Trabalho. Um direito, um dever - Revista Novolhar, Ano 8, Número 33, Maio e Junho, 2010

Page 1



10 a 23 capa

Trabalho

Direito e dever. Legislação. Currículo. Segurança. Cooperativas. Inclusão.

ÍNDICE

Ano 8 –> Número 33 –> Maio/Junho de 2010

34

26

32

31

O legado dos amaldiçoados

Homero Severo Pinto, dedicação à missão

Programa Minha Casa Minha Vida, uma possibilidade

Desafios de uma igreja jovem

haiti

EM MEMÓRIA

28

olhar com poesia Momento e momento

27

tecnologia

A luta pela sobrevivência e o lixo tecnológico convivem na África e nos países pobres

36

CLIMA

É melhor respeitar os limites

habitação

áfrica

SEÇÕES ÚLTIMA HORA > 6 NOvolhar sobre > 6 notas ecumênicas > 8 REflexão > 24 REtratos > 28 conto > 30 ecumenismo > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

3


AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Antonio Lassance, Arno Kayser, Brunilde Arendt Tornquist, Carine Fernandes, Carlos Humberto Mendes Gothchalk, Emilio Voigt, Germanio Bender, Harald Malschitzky, Louraini Christmann, Luciana Reichert, Luciana Thomé, Martin Volkmann, Mauro Batista de Souza, Neslon Kilpp, Odete Zanchet, Paula Oliveira, Rui Bender, Santiago, Silvana Campos e Susanne Buchweitz

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

4

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

Ao trabalho!

O

educador e filósofo Paulo Freire (19211997), entre seus muitos ensinamentos que perduram na atualidade, deixou-nos um pensamento que está por detrás do tema de capa desta edição. É dele o pensamento: Não é no silêncio que as pessoas se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. As diferentes abordagens sobre o trabalho contidas nas páginas iniciais querem provocar a reflexão e trazer informações sobre esta atividade humana que nos acompanha há séculos. Como conceituar trabalho nos dias atuais quando ouvimos falar de vocação, desemprego, ações trabalhistas, direitos adquiridos, qualificação, crescimento, em­preen­do­ ris­mo...? São muitas as implicações pertinentes ao mundo do trabalho e que hoje adquirem uma configuração muito diferente doaquela do passado. Aliás, no passado estão os palcos de muitas conquistas que hoje ainda beneficiam trabalhadores urbanos e rurais. Nossa memória, muitas vezes, desconhece ou omite uma história de lutas e conquistas que possibilitaram condições dignas para os trabalhadores também na atualidade. Também é fato inegável que, quando o assunto é trabalho, logo vem à tona a discussão em torno dos direitos, principalmente, quando a gente se sente prejudicado. Mas não dá para seguir nessa discussão sem lembrar também que há deveres no trabalho. Sim, trabalho é um direito de todas as pessoas, mas também um dever. Assim formulado, muita gente gosta apenas de ouvir um lado. O dos direitos. Deveres são fundamentais para que o trabalho seja realizado com competência, com alegria, com responsabilidade, com conhecimento. O pensador indiano Rabindranath Tagore (1861-1941) dá sua contribuição à reflexão, ao lembrar que o trabalho só nos cansa, se não nos dedicarmos a ele com alegria. Informações sobre o programa Minha Casa Minha Vida, reflexões sobre a identidade ecumênica da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, sobre a festa de Pentecostes e sobre a crise da masculinidade estão contidas nos artigos que você vai encontrar nas páginas desta edição. Certamente eles ajudarão você a cultivar um novo olhar acerca da vida ao seu redor. Boa leitura! Equipe da Novolhar


opinião do leitor

LIVROS DA SINODAL

Casa: lugar para viver

Gostaria dar os parabéns a toda a equipe pelo conjunto das matérias, que ficaram muito interessantes, sem falar na qualidade da revista. Busquei mais alguns exemplares, que vou repassar a atores direta ou indiretamente envolvidos no tema. Alvaro Pedrotti Porto Alegre (RS) Com NOVOLHAR, a nossa casa fica melhor para viver, mais informada, com artigos que nos convidam a refletir, em especial o da Sabrina Nunes Bolla, sobre a nossa luta (“Uma conquista de todos”). Ele impulsiona as mulheres a seguir na busca permanente pelo seu espaço. Parabéns à equipe elaboradora! Continuem nos presenteando com boas leituras. Obrigado! Lourdi Bender Três de Maio (RS)

