As idades do ser humano - Revista Novolhar, Ano 9, Número 41, Setembro e Outubro, 2011

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CPAD


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As idades do ser humano

Nossas jornadas, nosso aprendizado. Infância roubada ou vivida. A arte de bem envelhecer. Soleiras para uma nova etapa. Espaço para o jovem. O valor da fé.

ÍNDICE

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FOTOGRAFIA

Pinhole, o recurso da lata para fotografar

Ano 9 –> Número 41 –> Setembro/Outubro de 2011

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Frei Carlos Mesters faz 80 anos

Internet para pessoas com deficiência

GENTE

inclusão

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MÍDIA

Jornalismo: Profissão de risco

SEÇÕES

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NÓS E AIDS

REFORMA

Sexualidade HIV e AIDS

Tetzel não morreu

OLHAR COM HUMOR > 6 NOVOLHAR SOBRE > 6 notas ecumênicas > 8 DICA CULTURAL > 9 REflexão > 28 REtratos > 30 nós e aids > 32 fábulas de esopo > 33 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte sobre fotos: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Bianca Weber, Brunilde Arendt Tornquist, Dorothea Wulfhorst, Eduardo Campaña, João Soares, Luciana Reichert, Luciana Thomé, Mário Tessmann, Nelson Kilpp, Nice Ewald, Orlando Eller, Osvino Toillier, Paula Oliveira, Roberto Soares, Rodolfo Gaede Neto, Rogério Zimpel, Rui Bender, Santiago, Thaís Teckemeier, Valdemar Schulz, Vilnei Varzim.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

Espelho, espelho meu!

U

ma das experiências mais frustrantes de todo ser humano é olhar-se diariamente no espelho e acompanhar as dramáticas transformações que o tempo, implacável, vai imprimindo ali. Cada dia é uma nova surpresa. Não há somente rugas para ver. A própria vida e o seu processo desgastante vão estampando e esculpindo um perfil que, sem a visão de si próprio no reflexo prateado, passa despercebido. A gente não se sente tão marcado quanto aquela imagem que aparece reveladora aos nossos olhos na superfície polida. As idades do ser humano são como uma espécie de corrida de obstáculos. Cada barreira é uma luta distinta; cada marca ultrapassada é o enfrentamento do novo e a saudade do que se foi. Enquanto nos acostumamos ao novo momento que vivemos – às vezes com muita relutância –, ergue-se em nós o ciclope da saudade do que se foi. É como ter que levantar-se e não querer sair da cama. Entretanto, a vida não é só uma sequência de lutas de passagens. Ao longo do processo, a gente vai adquirindo experiência e, quiçá, sabedoria. E essa é a lição mais saborosa dos anos que passam pela gente de modo tão fugaz. A vida não é só compreendida a partir do ângulo biológico, mas sobretudo a partir da riqueza das vivências. As diversas fases pelas quais passamos e o processo de luto e de aprendizado que cada uma delas representa são o tema desta edição. “É preciso saber viver”, diz a canção que Roberto Carlos popularizou nas “jovens tardes de domingo”. Hoje também Roberto olha a vida a partir de seus 70 anos, completados no dia 19 de abril, certamente com a visão que só o alto da colina dá ao espectador. Se você é jovem, tome assento por algumas horas e aprenda com quem já escalou a colina da vida. Se você está lá no alto, aproveite a vista. A vida é boa em qualquer idade. Nós é que, muitas vezes, não sabemos aproveitar bem a lição do momento, forçando a barra e problematizando onde não há problema algum. A sabedoria vem com o tempo. Mas já é possível sorver generosos goles dela a partir da experiência alheia. Nesta edição, enchemos o copo para você. Equipe da Novolhar

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opinião DO LEITOR

LIVROS DA SINODAL

Para reflexão e percepção

Campanha para ser vivenciada

Li todas as matérias da edição de julho/agosto e parabenizo o Conselho Editorial pelo tema central: “Sus­ten­ta­bi­ lidade – Em defesa do planeta”. A capa é muito linda e fortemente sugestiva do que está acontecendo com nosso planeta. A abordagem do tema sus­ten­ tabilidade sob vários enfoques permite uma riqueza imensa para a percepção da questão, contribuindo para a reflexão do leitor e incentivando o debate e ações concretas. Parabéns. Com o intuito de colaboração, faço uma pequena observação: na página 20, na identificação da assessora Julia­na Mazurana, constou Fundação Lut. de Diaconia. Nós sabemos que é Lu­te­rana, porém, será que o leitor fora de nosso meio sabe? Miltom de Oliveira – por e-mail Nova Lima (MG)

A Campanha Nacional de Ofertas para a Missão Vai e Vem 2011, Esperança e Compromisso, que é realizada em todos os sínodos da Igreja /Evangélica de Confissão Luterana no BrasilIECLB, enche-nos de esperança, mas também delega a nós o compromisso de vivenciar o evangelho e possibilitar que outros tenham a mesma oportunidade. A Paróquia da Missão, em Manaus (AM), a paróquia da IECLB mais ao norte do país, com o objetivo de auxiliar na missão de Deus, com muito carinho confeccionou pequenas casas (em EVA), em forma de cofrinhos, e distribuiu para todas as famílias que fazem parte da paróquia. A iniciativa tem se mostrado muito boa, pois todos estão participando. Traudi M. Kraemer – por e-mail Manaus (AM)

Leitura de todo luterano Sou assinante novo e recebi hoje o meu primeiro exemplar da revista Novolhar. Gostaria de parabenizá-los pela excelente revista e os bons artigos nela inseridos. Os temas tratados são atuais e pertinentes. Esta revista deveria ser mais divulgada em nossas comunidades; deveria ser uma leitura de todo luterano. Com tristeza li o artigo “O templo dos leprosos luteranos”. Não há possibilidade de a IECLB recuperar o templo e usá-lo para outros fins, como retiros ou algo semelhante? É uma pena deixar apagar-se essa página da nossa história. Nilo Sérgio Krieger – por e-mail Brusque (SC)

Visite nosso site

Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Tema da próxima edição

A edição nº 42, de Novembro/Dezembro de 2011, terá como tema de capa QUEM É JESUS CRISTO?, seu significado para a fé cristã, os títulos e conteúdos cristológicos, Jesus como homem e como filho de Deus.

por Bianca Ücker Weber Tomar conhecimento e divertir-se simultaneamente são ingredientes de um aprendizado valioso. Os livros Aprender & Brincar – volumes 1 e 2 estão aí para contribuir nesse processo de partilha de saberes e sentimentos. Cada volume apresenta oito narrativas bíblicas com atividades lúdicas. No volume 1, o tema desenvolvido pelas autoras Márcia Blasi e Simone Engel Voigt é o cuidado de si mesmo e dos outros. Destaco as histórias A ovelha Bolinha (Lucas 15.3-7), Um mandamento pra valer (Mateus 22.34-40) e Amizade sem limites (Rute 1.1-22). No volume 2, Maria Dirlane Witt e Edson Ponick desenvolvem o tema do perdão, fomentando que perdoar e acolher o perdão são atitudes que promovem fraternidade e comunhão. Destaco as histórias Quem joga a primeira pedra? (João 8.1-11) e Vingança não é uma boa (Mateus 5.38-42). Os livros são ferramentas valiosas e podem ser utilizadas na família, na comunidade e na escola, proporcionando às crianças o conhecimento da história do amor de Deus pelo seu povo e incentivando-as para a vivência prática da fé. Aos pais e educadores: façam bom uso dessa valiosa ferramenta! Às crianças: boa leitura e muita diversão! BIANCA DAIANE ÜCKER WEBER é teóloga da IECLB e atua na CEPA – Paróquia Maria Madalena e no Pastorado Escolar no CEMPDohms em Alvorada (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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olhar com humor

novolhar sobre

Boletos e recibos por João Artur Müller da Silva

Existe um prazo legal para conservar documentos de acordo com o Código Civil. A lei regula o período em que os documentos podem ser necessários no caso de uma reclamação ou algum problema judicial. Passado o prazo previsto em lei, o credor perde o direito de reclamar a cobrança. Os comprovantes de pagamento são necessários também para a comprovação de faturamento da conta em casos de cobrança indevida. Os prazos variam de um até 20 anos. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) recomenda observar os seguintes prazos: Aluguel: cinco anos. Cartão de crédito: somente até a chegada da fatura. Condomínio: 20 anos. O consumidor pode exigir, a cada 12 meses, uma declaração da administradora que comprove os pagamentos. Consórcio: até a quitação total das cotas e a liberação da alienação fiduciária incidente sobre o veículo ou bem material. Contas de água, luz, telefone e gás: um ano. Convênio médico e planos de saúde: 20 anos. Esse é o prazo de prescrição para exigir na justiça a devolução de eventuais pagamentos inde­vidos, como casos de aumentos abusivos. Imóveis: até que seja feito o registro da escritura no Cartório de Registro de Imóveis. Mensalidade escolar: um ano. Se forem declaradas no IR, com o objetivo de dedução, é necessário guardar esses recibos por cinco anos. Notas fiscais: pelo menos até a validade da garantia dada pelo fornecedor do produto ou serviço. Imposto de Renda: cinco anos, contados do primeiro dia útil do ano seguinte ao do pagamento. É preciso guardar também todos os recibos declarados no IR nesse período. JOÃO ARTUR MÜLLER DA SILVA é redator da revista Novolhar em São Leopoldo (RS)

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última hora

Divulgação Novolhar

Cuidado com quem sente dor

O maestro Acácio Santana, à frente do coral de Rancho Queimado

Morre o maestro Acácio Santana

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orreu no dia 11 de julho em Florianópolis (SC), vítima de câncer, o músico, arran­ ja­dor, compositor, poeta, professor e maestro catarinense José Acácio Santana. Santana, católico de nascimento e ecumênico na prática, dedicou sua vida a serviço do som e da palavra, ministério que iniciou já aos sete anos de idade. Mais de três mil obras constituem o saldo da vida artística desse músico e poeta de intensa capacidade produtiva. Consagrado internacionalmente, sua paixão eram os pequenos grupos artísticos e comunidades, para cujos corais ele adorava compor. Pioneiro no Brasil nas composições litúrgicas pós-Concílio Vaticano II, Santana possuía invejável unidade musical e literária em suas composições.

Sua atuação na área cultural mereceu-lhe grandes homenagens, entre elas a Medalha do Mérito Coral Brasileiro, o Mérito Cultural da Universidade Federal de Santa Ca­ta­rina, a Medalha do Mérito Anita Garibaldi, a Batuta de Ouro, o título de cidadão honorário de mais de 30 municípios brasileiros. Atendeu mais de 1.500 corais no Brasil e no exterior. Só em Santa Catarina mais de 1.000 grupos se beneficiaram do seu trabalho. Especialista em Canto Coral Sacro, José Acácio Santana era graduado em regência e composição em Colônia, na Alemanha. Desde 1962, trabalhava no incentivo do canto coletivo e acessível ao público. José Acácio contava com seis cursos superiores em música, 900 obras ensaiadas, dez discos produzidos, criação de mais de 200 corais e 3.000 concertos. N

Está marcado, para os dias 24 a 26 de outubro, na capital catarinense, o Congresso Brasileiro Ecumênico de Assistência Espiritual Hospitalar. Esse é o décimo segundo congresso, promovido pela Associação Cristã de Assistentes Espirituais Hospitalares do Brasil-ACAEHB. O encontro será no Morro das Pedras Praia Hotel, no sul da Ilha de Santa Catarina. O tema que congrega capelães hospitalares, assistentes espirituais, voluntários e profissionais da saúde é “Cuidando do Ferido e do que Sofre”. Serão palestrantes o Dr. Hilde­ bran­do Couto Scofano, que apresenta os diversos aspectos da dor e do sofrimento em relação à enfermidade, no aspecto físico do sofrimento agudo, e a Dra. Marta Rinaldi Müller abordará o sofrimento crônico. Já o pastor Rui Petry irá abordar a dor e o sofrimento a partir do aspecto espiritual, enquanto a psicóloga Susana Rocca falará sobre o aspecto psicológico de dor e sofrimento. Também haverá diversas oficinas para os participantes, sobre cuidado de quem cuida, com a psicóloga Roseli Kühnrich de Oliveira; uso da Bíblia e atos litúrgicos com a pastora Mayke Marliese Kegel e a diácona Valmi Becker; cuidando dos enlutados, com Laura Lisboa de Souza e a pastora Vera Maria Immich; subsídios para a pastoral hospitalar com o padre Anízio Baldessin; e resiliência com a Dra. Susana Rocca e o pastor Luiz Eduardo Toledo. Ao final, haverá uma mesa-redonda sobre esperança em meio a dor e sofrimento, com o Frei Luiz Antonio Frigo, o professor Celso Loraschi e o Dr. Vanir Cardoso. O prazo das inscrições termina no dia 30 de setembro. Maiores informações pelo telefone 48/3721-8041 ou 48/8416-0999. Também pode ser pelo e-mail: congresso.florianopolis@ N gmail.com. NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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ÁGUA

Divulgação

O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) apoia a Rede Ecumênica da Água como uma das muitas plataformas que demonstram o vínculo entre a paz e a natureza e a paz entre pessoas que se encontram em conflito por causa dos recursos vitais.

