela violação do princípio da boa-fé objetiva. No Código de Defesa do Consumidor, tal princípio não ficou esquecido, e também é aplicado nas relações consumeristas com previsão legal no artigo 4º, III e no artigo 51, VI. Carlos Roberto Gonçalves (2010) disposto da seguinte maneira: No Código de Defesa do Consumidor, a boafé é tratada como princípio a ser seguido para a harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo (art. 4º, III) e como critério para definição da abusividade das cláusulas (art. 51, IV: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”). (GONÇALVES, 2010, p. 23)

4 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E O DEVER DE INFORMAÇÃO Entende-se que a relação médica- paciente trata-se de uma relação de consumo. Desta forma, um dos direitos básicos do consumidor é o direito à informação alancado no artigo 6º, inciso III do CDC. Tal dever de informar decorre do princípio da boa-fé objetiva, princípio permeado no ordenamento jurídico brasileiro, presente nas relações obrigacionais que será aprofundado no próximo item. 4.1 Princípio da boa-fé objetiva A palavra princípio deriva do latim principium, e possui como significado: origem, o começo, início, que vem antes. Os princípios no ordenamento jurídicos brasileiros são de extrema importância e tem força de lei, e, portanto, devem ser observados a todo instante. O princípio da boa-fé objetiva trata-se de um princípio geral de uma norma de comportamento queestá relacionado ao dever que as partes devem ter uma para com a outra. Dever esse de agir de forma correta, buscando a honestidade, lealdade, retidão. Segundo Ana Cristina Klainpaul (2013, p. 1), “o princípio da boa-fé se relaciona com o princípio da segurança jurídica e com o princípio segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Impõe aos indivíduos o dever de agir com honestidade e probidade nas suas relações vedando comportamentos que visem à fraude e à falta de decoro”. Assim, este princípio busca que o indivíduo haja com boa-fé em suas relações recíprocas, e esta deve ser presumida pelo o judiciário, devendo a má-fé ser provada por quem alega. Tal princípio encontra-se positivado no artigo 187 do Código Civil, que prevê que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2015, p. 169). Ao relacionar a essa norma, torna-se claro que quando há uma violação do princípio da boa-fé, o indivíduo comete um ilícito, e este deve ser responsabilizado. Já no artigo 113 do referido código, o legislador se preocupou em garantir que os negócios jurídicos sejam respaldados e fundamentados pelo princípio da boa-fé objetiva demonstrando a sua importância no ordenamento, que dispõe que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (BRASIL, 2015, p. 165). Ao tratar das relações contratuais, no entanto, o Código Civil novamente menciona o princípio da boa-fé mostrando mais uma vez a sua relevância para a relação interpessoal, como traz o artigo 422, “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé” (BRASIL, 2015, p. 183). O princípio da boa-fé não precisa estar de forma explicita no contrato. Aqui, há uma presunção, ou seja, ele já se encontrade forma implícita, já existe uma expectativa no que tange ao comportamento

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Na relação médico-paciente, o princípio da boa-fé também está presente, e como já citado, não necessariamente de forma explícita, mas por se tratar de uma norma de conduta, há uma presunção do que se espera do comportamento do profissional médico, bem como do seu paciente. Assim, este princípio impõe deveres anexos, tais como o dever de informação demonstrado pelo doutrinador Flávio Tartuce (2015): Pois bem, como antes destacado, tornou-se comum afirmar que a boa-fé objetiva, conceituada como sendo exigência de conduta leal dos contratantes, está relacionada com os deveres anexos ou laterais de conduta, que são ínsitos a qualquer negócio jurídico, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial São considerados deveres anexos, entre outros: Dever de cuidado em relação à outra parte negocial; Dever de respeito; Dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; [...]. (TARTUCE, 2015, p. 486) Deste modo, quando há uma violação no dever de informação, pode-se dizer que sucessivamente há uma violação da boa-fé objetiva. Assim, como exemplo pode-se destacar o caso concreto que ocorreu no Rio de Janeiro em que um paciente teve um problema de próstata aumentada de volume e foi submetido a uma cirurgia para sanar o problema. Ocorreu que este não foi informado dos riscos inerentes do procedimento o que o levou aos problemas deincontinência urinária e a impotência sexual. Desta forma, entendeu o Tribunal Regional do Rio de Janeiro pela reforma da sentença, como demonstra a ementa da apelação cível de número 0022959-97.1999.8.19.0000: Ementa - Responsabilidade civil. Erro médico. Caracterização. Limites. Cirurgia de prostatectomia. Lesões permanentes. Sequelas de incontinência urinária e impotência. Prova pericial deficiente. Evento ocorrido sob a égide do Código de Defesa do Consumidor. Observância do princípio da reparação necessária. Responsabilidade objetiva dos prestadores de serviços médicos. Responsabilidade mediante verificação de culpa do médico com aplicação do princípio da inversão do ônus da prova. Sentença de improcedência reformada. (TJRJ - Apelação Cível 002295997.1999.8.19.0000, Relator(a): Des.(a) Roberto Wider, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 03/04/2001, publicação da súmula em 01/08/2001) Este caso teve como relator, o Desembargador Roberto Wider que em seu voto arremata:

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[...] impõe-se que comprove expressamente de que o paciente estava ciente de tais riscos e com eles concordou, pois é intuitivo e de sabedoria comum, que ninguém, em sã conciência, trocaria um problema de próstata aumentada, dificuldades de micção e infecção urinária pelo risco de sequela permanente de incontinência urinária e impotência e uso de fraldas pelo resto da vida. (TJRJ - Apelação Cível 0022959-97.1999.8.19.0000, Relator(a): Des.(a) Roberto Wider, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 03/04/2001, publicação da súmula em 01/08/2001) Desta forma, houve claramente no exemplo citado uma violação do princípio da boa-fé objetiva, e o médico neste caso, irá responder por violação deste dever de informar.Importante destacar que no caso supracitado, mesmo havendo um vício de informação o entendimento do tribunal foi no sentido de que o médico responde de forma subjetiva por ter havido culpa, e as prestadoras de serviços médicos de forma objetiva com base no Código de Defesa do Consumidor. Assim, responsabilidade civil aplicada, neste caso, ocorre por uma ilicitude decorrente da violação de uma obrigação, um dever de informação e sucessivamente uma violação ao princípio da boa-fé objetiva. Quando ocorre essa violação dos deveres anexos à doutrina, intitula como a existência de uma violação positiva do contrato, ou seja, há o inadimplemento do contrato, mesmo que haja o cumprimento do objeto principal. A não observância do princípio da boa-fé pode gerar ao profissional, o dever de indenizar, ainda que ele não tenha atuado com culpa ou dolo, como traz o enunciado 24 da Jornada de Direito Civil do Conselho Federal de Justiça que diz que “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”. Nesta toada, corrobora os professores Michael Silva e Roberto Nogueira (2012): [...] é imprescindível que as partes atuem nas relações jurídicas obrigacionais firmadas com observância aos deveres anexos de conduta, que impõem, para além da obrigação jurídica principal, deveres acessórios, aos quais objetivam resguardar a legítima expectativa e a confiança mútua existentes entre as partes. (SILVA; NOGUEIRA, 2012, p. 12)

dos produtos e serviços, maior relevância terá o direito de ser informado. (CAVALIERI, 2004, p. 86) Apesar do Código de Ética Médica dizer que a atividade prestada pelo médico não é uma relação consumerista, o posicionamento do judiciário e da doutrina é no sentido contrário, ou seja, o entendimento é de que sim, essa relação é de consumo e, portanto, há aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, como demostrada o Superior Tribunal de Justiça a consolidação deste entendimento nos Embargos de Declaração interposto no Resp 704272: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. PROPÓSITO INFRINGENTE. RECEBIMENTO COMO AGRAVO REGIMENTAL. ERRO MÉDICO. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ARTIGO 27 DO CDC. PRECEDENTES. 1. A orientação jurisprudencial deste Superior Tribunal é no sentido de que se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos serviços médicos, inclusive no que tange ao prazo de prescrição quinquenal previsto no artigo 27 do CDC. 2. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - EDcl no REsp 704.272/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 15/08/2012) Portanto, o artigo 6º, III do CDC traz como direito básico do consumidor, o direito à informação, e como posto será aplicado ao médico tal dispositivo legal. A prestação de serviço pelo profissional de medicina é rodeada de risco. Os chamados riscos inerentes, pois todo procedimento médico por mais simples que seja pode trazer de alguma forma algum dano ao paciente, seja uma cirurgia, ou uma simples prescrição de medicamento, e como dito anteriormente, a atividade exercida por tais profissionais são de meio e não de resultado. Daía importância da informação clara, pois será através dela que excluirá a responsabilidade civildo médico. É neste sentido que o STJ tem se manifestado como demostra o Recurso Especial de número 985888 SP que teve como relator, o Ministro Luiz Felipe Salomão, mesmo tratando de uma obrigação de resultado foi destacado que o médico não informou a paciente dos riscos do procedimento acarretando a este a responsabilidade civil:

Portanto, o princípio da boa-fé objetiva é de suma importância, seja nas relações contratuais, civil, consumerista ou médico-paciente. Tal princípio está arraigado no ordenamento jurídico brasileiro devendo ser observado para que a aplicação da responsabilidade civil seja a mais acertada. 4.2 O dever de informação Tendo como significado de: esclarecimento, conhecimento, meio de comunicação, transmissão, encontramos várias palavras que definem informação, bem como existem vários meios para se transmitir uma informação, verbal, escrita, através da língua de sinais, etc. A informação é suma importância no ordenamento jurídico brasileiro,uma vez que é através dela que se pode chegar a um conhecimento claro e objetivo e a posteriori, tomar decisões de forma consciente e precisa, sem que haja que se falar em vício de informação. Segundo Sergio Cavalieri (2004): Entre os direitos básicos do consumidor especificados nos vários incisos desse art. 6º do CDC, o direito à informação é um dos mais importantes. E isso porque vivemos em uma sociedade perigosa, quanto maior o risco a que está exposto o consumidor, quanto maior o perigo

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DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. CIRURGIA PLÁSTICA.OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. SUPERVENIÊNCIA DE PROCESSO ALÉRGICO. CASOFORTUITO. ROMPIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE. 1. O requisito do prequestionamento é indispensável, por isso inviável a apreciação, em sede de recurso especial, de matéria sobrea qual não se pronunciou o Tribunal de origem, incidindo, por ánalogia, o óbice das Súmulas 282 e 356 do STF. 2. Em procedimento cirúrgico para fins estéticos, conquanto a obrigação seja de resultado, não se vislumbra responsabilidade objetiva pelo insucesso da cirurgia, mas mera presunção de culpa médica, o que importa a inversão do ônus da prova, cabendo ao profissional elidi-la de modo a exonerar-se da responsabilidade contratual pelos danos causados ao paciente, em razão do atocirúrgico. 3. No caso, o Tribunal a quo concluiu que não houve advertência apaciente quanto aos riscos da cirurgia, e também que o médico nãoprovou a ocorrência de caso fortuito, tudo a ensejar a aplicação dasúmula 7/STJ, porque inviável a análise dos fatos e provasproduzidas no âmbito do recurso especial. 4. Recurso especial não conhecido. (STJ - REsp 985.888/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 13/03/2012)

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O Código Civil também regulamenta o direito à informação no artigo 15º: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Desta forma, nas palavras de Sergio Cavalieri (2012, p. 412): “quem não pode ser constrangido também não pode ser enganado, nem mal informado”. Ainda complementadizendo que no tange ao ônus de provar o cumprimento do dever de informação, este será do médico ou do hospital. O dever de informação está diretamente relacionado ao princípio da boa-fé objetiva, aquilo que se espera em uma relação médicopaciente, como já tratado, a violação do dever de informação acaba por gerar uma violação deste princípio, Sergio Cavalieri (2012) traz da seguinte forma: Ora, se o direito à informação é direito básico do paciente, em contrapartida, o dever de informar é também um dos principais deveres do prestador de serviços médico-hospitalares - dever, este, corolário do princípio da boa-fé objetiva, que se traduz na cooperação, na lealdade, na transparência, na correção, na probidade e na confiança que devem existir nas relações médico/paciente. A informação deve ser completa, verdadeira e adequada, pois somente esta permite o consentimento informado. (CAVALIERI, 2012, p. 415) Assim, antes do Código de Defesa do Consumidor, o direito à informação na relação médico-paciente era tratado pelo Código de Ética Médica no artigo 34, ou seja, era apenas uma questão ética, e não uma questão jurídica, mas sempre sendo observada pela grande relevância que esta tem desde os primórdios. Hoje, pode-se dizer que nas relações de consumo a informação torna-se uma base, e em caso de violação poderá ser o médico responsabilizado. 5 RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA PELO DEVER DE INFORMAÇÃO À GESTANTE A Constituição Federal no artigo 5º traz um rol de garantias fundamentais. Entre estes, a liberdade e igualdade entre os indivíduos independente de sexo, cor, raça, etnia, religião etc. Desta forma torna claro a impugnação da desigualdade entre as pessoas. A constituição possui como meta, o princípio da dignidade da pessoa humana, dos quais todos os direitos giram em torno de garantir uma vida digna. Já no capítulo que trata dos direitos sociais, o artigo 6º da Magna Carta: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Torna claro o direito à saúde, bem como, a proteção da maternidade, sendo este um direito de todos e, portanto, um dever do Estado de garanti-lo. Quando se fala em surgimento da sociedade, a primeira ideia que vem à mente é a reprodução humana, e esta ocorre a séculos, tendo a mulher um papel fundamental neste processo. Ela pode ser destacada como a protagonista deste fenômeno lindo, mágico e natural. Durante um logo período na história, este processo foi de fato natural. Os partos eram realizados por outras mulheres conhecidas como parteiras, comadres ou aparadeiras. Tais mulheres eram detentoras de um conhecimento e auxiliavam a mulher em seu trabalho de parto que ocorria, muita das vezes, em seu próprio domicílio. A escolha destas profissionais era atrelada a uma confiança, indicações e elas também prestavam informações sobre doenças, cuidados para com o bebê, etc. Os partos naturais são aqueles em que não há intervenção. As parteiras apenas amparavam os bebês, e ajudavam com compressas. Também não havia a introdução de medicamentos para acelerar LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

o trabalho de parto, nem uso de anestésico para aliviar a dor que a mulher sentia. Por isso, era conhecido como algo natural e foi utilizado por muito tempo. A cesárea não existia e o fato de cortar a mulher para que tivesse seu filho só surge com o avanço da ciência e eventual surgimento da medicina. Em 1808, com a colonização no Brasil, chegou a primeira faculdade de medicina localizada na Bahia e que tinha por função capacitar os profissionais, trazendo ensinamentos como cirurgias e a obstetrícia. Esses ensinamentos eram passados aos homens, e é neste momento que se podedestacar a figura masculina nos partos. Até então, eram realizados apenas por mulheres devido a bagagem histórica. O fórceps foi o primeiro instrumento criado para auxiliar ao parto, mas também com o surgimento deste, o processo natural passa a ser um processo intervencionista e de risco, necessitando desta forma, a presença de um profissional qualificado, com conhecimento científico para realizar a manobra de forma correta e não ocasionar um dano, seja ao recém-nascido ou à própria mãe. A medicalização no parto surge no meio do século XX, quando as mulheres de poder aquisitivo mais elevados não aguentavam sentir a dor do parto, nem correr riscos durante este processo buscam por tal mecanismo. Também há um marco, pois surge a hospitalização para realização dos partos que representavam menos riscos às pacientes e com isso, demonstravam o poder econômico de seus maridos. Desta forma, pode-se destacar nesta fase, o parto normal. Parto em o bebê nasce no tempo correto, a mulher aguarda pelas contrações, mas ao contrário do parto natural, há uso de ocitocina que são hormônios para acelerar o trabalho de parto, bem como o uso de anestesias, e pode haver a episiotomia, que nada mais é do que um corte na região da vagina para facilitar a passagem do bebê pelo canal vaginal. Contudo, quando surge essa medicina intervencionista, surgem os riscos, os danos, e esses devem ser reparados. No procedimento, como por exemplo, de episiotomia pode haver infecções, inflamações ou sequelas maiores, acarretando ao médico a responsabilização civil pelos danos materiais, morais e estéticos causados à mulher, como traz a decisão no Agravo em Recurso Especial de número 726.156 RJ do ano de 2015, que teve como Relator o Ministro Benedito Gonçalves:

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ADMINISTRATIVO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL E REVISÃO DOS VALORES DAS INDENIZAÇÕES. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS. SÚMULA 7/STJ. ART. 620 DO CPC. AUSÊNCIA DE COMANDO NORMATIVO. SÚMULA 284/STF. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ARTIGO 20, §§ 3º E 4º, DO CPC. VALOR RAZOÁVEL. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. DECISÃO Cuida-se de agravo em recurso especial interposto contra decisão que não admitiu o recurso especial ao fundamento de que incide a Súmula 7/STJ. O apelo especial obstado enfrenta acórdão com a seguinte ementa (fls. 405): AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS, ESTÉTICOS E MATERIAIS. INTERNAÇÃO DA AUTORA EM HOSPITAL DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL EM TRABALHO DE PARTO. REALIZAÇÃO DE EPISIOTOMIA, A FIM DE FACILITAR O PROCEDIMENTO. INFECÇÃO HOSPITALAR ALEGADAMENTE CONTRAÍDA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. APELAÇÃO DE AMBAS AS PARTES. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ENTE FEDERATIVO RÉU, COM FUNDAMENTO NO ART. 37, §6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NEXO DE CAUSALIDADE DEMONSTRADO. DANO MORAL E ESTÉTICO CARACTERIZADO. QUANTUM RESSARCITÓRIO MAJORADO. LESÃO MATERIAL

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EVIDENCIADA. LUCROS CESSANTES DEVIDOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS ADEQUADAMENTE ARBITRADOS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSOS CONHECIDOS, PARCIALMENTE PROVIDO O PRIMEIRO E DESPROVIDO O SEGUNDO, NOS TERMOS DO ART. 557, CAPUT E §1º-A, DO CPC. (STJ - AREsp 726.156/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, DJe 01/07/2015) No caso supracitado, houve a indenização por danos materiais, que entende-se ser aqueles em que há uma lesão, prejuízo patrimonial, sejam eles os gastos com medicamentos, hospitalizações, ou a perda de um trabalho em decorrência das debilitações que o procedimento causou, etc. Estes devem ser provados. Há também os danos morais quesãoextrapatrimoniais, atrelados à lesão do direito de personalidade e à dignidade da pessoa humana com previsão constitucional. E por fim, o dano estético que também trata de um dano extrapatrimonial, mas que está condicionado a violação ao direito à integridade física do indivíduo, ou seja, alguma transformação em decorrência de um procedimento que o lesou fisicamente, como por exemplo: um corte, cicatrizes, a perda de um órgão ou membro do corpo, etc. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é de que o dano moral é distinto do dano estético podendo ser acumulados, conforme súmula do 387 do STJ, que delibera que “é lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”. Com o passar do tempo e o avanço da medicina, surgem inúmeros tipos de partos como a cesárea que durante um tempo só era realizada em caso de óbito da mãe, como alternativa de salvar a criança, e por volta de 1500 surge o procedimento em mulheres vivas. No Brasil, segundo Joffre Marcondes de Rezende (2009, p. 172), “a primeira operação cesariana é creditada ao dr. José Correia Picanço, barão de Goiana, tendo sido realizada em Pernambuco no ano de 1822”. Hoje, este tipo de procedimento é adotado em diversos países em caso de gestação de risco, para que não haja sofrimento fetal, ou outro tipo de complicação, onde a mulher é submetida a uma anestesia geral, ou peridural e passa por um procedimento cirúrgico. E como todo procedimento cirúrgico traz algum tipo de risco, é direito do paciente a ter ciência destes, e, portanto, um dever médico buscar informá-la para que assim, obtenha da sua paciente o consentimento informado, que não está condicionado a um documento escrito, mas sim, a clareza nas informações, de forma objetiva, demostrando os reais risco do procedimento e não apenas os seus benefícios. Conforme acrescenta Eugênio Facchini e Luciana Gemelli, (2015, p. 61), “uma vez prestadas as informações pertinentes pelo médico, cabe ao paciente manifestar a sua vontade, concordando ou não com o procedimento proposto. Essa manifestação não necessariamente deve ser vazada por escrito”. Assim, o médico que não obtém do paciente o consentimento informado incorre na responsabilidade civil objetiva, sujeito a reparar os danos causados que derivam da ausência destas informações mesmo que este não tenha atuado com culpa ou dolo e sim, por descumprimento de deveres anexos. O consentimento informado está atrelado a relação médico-paciente como um todo, e sempre que este for submetido a um procedimento de risco deve ter consciência, e ser devidamente esclarecido como demonstra o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo ao julgar a apelação cível de número 0103456-50.2006.8.26.0100 em que o médico foi responsabilizado por não obter o consentimento informado de sua paciente em uma cirurgia oftalmológica conforme demonstra a ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CIRURGIA OFTALMOLÓGICA. COMPLICAÇÕES NÃO CIENTIFICADAS À PACIENTE. FALTA DE TERMO LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

DE CONSENTIMENTO INFORMADO. CIRURGIA EXPERIMENTAL. Não se viu nos autos qualquer advertência à autora da gravidade de sua doença. Tampouco foi alertada, pormenorizadamente, dos riscos da cirurgia. Como visto, tampouco o informativo, supostamente entregue à autora, supriria a falta de informações. Ainda que não se possa apontar erro no uso da técnica e nos cuidados do réu com a autora, não pode o médico submeter o paciente ao risco de procedimento e técnica ainda não consagrados, e consequentemente de todas as complicações decorrentes, sem bem informar a respeito o paciente. Reside neste ponto, destarte, a responsabilidade do réu pelo sofrimento imposto à autora em razão de todas as complicações comprovadas nos autos e igualmente pela quebra da forte expectativa que criou para a correção da acuidade visual. Nesse passo, tem-se que o réu, como fornecedor de serviço e sujeito ao Código de Defesa do Consumidor, tinha a obrigação legal de bem informar a paciente acerca dos serviços médicos que lhe seriam prestados, assim como todas as intercorrências da cirurgia, o que não ocorreu. O réu violou norma ética e, esta conduta, por si só, acarreta o dever de indenizar. À falta da prestação de informações adequadas, previamente à autora, não se pode afastar a responsabilidade do profissional pelas complicações sofridas pela autora. Percebe-se que o réu assumiu o risco do resultado, dirigindo sua ação de forma a expor a autora, insciente, aos riscos da cirurgia. Danos materiais. Lucros cessantes. Pediu a autora reparação por lucros cessantes, pois deixou de ser promovida no trabalho desempenhado em razão das complicações cirúrgicas, que lhe ocasionaram depressão. Esta prova não foi produzida na presente demanda. Diante disso, não se reconhece nexo causal entre os danos decorrentes das complicações e incapacidade laborativa. A autora manteve a acuidade visual, que não a impediu, portanto, de executar atividades rotineiras. Danos morais. A autora padeceu por longo período de complicações advindas da cirurgia, justamente uma das causas da depressão por ela sofrida. Tinha expectativa a respeito do sucesso do procedimento, pois, insciente dos riscos que corria, certamente aguardava resultado melhor do que aquele que se deu. Considerando as diversas complicações sofridas e também a falta de cuidado do réu, profissional renomado, na fase pré-contratual, justifica-se a concessão de reparação por danos morais. Recurso parcialmente provido para condenar o réu ao pagamento de indenização por danos morais. (TJSP – Apelação Cível 0103456-50.2006.8.26.0100, Relator(a): Des(a). Carlos Alberto Garbi; 10ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 29/04/2014; Data de registro: 14/05/2014) Desta forma, o médico deve também obter da gestante o consentimento informado independente do procedimento que será adotado, seja o parto normal, natural e principalmente a cesárea, esclarecendo-a dos reais riscos para que se possa garantir a ela um parto humanizado, e este consiste na busca por atender o desejo da mulher na hora em que ela estiver dando à luz. Esse modelo que atualmente busca o Ministério da Saúde permite a presença de um acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto, bem como alguns Estados e Municípios também garante mediante lei Estadual ou Municipal como traz a lei 10.914/2016 do Município de Belo Horizonte que regulamentou a presença de uma Doula que é uma acompanhante de parto de livre escolha da gestante e que possui um papel fundamental. O artigo 1º da referida lei diz que “maternidade, casa de parto e estabelecimento hospitalar congênere, da rede pública e privada do Município, ficam obrigados a permitir, sempre que solicitado, a presença de doula, escolhida livremente pela parturiente, durante todo o período de trabalho de