Agradecimento

Fico feliz que Sônia Lopes do CEPI manifestou interesse nos materiais da Editora Sinodal. Sônia teve acesso à revista Novolhar (o exemplar – Ano 7, n° 29, de setembro e outubro de 2009) numa etapa do curso de pós-graduação Lato Sensu Educação, Diversidade e Cultura Indígena, do qual ela participa. O curso é uma realização do COMIN/ Faculdades EST. Aproveito para agradecer que em outros momentos, especialmente na divulgação de algum artigo sobre povos indígenas abordado por esta revista, vocês dis­po­ni­bilizaram exemplares para tal. Agradeço por essa parceria! Cledes Markus São Leopoldo (RS)

Visite nosso site

Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Diga o que pensa Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre os artigos e as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br

Tema da próxima edição

A edição nº 34, de Julho/Agosto de 2010, terá como tema de capa CUIDADO DO CORPO E SAÚDE. Aspectos de higiene, de prevenção da saúde e assuntos relacionados.

por Martin Volkmann Jörg Zink, teólogo alemão, é um autor que escreve teologia para a comunidade. Seus livros abordam temas centrais da teologia, que são tratados com profundidade e, ao mesmo tempo, de uma forma facilmente compreensível mesmo para quem não é estudioso de teologia. Isso também vale para o livro Quem crê pode confiar – Uma introdução à fé cristã. O subtítulo – introdução – já dá a entender o objetivo do autor: ele quer introduzir o leitor nos aspectos centrais da fé cristã. E assim ele aborda, por exemplo, a pergunta: qual é o proveito que nós temos quando cremos? Ao responder essa pergunta, o autor destaca a importância da fé para a vida da pessoa a partir de sua própria experiência de fé. Mas ele não impõe isso como verdade última. Ele permite a você ver isso que ele escreve de outra forma. Ele convida você para continuar a “pensar com paciência e cuidado sobre aquilo que é fundamental para a sua própria fé” (p. 9). Outros tópicos analisados são: A concepção de Deus; a continuidade diária da criação por Deus; Batismo e Eucaristia como alimentos da fé; os mandamentos como orientação de vida; a esperança como transformação de todas as coisas e alimento para uma vida serena. MARTIN VOLKMANN é teólogo e professor na Faculdades EST em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

5


Foto: Eloy Teckemeier

última hora

Elisa (E) e Charles (D) realizaram o sorteio dos prêmios da campanha de renovação de assinaturas 2010

novolhar sobre

Revistas da Sinodal entregam prêmios

Turismo sem exploração sexual de crianças

A Editora Sinodal realizou a campanha de renovação de assinaturas 2010 das revistas Novolhar e O Amigo das Crianças, com sorteio de prêmios entre os participantes. Em janeiro de 2010, na Livraria Sinodal, em São Leopoldo, foi realizado o sorteio com a participação de Elisa C. Jahnke Werlich e do pastor Charles Werlich, ambos de Teófilo Otoni (MG). Os seguintes assinantes foram contemplados e já receberam seus prêmios: Pela Novolhar, Alceu Loreno Stein, de Novo Hamburgo (RS), recebeu uma máquina fotográfica digital. A Paróquia Evangélica Pato Branco (PR) recebeu uma TV 20 polegadas. Pela O Amigo das Crianças, a Paróquia São Lucas-Porto Alegre (RS) recebeu uma bicicleta de 18 marchas e Maria M. Ecker­leben, de São Vendelino (RS), uma máquina fotográfica digital.

O ministro do Turismo, Luiz Eduardo Pereira Barretto Filho, e o reitor da Universidade de Brasília (UNB), José Geraldo de Souza Júnior, apresentaram no dia 30 de março as metas e investimentos para o Projeto Nacional de Prevenção à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Turismo de 2010, com novas ações a serem adotadas em todo o Brasil. O objetivo é aumentar o número de parceiros e formar mais multiplicadores. Há ainda ações a serem elaboradas de olho na realização de dois grandes eventos mundiais: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, ambas no Brasil, com um aumento de cerca de 600 mil turistas. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), há mais de dois milhões de meninas e meninos vítimas de redes de exploração sexual, entranhadas na cadeia produtiva do turismo em todo o mundo. No Brasil, a situação é crítica em muitas capitais, onde exploradores do sexo atuam impunemente.

