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Divulgação Novolhar

Os três alicerces

por Brunilde Arendt Tornquist

Esta é a história de três irmãos e trata do alicerce sobre o qual as pessoas constroem suas casas. Três irmãos, de origem pobre, sem família e sem perspectivas de futuro, tiveram que sair pelo mundo em busca de sua sorte.

O irmão mais velho conheceu um homem que lhe prometeu muito dinheiro com a venda de produtos contrabandeados e cargas roubadas. O trabalho era fácil, e o dinheiro entrava como água. Mas o sonho de ganhar dinheiro fácil é como um castelo de palha: desaba com um só sopro. E foi o que aconteceu quando a polícia desbaratou a quadrilha. O irmão mais velho conseguiu safar-se, era peixe pequeno. E ele viu que uma casa construída sobre o alicerce da desonestidade e da contravenção não resiste ao menor sopro.

E o lobo mau soprou, soprou, bufou, bufou, e a casa foi pelos ares.

Ele decidiu procurar seus irmãos.

O irmão do meio conheceu um homem que lhe ofereceu um emprego de auxiliar de pedreiro. Era um trabalho honesto e digno, mas o salário era baixo, e ele gastava tudo com festas, motos, e até drogas rolavam. Por um lado, queria perseverar e progredir. Por outro, havia aquele sopro tentador no ouvido: o trabalho é pesado demais! Ganha muito pouco! Nunca vai chegar a lugar nenhum assim! E esse sopro aumentou até virar ventania. E o irmão largou tudo. Quando caiu em si, estava de novo sem rumo nem arrimo. E ele viu que uma casa, para subsistir, tem que ser construída sobre o alicerce da perseverança.

E o lobo mau soprou, soprou, bufou, bufou, e a casa foi pelos ares.

Também ele foi em busca de seus irmãos.

O irmão mais novo conheceu um grupo que ajudava no encaminhamento de jovens. Esse arrumou uma moradia e um emprego para ele de office boy, com a condição de que voltasse a estudar e se empenhasse nos estudos. Quando a tentação de abandonar tudo assoprava em seu ouvido, balançava, confessa ele hoje, mas resistia e acabava não dando ouvidos à tentação. Não era fácil trabalhar de dia e estudar de noite. Não era fácil dizer não às baladas e a outras tentações. Mas venceu as dificuldades, cursou faculdade e hoje é um respeitado educador. Sua casa subsiste às intempéries porque foi construída sobre o alicerce da educação e do trabalho.

E lobo mau soprou, e bufou, e soprou, e bufou, e bufou e soprou mais ainda, até ficar roxo e perder o fôlego, mas a casa não caiu.

Então ele percebeu que essa casa era mais forte e que, por mais que soprasse, não conseguiria destruí-la.

Quando seus irmãos apareceram e relataram seus fracassos e frustrações, ele os acolheu em sua casa, sólida, e orientou-os na construção de suas próprias vidas. N

BRUNILDE ARENDT TORNQUIST é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo (RS)

Desafios de uma igreja jovem

por Rui Bender

Não é nenhuma novidade a penúria que sofrem as igrejas do continente africano. Especialmente depois que começaram a perder o apoio financeiro do Primeiro Mundo. É o caso da Igreja Evangélica Luterana de Angola (IELA), que viu sua ajuda por parte da igreja luterana da Finlândia minguar na última década. “Desde 2000, a situação começou a mudar. A Finlândia não podia mais pagar nossos obreiros”, lembra o secretário-geral da IELA, Mário Passala Velho (46). Mário é casado com uma professora de escola pública, Raquel Futi Velho. O casal tem seis filhos (um rapaz e cinco meninas). Desde janeiro, Mário está fazendo mestrado na Faculdades EST (São Leopoldo, RS) sobre o tema missão.