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(a) Evandro Lopes da Costa Teixeira , 17ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 19/12/2013, publicação da súmula em 10/01/2014)

parto, parto e póspartoimediato” (BRASIL, 2016). Esta abrangência não está limitada a rede pública, mas à maternidade e Hospitais também da rede privada do Município de Belo Horizonte. Desde 2005, o direito a um acompanhante da gestante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto é uma garantia que trouxe a lei federal 11.108/2005, também não sendo limitado ao SUS (Sistema Único de Saúde), como dispõe o artigo 19-J da referida lei, “os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato” (Brasil, 2005). A escolha do acompanhante não está condicionada ao pai da criança, mas sim a uma confiança e segurança que esta representa para mãe. A lei não faz menção de quem deve estar ao lado da mulher neste momento, apenas diz que esta tem tal direito e o Estado deve garanti-lo, pois esse acompanhamento está relacionado ao vínculo afetivo e aos laços que são construídos a partir deste momento, como podemos analisar a ementa da Apelação Cível de número 1.0024.11.113002-7/001 do Estado de Minas Gerais que trouxe:

O presente caso trata-se de uma gestante que optou por sua irmã como acompanhante e a maternidade cobrou uma taxa para que ela pudesse estar presente na sala de parto. Mesmo pagando o valor cobrado pela maternidade, essa não pode assistir o parto nem registrar o momento. O entendimento como posto do tribunal foi pela indenização de danos morais com base no princípio da razoabilidade e proporcionalidade, visto que a repercussão gira em torno do vínculo afetivo que cada um tem pela mãe e pelo recém-nascido. Portanto, com base na diversidade de possibilidades de partos, de procedimento que a medicina hoje oferece, a informação deve ser primordial, a base, o pilar para construção de uma relação médicopaciente de forma sadia. Como visto, o entendimento doutrinário e jurisprudencial é de que esta relação é consumerista, mesmo o Conselho Federal de Medicina tendo entendimento contrário. O Código de Defesa do Consumidor traz no artigo 6º inciso III, que “são direitos básicos do consumidor: - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quanEMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - PROCESSO CIVIL tidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e PESSOA JURÍDICA - JUNTADA DE PROCURAÇÃO AUSÊNCIA DE CONTRATO SOCIAL - IRRELEVÂNCIA preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (BRASIL, 2015). - MATERNIDADE - COBRANÇA DE TAXA PARA QUE A informação é um direito básico do consumidor. Saber sobre os PESSOA DA FAMÍLIA PUDESSE ACOMPANHAR reais riscos de um procedimento é um dever do profissional da saúde, PARTO - IMPEDIMENTO SEM MOTIVO BASTANTE - DANO MORAL - OCORRÊNCIA pois além de ser um direito, trata-se de uma questão de ética médica, - A juntada do contrato social da como traz o Código de Ética Médica no artigo 34, que prevê que “deidemandante aos autos somente é necessária quando há dúvida fundada acerca da xar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e regularidade da representação processual. os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa - Há dano moral se a maternidade, sem motivo lhe provocar danos, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu bastante, impede a parturiente de ser acompanhada representante legal” (BRASIL, 2015). por pessoa da família quando do parto, após ter até mesmo cobrado taxa para esse fim. No ordenamento jurídico brasileiro há uma diversidade de norV.V.: mas para regulamentar a responsabilização do médico pelo descumMATERNIDADE - PAGAMENTO DE TAXA PARA ACOMPANHAMENTO DE PARTO - primento do dever de informação, nesta linha de pensamento dispõe ÓBICE INJUSTIFICADO INDENIZAÇÃO Eugênio Facchini e Luciana Gemelli (2015): POR DANOS MORAIS - RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE - CIRURGIA RÁPIDA E SEM A base legal para a responsabilização do médico COMPLICAÇÕES - VÍNCULO AFETIVO E BIOLÓGICO pela falha no dever de informação é ampla, em DIFERENCIADO - REDUÇÃO DO “QUANTUM” nosso direito, como já visto, pois encontram-se ARBITRADO EM VALORES DISTINTOS. previsões no Código Civil (art. 15), no Código Penal - A fixação da indenização por danos morais (CP, art. 146 e seu § 3º, I), no CDC (art. 6º, inciso deve se pautar pelo princípio da razoabilidade, III, bem como das regras que também aludem a um cabendo ao julgador observar, conjuntamente, a genérico dever de informar, como é o caso dos arts. extensão da ofensa sofrida pela vítima, a condição 4º, inciso IV, 8º, parágrafo único, e 9º; das regras financeira do ofensor, o grau de reprovação sobre responsabilidade civil, fixadas nos arts. 12 da conduta ilícita, as normas de experiência e 14; das regras que integram a informação ao e o grau de sensibilidade do homem médio conteúdo do contrato, arts. 30, 31, 36, parágrafo - Este Tribunal, a exemplo de várias outras Cortes único, 37 e 38; bem como da regra assecuratória brasileiras, tem primado pela razoabilidade na do amplo conhecimento do conteúdo do contrato fixação dos valores das indenizações. É preciso pelo consumidor, art. 46, entre outros). No Código ter sempre em mente, que a indenização por de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931/2009), danos morais deve alcançar valor tal, que sirva de as previsões expressas encontram-se nos arts. 22, exemplo para o réu, sendo ineficaz, para tal fim, o 24, 31 e 34. No âmbito jurisprudencial, cada vez arbitramento de quantia excessivamente baixa ou mais os Tribunais pátrios vêm entendendo que a simbólica, mas, por outro lado, nunca deve ser não observância do dever de obter o consentimento fonte de enriquecimento para o autor, servindoinformado do paciente para se submeter a lhe apenas como compensação pela dor sofrida. intervenções médicas gera dever de indenizar [...]. - Considerando que o parto, segundo informou o (FACCHINI; GEMELLI, 2015, p. 75) médico obstetra, foi rápido e transcorreu de forma absolutamente normal, sem que houvesse danos à parturiente ou ao recém nascido, entendo que o montante indenizatório fixado revela-se excessivo par a indenizar o abalo moral sofrido pelos apelantes. - A repercussão na esfera psicológica de cada vítima, notadamente, o vínculo afetivo que cada um mantém com a parturiente e o recém nascido, sem se olvidar da relevância do vínculo de origem biológica entre o pai e o menor, deve ser levada em conta para que as indenizações sejam quantificadas em valores distintos. (TJMG - Apelação Cível 1.0024.11.113002-7/001, Relator(a): Des.

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Assim, as informações devem ser passadas à gestante, pois somente através deste meio pode-se garantir mais segurança à mãe ou, até mesmo,ao médico, para que este não responda por um vício de informação que traz o CDC. A autonomia sobre seu corpo é um direito da mulher, e quando não se tratar de uma gestação de risco, cabe a mulher escolher por qual parto optar, mas ela deve estar ciente dos reais riscos que cada procedimento traz como dispõe o Código de Ética Médica que diz: “É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter

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consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” (BRASIL, 2015). A não observância no dever de informar gera por consequência uma violação positiva do contrato, e por haver tal violação, o médico responde civilmente de forma objetiva, pois há o descumprimento dos deveres anexos, violação do princípio da boa-fé objetiva, acarretando ao médico o dever de indenizar, de reparar os danos sofridos, sejam estes morais, materiais ou estéticos. Nesta linha de pensamento complementa Facchini (2015): [...] portanto, pode-se dizer que quando o profissional de medicina deixa de informar o seu respectivo paciente estará descumprindo o princípio genérico da boa-fé objetiva, as regras deontológicas do seu Código de Ética Médica, além de violar um direito básico do consumidor. Assim, a inobservância do dever de informar enseja o inadimplemento contratual, e, portanto, atribui responsabilidade civil ao médico quando, dessa ausência de informação, sobrevierem danos ao paciente, por violação do princípio da autonomia privada do paciente, direito fundamental que é. (FACCHINI, 2015, p. 73) Há alguns anos, a preocupação que a Agência Nacional de Saúde tem manifestado é com relação ao grande índice de cesáreas que ocorrem no Brasil. A concepção que é disseminada é que o procedimento cirúrgico é mais seguro e pode gerar menos danos, quando na verdade,este tipo de procedimentos pode gerar um risco maior aos recém-nascidos como traz ANS. (2009): No setor suplementar de saúde brasileiro, a média da proporção de cesarianas é de 80,5%, dado alarmante que contribui para a ocorrência de resultados perinatais desfavoráveis, especialmente em relação à prematuridade iatrogênica, à síndrome da angústia respiratória do recém-nascido e à mortalidade materna. (ANS, 2009, p.159) A prematuridade iatrogênica ocorre quando o bebê ainda não está em completa formação, e acaba que este pode nascer com esta prematuridade e é submetido à incubadora para que se recupere. A contagem das semanas gestacional não promete exatidão, por isso há uma presunção mínima de duas semanas para mais ou para menos quando a mãe opta por uma cesárea eletiva com 37ª semanas, poderia ela estar com 35ª ou com 39ª semanas gestacionais, e por isso surgiam esses riscos. O Conselho Federal de Medicina no dia 17 de março de 2016 criou uma resolução em que as cesáreas eletivas das gestantes que não correm risco só poderão ocorrer a partir da 39ª semana, isso para que o bebê já esteja apto a vir ao mundo, com uma maior segurança, como coloca a reportagem do G1 que diz: A orientação seguida pelo CFM era de que fossem considerados fetos maduros aqueles entre 37 e 42 semanas de gestação. Nesta nova resolução, mudase para o mínimo de 39 semanas até que se torne seguro o parto cesariano, considerando aval médico. Além disso, o prontuário da grávida deverá conter obrigatoriamente a informação da opção pelo parto cesáreo em linguagem de fácil compreensão, algo que não era claramente exigido até o momento. De acordo com estudos apresentados pelo conselho, promover partos antes da 39ª semana pode acarretar problemas nos pulmões, fígado e cérebro, provocando desconfortos respiratórios, icterícia e até lesões cerebrais. (VIDIGAL, Mateus. 2016) A resolução 2.144/2016 do CFM deixa claro o dever de informa-

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ção que o médico deve ter para com a gestante, informando-a sobre os reais risco do procedimento cirúrgico e sobre o parto vaginal, bem como torna claro, o direito que a gestante tem de escolher sobre o melhor parto ao seu ver, importante salientar que essas informações devem ser prestadas de forma clara, e que o consentimento da parturiente deve ser de forma expressa em seu prontuário como traz o artigo primeiro e o parágrafo único: Art. 1º É direito da gestante, nas situações eletivas, optar pela realização de cesariana, garantida por sua autonomia, desde que tenha recebido todas as informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos. Parágrafo único. A decisão deve ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil compreensão, respeitando as características socioculturais da gestante. (BRASIL, 2015) Ademais, o artigo segundo da resolução supracitada busca garantir e preservar os direitos do nascituro que também é amparado pelo código civil no artigo 2º. Desta forma, o artigo da resolução busca garantir a segurança do feto e diz que “para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de gestação, devendo haver o registro em prontuário”. Para que o médico não responda pela violação ao dever de informar à gestante, tais informações devem ser passadas ao longo de todo pré-natal, para que a gestante possa ao longo deste processo escolher por qual procedimento adotar, visto que no Brasil, há uma diversidadede procedimentos, e a segurança que cada um transmite à mulher é pessoal e, portanto, uma escolha única dela. Outra informação que se pode destacar como pertinente e que mostra o a liberdade de manifestação foi a resolução 368 da Agência Nacional de Saúde que busca garantir a gestante que ela tenha acesso a informações sobre o índice de partos cesáreas e partos normais realizados pelo profissional médico ou pela clínica. Essa resolução surgiu através de uma manifestação na Avenida Paulista em SP. A chamada marcha das mulheres. Através deste ato, o Ministério Público propôs uma ação civil pública contra a Agência Nacional de Saúde que como medida para sanar o problema criou a resolução citada. A presente resolução traz no artigo 2º que: Sempre que for solicitado por uma de suas beneficiárias ou seu representante legal, a Operadora de Planos Privados de Assistência à Saúde deverá disponibilizar o percentual de cirurgias cesáreas e de partos normais, da própria operadora, estabelecimentos de saúde e médicos nominados pela beneficiária ou seu representante legal (BRASIL, 2015). Importante destacar que a ausência destas informações pela operadora de saúde poderá acarretar penalidades a ela, uma vez que há um descumprimento normativo. Pode a mesma responder pelas responsabilidades que traz a legislação brasileira, como dispõe o artigo 5º da resolução 368 que diz “O não atendimento da solicitação da beneficiária, no prazo fixado nos §§ 1º e 2º, art. 2º desta Resolução, poderá sujeitar a Operadora de Planos Privados de Assistência à Saúde à sanção estabelecida nos normativos vigentes”. A informação é um meio de trazer mais segurança à gestante, pois, desta forma, a paciente poderá escolher pelo procedimento que achar mais seguro a ela e a seu filho. A ignorância leva o ser humano como um todo a escolhas impróprias e a resultados muita das vezes, indesejáveis. E para que isso não ocorra, as informações devem ser

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passadas para que a sociedade como um todo entenda que o processo de nascer é algo comum, normal, que ocorre há séculos e não um evento médico. Nesta linha de pensamento, argumenta o Ministério da saúde (2001): O nascimento é historicamente um evento natural. Como é indiscutivelmente um fenômeno mobilizador, mesmo as primeiras civilizações agregaram, a este acontecimento, inúmeros significados culturais que através de gerações sofreram transformações, e ainda comemoram o nascimento como um dos fatos marcantes da vida. (MS, 2001, p. 17) A cultura brasileira é de uma medicina intervencionista, coisa que o Ministério da Saúde vem tentando desmistificar quando tratar de uma gestação. O parto não é uma doença e sim, um momento de vida, mas para isso, é necessário não só a atuação do Estado, mas dos profissionais de saúde. Neste sentido, dispõe o MS (2001): Para, de fato, mudar a relação profissional de saúde/ mulher é necessário uma mudança de atitude que, de foro íntimo, depende de cada um. Entretanto, algumas questões devem ser vistas como compromissos profissionais indispensáveis: estar sintonizado com novas propostas e experiências, com novas técnicas, praticar uma medicina baseada em evidências, com o olhar do observador atento. Reconhecer que a grávida é a condutora do processo e que gravidez não é doença. E, principalmente, adotar a ética como pressuposto básico na prática profissional. (MS, 2001, p. 10) Desta forma, com base nas informações postas, o médico que é omisso nas informações que podem ocasionar danos à gestante pode responder pelo dever de informação, ou seja, pelo descumprimento do princípio da boa-fé objetiva, por um erro inerente que antes não responderia, mas por haver violação do disposto no artigo 6º, III do Código de Defesa do Consumidor, e pelo descumprimento ético da profissão elencado no artigo 34 do Código de Ética Médica. Importante destacar que o dever jurídico originário é o dever principal, quando há o descumprimento deste, acaba por gerar um dever jurídico sucessivo, neste caso, quando há a violação do dever de informar, o descumprimento da boa-fé objetiva, por consequência surge o dever de indenizar, e no caso do médico, essa indenização pode ser material, moral ou estético. A finalidade da indenização é de equiparar a vítima no estado que estaria se o dano, ou melhor, se o fato não houvesse corrido. Por sua vez, a característica da obrigação de indenizar é a sucessividade, vez que decorre a violação da obrigação anterior, uma violação positiva do contrato, por descumprimento dos deveres anexos atrelados a relação médico-paciente. Portanto, a informação é de suma importância não apenas para o afastamento da responsabilidade civil objetiva do médico, mas principalmente para que a decisão mais acertada seja tomada pela gestante, pois, trata-se de um momento único e que não volta mais, onde ela é a protagonista desta história, e o mais importante, a segurança e a vida devem, acima de tudo, ser preservados, bem como a garantia de direitos a ela resguardados pelo Estado. 6 CONCLUSÃO Em virtude das informações trabalhadas no presente artigo, pode-se destacar que a natureza da obrigação médica como regra geral será de meio. Não pode o profissional de saúde garantir a vida de um paciente, sendo sua profissão uma forma de cuidar dos enfermos.

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Uma exceção seria a cirurgia plástica estética, em que, neste caso, a natureza jurídica da obrigação médica será de resultado. No que tange a responsabilidade civil médica, o estudo mostrou que esta não está condicionada à responsabilidade civil subjetiva prevista no artigo 186 do Código Civil em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor no artigo 14 § 4º, em que o médico responde por um erro ou culpa a quem tenha dado causa. Percebe-se que com o advento do CDC, o ônus da prova não fica limitado ao consumidor, podendo haver inversão deste quando entender o juiz ser o profissional de saúde ou o hospital melhor capacitado para produção desta prova. Assim, pode-se destacar a responsabilidade civil médica objetiva, em que a culpa é afastada e pode o médico responder por risco inerente pelo descumprimento que traz o Código de Defesa do Consumidor, previsto no artigo 6º, inciso III, pelo dever de informação. Com a pesquisa, pode-se enxergar o quão importante é a informação na relação médico-paciente, não sendo apenas uma questão ética, mas um direito do consumidor e um dever do médico. No decorrer dos estudos, observou-se que a responsabilidade civil médica pelo dever de informação está atrelada ao princípio da boa-fé objetiva, princípio este que não precisa estar de forma explícita, mas encontra-se de forma subentendida na relação médico-paciente. Quando ocorrer um vício de informação, sucessivamente houve uma violação deste. O dever de informação à gestante está ligado ao avanço da medicina que hoje oferece uma gama de diversos tipos de partos, e que por consequência cabe a mulher, nos casos em que não ofereça risco a ela e ao nascituro, optar pelo parto que achar mais seguro. Essa informação também não está condicionada apenas à segurança médica, mas também ao cumprimento do dever legal. Como posto no trabalho, se tais informações, por omissão médica, ocasionar algum dando à gestante, sejam eles morais, materiais ou estéticos,acarretará ao profissional responder pela responsabilidade civil objetiva, não por ter havido um erro na prestação de serviço, mas por haver um descumprimento do princípio da boa-fé objetiva, pelo vício de informação, amparado pelo Código de Defesa do Consumidor. REFERÊNCIAS ANS. Manual técnico de promoção da saúde e prevenção de risco e doença na saúde suplementar. Disponível em: <http://www.ans.gov. br/images/stories/Materiais_ para_pesquisa/Materiais_por_assunto/ ProdEditorialANS_Manual_Tecnico_de_Promocao_da_saude_no_setor_de_SS.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2016. ANS. Resolução Normativa 368. Dispõe sobre o direito de acesso à informação das beneficiárias aos percentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais. Disponível em: <http://artemis.org.br/ans/>. Acesso em: 18 maio 2016. ARRUDA, Vivian Lacerda. Culpa: o fio condutor na responsabilidade civil do médico. Unibrasil, 2009. BRASIL. Código de Ética Médica. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra_5.asp>. Acesso em: 17 maio 2016. BRASIL. Lei Federal número 11.108 de 7 de Abril de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/ Lei/L11108.htm>. Acesso em: 14 out. 2016.

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Banca Examinadora: Paula Maria Tecles Lara (Orientadora) Tatiana Maria Oliveira Prates Motta (Examinadora 1) Marco Túlio Figueiredo (Examinador 2)

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A IRREDUTIBILIDADE SALARIAL EM MOMENTOS DE CRISE: análise jurisprudencial THE SALARY IRREDUTIBILITY IN MOMENTS OF CRISIS: jurisprudential analysis Otávio Augusto de Oliveira 1

Resumo: O salário, por ser uma parcela que visa garantir às necessidades vitais básicas ao trabalhador e às de sua família, merece uma proteção do ordenamento jurídico. A Constituição Brasileira de 1988 em seu artigo 7º,VI assegura o Princípio da Irredutibilidade salarial, no momento em que impede a possibilidade de uma redução salarial, salvo quando essa for feita por meio de um acordo ou convenção coletiva. Isso se faz de suma importância, principalmente em momentos de crise, uma vez que o empregador utiliza dessa estratégia a fim de garantir a manutenção dos empregos. Ressalta-se, porém, que tal redução possa ser um perigo quanto a flexibilização das conquistas trabalhistas. Assim, o intuito desse artigo é ampliar a discussão sobre a irredutibilidade salarial em momentos de crise a partir da análise jurisprudencial. Palavras chave: Salário. Irredutibilidade salarial. Crise. Jurisprudência. Flexibilização.

Abstract: The salary to be a part intended to guarantee the basic living needs of the worker and his family, deserves law protections. The national supreme law (Brazilian Constitution of 1988) in article 7º, VI ensures the principle of salary irreducibility since that prevents the possibility of a salary reduction, except when this is done through an agreement or collective agreement. All this discution is very important, especially in times of crisis, when employer can use this strategy to ensure the jobs maintenance. Points out that, however, that such reduction can be dangerous regarding the flexibility of labor achievements. Thus, the purpose of this article is to broaden the discussion of salary irreducibility in times of crisis, with a critical view on the legal decisions about the theme. Key words: The salary. Salary irreducibility. Crisis. Legal decisions. Flexibility.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Os Princípios do Direito Do Trabalho - Enfoque na Irredutibilidade Salarial. 3 As Possibilidades de Negociação Coletiva Autorizada pela Constituição Federal. 4 Análise Jurisprundencial: A Validade da Redução Salarial Através da Negociação Coletiva. 5 Conclusão. Referências.

Graduando pela Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Licenciado em Ciências Biológicas pela UFMG. Mestre em Ensino de Ciências pela PUC Minas.