Conselho Tutelar por Odete Zanchet O Conselho Tutelar é um órgão relativamente recente no país e trouxe grandes inovações para a política de proteção à infância brasileira. Está previsto na Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que o define, em seu art. 131, como órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Uma vez criado o Conselho Tutelar (através de Lei Municipal), não poderá ser extinto, apenas renovada sua composição. Está vinculado ao executivo municipal, mas não se subordina a ele. Como órgão não-jurisdicional, é instrumento para a desjudicialização das questões sociais, trazendo-as para a competência das políticas públicas. As atribuições do Conselho Tutelar estão previstas no ECA (art. 136) e podem ser resumidas assim: atender crianças e adolescentes e responsáveis e aplicar medidas, requisitar serviços e representar junto ao judiciário em caso de descumprimento, encaminhar infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou do adolescente, encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência, tomar providências para que sejam cumpridas as medidas protetivas, expedir notificações e requisitar certidões, assessorar o poder executivo na elaboração do orçamento, representar contra a violação dos direitos e fiscalizar as entidades de atendimento. ODETE ZANCHET é advogada em São Leopoldo (RS)

6

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR


está na agenda

Comissão de Projetos

Encontro nacional de associações de pais

A Comissão de Avaliação de Projetos da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), com sede em Porto Alegre (RS), realiza sua primeira reunião anual, de 27 a 29 de maio, para análise dos projetos enviados até o dia 31 de março. Os projetos aprovados serão divulgados no site da entidade no dia 4 de junho. O início da execução dos projetos aprovados está previsto para julho. Mais informações: www.fld.org.br.

O Centro Sinodal de Ensino Médio de Sapiranga (RS) – Escola Duque – hospeda no dia 26 de junho o 8º Encontro Nacional de Associações de Pais das escolas da Rede Sinodal de Educação. O evento reúne associações de pais e professores das escolas para partilhar experiências e realidades e estimular a participação das famílias na vida escolar, mantendo o foco comunitário das escolas evangélicas. “Escola de ontem x escola de hoje: que escola nossos filhos terão?” é o tema do 8° Encontro Nacional de Associações de Pais. O encontro reunirá aproximadamente 50 pessoas. Informações: www.duque.g12.br.

olhar com humor

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

7


Notas ecumênicas

Bíblia “É uma necessidade entender que a Bíblia é uma literatura narrativa, desde a concepção oriental. Essa é a razão pela qual Deus nos surpreende com os diferentes recursos que usa para comunicar a sua mensagem de libertação.” Dr. Edesio Sánchez, da Sociedades Bíblicas Unidas, em conferência em Quetzaltenango, na Guatemala, em março deste ano.

Oriente Médio

Perseguição

“Não tomamo s partido ne sse conflito e não discrim inamos ning uém, porém não somo s neutros qu anto aos princípios do s direitos hu manos e do direito huma nitário intern acional. Estamos fielmen te com os po oprimidos e bres, os os marginal iz ados. Queremos servir todas as par Manuel Quin tes.” tero, Coordena dor ni

Dos 2 bilhões de cristãos no mundo, pelo menos 100 milhões sofrem algum tipo de opressão ou perseguição, de modo especial em países islâmicos. De cada 100 pessoas no mundo 19 são muçulmanas, 18 não têm religião, 17 são católicas, 17 são ortodoxas, anglicanas, protestantes, evangélicas e pentecostais, 14 são hindus e 6 são budistas. Os dados são da ONG Missão Portas Abertas.

co de Acompanh

Mudanças

“Cremos que é o momento para que os países e as igrejas da América Latina se envolvam para pedir mudanças nas políticas de Washington. É a oportunidade para que oremos a nosso Deus e solicitemos ao presidente Obama que contribua com uma solução não-militar ao conflito interno na Colômbia, que detenha o deslocamento, ajude as vítimas da violência e abra caminhos para a paz”, reivindica o Observatório Igreja e Sociedade na Colômbia.