A IELA tem aproximadamente 40 mil membros e 56 pastores atuando em suas congregações. Com a perda da ajuda finlandesa, a igreja africana decidiu que cada congregação deveria assumir a remuneração de seus obreiros. Mas as congregações não conseguem apoiar financeiramente a igreja. “Nas cidades, os pastores apenas recebem ‘gratificações’”, observa Mário. Com isso “eles têm que se virar”. A igreja finlandesa continua ajudando nos trabalhos administrativos, mas isso significa “uma pequena gota”. Portanto, a igreja angolana tem muitos desafios pela frente.

O secretário-geral aponta que é preciso encarar de frente problemas no quadro de obreiros e funcionários administrativos. Outro desafio são os refugiados angolanos que retornam ao país em busca de atendimento e a igreja não consegue atendê-los. Por fim, Mário entende que a IELA precisa traçar um plano estratégico para assumir uma missão contextualizada. Atingir as cidades é uma grande tarefa. “Como igreja também temos a missão de reconstruir o país”, que sofreu com três décadas de guerra civil fratricida e somente há oito anos desfruta da paz, frisa Mário.

Mas há um outro desafio político que Angola enfrenta ultimamente. O enclave de Cabinda, no norte, quer sua independência de Angola. A Frente pela Libertação do Enclave de Cabinda monopoliza a guerrilha contra o governo angolano. Mário, embora nativo de Cabinda, teme a independência, porque ele acredita que então o vizinho país do Congo pode invadir com menos resistência a pequena Cabinda e anexá-la. Ele deseja, antes de tudo, a preservação da unidade nacional.

A igreja luterana de Angola está engajada primordialmente em duas áreas:

Rui Bender

MÁRiO VElhO: cOMO igREja tEMOs a MissãO DE REcONstRuiR O país QuE sOfREu cOM tRês DécaDas DE guERRa civiL fRatRiciDa E sOMENtE há OitO aNOs DEsfRuta Da paz.

saúde e educação. Na área da saúde, mobiliza-se na luta pela erradicação da malária e contra a proliferação da AIDS. Para isso mantém um centro de saúde. Na área da educação, a IELA sustenta cinco escolas em três províncias. A educação cristã é muito importante para a liderança luterana de Angola. Por isso ela busca estreitar laços com a IECLB. A mesma língua facilita o intercâmbio. “Há muito sangue africano no Brasil”, brinca Mário.

O secretário-geral da IELA entende que as relações IELA-IECLB ainda podem avançar. E a igreja brasileira está muito receptiva a isso, admite Mário. Na área da literatura, já existe uma boa parceria entre as duas igrejas. A IELA recebe os devocionários “Castelo Forte” e “Senhas Diárias”, da Editora Sinodal, e Bíblias com Hinário. Mas a IELA também mantém relações ecumênicas com coirmãs africanas. Por exemplo, participa da Aliança Evangélica de Angola e da Comunidade dos Luteranos do Sul da África.

Aliás, desde sua origem, a IELA traz a marca do ecumenismo. Ela tem dois nascedouros: um no sul e outro no norte. No sul de Angola, a igreja nasceu a partir do trabalho de missionários alemães no final do século 19. Em meados do século 20, a igreja luterana do sul passou a ser um distrito da igreja da Namíbia. Em 1973 chegaram missionários finlandeses, o que revitalizou a igreja, que ficou independente da Namíbia em 1992.

Antes disso, na década de 1970, refugiados angolanos no norte começaram a testemunhar a fé luterana. Na década de 1980, os luteranos do norte procuraram os do sul para construir uma união, que finalmente se concretizou em 1994. Nasceu então a Igreja Evangélica Luterana de Angola. N

Meta: acesso à moradia digna

por Silvana Campos

Odéficit habitacional no Brasil é de 6,273 milhões de domicílios, dos quais 5,180 milhões, ou seja, 82,6%, estão localizados nas áreas urbanas, segundo estimativas do ministério das Cidades em 2007. Na região Sudeste encontram-se 2,335 milhões, ou seja, 37,2% do total. Ela é seguida de perto pelo Nordeste, com 2,144 milhões (34,2%). Na região Sul, o déficit é de 703.167; na região Norte, de 652.684, e na Centro-Oeste, de 436.995. Para minimizar essas estatísticas, o ministério implementa a Política Nacional da Habitação, que pretende garantir à população de baixa renda acesso à habitação digna.