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1 INTRODUÇÃO É de notório saber que o Brasil vive a pior recessão econômica dos últimos tempos tendo uma queda do PIB de 8,7%, entre os anos de 2014-2016, levando a um fechamento de mais de 191 mil empresas somente no ano de 2015 e possuindo 12 milhões de desempregados (VALLE, 2016). Sendo assim, a redução de salário é uma das maneiras de garantir a manutenção dos empregos, fazendo-se, portanto, de suma importância ampliar a discussão sobre a irredutibilidade salarial em momentos de crise a partir da análise jurisprudencial. Para tanto, serão destrinchados no decorrer deste artigo a conceituação de empregado, empregador e dos princípios específicos ao direito do trabalho, com ênfase ao princípio da irredutibilidade salarial, de modo a melhor contextualizar o tema e delimitar a abrangência epistemológica aqui tratada. Não obstante, serão abordados nos capítulos que seguem as possibilidades de negociação coletiva autorizadas pela Constituição Federal de 1988 e sua aplicabilidade no meio jurídico contemporâneo a partir de análises jurisprudenciais. 2 OS PRINCÍPIOS DO DIREITO DO TRABALHO - ENFOQUE NA IRREDUTIBILIDADE SALARIAL 2.1 Caracterização da relação de emprego O presente capítulo visa definir alguns conceitos de suma importância que serão abordados no decorrer deste artigo dentre eles: empregado, empregador e os princípios do Direito do Trabalho com ênfase no princípio da Irredutibilidade salarial, foco central desse. Sabe-se que por mais consolidados sejam alguns desses conceitos, ainda sim, há um pluralismo dos mesmos, a depender da escola a qual cada autor se incorpora. Para que seja configurada uma relação de emprego é necessária a presença de dois sujeitos o empregado e o empregador. O primeiro é pessoa física e deverá prestar serviço não eventual ao segundo mediante salário e subordinação e está previsto no artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT: Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual (BRASIL, 1943). Com base no artigo supracitado pode-se verificar a necessidade de cinco pressupostos que deverão obrigatoriamente coexistir para que o trabalhador seja considerado empregado. O primeiro é o fato de todo trabalhador ser uma pessoa física, ou natural, não cabendo a pessoa jurídica usufruir dessa condição. O segundo requisito indispensável é a pessoalidade, ou seja, o caráter intuito personae, somente a pessoa que fora contratada é que poderá prestar o serviço, não podendo se fazer substituir em via de regra. A exceção se encontra prevista na súmula 159, I do Tribunal Superior do Trabalho - TST que permite a não pessoalidade em um caráter esporádico e mediante autorização do empregador. Além dessa, encontramos outra quando se tratar de um empregado a domicilio, em que muitas vezes possui apoio de algum familiar e mesmo assim não descaracteriza o vínculo empregatício (BARROS, 2007). Já o terceiro pressuposto é a não-eventualidade, que apesar de ser muito controvertida nessa ciência, pode ser entendido como sendo a exigência de uma habitualidade, uma certa permanência, mesmo que seja por um curto período determinado. A permanência indefinida do vínculo de emprego é regida e reforçada pelo princípio

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da continuidade da relação de emprego, que ainda será definido ao longo desse capítulo. A onerosidade se faz de extrema importância como outro pressuposto para que seja caracterizada a figura do empregado. Não há contrato de trabalho a título gratuito, ou seja, ao prestar o serviço o empregado deverá sempre receber um salário poderá ser pago em dinheiro ou in natura de acordo com o previsto no artigo 458 da CLT. E por fim, temos a subordinação, natureza jurídica, segundo a qual o empregado se submete aos comandos/poder diretivo do empregador através do contrato de trabalho e por meio das cláusulas e ordens ali explicitas. Ressalta-se que esse poder não poderá ser exagerado ao ponto de ferir os direitos trabalhistas e constitucionais do empregado, o que poderia gerar um dano e ou assédio moral. Não basta o empregado para determinar uma relação de emprego, é importante se ter a figura do empregador no outro polo. Este encontra seu preceito legal no artigo 2º da CLT que prevê: Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. § 1º - Equiparamse ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. § 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas. (BRASIL, 1943) Dessa maneira, o empregador pode ser uma pessoa física, jurídica ou qualquer outro ente, que mesmo não possuindo personalidade, exercer as seguintes funções perante o empregado: contratar, assalariar e dirigir a prestação pessoal de serviço e, ao fazer tais atividades estará assumindo os riscos do empreendimento econômico (BARROS, 2007). De acordo com Delgado (2012) existem dois efeitos jurídicos decorrentes da existência do empregador, são eles a despersonalização e a assunção dos riscos do empreendimento e do próprio trabalho contratado. Esse conceito legal traz uma discussão ampla, pois define ser empregador a empresa. Muitos autores não concordam com tal definição, pois a empresa em si não é sujeito de direitos no ordenamento jurídico brasileiro, salvo a empresa pública por força do Decreto–Lei n. 200. Porém, os autores que concordam com tal posicionamento argumentam: estar previsto no próprio texto da CLT; a combinação dos artigos 10 e 448 da CLT gera um vinculo do empregado com a empresa; e por fim, o fenômeno da despersonalização do empregador (NETO e CAVALCANTE, 2013). Ressalta-se que por não ser o enfoque central desse trabalho, essa discussão não será exaurida, cabendo esta suscitar a um futuro texto. Dessa maneira, para configurar empregado é fundamental a presença dos cinco elementos constitutivos: pessoa física, pessoalidade, onerosidade, habitualidade subordinação. Porém, não existe um conjunto de elementos indispensáveis para conceituar o empregador, o que é necessário, é que haja a tomação de serviços empregatícios. Após essa conceituação tão fundamental, será destinada ao próximo tópico a explicação dos Princípios específicos do Direito do Trabalho, fonte material dessa Ciência e de extrema importância para a concretização do objetivo deste artigo.

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2.2 Princípios específicos do Direito do Trabalho A Ciência Jurídica possui como elemento central o dever–ser, diferentemente das outras Ciências em que este elemento consiste no ser. Dessa maneira, tem-se o princípio como um importante condutor da compreensão tanto da norma quanto do instituto jurídico. De acordo com Delgado (2012, p.181) “o princípio traduz, de maneira geral, a noção de proposições fundamentais que se formam na consciência das pessoas e grupos sociais, a partir de certa realidade, e que, após formadas, direcionam-se à compreensão, reprodução ou recriação dessa realidade”. Apesar de não unânime dentro da doutrina trabalhista, mas embasado em Barros (2007), Cassar (2014) e Delgado (2012) pode-se considerar os princípios como fonte material normativa concorrente uma vez que os mesmos possuem a função de informar o legislador, orientar o juiz em sua atividade interpretativa e por fim integrar o direito, sem, contudo prevalecer sobre as normas legais. Serão abordados a seguir os princípios específicos ao Direito do Trabalho reservando para o próximo item o princípio da irredutibilidade salarial objeto cerne do presente artigo. O Princípio da proteção é a viga mestra do Direito do Trabalho, pois, visa alcançar uma igualdade substancial entre as partes empregado x empregador, bem como capital x trabalho, já que o empregado, sendo o polo hipossuficiente da relação, deve ser protegido. Esse referido princípio vem como uma construção para trazer tanto para as normas quanto para os demais princípios, uma condição melhor para o empregado perante o empregador, visando retificar ou atenuar o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. Desse princípio decorrem três outros princípios: o in dubio pro operário, o da norma mais favorável e o da condição mais benéfica. Porém, é evidente que além desses citados, o princípio da proteção irá perpassar, mesmo que indiretamente, pelos demais. Tal afirmação se deve ao caráter protetivo do princípio, conforme nos ensina Delgado (2012, p.194) ao relatar que “os princípios tem uma proteção especial aos interesses contratuais obreiros, buscando retificar, juridicamente, uma diferença prática de poder e de influência econômica e social aprendida entre os sujeitos da relação empregatícia”. O Princípio da norma mais favorável decorre do principio da proteção. É aquele que diz que havendo mais de uma norma em concreto para uma situação, deve-se analisar a questão do ponto de vista da norma mais favorável, observado o caráter sistemático da ordem jurídica quanto a sua hierarquia. Ele pode atuar tanto na construção de uma norma quando ela não existe, quanto na interpretação dessa norma aplicada a um direito estabelecido, sempre buscando a melhor opção ao trabalhador. Dessa maneira esse princípio age de forma tríplice como instrumento de interpretação, de hierarquização e de informação do Direito do trabalho. O Princípio da imperatividade das normas trabalhistas irá informar que a norma trabalhista é imperativa. Ou seja, são normas cogentes. De acordo com Delgado (2012, p.196) “Informa tal princípio que prevalece no segmento juslaborativo o domínio de regras jurídicas obrigatórias, em detrimento de regras apenas dispositivas”. Dessa maneira, não se pode negociar as mesmas pela manifestação de vontade das partes, a fim de permitir as garantias fundamentais do trabalhador em detrimento aos poderes do contrato de trabalho (DELGADO, 2012). Já o Princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas é decorrente do princípio anterior e prevê não ser possível o trabalhador dispor de seus direitos a sua vontade dispondo das garantias e proteções presentes no contrato de trabalho, bem como no ordenamento jurídico. É vedado ao trabalhador renunciar ou transacionar seus direitos, sendo assim, os direitos trabalhistas decorrem de normas traba-

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lhistas e muito embora o trabalhador tenha seus direitos, ele não pode renunciá-los e nem negociá-los. O Princípio da condição mais benéfica encontra-se amparado no artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal de 1988 – CF/88 e tem um enfoque sobre as cláusulas contratuais. Essas cláusulas, escritas ou verbais, irão aderir ao contrato do trabalho e via de regra não poderão ser alteradas, seja por conta desse princípio, seja ao direito adquirido. Cabe salientar que a cláusula mais benéfica sempre deverá prevalecer. O Princípio da inalterabilidade contratual lesiva previsto no artigo 468 da CLT diz que ainda que de mútuo consentimento, o contrato de trabalho não pode ser alterado para prejudicar o trabalhador. Toda e qualquer alteração contratual benéfica ao trabalhador será aceita e incentivada. Porém de outro lado, as alterações desfavoráveis ao trabalhador encontram grande limitação, sendo como regras, nulas. Já o Princípio da primazia da realidade procura prestigiar aquilo que ocorre na realidade e não o que emerge de documentos caso haja divergência entre eles, evitando assim, fraudes. É atribuída ao Juiz do Trabalho a possibilidade de desconsiderar documentos que não espelhem a realidade, ainda que formalmente estabelecidos. Com isso as relações trabalhistas são definidas pela situação de fato, desprezando toda e qualquer inverdade que aparentemente transpareceu como real. Segundo o Princípio da continuidade da relação de emprego somente será uma relação de emprego aquela decorrente entre empregado e empregador. Assim, excluem dessa gama todas as pessoas que não possuem para si os direitos trabalhistas. Esse princípio busca que as relações de emprego em geral sejam de prazo indeterminado, tendo o contrato de trabalho uma continuidade, garantindo ao empregado uma segurança econômica nessa relação. De acordo com o previsto na Súmula 212 do TST, esse princípio da continuidade favorece o empregado no ônus da prova, isso por que o ônus de provar o término do contrato de trabalho quando negados a prestação de serviço é do empregador. Por fim, o Princípio da Intangibilidade encontra-se legitimado no artigo 462 da CLT, segundo o qual determina que o salário tenha um conjunto de regras para protegê-lo, sendo via de regra intangível. Por ser considerada uma verba alimentícia, atendendo assim, as necessidades vitais e básicas do ser humano, o salário mereceu uma maior proteção por parte do legislador. Vale ressaltar que a intangibilidade visa à proteção do salário contra seus credores, salvo, as situações previstas em lei como: pagamento de pensão alimentícia, a dedução de imposto de renda, contribuições previdenciária, contribuição sindical, entre outros. É por meio desse salário que o trabalhador irá manter não somente as suas necessidades, mas também dos indivíduos que cercam sua comunidade familiar. De acordo com Delgado: A essencialidade dos bens a que se destinam o salário do empregado, por suposto, é que induz à criação de garantias fortes e diversificadas em torno da figura econômico – jurídica. (...) Nesse quadro, garantir – se juridicamente o salário em contextos de contraposição de outros interesses e valor é harmonizar o Direito do Trabalho à realização do próprio princípio da dignidade do ser humano. (DELGADO, 2012, p.201) Dessa maneira, o salário não pode ser tocado, bem como não pode haver descontos que não sejam exatamente previstos em lei. Estabelece assim, que esta parcela trabalhista mereça garantias diversificadas da ordem jurídica, de modo a assegurar seu valor, montante e disponibilidade em benefício do empregado.

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Até o presente momento foram demonstrados alguns dos princípios considerados como núcleo basilar do Direito do Trabalho. Todos esses visam proteger e assegurar os direitos fundamentais da parte mais hipossuficiente da relação trabalhista, o empregado. O Princípio da Irredutibilidade Salarial também faz parte desse núcleo basilar e encontra-se previsto no texto constitucional, que impede que tal verba seja reduzida, exceto por convenções e acordos coletivos. Tal princípio por ser a base central desse artigo será discutido e analisado no próximo tópico. 2.3 Princípio da Irredutibilidade Salarial Antes de iniciar a discussão acerca do Princípio da Irredutibilidade faz-se necessário uma análise sobre a concepção de salário. Para Delgado (2012, p.707) salário “é o conjunto de parcelas contraprestativas pegas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho”. Ou seja, o que importa é a existência de um contrato de trabalho e não necessariamente o labor exercido. Vale ressaltar que conforme previstos no artigo 76º da CLT e artigo 7º, IV da CF/88 o salário é na verdade um conjunto de parcelas com o objetivo de satisfazer às necessidades vitais básicas (moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, entre outros) do trabalhador e às de sua família. Silva (2006, p.48) compreende que o trabalho “não é apenas o meio de subsistência do trabalhador, mas o sustento da vida social e o suporte de toda a produção de bens e serviços necessários à sua existência”. Sendo assim, podemos afirmar que o salário possui natureza alimentar ao atender essas necessidades básicas. E dessa forma, portanto, deve ser protegido contra qualquer abuso, retenção ou até mesmo redução, conforme presente no princípio da dignidade da pessoa humana (CASTRO, 2013). Pela análise supra, fica clara a grande importância do salário, devendo esse ser protegido pelo ordenamento jurídico. A convenção nº 95 da Organização Internacional do Trabalho que posteriormente foi promulgado pelo Decreto nº 41.721, de 1957 estabeleceu um grande avanço aos direitos do trabalhador ao estabelecer regras claras para a proteção ao salário. Além disso, foi com a CF/88, em seu artigo 7ª, X, que passou a ser considerado crime a retenção dolosa do salário o que inibe qualquer excesso por parte do empregador. Porém, é no inciso VI do artigo 7º da CR/88 que o instituto do salário ganhou a proteção dos princípios da irredutibilidade, impenhorabilidade e intangibilidade. Segundo este inciso, o salário não poderá ser reduzido, salvo quando feito por negociação coletiva junto ao sindicato da categoria. Vale ressaltar que a redução unilateral em momentos excepcionais, observando o artigo 503, da CLT e a redução por sentença judicial não foram recepcionados pela legislação constitucional (CASTRO, 2013). Assim, considera inconstitucional a redução salarial em qualquer que seja o momento econômico vivenciado pelo empregador sem a prévia autorização da entidade sindical que representa o empregado. Assim, o Princípio da Irredutibilidade Salarial, inicialmente inferido pelo princípio geral pacta sunt servanda, encontra amparo legal tanto no artigo 7º, VI, da CF/88 quanto no artigo 468 da CLT, segundo os quais: Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo (BRASIL, 1988).

não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. Parágrafo único - Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança (BRASIL, 1943). Esse princípio apresenta uma importância fundamental não somente por tutelar um direito do trabalhador, mas também por garantir por intermédio do salário a subsistência desse e de seus familiares. A irredutibilidade vai abarcar a redução direta, quando há diminuição nominal de salários, e a indireta, quando essa redução salarial vem acompanhada da redução da jornada ou do serviço. Com isso, qualquer alteração, seja ela na mudança do valor quanto na forma de pagamento do salário, se prejudicial for ao empregado, será nula. O acordo e a convenção coletiva são as únicas hipóteses de redução do salário previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Tais hipóteses serão abordadas com mais detalhes no próximo capítulo desse artigo. 3 AS POSSIBILIDADES DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA AUTORIZADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL O Direito do Trabalho é o único campo do Direito que, além das relações individuais, há uma relação coletiva, cada qual com suas próprias regras, institutos e princípios. No Direito Individual há a presença de dois sujeitos: o empregado (ser individual) e o empregador (ser coletivo). Porém estes sujeitos não se encontram numa igualdade social, econômica e política (DELGADO, 2012). Nesse contexto, surge o Direito Individual do Trabalho que busca equilibrar essa relação discrepante entre esses sujeitos. Em contrapartida, no Direito Coletivo há uma relação contrabalanceada entre os sujeitos pertencentes. Esses sujeitos são o empregador e as organizações sindicais, representando os empregados. É importante ressaltar que por meio dos acordos e convenções coletivas, o Direito Coletivo passa a influenciar diretamente o Direito Individual. Sendo assim, o Direito Coletivo assume importantes funções ao criar normas, pacificar os conflitos entre os sujeitos e, principalmente, melhorar as condições do pacto trabalhista (NETO e CAVALCANTE, 2013). Neste diapasão, fica evidente então que essas funções somente lograrão êxitos por meio dos acordos e convenções coletivas. Para tal, o Princípio da Adequação Setorial Negociada vem regular as possibilidades e os limites jurídicos decorrentes da negociação coletiva, se apresentando como limite da autonomia da vontade privada dos sujeitos participantes da relação coletiva. Segundo Delgado (2012) esse ainda é um princípio novo no ordenamento trabalhista brasileiro que tem por objetivo a resolução de um aparente conflito/dilema entre as normas oriundas da negociação coletiva frente à legislação estatal imperativa. Em complemento, para Cassar (2014, p.1231) esse princípio visa “(...) adequar os direitos trabalhistas a cada categoria de acordo com a região, época, situação econômica, empresa, condições de trabalho etc. Deve levar em conta todas as premissas e condições para negociar”. Assim, para que as normas jus coletivas possam surtir efeito é preciso que sejam respeitados dois critérios objetivamente fixados, que de acordo com Delgado:

Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que

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São dois critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente

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parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta) (DELGADO, 2012, p. 1342). O primeiro critério vai em direção ao Princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, uma vez que nenhum direito do trabalhador será suprimido, mas sim, haverá um acréscimo deste, melhorando assim, as condições de vida desse trabalhador. Por outro lado, o segundo critério será contrário ao Princípio da indisponibilidade. Mas esta perda do direito do trabalhador somente poderá se dar nas parcelas autorizadas anteriormente pela Constituição Federal de 1988, previsto no art. 7º, VI, XIII e XIV, que são referentes ao salário e a jornada de trabalho. Dessa maneira, em síntese, o Princípio da Adequação Setorial Negociada pode ser visto sob dois aspectos: 1) melhorar as condições de trabalho por meio do aumento dos benefícios, quando as condições financeiras e econômicas da empresa estiverem boas; 2) garantir o emprego, evitando dispensas coletivas, ao permitir flexibilização de direitos previstos em lei, caso a empresa esteja atravessando uma crise econômica. Ou seja, é a situação econômica vivenciada pelo empregador que irá ditar qual aspecto deverá ser seguido na busca da satisfação do bem coletivo. Por fim, as normas coletivas não terão validade e eficácia caso o trabalhador tenha renunciado ou transacionado seus direitos, ou o que fora negociado tenha sido direitos revestidos de indisponibilidade absoluta, previsto nas normas constitucionais (salvo as ressalvas já mencionadas), normas de tratados e convenções internacionais que o Brasil é signatário e normas infraconstitucionais (DELGADO, 2012). É inquestionável a importância dos acordos e das convenções coletivas como os meios pelos quais os trabalhadores, representados pelos sindicatos, conseguirão logra êxitos perante suas demandas. No próximo tópico, tais institutos previstos pelo texto constitucional serão caracterizados e diferenciados, a fim de permitir um embasamento para analisar as decisões, foco desse artigo, no próximo capítulo. 3.1 Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho Conforme fora discutido no capítulo anterior e previsto no artigo 7º, VI da CF/88, em via de regra, o salário é uma parcela que não poderá ser reduzida, salvo se esta for por meio da convenção ou acordo coletivos de trabalho, sendo estes instrumentos, reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 7º, XXVI. Nesta seção serão discutidos esses dois institutos, eixos centrais desse artigo. Os sindicatos de categorias profissionais são legitimados a celebrar tanto a convenção quanto os acordos coletivos como representantes dos empregados. Porém, sob a ótica de representação do empregador, será o sindicato da categoria capaz de celebrar a convenção coletiva. Caso a categoria não seja organizada em sindicatos poderá a federação ou a confederação executar essa função. Mas no acordo coletivo a legitimação será da própria empresa. O conceito de convenção coletiva está definido expressamente no artigo 611, caput, CLT, segundo a qual: Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho (BRASIL, 1943). De acordo com Cassar (2014), Neto e Cavalcante (2013) e Barros (2007) esse conceito permite verificar o caráter genérico desse instituto, uma vez que o mesmo é resultado da negociação entre o

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sindicato dos empregados (profissionais) e dos empregadores (econômica). A convenção coletiva, acordo de vontade entre esses sujeitos, irá criar normas jurídicas (criam regras e direitos que vão integrar o contrato individual de trabalho) e cláusulas contratuais (estipulam direitos e obrigações para as partes pactuadas) para todo e qualquer profissional pertencente a uma determinada categoria representada por esse sindicato. Por sua vez, o mesmo artigo 611 da CLT, porém em seu parágrafo 1º irá definir o acordo coletivo sendo: § 1º É facultado aos Sindicatos representativos de categorias profissionais celebrar Acordos Coletivos com uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa ou das acordantes respectivas relações de trabalho (BRASIL, 1943). Assim, o acordo coletivo será celebrado entre uma ou mais empresas e o sindicato que representa os trabalhadores dessa categoria. Ressalta-se que, como previsto na CLT, não é necessário a presença do sindicato dos empregadores e tal dispensabilidade não fere o que fora previsto no artigo 8º, VI, CF/88 “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”. Tal fato se dá pelo fato do empregador por si só já ser considerado um ente coletivo, diferentemente dos trabalhadores que só serão considerados coletivos, quando representados pelo sindicato. Entretanto, será indispensável para garantir a validade desse acordo à presença do sindicato da categoria econômica. De tal modo como ocorrem com as convenções, os acordos irão gerar regras jurídicas e cláusulas contratuais. A grande diferença, é que nesses últimos o que fora pactuado só valerá para os profissionais das empresas envolvidas e não a toda uma categoria. Por ser um importante criador de normas jurídicas, esses institutos estão revestidos de certa formalidade, devendo ser obrigatoriamente escritos e obedecerem aos preceitos estipulados pelos artigos 612, 613 e 614 da CLT. Este último artigo determina que o que fora estipulado pelas partes somente entrará em vigor 3 dias após o depósito no órgão equivalente ao Ministério do Trabalho e não poderá ter uma duração superior a 2 anos. Caso as partes desejem prorrogar, rever, denunciar ou revogar tanto a convenção quanto o acordo deverá seguir aos preceitos do artigo 615 da CLT. Ressalta-se por fim que o que fora estipulado somente será abraçado por aquela categoria. Caso outra deseje obter as mesmas regras, os sujeitos legitimados terão que realizar os mesmos procedimentos e formalidades já discutidos anteriormente. A súmula 277 do TST prevê que “As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”. Tal súmula vem corroborar com o fato do Direito Coletivo ter uma influência direta no Direito Individual. Isso devido à possibilidade de incorporação das normas estipuladas em acordos e convenções coletivas aos contratos individuais de trabalhos. Fica evidente que ao incorporarem essas normas, essas se projetarão no tempo e somente poderão ser modificadas ou suprimidas por novas normas. Assim, o TST respaldou a ultratividade ao afirmar que a norma estenderá sua eficácia enquanto não for substituída por outra. Suscitar as abordagens levantadas até o presente momento requer, também, uma reflexão a respeito dessa redução salarial. Afinal, é importante questionar se todo acordo ou convenção coletiva fora feito com o objetivo real de preservar o emprego do trabalhador frente à crise econômica atual. Do mesmo modo, se faz pertinente levantar