OLAV FYKSE TVEIT é secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra-Suíça

Solidariedade As imagens que vimos da Noruega nos assustaram, porque nunca teríamos imaginado que elas poderiam provir de um país com uma cultura de paz. Nós que procuramos a paz e recusamos todas as ações violentas queremos expressar nossa solidariedade com o povo norueguês, que neste momento sofre dor como consequência das mortes e lesões em tantas famílias. Nilton Giese é secretário-geral do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Clai)

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Consenso O documento “O Testemunho Cristão num Mundo de Pluralismo Religioso: Recomendação sobre a Prática do Testemunho” nasce depois de uma série de consultas realizadas em cinco anos e que envolveram o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), o Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso (CPDI) e a Aliança Evangélica Mundial (AEM). As três organizações incluem as igrejas católica, ortodoxa, anglicana, protestantes, evangélicas e independentes, que juntas têm cerca de dois bilhões de membros, quase 90% dos cristãos de todo o mundo.

Inconformidade

Chris Black / CMI

Notas ecumênicas

Saúde pública será o foco da Campanha da Fraternidade de 2012 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Também o tema da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de 2012 está definido: “Todos seremos transformados pela vitória de nosso Senhor Jesus Cristo”, baseado na carta do apóstolo Paulo aos Coríntios.

Devemos ser agentes de inconformidade em nossas igrejas. Temos que trabalhar constantemente para desestabilizar as estruturas e culturas opressivas. Rev. Deenabandhu Manchala – coordenador do programa de Comunidades Justas e Inclusivas do CMI


Prêmio

A Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) concedeu o Prêmio Margarida de Prata, na categoria longa-metragem, a Dorrit Harazim e Arthur Fonseca, realizadores do documentário “Família Braz – Dois Tempos”. Dez anos depois de documentar o cotidiano de uma família do bairro popular de Brasilândia, em São Paulo, a dupla de cineastas voltou ao mesmo lugar e buscou os mesmos personagens para mostrar as transformações ali ocorridas.

DPA

Pastor ouvidor

Margot Kässmann, pastora e teóloga alemã, ex-bispa da Igreja Evangélica de Hannover e ex-presidente do Conselho da Igreja Evangélica da Alemanha (EKD, sigla em alemão), será a embaixatriz da denominação para as celebrações do Jubileu da Reforma 2017. A partir de 2012, ela vai coordenar os preparativos para as comemorações dos 500 anos da fixação das 95 Teses de Martim Lutero na Schlosskirche (Igreja do Castelo, em Wittenberg).

Divulgação Novolhar

Reforma 500 anos

O pastor Teobaldo Witter, 60, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), foi escolhido de uma lista tríplice pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH-MT) e nomeado pelo governador Silval Barbosa para a função de ouvidor da Polícia do Estado de Mato Grosso.

dica cultural

Em sua origem, a palavra latina anima significa “sopro da vida”. Desde 2007, ela tem sido emprestada para dar nome ao grupo Anima, formado por estudantes e professores da Faculdades EST, de São Leopoldo (RS). Nesses quatro anos, o grupo tem se destacado como um dos mais importantes propositores da renovação musical e litúrgica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Em seu segundo CD, “Nas asas do vento”, o grupo Anima traz canções da hinologia contextualizada de compositores brasileiros como Edson Ponick, Cláudio Kupka, José Acácio Santana e de seu próprio fundador e mentor Rodolfo Gaede Neto. Há também interpretações de compositores estrangeiros. Ao todo são dezessete músicas, muito bem arranjadas e executadas. Destaques para a faixa 6, “Pelas dores deste mundo”, já traduzida para vários idiomas e internacionalmente conhecida, e para a faixa 8, “O exemplo de Cristo”, uma composição antiga de Gaede que ganhou maravilhosa roupagem sertaneja.

Reprodução Novolhar

Nas asas do vento

Esse CD apresenta canções cuja mensagem é comprometida com a vida, a justiça, a paz e a integridade da criação. Numa época repleta de celebridades pop religiosas, portadoras de mensagens duvidosas, o CD do grupo Anima é certamente uma bela opção cultural. NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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CAPA

Nossas j nosso apr A vida do ser humano é feita de perdas e ganhos, obstáculos e conquistas, lágrimas e sorrisos. E são as lembranças e superações que constroem a base daquilo que somos. Sejam bem-vindos à existência! por Luciana Thomé

Zaneta Hardy

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a vida, passamos por diferentes idades. Algo que pode ser comparado a um álbum de fotografias, com imagens guardadas em ordem cronológica, trazendo diversos registros. As descobertas do bebê, os primeiros sorrisos da criança, as brincadeiras e o colorido. A rebeldia do jovem e as primeiras decisões do futuro. A responsabilidade do adulto e as conquistas na família e na profissão. A estabilidade emocional e o conhecimento do adulto maduro. São etapas que trazem dores e obstáculos a serem superados, mas que também proporcionam beleza e felicidade. A vida é imprevisível, e nem sempre estaremos


preparados para tudo. No entanto, guardar o que nos faz felizes, como fotografias coloridas da nossa memória, faz toda a jornada mais bonita e valorosa. Sejam bem-vindos à existência! Segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 190.755.799 habitantes. No levantamento, foram constatados a diminuição da população de crianças (que representam 7,6%) e o aumento dos idosos (7,4%). O crescimento absoluto da população nos últimos dez anos ocorreu principalmente em função do crescimento da população adulta. A idade é medida por tempo. No dito popular, costuma-se contar a existência de sete idades: aparente, psicológica, emocional, biológica, espiritual, social e cronológica. Essa última, que consta em documentos oficiais e que corresponde à quantidade de anos que possuímos desde o dia em que nascemos, será o nosso foco. De zero a dez anos, passamos pela infância. Dos dez aos 20 anos, é a vez da adolescência. O adulto jovem é a fase entre 20 e 40 anos. E o adulto maduro possui de 40 a 60 anos ou mais. Estamos no mundo prontos para os desafios. Posso ser criança, jovem ou adulto e me considerarei pronto. Mas podemos mesmo nos organizar para absorver os aprendizados e problemas de cada idade? “É possível nos prepararmos para esses aprendizados, mas é muito difícil pela imprevisibilidade da vida”, explica a psicóloga Gisele Coutinho. Bem, prontos ou não, aqui vamos para a viagem rumo às diferentes etapas do ser humano. Com a ajuda da psicóloga foram reunidas as informações a seguir, para ilustrar cada fase com

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Annika Banfield

ornadas, endizado

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alguns detalhes, passando por suas conquistas, conflitos, lutos (que são as perdas ao longo da vida) e prazeres.

Infância 1 Idade: de zero a seis anos. Conquistas: É o momento em que o bebê sai do ventre da mãe e passa a descobrir o mundo ao seu redor. Conhece as pessoas, o sabor dos alimentos e a cor dos objetos. Conflitos: Os conflitos acompanham toda a vida do ser humano. Quando criança, precisa aprender a se comunicar, locomover e a atingir objetivos de forma independente. Lutos: Existem vários lutos simbólicos nesta fase. Quando o bebê sai do período de amamentação ou para de usar fraldas, por exemplo. São momentos em que não possui controle sobre alguns fatos da vida, e isso gera sofrimento real. Prazeres: Seu maior prazer é explorar as coisas e buscar conhecimen-

to através da interação com pessoas e objetos. Os estímulos servem como combustível para o desejo de integrarse ao mundo.

Infância 2 Idade: de seis a dez anos. Conquistas: A busca pelo espaço começa a mostrar-se mais forte. Mas as conquistas mais importantes estão relacionadas com o desenvolvimento cognitivo e a socialização. Conflitos: Os períodos pré-escolar e escolar trazem situações novas e conflituosas, além dos novos aprendizados. Mas o principal desafio é conviver com outros. Lutos: As perdas nesta fase estão mais ligadas a questões de relacionamento interpessoal. A criança percebe que vai perdendo espaço diante da família, e os familiares começam a incentivar sua independência. Prazeres: Existe um prazer muito grande em poder estar inserido em um grupo e sentir-se ro­dea­do de “iguais”. Os hábitos vão se delineando de acordo com a personalidade de cada criança, agora mais crítica em relação ao que produz.

Luciana Thomé

Adolescência Idade: de dez a 20 anos. Conquistas: O adolescente quer ser reconhecido como único e especial. A busca da autoestima é a meta e maior conquista. Conflitos: O adolescente está rompendo com a infância e deseja mostrar

Gisele Coutinho: Cada fase da vida tem seus conflitos, conquistas, lutos e prazeres, que devem ser trabalhados, superados e celebrados

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que é capaz de tomar suas próprias decisões e ser valorizado por seu estilo, hábitos e grupo de amigos. Lutos: Esta é uma fase de muitos lutos. O rompimento com a infância gera um sofrimento contínuo, que ele tenta disfarçar por meio de rebeldia. É um momento de luta por seu espaço, pois, no mundo dos adultos, sente-se constantemente incompetente para viver esta fase. Sem saber o que fazer, tenta impressionar e acaba gerando situações de conflito. Prazeres: Busca atividades que lhe tragam emoção. Gosta de sentimentos fortes e busca aquilo que fala por ele (atitudes, costumes, roupas).

Adulto jovem Idade: de 20 a 40 anos. Conquistas: Busca pelo reconhecimento na sociedade por meio de habilidades e interesses. A escolha da profissão ocorre realmente nesta fase, pois o amadurecimento de sua auto­estima e o autoconhecimento geram uma base maior para a escolha do seu futuro. Conflitos: É um grande desafio escolher o que a pessoa vai fazer a maior parte do tempo de sua vida. É uma escolha que traz muitos conflitos internos e, em alguns casos, conflitos nos relacionamentos in­ter­pes­soais e familiares. Lutos: Também existem muitas perdas nesta fase. O adulto jovem está num momento intenso de busca e nem sempre consegue aquilo que almeja. Haverá decepções e perdas amorosas, morte de entes queridos e até mesmo separação do grupo de amigos.


Prazeres: A busca pelo conhecimento daquilo que escolheu para trabalhar, os hobbies, que se delinearam de acordo com sua personalidade, e o reconhecimento da pessoa com quem vai querer dividir todos os momentos são alguns dos prazeres desta fase.

