FILIPA MELO, "Velha Infância"

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Filipa Melo (1972 - )

Filipa Melo: aqui

A.A. ~ 2010-2011 Prof.ÂŞ eli


VELHA INFÂNCIA

Hoje acordei e não me lembrava de nada. Ou quase. Fixei a última cor, como me tinham ensinado. Foi a minha mãe quem me ensinou a fazê-lo. Devo ter isso escrito por aí, algures. «Voltas a fechar os olhos com muita força e, se procurares a última cor fixada na tua memória, o sonho regressa, pelo menos o suficiente para te lembrares.» Nunca duvidei de nada do que a minha mãe me dizia, e por isso, porque ela sempre deu muita importância aos meus sonhos, eu prometi-lhe não me esquecer e contar-lhos sempre, de manhã, mal debruçava o meu rosto sobre a sua cabeça adormecida. Sopravalhe primeiro uma melodia ao ouvido e esperava até vê-la sorrir. Desta vez, só lhe poderia dizer que era azul. A cor era o azul. Mas não correspondia a nenhuma imagem sonhada. Não tinha forma, não tinha som, não tinha cheiro. Não era mais nada: só uma mancha azul, a flutuar no vazio. E o vazio é a minha cabeça. O vazio sou eu, mãe. Já não me lembro de nada. Ou quase.


Antes de me levantar, preciso de ler o post-it colado na mesa de cabeceira. «Os chinelos estão debaixo da cama.» E outro, colado nos chinelos: «Vestir o roupão, pousado sobre a cadeira, do lado esquerdo.» E outro, pousado sobre o roupão: «É preciso lavar os dentes todas as manhãs. A casa de banho fica à direita.» Há onze meses que não vivo sem estes recados para mim mesmo que escrevi e colei por toda a parte. Neles estão gravados todos os gestos do quotidiano que se foram aos poucos apagando da minha cabeça. Ainda não tinha 73 anos quando, no consultório do Dr. Fraga, ouvi pela primeira vez o diagnóstico irreversível: «Doença de Alzheimer.» No regresso a casa, após essa consulta, seguíamos pela autoestrada e o meu filho conduzia devagar, como se tivesse medo de chocalhar ainda mais o meu cérebro e aquilo que se começara a partir lá dentro. «O céu está enevoado», disse eu, a querer culpar o nevoeiro pelo peso do silêncio entre nós desde que saíramos do consultório. Ele virou-se a três quartos, e respondeu como se eu lhe tivesse feito uma pergunta: «Estava bem azul de manhã. Às vezes é assim, fica nublado de repente. Daqui a pouco cai uma bátega de água.» Provavelmente não se apercebeu de que, por outras palavras, falava da minha cabeça e da queda da sua evidência sobre nós. Mas, depois, disse: «Bom. Já estamos mesmo a merecer uma boa chuvada, não?» Concentrou de novo o olhar na estrada, não conseguiu evitar o tique de franzir as sobrancelhas duas vezes. O tom era firme: «Temos de pensar no que fazer com a casa de Viana. O pai já não consegue conduzir, eu não tenho tempo p’ra andar p’ra cá e p’ra


lá. A casa está a cair de velha e a horta mais parece uma selva… Por mim, vendia-se já.» Debitou tudo muito rápido e, no pequeno compasso antes da frase final, agarrou mais o volante com as duas mãos e encolheu os ombros, a acentuar que aquelas palavras o libertavam de um fardo. Bom, mesmo bom, seria se ele não falasse comigo assim, a voz cheia de um delicado desdém que ensaiava a sua nova posição de superioridade perante mim. Estava zangado comigo porque já se apercebera de que a ordem da nossa relação se tinha invertido. Que estava tudo ao contrário, e que iria ficar bem pior. A partir daí ele ia tratar de mim como de um filho pequeno, tinha de ser; o Dr. Fraga fora cabal ao anunciar que a progressão, o desenvolvimento da doença seria mais ou menos lento, mas o quadro final de completa incapacidade e demência venceria sempre. A culpa, explicou ele, era de uma proteína presente nuns «emaranhados neurofibrilares» que se continuariam a desenvolver dentro das células do meu cérebro. Uns emaranhados, uns novelos, tão intrincados como os movimentos dos carros que agora rodeavam o nosso por todos os lados, a várias velocidades, dissociados, mas juntos a formarem uma enorme serpente que deslizava sempre na mesma direcção, sem nunca se virar, sem nunca olhar para trás. O meu filho tinha apenas uma mão sobre o volante, rodava-o de forma ligeira, mostrando pleno domínio de si mesmo e do meu velho Mercedes, fazendo-o rolar pela segunda faixa da auto-estrada, a velocidade constante. A partir daquele momento, ele iria conduzir assim também a minha vida. Mas, antes disso, eu tinha uma coisa muito importante para lhe dizer. Poisei a mão ligeiramente sobre o braço direito dele e apertei-o com firmeza. Esperei que ele voltasse a cabeça e me olhasse nos olhos. Então, disse:


«Eu posso até perder a memória e o juízo todo. Mas tu, promete, não te vais esquecer nunca, de nada.» Eu sei, eu lembro-me: tenho 73 anos e sofro da doença de Alzheimer. Melhor, sofri com a doença de Alzheimer. Agora, já não. Primeiro, foi o pânico. Por que terei eu colocado o boné dentro do frigorífico? O que faz o meu creme de barbear na prateleira dos tachos e das panelas? E que sentido superior pode existir no facto de eu perder todos os relógios suponho que logo alguns minutos depois de – tenho a certeza, disto tenho mesmo a certeza – os colocar no pulso? Será que houve um momento em que quis que o tempo parasse? Que o quis com muita, tanta força e o meu desejo se realizou e eu entrei neste mundo onde não reconheço nem o tempo, nem o espaço? Onde é que eu estou mesmo? Quem é que eu passei a ser? Por que é que aos poucos até me esqueço de quem fui? Depois, rapidamente, o desespero cedeu ao riso. Continuei a tomar a medicação indicada pelo Dr. Fraga, mas já sem quaisquer ilusões. Aceitei o meu desnorteio como um companheiro novo. Ele iria acompanhar-me, pegajoso, até eu morrer. Passei a rir-me com ele. Agora acho curioso, hilariante mesmo, como os objectos rodopiam sem rumo à minha volta, num turbilhão de escovas de dentes, colheres, papéis, tubos de cola, formas para bolos, livros, sapatos, roupa interior, copos, canetas, pratos, escovas, guardanapos de papel, pacotes de alimentos, afinal tudo coisas inúteis porque nunca estão naturalmente no sítio certo, como dantes, e eu esqueci-me do que era suposto fazer com elas e o que era suposto eu fazer com elas perdeu qualquer tipo de importância. Um dia, o meu filho sugeriu que eu passasse a escrever notas para mim mesmo, que assentasse tudo, e trouxe-me uma caixa inteira de post-its. Sei que devo ter feito algo mesmo muito errado – qualquer coisa com chamas… – porque entretanto chegou uma altura


em que me obrigou a aceitar a presença de uma enfermeira aqui em casa durante o dia. Como é que ela se chama? Tem uns dentes muito brancos, isso sei, porque gosta de rir como eu quando descobrimos algum resultado inusitado de algumas das minhas «falhas de memória» e, com ar de menino muito aplicado, mas meio-divertido, eu digo: «Eu tentei. Juro.» Vivo no meio de uma corrente de pequenos mosaicos amarelos, que são as minhas únicas âncoras no dia-a-dia. Estou encurralado nesta casa de onde quero sempre sair. É raro deixarem-me. Fechamme a porta do lado de fora. Hoje, está aberta. Vejo a porta da rua aberta, ao fundo do corredor por onde caminho. Nas paredes, de um lado e do outro, estão pendurados alguns dos quadros que me tornaram famoso. Pelo menos, é isso o que diz o meu filho, que os resgatou aos coleccionadores a quem eu antes os tinha vendido. Esperava ele que, ao ver os meus trabalhos mais conseguidos, eu recomeçasse a pintar. Não, eu não quero mais pintar. Nem é porque não consiga – embora isso seja certo. Há qualquer coisa nestas telas que se desligou de mim e seguiu sozinha. Parecem sonhos, mas já não são os meus. Quando os observo, dentro da minha cabeça chocam entre si fragmentos de ideiasfantasmas, figuras incompletas, até sons, refrões estilhaçados, notas soltas. Mãe, cada vez me lembro menos do que significam. Já não te posso contar quase nada. Sinto que a enfermeira está na cozinha, a preparar a pequena rotina do meu pequeno-almoço. Há-de pôr cada objecto em cima da mesa, com requintes ritmados e organizados. Há-de dispor tudo numa teia como a da aranha, e depois virá buscar-me. Para me mostrar mais uma vez que eu já não sei a ordem certa das coisas, a ordem natural do mundo, nem o que ele significa. Para me levar a comida à boca.