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questionamentos no que diz respeito a possibilidade dos empresários aproveitarem esse momento tão delicado da economia para flexibilizar os direitos trabalhistas. Neste contexto, cabe ao Ministério Público do Trabalho (MPT), fiscalizar os reais motivos que levaram o sindicato dos empregados a fazerem um acordo ou convenção coletiva com a empresa e com o sindicato do empregador respectivamente. Tal ato do MPT minimizaria uma proliferação dessas normas, uma vez que elas podem vir a prejudicar os trabalhadores, elo hipossuficiente do polo trabalhista. Essa discussão vai ao encontro do pensamento de Silva (2016, p. 46) que “defende que a flexibilização das normas trabalhistas deve ser usada em caso de emergência, quando esgotadas todas as possibilidades permitidas de auxílio e recuperação da saúde da empresa e, como consequência, manutenção do emprego dos trabalhadores”. Dessa maneira o trabalhador continua não podendo dispor de seus direitos, exceto se este for feito por uma convenção ou acordo coletivo. Tais institutos estão previstos no texto constitucional e também encontram amparo no Princípio da adequação setorial negociadas, conforme já mencionado no início deste capítulo. O grande legado desses contratos coletivos é que na convenção coletivo o efeito é erga omnes, já no acordo coletivo é inter partes. É de notório saber que a possibilidade da flexibilização dos direitos trabalhistas está previsto na Constituição Federal de 1988, mesmo assim, cabe uma pergunta: Como o judiciário tem agido frente a atual crise econômica? No próximo capítulo será feito uma análise jurisprudencial a fim de tentar responder a tal questionamento. 4 ANÁLISE JURISPRUNDENCIAL: A VALIDADE DA REDUÇÃO SALARIAL ATRAVÉS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA Nos dizeres de Leite (2013) e Delgado (2012) o Direito do Trabalho e o Direito Processual do trabalho constituem-se basicamente por três fontes: as heterônomas, quando terceiros estranhos à relação de emprego participam da elaboração das mesmas, tais como a constituição, a CLT, as leis, os decretos, as portarias do Ministério do Trabalho e os tratados internacionais; as autônomas, que são elaboradas pelos próprios destinatários, ou seja, quem vai discutir são os próprios beneficiários, como exemplo temos os acordos e as convenções coletivas; e por fim a última fonte são as chamadas especiais, como por exemplo, o laudo arbitral, o regulamento empresarial, os princípios jurídicos, doutrina, equidade e a jurisprudência. Para Delgado:

ca do entendimento dos tribunais se faz de suma importância para a consolidação de um direito vivo e ativo. A primeira decisão a ser analisada foi proferida pelo Desembargador Breno Medeiros da 8ª turma do TST, dispondo o seguinte: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. REDUÇÃO SALARIAL. ACORDO COLETIVO. Caracterizada uma potencial ofensa ao art.7º, VI e XXVI, da Constituição Federal, dá-se provimento ao agravo de instrumento para determinar o prosseguimento do recurso de revista. Agravo de instrumento provido. (...) REDUÇÃO SALARIAL. ACORDO COLETIVO. Os ajustes firmados mediante acordo e convenção coletiva devem ser prestigiados, a teor do que dispõe o art. 7º, inciso XXVI, da Constituição da República. E o inciso VI do referido diploma constitucional autoriza a redução salarial por meio de negociação coletiva, presumindo-se, nessa hipótese, que tais ajustes ocorreram dentro de um contexto de concessões mútuas, com a criação de novos direitos e deveres para empregadores e empregados. No caso, a redução salarial teve por justificativa, dentre outras, a continuidade do empreendimento e a manutenção dos postos de trabalho, hipóteses nas quais repousa a contrapartida do empregado, que tem no trabalho a sua fonte de sustento. Recurso de revista conhecido e provido. (RR - 1578-46.2012.5.15.0030, Relator Desembargador Convocado: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 21/10/2015, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/10/2015 - grifei). A ação exposta acima foi movida por uma professora contra a universidade que trabalhava. A autora relata que a ré convocou o corpo docente para informar que devido à crise econômica, os mesmos passariam a receber salário fixo ao contrário da hora-aula. Por se sentir coagida, a autora consentiu o acordo coletivo que foi firmado perante o Ministério Público do Trabalho. Apesar da situação acima encontrar amparo constitucional no art. 7º, VI da CF/88, o Tribunal Regional desconsiderou o acordo coletivo feito entre a universidade e o sindicato dos professores. Para tal decisão o Tribunal Regional argumenta: (...) Entendo, isso sim, que tal acordo não pode ser aplicado, uma vez que não previu concessões e direitos recíprocos, tampouco concedeu qualquer benefício aos empregados. Pelo contrário, o indigitado acordo, celebrado em dezembro/2007 (com efeito retroativo a agosto), prevê única e exclusivamente a redução dos salários dos empregados da reclamada, sob a justificativa de “...preservar a continuidade do estabelecimento de ensino superior, o equilíbrio econômico e financeiro, de preservar a massa de empregos gerada, e a prestação dos serviços educacionais aos alunos...” (fl. 486). Ocorre, porém, que a própria reclamada admitiu – no documento que convocou os empregados para discutir a implantação de nova política salarial – que “A situação da Estácio de Sá é muito boa. A situação da Estácio de Sá Ourinhos, idem. Estamos com as finanças em dia, com as obrigações fiscais, para fiscais, trabalhistas e para com terceiros, absolutamente em dia, o que é uma exceção no mundo da educação superior, mas é a nossa obrigação...” (fl. 252 – 21/07/2007). (RR - 1578-46.2012.5.15.0030, Relator Desembargador Convocado: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 21/10/2015, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/10/2015).

(...) essa fonte destaca-se por uma indissimulável dubiedade em face do temário relativo às fontes do Direito. Tal dubiedade se manifesta ora no tocante ao posicionamento classificatório do instituto enfocado (como fonte heterônoma ou autônoma), ora no concernente à duplicidade de papéis por ele assumido, ora respeitando à sua própria caracterização como fonte normativa efetiva. (Delgado, 2012, p.165) O cerne da questão deste capítulo se baseia em analisar as jurisprudências proferidas pelo TST a respeito da temática da irredutibilidade salarial. Mas antes de tal exame é preciso fazer algumas considerações sobre esse instituto. Segundo Delgado (2012, p. 167) “a jurisprudência traduz a reiterada interpretação conferida pelos tribunais às normas jurídicas, a partir dos casos concretos colocados a seu exame jurisdicional”. É de se esperar que por permitir uma melhor compreensão dos repetidos fenômenos jurídicos, a Jurisprudência acarrete numa redução do número de ações na justiça trabalhista brasileira. Isso por que consolida determinados posicionamentos para semelhantes situações fáticas. Dessa maneira, a compreensão a cer-

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Diante do exposto, a universidade recorre ao TST, que revoga a decisão do Tribunal passando a considerar válida a redução salarial,

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uma vez que a mesma fora autorizada por acordo coletivo e aceito pelo Ministério Público do Trabalho. O Excelentíssimo Desembargador, ao acatar tal acordo, ignora os reais motivos pelos quais o mesmo fora feito. Uma vez que, a instituição de ensino não se encontrava numa crise econômica, o que ficou comprovado por meio dos depoimentos. Ao desprezar esse depoimento, o Ilustríssimo passa a acatar apenas os fatos emergentes de documentos, mesmo que, na realidade, os fatos sejam diferentes. Assim sendo, o referido Desembargador além de não primar pelo Princípio da primazia da realidade, abre um preceito para a flexibilização dos direitos trabalhistas no que tange a parcela que por si só merece toda a proteção jurídica, por visar à satisfação das necessidades vitais básicas do trabalhador e de seus familiares. Seguindo o mesmo posicionamento, o Ministro Emmanoel Pereira da 2º turma do TST decide:

Por fim, a decisão do Desembargador Cláudio Armando Couce de Menezes da 2ª turma do TST prediz: RECURSO DE REVISTA. RECURSO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. ACORDO COLETIVO. DIFERENÇAS SALARIAIS DECORRENTES DE REDUÇÃO DE SALÁRIOS ACOMPANHADA DE AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE CONTRAPARTIDA EM FAVOR DO EMPREGADO. VIOLAÇÃO AO ART. 7º, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROVIMENTO DO APELO. Como se observa dos elementos fáticos e probatórios registrados no Acórdão Regional, a prática da demandada, de reduzir o salário do Autor com aumento de jornada de trabalho, feriu o princípio da estabilidade econômica, em clara afronta ao princípio constitucional da irredutibilidade salarial, insculpido no artigo 7º, VI, da Constituição da República. Como cediço, desde o seu nascedouro, o Direito do Trabalho é impregnado de caráter social, sendo certo que suas normas trazem intrínsecos valores hoje igualmente contemplados na Carta Política de 1988, tais como o da irredutibilidade salarial e o do valor social do trabalho. Assim, o contrato de trabalho há de passar pela leitura da nova ordem constitucional, que proclama, ao lado da função social dos contratos, o equilíbrio financeiro dos contratantes. Nesta ordem de ideias, fica claro que a atitude da reclamada encerra um retrocesso na marcha social da valoração do trabalho e da feição mais avançada dos contratos, à luz dos valores constitucionais proclamados pelo Constituinte de 1988, que imprimiu a feição do equilíbrio financeiro dos contratantes e da função social dos contratos em geral, e principalmente do contrato de emprego, diante de sua natureza tipicamente alimentar. E não só isso. A prática abusiva da Ré desrespeitou diversos preceitos de lei. Em primeiro lugar, como consignado no Acórdão Regional, a redução de salários na empresa não ocorreu de forma geral, mas para apenas alguns empregados do setor de ferramentaria. A regra insculpida no art. 503, da CLT, não comporta exceções, devendo a redução salarial ser aplicada a TODOS os empregados da empresa, indistintamente. Com efeito, a norma em comento é restritiva de direitos, o que impõe uma interpretação não extensiva ou não ampliativa. Em segundo lugar, há que ser salientado que a norma consolidada não autoriza a redução geral de salários com base em suposto prejuízo futuro, mas sim e tão somente em hipótese de situação econômica desfavorável real e atual, devidamente comprovada. Tal previsão é a mesma contida no art. 2º, da Lei 4.923/65. Assim, quando o Acórdão Regional consigna que a redução salarial estaria autorizada por supostos prejuízos financeiros futuros da empresa Ré, viola os preceitos legais acima indicados. Ademais, a jurisprudência pacífica desta Corte caminha no sentido de que a redução salarial prevista no art. 503, da CLT, e no art. 7º, VI, da Constituição Federal, só é lícita se corresponder a uma compensação em benefício do empregado, sob pena de caracterizar-se renúncia de direito indisponível, contrapartida esta que não ocorreu, in casu. Afronta direta e literal ao art. 7º, VI, da Constituição Federal, demonstrada. Precedentes desta Corte. Recurso de Revista conhecido e provido. (RR - 1001658-51.2013.5.02.0472, Relator Desembargador Convocado: Cláudio Armando Couce de Menezes, Data de Julgamento: 16/12/2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015 - grifei)

RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. (...) 2 - PLANO DE FUNÇÕES DE CONFIANÇA E FUNÇÕES GRATIFICADAS. REDUÇÃO SALARIAL. ADESÃO VOLUNTÁRIA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. O TRT consignou que o “Novo Plano estabeleceu que os empregados que permanecessem nas funções de confiança continuariam com o trabalho de 8h diárias, pois detentores da fidúcia do empregador. Todavia, os que desejassem optar pela função gratificada teriam a jornada reduzida para 6h diárias, com a consequente redução salarial de 16% da remuneração”. Constatado, portanto, que houve a opção voluntária do empregado ao novo plano de cargos, sendo assegurada, inclusive, a possibilidade de permanência no plano anterior. Desse modo, “havendo a coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro”, exegese da Súmula 51, II, do TST. Recurso de revista conhecido e provido. (RR - 10813-24.2014.5.03.0152, Relator Ministro: Emmanoel Pereira, Data de Julgamento: 28/09/2016, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/10/2016 - grifei) A ação supracitada foi proposta pelo Sindicato dos Empregados dos Empregados em Estabelecimento Bancários, que não concordava com o plano instituído pelo banco. Esse plano possibilitava que o trabalhador com jornada de 8 horas passasse a trabalhar 6 horas por dia, com consequente redução de 16% do seu salário. Eis que para a surpresa, o Digníssimo Ministro considera regular a conduta da instituição financeira, utilizando como argumento a súmula 51, II do TST, que “havendo a coexistência de dois regulamentos da empresa, a opção do empregado por um deles tem efeito jurídico de renúncia às regras do sistema do outro”. Com tal posicionamento, o Ministro rejeita o que está previsto no artigo 7º, VI da CF/88 que prevê que é direito do trabalhador a irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. Ressalta-se que para haver tanto o acordo quanto a convenção coletiva se faz necessário a presença do sindicato das categorias profissionais, a fim de garantir que sejam respeitados os direitos dos trabalhadores, hipossuficientes da relação trabalhista. No caso acima não aconteceu nenhuma discussão entre o banco e a entidade sindical. Assim sendo, a decisão do Ministro Emmanoel Pereira vai a favor da flexibilização das conquistas trabalhistas ao ferir não somente o Princípio da proteção, mas também; os princípios da imperatividade das normas trabalhistas, da indisponibilidade dos direitos trabalhista, da inalterabilidade contratual lesiva, da Irredutibilidade Salarial e, principalmente, a Constituição Federal.

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A ação foi proposta pelo autor que, após um acordo coletivo entre a empresa e o sindicato teve cerceado seu direito de irredutibilidade salarial, associado a um aumento da jornada de trabalho. Ressalta-se que a referida situação ocorreu apenas em alguns setores

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da empresa. O magistrado de origem julgou improcedente o pedido das diferenças salariais e utilizou como argumentos que essa redução ocorreu conforme previsto no texto constitucional e que visava à manutenção dos postos de trabalho. O douto Desembargador se posiciona contra ao que fora decidido inicialmente e considera ilícito o acordo coletivo. No sentido de que, essa redução salarial não ocorreu para todos os empregados da empresa, rejeitando assim que essa se encontrava em uma dificuldade financeira. Tal decisão num primeiro olhar parece contraditória, uma vez que o mesmo acata o Princípio da irredutibilidade salarial, mas rejeita o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas do trabalho. A respeito dessa situação, o referido desembargador argumenta: (...) A colisão entre princípios constitucionais resolve-se através de métodos de sopesamento, através dos postulados normativos da razoabilidade e da proporcionalidade e, neste caso, evidente que o princípio da irredutibilidade salarial, sem negar vigência ao princípio reconhecimento dos acordos e convenções coletiva de trabalho, merece prevalecer. Isto porque, desde o seu nascedouro, o Direito do Trabalho é impregnado de caráter social, sendo certo que suas normas trazem intrínsecos valores hoje igualmente contemplados na Carta Política de 1988, tal como, o da irredutibilidade salarial e o do valor social do trabalho. (RR - 100165851.2013.5.02.0472, Relator Desembargador Convocado: Cláudio Armando Couce de Menezes, Data de Julgamento: 16/12/2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015 - grifei). Dessa maneira, a decisão proferida pelo Desembargador Cláudio Armando Couce de Menezes estimula a valorização do trabalho ao garantir um equilíbrio financeiro do empregador e do contrato de emprego, ante a sua natureza alimentar. Por fim, ressalta-se a importância de avaliar minuciosamente cada caso concreto a fim de garantir ao trabalhador que seus direitos fundamentais e indisponíveis sejam respeitados. 5 CONCLUSÃO Com o desemprego chegando a 12 milhões de pessoas e o país vivenciando a pior crise econômica dos últimos tempos, a redução salarial tem sido uma das soluções encontradas pelos empresários para a manutenção dos empregos. É importante que esta redução esteja pautada no artigo 7º, VI, CF/88, sendo feita somente por acordo ou convenção coletiva. Dessa maneira, é de se esperar que os trabalhadores, hipossuficientes da relação trabalhista, tenham seus direitos assegurados e protegidos pelas entidades sindicais a qual os representa. A não observância de tal preceito deveria gerar por si só uma inconstitucionalidade e consequentemente a nulidade desse ato. Porém, percebe-se por esse artigo, que muitos empregadores aproveitando desse cenário de crise têm reduzido o salário do empregado, não obedecendo ao que fora estabelecido pela constituição ou utilizando-se de falsos argumentos. Atos reiterados como esses, têm merecido uma atenção devida por parte do jurídico, uma vez que passam a não ter mais como objetivo central a continuidade da relação trabalhista, mas sim a possibilidade da flexibilização dos direitos fundamentais do trabalhador. Assim sendo, um retrocesso na luta social da valorização do trabalho. A busca por uma “justiça real” e sem jogos de interesses deve passar pelo Ministério Público do Trabalho a fim de que este fiscalize e autorize somente os acordos e as convenções coletivas que visam à redução salarial, quando devidamente justificadas e comprovadas

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pelo empregador. Afinal, a crise econômica vivenciada pela empresa não é um fato público e nem de conhecimento geral. Mesmo não tendo um número amostral grande, era de se esperar que as decisões proferidas pelo TST possuíssem um mesmo entendimento a respeito da validade da redução salarial através da negociação coletiva. Mas o que se percebe através desse artigo é justamente o oposto, ou seja, a não uniformidade de posicionamentos. Em duas das decisões analisadas, os doutos Desembargadores abrem um preceito para a flexibilização dos direitos dos empregados, ora se atendo somente a determinação da constituição e desconsiderando por completo o princípio da primazia da realidade, ou ora não se atendo nem mesmo aos preceitos constitucionais, ao permitir que tal redução ocorra independentemente de acordo ou convenção coletiva. Já na última decisão, o r. Desembargador garante a valorização do trabalho ao acatar o Princípio da irredutibilidade salarial, mas desconsidera, por sua vez, o acordo coletivo realizado. Segundo o Digníssimo, esse acordo não possui validade, pois não fora pautado numa real dificuldade financeira da empresa, tendo como único objetivo lesar o direito do trabalhador. Assim sendo, é de suma importância que seja realizada uma análise mais rigorosa no que tange os acordos e convenções coletivas celebrados nesse momento de crise, a fim de assegurar ao elo mais fraco da relação, o empregado, a manutenção do seu salário, parcela de natureza alimentar tão fundamental para a garantia de sua subsistência, evitando assim, que seus direitos fundamentais sejam flexibilizados. REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 1368. BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.442, de 01.mai.1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Decreto-Lei/Del5452compilado.htm. Acesso em: 28 de setembro de 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 28 de setembro de 2016. BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Recurso de Revista - 157846.2012.5.15.0030, Relator Desembargador Convocado: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 21/10/2015, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/10/2015. Disponível em: http://aplicacao5.tst. jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20 1578-46.2012.5.15.0030&base=acordao&rowid=AAANGhAAFAAAOZ2AAH&dataPublicacao=23/10/2015&localPublicacao=DEJT&query=. Acesso em: 23 de outubro de 2016. BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Recurso de Revista - 100165851.2013.5.02.0472, Relator Desembargador Convocado: Cláudio Armando Couce de Menezes, Data de Julgamento: 16/12/2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 18/12/2015. Disponível em: http:// aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20 -%201001658-51.2013.5.02.0472&base=acordao&rowid=AAANGhAAFAAAM7lAAO&dataPublicacao=18/12/2015&localPublicacao=DEJT&query=. Acesso em: 23 de outubro de 2016.

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BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Recurso de Revista - 1081324.2014.5.03.0152, Relator Ministro: Emmanoel Pereira, Data de Julgamento: 28/09/2016, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/10/2016. Disponível em: http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/ inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%2010813-24.2014.5.03.0152&base=acordao&rowid=AAANGhAA+AAAPpDAAD&dataPublicacao=07/10/2016&localPublicacao=DEJT&query=. Acesso em: 23 de outubro de 2016.

Banca Examinadora: Tatiana Bhering Serradas Bom de Souza Roxo (Orientadora) Daniela Lage Meija Zapata (Examinadora 1) Cyntia Carneiro Lafetá (Examinadora 2)

BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Súmula nº 159, I. Substituição de caráter não eventual e vacância do cargo. I. Enquanto perdurar a substituição que não tenha caráter meramente eventual, inclusive nas férias, o empregado substituto fará jus ao salário contratual do substituído. Disponível em: http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_ com_indice/Sumulas_Ind_151_200.html#SUM-159. Acesso em 29 de setembro de 2016. BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Súmula nº 212. O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado. Disponível em: http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/ Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_201_250.html#SUM-212. Acesso em 01 de outubro de 2016. BRASIL. Superior Tribunal do Trabalho. Súmula nº 277. As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho. Disponível em: http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_251_300.html#SUM-277. Acesso em 15 de outubro de 2016. CASSAR, Vólia Bonfim. Direito do trabalho. 10. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2014. p.1349. CASTRO, Virginia Goulart. Possibilidade de prisão por dívida trabalhista. Revista eletrônica de direito, n. 19, mar. 2013. Disponível em: http://npa. newtonpaiva.br/direito/?p=841. Acesso em: 02 de outubro de 2016. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho.11. ed. São Paulo: LTr, 2012. p.1488. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2013. p.760. NETO, Francisco Ferreira Jorge. CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do Trabalho. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2013. p.1396. NÚCLEO de bibliotecas. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva. Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva. 2015. Disponível em http://www. newtonpaiva.br/NP_conteudo/file/Manual_aluno/Manual_Normalizacao_Newton_Paiva_2011.pdf. Acesso em: 22 de outubro de 2016. SILVA, Antônio Álvares da. Competência Penal Trabalhista. São Paulo: Ltr, 2006. VALLE, Alberto. Crise Econômica de 2016. Disponível em: http://www. empreendedoresweb.com.br/crise-economica-de-2016/. Acesso em: 22 de outubro de 2016.