Idade: de 40 a 60 anos ou mais. Conquistas: A estabilidade emocional começa a mostrar-se mais presente. O adulto maduro já passou por muitas coisas e está pensando no futuro de sua família. Nesta fase, as suas conquistas estão ligadas às conquistas familiares. Conflitos: Os conflitos desta fase estão relacionados com a necessidade que ele passa a ter para deixar as coisas acontecerem sem estar sob seu controle. É preciso entender que os filhos vão tomar caminhos diferentes do seu e o corpo não vai mais responder como antes. Lutos: A menopausa e a andro­ pausa envolvem alterações hormonais muito fortes nesta fase. A baixa na sexualidade gera um sentimento de perda e insegurança na vida conjugal. Além da sensação de “ninho vazio”, pois com a saída dos filhos os pais se veem sozinhos em casa novamente. E há também a aposentadoria, relacionada com a perda do trabalho, que pode gerar sofrimento. Prazeres: Vida profissional e cria­ti­vi­dade estão no auge. O adulto maduro está mais fortalecido em sua saúde mental para lidar com imprevistos e momentos difíceis da vida. Não existem padrões rígidos para cada fase. Com a velocidade do

Leandro Cavinatto

Adulto maduro

mundo moderno surgem diferentes tipos de comportamento. Há as crianças que crescem e amadurecem rápido demais, agindo como mini­ adul­tos. Há os adultos que demoram para sair da casa dos pais e formar suas próprias famílias e mesmo os que são chamados kidults, porque ainda consomem brinquedos e produtos que lembram a infância. Sem esquecer a terceira idade, que retomou o convívio social em bailes e encontros e, ao mesmo tempo, recuperou a atividade sexual com o auxílio de remé­dios, mas está enfrentando problemas com doenças sexuais, Aids e álcool. Em todas as fases, o sentimento de finitude pode acompanhar o ser humano. Uma das reações que mais chama a atenção em enlutados é a pena de si mesmo. No entanto, segundo a psicóloga Gisele, é possível lidar com os sentimentos nessas situações de morte ou perda. “É possível voltarse para o cuidado ao outro, gerando a

plena certeza de que, enquanto esteve com a pessoa em vida, fez tudo o que podia por ela”, ressalta. Mas há também, em todas as fases, a esperança, o desejo de atingir os sonhos e ser feliz e realizado. Cada idade é permeada de surpresas e desafios. É impossível definir qual é a mais difícil ou a mais fácil. “O que sabemos é que, com o passar dos anos, vamos nos preparando mais para os desafios. E a experiência pessoal de cada um é que vai marcar o tamanho da dificuldade de encarar as fases”, finaliza Gisele. Seja com um sorriso nos lábios ou lágrimas nos olhos, importantes durante a vida são o grupo que nos cerca, a família e os amigos que nos fazem felizes e comemoram nossas conquistas. Esse é um dos melhores aprendizados, válido para qualquer idade. N LUCIANA THOMÉ é jornalista em Porto Alegre (RS)

muito. r feliz me consome Claric e Lispector

; se Não tenho tempo pra mais nada

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CAPA

Eu morri... por Vilnei Varzim

M

Julio Filho

orri sim. Aliás, morri muitas vezes. Morri no dia em que fui lançado para fora do útero materno. Morri para aquele mundo pronto, gostoso, aconchegante. Saí chorando, agarrando-me indefeso, para um mundo do qual eu não tinha a menor ideia como seria. Era preciso “morrer” o bebê de útero para nascer

o bebê do mundo fora dele. Foi meu primeiro luto. A vida é feita de mortes e nascimentos. Para nascer uma fase, morre a anterior. Se há morte, há dor. Morreu o bebê do qual a mamãe trocava a fralda e nasceu o que tem controle. Morreu o bebê de colo, nasceu o bebê que caminha sozinho. Essas transições nem sempre são fáceis. É comum

ver crianças que avançam para uma nova fase e, momentaneamente, voltam à anterior como numa luta de não perder, de ter medo do avanço para o novo tempo. Os primeiros dias de escola constituem-se no “sepultamento” da criança de casa para nascer a que se socializa. Nessa fase, há o duplo luto: o da criança que se vê só e o da mãe que não consegue fazer o segundo corte do cordão umbilical. O tempo passa, e na sucessão dos lutos há um que provoca profundo sofrimento e dor: a adolescência. Na adolescência, é vivido um intenso conflito, no qual num mesmo corpo convivem uma criança com suas dependências, fragilidades, brinquedos e fantasias infantis e um quase adulto com desejos, hor­mônios e sonhos de “gente grande”. Morre lentamente a criança para nascer lentamente o adulto. Lentamente sim, porque pode necessitar de dez ou mais anos. Nesse luto, o adolescente perde a noção de quem realmente é. Ele pode ser a criança, o adulto ou ambos, várias vezes por dia ou por hora. Sem saber quem ele é, o adolescente usa uma linguagem complexa. Testa as figuras de autoridade a qualquer preço em busca de que alguém o freie ou oriente, já que ele mesmo não sabe fazer isso consigo próprio.

A vida é feita de mortes e nascimentos; para nascer uma fase, morre a anterior

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Michael Kaufmann

Nessa hora, entra o importante papel dos pais. Pais não foram feitos para ser apenas amigos dos filhos. Foram feitos para ser educadores. O amiguinho faz festa, brinca e se diverte. O educador regra, estabelece limites, orienta e dá colo. Muito colo. Ouve e lê o que está atrás do comportamento. Ler as entrelinhas do que ele diz é uma arte. Quando o adolescente tenta romper os limites estabelecidos ou agride verbalmente os pais, ele está declarando medo, fragilidade e, principalmente, busca de referenciais. Essas atitudes não são por falta de amor aos pais ou ao mundo ao redor. Pelo contrário, é um pedido de ajuda. Se, nesse momento, os pais estabelecerem discussão de igual para igual, em queda de braço, em nada contribuirão para a formação do caráter do filho. Não é hora de disputa; é hora de compreensão e orientação. A vida continua, e vem outra fase. Vamos chamá-la de adulta jovem, algo em torno de 20 a 40 anos, mais ou menos. Morre o filho que mora na casa, que tudo recebe dos pais, para encontrar um cônjuge. Do quarto só para a vida compartilhada, com seus encantos e mistérios. Com essa fase vêm também o trabalho, a administração financeira, o mundo novo. Novo luto. Para os pais, em especial as mães, um novo corte de cordão. Deixar pai e mãe, na Bíblia (Gênesis 2.24), implica que pai e mãe cumpriram sua etapa, e agora vem o tempo de não mais opinar ou interferir. Muitos são os adultos jovens e seus pais que não fazem essa

passagem de forma saudável. Filhos e filhas casados sistematicamente buscam os pais para pequenas e grandes decisões. E quantos desses pais entram no jogo e continuam sugerindo e opinando sobre o que não mais lhes pertence, atrasando o processo de crescimento e de emancipação dos filhos. Passada essa fase, vem a de adulto intermediário, entre os 40 e 65 anos, aproximadamente. As modificações do corpo, a menopausa, a aposentadoria, entre outros, vão construindo uma imagem nova e difícil para alguns. A mulher que não quer mais filhos também não quer perder a linda função que Deus lhe atribuiu: a reprodução. A aposentadoria lembra o fim da capacidade produtiva, em máxima escala, do ser humano. Por isso se faz tão importante o projeto de aposentadoria, iniciado muito antes que ela chegue.

As rugas e os cabelos brancos anunciam novos tempos. Novos, não piores. Morre o adulto intermediário, e nasce o idoso. Morrem algumas capacidades físicas e mentais. Nasce o ser experiente, dotado de uma maravilhosa capacidade de ver e compreender o mundo a partir de suas vivên­cias. Todo tempo que antes não tivera e toda experiência que antes não vivenciara estão à disposição para ser vividas intensamente agora. Como não há fórmulas prontas, cada um tem que chorar seu luto sem agir como a mulher de Ló, olhando para trás (Gênesis 19.12-29). Quem fica caminhando de costas, prendendo-se ao passado, deixa de viver o encanto da fase que está à frente. Se há fases anteriores ainda não bem resolvidas, resolva-as agora, para viver um futuro feliz. N VILNEI VARZIM é psicólogo em Pelotas (RS)

unho. Não faças de tua vida um rasc . á-la a limpoQuin tana Poderás não ter tempo de pass Mário NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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Infância roubada ou vivida? por Paula Oliveira

sucesso na sociedade pós-moderna é uma realidade e contamina os pais, levando-os a aumentar o nível de exigência sobre o desempenho dos filhos, que acabam se tornando crianças cheias de obrigações, pequenos adultos”, afirma a psicóloga clínica e psicanalista Vera Blondina Zimmermann. Segundo ela, existem con­se­quên­ cias para uma criança que não vive sua infância, porque é nessa fase que se configuram as experiências de vida que formam a base do psiquismo, ou

VERA ZIMMERMANN: Viver a infância implica uma certa dose de liberdade para experimentar atividades lúdicas e a expressão de afetos a respeito dessas vivências

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Paola Oliveira

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s brincadeiras tradicionais e lúdicas, com ricos elementos educativos, foram esquecidas nos dias de hoje, em que a violência e as exigências do mundo moderno trancafiaram as crianças em casa e na escola. Diante desse contexto, como preservar a infância e evitar que nossos filhos se tornem adultos precoces? Em pequenas cidades do interior, sobretudo no Nordeste, ainda é possível observar crianças brincando pelas ruas. Bonecas de pano, cantigas de roda e pipas caseiras fazem parte desse cenário atípico para os dias atuais, principalmente se olharmos as metrópoles. Nelas, a violência e a correria do dia a dia trancafiaram as crianças em suas casas, banindo do universo infantil brinquedos e brincadeiras que guardam elementos edu­ca­ti­vos enriquecedores. Limitadas pelo espaço físico, muitas crianças trocaram a sociabilidade desenvolvida nas brincadeiras de rua por cursos como judô, natação, inglês e reduziram suas opções de diversão a programas televisivos ou a solitários e competitivos jogos de videogame ou computador. Os pais, que trabalham fora, ficam mais ausentes da rotina familiar e por conta disso sobrecarregam os filhos com excesso de atividades para suprir essa ausência. “A pressão social para o

seja, da personalidade futura, bem como da saúde ou da doença mental. Fato é que a criança de hoje está mais passiva, sem cultura infantil, o que a leva a ter dificuldade de se expressar. O resultado do cres­cimento precoce é um grau de insatisfação que pode desencadear aumento de agres­si­vi­dade e dificuldade na criança de criar suas próprias opiniões, podendo inclusive distorcer a sua personalidade futura. “Os pais precisam ter em mente que são peças fundamentais para o desenvolvimento do filho e que nenhuma escola ou atividade pode substituir essa presença”, afirma. Viver a infância implica uma certa dose de liberdade para experimentar atividades lúdicas e a expressão de afetos a respeito dessas vivências. Claro que é importante conduzir a criança para o mundo dos adultos, mas de forma gradativa. Para a psicanalista Vera, resgatar a brincadeira tradicional é uma forma de melhorar a qualidade de vida das crianças e chamar a aten­ção dos


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pais para que dediquem mais tempo aos filhos. “A interação criançacriança e criança-adulto por meio do lúdico deveria ser mais discutida pela sociedade e pelos profissionais de educação”, completa. Apesar de a associação entre o lúdico e a educação ter sido marginalizada pelo estilo de vida do mundo contemporâneo e também por um ensino voltado à avaliação de desempenho, ainda existem centros de pesquisa preocupados com essa questão. Um deles é o Labrimp (Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos), da USP, que dispõe de um banco de dados sobre brincadeiras e brinquedos tradicionais brasileiros para auxiliar pais e profissionais da área de educação interessados em utilizar esse instrumento pedagógico em casa ou na escola. O laboratório inclusive empresta brinquedos para a criança utilizar em casa. Segundo a psicanalista, não importa qual seja a atividade lúdica, mas que haja trocas de afeto e ideias, pois o importante é gostar de estar junto e usufruir do prazer da companhia, descobrindo o filho e ficando feliz em tê-lo por perto. “O ser humano encontra maior realização quando consegue encontrar no trabalho escolhido o mesmo prazer que sentia ao brincar. Essa passagem do ‘brincar’ para o ‘trabalhar’ em harmonia é possível à medida que os pais possibilitam a criança ir descobrindo suas po­ten­ cia­li­da­des, bem como um espaço para de­sen­vol­vê-las no ritmo dela”, conclui Vera Zimmermann. N PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP)

Não tenhamos pressa, mas não

po. percamos tem José Saramago NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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por Luciana Reichert

S

egundo o último censo do IBGE, o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com a maior proporção de idosos: cerca de 14% da população têm acima dos 60 anos. A expectativa de vida no RS atualmente é de 76,5 anos. Envelhecemos desde sempre, mas esse processo se acentua a partir dos 25 anos de idade, e para prolongar a vida com saúde existe a geriatria. A geriatra Ligia Maria Kummel Lopes Louzada explica que a ge­ ron­t o­l ogia é a ciência que estuda o processo de envelhecimento, e a geriatria é a ciência médica que cuida de prevenção e tratamento junto a idosos. O trabalho do geriatra deve

ser multi­dis­ci­plinar. “Trabalhamos com nu­tri­cio­nis­tas, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, entre outras especialidades”, explica. Ligia diz que as con­se­quên­cias do envelhecimento dependem muito do estilo de vida da pessoa. Doenças como artrose e obesidade aparecem com a chegada da idade e podem ser prevenidas e recuperadas com os exercícios físicos. “A atividade física ajuda até mesmo na depressão, porque a liberação da endorfina melhora nosso sistema imunológico, o estado de espírito, uma série de outros fatores que promovem a qualidade de vida”, explica. São as mulheres que mais aparecem em seu consultório, antes mesmo da chegada da terceira idade. “A mulher ainda se cuida mais, e geralmente elas aparecem aqui após a menopausa,