O programa Minha Casa, Minha Vida, no contexto dessa política, funciona com a concessão de financiamentos a beneficiários organizados por meio de alguma entidade de caráter associativo, como cooperativas, sindicatos, movimentos sociais e outros, com recursos do Orçamento Geral da União, aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social. Pode ter contrapartida complementar de estados, do Distrito Federal e dos municípios por intermédio do aporte de recursos financeiros, bens e/ou serviços necessários à composição do investimento a ser realizado.

Por exemplo, a organização de cadastros, a liberação de terras e a mobilização de empresas são ações que podem depender das prefeituras e dos governos estaduais. Com a parceria dos estados e municípios, as cons-

o PrograMa Minha Casa, Minha Vida já totaliza 247.950 unidades contratadas e R$ 13,8 bilhões de valor geral de vendas, correspondendo a 191.957 unidades contratadas de empreendimentos e 55.993 contratadas com pessoas físicas. São 3.066 propostas de empreendimentos com 619.036 unidades e R$ 36,85 bilhões recebidos na Caixa Econômica Federal. Dessas, 988 foram contratadas com 191.957 unidades, das quais 24.707 já foram financiadas pelas famílias. Em relação à faixa salarial, são 435 empreendimentos contratados de zero a três salários mínimos (R$ 5,6 bilhões e 134.766 unidades), 382 de três a seis salários mínimos (R$ 2,35 bilhões e 35.585 unidades) e 171 de seis a dez salários mínimos (R$ 1,78 bilhões e 21.606 unidades). São 80.700 unidades com famílias, incluídas as 24.707 unidades dos empreendimentos já financiadas com o mutuário final. O valor total aplicado é de R$ 5,7 bilhões, composto de R$ 4,1 bilhões de financiamento FGTS, R$ 1,2 bilhões de subsídio FGTS e R$ 404 milhões de subsídio. A meta final do Minha Casa, Minha Vida é construir um milhão de moradias.

iNêS MaGalhÃES, secretária Nacional de habitação do Ministério das cidades

trutoras terão maior possibilidade de ver seus projetos aprovados pela Caixa”, afirma Inês da Silva Magalhães, secretária nacional de habitação do ministério das Cidades.

As famílias que ganham até dez salários mínimos podem fazer o financiamento pelo Minha Casa, Minha Vida. O governo federal e a Caixa disponibilizaram três faixas de financiamento da casa própria, de acordo com o valor da renda familiar: de zero a três; de três a seis e de seis a dez salários mínimos. As famílias com renda familiar acima de dez salários mínimos não são contempladas pelo programa, mas podem financiar imóveis de até R$ 350 mil reais e usar o FGTS para financiamento de casas ou apartamentos de até R$ 500 mil reais.

Um dos destaques do programa é o baixo custo das prestações. Se a família tem renda familiar de até três salários mínimos, pode contar com financiamento total e não precisa pagar o seguro. O próprio programa paga para a família. Se a faixa de renda é de três a seis e também de seis a dez salários mínimos, pode-se financiar parte do imóvel, com valores de seguro bem mais baixos e acesso ao chamado Fundo Garantidor, criado pelo governo federal e pela Caixa, para garantir a entrega da moradia.

Nesse programa, o valor máximo da prestação é de 20% da renda familiar. Os gastos com cartório são bem menores ou até mesmo gratuitos para quem tem renda familiar de zero a três salários mínimos. O governo e o FGTS assumem a maior parte dos custos.