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A EFICÁCIA DA CRIAÇÃO DOS JUIZADOS DE INSTRUÇÃO E GARANTIAS DIANTE DA DEMANDA DA SOCIEDADE E OS IMPACTOS NOS ORGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA THE EFFECTIVENESS OF CREATION OF INSTRUCTION WARRANTY COURT AND SOCIETY DEMAND BEFORE THE IMPACTS ON PUBLIC SECURITY ORGANS Tiago Salvador1

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é avaliar a eficácia da criação dos juizados de instrução e garantias, o qual almeja proporcionar uma maior interação e repartição de competências entre os órgãos de segurança pública com o objetivo de atender a demanda da sociedade em face do constante aumento da criminalidade e os eventuais impactos perante tais órgãos. A proposta de emenda constitucional almeja realizar profundas alterações no sistema de persecução criminal, desenvolvendo a instrução investigativa e ordenando as diligências necessárias à produção de provas, sem obviamente deixar de observar os direitos e garantias individuais, incluindo sempre, neste processo, a presença e do Ministério Público, pautados nos princípios da economia processual e eficiência na busca de uma solução para o anseio da sociedade ao passo que amplia a eficácia no combate à criminalidade. PALAVRAS-CHAVE: Garantias. Instrução. Juizados. Segurança pública. Sociedade.

ABSTRACT: The objective of this study is to evaluate the effectiveness of the establishment of courts of instruction and guarantees, which aims to provide greater interaction and division of responsibilities between the public security organs in order to meet the demands of society in the face of steadily increasing crime and the possible impacts before such bodies. The proposed constitutional amendment aims to achieve profound changes in the criminal prosecution system, developing investigative instruction and ordering the steps necessary for the production of evidence, without obviously fail to observe individual rights and guarantees, including always in the process, the presence and Public Ministry, guided by the principles of procedural economy and efficiency in the search for a solution to the desire of society while increases the effectiveness in combating crime. KEYWORDS: Guarantees. Instruction. Courts. Public security. Society.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Demanda da Sociedade sobre o Atual Sistema de Persecução Penal. 3 Princípios e Garantias Constitucionais. 3.1 Economia Processual e Eficiência. 3.2 Imparcialidade. 3.3 Contraditório e da Paridade de Armas. 3.4 Justo Processo. 3.5 Garantias Constitucionais. 4 Mudanças Propostas na Constituição Federal e seus Impactos nos Órgãos de Segurança Pública. 4.1 Alteração de Funções do Ministério Público. 4.2 Inclusão das Policias Militares na Apuração de Infrações Penais. 4.3 Acréscimo do Artigo 98-A 5 Modelos de Persecução Criminal. 5.1 Sistema Acusatório e Sistema Inquisitório. 5.2 Promotor Investigador. 5.3 Juiz de Instrução Puro. 5.4 Delegado De Polícia. 5.5 Juizado de Instrução e Garantia. 6 A Figura do Juiz de Instrução e Garantia. 7 O Novo Sistema de Persecução Criminal. 8 Melhorias Propostas. 8.1 Combate A Alta Criminalidade. 8.2 Maior Eficiência. 8.3 Afastamento Do Poder Judiciário. 9 Conclusão. Referências.

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Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO Atualmente, no Brasil existe um problema relativo ao aumento da criminalidade e a consequente sobrecarga nos órgãos que integram o sistema de persecução criminal, dentre os quais se encontram o Ministério Público e as policias, militar e civil. Tal aumento, que deriva do constante crescimento populacional, do baixo desenvolvimento social, dentre outros fatores, requer a realização de modificações estruturais e procedimentais, o Estado permanece obsoleto diante de uma perceptível evolução da criminalidade. Com o objetivo de tentar suportar essa nova demanda de maneira célere e eficiente, e ainda atender a finalidade do Direito Penal que nas palavras de Greco (2016, p. 2), “[...] é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade. ” Está em pauta a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 89/2015 de autoria do Deputado Federal Hugo Leal (PROS-RJ), na qual, dentre as demais modificações propostas destaca se a criação dos Juizados de Instrução e Garantias tema do presente trabalho, que almeja uma maior interação e repartição de competências entre os órgãos com o objetivo de atender a demanda da sociedade em relação ao aumento da criminalidade, pois ao combater este problema, busca-se uma sociedade cada vez mais segura. Assim, conforme o texto da referida proposta, a criação dos juizados teria o objetivo de, previamente, desenvolver a instrução investigativa, ordenar as diligências necessárias à produção de provas, que atualmente se perdem devido à demora e divisão dos órgãos, além de provocar todas medidas conservatórias necessárias à segurança dos fatos incriminadores e à ação da Justiça, sem obviamente esquecer de observar os direitos e garantias individuais, incluindo sempre, neste processo, a presença e do Ministério Público. Portanto, questiona-se a criação dos juizados de instrução e garantias, bem como as demais medidas propostas, serão aptas e capacitadas a solucionar as demandas da sociedade em relação a sobrecarga do sistema atual, devido ao aumento e evolução do comportamento criminoso, e concomitantemente, não causar ou minimizar os impactos, estruturais, hierárquicos e vaidosos nos órgãos que compõe o sistema de persecução criminal relativo a segurança pública. 2 DEMANDA DA SOCIEDADE SOBRE O ATUAL SISTEMA DE PERSECUÇÃO PENAL O atual sistema de persecução penal, não atende as atuais demandas da sociedade, por um motivo simples, ao passo que ocorre uma evolução e aumento da criminalidade o atual sistema permanece obsoleto e moroso o que o torna cada vez mais inapto a resolver os problemas de segurança pública, aumentando a sensação de impunidade e insegurança de acordo com de acordo com Naves (2003): É também inovação, há muito reclamada por nós, a criação do juizado de instrução criminal, que atuaria em delitos de maior potencial ofensivo. A instauração desse juizado, figura ainda inexistente no Direito brasileiro, a par de depender de alterações legislativas, depende de mudanças culturais. Tem ele o propósito de, previamente, desenvolver a instrução investigativa, elucidar todas as circunstâncias, colher todos os documentos e provocar todas as medidas conservatórias necessárias à segurança dos fatos incriminadores e à ação da Justiça. Afinal, não se pode esquecer uma preocupante verdade: enquanto avança e se moderniza o comportamento criminoso, o Estado continua respondendo com métodos e instrumentos obsoletos.

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Para exemplificação, conforme o Cerqueira et al. (2016), Atlas da Violência “[...] apenas em 2014, segundo os registros do Ministério da Saúde, 59.627 pessoas sofreram homicídio no Brasil. A violência letal no país é um tema que deveria ser prioritário para as políticas públicas. ” Dados preocupantes que carecem de uma medida capaz de contê-los ou pelo menos minimizar seu constante crescimento. O problema atual não é apenas de justiça criminal, mas de legitimidade das instituições, hoje temos duas policias de meio ciclo como são chamadas, ou seja, em linhas simples temos a polícia militar, policia ostensiva, responsável pela prevenção e repressão e a Policia Civil responsável pela investigação e elaboração do inquérito, modelo que o diferencia da maioria dos outros países conforme Matoso (2013): Essas atribuições constitucionais, delineadas a Polícia Civil e a Polícia Militar, respectivamente, investigação e prevenção, tem uma divisão tênue e de difícil identificação como demonstrado e conforme já dito, o ponto de interseção é a grande causa dos atritos institucionais entre as referidas polícias, onde a discussão central é a prevenção e a apuração do crime e os limites de atribuição de cada instituição. Aliado a isso temos um constante crescimento populacional e em contrapartida um desenvolvimento social que não acompanha tal crescimento, bem como uma imensa extensão territorial de um país com realidades regionais diferentes, causa imensa dificuldade técnicas e logísticas para combate à criminalidade. A rigidez ou inflexibilidade das atribuições dos órgãos policiais de meio ciclo dificulta ou até mesmo impede integração entre as instituições, uma das consequências disto é a morosidade na investigação criminal e no julgamento das ações penais, o que vem proporcionando situações que não atendem a sociedade, além de não ter efetividade perante a alta criminalidade, conforme Nassaro (2007). Outro ponto a ser analisado no atual modelo, ocorre quando diante de uma demanda ou por ofício, de acordo com o artigo 156 do Código de Processo Penal, o juiz de direito responsável pelo julgamento, acaba intervindo, normalmente na autorização para produção de provas, nas investigações o que independente da forma, resulta em uma certa contaminação pelos elementos indiciários, ou até mesmo por uma prova ilícita, em que pese o artigo 157 também do Código de Processo Penal determine que ela seja desentranhada dos autos, o contato com juiz já ocorrera, situação que poderia influenciar na sua isenção e até mesmo imparcialidade que deveria ter ao julgar o caso.

3 PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS 3.1 Economia processual e eficiência O princípio da economia processual e da eficiência serão tratados em conjunto pois, ambos estão interligados e dependentes entre si, conforme pode ser observado a seguir. O princípio da economia processual, segundo preconiza Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p.79), “[...] é o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais. ” Este princípio é importante pois permite que o juiz instrutor atue de forma imediata, com poderes suficientes para ordenar as diligências necessárias ou solicitadas, superando então, questões burocráticas e processuais, reduzindo o tempo gasto, alcançando melhores resultados e sem ignorar, obviamente, outras garantias e direitos fundamentais. O princípio da eficiência, pode ser extraído do art. 74, inciso II, da Constituição Federal de 1988 que afirma o seguinte:

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Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de: […] II – Comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado. (BRASIL, 1988). A eficiência, outro princípio que é tido como necessário diante da atual inflexibilidade dos órgãos policiais, principalmente no que diz respeito as atribuições, situação que impede a articulação e integração entre as instituições, ocasionando conflitos que não atendem à demanda da sociedade e falham no cumprimento das necessidades relativas ao combate à criminalidade, este atual cenário vai de encontro ao entendimento do dever de eficiência, resultado satisfatório para a comunidade e seus membros, conforme pode ser observado a seguir: Dever de eficiência é o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros corresponde ao dever de boa administração. (MEIRELLES, 1997, p.90). Ambos princípios se ligam proposta de criação dos juizados, servindo de referência, estes devem ser empregados concomitantemente, em conformidade com a lei e demais direitos e garantias. A possível criação do Juizado de instrução e garantia, almeja realizar a harmonização destes princípios, pois reduzindo e economizando os processos e procedimentos, aliados a uma melhor efetividade, integração e interação entre os órgãos, é possível alcançar os resultados pretendidos, visto que, desta forma as respostas no combate à criminalidade serão dadas de modo mais organizado, estruturado e ágil e eficaz. 3.2 Imparcialidade Uma das bases do sistema acusatório, a imparcialidade implica em uma não contaminação do juiz, de modo que o juiz deve se manter distante da persecução penal, este afastamento, seja das partes ou das funções inquisitórias o mantêm imparcial aos fatos da causa, como preconiza, Aury Lopes Júnior (2016, p. 136): Quando se supera a visão de jurisdição corno mero poder dever, para encara-la como garantia do indivíduo submetido ao processo, a imparcialidade adquire novos contornos e maior relevância. Devese maximizar a preocupação em evitar os préjuízos, que geram um imenso prejuízo. Somente a adoção de um sistema efetivamente acusatório, que não apenas respeite o ne procedat iudex ex officio (durante todo o procedimento, não apenas no início), mas, principalmente, que mantenha o juiz afastado da iniciativa/gestão da prova, e capaz de criar as condições de possibilidade para a imparcialidade.

A exigência da imparcialidade deve ser pensada para além da questão subjetiva (dos pré-julgamentos) mas também objetiva e estética. Objetivamente se deve mirar para a estrutura processual, não permitindo que o juiz “desça” para a arena das partes, praticando atos que não lhe competem. Na dimensão da “estética” de imparcialidade, como 3a denominou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), e importante que o jurisdicionado tenha essa percepção da separação de funções e papeis, com um acusador e um julgador com lugares e falas bem demarcadas. E essa estética que dá a necessária confiança ao jurisdicionado de que haver um julgamento justo. O modelo proposto com a criação do juizado de instrução e garantia é de um juiz independente, livre de contágio precoce, de modo a julgar de acordo com o seu livre consentimento. 3.3 Contraditório e da paridade de armas Estes dois princípios também serão tratados em conjunto, pois a paridade de armas está interligada ao contraditório, para o exercício de uma defesa plena, não basta apenas a acesso a informação e possibilidade de defesa, mas sim também de um equilíbrio conforme preconiza Oliveira (2014, p. 43): Da elaboração tradicional que colocava o princípio do contraditório como a garantia de participação no processo como meio de permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e, assim, para o provimento final almejado, a doutrina moderna, sobretudo a partir do italiano Elio Fazzalari, caminha a passos largos no sentido de uma nova formulação do instituto, para nele incluir, também, o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma efetiva igualdade processual. De modo que o Juiz de Direito ao manter equidistante das partes, com a observância das regras legais estará proporcionando a “paridade de armas” entre os envolvidos, tal qual o Juiz de instrução durante o processo deve conduzir a instrução processual de modo a chegar o mais próximo possível da verdade real dos fatos, exposto por Neto (2014), sem deixar de observar neste processo o princípio do contraditório na busca de produção de provas, elementos e informações que esclareçam os fatos e promovam a justiça, sem que ocorra uma preocupação acerca dos elementos encontrados irão de certa forma prejudicar o investigado ou beneficiá-lo pois esta situação só seria julgada pelo Juiz de direito. 3.4 Justo processo O princípio do justo processo ou devido processo legal aborda garantias e procedimentos que devem ser observados na obtenção da justiça, como exemplo: o direito ao silêncio e não autoincriminação, contraditório, ampla defesa, estado ou situação jurídica de inocência, inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente dentre outros, nas palavras de Oliveira (2014, p. 98):

Um dos objetivos desta proposta é justamente esse, a o afastamento do Juiz de direito responsável pelo julgamento de qualquer possibilidade de contágio que de alguma forma interferisse no seu julgamento, deixando tais funções para o juiz de instrução e garantia, de modo que, nesse caso o Estado, representado pelo juiz de direito, mantendo se afastado da fase inicial seria melhor capacitado para alcançar uma decisão justa e desprovida de vícios de interesse, em outro trecho Aury Lopes Júnior (2016, p. 136 e 137), também leciona que: LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

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Assim, o processo assume os contornos de um verdadeiro lócus (lugar) argumentativo, no sentido de tomar possível o sonho pós-positivista de que a decisão judicial não seja obra única daquele que detém a autoridade para fazê-lo. É dizer: o juiz não pode e não deve decidir segundo suas preferências e convicções pessoais, mas, sim, a partir do diálogo e da interlocução mantida no processo com as partes. Com isso, obtém-se algo mais próximo do que, em doutrina, se afirmar tratar-se do justo processo, encerrado por uma decisão democraticamente construída.

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Com a criação do Juizado de Instrução e Garantias ocorreria também na fase de investigação, uma espécie de materialização do justo processo, pois já nesta fase seriam observadas tais garantias, restando para a segunda fase o julgamento. 3.5 Garantias constitucionais O Juizado de Instrução Criminal em que pese não está positivado tem seu ideal presente nos capítulos dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos da Constituição de 1988, como pode ser observado em alguns dos incisos do art. 5º: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; [...] (BRASIL, 1988). É importante observar que alguns destes incisos aborda funções que hoje são exercidas por delegados de polícia seja de maneira direta ou indireta, com destaque para os incisos XI e LXI, que abordam a inviolabilidade de domicílio e nos casos de flagrante delito acabam relativizando o direito, o que torna a única modalidade de prisão que não sujeita à reserva de jurisdição, a análise de legalidade ocorre aqui pelo delegado, que nesse caso acaba exercendo uma função considerada tipicamente judicial, Balestreri (2013), aborda o deslocamento dos delegados da seguinte forma:

4.1 Alteração de funções do Ministério Público O Ministério Público teria uma de suas funções alterada com a modificação do inciso VIII do art. 129 da Constituição Federal de modo que passaria a vigora com a seguinte redação: “requisitar diligências de natureza criminal aos órgãos policiais competentes e realizá-las diretamente, nas hipóteses previstas em lei complementar, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações, sob controle do Poder Judiciário” de acordo com PEC 89, Brasil (2015), e não mais com “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;” como ocorre atualmente na Constituição Federal, Brasil (1988). 4.2 Inclusão das Policias Militares na apuração de infrações penais Provavelmente um ponto que será muito discutido pois ao analisar seguinte alteração proposta pela PEC 89, Brasil (2015): “Art.144 [...] § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União, e estruturado em carreira única, destina-se a: (NR) [...] § 4º - Às polícias civis e às polícias militares dos Estados e do Distrito Federal incumbem a apuração de infrações penais, a preservação da ordem pública e o policiamento ostensivo, na forma que dispuser a Constituição do Estado e a Lei Orgânica do Distrito Federal. [...]. É possível observar que ocorre uma alteração na estrutura da carreira da polícia federal que passa a ser única. O ponto que sofrerá uma certa resistência por partes dos órgãos é o §4º o qual pela leitura, estabelece o ciclo completo de polícia para ambas instituições, seja a polícia civil ou militar, o que caso seja aceito dessa forma se tornara o primeiro passo para a unificação até porque não teria sentido duas policias de distintas exercendo a mesma função. 4.3 Acréscimo do artigo 98-A O acréscimo do artigo 98-A merece uma atenção especial pois acaba por explicar o funcionamento, atribuições e o ingresso do novo sistema de persecução penal a partir da criação do juizado de instrução e garantias, vejamos:

Deslocamento dos Delegados para o Poder Judiciário, como Juízes de Instrução (trabalho que já fazem, de fato, mas sem empoderamento e consequência). Isso renovaria as possibilidades de melhoria de um Judiciário hoje inapetente para as demandas sociais, despreparado, inadequado e desconstituído para a coleta direta de informações e provas e daria um sentido ao, também, hoje deslocado trabalho (na polícia) do segmento dos delegados (inclusive dos bons delegados, que se esforçam por melhores índices, em um sistema desprovido de adequação para isso).

4 MUDANÇAS PROPOSTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E SEUS IMPACTOS NOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA A PEC 89, propõe algumas alterações na Constituição Federal, de modo que abordaremos algumas destas que caso seja aprovada causaria um maior impacto aos órgãos de segurança pública que compõe o sistema de persecução penal.

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Art. 2º A Constituição Federal é acrescida do art. 98-A, com a seguinte redação: “Art. 98-A. Os juizados de instrução e garantias são órgãos do Poder Judiciário, providos por juízes de instrução e garantias, incumbidos da instrução probatória e do controle judicial dos procedimentos investigatórios criminais. § 1º A persecução penal observará o sistema acusatório, competindo aos juízes de direito e aos tribunais, segundo as regras de competência, o julgamento das ações penais, atividade vedada aos juízes de instrução e garantias. § 2º Os juízes de instrução e garantias assegurarão a participação da defesa técnica na fase investigatória de forma a não prejudicar a eficiência da apuração dos fatos, na forma da lei. § 3º Toda pessoa presa em flagrante deverá ser apresentada sem demora ao juiz de instrução e garantias para realização de audiência de custódia, com a participação da defesa e do Ministério Público, em que se decidirá sobre a prisão e as medidas cautelares cabíveis. § 4º Caberá aos juízes de instrução e garantias determinar a instauração de procedimentos investigatórios e deferir, de ofício ou a requerimento das partes, as diligências e medidas cautelares que impliquem em restrição a direito ou a liberdade.

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§ 5º As provas cautelares, não-repetíveis e subjetivas produzidas mediante contraditório pelo juiz de instrução e garantias serão livremente valoradas pelos juízes de direito e tribunais, que poderão utilizá-las diretamente como motivação para decidir, respeitada a ampla defesa. § 6º Os juízes de instrução e garantias promoverão a resolução pacífica dos conflitos. § 7º Turma recursal, integrada por juízes de direito, funcionará como instância recursal dos juizados de instrução e garantias. § 8º Os juizados de instrução e garantias se submetem ao controle do Tribunal a que estiverem subordinados e do Conselho Nacional de Justiça. § 9º O ingresso na carreira de juiz de instrução e garantias dar-se-á na forma do inciso I do art. 93, sendo-lhe asseguradas as mesmas garantias e prerrogativas aplicáveis aos juízes de direito. ” (BRASIL, 2015).