Fotos: Luciana Reichert

A arte de envelhecer bem

BRÖNSTRUP: Boa solução para o casal no Lar Moriá

em torno dos 50 anos”, comenta. Para Ligia, a idade ideal para buscar atendimento médico para a prevenção de doenças é antes do nascimento. “Isso seria o ideal sempre. Aconselho as gestantes de que tudo começa por uma boa gestação. É nessa fase que já temos que ter cuidado com os hábitos alimentares. A mãe é responsável até mesmo pela parte psicológica da criança”, comenta. Mas ela frisa que nunca é tarde para corrigir maus hábitos. “Quando uma pessoa procura um geriatra, já está bem-intencionada”, brinca. As doenças que mais marcam a idade avan­çada ainda são as demências. Conforme a especialista, só após o diagnóstico médico é que se faz o encaminhamento do paciente. “Nem tudo é Alzheimer, como muitos gos-

MISSÃO: O Lar Moriá quer oferecer um lar a quem busca amparo, aconchego e dignidade de vida, mediante a convivência cristã

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chego e dignidade de vida mediante a convivência cristã. O local atende cerca de 70 pessoas. “Muitos acabam vindo para o Lar por opção”, diz. Como o caso do aposentado Arnilo Brön­strup, 89 anos. “Encontrei uma boa solução para mim e para minha esposa. Aqui converso com as pessoas com a mesma in­te­lec­tua­li­da­de, que melhoram os meus conceitos”, conta. No Lar, eles participam de diversas atividades e interagem com outras pessoas. Pintura, dobradura, teatro e viagens são algumas das atividades que fazem parte da vida da aposentada Dionéa Gonçalves de Oliveira, 71. “Enquanto eu tiver possibilidade de caminhar, ouvir, falar e sentir os

bons momentos, eu vou aproveitando a vida”, diz com imensa alegria. Para Hedwig Sofia Oderich, 97 anos, o Lar foi uma solução “quando a idade vinha se anunciando”. Ela, que ainda toca piano com maestria, diz que o ambiente, o contato com a família e as pessoas queridas ao seu lado são coisas que a fazem sentir-se bem. Em qualquer idade, o importante é extrair o melhor da vida, como fazem Arnilo, Dionéa e Hedwig. No consultório da doutora Ligia, uma placa resume o que pode ser feito: Aproveite a vida, só se é velho uma vez. N LUCIANA REICHERT é jornalista em São Leopoldo (RS)

PIANO: Hedwig Sofia Oderich toca o instrumento com maestria aos 97 anos de idade

tam de sentenciar”, revela. A perda dos neurônios ocorre todos os dias, por isso a atividade cerebral é sempre indicada, como leitura, jogos, entre outros. “Ainda existe um certo tipo de terrorismo em cima do idoso. Se um adolescente esquece algo, por exemplo, é normal, mas se é um idoso, o esquecimento é taxado como demência”, destaca. “O importante é fazer o que se gosta, ter projetos de vida, viver com alegria, participar de grupos de convivência”, frisa. A terapeuta ocupacional e dia­co­ni­ sa do Lar Moriá, Vilma Linda Reinar, reforça que o trabalho multi­dis­ci­ plinar é importante quando se fala em idosos. O Lar Moriá, localizado em São Leopoldo (RS), tem como missão oferecer um lar a pessoas idosas e outras que buscam amparo, acon-

O tempo é um ponto de vista. e... o do que a gentMário Quintana Velho é quem é um dia mais velh NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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Soleiras para uma nova etapa por Dorothea E. Wulfhorst

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Mikhail Lavrenov

única época da vida em que queremos ficar mais velhos é quando somos crianças. “Tu tens sete anos?”; “Eu já fiz dezzzzzzz!”. Envelhecemos desde que nascemos, mas não queremos ser ingratos. Nem todos chegam aos 45, 50 ou 55 anos. Quem deseja viver um buquê de anos de vida precisa estar disposto a deixar pétalas... Até aqui nosso bom senso concorda. Mas a matemática dos sentimentos faz a conta: a metade da vida ou mais já passou. Cá estão Adão e Eva expulsos do paraíso da eterna juventude. Há um sentimento de esvaziamento que pede para ser preenchido e uma “terra prometida” que exige a travessia de um deserto. A pergunta narcísica “Espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu?” tem como resposta retumbante um sim implacável. Bisturi e Botox fazem pouca diferença.

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Para a mulher, esse é o tempo da menopausa. Cessa seu período de fertilidade. Geralmente, há perda de libido, de massa muscular e de vigor físico. Calores no corpo, mas talvez frio no coração. Flacidez no corpo e, muitas vezes, na alma. Tempo de aprender um novo jeito de ser mulher.

Para o homem, é o tempo da andro­pausa, termo um tanto impróprio, pois não ocorre perda física tão incisiva como na mulher. Mas o cli­ma­té­rio – termo que designa esse período de transição para ambos – também afeta os homens, causando modificações psi­c o­f ísicas, como alteração da libido, pros­t atismo, ansiedade, fadiga, autoestima baixa, temores ou até depressão. Também denominada de “idade do lobo” – lobo forte, mas inquieto e ameaçado de fragilidade. Alguns lobos uivam na estepe. Alguns caçam. Alguns partem para novas paragens. Os mais felizes conseguem fazer de seu velho habitat um lugar de novas descobertas, promovendo qualidade de vida, trocando ansiedade por intensidade e novos horizontes. Esse é o tempo de fazer as pazes com as perdas e descobrir novos ganhos. A primazia do SER sobre o TER. Talvez ele ou ela tenham corrido demais e atropelado ou até maltratado os outros e a si mesmo para conseguir mundos e fundos? Não, não queremos cantar um hino de glória ascética às perdas dolorosas dessa fase da vida. Perdas sempre arrancam um pedaço da gente. Ensaiar o letting go, o deixar ir, é doloroso. Quem nega esse processo de luto adoece física e e­mo­­cio­nal­men­te. Mas o ganho que podemos extrair dessa fase da vida não


é automático nem gratuito. Precisamos estar dispostos a amadurecer e desenvolver-nos, estando abertos a mudanças que cunham nossa “marca registrada”. Nesse processo, cresce o anseio por um verdadeiro self, original e livre, mais consciente de seus dons e po­ten­cia­li­da­des, mas também de suas limitações. Assim aprendemos a fazer as pazes conosco, com passado, presente e futuro. Chegamos até aqui. É tempo de resgate de saúde física, emocional, social e espiritual. Tempo de reativar planos interrompidos e interesses adiados. Sonhar tão forte, que o sonho se acorda e recebe uma segunda chance. A vida até aqui forjou ferramentas que nos possibilitam esse resgate. A velha e sábia Cora Coralina disse: “Venho do século passado e trago dentro de mim todas as idades”. Podemos viver um pouco de cada uma delas, e isso é algo fascinante. Menopausa ou andropausa não significam pausar a vida. Essa fase convida para ressignificar nossa história, resgatar as memórias, de modo que seja possível editar um novo script de vida, em que o “duro desejo de durar” encontre novos nichos de satisfação e sentido rumo à nossa verdadeira humanidade. N

Cortar o tempo Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação, e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente. Carlos Drummond de Andrade

DOROTHEA E. WULFHORST é psicóloga e psicoterapeuta em São Leopoldo (RS)

LAR ROGATE

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Corpo escultural versus alma escultural O ideaL de beleza imposto pela indústria da moda e da mídia e a valorização do corpo perfeito tornaram-se obsessão, e esse culto à estética traz sérios danos a corpo e alma. por Vilnei Varzim

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preocupação do ser humano com o corpo é antiga. Os gregos, cerca de 2.500 anos a.C., acreditavam que a estética e o físico eram tão importantes quanto o intelecto na busca pela perfeição – mens sana in corpore sano (mente saudável em corpo são). No passado, o ser humano vivia pouco, envelhecia rápido, não se preocupava com a conservação do corpo, alimentava-se mal, ingeria poucas calorias, dando prioridade à sobrevivência. O ser humano moderno vive mais, alimenta-se mal e tem sua idade determinada pela aparência. Hoje, a ciência sabe que algumas doenças são consequência de maus hábitos, como quantidades de gordura não compatíveis com os limites admissíveis, deficiências em vida sedentária...

A tendência para o ser humano do futuro é viver muito mais, envelhecer bem devagar, cuidar melhor do seu corpo e da sua alma, dando muito valor à aparência e a seu equilíbrio, ter consciência e responsabilidade sobre o seu corpo. Hipócrates (460-377 a.C.) dizia: “De maneira geral, todos os segmentos corporais que possuem alguma função, se usados de maneira moderada e exercitados em trabalhos que estejam acostumados, tornam-se mais saudáveis e bem desenvolvidos, além de envelhecer mais lentamente. Mas, se permanecerem sem uso e ficarem preguiçosos, tornam-se predispostos a doenças, não se desenvolvendo com plenitude e envelhecem mais rapidamente”. Melhores níveis de saúde podem ser alcançados por meio da prática de hábitos simples. Os programas de exercícios físicos que envolvem esforços leves ou moderados são recomendados e provocam

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O tempo é algo que não volta atrás. Por isso plante seu jard 22

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adaptações fisiológicas relacionadas à melhoria e à manutenção do estado de saúde. Alimentação orientada e prática de exercícios físicos são o melhor meio para envelhecer de maneira saudável. Ao contrário, a inatividade física está relacionada com a maioria das doenças crônico-degenerativas. Os ideais de beleza impostos pela indústria da moda e da mídia e a valorização do corpo perfeito tornaram-se obsessão nos últimos tempos. Esse culto à estética traz sérios danos. Doenças como anorexia, bulimia e vigorexia (transtorno caracterizado pela prática de exercícios físicos em excesso) tomaram um vulto assustador. Vidas são colocadas em risco no consumo de remédios para emagrecer e de anabolizantes, ou até mesmo fazendo cirurgias desnecessárias. Nada contra o cuidado com o corpo. Corpo saudável, sim; corpo escravo da escultura física, nunca. Assim também a alma precisa de cuidados. Ela também não pode enferrujar. O “sedentarismo” do mundo interno traduz-se em acomodação e conformismo. A alma que não é exercitada também envelhece cedo e mal. O exercício físico exige disciplina, regularidade e dedicação. O da alma também. Quando o apóstolo Paulo diz “porque o bem que quero eu não faço, e o mal que não quero ainda faço” (Romanos 7.19), ele está falando de um exercício difícil. O exercício proposto por ele visa evitar a atrofia de algo lindo da alma humana e determinado

por Deus: fazer a vontade do Pai. Esse é o grande exercício. Quando Paulo diz “prossigo para o alvo” (Filipenses 3.14), está falando da persistência necessária em buscar a meta bem definida. Ter claro o que se quer é fundamental. Eis uma questão interessante: os “escravos da forma física” conseguem delinear os corpos. E os que exercitam a alma? Qual o resultado? Bem, aí a palavra de Deus é clara e linda: “O coração alegre aformoseia o rosto” (Provérbios 15.13). O resultado do “exercício da alma” é um coração alegre, que não cabe dentro do corpo e transborda em forma de rosto aformoseado. Logo, a expressão bonita do corpo não vem pelo exercício físico, mas sim pelo exercício da fé e de todos os seus aspectos e valores. Exercita-se a alma flexionando os joelhos e erguendo as mãos: “Salomão ficou em pé na plataforma e depois se ajoelhou diante de toda a assembleia de Israel, levantou as mãos para o céu e orou” (2 Crônicas 6.13). Precisamos exercitar isto: “ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Filipenses 2.10-11). Isso é exercitar a alma. Há corpos bem cuidados, porém com expressões muito tristes. Já os que cuidam da alma têm o rosto encantadoramente aformoseado. Cuidar só do corpo é puro sacrifício. Cuidar bem do corpo e da alma é vida. N VILNEI VARZIM é psicólogo em Pelotas (RS)

es. e decore sua alma EM VEZ de esperar que alguém lhe traga florWilliam Shakespeare NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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Penny Mathews

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ADOLESCENTE: Clamor por espaço e desejo de ser protagonista da própria vida

