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VENTO ESCREVE DE VIAGEM
Álamo Oliveira
Quando Borges Martins publicou Silêncio Vertical (1971) surpreendeu os habituais leitores terceirenses pela divulgação de uma poesia que tinha, a começar pelo próprio título do livro, uma coloração surrealizante, num tempo em que o surrealismo já era passado silencioso. Apesar de fora de moda da escrita poética, Borges Martins desenvolveu esse estilo não só com persistência mas também com um perfecionismo invejável. Colheu desenvoltura e talento sobretudo na coletânea publicada em 1999, titulada por Nas Barbas de Deus. De alguma forma também, terá sido o último surrealista português assumido.
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Borges Martins escrevia por vocação dentro de um espaço vivencial tocado pela espontaneidade. Isto é: não era poeta de horários preestabelecidos. Escrevia abusivamente em excesso, sem escolher hora nem lugar. Podia atingir as duas centenas de poemas sem interrupção, sob as admoestações da companheira que procurava poupar-lhe a saúde. Mais tarde, Borges Martins separava o trigo do joio. As centenas ficavam reduzidas a dezenas. O seu sentido crítico, desmotivado das emoções poéticas, passavam para a escolha de um título que despertasse a curiosidade do leitor. Os desafios titulares eram sempre convincentes: Silêncio Vertical, Por dentro das Viagens, Galope em 4 Esporas, Cardiolírica, Mitologia das Armas, Os Deuses Morrem de Costas, Salmo à Rainha de Sabá e Outros Poemas, Nas Barbas de Deus. Todos estes títulos vestem 270 poemas, que se perseguem numa evolução temática que, inicialmente, não disfarça o regionalismo, conquistando depressa o universal. Dizse universal porque se ajusta a temas sociais problemáticos e contundentes: a fome, a corrupção, a guerra, a hipocrisia, a amoralidade e imoralidade, o poder ditatorial, a barbaridade da injustiça. Mas esta poesia também fala dos nobres valores sociais, destacando o amor. pedrosa, respondeu: «Nem penses nisso.» Leitor viciado, Victor Rui Dores escreveu que «A poesia de Borges Martins combate a simplificação hipócrita da vida e quer decifrar o enigma dos dias. Para isso, mergulha no lado de lá da verdade ilusória, socorrendo-se da metáfora surrealista, instrumento privilegiado deste poeta.»
Quando se entendeu organizar a reedição da poesia de Borges Martins – a qual, há muito, se encontrava esgotada ou inédita – foram previstos esforços atendendo à forma mais ou menos anárquica da sua escrita. Porém, isso não aconteceu. Até os poemas inéditos estavam arrumados em pastas, embora não subjugados a título. Também os poemas não selecionados devem ter levado tolerado sumiço. Esta arrumação não inspirava um título genérico para a poesia reunida de Borges Martins, mas uma pequena folha de papel trazia sugestões como esta O Vento Escreve de Viagem, título destinado a lembrar os seus «30 anos de poesia». Foi o t´tulo utilizado, uma vez que os tais trinta anos estavam já ultrapassados e a ideia fora do próprio Poeta. anos de poesia». Foi o t´tulo utilizado, uma vez que os tais trinta anos estavam já ultrapassados e a ideia fora do próprio Poeta.

Borges Martins, como quase todos os poetas da sua geração, publicou os seus primeiros livros a expensas próprias, fazendo tiragens pequenas, mas que se vendiam nas livrarias locais e esgotavam. O investimento retornava quase sempre e não havia recurso a qualquer aliciamento de mercado. Só a partir de Os Deuses Morrem de Costas é que a poesia de Borges Martins conheceu casa editorial. No entanto, as suas antologias sobre improvisadores foram publicadas pela, então, Direção Regional dos Assuntos Culturais e pela Blu Edições. De resto, todos nos contentávamos com uma simples referência nos jornais de Angra.
Nas décadas de 60 e 70, que apanha uma geração de poetas terceirenses etariamente abrangente, havia dois diários em Angra que dedicavam algum espaço à vida cultural açoriana, mas com os cuidados de se mostrar que nada era anti-regime. Porém, a vida cultural era criativa e era tolerada. Borges Martins pertencia a esta geração.
O Vento Escreve de Viagem, conforme já foi referido, junta o que, eventualmente, será toda a poesia de Borges Martins. A sua família, herdeira do seu espólio, confiou-me contato com todos os escritos do Poeta. Agradeço penhoradamente a deferência.
O meu agradecimento ao Instituto Açoriano de Cultura por ter aceite e concretizado a minha proposta, o que veio permitir este nosso encontro na nobreza deste espaço.
Com a publicação de Cardiolírica (1984), Emanuel Jorge Botelho escreveu: «O corpo, o que o corpo pode corporizar é aqui (…) lugar por onde tudo passa, sítio de vida em vigília, vigilante aproximação a vigiados sítios da vida.// Por ele, para ele, passa a purificação de águas várias.// Livro de marca, livro marcado por um cinzelamento muito próprio, este Cardiolírica há-de ficar como «página» virada (…) na obra de Borges Martins.»
Toda a poesia do poeta de Nas Barbas de Deus é uma leitura lúcida, arrepiante e terna do fim do século e do milénio, com vivências, contradições, injustiças, conquistas científicas, ignorâncias não superadas, ideologias flageladas ou inconsequentes, etc.. É um retrato pintado a negro, onde o Bem anda condenado a ser subjugado pela prepotência do Mal, através de referências que evocam o sagrado e o profano.
Deixo este apelo: a poesia de Borges Martins cumpre, de forma especial a imposição de Natália Correia, que «a poesia é para comer», pois tem substância e condimento para entusiasmar o leitor mais cético e de maior fastio poético.
Apenas mais umas pequenas notas sobre a importância literária de Borges Martins, como esta afirmação dita espontaneamente por Pedro da Silveira: «Ele é o único poeta da vossa geração que terá maior projeção no futuro.» E eu?! – perguntei. Com uma gargalhada à
Termino, agradecendo à boa maneira do Poeta: «agradeço aos deuses a ternura de voltar/ a ser salgueiro branco folha aérea/ que o tempo apagou.»
Raminho, Janeiro de 2023