Divulgação Novolhar

Atentado O primaz da Comunhão Anglicana na América Central e bispo da Igreja Anglicana de El Salvador, Martin Barahona, 67 anos, e dois colaboradores próximos foram vítimas de atentado perpetrado em Santa Tecla, bairro da capital, no dia 17 de março. Martinez foi atingido no estômago e no braço. Ele se encontra em estado grave, “mas estável”.

Divulgação Novolhar

Nigéria

8

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

do Programa Ec umêtina e Israel do Conselho Mundial de Igre jas (CMI)

amento à Pales

O secretário-geral do Conselho Mundial de Iglesias (CMI), pastor Dr. Olav Fyhse Tveit, expressou “dor e comoção” pelos recentes atos de violência ocorridos na Nigéria, onde, segundo autoridades, centenas de pessoas foram assassinadas no início de março em povoados próximos à cidade de Jos, no estado de Plateau, no centro do país. “Os contínuos conflitos e atos de violência em várias partes da Nigéria demonstram que esses lamentáveis acontecimentos se veem exacerbados por diversos fatores, tais como as disparidades econômicas, o subdesenvolvimento, as rivalidades étnicas e a luta por controlar o poder político” – Dr. Olav Fyhse Tveit em carta ao presidente em exercício na Nigéria, Goodluck Jonathan.


Luteranos O número de fiéis das igrejas vinculadas à Federação Luterana Mundial (FLM) cresceu na África e na Ásia, experimentou um leve acréscimo na Europa, mas estagnou na América Latina e no Caribe e diminuiu na América do Norte. Com a filiação de 1,58 milhão de novos fiéis nas 140 denominações de 79 países, a comunhão luterana passou a somar, em 2009, 70.053 milhões de fiéis, um crescimento de 2,3% em comparação a 2008.

Luteranos na América Latina A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), com 717 mil membros, estáveis, é a maior denominação na América Latina filiada à FLM. As demais igrejas luteranas da América Latina e do Caribe somam, no total, 837,6 mil membros.

AIDS

“Quando nos aproximamos do HIV, não é para converter o outro, mas se trata de um processo de conversão primeiro pessoal e segundo institucional, com o objetivo de construir uma sociedade e uma igreja mais inclusivas.” Lisandro Orlov, pastor luterano da Argentina, ao participar do Congresso Centro-Americano de HIV/Aids (Concasida) 2010, reunido em San José, Costa Rica.

dica cultural

Visite a Andi A Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), fundada em 1992, em São Paulo, iniciou um trabalho inovador com a mídia por meio de ações de conscientização, qualificação e mobilização na área dos direitos da criança e do adolescente. Em 2000, nasce a Rede ANDI Brasil, que hoje conta com as afiliadas: ANDI, Central Cipó de Notícias/BA, Auçuba Comunicação e Educação/PE, Agência Uga-Uga de Comunicação/AM, Central de Notícias dos Direitos da Infância e Adolescência/PR, Oficina de Imagens Comunicação e Educação/MG, Agência de Notícias da Infância Matraca /MA, Catavento Comunicação e Educação/CE, Instituto Terramar/RN, Instituto Recriando/SE e Girassolidário – Agência de Notícias em Defesa da Infância /MS. Dentre os objetivos da Rede ANDI destacamos: o fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos e a criação de uma cultura de participação infanto-juvenil na mídia e na sociedade. O site www.andi. org.br oferece seções como: Pauta e Releases, Infância na Mídia Hoje, Jornalista Amigo da Criança, Universidades e Agenda Social, Publicações, Banco de Fontes, Banco de Pautas, entre outras. Vale a pena conferir esse site para buscar informações sobre acontecimentos relacionados à infância e à juventude em nosso país. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

9


Trabalho – um direito e um dever

Valdas Zajanckauskas

CAPA

DISTINÇÃO: Trabalho é diferente de emprego, um conceito surgido na era da industrialização

mais do que fonte de renda, o trabalho é uma oportunidade de prestar serviço às pessoas e à sociedade. nesse sentido, qualquer trabalho é digno, seja intelectual ou braçal. por Rui Bender