Espaço, por favor por Rui Bender

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ara o vice-diretor do Colégio Si­no­dal de São Leopoldo/RS, Gerson Engster, “a escola é o último reduto onde o jovem pode quebrar regras e ex­tra­po­lar limites” . “O adolescente de hoje quer ter seu espaço, muito mais do que em outros tempos”, percebe Ildemar Kanitz, responsável pelo pastorado escolar na mesma escola. “O adolescente clama por espaços, onde ele pode ser o protagonista, pois assim ele se sente valorizado”, salienta, por sua vez, o responsável pelo pastorado escolar na Fundação Evangélica (Novo

Hamburgo, RS), Júlio Cézar Adam. Enfim, o jovem da atualidade não é mais difícil do que aquele de outrora, e sua conduta tem a ver com as características da sociedade moderna, de nossa época, observa Gerson. Sobreviver na sociedade de hoje é difícil para o adolescente. Além da violência urbana, existe a cultura do sucesso, observa a psicóloga da Fundação Evangélica (Novo Hamburgo, RS), Renata Amélia Roos. Os pais tendem a projetar-se nos filhos e então ocupam os mesmos com muitas atividades. Assim, os jovens perdem sua autonomia, pois acabam assumindo responsabilidades de adultos. E

eles acusam essa sobrecarga. Alguns adultos pioram as coisas. Vestem-se e comportam-se como jovens e querem ser “amigos” dos filhos. “Não se dão conta de que os filhos precisam, na verdade, de pais”, lembra Renata. A adolescência também é a idade mais bom­bardeada pela mídia. A propaganda enxerga nos jovens somente potenciais consumidores, e há uma pressão enorme sobre eles. “Nossos jovens não têm mais como ser moleques”, lastima Gerson. “Aprontar faz parte da idade”, emenda Ildemar. E aí entra, segundo Renata, uma tarefa importante da escola: administrar os sentimentos para evitar conflitos. Gerson acrescenta que é necessário sempre transformar qualquer problema num aprendizado. “Não punir apenas por punir. Muita conciliação é a palavra de ordem”, define. Júlio observa que há momentos estratégicos para lidar com os problemas. Sua escola vale-se para isso de “momentos de meditação, com temas pertinentes à realidade dos alunos”. Ildemar assegura que fazer um trabalho preventivo com os jovens ajuda muito a evitar conflitos. “Atacando os pequenos problemas, evitam-se os grandes”, garante. A título de exemplo, o pastor menciona as saídas de turmas para o sítio da escola na área rural de São Leopoldo. Ali acontece terapia grupal. São provocados conflitos para que os jovens conheçam as diferenças e descubram coisas positivas nos colegas. “Tem que haver momentos para falar e para ouvir”, acentua Ildemar. “Em dez anos, houve uma mudança sensível na escola e os conflitos diminuíram”, relata.

breve. re de que a vida é Marq uês de Maricá

do-nos semp Desperdiçamos o tempo queixan 24

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Fotos: Rui Bender

A disciplina é muito importante num ambiente escolar, concordam todos. Houve um tempo em que a escola havia perdido um pouco a sua autoridade, “mas ela tem que deixar claras as regras dentro de seus muros”, sentencia Renata. Cada família deve ter valores e princípios que orientam a vida dos adolescentes, e nisso se conta com os pais. Assim, os jovens aprendem a ver o mundo de outro jeito. Mas a necessidade de mudar tem que partir do adolescente. É nisso que investe a Fundação Evangélica. Ela busca trabalhar conceitos que privilegiam a convivência. Por exemplo, certos alunos sofrem com as diferenças sociais. Então se

CONCEITOS: A aposta da escola do pastor Júlio e da psicóloga Renata pela ética nas relações

começou a trabalhar a ética nas relações. Ninguém tem o direito de desrespeitar colegas, adverte Júlio. Nada proíbe a convivência em “tribos”, mas é preciso sempre respeitar os outros,

CONCILIAÇÃO: Palavra de ordem no colégio onde atuam o pastor Ildemar e o professor Gerson

salienta Renata. Parece inacreditável, mas os adolescentes são extremamente conservadores, surpreende-se Júlio. Não toleram homossexuais, emos e outras “tribos”. Renata explica que “o preconceito é uma forma de sobrevivência”. Tudo aquilo que não pertence ao grupo é ofensivo. Por isso os jovens acabam por se juntar em “tribos”. Júlio emenda que a “panelinha” é boa até um certo ponto, mas ela não pode fazer com que o jovem perca sua identidade e exclua os diferentes. Enfim, o ser humano do futuro vai ter que ser uma pessoa mais tolerante. Somente assim ele poderá tornar-se uma pessoa mais rica. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

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CAPA

por Rogério R. Zimpel

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preocupação da ciência ajudar as pessoas a desfrutar da vida da melhor forma possível. Tradicionalmente, a medicina sempre se empenhou em combater as doenças – bem ilustrado em estatuetas de artesãos, onde o paciente aparece disputado entre o médico e a morte. Desde o final do século 20, entretanto, os médicos passaram a perceber a dívida com sua vocação: sendo profissionais da saúde, por que ocuparse só com a doença? A desvantagem da saúde e do bem-estar como objetos de estudo precisava ser corrigida. Imbuída desse espírito, a Organização Mundial da Saúde criou, em 1990, uma linha de pesquisa que envolve paí­ses de todos os continentes e que estuda aspectos envolvidos na qualidade de vida. A partir de entrevistas com grupos de pacientes e de pessoas saudáveis, foram destacadas as dimensões física, psicológica, nível de independência, relações sociais, ambiente e religio­sidade/espiritualidade como importantes para um melhor viver. Entre esses aspectos chama a atenção o último, ou seja, a ciência começa a incluir a dimensão da fé para

entender melhor o que é qualidade de vida. Nesse sentido, cresce a cada ano – no mundo inteiro – o número de publicações científicas sobre a relação entre qualidade de vida e as crenças, descortinando uma nova frente de pesquisa. Mas por que as pessoas incluíram a religiosidade/es­pi­ri­tua­li­dade? Talvez pelo fio condutor no qual a fé pode constituir-se ao longo da existência. Muita coisa muda ao longo da vida, e a crença pessoal é uma das poucas – às vezes a única – que permanece. Isso é relevante em um mundo cada vez mais acelerado e volátil. Idade, profissão, endereço, cidade e amizades, tudo muda; mas a fé pode servir como elo de con­tinuidade. As cerimônias religiosas, ao fazerem parte dos ritos de passagem, demarcam claramente isso, como, por exemplo, a confirmação da fé cristã rea­lizada no início da adolescência. Por muitas gerações, foi o claro divisor entre a infância e a fase adulta, e muitos lembram que, a partir daí, eram aceitos como “grandes”. Do ponto de vista do crescimento emocional, há aí um valor inestimável. Na contramão disso, a cultura pós-moderna criou um borramento entre as fases da vida e uma consequente confusão de identidade. Exemplo disso são os jovens que

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O valor da fé na vida das pessoas

tentam combinar direitos de adultos com deveres de adolescentes. Outro aspecto possível a considerar na resposta dos questionados é que a realidade é traumática, e transcender o aqui e agora é necessário para aliviar o peso da existência. Toda a subjetividade pode auxiliar nisso, como, por exemplo, a literatura, o cinema e qualquer expressão artística. O exer-

po. Faze-te sem limites no temCecíl ia Meireles 26

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A CONFIRMAÇÃO DA FÉ CRISTÃ, REALIZADA NO INÍCIO DA ADOLESCÊNCIA, TEM SIDO CONSIDERADa UM DIVISOR ENTRE A INFÂNCIA E A FASE ADULTA.

cício da criatividade nos eleva e, assim como a flor que desabrocha, revela o belo. Nessa direção – e indo adiante –, James Loder, psicanalista e teólogo americano, afirmou que o ser humano é um ser cujo eixo de equilíbrio está fora de si mesmo. Assim, propôs que se pensasse o ser humano como um ser exocêntrico. Frente a isso, faz todo sentido o clamor de Agostinho de Hipona ao dizer que “inquieto está meu coração enquanto não repousa em ti, Senhor”. Aquilo que falta não está dentro do eu. Qualidade de vida significa não só ter mais anos de vida, mas acrescentar vida aos anos. Vida que é movimento e que nos impulsiona para adiante. Assustados, agarramo-nos à amiga nostalgia para fazer o tempo andar mais devagar, mas ela insiste em não atender. O apego ao passado tampouco nos acalma, porque perdemos contato com o novo e, com ele, a chance de crescer. “Fé é uma caminhada de desapego”, afirma o psiquiatra argentino Carlos Hernández. Isso nos pode encorajar a conviver com o fato de que somos tripulantes de uma nave que tem curso próprio, em que a cada dia somos convidados a acolher a vida, permitindo que ela regue a aridez da nossa alma. N ROGÉRIO R. ZIMPEL é psiquiatra em Porto Alegre (RS)

FACULDADES EST

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REFLEXÃO

Autoridade: por que uns têm e outros não? por Osvino Toillier

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ara não me enfeitar com penas alheias, vou logo revelando: o título deste texto é inspirado na revista HSM, edição julho-agosto deste ano, cujo conteúdo vem ao encontro de nossa temática. Em todos os campos da atividade humana, o poder é uma questão nuclear, mas, antes de mais nada, é necessário tecer algumas considerações sobre o que significa poder:

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de acordo com o texto da publicação em referência, “é a capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas da maneira como se deseja”. Pois bem, acho que é isso mesmo. A questão hoje é bem esta: não vencerá quem gritar mais alto, mas quem contar a melhor história. Eu creio que esse também é o segredo que se leva para a sala de aula: desde tempos imemoriais, o professor que era amado pelos alunos era aquele capaz de encantamento, reconhecido pelo

conhecimento, por sua sabedoria, metodologia, humildade, capacidade de ouvir, pelo respeito às dificuldades de seus alunos, sem jamais humilhar ninguém por isso, mas estimular pela superação dos desafios. Esse é o professor que cada um de nós carrega na memória do coração, porque nos ajudou a fazer travessias difíceis, a escalar montanhas íngremes, a não desistir da luta, fortalecer a autoestima e acreditar em nossas capacidades e desbravar talentos.


Verdadeiro garimpeiro da alma e das flores! Autoridade não se delega, muito menos se impõe. Autoridade é um processo que se conquista pelo jeito de ser. E dela decorre o poder. Sem isso não se faz nada. Não adianta ser investido num cargo se dele não emanar natural poder que a pessoa constrói pelo que é e faz. Talvez esteja aí o grande segredo: autoridade é a condição que se dá a alguém de ser autor. Portanto lida com autoralidade. É fazer o aluno autor de sua própria história, sujeito e não objeto em que se deposita o que se sabe. Os tempos atuais têm como característica a fragmentação, e isso conduz à perda de poder. As fórmulas tradicionais em que pessoas e organizações se baseavam já não dão mais certo, e a comunicação é reflexo direto dos novos paradigmas. É preciso desenvolver um novo projeto gráfico para publicações – e a revista Novolhar é também exemplo disso –, sob pena de perder poder de penetração e interesse do público leitor. O e-mail envelheceu em menos de uma década, e as redes sociais dominam o panorama da instantaneidade. E talvez aqui caiba lembrar Aristóteles: “Uma sociedade com histórias ruins é uma sociedade decadente”. O grande drama que se vive hoje em dia na sala de aula é a des­cons­ ti­t ui­ç ão do professor, porque há muito convivemos com a inibição do exercício da autoridade da instituição educacional e de seu principal artífice: o professor. Atropelado pelas circunstâncias da pós-modernidade, sente-se impotente e confuso diante do verdadeiro tsunami de inovações, resignado diante do quadro-verde e giz, sem condições de competir com o mundo fantástico da tecnologia, tão a gosto das crianças e jovens de hoje em dia.