Pode se observar por este artigo, que há uma clara separação de competência, ao analisar o caput e o § 1º o juiz de instrução e garantia ficaria incumbidos da instrução probatória e do controle judicial dos procedimentos investigatórios criminais ao passo que os juízes de direito e aos tribunais, segundo as regras de competência, ficaria responsável pelo julgamento das ações penais o que é vedado a aqueles, formando então um sistema acusatório e não contaminado. A defesa técnica componente obrigatório do princípio da ampla defesa, não será afastado da fase investigatória conforme o § 2º. O mesmo ocorre no que tange a garantia da audiência de custódia, que contará com a presença da defesa e do Ministério Público conforme o § 3º. Conforme o § 5º As provas cautelares, não-repetíveis e subjetivas colhidas na fase investigatória, observado o contraditório poderão servir unicamente para motivar as decisões dos juízes de direito e tribunais, respeitada a ampla defesa. Existe também a previsão de criação de uma turma recursal formada por juízes de direito, para solucionar questões relativas aos juizados de instrução e garantia conforme o § 7º. Por fim ao analisar o referido artigo têm se um outro ponto importante, pois aborda o ingresso carreira para o cargo de juiz de instrução e garantias, que sofreu algumas críticas ao ser interpretado que o delegado teria a faculdade de escolher entre continuar exercendo a função estritamente policial ou a nova função jurisdicional, contudo o § 9º deixa claro que o ingresso ocorrerá da mesma forma que para um juiz de direito, ou seja, em respeito ao princípio do concurso público. Destaca se ainda que a proximidade do delegado com a função jurídica que será exercida quando Juiz de instrução, como no diz Lima (2016, p. 181): Ora, se levarmos em consideração que o cargo de Delegado de Polícia é privativo de bacharel em Direito (Lei n° 12.830/13, art. 3°) e que o exercício de suas funções guarda relação direta com a aplicação concreta de normas jurídicas aos fatos que lhe são apresentados, como ocorre, por exemplo, com a lavratura de auto de prisão em flagrante, indiciamento, representação por decretação de medidas cautelares, é no mínimo estranho admitir que o exercício de tais funções não tenha natureza jurídica. Daí a importância do art. 2°, caput, da Lei !1° 12.830/13, que deixa evidente que as funções de polícia judiciária e a apuração;) das infrações penais exercidas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica. 5 MODELOS DE PERSECUÇÃO CRIMINAL O atual sistema de persecução criminal que no Brasil comporta duas fases, sendo a primeira relativa a investigação criminal – na qual

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conforme o Art. 4º do Código de Processo Penal, compete “à polícia judiciária, exercida pelas autoridades policiais, a atividade destinada à apuração das infrações penais e da autoria” obtido através do inquérito policial, que de acordo com Lima (2016, p. 183) é um: Procedimento administrativo inquisitório e preparatório, presidido pelo Delegado de Polícia, na qualidade de autoridade policial, o inquérito policial consiste em um conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa objetivando a identificação das fontes de prova e a colheita de elementos de informação quanto à autoria e materialidade da infração penal, a fim de possibilitar que o titular da ação penal possa ingressar em juízo. De modo que tal processo será usado de modo preliminar ou preparatório da posterior ação penal, segunda parte, na qual comporta os procedimentos, diligências e garantias do processo penal, ação penal nas palavras de Grego (2016, p. 816): A ação penal condenatória tem por finalidade apontar o autor da prática de infração penal, fazendo com que o Poder Judiciário analise os fatos por ele cometidos, que deverão ser claramente narrados na peça inicial de acusação, para que, ao final, se for condenado, seja aplicada uma pena justa, isto é, proporcional ao mal por ele produzido Assim a união destas duas etapas dá se o nome de persecução penal conforme Neto (2014). 5.1 Sistema acusatório e sistema inquisitório Estes dos sistemas se diferenciam pela titularidade, procedimentos e garantias conforme muito bem esclarecido por Oliveira (2014, p. 10): De modo geral, a doutrina costuma separar o sistema processual inquisitório do modelo acusatório pela titularidade atribuída ao órgão da acusação: inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos. A par disso, outras características do modelo inquisitório, diante de sua inteira superação no tempo, ao menos em nosso ordenamento, não oferecem maior interesse, caso do processo verbal e em segredo, sem contraditório e sem direito de defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo. As principais características dos aludidos modelos processuais penais seriam as seguintes: a) no sistema acusatório, além de se atribuírem a órgãos diferentes as funções de acusação (e investigação) e de julgamento, o processo, rigorosamente falando, somente teria início com o oferecimento da acusação; b) já no sistema inquisitório, como o juiz atua também na fase de investigação, o processo se iniciaria com a notitia criminis, seguindo-se a investigação, acusação e julgamento. Percebe se que há uma certa confusão em relação a proposta de emenda no § 1º do artigo 98-A proposto, estabelece que a persecução penal observará o sistema acusatório e já no § 4º do mesmo artigo, concede ao juiz de instrução e garantia, a possibilidade de instauração de procedimentos investigatórios e deferir, de o ofício ou a requerimento das partes, as diligências e medidas cautelares que impliquem em restrição a direito ou a liberdade, o que é característica do sistema inquisitório misturando os dois conceito, de acordo com as críticas de Cani (2015) Entretanto neste ponto é interessante ter

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produzido pela polícia, não servindo como elemento de prova na fase processual. Os promotores reclamam da falta de coordenação entre a investigação e as necessidades de quem, em juízo, vai acusar. O inquérito demora excessivamente e nos casos mais complexos, é incompleto, necessitando novas diligências, com evidente prejuízo à celeridade e à eficácia da persecução. Por outro lado, os advogados insurgem-se, com muita propriedade, da forma inquisitiva como a polícia comanda as investigações, negando um mínimo de contraditório e direito de defesa, ainda que assegurados no art.5º, LV da Constituição, mas desconhecidos em muitas delegacias brasileiras.

uma visão do contexto geral, pois ainda que os funções do juiz de instrução e garantia tenha funções, com características do sistema inquisitório, ele não será o juiz competente a julgar a ação, logo, de modo geral ocorrerá uma separação de órgãos e competências, característica predominando do sistema acusatório. 5.2 Promotor investigador Este modelo é bem aceito na atualidade sendo adotado com êxito por países europeus, foi adotado na Alemanha, seguido pela Itália, Portugal, Espanha e França quem vem realizando mudanças significativas no mesmo sentido, no qual destaca se a subordinação funcional da polícia em relação ao Ministério Púbico, conforme Lopes Jr. (1999): Neste sistema, o promotor é o diretor da investigação, podendo praticar por si mesmo as diligências, bem como determinar que as realize a polícia, segundo os critérios que ele estabeleça. Assim, formará sua convicção e decidirá entre formular a acusação ou solicitar ao arquivamento. Continua dependendo (em maior ou menor grau, conforme o país) de autorização judicial (juiz de garantias) para realizar determinadas medidas limitativas de direitos fundamentais, como as cautelares, intervenção telefônica, etc.

Diante do exposto, na qual acusação e defesa não estão satisfeitas, e como consequência ocorre o evidente prejuízo à sociedade, diante da demora e sensação de impunidade, surge a demanda de mudança desde atual modelo, nas palavras de Neto (2014): Em conclusão, destacamos que desde a Constituição da República de 1988 o legislador se preocupou em fortalecer o Poder Judiciário e o Ministério Público, mas se esqueceu da porta de entrada da persecução penal, negligenciando a instituição responsável pela apuração do crime, reunindo provas e elementos de informação que irão subsidiar as pretensões acusatórias e punitivas do Estado: as Polícias Judiciárias. Em razão da desídia estatal, da falta de investimento em estrutura e nos profissionais do ramo e, sobretudo, na ausência de prerrogativas funcionais que deveriam ser conferidas aos Delegados de Polícia, as Polícias Civil e Federal não conseguem investigar da maneira adequada, o que, naturalmente, aumenta a impunidade, fomenta o crime e diminui a sensação de segurança na sociedade. Parece-nos que a solução para esse problema não esteja no recrudescimento das leis penais, mas na valorização das instituições ligadas à persecução penal.

Em pese a atuação do Ministério Público ser vantajosa pois de acordo com, Lopes Jr. (1999) “A própria natureza da instrução preliminar, como atividade preparatória ao exercício da ação penal deve estar, necessariamente, a cargo do titular da ação penal. ” De modo que seria ilógico que o Juiz ou a polícia atuasse em descompasso com o Ministério público. Este modelo sofre críticas por quebrar o princípio da paridade de armas pois aquele (promotor) que conduz o processo de investigação poderá ser o mesmo a conduzir a persecução penal causando um evidente prejuízo da defesa. 5.3 Juiz de instrução puro O modelo do juiz instrutor ou juiz de instrução puro utilizado em alguns países europeus, ao contrário do modelo do promotor investigador vem sendo gradativamente abandonado, pois aquele se relaciona com a figura do juiz inquisidor. Conforme leciona Lopes Jr. (1999)

5.5 Juizado de instrução e garantia A criação do juizado de instrução e garantia almeja então ser a solução, ou melhor, o modelo capaz de utilizar as vantagens e solucionar ou minimizar as desvantagens dos modelos anteriores. Conforme os motivos que justificam sua criação no próprio texto da PEC 89, Brasil (2015, p. 12):

Concluiu-se, ao longo dos anos, que é um grave inconveniente que uma mesma pessoa decida sobre a necessidade de um ato de investigação e ainda valore a sua legalidade. Como diz a “Exposição de Motivos” do Código-Modelo de Processo Penal para Ibero américa, o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor.

Assim, no modelo do juiz de instrução e garantias o juiz de direito que julgará o processo não terá contato com a fase preliminar de investigação, ficando concentrado na função primordial de julgar as ações penais, conferindo celeridade e eficiência às ações penais, enquanto a fase investigativa será controlada pelo Juiz de Instrução e Garantias, havendo, portanto, uma clara separação de competências, afastando as críticas dirigidas ao modelo puro de juiz de instrução e ao do delegado de polícia.

Ocorre então neste modelo, uma grave afronta ao princípio da imparcialidade, conforme dito anteriormente, o juiz acaba se contaminando ou formando seu juízo antes mesmo do momento específico para tal ato. 5.4 Delegado de polícia Atualmente vigente no país, este modelo enfrenta críticas tais quais baseiam a propositura da PEC para a criação do Juizados de instrução e garantias. Existe um desprestígio das provas produzidas no inquérito policial, o que gera uma necessidade de repetição na fase processual, prejudicando a persecução penal e afronta a princípios do direito. Lopes Jr. (1999), claramente esclarece o problema: O Brasil é um dos poucos países que ainda mantém o sistema de investigação preliminar policial, sem o controle pelo MP. Este modelo está completamente falido. É unânime o rechaço. Os juízes apontam para a demora e a pouca confiabilidade do material

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Observa-se então uma preocupação com a eficácia na solução do problema da persecução penal no Brasil, com respaldo e observação aos princípios e garantias constitucionais. 6 A FIGURA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO E GARANTIA Os juízes de instrução e garantias serão incumbidos da instrução probatória e do controle judicial dos procedimentos investigatórios criminais de acordo com o Art. 98-A §4º PEC 89, Brasil (2015), “Caberá aos juízes de instrução e garantias determinar a instauração de procedimentos investigatórios e deferir, de ofício ou a requerimento das partes, as diligências e medidas cautelares que impliquem em

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restrição a direito ou a liberdade” de modo que o ingresso será regido pelo Art. 98-A §9º PEC, Brasil (2015), “O ingresso na carreira de juiz de instrução e garantias dar-se-á na forma do inciso I do art. 93, sendolhe asseguradas as mesmas garantias e prerrogativas aplicáveis aos juízes de direito.” O Juiz de instrução e garantia se diferencia dos delegados de polícia no que tange as suas atribuições, de modo que o Juiz de instrução e garantia terá a natureza jurídica ao passo que o delegado de polícia terá a de natureza estritamente policial conforme Art. 3º PEC 89, Brasil (2015): Art. 3º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido dos arts. 101 e 102, com a seguinte redação: “Art. 101 Os juizados de instrução e garantias são exercidos pelos membros da carreira específica de juiz de instrução e garantias, criada por esta Emenda a partir da transformação do cargo de delegado de polícia. § 1º Ficam desmembradas as funções de natureza jurídica e de natureza policial do cargo de delegado de polícia, cujos integrantes deverão optar, no prazo legal, entre o novo cargo criado por esta Emenda, de juiz de instrução e garantias, e a permanência no órgão policial de origem, em carreira estritamente policial, na classe ou categoria mais elevada, destituída de funções de natureza jurídica ou judicial. § 2º Os cargos das carreiras policiais são de natureza estritamente técnica ou técnico-científica, destituídos de capacidade postulatória ou judicial. [...] (BRASIL, 2015). Ocorrerá também uma diferenciação clara no que diz respeito a sua comparação com o juiz de direito sendo impossibilitada a transferência de profissionais entre os dois cargos devido a necessidade de prestação do concurso público, bem como suas atribuições conforme o Artigo 98-A § Brasil (2015), “A persecução penal observará o sistema acusatório, competindo aos juízes de direito e aos tribunais, segundo as regras de competência, o julgamento das ações penais, atividade vedada aos juízes de instrução e garantias.”

sobre a prisão e as medidas cautelares cabíveis. ” Outro ponto de extrema importância diz respeito as provas cautelares, não-repetíveis e subjetivas produzidas mediante o contraditório de acordo com o parágrafo 5º Artigo. 98-A PEC 89, Brasil (2015), “As provas cautelares, não-repetíveis e subjetivas produzidas mediante contraditório pelo juiz de instrução e garantias” e ainda prevendo a possibilidade de serem utilizadas como fundamento para motivação de decisão conforme a continuação do parágrafo “ Serão livremente valoradas pelos juízes de direito e tribunais, que poderão utilizá-las diretamente como motivação para decidir, respeitada a ampla defesa. ” 8 MELHORIAS PROPOSTAS A criação do Juizado de Instrução e Garantia (JIG), propõe diversas melhorias, deve se então tomar cuidado para que não se torne um processo ainda mais burocrático, de acordo com Silva (2009), “o que se pretende com a nova figura é uma combinação entre o sistema atual e o juizado de instrução criminal da França, com ramificações em toda a Europa”. Defende ainda que deve ser feito de forma correta, que não seja mais burocrático que o modelo atual, pois, dessa forma não traria vantagens para o processo penal e a punição de criminosos. 8.1 Combate a alta criminalidade Os crimes de menor potencial ofensivo conforme o artigo 61, Brasil (1995), “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. ” Permaneceriam sob a competência do juizado especial criminal. Vale ressaltar que o Brasil adota o sistema bipartidário dos crimes: Isso ,quer dizer que, ao contrário de outras legislações que adotaram o chamado critério tripartido, a exemplo da França e da Espanha, no qual existe diferença entre crime, delito e contravenção, diferença está que varia de acordo com a gravidade do fato e a pena cominada à infração penal, nosso sistema jurídico-penal, da mesma forma que o alemão e o italiano, v.g., fez a opção pelo critério bipartido, ou seja, entende, de um lado, os crimes e os delitos como expressões sinônimas, e, do outro, as contravenções penais. (GREGO, 2016. p.192).

7 O NOVO SISTEMA DE PERSECUÇÃO CRIMINAL É inegável que o Estado deve buscar soluções para a demanda da sociedade, principalmente no que tange a segurança pública e respeito as garantias fundamentais, ao propor a criação destes juizados busca justamente alcançar aqueles objetivos, mudanças procedimentais que visam a agilidade e eficiência de todo o sistema serão sempre bem-vindas, contudo, é necessário saber sobre a legalidade da criação destes juizados, bem como a manutenção das garantias fundamentais. Portanto além da permanência da competência para os juízes de direito e aos tribunais, conforme o Artigo. 98-A PEC 89, Brasil (2015), há uma preocupação com outros procedimentos que visam assegurar a obediência aos princípios e garantias individuais dos quais podemos destacar a garantia da defesa técnica na fase investigatória, conforme parágrafo 2º “ Os juízes de instrução e garantias assegurarão a participação da defesa técnica na fase investigatória de forma a não prejudicar a eficiência da apuração dos fatos, na forma da lei. ” A permanência da audiência de custódia: procedimento importante, conforme parágrafo 3º do mesmo artigo “ Toda pessoa presa em flagrante deverá ser apresentada sem demora ao juiz de instrução e garantias para realização de audiência de custódia, com a participação da defesa e do Ministério Público, em que se decidirá

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Assim este novo sistema, composto pelos órgãos interligados, apuraria os demais crimes de maior gravidade, importância e significativo para a sociedade, com exemplos: homicídios qualificados e culposos, furtos e roubos empreendidos por quadrilhas, crime organizado, assalto a bancos, dentre outros, justificando a importância da união do inquérito policial e a instrução criminal. 8.2 Maior eficiência As mudanças almejam uma maior eficiência em relação aos procedimentos de investigação criminal e julgamento das ações penais, um ponto importante a ser observado para atingir esse objetivo, diz respeito a aceitação por partes dos órgãos envolvidos, tal aceitação é imprescindível para o funcionamento do novo sistema, para tanto, o Juiz será visto como referência e orientação, assim, espera que se supere a divisão entre as tarefas da Polícia, do Ministério Público e do Juiz. Todos atuariam em conjunto para o bem-comum, superando as falhas, procedimentos e questões estruturais, conforme Lima (2016): Infelizmente, o Brasil tem se tornado, nos últimos anos, refém de disputas institucionais e corporativas entre a Polícia e o Ministério Público. Por conta disso, duas instituições que, em tese,

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deveriam trabalhar em conjunto com o objetivo de buscar uma persecução penal mais eficiente são colocadas em lados opostos, o que, de certa forma, acaba contribuindo para o aumento da criminalidade no país (LIMA, 2016. p.179). Portanto, é necessário abrir mão de certas vaidades, digo, poderes e deveres exclusivos, neste modelo interativo, pois o objetivo não é interferir nas funções destes órgãos ou influir em suas competências, mas sim evitar a ocorrências de prejuízos a sociedade como o todo, de modo que, ao tratar o aumento da criminalidade de maneira célere, interativa e eficiente, proporcionaria um melhoramento do sistema, o que aumentaria a segurança objetiva e subjetiva, resultando em diversos benefícios para a sociedade. Notadamente, a conclusão de que o juizado de instrução Criminal permitiria adequada resposta ao anseio da população leva em consideração o fato de que a Justiça Criminal integra o Sistema de Segurança Pública, não obstante a verificação do distanciamento existente entre o Poder Judiciário e o início do trabalho policial a partir do atendimento da ocorrência, cujo resultado, por fim, dará origem à ação penal. (NASSARO 2007). 8.3 Afastamento do poder judiciário Este afastamento diz respeito ao início da instrução criminal, segundo Silva (2009), “uma vez promovida a denúncia, entra em cena o juiz instrutor, que pode tomar todas as providências necessárias à apuração do fato delituoso: requerer medidas policiais, quebrar sigilos, deter pessoas, etc.” Além disso, depois de instruído o processo, ele é redistribuído para outro juiz, o juiz “afastado” que decidirá o caso. Esse afastamento resultaria também em um processo penal garantidor, permeabilizando o cumprimento do princípio da paridade de armas, e imparcialidade. 9 CONCLUSÃO As mudanças pretendidas serão de suma importância para o sistema criminal, ainda que sofra uma certa resistência pelos órgãos de segurança pública, pode se observar que de modo geral, tem a finalidade de agilizar os processos levados a juízo, bem como propor uma maior efetividade, que deve ser alcançada pela integração entre esses órgãos e ao realizar uma economia processual, irá reduzir a carga jurisdicional, acaba, portanto, por beneficiar o sistema de persecução penal como um todo. A criação do juizado de instrução e garantia almeja então ser a solução, ou melhor, o modelo capaz de utilizar as vantagens e solucionar ou minimizar as desvantagens dos diversos modelos de persecução penal inclusive o atual. Assim, dentre as mudanças propostas permite observar uma preocupação da proposta com a eficácia na solução do problema da persecução penal no Brasil, com respaldo e observação aos princípios e garantias constitucionais, fato que resultaria em um avanço face ao atual modelo, capacitando e evoluindo o sistema, de modo a combater o avanço da criminalidade com mais propriedade, uma vez que os processos seriam solucionados com uma maior celeridade e eficiência, consequentemente seria reduzida drasticamente a sensação de impunidade e promovendo um aumento na sensação de segurança, proporcionaria então diversos benefícios para a sociedade

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ção do mandado de busca e apreensão elaborado pela Polícia Militar para infrações penais previstas na Lei 10826/03 e Lei 11343/06. Revista eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva/ Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva- nº 19, 2013. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direito/?p=1504>. Acesso em: 04 nov. 2016. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 90. NASSARO, Adilson Luís Franco. Considerações sobre juizado de instrução criminal. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/9523/ consideracoes-sobre-juizado-de-instrucao-criminal>. Acesso em: 04 nov. 2016. NAVES, Nilson Vital. Naves defende criação de juizado de instrução criminal para crimes de maior potencial ofensivo. Disponível em: <http://www.trt.gov.br/ej/documentos/2003/TribunaisSuperiores/30-05.htm> Acesso em: 01 jun. 2016. NETO, Francisco Sannini. Delegado de polícia: o juiz da fase pré-processual. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/29963/delegadode-policia-o-juiz-da-fase-pre-processual>. Acesso em: 04 nov. 2016. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 104-105 NÚCLEO DE BIBLIOTECAS. Manual para elaboração e apresentação dos trabalhos acadêmicos: padrão Newton Paiva 2015. Disponível em: < https://www.newtonpaiva.br/system/file_centers/ archives/000/000/175/original/MANUAL_BIBLIOTECA_NEWTON. pdf?1466508943 >. Acesso em: 06 nov. 2016. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal I. - 18. ed. rev. e ampl. atual. de acordo com as leis n”’ 12.830, 12.850 e 12.878, todas de 2013. - São Paulo: Atlas, 2014. p. 10; 43; 98 SILVA, Antônio Álvares da. Juiz de garantia e inquérito policial. Disponível em: <http://www.mg.trt.gov.br/download/artigos/pdf/170_juizdegarantia.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2016.

Banca Examinadora: Eduardo Nepomuceno de Sousa (Orientador) Laura Maria dos Fernandes Lima (Examinadora 1) Leonardo de Carvalho Barbosa (Examinador 2)

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AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: uma realidade possível em um país de dimensões continentais CUSTODY HEARING: a possible reality in a country of continental dimensions Vagner Silva Souza1

RESUMO: Visa este estudo tecer considerações acerca da implantação da Audiência de Custodia que, independentemente de aprovação pelo Congresso Nacional, vem sendo implantada por iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base na Resolução nº 213, bem como em Tratados Internacionais das quais o Brasil é signatário, a despeito de reações contrárias, está gradativamente se tornando uma irreversível realidade no ordenamento pátrio. Tornando-se assim uns dos principais instrumentos no combate as prisões arbitrárias e ilegais, garantido ao detido em flagrante delito o contato com o magistrado no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, além de efetivar de forma concreta as garantias das liberdades individuais e a garantia da dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Audiência de Custodia. Eficácia. Implantação. Tratados Internacionais.

ABSTRACT: This study aims to make considerations about the deployment of the Hearing Care that, regardless of approval by the National Congress, has been deployed on the initiative of the National Justice Council (NJC), based on the Resolution no. 213, as well as in International Treaties of which Brazil is a signatory, despite reactions contrary, is gradually becoming an irreversible reality in the planning of country. Becoming thus one of the main instruments in fighting the arrests arbitrary and illegal, guaranteed the person detained in flagrante felony, the contact with the magistrate within 24 (twenty four) hours, in addition to the effect of the concrete form of the guarantees of individual freedoms and the guarantee of the dignity of the human person. Keywords: Hearing Care. Effectiveness. Implementation. International Treaties.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Prisão Cautelar. 2.1. Princípios Constitucionais. 2.2. Formalidades da Prisão Processual Cautelar. 2.3. Espécies de Prisão Processual Cautelar. 2.3.1. Prisão em Flagrante Delito. 2.3.2. Prisão Preventiva. 2.3.3 Prisão Temporária. 3. Audiência de Custódia. 3.1. Definição e Previsão Normativa. 4. Efetivação do Direito em Todo o Território Nacional. 4.1. Lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito Antes de Apresentar o Preso ao Juiz; 5. Considerações Finais. Referências.