T

rabalho e emprego – a maio­ria das pessoas pensa que são a mesma coisa. Mas não são. Ambos têm significados diferentes. O trabalho é mais antigo do que o emprego. Existe desde que o ser humano começou a fazer utensílios e ferramentas. Já o emprego é algo recente

10

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

na história da humanidade. Surgiu durante a Revolução Industrial. É uma relação entre quem organiza o trabalho e quem o realiza, portanto uma espécie de contrato. Na antiguidade, o trabalho não merecia a atenção das pessoas educadas, ricas ou com autoridade. Era considerado uma atividade despre-

zível e inferior. Trabalho era aquilo que faziam os escravos. Não existia a noção de emprego. Também não havia na Idade Média. Apenas na era moderna as coisas começaram a mudar, com o advento da Revolução Industrial. “Entre o menosprezo do trabalho e sua exaltação decorreram muitos séculos”, lembra o Dr. Gerson Antonio Pavinato, juiz titular da Vara do Trabalho de Estância Velha (RS). SUBORDINAÇÃO – Há uma característica comum do trabalho que perpassa todos os tipos de sociedade, desde a escravagista até a industrial: a subordinação de quem vive do trabalho prestado a outra pessoa. Durante a Revolução Industrial, essa ideia


se acentuou. Os trabalhadores eram sempre a parte mais fraca na relação de trabalho. Por isso ganharam espaço normas de proteção. Surgiram então as primeiras leis protetoras dos trabalhadores. Elas se tornaram necessárias “quan­ do aflorou a consciência de que o trabalho, além de ser um dos direitos naturais do ser humano, é um dever pessoal e um dever social”, frisa o juiz Pavinato. Ele entende que “devemos reconhecer o direito ao trabalho, direito esse que radica no próprio direito à vida”. E acrescenta: “Mas, a par de um direito, o trabalho é também um dever social”. A coletividade não pode sobreviver sem o trabalho. Esse é fonte de sustento para todos. A humanidade já teria desaparecido sem o trabalho. No mínimo, teria morrido de tédio. Portanto o trabalho é uma obrigação dos seres humanos perante a própria coletividade. “Sendo, pois,

o trabalho um direito, esse deve ser respeitado. E o Estado deve intervir para estabelecer as normas desse direito”, exige Pavinato. As primeiras manifestações do intervencionismo estatal na relação contratual de trabalho aconteceram na Inglaterra, país em que primeiro ocorreu a Revolução Industrial. Foi na linha de proteção dos trabalhadores que esteve a origem da Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919. Mas esse instrumento de proteção não garantia condições ideais de trabalho. DIGNIDADE – Fala-se muito hoje de trabalho justo, digno e reconhecido. Por trabalho justo geralmente se entende salário justo. Para ser justo, o salário deve ser calculado de forma a permitir uma vida digna. Quando se fala de trabalho digno, isso significa condições ideais de trabalho. E trabalho reconhecido significa que

o trabalhador deve poder fazer a experiência de sentir que sua atividade é reconhecida e valorizada. O juiz Pavinato observa que a Constituição Federal (art. 7º, IV) assegura um salário mínimo capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família. Mas na prática isso não ocorre. “Há trabalho que não é honrado com salários altos, assim como há trabalho honesto com salário injusto”, comenta o juiz. Contudo, o conceito de trabalho não se limita ao trabalho remunerado. Para a socióloga portuguesa Heloísa Perista, se restringirmos o conceito de trabalho apenas à ideia de salário ou pagamento, estaremos excluindo uma parte significativa, especialmente o trabalho exercido pelas mulheres no lar e que não tem visibilidade na sociedade. Na cosmovisão bíblica, qualquer trabalho é digno e importante, seja intelectual ou braçal. Mesmo aquele que parece menos relevante. Qualquer que seja a nossa atividade, ela é uma oportunidade de serviço às pessoas e à sociedade. No tocante ao direito do trabalho, Pavinato observa que nossa CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) tem 922 artigos, que, somados aos parágrafos e alíneas, representam milhares de normas trabalhistas para regular um contrato de trabalho entre duas pessoas. O juiz lastima que a CLT “está enferrujada, pois regula horário de sobreaviso de quem trabalha em estação de trem, ignorando as novas

Clovis Lindner

>>

PAVINATO: As primeiras leis protetoras dos trabalhadores tornaram-se necessárias quando aflorou a consciência de que o trabalho, além de ser um dos direitos naturais do ser humano, é um dever pessoal e um dever social.