“Enquanto apenas um programa, o Minha Casa, Minha Vida não tem condições de dar resposta ampla e profunda que a questão habitacional no Brasil necessita”, comenta Marli Carrara, membro da União por Moradia Popular da Bahia – filiada à União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e Comunidade por Moradia Popular (CMP). Ela aponta para o perigo de se voltar a construir conjuntos habitacionais, verdadeiros “guetos”, baseada na localização de vários empreendimentos, distantes dos benefícios da cidade.

Porém analisa também que houve avanços nesse programa de habitação do governo: “Desde o início, foi reconhecido por todos os movimentos como um passo importante, pois se conformou como o maior aporte de recursos para habitação dos últimos trinta anos, com a maior contemplação na faixa de zero a três salários mínimos”. Ela comenta que o programa acertou ao assumir, pela primeira vez, de forma concreta, a necessidade de fornecer subsídio (integralização de recursos pelo governo federal da diferença entre o valor real da moradia e a capacidade real de pagamento das famílias) para aquelas pessoas na faixa de zero a três salários mínimos. N

Rodrigo Nunes/MCidades SILVANA CAMPOS é jornalista em Brasília (DF)

O legado dos amaldiçoados

a pOLítica cOLONiaLista pEsOu sObRE O haiti cOMO uMa sabOtagEM à EstRutuRaçãO DE uM ESTaDO iGUaliTÁRiO, capaz DE sERviR cOMO aLavaNca paRa O DEsENvOLviMENtO.

por Antonio Lassance

Atragédia que fez o Haiti desabar é mais um golpe sobre um povo com o qual toda a América Latina tem uma dívida histórica. O Haiti foi promotor dos ideais da Revolução Francesa, da luta contra a escravidão, do anticolonialismo e do americanismo bolivariano. Sob os escombros de sua tragédia, o Haiti carrega o fardo de uma trajetória sabotada. Compreender historicamente como essa região foi sistematicamente arrasada é a única maneira de evitar que se pense – como fez o presidente francês Nicolas Sarkozy – que uma maldição se abateu sobre aquele país.

Um breve panorama nos permite ver a injustiça contra um povo que tem um legado bendito para toda a América. A região onde se encontra o Haiti viu, ao longo dos séculos, o massacre de sua população indígena, a escravização de negros trazidos pelo tráfico, a divisão artificial em domínios fabricados ao gosto do colonizador (espanhol e francês), sua separação definitiva em dois – Haiti de um lado e República Dominicana de outro –, as tentativas de reconquista colonialista, a permanente intervenção norte-americana e frequentes golpes de Estado, entre eles o que deu origem a uma das ditaduras mais abomináveis que se pode mencionar (de Papa Doc e Baby Doc, de 1957 a 1986).

Essa é a herança que antecipa a extrema dificuldade que haverá para pôr novamente em pé um país que teve frustradas as suas tentativas de construção autônoma e democrática do Estado.

A região onde hoje se localizam o Haiti e a República Dominicana compunha o complexo das Antilhas, que havia se tornado, no século 18, o principal concorrente do açúcar brasileiro. Celso Furtado, no clássico “Formação Econômica do Brasil”, mostrou o impacto que causou o açúcar antilhano, mais barato do que o brasileiro, para a decadência daquele ciclo.

No final do século 18, ajudado pelo desenrolar da Revolução Francesa, a ilha antes unificada sob o nome de Santo Domingo foi sacudida pela revolta dos escravos. Confrontados com um povo que reclamava os próprios ideais proclamados pelos revolucionários, os franceses viramse obrigados a reconhecer o fim da escravidão. Fizeram-no como se fosse uma concessão, embora não houvesse outra opção.

Para além da moral revolucionária, os franceses estavam diante do levante de uma população negra organizada e armada para defender sua república. Enfrentá-la demandaria mobilizar forças que eram essenciais para defender a própria França da invasão estrangeira, patrocinada pelas demais monarquias europeias, aliadas ao rei deposto (Luís XVI).