Parece-me que já não resta outra alternativa senão a humildade de reconhecer que não se tem mais condições de ser protagonista sozinho, mas converter os alunos em parceiros no desafio da aprendizagem, retirando-os da condição de meros ouvintes para transformá-los em protagonistas também ao lado do professor, cuja missão se tornou mais refinada: liderar o aprendiz num novo cenário. Penso que essa capacidade de adequação ajuda o professor a recomporse e devolver-lhe a autoridade tão abalada e, especialmente, recuperarlhe a autoestima. Tanto pais como professores não podem apequenar-se diante das transformações irreversíveis do mundo pós-moderno, mas isso não significa que a gente deva submeter-se a todos os absurdos que rolam por aí, sem

manifestar nossa indignação, valores e credos. Não esqueçamos que o amoroso Jesus, que ensinou o mandamento do amor, é também o mesmo que tomou o chicote e expulsou os vendilhões que profanavam o templo. Ele ensinava com autoridade, decorrente de sua divindade, sim, mas também da firmeza e da coerência com que defendia os princípios que ensinava. Da mesma forma, segundo o historiador norte-americano Henry Adams, “um professor sempre afeta a eternidade. Ele nunca saberá onde sua influência termina”. Ele ficará na memória do coração de seus alunos à medida que souber exercer autoridade pela humildade, competência e humanidade. N OSVINO TOILLIER é professor e presidente do SINEPE-RS em Porto Alegre (RS)

CLAUDIUS

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GENTE

RETRATOS

Priscila e Áquila por Nelson Kilpp

Divulgação Novolhar

A Frei Carlos Mesters teve papel importante no estudo popular da Bíblia a partir do CEBI

Mesters aos 80 por Rui Bender

J

acobus Gerardus Hubertus Mesters – esse é o nome que ele recebeu na pia batismal na Holanda em 1931. Vinte anos depois foi rebatizado de Carlos, ao receber o hábito da Ordem Carmelita no Brasil. Falamos do frei Carlos Mesters, que no próximo dia 20 de outubro completará 80 anos de vida. Mesters nasceu no sul da Holanda e cresceu numa família de sete irmãos. Na infância, viveu os anos da Segunda Guerra Mundial. Aos 17 anos, o jovem Jacobus escolheu o Brasil como campo de sua futura atividade missionária. Ele chegou aqui em janeiro de 1949. Cursou Filosofia em São Paulo e fez Teologia em Roma (Itália). Formou-se depois em ciências bíblicas no Institutum Bibli­cum de Roma (Itália) e mais tarde na Escola Bíblica de Jerusalém (Israel). Frei Car-

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los é autor de quase cem livros sobre a Bíblia. Sua obra insere-se na corrente da Teologia da Libertação. Durante o regime militar no Brasil, frei Carlos e seus companheiros participaram ativamente dos movimentos de resistência. Ele também foi o principal articulador na organização do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), fundado em 20 de julho de 1979. A semente do CEBI fora lançada no final de 1978 em Angra dos Reis (RJ) durante dois cursos. Em 1979, foi se­mea­da regionalmente no Nordeste, Centro-Oeste e Sul. Frei Carlos é conside­rado um grande incentivador da leitura popular da Bíblia. Para ele próprio, seu único mérito é ter sido o semeador no terreno fértil e já preparado das comunidades populares. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

história da igreja não se faz apenas com indivíduos ilustres de personalidade forte. Desde os primórdios da igreja, grupos de pessoas, famílias inteiras ou casais comprometidos foram decisivos na missão. Isso pode torná-la até mais eficaz. Um casal bem conhecido da história da igreja, já mencionado no Novo Testamento, são Priscila (também chamada Prisca) e Áquila. Os dois aparecem sete vezes na Bíblia. Sempre são mencionados juntos; geralmente Priscila aparece em primeiro lugar. Esse destaque certamente não é acaso. Priscila deve ter tido a iniciativa maior na missão. Priscila e Áquila fazem parte da comunidade judaica de Roma no primeiro século. No ano 49, eles foram expulsos, juntamente com outros judeus, de Roma por causa de sua fé. O imperador Cláudio decretara essa expulsão devido a certos distúrbios ocorridos na comunidade por causa de um tal de “Cresto”. Presume-se que discussões entre os judeus que rejeitaram Cristo e os que aderiram a ele tenham levado a um conflito na comunidade judaica e, por fim, ao decreto imperial determinando a expulsão de judeus e cristãos de Roma. Os romanos aparentemente não faziam diferença entre judeus e cristãos. Priscila e Áquila foram então morar na cidade grega de Corinto. Ali viveram de sua profissão. Em Corinto, conheceram o apóstolo Paulo, o qual


Ilustração João Soares

os quais pela minha vida arriscaram a sua própria cabeça; e isso lhes agradeço, não somente eu, mas também todas as igrejas dos gentios” (Romanos 16.3-5). Não sabemos em que circunstância o casal arriscou sua vida para salvar a de Paulo. Esse ato foi, no entanto, de suma importância não somente para o apóstolo, mas para todas as comunidades gregas. Mas a atividade rotineira e duradoura do casal em Roma deve ter marcado mais profundamente a vida da igreja. Antes de a comunidade possuir um lugar de oração, ela se reunia na casa de Priscila e Áquila. Esses cultos domésticos eram – e ainda são – muito importantes para a vida comunitária. Assim como Priscila e Áquila, muitos casais dedicam-se, das mais diversas formas, à missão da igreja. Todos eles são de máxima importância para a vida das comunidades. Priscila e Áquila continuam sendo um exemplo de discipulado e um estímulo para nosso testemunho. N

18.24-28). Assim, além de acolher hóspedes em sua casa, o casal também se sentia responsável por orientar os pregadores de sua igreja. Depois da morte do imperador Cláudio, Priscila e Áquila voltaram a Roma. Ao escrever sua Carta aos Romanos, Paulo saúda particularmente o casal: “Saudai Priscila e Áquila, meus cooperadores em Cristo Jesus,

NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha

olhar com arte

TOMANDO CHIMARRÃO Flávio Scholles, 1999 68 X 110 cm Democracia com voto obrigatório é ditadura da ignorância. E a ignorância é a pior forma de miséria. www.fscholles.com.br

Reprodução Novolhar

hospedaram em sua casa por 18 meses: “Lá [Paulo] encontrou certo judeu chamado Áquila, […] recentemente chegado da Itália, com Priscila, sua mulher, em vista de ter Cláudio decretado que todos os judeus se retirassem de Roma […] E, já que eram do mesmo ofício, passou a morar com eles e ali trabalhava, pois a profissão deles era fazer tendas” (Atos 18.2-3). A convivência na família e a sociedade no trabalho beneficiaram a missão da igreja. O casal acompanhou Paulo em uma de suas viagens e teve importância decisiva na edificação da comunidade de Éfeso, para onde se havia transferido (Atos 18.18-19). Nessa cidade, ainda cumpriu outra missão: orientar um pregador entusiasmado sobre aspectos decisivos da doutrina cristã. “Chegou a Éfeso um judeu, natural de Alexandria, chamado Apolo, homem eloquente e poderoso nas Escrituras. Ele era instruído no caminho do Senhor […], mas conhecia apenas o batismo de João […] Priscila e Áquila tomaram-no consigo e [...] lhe expuseram o caminho de Deus” (Atos

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NÓS E AIDS

Reprodução Novolhar

O Nascimento de Vênus, de Sandro Boticelli. No quadro, os órgãos genitais da deusa estão cobertos por suas mãos segurando os longos cabelos, enquanto outra mulher lhe oferece um pano para que se cubra. Em diversas obras da época, em que a sexualidade aparecia livremente, autoridades da igreja exigiam que fosse coberta com panos e outros recursos, contribuindo para a falta de abordagem integral da sexualidade humana.

Sexualidade, HIV e AIDS por Eduardo Campaña

A

pandemia do HIV e da AIDS confronta-nos com temas muito complexos, alguns deles considerados “tabus”. Sem dúvida, o mais importante é a sexualidade. Tabu é considerado “uma conduta, atividade ou costume proibidos pela sociedade, grupo humano ou religião, ou seja, é a proibição de algo natural, de conteúdo religioso, econômico, po­ lí­ti­co, social ou cultural, por uma razão não justificada ou in­jus­ti­fi­cá­vel”. Nesse sentido, a sexualidade é o tema que tem sido mais mal-interpretado, manipulado, mitificado e reprimido ao longo da história humana. No caso do cristianismo, por causa de influências filosóficas e religiosas, especialmente do pen-

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samento grego (dualismo espíritocorpo; “o espírito é bom, o corpo é pecaminoso”), a compreensão da sexualidade sofreu e continua sofrendo uma grande repressão e influências negativas. A sexualidade é uma “invenção de Deus”. Ele nos criou à sua imagem e semelhança como seres sexuados (com um sexo) e sexuais (com uma sexualidade). Em nenhum momento de nossa vida, podemos nos despojar de nossa sexualidade; nascemos e morremos com ela. A sexualidade tem a ver com o ser humano integral. Ela ultrapassa a esfera biológica, integra e repercute diretamente sobre os aspectos psicológicos, emocionais, sociais e espiri­tuais do ser humano.

Contudo, caímos no tal re­ du­c io­n is­m o; por exemplo, quando mencio­n amos a palavra sexo, imediatamente nos vem a ideia de relações se­x uais, e sexo são “as características ana­tô­mi­cas e fisiológicas que diferenciam mulheres de homens, e machos de fêmeas no caso dos animais”. Dolorosamente, estamos vivendo os resultados da falta de uma abordagem integral da sexualidade. A cada ano, são feitos, no mundo, mais de 40 milhões de abortos, com gravíssimas consequências. Mais de 340 milhões de infecções por transmissão sexual (ITS). Uma em cada três mulheres e um em cada quatro homens tiveram, no mínimo, uma experiência de abuso sexual.


fábulas de esopo

EDUARDO CAMPAÑA é médico e coordenador do Programa de HIV e AIDS do Conselho de Igrejas Evangélicas Metodistas da América Latina, trabalhando há mais de 20 anos com o tema; reside em Quito, Equador

A lebre e a tartaruga

Ilustração Roberto Soares

Em muitos dos nossos países, a gra­ videz de adolescentes já é considerada uma “epidemia”, ou seja, um problema de saúde pública. Mais de 80% dos novos casos de infecção pelo HIV são produzidos pela transmissão sexual. A esta altura da história, o grande debate dá-se entre o real e o ideal. A realidade são os milhões de seres humanos doentes, mortos ou com se­ que­las pessoais e sociais graves, como por exemplo a dor, o estigma e a discriminação das pessoas que vivem com HIV ou com uma orientação sexual diferente. O ideal é acompanhado com o discurso dos valores, da lei, da ética, da moral, que não se compadece com a realidade e também não conseguiu modificar as atitudes que nos levam a essas dolorosas consequências. Pelo contrário, tem sido o passe para o preconceito, a condenação, o estigma e a discriminação. Então algo está errado. Não estamos falando de renunciar aos nossos princípios e valores, nem de tomar posições extremas. Estamos falando de reconhecer que algo não está funcionando, que algo está errado e que devemos abrir o diálogo franco e aberto, a partir do científico, dos princípios e da realidade, a partir do ideal e do real. A estratégia da igreja tem sido o silêncio e/ou a negação. Não falamos, não educamos, não damos alternativas. Simplesmente proibimos, culpamos e condenamos. Falar de HIV e AIDS implica falar da sexualidade. Se acreditamos e queremos fazer a diferença, precisamos romper o silêncio e o medo de falar de algo que Deus não teve vergonha de criar. N

C

erto dia, a lebre desafiou a tartaruga para uma corrida, argumentando que era mais rápida e que a tartaruga nunca a venceria. A tartaruga começou a treinar, observada pela lebre. Chegou o dia da corrida. A lebre e a tartaruga posicionaram-se e, após o sinal, partiram. A tartaruga estava correndo o mais rapidamente que conseguia, mas foi ultrapassada pela lebre, que, visto já estar a uma longa distância de sua concorrente, deitouse para dormir. Enquanto a lebre dormia, não se dava conta de que a tartaruga se aproximava mais rapidamente da linha de chegada. Quando acordou, a

lebre, horrorizada, viu que a tartaruga estava muito perto da linha de chegada. Assim, a lebre começou a correr o mais depressa que pôde, tentando a todo custo ultrapassar a tartaruga. Não conseguiu. Após a vitória da tartaruga, todos foram festejar com ela.