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Graduando da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

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1 INTRODUÇÃO A audiência de custódia, conhecida também como audiência de apresentação, tem como objetivo primordial, a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana no momento da prisão em flagrante delito. Somado a isso, a mesma visa proporcionar um caráter mais humanitário ao sistema de justiça penal, além de contribuir para que haja redução no número de prisões desnecessárias. No Brasil, atualmente, está implantado nas 27 (vinte e sete) unidades da federação, em Minas Gerais por meio da Resolução nº 796/2015 (MINAS, 2015). Sem dúvida uma mudança inovadora para o nosso sistema de justiça penal. A implantação da audiência de custódia propicia um contato pessoal do preso em flagrante delito com o juiz. Com isso, o magistrado passa a ter à sua disposição um importante mecanismo para constatar a realidade daquele indivíduo levado a sua presença, até então, um ente quase alienígena, possível autor de um fato tido como contrário a lei, passando o preso agora a ser alguém, uma pessoa protagonista de uma história, com sentimentos relacionados à dor, vergonha, ódio, arrependimento, entre outros. Todavia, o cerne da questão não se limita à sua efetivação, uma vez que vem sendo imposta independentemente de uma prévia discussão com aqueles que atuam no âmbito do Direito Penal. Inicialmente será abordado um pequeno estudo sobre as prisões cautelares e os princípios constitucionais e processuais penais correlatos. Em seguida, será abordado o instituto em tela e sua normatização, bem como seus reflexos na órbita processual penal, as posições jurisprudenciais quanto à utilização deste instrumento processual penal, por fim, a efetivação do direito em todo território nacional. Por fim, demonstrar-se a disparidade entre realidade e a norma, bem como a possível não aplicabilidade da norma em situações excepcionais. 2 PRISÃO CAUTELAR Um sistema jurídico de cunho democrático, desenhado sob as bases dos direitos humanos fundamentais, possui como arrimo a garantia da liberdade, bem jurídico maior, com grau de importância tal ao direito à vida. Esta perspectiva coloca o direito à liberdade como uma das colunas principais sobre a qual deve girar o sistema jurídico. Nessa perspectiva, o Direito Criminal deve ser mínimo, de modo que ele somente há de ser elaborado para os casos em que os demais ramos do Direito não contenham normas coercitivas suficientes para dar resposta ao comportamento antissocial do agente. Uma Constituição cidadã deve, necessariamente, abarcar um processo penal também democrático, a serviço da maior eficácia das garantias constitucionais da pessoa humana. Preceitua o art. 5º, inciso LXI da Constituição Federal, que, ‘‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei’’ (BRASIL, 1988). A vista disso, toda e qualquer prisão, seja ela cautelar ou por sentença penal condenatória transitada em julgado deve ser sempre pautada na legalidade, respeitando os princípios e normas concernentes a privação de liberdade do cidadão. 2.1 Princípios Constitucionais O instituto da prisão precisa ser aplicado com muita cautela, levando em conta às garantias constitucionais e as regras de processo penal que o regem. Ao se pronunciar a palavra prisão, logo se faz contato ao local onde a pessoa é colocada e submetida à privação/

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restrição de sua liberdade, pelo fato de ter cometido alguma infração/ crime, consequentemente, ligada a ideia de medida punitiva. O indivíduo que é privado da sua liberdade ao ser preso perde o seu lar, suas relações sociais e familiares, seu espaço social e pessoal. A prisão acarreta a privação da liberdade de ir e vir do ser, retirando seu livre-arbítrio. Isto se dá por uma decisão do Estado, podendo ser antes ou após uma sentença condenatória penal transitada em julgado. Portanto, sua aplicação deve sempre ser a ultima ratio. Inicialmente teceremos considerações acerca dos princípios inerentes ao processo penal e as medidas cautelares em espécie, dando ênfase ao princípio basilar do estado democrático de direito, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana, norteador e condutor de todas as ações humanas e estatais. Em seguida traçaremos pontos relevantes no que tange aos princípios da presunção de inocência, do contraditório, da ampla defesa, da oralidade, da publicidade, da obrigatoriedade, da oficialidade, do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, da excepcionalidade e da proporcionalidade. A dignidade da pessoa humana é o vetor a partir do qual todos os demais princípios e o ordenamento jurídico devem ser interpretados, pois não é possível que se interprete a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Penal sem que seja feito essas similitudes. O princípio da dignidade da pessoa humana tende a proteger todos os direitos intrínsecos a qualquer cidadão, é o sustentáculo em que é construído o sistema penal. Sua não aplicação implica em grave afronta a legalidade e a constitucionalidade das normas. É um principio republicano. Embasa os demais princípios constitucionais. Diz respeito aos direitos fundamentais, impondo verdadeiros limites à atuação Estatal. O processo penal, no Estado Democrático de Direito, é um instrumento de direitos e garantias destinados ao cidadão sobre o qual recai a persecução penal. O acusado deve ser tratado com a máxima dignidade por parte do Estado, por ser o cidadão sustentáculo da sociedade. Desta feita, a sanção só deverá ser aplicada após o esgotamento de todas as fases previstas na legislação processual penal, com observância estrita de todo seu conteúdo, sob pena de nulidade. A Constituição Federal de 1988 surgiu num contexto pós-ditadura e de uma grande abertura política em que se buscava a realização e a defesa de direitos fundamentais em toda sua extensão. Com ela surge então o Estado Democrático de Direito, que intenta dentre outras garantias, a garantia dos direitos sociais e individuais, bem como o desenvolvimento, a igualdade, o bem estar e a justiça social. Neste diapasão, a dignidade da pessoa humana consagrou-se como princípio máximo, como fundamento da República, sendo introduzido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (BRASI, 1988). “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal e tem como fundamento: III- a dignidade da pessoa humana”( BRASIL, 1988). Nesse passo, considerando essa idéia, o que se tem hoje em dia é o processo penal funcionando como mecanismo de coisificação do homem, negando-lhe a condição de ser humano e tratando-o como verdadeiro objeto do processo. A dignidade da pessoa humana, valor básico embaçador de todos ou outros direitos humanos não pode ser violado em prol de uma tão sonhada segurança e pela busca da verdade real na esfera do processo penal, assim sendo, não há que se falar em mais ou menos dignidade, ou seja, um homem não perde a sua dignidade, por pior que seja a sua conduta. Nossa constituição assegura em seu artigo 5°, inciso LIV que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988), garantindo assim o princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade. O princípio da presunção de inocência trata de limitar

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o autoritarismo do Estado, detentor do direito de instaurar a persecução penal, todavia, o princípio da presunção de inocência não afasta a constitucionalidade de nenhuma das modalidades de prisão cautelar. E apesar, entretanto, da dificuldade, a presunção de inocência deve coexistir durante as prisões cautelares, assim, como as mesmas devem ser guiadas pelos princípios que norteiam o sistema cautelar. O princípio do contraditório é sem dúvida uns dos mais importantes princípios constitucionais, não só do Processo Penal, mas do direito como um todo. Está inscrito na Constituição Federal de 1988 no seu artigo 5º, inciso LV (BRASIL, 1988). Segundo este princípio, tem o acusado direito de defesa, sem restrições, ou melhor dizendo, tem o acusado, na sua defesa, os mesmos direitos que o acusador. As partes são vistas da mesma forma no processo, tendo as mesmas oportunidades e limitações. Tal princípio é importantíssimo para garantir a imparcialidade do julgamento do magistrado. A garantia do contraditório abrange toda a instrução criminal, incluindo-se aqui todos os atos do processo que possam interferir na decisão do magistrado, incluindo coleta de provas, arrazoados e alegações das partes. O princípio do contraditório impede ainda que, mesmo sendo o réu revel, seja este julgado sem defesa. Diferente do que acontece no juízo cível, em que um dos efeitos da revelia é a confissão tácita, na esfera penal, à revelia só tem como efeito a cessação das intimações do réu quanto aos atos do processo, sendo nomeado defensor para o mesmo, garantindo assim o cumprimento do contraditório. Todavia, o princípio do contraditório não se aplica na fase inquisitorial, ou seja, na fase do Inquérito Policial. Tem-se que a principal característica do Inquérito Policial é o seu caráter inquisitivo, ou seja, as atividades nele desenvolvidas são presididas por uma única autoridade, agindo de oficio ou por provocação, empregando as atividades necessárias e essenciais para a execução do fim primário de todo inquérito policial que é o esclarecimento do crime e sua autoria. Diante disto, no inquérito policial predomina as atividades probatórias, a fim de sobrepujar uma futura e eventual ação penal, tornando dissociada, desta fase, a figura do acusado, existindo apenas o indiciado ou o investigado. O contraditório forma-se pelo binômio reação-ciência e apesar de no inquérito policial estar o indiciado incapaz de exercê-lo, na sua forma comissiva, deve ele, quando privado de sua liberdade, ser exercido no seu segundo elemento, qual seja, a ciência, através da Nota de Culpa. Por ser desprovido do contraditório, o inquérito policial, peça informativa dos elementos necessários para a propositura da persecução penal, não justifica por si só a decisão condenatória, devendo, pois, no decorrer do processo penal ser colhidos elementos que justifiquem uma futura condenação, sob pena de ferir o artigo 5º, inciso LV, da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). Diante do exposto, conclui-se que as garantias do contraditório não estão seguradas no inquérito policial, por ser este instrumento administrativo de natureza inquisitória e informativa, formador da opinio delicti do titular da ação penal. Pelo princípio da ampla defesa temos como primor, a garantia de que o réu poderá e deverá utilizar em sua defesa, de todos os meios de defesa que não forem proibidos por lei. E, ainda, atrelado ao princípio do contraditório, é por ele que o réu tem o direito de manifestar-se sobre qualquer prova, sobre qualquer documento acostado ao processo. O contraditório dá ao réu o direito de conhecer o que contra si foi apurado, e a ampla defesa permite a ele defender-se de cada acusação formulada contra sua pessoa. Ressalta-se que, como tido acima, a ampla defesa, assim como o contraditório, não se aplicam durante a fase do Inquérito Policial, mas sim durante toda a instrução penal. O fato de os princípios constitucionais do processo penal não alcançarem o inquérito policial, em decor-

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rência do mesmo, como dito, não ser um processo e sim uma atividade administrativa, não significa que haverá a ausência de um controle de legalidade e muito menos das garantias constitucionais específicos. Já o princípio da oralidade tem que, segundo Mirabete (2003, p. 44), observar que as “declarações feitas perante os juízes e tribunais só possuem eficácia quando formuladas através da palavra oral, ao contrário do procedimento e escritas.” É importante salientar que, em nosso sistema penal, ainda vigem regras do procedimento escrito (defesa prévia, alegações finais, sentença, etc.), sendo que na realidade há um misto de procedimento escrito e oral. Importante avanço em direção à aplicação do procedimento oral foi o procedimento dos Juizados Especiais Criminais, em que há uma primazia pela oralidade e imediatilidade. No que tange ao princípio da publicidade, este se revela de extrema relevância para o processo penal como um todo, pois, tal princípio traduz a garantia de que todo o procedimento seja ele judicial ou até mesmo administrativo seja público, por ser a mesma, tanto uma garantia para o indivíduo quanto para a sociedade. Insta destacar que, a publicidade não é uma regra absoluta, pois a própria Constituição da República em seu artigo 5º LX da CF/88 reza que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (BRASIL, 1988). O intuito da publicidade dos atos processuais se deve ao fato de tentar combater a corrupção e tentar evitar fraudes, fazendo com que os atos processuais sejam os mais visíveis possíveis a fim de que possa a sociedade e as próprias partes servir-se de fiscais do cumprimento da lei. No Inquérito Policial, deve-se preservar o sigilo necessário à elucidação do fato, podendo, então, ser bem restrita a publicidade dos atos. O princípio da obrigatoriedade está contido nos artigos 5º, 6º e 24 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) e dizem que: “sendo necessário para a manutenção da ordem social que os delitos sejam punidos, deve, obrigatoriamente, o estado promover o jus puniendi”. Caminhando, vemos que o princípio da obrigatoriedade faz com que a autoridade policial instaure o Inquérito Policial e que o Ministério Público promova a ação penal pública (só a pública porque a privada é de iniciativa do ofendido). Segundo Mirabete (2003, p. 46): (...) no momento em que ocorre a infração penal é necessário que o Estado promova o Jus Puniendi, sem que se conceda aos órgãos encarregados da persecução penal poderes discricionários para apreciar a conveniência ou oportunidade de apresentar sua pretensão ao estado-Juiz. Exceção ao princípio da obrigatoriedade é o princípio da insignificância ou bagatela que diz que, não deve o Estado promover a ação penal quando dela resultar mais inconvenientes que vantagens à sociedade. No ordenamento jurídico pátrio, este princípio acaba ficando restrito aos crimes de ação privada e nos delitos que dependem de representação do Ministro da Justiça. Ponto importante a ser frisado é que, a Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Civis e Penais) em seu art. 72 (BRASIL, 1995), acaba diminuindo a aplicação deste princípio, já que tem o instituto da transação penal, que tranca o processo antes mesmo do oferecimento da denúncia, por meio de um acordo celebrado entre o réu e o Ministério Público. O princípio da oficialidade está previsto nos artigos 5º LIX, 144, 129 I; 128 I e II da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e ainda nos artigos 4º e seguintes e artigo 29 Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Diz este princípio que já que a repressão do crime é função exclusiva do Estado, e dele devem derivar os atos de persecução penal, ou seja, a repressão ao crime deve ser originada e sucedida pelos órgãos oficiais do Estado. Nos

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ensinamentos de Mirabete (2003, p.47): Como a repressão ao criminoso é função essencial do Estado, deve ele instituir órgãos que assumam a persecução pena. É o princípio da oficialidade, de que os órgãos encarregados de deduzir a pretensão punitiva sejam órgãos oficiais. O Ministério Público e a Polícia Judiciária, órgãos oficiais responsáveis pela repressão penal, têm autoridade, podendo requisitar documentos, determinar diligências e quaisquer atos necessários à instrução criminal seja durante a fase inquisitiva (Inquérito Policial), seja durante a Ação Penal, cada um, é claro, em cumprimento a suas atribuições (MIRABETE, 1999, p. 48). Temos que perceber, entretanto, que este princípio não é absoluto, porque na ação penal privada a iniciativa da ação é do ofendido, e não dos órgãos oficiais, o mesmo ocorrendo na ação penal privada subsidiária da pública. Uns dos princípios mais relevantes do processo penal brasileiro é o princípio do juiz natural. Este princípio encontra-se previsto no artigo 5º LIII, XXXVII da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e ainda nos artigos 92 a 126 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Nos dizeres de Mirabete (2003, p.48) “o autor do ilícito só pode ser processado e julgado perante o órgão que a Constituição Federal, implícita ou explicitamente, atribui a competência para o julgamento”. Não pode a lei determinar magistrados definidos para o julgamento de determinadas pessoas ou fatos. Antigamente se dizia que este princípio informava ser obrigatório que um juiz que começasse um processo ficasse ao mesmo ligado até o final. No Brasil não se utilizou tal descrição até mesmo pela distribuição da carreira da magistratura. Assim, desde a CF/88 estabeleceu-se que o juiz natural, não seria um juiz em pessoa, mas sim o juízo competente. Marchando, temos o princípio do duplo grau de jurisdição. Tal princípio não está expresso na Constituição Federal, mas decorre do próprio sistema Constitucional e diz que os Tribunais poderão rever as decisões em grau de recurso, ou seja, um tribunal, que é superior ao juiz singular, tem o poder de rever a decisão do juiz de primeiro grau. O Direito Processual Penal evoluiu com a sociedade e existe para que seja possível a aplicação do Direito Penal objetivo, que segue princípios e que busque assegurar os direitos dos cidadãos na sua defesa, bem como a imparcialidade do julgamento. As prisões cautelares devem observar ainda o principio da excepcionalidade, ou seja, devem ser o último instrumento a ser utilizado. No sistema processual penal brasileiro temos dois dispositivos atinentes ao princípio da excepcionalidade e sua aplicação com relação às prisões cautelares. Art. 282 [...] § 6º A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar. Art. 310 Ao receber o auto de prisão em flagrante o deverá fundamentadamente: [...] II- converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312 deste Código e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; (BRASIL, 1941). Pelo princípio da proporcionalidade, temos que, as medidas cautelares devem ser aplicadas quando houver sua real necessidade, observando os fins que se almeja, sua duração e intensidade. Este princípio está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. Neste vértice, a privação cautelar da liberdade, no sistema jurídico pátrio, é o último recurso a ser empregado. A necessidade do caráter mínimo de intervenção estatal no direito de locomoção do LETRAS JURÍDICAS | V. 4| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2016 | ISSN 2358-2685

cidadão só se excetua em situações excepcionais graves ou que representem risco ou dano a algum direito fundamental. Assim, os princípios que regem as prisões cautelares devem ser aplicados com a máxima eficácia possível, tendo em vista que, as medidas cautelares implicam em ofensa a dignidade da pessoa humana e aos princípios constitucionais dela decorrentes. 2.2 Formalidades da Prisão Processual Cautelar Somente o Estado, em sua função de promover o bem comum, tem o direito de estabelecer e aplicar sanções. O Estado é o único titular do Direito de Punir (Jus Puniendi). O Estado não tem apenas o Direito de punir, mas, sim, tem o DEVER de punir, porém, seu dever, dentre outros, é resguardar a sociedade. O jus puniendi é uma manifestação da soberania estatal. A forma que o Estado se impõe para compor os litígios, por meio dos órgãos próprios da administração da Justiça, tem-se o nome de PROCESSO. Ensina-nos Mirabete, (2003, p. 26), “como na Infração penal há sempre uma lesão ao Estado, este como Estado-Administração, toma a iniciativa de garantir a observância da lei, recorrendo ao Estado-Juiz para, no processo penal, fazer valer sua pretensão punitiva”. Processo Penal é, então, o conjunto de atos cronologicamente encadeados, submetido a princípios e regras jurídicas destinados a compor as lides de caráter penal. Toda e qualquer prisão seja cautelar ou por sentença condenatória penal transitada em julgado dever ser fielmente fiscalizada pelo magistrado quanto a sua legalidade. Nestes termos, assegura o art. 5º, inciso LXV da Constituição Federal, que, ‘‘a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária’’ (BRASIL, 1988). Devido a tais preceitos exige-se que toda prisão seja devidamente comunicada ao magistrado, para que este possa analisar a legalidade da mesma. Em constatando que a prisão é legal, deverá o juiz homologá-la. Lado outro, se a prisão é ilegal, deverá o magistrado relaxá-la, sob pena de cometimento do crime de abuso de autoridade, prevista na Lei nº 4.898 de 1965, em seu art. 4º (BRASIL, 1965). Ressalta-se que, também a prisão decretada por magistrado deve ser fiscalizada pelo judiciário. Neste caso pela autoridade judiciária superior, por meios dos instrumentos cabíveis, a exemplo do Habeas Corpus. Posto isto, os direitos e garantias individuais assegurados na Constituição Federal de 1988 devem ser observados e respeitados na aplicação de medidas coercitivas pelo Estado. 2.3 Espécies de Prisão Processual Cautelar A prisão de qualquer cidadão deve impreterivelmente atender regras gerais, dentre uma delas, a indisponibilidade de mandado judicial de prisão, expedido por autoridade judiciária competente, que proferiu decisão escrita e fundamentada, nos autos do inquérito ou do processo. Excepcionalmente, admite-se a formalização da prisão por ato administrativo, como ocorre no caso de flagrante delito, embora sempre seja submetida à constrição a avaliação judicial. Neste contexto, prisão processual é aquela resultante do flagrante ou de determinação judicial, em virtude de atuação da persecução penal no processo penal, com os pressupostos de medida cautelar. Nos ensinamentos de Pacelli, ‘‘toda e qualquer prisão deverá se pautar na necessidade ou da indisponibilidade da providencia, a ser aferida em decisão fundamentada do juiz e do tribunal, segundo determinada e relevante finalidade’’ (PACELLI, 2013, p. 248). O ordenamento jurídico brasileiro prevê as seguintes modalidades de prisões cautelares: prisão em flagrante delito (CPP, arts. 301 a 310), prisão preventiva (CPP, arts. 311 a 316), prisão temporária (Lei nº 7.960-89) e a prisão domiciliar (CPP, arts. 317 a 318), as quais serão abordadas a seguir (BRASIL, 1941).

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2.3.1 Prisão em Flagrante Delito

Flagrante significa ‘‘tanto o que é manifesto ou evidente, quanto o ato que se pode observar no exato momento que ocorre’’ (NUCCI, 2012, p. 588). Por isto, prisão em flagrante delito ‘‘é a modalidade de prisão cautelar, de natureza administrativa, realizada no instante em que se desenvolve ou termina de se concluir a infração penal’’ (NUCCI, 2012, p. 588). A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LXI, dispõe “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei” (BRASIL, 1988). Com isso, em primeiro momento, a prisão em flagrante delito tem caráter administrativo justamente porque dispensa ordem judicial expressa e fundamentada para tanto, nos termos do artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal (BRASIL, 1941). Isto se deve ao fato de que a prisão em flagrante delito pode ser observada de maneira manifesta, evidente por qualquer pessoa do povo, dispensando-se, portanto, a análise por parte de um magistrado. Já em um segundo momento, essa modalidade de prisão deverá ser submetida à análise judicial da sua legalidade, caráter judicial. A natureza jurídica da prisão em flagrante é de medida cautelar de segregação provisória do autor da infração. Assim, exigem-se apenas a aparência de tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade, outros dois requisitos para a configuração do crime (NUCCI, 2012, p. 589). Contudo, embora o princípio da insignificância retire a tipicidade do crime, não se admite que a autoridade policial deixe de efetivar a prisão em flagrante delito com base neste motivo, pois tal motivo deve ser analisado exclusivamente pelo magistrado (ALVES, 2011, p. 78). O flagrante não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido à disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar. Entretanto, cabe salientar que haverá casos em que não será possível a homologação da prisão em flagrante, com a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito, nem exigirá fiança, se o autor do fato for imediatamente encaminhado ao juízo competente ou assumir o compromisso de a ele comparecer, embora seja possível a apreensão física do agente. Exemplos destes casos são os das infrações de menor potencial ofensivo (Art. 69, da Lei 9.099 de 1995) e crime de porte de entorpecente para consumo (Art. 48, § 2º, da Lei 11.343 de 2006). O flagrante abarca duas modalidades, podendo ser facultativo ou obrigatório. Facultativo é aquele realizado por qualquer do povo, que não é obrigado a efetivá-lo. Trata-se de hipótese de exercício regular de um direito, mas caso a prisão efetuada seja ilegal, a pessoa poderá responder por crime de constrangimento ilegal até de sequestro ou por cárcere privado. Obrigatório ou compulsório é aquele imposto as autoridades policiais e seus agentes, sob pena de responsabilidade criminal e funcional pelo seu descaso, desde que obviamente seja possível a efetivação do flagrante. Trata-se aqui de estrito cumprimento do dever legal. Nos crimes de ação privada ou pública condicionada a representação é possível a efetivação da prisão em flagrante, desde que haja no ato de formalização do auto, se a vítima estiver presente, autorização desta (NUCCI, 2012, p. 591). A prisão em flagrante se divide em espécies, senão vejamos: 1) Fragrante próprio ou perfeito ou real - ocorre quando verdadeiramente existe o flagrante. Quando o agente está cometendo o crime (art. 302, inciso I, do CPP) ou acaba de cometê-lo (art. 302, inciso II, do CPP), ficando clarividente a materialidade do crime e da

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sua autoria. Esta ocorre quando o agente é surpreendido durante o iter criminis, praticando a conduta descrita no tipo penal ou logo após (BRASIL, 1941). 2) Flagrante impróprio ou imperfeito ou irreal - ocorre quando o agente é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa do povo, em situação que faça presumir ser o autor da infração. Segundo Lopes Jr. (2013, pp. 56-57), “a perseguição exige uma continuidade, em que o perseguidor (autoridade policial, vítima ou qualquer pessoa do povo) vá ao encalço do suspeito, ainda que nem sempre tenha o contato visual”. Necessário ainda considerar a necessidade de que a perseguição inicie logo após o crime e este requisito, temporal, deve ser interpretado de forma restritiva, sem que exista, contudo, um lapso temporal incompatível com o estado de flagrância. Observe-se que a perseguição pode ate durar horas ou dias, desde que tenha se iniciado “logo após” a prática delituosa. Isto afasta por completo a crença popular de que um indivíduo só pode ser preso ao longo de 24 (vinte e quatro) horas decorridas após a prática do delito. Também são espécies de prisão em flagrante delito: flagrante presumido ou assimilado (art. 302, inciso VI, do CPP), flagrante preparado ou provocado (Súmula 145, do STF), flagrante forjado, flagrante esperado, flagrante diferido ou retardado (art. 2º, inciso II, da Lei nº 9.034 de 1995 e art. 53, inciso II, da Lei nº 11.343 de 2006). A prisão em flagrante requer o cumprimento de formalidades para a lavratura do seu auto de prisão, pois é modalidade de prisão que foge a regra geral de que a prisão decorre de ordem judicial escrita. Sua formalização se dá com a lavratura do auto de prisão em flagrante delito. Nele deve constar o depoimento do condutor, que é a pessoa que apresenta o preso a autoridade policial, também o depoimento de duas testemunhas do fato criminoso, sem contraditório e ampla defesa, mas na falta delas não se impede a lavratura do auto de prisão, sendo possível a oitiva de testemunhas da apresentação do preso a autoridade policial. Em regra, qualquer pessoa pode ser presa em flagrante delito. Entretanto, há determinadas pessoas, em razão do cargo que ocupam ou pela condição especial que se encontram, estão sujeitas as regras especiais quanto à prisão em flagrante, tais como: diplomatas, parlamentares federais e estaduais, magistrados, membros do Ministério Público, Presidente da República, advogado, menores de 18 (dezoito) anos, condutores de veículos automotores. Uma vez lavrado o auto de prisão em flagrante delito, a autoridade policial deverá comunicar ao juiz a prisão efetiva, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de cometimento de crime de abuso de autoridade. Deve ser observado que, algumas medidas especiais precisam ser cumpridas para o efetivo controle jurisdicional da prisão em flagrante delito, dentre elas, a obrigatoriedade de comunicação imediata ao juiz competente desta prisão, o local onde o preso se encontra, além de comunicar o Ministério Público e a família do preso ou a pessoa por ele indicado. Caso em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o autuado não informe o nome de seu advogado, será remetido cópia integral para a Defensoria Pública. Além disso, exige-se a entrega da nota de culpa ao preso, no mesmo prazo de 24 (vinte e quatro) horas, mediante recibo, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e das testemunhas. Ao receber o auto de prisão em flagrante o magistrado deve fundamentadamente adotar umas das medidas descritas no artigo 310 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Se a prisão não atender aos requisitos legais deve ser imediatamente relaxada, com liberdade plena do agente.