A tela é esta, estou certo. Por pouco não passei por ela sem a ver. Estava tão concentrado nos meus pés e nos chinelos listados e ridículos em que estão enfiados. «Parecem uma passadeira de peões», pensava eu, quando o vi pelo canto do olho. O que é ridículo também, porque é um quadro grande, maior do que a minha estatura. Quase consigo entrar dentro dele. Provavelmente, o azul de que me lembrei era este. Uma cortina de azul vibrando sobre os vapores da canícula de Verão, quando até a terra transpira e as formas das árvores se dissolvem ali ao fundo, junto à primeira mancha branca das casas da vila. É quase hora do almoço. Sei-o pelas sombras do telheiro a esticarem-se no chão, prestes a chegarem ao renque de brincos-de-princesa que a minha mãe plantou mal chegámos a Viana. Tenho a boca a saber a amoras e de certeza que manchei a roupa com nódoas que ninguém vai conseguir remover. Acho que estou um pouco preocupado com isso, enquanto, assim, sentado à soleira da porta da cozinha, desenho formas de bichos, a raspar com uma caninha a poeira do chão vermelho do pátio. Devo estar vestido com os calções de peitilho, os de que não gosto, porque me apertam muito e me dão uma permanente vontade de fazer chichi. «Mijar», o meu pai insiste em que devo dizer «mijar», mas eu tenho medo de que a minha mãe oiça. Se ela me ouvir dizer essa palavra, é quase como se me visse mesmo a fazê-lo e eu já não me mostro a ninguém. A minha mãe parece-me leve como o ar enquanto a vejo subir o caminho estreito de regresso do tanque, entre as laranjeiras. Leve mesmo com o peso do alguidar das roupas apoiado numa das ancas. Eu tenho seis anos e mais força do que nunca. «Rijo e valente» – assegura a minha avó. «E capaz de dar ao dente.» Não sei bem o que fazer com a minha força, que pulsa nas minhas veias e nos meus músculos como um formigueiro, mas, se pudesse, pegava agora a


minha mãe ao colo e fazia-a rir com uma corrida rápida até ao estendal. Ela não olha para mim. Fico aliviado porque assim ela não vê já as minhas nódoas e posso ficar aqui mais um bocadinho, quieto. As galinhas picam o chão seco, revolvem torrões de terra à cata de um grão de milho esquecido ou de um bocado de pão torrado pelo sol. Cacarejam quando se cruzam umas com as outras entre os seus círculos de pesquisa e olham-me de lado, com o pescoço muito esticado e o ar alerta dos sentinelas. Não gosto de galinhas, nem dos cheiros da capoeira. Dão-me náuseas. Tenho nojo até das penas que vêm agarradas aos ovos quentes, acabados de tirar do choco. Há pouco tempo, sonhei que um pinto nascia na minha cama, ao meu lado. O ovo era gigantesco e ocupava o espaço quase todo. Eu estava num dos lados, encostado contra a parede. Com terror, vi a casca fender-se e, no entanto, o que saiu de dentro dela era muito pequeno, uma forma esbranquiçada e penugenta com um interior avermelhado, mas translúcido, e dois olhos cobertos por uma camada transparente de muco gelatinoso. A coisa tinha saltado e estava na palma de uma das minhas mãos, a apontar na minha direcção um bico inquisidor e os olhos salientes, inchados, como se fossem explodir. O medo tinha-me paralisado os gestos. Para fugir, só me restava fechar os olhos. Fechei-os e, no escuro, passei a ser eu o pinto, dentro da casca, apertado e sem saída. Em seguida, tive a noção exacta de que estava dentro de um caixão pequeno, transportado sobre os ombros de dois homens. Um deles era o meu pai e estava a chorar. Quando lhe contei este sonho, a minha mãe disse que, com toda a certeza, aquele pinto era o meu irmão mais velho. Morrera poucos dias depois de eu fazer três anos. Ele tinha sete e caíra de uma árvore, onde estava empoleirado a comer cerejas. Levaram-me ao