Ao criar uma área livre de escravos, Santo Domingo provocou um efeito importante sobre toda a América. Criou o medo de que sua revolução se espalhasse, mostrou que era possível sobreviver sem escravismo e que se podia confrontar e vencer Napoleão (que queria reconquistar aquele território e trazer de volta a escravidão).

A Inglaterra, que vivera a experiência de intensas rebeliões de escravos na Jamaica, conjugou razões suficientes que a levaram a capitanear a luta contra o tráfico: o abolicionismo, o liberalismo e a geopolítica de contenção do domínio francês. Em 1815, o Congresso de Viena, que formalizou a derrota napoleônica, trouxe como uma de suas resoluções a extinção do tráfico de escravos (mesmo que limitada ao norte do Equador).

Os haitianos foram parte importante do processo que transformou o trabalho assalariado em opção mais vantajosa de exploração do trabalho do que a escravidão. Tornaram a abolição não apenas uma questão moral, filosófica e retórica, mas um tema político de primeira grandeza.

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O Haiti foi base de apoio a Bolívar em sua luta pela libertação da América espanhola e portuguesa. O país emprestou-lhe soldados, armas e munição com uma única condição: que Bolívar libertasse escravos onde quer que os encontrasse. A mesma generosidade levou-o a apresentar-se como opção para receber negros libertos vindos do sul dos EUA.

No século 19, o país foi diretamente afetado pelas doutrinas que propugnavam a supremacia dos EUA sobre todo o continente: a doutrina Monroe (“a América para os americanos”) e a do “destino manifesto”. No século 20, tal política desdobrou-se em prática de intervenção sistemática, sendo cunhada por Theodore Roosevelt como o big stick (“o grande porrete”).

A política colonialista europeia e depois a americana pesaram sobre o Haiti como uma sistemática sabotagem à estruturação de um Estado igualitário, soberano e capaz de servir como alavanca para o desenvolvimento de seu povo. É curiosa a tese de Samuel Huntington (“O Choque de Civilizações”), reproduzida por alguns jornais, de que o Haiti isolouse do resto do mundo. Infelizmente, ele não teve essa chance.

A falta de Estado explica agora a falta de estruturas minimamente preparadas para socorrer pessoas diante da atual tragédia. Consequência imediata: um país que, após o terremoto, tornou-se um retrato daquilo que Thomas Hobbes chamou de estado de natureza: a luta de todos contra todos pela sobrevivência imediata. Uma situação em que a vida se torna, mais uma vez citando o filósofo inglês, solitária, pobre, suja, brutal e breve. N

DESESTRUTURaDO:

a falta de Estado explica a falta de estruturas minimamente preparadas para socorrer pessoas diante da atual tragédia

ANTONIO LASSANCE é cientista político e assessor da Presidência da República – em www. alcnoticias.org

É melhor respeitar os limites

ESTaTíSTiCaS pROvaM QuasE tuDO. há aQuELas QuE afiRMaM QuE há aQuEciMENtO gLObaL E as QuE DizEM havER REsfRiaMENtO. Na DÚviDa, é MELhOR NãO uLtRapassaR cERtOs LiMitEs.

por Arno Kayser

Aestatística é curiosa. Pode provar qualquer coisa. A temperatura do corpo humano é de 37ºC. Quatro graus a menos, o corpo entra em hipotermia. Quatro graus a mais, temos febre. Ambas são situações de risco à saúde. Podemos olhar isso de várias formas, e nossa opinião pode ir do desdém ao alarmismo. De zero centígrado até a temperatura corporal, a variação supera 20%. Um dado preocupante. Do zero absoluto do universo até a temperatura corporal, a variação seria de 2,5%. Pouco para ser considerado preocupante. Se a referência for a oscilação térmica do sistema solar, o dado é irrelevante. Mas para o paciente, as consequências são as mesmas, independente dos tratamentos estatísticos.