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2.3.2 Prisão Preventiva

A prisão preventiva sempre foi prevista em nosso sistema processual, mesmo ao tempo do Brasil Imperial. A prisão preventiva ou provisória desde a sua origem possui como fim, tutelar o procedimento iniciado ou a ser iniciado, no qual será travada discussão sobre a culpabilidade do acusado. A restrição preventiva “é uma medida cautelar de constrição a liberdade do indiciado ou réu, por razões de necessidade, respeitados os requisitos estabelecidos em lei” (NUCCI, 2012, p. 694). É uma prisão tipicamente cautelar. Assim, como toda e qualquer medida de urgência cautelar, para a decretação da preventiva, mister que seja demonstrado a sua necessidade ou imprescindibilidade, o que se faz mediante a presença de um dos seus fundamentos, que representa o periculum in mora ou periculum in libertate (garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicabilidade da lei penal), além dos pressupostos (materialidade e indícios de autoria). A prisão preventiva pode ser decretada durante a investigação policial ou já no curso da ação penal, e até após a sentença condenatória recorrível. Tal modalidade de prisão cautelar pode ser decretada pelo juiz, de ofício, no decorrer da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante, ou do assistente de acusação, ou por representação da autoridade policial, em qualquer fase processual, conforme artigo 311, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). A conversão da prisão na espécie flagrante em preventiva não é automática e tampouco despida de fundamentação. Pelo contrário, esta deverá apontar além do fumus commissi delicti e o periculum libertates, os motivos pelos quais juiz entendeu inadequadas e insuficientes as medidas cautelares diversas do artigo 319, do CPP, cuja aplicação pode ser isolada ou cumulativa. Qualquer que seja o fundamento da prisão cautelar preventiva é imprescindível a existência de prova razoável do alegado periculum libertatis, ou seja, não bastam meras presunções ou ilações para a decretação da preventiva. O perigo gerado pelo estado de liberdade do agente deve ser real, concreto, com sustentáculo fático e probatório suficiente para legitimar tão danosa medida. Da decisão que decretar a preventiva, exige-se fundamentação legal, sob risco de ofender o princípio da presunção de inocência e decisão interlocutória que é, não há recurso previsto na sistemática processualística penal, podendo ser atacada por meio de Habeas Corpus. Conforme estabelecido no artigo 316, do CPP (BRASIL, 1941), “o juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”, assim, esta modalidade pode ser revogada a qualquer momento, desde que desapareçam seus requisitos. Destarte, para a decretação de uma prisão preventiva (ou qualquer outra prisão cautelar), diante da sua temeridade, é necessário um juízo de probabilidade, um predomínio das razões positivas. 2.3.3 Prisão Temporária

A prisão temporária está prevista na Lei nº 7.960 de 1989 (BRASIL, 1989). Antigamente era denominada de “prisão para averiguação”. Esta é uma modalidade de prisão que visa assegurar uma eficácia maior na investigação policial, quando se tratar de apuração de infração de natureza grave. Para sua decretação é necessária a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público, excluindo-se a possibilidade de decretação de oficio, pelo magistrado, como pode ocorrer na decretação da prisão preventiva. O artigo 1º, da Lei nº 7.960 de 1989, determina três hipótese de cabimento da prisão temporária: a) quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; b) quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

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c) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substancia alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráficos de drogas e crimes contra o sistema financeiro. O prazo da prisão temporária será, como regra, de 5 (cinco) dias, podendo ser prorrogado por mais outros 5 (cinco) dias em caso de extrema e comprovada necessidade. Nota-se que, quando se tratar de crimes hediondos e equiparados, o prazo sobe para 30 (trinta) dias, prorrogáveis por outros 30 (trinta) dias. Importante frisar que, quando expirado o prazo da temporária determinada pelo magistrado e, não tendo sido a prisão temporária convertida em preventiva, o indiciado deve ser posto em liberdade imediatamente pela própria autoridade policial, independentemente da expedição de alvará de soltura, sob pena de configuração de constrangimento ilegal, passível de impetração de Habeas Corpus. Como uma espécie de desdobramento da prisão preventiva tem a prisão domiciliar. A prisão cautelar domiciliar está prevista nos artigos 317 e 318 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos: Art. 317. A prisão domiciliar consiste recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. Art.318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I – maior de 80 (oitenta) anos; II- extremamente debilitado por motivo de doença grave; III- imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menos de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV- gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco; Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo (BRASIL, 1941). Como salienta Nucci (2012, p.624), esta modalidade de prisão não é nova medida cautelar restritiva da liberdade, trata-se da prisão preventiva em residência, de onde somente pode o sujeito sair mediante autorização judicial. Note-se que a prisão domiciliar tem natureza diferente do recolhimento domiciliar constante no artigo 319, V, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Esta está relacionada aos motivos pessoais do agente e, para o seu deferimento pelo magistrado deve necessariamente estar presente sua comprovação. Não é demais salientar que a não observância dos preceitos legais e dos princípios constitucionais norteadores do ordenamento jurídico brasileiro, na determinação de uma prisão processual, pode culminar em lesões irreparáveis a direitos fundamentais. Tendo isto por base, incumbe ao agente estatal avaliar a real necessidade e a possibilidade da aplicação da prisão cautelar, bem como os possíveis danos ao indivíduo encarcerado e a sociedade que possam vir a ser causados pela mesma. A legitimação do uso da força pelo Direito, somente seria justificável nas hipóteses previamente enumeradas pela legislação e desde que estritamente necessário para a preservação da lei e resguardo da ordem pública, caracterizando como legítima coerção (BRAGA, 2013, p. 1). Todas essas garantias tratam dos procedimentos que segregam a liberdade de um indivíduo, definem a forma de atuação estatal e preservam, de forma absoluta, princípios inerentes a todo ser humano. No direito processual penal pátrio, especialmente no que tange as medidas cautelares e a prisão, os princípios fundamentais constitucionais trazem um valor ainda maior, haja vista a gravidade das medidas e a responsabilidade dos agentes estatais envolvidos. Privar um indivíduo de sua

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liberdade é uma medida de caráter excepcional e ultima ratio, jamais podendo ser de forma automática e mecanizada. De qualquer maneira, excepcionalmente, permite-se, como medida processual, a supressão do direito a liberdade antes mesmo da condenação definitiva, sem que tal caracterize afronta ao princípio da presunção de não-culpabilidade ou de inocência. Neste cenário, prisão é a privação da liberdade de locomoção em virtude do recolhimento da pessoa humana ao cárcere. 3 AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA 3.1 Definição e Previsão Normativa “Custódia é o estado de quem é preso pela autoridade policial para averiguações, ou conservado sob segurança e vigilância, como medida de preservação, prevenção ou proteção” (PAIVA, 2015, p.56). A audiência de custódia oferece ao juiz uma maior facilidade de aferir as condições deste indivíduo acautelado, verificando se portador de alguma enfermidade física ou psíquica, se foi vítima de tortura ou de maus tratos, concluindo pelo relaxamento da prisão em flagrante, pela sua conversão em preventiva, ou ainda pela concessão da liberdade provisória, sem perder de vista que a audiência de custódia é um instrumento para beneficiar o preso em flagrante delito. Em alguns países, por exemplo, é denominada como Audiências de Garantias, em que a Audiência de Custódia é ato judicial em que logo após a sua prisão o indivíduo é apresentado ao juiz, que o presidirá e decidirá sobre a necessidade e a legalidade desta sua custódia pelo Estado. Nesse diapasão, também no contato pessoal com o preso, haverá melhor possibilidade de o juiz avaliar a aplicação de prisão domiciliar na hipótese de sua extrema debilidade ou em razão de doença grave e quando se tratar de gestante, mesmo que não disponível no momento da audiência de custódia atestado médico comprovando suas condições pessoais. Com a audiência de custódia, poderão ainda ser evitados desaparecimento e execuções sumárias. Nesta audiência deverão ainda estar presente um defensor e o representante do Ministério Público, possibilitando ao magistrado não só uma melhor avaliação do periculum libertatis, mas também considerar a suficiência das medidas cautelares diversas no art. 319, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Com esse tipo de mudança, será possível, talvez um sistema processual penal que garanta, em matéria de prisão cautelar, a acusatoriedade, a ampla defesa, o contraditório, o respeito à presunção de inocência e o primado da liberdade frente ao caráter excepcional da prisão cautelar, tal qual a Constituição Brasileira e os Tratados Internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil prevêem. Instituída pela Resolução nº 213 de 15 de Dezembro de 2015, pelo Conselho Nacional de Justiça, em parceria com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o projeto Audiência de Custódia, consiste na garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. No Estado de Minas Gerais sua implantação foi regulamentada por meio da Resolução nº 796 de 2015. Este instituto tem previsão normativa em Tratados Internacionais dois quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), conhecida como Pacto de São Jose da Costa Rica, que prevê em seu artigo 7.5 que: Toda e qualquer pessoa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, a presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade poder ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (CADH, 1969). E o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que

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prevê em seu artigo 9.3 que: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, a presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. (...) (PIDCP, 1966). A audiência de custódia tem por escopo assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão, por meio de apreciação mais adequada e apropriada da prisão antecipada pelas agências de segurança pública do Estado, se tornado, assim, sem sombra de dúvida uma ferramenta essencial para garantias dos direitos fundamentais para o indivíduo preso em flagrante delito. Ao ser apresentado ao juiz, será ao preso assegurado entrevista prévia com seu defensor e informado do seu direito ao silêncio. Como bem coloca Paiva (2015, p. 56). A realização da audiência de custodia contribuirá para que haja a superação da “fronteira do papel” sistema processual cartorial, que é praticado pelo sistema brasileiro, pois exige que o membro do Ministério Público e o juiz vejam e conversem com o preso, o que contribuirá para a humanização da jurisdição penal. A idéia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas além das manifestações do agente, as do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. A audiência de custodia é um instrumento processual penal que tem por escopo defender a liberdade pessoal e dignidade do acusado, servindo a propósitos processuais humanísticos e de defesa de direitos fundamentais do cidadão e ao devido processo legal. Importante frisar, entretanto, que a própria normativa impõe algumas limitações às partes durante a audiência de custodia. Assim, como bem colocado, a audiência de custodia é um direito, uma garantia que o preso em flagrante delito tem de ser apresentado a um juiz, na presença do representante do Ministério e do Defensor, num prazo de 24 (vinte e quatro) horas. Portanto, a norma impõe limites cognitivos no que diz respeito à atividade probatória e meritória do juiz e também pelas partes. Assim, a atividade judicial e das partes na audiência de custódia limita-se a circunstâncias objetivas da prisão e subjetivas sobre a pessoa presa, restando então, a impossibilidade de formulação de perguntas ao cidadão conduzido sobre o mérito do caso penal, evitando-se que a audiência de custódia se transforme numa produção antecipada de cognição de mérito ou instrumento para obtenção de condenações antecipadas por meios de coações e abusos arbitrários, firmando o entendimento de que tal ato não se destina a produção de provas. A instituição da audiência de custodia prevê ainda, a estruturação de Centrais de Alternativa Penais, Centrais de Monitoramento Eletrônico, Centrais de Serviços Sociais e Câmara de Mediação Penal que serão responsáveis por representar ao juiz opções ao encarceramento provisório (CNJ, 2015). 4 EFETIVAÇÃO DO DIREITO EM TODO TERRITÓRIO NACIONAL Materialmente, a audiência de custódia consiste na condução do preso em flagrante delito a presença de autoridade judicante no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, concomitantemente com o Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), para que o magistrado, na presença do Ministério Público, da Defesa e do preso, e a partir do prévio contraditório estabelecido, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, analise questões relativas à pessoa conduzida, observando se há indícios da prática de maus tratos ou tortura e, por fim,

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decida pela aplicação da prisão preventiva, da concessão da liberdade provisória ou por algumas das medidas cautelares diversas da prisão, extraídas do artigo 319, do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941). Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), foram realizadas em 2015 em todo o Brasil 22.467 (vinte e dois mil quatrocentos e sessenta e sete) audiências de custódia, resultando na concessão de 10.445 (dez mil quatrocentos e quarenta e cinco) liberdades provisórias (46% do total) e na manutenção de 12.022 (doze mil e vinte e duas) prisões. Não resta dúvida que, a realização da audiência de custódia tem se mostrado uma ferramenta eficaz no controle da aplicação da restrição de liberdade pela prática da liberdade provisória. O excesso de encarceramento é característica marcante do sistema penitenciário brasileiro na atualidade. Porém, o aumento no número de encarcerados não reflete uma maior noção de segurança, pelo contrário. Estamos vivenciando uma verdadeira inversão de valores, na qual, muitas das vezes, primeiro se prende para depois se buscar o suporte probatório que legitima tal medida, quando o esperado seria o contrário. Neste cenário de excessos de prisões cautelares, o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking carcerário mundial, mesmo assim, apesar de números tão alarmantes, persiste entre a população a sensação de impunidade (DEFEN, 2014). Entretanto, mesmo sendo um grande avanço para as políticas penais, sua instituição vem carecendo um pouco mais de atenção acerca de um estudo detalhado e mais discutido entre os agentes penais, principalmente no que tange a alguns entraves que este instituto poderá obstaculizar na sua realização. Conforme dito, o preso em flagrante delito deverá ser apresentado à autoridade judicante no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, simultaneamente com APFD (Auto de Prisões em Flagrante Delito) para que, com o magistrado, na presença do Ministério Público, da Defesa e do preso, decidirá pela aplicação da prisão preventiva, da concessão da liberdade provisória ou por algumas das medidas cautelas diversas extraídas do art. 319, do Código de Penal Brasileiro (BRASIL, 1941). Ocorre, porém, que a realidade brasileira é sobremodo diversa de outros lugares, a começar pela dimensão de nossa extensão territorial. De fato, nos lugares mais longínquos do país, por vezes a distância entre as Unidades Judiciárias, Ministeriais, Policiais e da Defensoria Pública é significativa, de tal modo que a prisão de uma pessoa em determinado lugar poderá implicar o seu deslocamento por até centenas de quilômetros até que se chegue à autoridade judicial, o que, certamente, demandará parcela significativa de tempo, exemplo, como ocorre na Região Norte do país, onde há lugares somente acessíveis por transporte fluvial ou aéreo, e, por vezes, a prisão de alguma pessoa dentro da selva requer o prazo de até 3 (três) dias para que o preso seja levado a uma Unidade da Justiça, prazo que, excede em muito as 24 (vinte e quatro) horas instituídas. Para melhor demonstrar a imensidão territorial do Brasil, há uma grande distância que separa os pontos extremos do país, tanto na direção norte-sul como na direção leste-oeste. O ponto mais extremo no norte é o monte Caburaí (1.465 m onde fica a nascente do Rio Ailã) no Estado de Roraima; ao sul o Arroio Chuí, um pequeno curso d’ água situado no Estado do Rio Grande do Sul; a leste a Ponta Seixas no Estado da Paraíba; e a oeste a Serra da Contamana (nascente do rio Moa) na fronteira do Acre com o Peru. (WIKIPÉDIA, 2016) Além, da extensão territorial, tem-se questão ligada a infra-instrutora orgânica da administração pública no que tange à disparidade orçamentária e a defasagem de aparelhagem entre as regiões do país. Pois há diferença significativa entre as regiões mais desenvolvida do país, da qual, estas teriam uma capacidade maior de instalação, efetivação e manutenção deste instituto, ao contrário das regiões menos desenvolvidas, onde se tem uma escassez maior de recursos para a implementação, efetivação e manutenção da audiência de

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custódia, tornando assim, pouco viável sua efetivação nestas regiões sem um reforço da estrutura da administração pública. Além disso, tenha-se presente, a escassez de magistrados, promotores, defensores e servidores para que haja a realização da audiência de custódia, implicando a possibilidade de que, eventualmente, esse prazo pudesse vir a ser descumprindo em decorrência das dificuldades que assolam a aparelhagem estatal, acarretando assim a impetração de Habeas Corpus ou ter a prisão relaxada em detrimento do não cumprimento do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, produzindo uma lei natimorta, com pouca aplicabilidade e eficácia. A carência de magistrados, promotores, defensores públicos e efetivo policial na estrutura orgânica da administração pública e do judiciário, bem como as dimensões territoriais brasileiras e falta de aparelhagem, implicará em, alguns casos, que nem sempre será possível em um prazo de 24 (vinte e quatro) horas apresentar o detido a autoridade judicial, além de conseguir reunir todos esses agentes em um único ato e, acaso esta regulamentação não possa ser cumprida por motivos alheios a vontade dos agentes públicos, o que ocorrerá? Será legal nestas circunstâncias a apresentação o APFD antes de encaminhar o preso à presença do juiz? Analisaremos a questão mais a fundo a seguir. 4.1 Lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito antes de apresentar o preso ao juiz Ver que a instituição da audiência de custódia em nada observou os pontos aqui traçados, haja vista, ter sido implantada sem um estudo mais detalhado e uma maior discussão com aqueles que estão na linha de frente da persecução penal, acarretando com isso, situações como a que foi proposta passassem despercebidas aos olhos das autoridades. Nos exatos termos que vem sendo implantada a audiência de custódia, traz a luz apenas a ineficiência do Estado em privar provisoriamente um autuado em flagrante. Por de traz do enunciativo de tutela dos direitos do preso, que agora é obrigatoriamente encaminhado a presença do juiz, revela a finalidade de diminuir o número de presos provisórios e desafogar o já falecido sistema carcerário, em prejuízo da população, usurpando a credibilidade das instituições públicas, produzindo inquietação e descontentamento da população. Já se antevê que os prédios dos Fóruns se transformaram em verdadeiras delegacias, haja vista tudo que se trabalhou ao longo deste estudo. Assim, se faz necessário que diante de tais situações excepcionais seja estabelecido um prazo maior para a apresentação física do detido para a audiência de custódia, estabelecendo ainda que, o Auto de Prisão em Flagrante Delito seja remetido à autoridade competente em um prazo de até 12 (doze) horas. Para corroborar, diversos países já adotaram prazo semelhante, por vezes, um pouco superior ou um pouco inferior. Na Argentina, o prazo para a apresentação é de 6 (seis) horas após a prisão; no Chile, 12 (doze) horas para a apresentação ao promotor, que poderá soltar o preso ou apresentá-lo ao juiz em 24 (vinte e quatro) horas; na Colômbia o prazo é de 36 (trinta e seis) horas para a apresentação ao juiz; no México a apresentação deve ser imediata ao promotor e em 48 (quarenta e oito) horas ao juiz; na Espanha, Itália e Alemanha, vigora o prazo de 24 (vinte e quatro); em Portugal, são de 48 (quarenta e oito) horas. Portanto, assim, diante de tais situações peculiares, inerentes a escassez de pessoal, das dimensões territoriais brasileiras e as disparidades entre as regiões do país, seja estabelecido um prazo mais dilatado para a apresentação física do preso ao juiz, prevendo expressamente que, situações excepcionais e devidamente comprovadas, poderiam justificar que tal providência se dê em tempo superior ao previsto na norma, quando se fizer necessário a lavratura e envio dos Autos de Prisão em Flagrante Delito no prazo de até 12 (doze) horas, antes do encaminhamento do preso ao juiz.

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prisão temporária. Disponível em: <http:// http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L7960.htm>. Acesso em: 01 de nov. 2016.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Posto isto, o propósito fim da implantação da audiência de custódia em todo território nacional permite que o Brasil honre os compromissos assumidos no cenário internacional, bem como os princípios estampados na Constituição Federal, em especial a dignidade da pessoa humana, tratando-se de uma forma de contenção do poder punitivo estatal, pois, sabe-se que o direito penal cada vez mais se volta para a subsidiariedade e fragmentariedade, evitando-se a sua intervenção desarrazoada, garantindo um controle judicial célere e eficaz sobre a legalidade, necessidade e adequação da prisão cautelar, minimizando as superlotações nos presídios nacionais. Firmando esta idéia, portanto, durante a audiência de custódia o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou de eventual concessão de liberdade, com ou sem imposição de outras medidas cautelares, devendo ainda, o juiz, avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. Diante deste estudo, conclui-se que, não resta dúvida que a apresentação do preso em flagrante delito no prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a audiência de custódia tem se mostrado uma ferramenta eficaz no controle da legalidade, numa garantia fundamental ao detido, bem como, a adequação e necessidade das prisões cautelares, e que sua realização poderá ficar comprometida em situações excepcionais, ensejando, assim, um prazo maior para a apresentação do preso ao juiz e a lavratura e envio do APFD no prazo de até 12 (doze) horas, antes do seu encaminhamento ao juiz. Assim, apesar de não estar prevista a dilação do prazo para a apresentação física do preso em flagrante delito, após o encaminhamento do Auto de Prisão em Flagrante Delito no prazo de até 12 (doze) horas, não destoa daquele comum a outros países.

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