funeral e eu passei o tempo todo a brincar sorridente com uma bola que alguém me havia oferecido nesse dia. Sentado à soleira da porta da cozinha, atiro pequenas pedras às galinhas. O meu pai nunca me falou naquele irmão. Se calhar é porque traz ao pescoço uma medalhinha e lá dentro – a minha avó disse-mo – estão dois anéis de cabelo ralo de criança muito pequena: um castanho, outro muito loiro. O castanho era do meu pai, o loiro, do meu tio. Eles eram gémeos falsos. O tio António morreu aos nove anos, afogado no poço da horta. Nunca ninguém descobriu onde estava o meu pai naquela hora, a que, num sussurro, chamavam «fatídica». A minha avó costuma dizer: «Nesta família, um está bem, dois é de mais. Deus assim o quis.» Eu estou proibido de me aproximar da picota ou de ajudar na rega. A morte já esteve perto de mim, mas ainda não tenho medo de nada. Como o meu pai, toda a vida me pus a imaginar esse irmão morto e o que ele seria se estivesse vivo. A minha mãe gostaria mais dele do que de mim? Eu era um menino bem comportado e perguntava sempre: «Tu tens gorgulho em mim?» E ela ria, porque gorgulho era o insecto que atacava o milho. Mas não me corrigia nunca, antes insistia: «Tenho sonhos, muitos sonhos. Sonho contigo e com o que vais ser no futuro, meu tico de gente.» Nessas alturas, o futuro surgia-me tão límpido como um banho no rio, quando ela me segurava nos braços e me ensinava a nadar. O meu futuro não podia ser muito diferente daquilo a que eu assistia sozinho no telhado, ainda de noite, sentado nas telhas a escutar os primeiros cacarejos insistentes dos galos a darem eco às sombras e a anunciar a alvorada, até os raios ainda entorpecidos e lentos do sol se derramarem em ouro sobre a planície. O meu futuro era a mesmice dos dias na casa da minha infância, interrompida só pelos cambiantes de luz e de cor, pela mudança das estações. Quando ainda não havia tempo porque eu tinha o tempo todo.


Que me interessa se não sei quem sou hoje? Que me interessa se o meu filho vendeu a casa de Viana e eu já não consigo ir lá ter sozinho? Eu estou sentado à soleira da porta da cozinha, a fazer riscos no chão e a esperar pelo almoço, num dia igual aos outros. Ainda posso ser tudo porque ainda não sou nada e está tudo no sítio certo. E disso eu lembro-me. Vejo os braços nus de minha mãe a segurarem os lençóis brancos e a pendurá-los sobre a corda do estendal, bem esticados. Há uma brisa muito suave que os faz esvoaçar. Tenho um pouco de fome. Daqui a nada, vão dizer-me para ir a correr chamar o meu pai à oficina e eu vou espalhar as pedras e o pó com a força dos meus pés a palmilharem o caminho, a competir com os pavilhões de nuvens que riscam o céu muito azul sobre a minha cabeça. Agora, apetece-me correr e não posso. Estou quase a chegar ao fim do corredor desta casa com os tectos apainelados e as paredes cheias de quadros que se movem em torno de mim como carros nas auto-estradas: sem me olharem, sem me tocarem, obstinados em chegar depressa a lugar nenhum. Sou um homem velho, estou metido num corpo diferente, mas quero andar até esgotar as minhas forças. Quero ir até ao fim do corredor, sem dizer nada ao meu filho, sem dizer nada a ninguém. A minha avó costumava dizer: «Nesta família, um está bem, dois é de mais. Deus assim o quis.» Hoje, deixaram a porta aberta. Colado no espelho do aparador da entrada, está um aviso amarelo, maior do que os outros: «Nunca sair. Não sair nunca. Avisar alguém.» Mas eu vou espreitar o que está lá fora. Quero ir ver as galinhas a picar o chão. A minha mãe a vir do tanque. As sombras a chegarem aos brincos-de-princesa. Tenho o meu irmão lá fora, à minha espera para irmos apanhar cerejas. Filipa Melo, “Velha Infância”, in o Prazer da Leitura.


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