A mídia brasileira tem dado voz aos climatologistas que defendem a tese do esfriamento global. Os mesmos que negam o aquecimento global e sustentaram a política do senhor Bush. Eles falam nos ciclos de aquecimento e resfriamento climáticos das últimas décadas para prever um período de resfriamento. Por esses dados, uma ideia defensável.

Os climatologistas que preveem o aquecimento falam de temperaturas altas nunca antes registradas, do derretimento de gelo glacial e, principalmente, de alterações da quantidade de gases-estufa na atmosfera. As perfurações no gelo glacial, que contém amostras da composição gasosa da atmosfera de centenas de milhares de anos atrás, apontam que o nível dos gases-estufa nunca foi tão alto. Os incrementos coincidem com a revolução industrial, baseada em combustíveis fósseis.

Os climatologistas do resfriamento nada dizem sobre o aquecimento recente. Ele contraria suas projeções, que indicavam um resfriamento a partir dos anos 1990. Quanto aos

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gases-estufa, dizem que, na dinâmica do carbono no planeta, os fenômenos não-humanos movimentam bilhões de toneladas deles, enquanto as emissões humanas são de milhões.

Por serem dados estatísticos tão insignificantes em relação à movimentação total, defendem que reduzir emissões é bobagem e criticam os leigos, políticos e empresários dizendo que não entendem de clima e que tudo é uma guerra econômica e política. Por isso defendem o uso de combustíveis fósseis. Admitem a contribuição para a poluição, mas não veem mal em lançar gás carbônico no ar. Esse seria o “gás da vida” – e não o vilão ambiental.

De fato, ele é fundamental para a fotossíntese nas plantas. Mas seu teor é muito homogêneo na atmosfera e não é causa da diversidade da vida vegetal. Ela se diversifica em função da variação de fatores atmosféricos, como umidade, temperatura, insolação e ventos. Isso explica a biodiversidade e não o nível de gás carbônico de cada local.

Ao xingar seus rivais, leigos ou não, de lobistas de uma guerra geopolítica e comercial, mostram que também estão nessa guerra ao lado da indústria dos combustíveis fósseis. Políticos e empresários têm seus interesses particulares e nem sempre estão preocupados com o meio ambiente. Mas isso não significa que não devamos nos preocupar com as mudanças climáticas.

Se vai esfriar ou esquentar, isso é o de menos. Como no corpo humano, tanto a hipotermia como a febre do planeta podem gerar dor, sofrimento e morte. Do mesmo modo, a contribuição humana de emissões de gasesestufa pode ser pouca em relação à dinâmica da biomassa do planeta.

Mas, se estatisticamente é pouco significativa, na prática pode ter o mesmo impacto na saúde do planeta que alguns poucos graus têm no corpo humano. Nenhum médico vai justificar com estatísticas a omissão de cuidados num quadro de febre ou hipotermia. Ele vai agir e depois discutir a causa. A gente deveria ter essa postura também. Mas estamos discutindo muito e agindo pouco.

Em nome da ciência, devemos ouvir os climatologistas do resfriamento. Mas ouvir questionando-os sobre a fonte dos recursos das pesquisas e sobre suas opiniões políticas. Também questionando seus dados em relação aos defensores do aquecimento global. Mas, principalmente, perguntando a razão da vida ter fossilizado bilhões de toneladas de carbono ao longo de milhões de anos. Que motivo estratégico ela tinha para isso? Será que podemos mudar isso queimando carbono fóssil na velocidade de hoje, sem pôr algo em risco?

Na dúvida, é melhor não ultrapassar certos limites. Portanto menos emissões e mais fixação de gás carbônico. Enquanto isso, continuem questionando as “verdades estatisticamente comprovadas” que chegam até nós. N

ARNO KAYSER é agrônomo, escritor e ecologista em Novo Hamburgo (RS)