Moral: Não cruze os braços quando tudo estiver a seu favor. Quem segue devagar e com constância sempre chega na frente. ESOPO foi um fabulista grego do século 6 a.C., famoso por suas pequenas histórias de animais com um sentido e um ensinamento NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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fotografia

Fotos do autor

S

Uma exposição de fotos feitas pela câmera pinhole, que é a lata com a tampa vermelha

Foto na lata por Valdemar Schulz

Pinhole ou foto na lata. Uma lata transformada em câmera escura, registrando no papel fotográfico a luz que passa pelo furo de uma agulha. Um meio para obter uma imagem compondo com a instabilidade do clima, explorando as nuances da luz. Fotografar às cegas e revelar a imaginação. A cada foto, uma surpresa. Os resultados são quase todos imprevistos, mas incessantemente buscados. Fotografia pinhole é assim: cada foto uma nova experiência. 34

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ão inegáveis a importância e o predomínio da fotografia digital na atualidade. Fotografar com câmeras de filme de rolo é cada vez mais raro, e a fotografia em preto e branco ficou re­le­ga­da ao passado. Nesse contexto, surgem algumas experimentações de fotografia alternativa. Seja por hobby ou por amor à arte, ou ambos, buscase resgatar alguns recursos simples da fase inicial da descoberta da fotografia no século 19. Uma das motivações dessas experiências é recuperar um pouco da simplicidade perdida pelo perfeccionismo da tecnologia digital. A Fotografia Pinhole ou Foto na Lata é uma técnica alternativa de fotografia em preto e branco. A ênfase dessa técnica está no modo artesanal de fotografar. Seus adeptos realizam todo o processo, desde o preparo da câmera artesanal até a revelação do negativo e a obtenção de cópias. Para realizar uma fotografia pinhole, são necessários alguns recursos mínimos: uma lata de leite em pó, tinta preta, papel-cartão preto, papel-alumínio, fita isolante preta, agulha fina, papel fotográfico preto e branco, tesoura, químicos revelador e fixador para papel preto e branco, três bandejas, três pegadores de papel, um ambiente com pia, iluminado apenas com uma lâmpada vermelha de 15 watts, um varal e prendedores. Inicia-se preparando a lata. Primeiro, ela precisa ser pintada com tinta preta ou forrada com papel preto, inclusive a tampa. Depois, bem no meio da lata, faz-se um furo com o prego. Como esse furo deixa passar luz em excesso, é preciso fazer uma espécie de “curativo”, fixando um pedaço de papel-alumínio com fita isolante. O papel-alumínio deve ser furado com a agulha exatamente sobre o furo do prego.


Negativo e positivo da mesma foto, tomada sob sol forte; o tempo de exposição foi de 17 segundos

A frente do Colégio Pastor Dohms vista pela câmera de lata

Esse segundo furo deve ser bem pequeno para deixar passar o mínimo de luz. Sobre esse furo é preciso fixar uma espécie de “janelinha” com papel-cartão preto, fixando-a de tal forma que possa

ser aberta e fechada com facilidade. No laboratório, ambiente vedado à luz externa e iluminado apenas por uma lâmpada vermelha, fixa-se um pedaço de papel fotográfico em preto e branco dentro da lata, com seu lado

brilhoso no lado oposto ao furo. O papel não pode ser exposto à luz sob hipótese alguma. No final, fecha-se a lata. Antes de sair do laboratório, é preciso verificar se a lata está bem tampada, inclusive se a “janelinha” cobre bem o furo. Para fotografar, escolhe-se um local bem iluminado. A lata deve ser colocada sobre uma superfície firme diante do que se quer fotografar, pois não poderá tremer ao abrir e fechar a “janelinha”. O foco proporcionado pelo furo da agulha é infinito. O tempo de abertura da janelinha vai depender da quantidade de luz presente no ambiente. Como saber? Justamente aí está o desafio dessa prática: avaliar as condições de

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INCLUSÃO DIGITAL

Acessibilidade na internet por Thaís Teckemeier

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om o avanço da tecnologia gráfica, as animações e as informações dinâmicas têm sido fatores ex­c lu­d en­t es para pessoas com deficiência. Web acessível é a representação de uma web ideal, na qual todas as pessoas, com ou sem deficiência, tenham acesso a seu conteúdo. Não apenas pessoas, mas também sistemas ou dispositivos que se conectam à internet. Conhecemos o termo acessibilidade desde quando ele era simplesmente

luz para obter um bom resultado. Se o sol está forte, o tempo poderá ser de 15 a 20 segundos. Se está nublado, poderá ser de um a seis minutos. Os resultados são im­pre­vi­síveis. O enquadramento e o tempo de exposição devem ser testados. Para revelar, siga as instruções do fabricante dos químicos. Tanto no momento de obter a foto como na revelação do negativo e nas cópias em positivo, o erro fará parte da experiência. Por isso são necessárias dedicação e persistência. O erro joga a favor da arte que se apresenta. Fotografia pinhole pode ser um interesse de estudo, mas, sobretudo, uma paixão pela poesia inusitada da imagem. N

Equipamentos especialmente preparados facilitam o acesso das pessoas com deficiência à internet

VALDEMAR SCHULTZ é teólogo e professor de Artes Visuais em Novo Hamburgo e Porto Alegre (RS)

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Divulgação Novolhar

Você gostaria de participar de uma exposição de celebração do dia mundial da fotografia pinhole? Busque informações no site: http://www.pinholeday. org/?setlang=pt Para saber mais sobre a técnica da fotografia pinhole: http:// www.eba.ufmg.br/cfalieri/pinhole. html

associado à necessidade de eliminação de obstáculos físicos. Atualmente, esse conceito também se relaciona com a qualidade de vida das pessoas, garantindo, assim, o acesso e capacitando o desenvolvimento cultural e social, além da igualdade de direitos e oportunidades. Ao desenvolver conteúdo para a web, deve-se levar em conta a característica do usuário, verificando sua habilidade sensorial e funcional, considerando usuários com limi-


THAÍS TECKEMEIER é webdesigner e formanda em design gráfico em São Leopoldo (RS)

Para aqueles que podem movimentar apenas os olhos existe o mouse ocular (ao lado), que funciona com sensores tipo eletrodos, colocado na cabeça, para traduzir os movimentos e o piscar dos olhos em movimentos e cliques do cursor.

Outro equipamento que auxilia pessoas com problemas motores é o mouse Big Track. Em seu centro há uma bola giratória de 7,5 cm, que permite ao usuário com dificuldades motoras manuseálo perfeitamente. Ele possui ainda dois botões grandes de clique direito e esquerdo, bem localizados para evitar cliques inesperados.

Adaptações em teclados tradicionais também são feitas na busca de acessibilidade. A máscara de teclado, colmeia (na foto abaixo), é uma placa de acrílico com perfurações correspondentes a cada tecla do teclado, que é fixada a uma certa distância acima dele e tem por finalidade evitar que usuários com movimentos invo­lun­tários pressionem teclas indesejadas. Para utilizar esse teclado, deve-se ter junto a ele uma espécie de caneta para entrar nos furos e apertar as teclas.

Pessoas com dificuldades motoras, idosas ou acometidas de derrames, com limitações no manuseio do mouse e de teclados convencionais, podem fazer o uso do mouse e teclado espe­cial RCTBarban (foto abaixo). Para utilizá-lo como mouse, basta tocar em um dos botões para mover o cursor; já para utilizá-lo como teclado, deve-se pressionar o botão que possui a letra desejada até que ela seja exibida na tela. Fotos LABIE - Universidade FEEVALE

tações visuais, auditivas, motoras e com problemas de concentração, memória e percepção. Além disso, é preciso respeitar a relação usuáriotecnologia, incluindo compatibilidade com diversos navegadores, utilização de equipamentos lentos, sem saída de áudio ou ainda sem o uso do mouse. Também o acesso a esse conteúdo não deve exigir um ambiente silencioso ou ruidoso ou com muita ou pouca luminosidade. São muitos itens para ser verificados na criação e no desenvolvimento de um conteúdo para a web. Por isso há regras descritas nas Diretrizes e Técnicas Internacionais de Acessibilidade, conhecidas como diretrizes de acessibilidade do W3C (World Wide Consortium). A ideia dessa organização é que sites construídos com tais regras possam ser acessados por qualquer pessoa ou tecnologia. Indo além dos aspectos de desenvolvimento dos sites, há também equipamentos especializados e que poucos sabem que existem. Muito mais do que ter um site acessível, o portador de necessidades especiais precisa ter equipamentos que o auxiliem na navegação e na interação com o computador. Veja alguns desses equipamentos e suas funções no box ao lado. Portanto a acessibilidade web é para todos, e o número de usuários beneficiados é enorme. Pois, ao tornar-se um site acessível, além de atingir usuá­ rios que antes não podiam acessar determinado site devido às barreiras nele encontradas, também se criam condições para que mais pessoas se animem a usar a internet. Cria-se, assim, um processo interativo, colaborativo, cooperativo e inclusivo do mundo digital. N

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MÍDIA

Jornalismo: uma profissão de risco por Rui Bender

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Rui Bender

ltimamente, o assassinato de jornalistas vem crescendo ao redor do mundo. Essa estatística negativa está preocupando algumas instituições, a exemplo da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (mais conhecida pela sigla WACC, iniciais do inglês). Seu presidente, o presbiteriano estadunidense Dennis A. Smith, confirma a preocupação

Dennis A. Smith, presidente da WACC, fala da preocupação da entidade com a segurança dos profissionais

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da entidade, condenando a violência extrema contra os profissionais de imprensa. Dennis comentou em entrevista à Novolhar, na ocasião de sua passagem por São Leopoldo (RS), que a organização sempre denuncia casos de assassinato. Ela também busca parcerias com associações de jornalistas para combater o desrespeito à liberdade de imprensa e estimula seus membros a denunciar abusos contra co­mu­ni­ca­do­res. A WACC é uma organização de nível mundial que reúne denominações cristãs em torno de propostas voltadas à comunicação, cuja base ética permita a leitura crítica da mídia e a democratização dos meios de comunicação. Ela está dividida em oito regiões: América Latina, América do Norte, Cari­be, Pacífico, Ásia, África, Oriente Médio e Europa. A entidade con­ta­bi­liza cerca de mil membros entre instituições (50%) e indivíduos (50%).

A sede atual é Toronto, no Canadá. Durante muitos anos foi Londres, mas se tornou necessária a transferência por uma questão de economia. Londres é uma cidade muito cara, avaliou Dennis. O grande desafio no momento é a reorganização da entidade, frisa seu presidente. Faz parte do plano estratégico da WACC consolidar sua identidade cristã e fortalecer as regiões e lideranças, observa Dennis. É preciso buscar outras parcerias com governos, fundações e estimular as regiões a buscar apoio financeiro para seus projetos. “Temos que ser mais criativos e descentralizar, além de reduzir nossos custos”, admite o presidente. Também é preciso enfatizar mais o debate sobre temas como o direito à comunicação, a fim de implementar uma comunicação mais participativa, libertadora e profética. O direito à comunicação é um dos temas que preocupa sobremodo a WACC. Por isso a entidade criou o Plano de Monitoramento Global da Mídia, que reúne ativistas e pesquisadores em uma rede de caráter voluntário dedicada a documentar e mudar padrões de representação das notícias. Objetivo desse projeto é ampliar a presença das mulheres nos meios de comunicação. Monitoram-se jornais impressos, emissoras de televisão e emissoras de rádio. Dennis aponta que os resultados de recente pesquisa revelam que 24 por cento das notícias na mídia em geral falam do gênero feminino. É uma melhora significativa comparado a 1995, quando apenas 17 por cento das notícias falavam das mulheres. Essa imagem não é coerente com uma realidade na qual pelo menos a metade da população mundial é constituída do sexo feminino. N

RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)


Divulgação Novolhar

REFORMA

ALFRED MOLINA representa Johann Tetzel no filme “Lutero”, de 2003

Tetzel não morreu O monge Tetzel está mais vivo do que nunca. Basta ver os diversos programas evangélicos na televisão brasileira. por Orlando Eller

