JOAO AGUIAR, "Verba Volent, Scripta Manent", in O Prazer da Leitura

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Eu fui e liguei o computador e comecei a jogar, após ter enfiado nos ouvidos os auscultadores do iPod, onde na véspera metera o último CD dos «Fuckin' Foes», que no ano passado estiveram em todos os «tops». E enquanto jogava e ouvia música, ia remordendo a minha revolta. Pensava: 'Tá bem, pronto, chumbei o ano, pronto. Foi a primeira vez. Não fui o único. Pode acontecer a qualquer um. Houve injustiça. Tive azar nos testes. Não tenho jeito para o estudo, é o que é. Há coisas piores. (Enfim, tudo aquilo que a gente diz ou pensa em ocasiões dessas para arranjar desculpas que são mais para nós do que para os outros: detergentes para o ego, mais uma frase do primo Jeremias.) Joguei e ouvi música durante mais de uma hora, tanto quanto me lembro, a tentar esquecer a cena anterior enquanto continuava a remorder a revolta. Com ela, crescia a zanga, uma zanga sulfúrica: por que é que os meus velhos não compreendiam? Por que passavam eles o tempo a atirarme com a Paula à cara? A Paula é uma miúda, não é a mesma coisa. E além disso ... Não pude completar o pensamento porque os auscultadores me saltaram das orelhas e a voz da minha mãe soou: - Importas-te, Gonçalo? Precisamos de ter uma conversa antes que esse barulho te ponha completamente surdo. Claro que, para ela, os «Fuckin' Foes» eram barulho. Em todo o caso, tinha quebrado uma regra importante que eu conseguira fazer aprovar lá em casa: a de ninguém entrar no meu quarto sem bater primeiro. Foi isto o que eu pensei e a minha revolta aumentou. Só que ela deve ter adivinhado (é uma das coisas chatas que as mães costumam ter) e disse, logo a seguir: - Eu bati à porta, mas tu nem respondeste, claro. Repito que vais ficar surdo, se não te acontecer coisa pior.


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