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

11


EMPATIA – O juiz de Estância Velha revela uma grande empatia para com os trabalhadores. Por exemplo, ele encara com bons olhos a redução da jornada de trabalho para quarenta horas semanais. “Assim a jornada de oito horas voltaria a ser normal, quando hoje é exceção, pois se compensam as quatro horas de sábado com mais trabalho na semana”, afirma. E trabalhador cansado corre mais risco de acidente. “O Brasil é campeão mundial em acidentes de trabalho”, constata o magistrado. Sem contar que trabalhador cansado, quando se acidenta no trabalho, tem esse componente para análise da culpabilidade voltando-se contra a empresa. Pavinato resgata: “O direito à jornada de oito horas vem de 1919”. Por outro lado, o juiz do Trabalho não demonstra simpatia pelo banco de horas. “É inconstitucional ao retirar o consagrado direito ao pagamento de horas extras de quem labora além da jornada de oito horas ou carga semanal de quarenta e quatro horas, dois únicos critérios constitucionais para a aferição de horas extras”, afirma. Pavinato lamenta que a Justiça do Trabalho só consegue fazer a justiça do desempregado. Acontece que os trabalhadores só buscam a Justiça do Trabalho quando estão desempregados. “Sem a estabilidade no emprego, dificilmente um trabalhador de empresa privada tenta reparar algum direito que entende sonegado, temendo ser despedido por justa causa”, reconhece o juiz. Além disso, a justiça é lenta. “Há muitos entraves na legislação até que

12

PAVINATO: Prego que a conciliação é a mais barata, mais rápida, mais segura e mais democrática de todas as decisões, por ser a úni­ca em que as partes decidem com o juiz, tornando a decisão irrecorrível já na origem. A ninguém interessa uma definição que venha após longos anos de espera. A justiça pode ser mais célere, e isso depende de nós operadores do direito, infelizmente formados para o litígio e não para o acordo.

atividades surgidas na era da informática”. A lei precisa adequar-se a seu tempo. “Alguém já disse que, quando o direito ignora a realidade, a realidade vinga-se do direito, ignorando-o”, avisa o magistrado.

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

Clovis Lindner

>>

o direito seja declarado de forma definitiva”, comprova Pavinato. Qualquer parte pode recorrer três vezes a instâncias superiores (Regional, Superior e Supremo). “Não há justiça cé­le­re com tantas barreiras”, conclui o juiz. Para evitar essa delonga, Pavinato prioriza a conciliação, “desarmando espíritos”. CONCILIAÇÃO – A legislação impõe a iniciativa do juiz para propor a conciliação entre as partes. “O termo de conciliação, que pode ocorrer já na primeira audiência, uma vez homologado pelo juiz, equivale a termo irrecorrível”, explica o juiz. É uma forma de acelerar o processo. “Prego que a conciliação é a mais barata, mais rápida, mais segura e mais democráti-

ca de todas as decisões, por ser a úni­ca em que as partes decidem com o juiz, tornando a decisão irrecorrível já na origem”, enfatiza o magistrado. Ademais, tempo é dinheiro, e “a ninguém interessa uma definição que venha após longos anos de espera”. O magistrado comenta que o Brasil é líder mundial em processos trabalhistas. São “cerca de dois milhões de novos processos por ano, quando a Alemanha tem dez mil e o Japão mil”. Ele acrescenta que “somente na jurisdição de Estância Velha ingressam anualmente mais processos do que no Japão inteiro”. O que mais se discute são diferenças de horas extras, adicional de insalubridade ou peri­cu­lo­sidade, bem como o reconhecimento de vínculo empregatício. Ultimamente, há um número significativo de ações visando danos morais, materiais e estéticos decorrentes de acidentes de trabalho. Em consequência de sua postura conciliatória, o juiz Pavinato celebra a liderança em acordos trabalhistas nos últimos anos não apenas no estado do Rio Grande do Sul, mas em todo o país. O magistrado menciona que, em Estância Velha, juntamente com a colaboração dos advogados, foram alcançados índices de 95% em acordos trabalhistas nos processos do rito sumaríssimo (valor da causa até 40 salários mínimos) e 65% nos processos do rito ordinário (valor superior a 40 salários). Na Semana Nacional da Conciliação, instituída em todo o país pelo Conselho Nacional da Justiça, “tivemos semanas com índices de 95% a 100% de acordos”, orgulha-se o juiz Pavinato. Ele admite: “A justiça pode ser mais célere, e isso depende de nós operadores do direito, infelizmente formados para o litígio e não para o acordo”. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)