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propósito dos 494 anos da Reforma protestante, ocorrida em 31 de outubro de 1517 na Alemanha, vale refletir sobre aquele evento à luz do que ocorre com as igrejas cristãs nos dias de hoje. O que Lutero enfrentou, mesmo considerando a dureza do papa Leão X e seu domínio em relação aos reinos políticos, foi pouco em vista do que se transformou o cristianismo nos dias de hoje por causa de multiformes e multicoloridos interesses humanos. Estava em agonia a era das trevas, então momento único na história humana, que expunha um extraordi-

nário amontoado de problemas mais políticos do que religiosos, todos concorrendo para a iminente ruptura da cômoda integridade católicoromana, havia anos dividida pelo grande cisma que deu origem à Igreja Grego-Ortodoxa. Como fruta madura, o castelo humano ruiu diante da busca pela consistência ética baseada na verdade bíblica. Bastou um problema financeiro, causado pelas obras da gigantesca Basílica de São Pedro em Roma, para que a humanidade presente no comportamento do papa Leão X mostrasse a cara de modo naturalmente nocivo, como é comum

hoje ver em milhares de pequenas ou grandes igrejas pentecostais ou neo­pen­te­cos­tais, cujo show ocorre franco e proporcional ao sucesso das mi­ra­cu­losas coletas. Sem enxergar qualquer problema religioso, político ou ético, o papa instituiu e pôs à venda as indulgências, títulos eclesiais reversíveis em perdão, de inegável imagem graças à sua origem, úteis aos que quisessem quitar suas penduras com o Eterno. E distribuiu-as ao mercado europeu, sem antes autorizar bons comerciantes, aptos, audazes e sem pudor. Coube ao monge Johann Tetzel espalhar suas bancas pela Alemanha como num jogo do bicho, o nosso tão conhecido ilícito. Apregoava ele em alto e bom tom que o benefício da compra seria instantâneo. Tão logo as moedas tilintassem no fundo da bolsa, as sofridas almas deixariam o purgatório, um lugar imaginário a meio caminho entre o céu e o inferno, parada obrigatória para alguns, destinada a tomar água para recuperar o fôlego. Tudo ia de vento em popa, conforme planejado, até que Martim Lutero, monge formado em Teologia, Direito e Filosofia e professor da Universidade de Wittenberg, Alemanha, resolveu chutar o balde e botar areia nos negócios do papa. Redigiu 95 teses, cujo conteúdo con­denava o comportamento de sua igreja e resgatava a verdadeira ética cristã, que se baseia unicamente na graça em Cristo e na fé, porque o “justo viverá por fé”. Estava aceso o estopim. E não tardou muito para que a revolução protestante explodisse, fazendo-se rapidamente presente em vários recantos da Europa. Dela surgiram a igreja evangélica luterana, hoje representada por duzentos ramos distintos, as demais denominações protestantes históricas

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ESPIRITUALIDADE

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(batista, anglicana, me­to­dis­ta, pres­ bi­te­riana) e cen­tenas de derivadas, pen­te­costais ou neo­pen­te­costais, num turbilhão confuso de dogmas, de fé e de ritos em que até Jesus Cristo, que deveria ser a razão e o centro de tudo, fica perdido nas entrelinhas de quem mais acha do que sabe. A liberdade religiosa que se seguiu àquele movimento, estimulada pelo poder temporal que se desvencilhava das influências de Roma, deu origem a uma descontrolada sucessão de minirreformas, todas baseadas em interpretações teológicas nem sempre objetivas e que pariram o atual mosaico evangélico, gigantesco quebracabeças ou labirinto sem porta. Impressões à parte, uma coisa é lamentável. O monge Tetzel, que co­m er­c ializava títulos reversíveis em perdão na Alemanha, está mais vivo do que nunca. Quer vê-lo? Quer ouvi-lo? Não precisa visitar as igrejas que há por aí, quase uma em cada esquina. Basta visitar os diversos programas evangélicos presentes na televisão. Lá você encontrará, propalada na maior cara de pau, a teologia da facilidade, segundo a qual basta um breve banho de sabonete de arruda para que sua alma ache consolo. Ou, então, teste a eficiência de um lenço ungido, de uma foto abençoada, de um copo de água junto da oração ou a expulsão intempestiva da dor em um extraordinário descarrego de espíritos, que tem levado milhares a pagar caro e, quase sempre, a ser contemplados em seu gesto com um recibo assinado pelo próprio Jesus Cristo. Não foi sem razão que alguém já tenha fundado por aí uma igreja que promove o “desencapetamento”. A preços módicos, é claro, para ingênuo nenhum botar defeito. N ORLANDO ELLER é jornalista em Vitória (ES)

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Oração e família O REFORMADOR MARTIM LUTERO DEU ESPECIAL ATENÇÃO AOS TEMAS ORAÇÃO E FAMÍLIA. EM SEUS TEXTOS, DEIXOU DIVERSAS PÉROLAS SOBRE ESSES DOIS ASSUNTOS, QUE O AUTOR RESGATA ABAIXO. por Mário Francisco Tessmann

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is aí dois temas para os quais Lutero deu singular atenção: oração e família. É importante salientar aqui que, na linguagem do reformador, família e casamento são termos muito próximos. Martim Lutero manifestou-se diversas vezes sobre a importância e o significado da oração. Tendo sido monge por 17 anos, havia aprendido a orar com regularidade, pois a oração era uma regra fundamental para a vida monástica. Desde a criação das Regras de São Bento (século 6), ficou estabelecido que os monges deveriam ter seis momentos de oração ao longo do dia e da noite. Eram as horas canônicas. No mosteiro em que Lutero ingressou em 1505, essa era também a prática. Em geral, os salmos e as orações escritas eram usados nesses momentos. Desse exercício regular com a oração Lutero tirou algumas conclusões, que o acompanharam ao longo da vida: * A oração e a experiência de vida não se separam. “A gente aprende a orar a partir da experiência. É algo precioso, quando se vive numa situa­ ção difícil e, nessas circunstâncias, pode-se fazer uso da oração. Isso eu sei por experiência própria.”

* A oração não é um longo discurso, mas uma conversa contínua e de coração. “Por isso, meus irmãos, quem pode orar, esse o faça continua­mente, a saber, de coração e por vezes com palavras perante o querido Pai.” * A oração mantém a igreja e o mundo. “A oração manteve a igreja até este momento.” “A oração mantém o mundo. Sem ela, o mundo já estaria bem diferente.” * Deus ouve nossa oração e nos concede o que é mais apropriado para a vida. “Nós temos esta vantagem: nossa oração é ouvida o tempo todo. Se as coisas não ocorrem de acordo com a nossa vontade, elas acontecem segundo a vontade de Deus, que é melhor do que a nossa. Se Deus precisasse sempre realizar nossos desejos, Ele seria então nosso prisioneiro.” * Lutero recomenda que a linguagem da oração seja a mais natural possível. “Eu oro com mais frequência em alemão do que em latim. A língua materna tem mais força.” Se for verdade que a vida monástica ajudou Lutero na compreensão e prática da oração, o mesmo não pode ser dito acerca de seu entendimento de casamento e família. Werner Elert, um pesquisador de Lutero do último


Divulgação Novolhar

século, afirma que “o passado monástico” de Lutero determinou sua visão sobre esses assuntos até pouco antes de seu casamento em 1525. Contudo, no estudo contínuo da Bíblia e com a experiência do casamento, Lutero desvincula-se de seus ideais de monge, afirmando positivamente o valor do casamento e da família. Desse duplo aprendizado, da Bíblia e do seu matrimônio, o refor­ mador nos deixou algumas preciosas afirmações: * O amor conjugal é louvado por Lutero como o “maior e mais

elevado amor que existe sobre a face da terra”. * A família é a célula básica para a existência da sociedade. “A família é o fundamento para a economia, a sociedade e a religião.” * Nesse contexto, é importante lembrar que Deus mesmo instituiu o casamento. “Como pode ser isto, que as pessoas proíbam ou condenem o casamento? Acaso ele é apenas um direito natural, semelhante a comer, beber e dormir? Longe disso! Pois o que Deus criou e ordenou não se encontra em nosso arbítrio aceitar ou rejeitar.”

* A família é um lugar fundamental para o aprendizado do convívio. Lute­ro reconhece que isso nem sempre é fácil, pois a natureza humana nem sempre ajuda. “Amado Deus, quanto esforço é gasto somente com a família. Quanto trabalho custa aproximar as pessoas, quantas preocupações para mantê-las unidas? A queda de Adão corrompeu a nossa natureza, a tal ponto de que ela é hoje completamente inconstante.” * Lutero ressalta também o vínculo de amor dos pais para com os filhos, independentemente dos rumos que esses tomam na vida. “Quando foi apresentado a Lutero o seu primeiro filho, ele o beijou e disse: Querido Deus, que intenso foi o amor que Adão teve para com Caim, seu primeiro filho, e esse, contudo, tornou-se o assassino de seu irmão.” Ao escrever os seus catecismos, em especial o menor, Lutero tinha em vista o aprendizado dos pontos básicos da fé para a família, onde estava incluí­d a a oração do PaiNosso, “a melhor de todas as orações”. De acordo com ele, era tarefa do pai, e nós diríamos hoje também da mãe, ser “um pastor e bispo de sua casa”. Exercitar com as crianças e os jovens os primeiros passos da oração cabia primeiramente à família no entender de Lutero. A igreja é, nesse sentido, um reforço daquilo que se faz em casa. Que esses impulsos de Lutero nos encorajem a exercitar a oração pessoal e em família, tendo a convicção de que a generosidade de Deus nos alcança com esses e outros bens preciosos. N

MÁRIO FRANCISCO TESSMANN é teólogo da IECLB e professor de Teologia na Faculdade de Teologia Evangélica em Curitiba (PR) NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2011

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penúltima palavra

Espaço para as boas ações

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Não somos seres somente de conhecimento e habilidades. precisamos incluir o outro em nossos pensamentos e ações.

Reprodução Novolhar

por Nice Ewald

Uma das obras dirigidas pelo artista plástico Vik Muniz em um dos maiores aterros sanitários do mundo, no Jardim Gramacho, na periferia do Rio, onde ele rodou por dois anos o documentário “Lixo Extraordinário”

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família e a escola têm o compromisso de educar crianças, jovens e adolescentes, mas para qual sociedade? Será que os educadores, pais ou professores se fazem essa pergunta? “Aprender a ser”, “aprender a conviver”, “aprender a fazer” e “aprender a conhecer” são os quatro pilares que teoricamente sustentam a educação, baseados no relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século 21, coordenada por Jacques Delors, da UNESCO. Na realidade educacional brasileira, em relação a esses quatro pilares, os conteúdos estão sempre em destaque, são discutidos em sala de aula, em reuniões pedagógicas, sendo infelizmente compreendidos como conhecimentos. Estão presentes em livros, apostilas, provas, recuperações, aulas, tarefas. Estão dentro e fora da escola, em todos os lugares, pois, com os avanços da ciência e da tecnologia, vivemos a era do conhecimento. Que bom! Mas não somos seres só de conhecimentos. O fazer é refletido em várias atividades, que muitas vezes também são entendidas como a fórmula ideal para o bem-educar. O excesso de atividades ou o fazer pelo fazer levam o ser humano à automatização e ao estres­se. O que se aprende com isso? Certamente algumas habilidades serão desenvolvidas, mas isso também não é suficiente para a formação integral do ser. Não somos seres somente de conhecimentos e de habilidades.

O que devemos nos perguntar é: como aprendemos a ser e a conviver? Percebemos claramente, em nossa rea­ lidade social, o quanto nós nos conhecemos pouco; não sabemos trabalhar em equipe; temos dificuldade para lidar com o outro; valorizamos o individualismo; faltam-nos consciência coletiva e limites; esquecemos de cuidar da humanidade e do planeta. E agora? Hora de lembrar que somos seres emocionais, espirituais, sociais, culturais. Precisamos aprender a ser melhores do que somos, não para ser “os melhores” e alimentar a ideologia capitalista, mas para viver com maior qualidade e investir no ser. Educar para a paz e para a solidariedade não é um sonho ou ideal inatingível, é uma necessidade. Basta ler nossos jornais ou acompanhar as notícias televisivas, que dão tanto espaço para a violência, a guerra e o consumismo não consciente. A mídia poderia contribuir muito com a educação, dando espaço também para as boas ações humanitárias. Aprender a pensar diante de um mundo que apresenta tantas opções, informações e estímulos é fundamental para fazer as escolhas mais adequadas, não somente para nós, mas para os outros também, pois ter uma socie­dade mais humanizada traz benefí­cios a todos. Incluamos os outros em nossos pensamentos e ações. Façamos a nossa parte, bem feita e com conhecimento. Vik Muniz, artista brasileiro de renome internacional, uniu arte e ca­ta­do­res de material reciclado do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, para fazer algumas de suas obras. Com seu conhecimento fez arte e modificou a realidade de um grupo de pessoas. Assista a seu premiado do­cu­men­tá­rio “Lixo Extraordinário”. N NICE EWALD é pedagoga e gestora pedagógica em Timbó/SC


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