CAPA

Rumo às 40 horas semanais A redução da jornada de trabalho é uma reivindicação dos trabalhadores. trAmitA no Congresso nacional um projeto que quer a jornada de 40 horas. por Paula Oliveira

R

EDSON TRAJANO: A redução da jornada distribuirá melhor os ganhos de produtividade resultantes da inovação tecnológica. Será uma nova divisão da renda, em especial dos ganhos de produtividade, em favor dos trabalhadores, que é justa em um cenário de crescimento da produtividade como o atual.

citada por sindicalistas; do outro, o aumento do custo de produção, temido por empresários. Como lidar com tudo isso? Segundo Elizete Moraes, coordenadora de RH de uma rede de

>>

Paula Oliveira

eduzir ou não a jornada de 44 horas para 40 horas semanais vem gerando muita polêmica. Os argumentos são bem convincentes. De um lado, a criação de mais postos de trabalho,

comunicação, cabe aos empresários analisarem o que a empresa deseja dos colaboradores e o que é melhor para os colaboradores da empresa. É realmente necessário que cada colaborador cumpra uma jornada de trabalho diária de oito horas ou mais para ser produtivo? Por outro lado, o que a redução de uma hora diária de trabalho pode proporcionar de benefício a ele e sua família? Ainda um fator importante para refletir é a qualidade de vida. Não é segredo para ninguém que jornadas de trabalho intensas podem resultar em problemas de saúde, como depressão, lesões por esforço repetitivo, entre outros. “Reduzir a jornada de trabalho trará benefícios para o próprio empresário, pois o trabalhador motivado, com tempo para qualificar-se, sente-se mais empenhado, a produção rende e o lucro, por consequência, aumenta”, conclui Elizete. Já o economista Edson Trajano, professor da Universidade de Taubaté

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

13


CAPA (SP), defende que a redução da jornada pode gerar o aumento dos postos de trabalho. “A emenda contribuirá para a queda na taxa de desemprego no país”, afirma. E os números apresentados impressionam. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a redução da jornada de trabalho vai inserir mais de 2,5 milhões de pessoas no mercado de trabalho. Mas a redução tem que vir acompanhada de outras medidas complementares para que seja efetiva. Caso contrário, pode aumentar a in­for­ma­ lidade na economia e causar prejuízos aos empresários formais, que pagam todos os impostos, frente aos informais, que não pagam. Também os trabalhadores informais, principalmente os que fazem “bicos”, podem ser prejudicados. “Muitas empresas aproveitam-se desses trabalhadores para pagar salários menores, pois não pagam impostos e direitos trabalhistas, como férias, décimo terceiro, INSS. A mudança na jornada de trabalho não protege esse grupo que trabalha na informalidade”, afirma Trajano. “Nesse caso, o trabalhador terá mais tempo livre e poderá fazer mais ‘bicos’. A alternativa é que a proposta da redução da jornada venha acompanhada da proibição da dupla jornada e de uma punição maior às empresas que

Bom curr rede de r

contratam trabalhadores informais”, diz o economista. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 231, de 1995, prevê, além da redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas, o aumento da hora extra de 50% para 75% e tem encontrado resistência entre os empregadores, como, por exemplo, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que já se manifestou contrária à medida. O argumento do setor empresarial é que, com a redução da jornada de trabalho, o aumento do custo de produção não será acompanhado do aumento da produtividade do trabalho. As entidades patronais mobilizamse em defesa do interesse das empresas e, segundo elas, não há nenhuma possibilidade de adotar a medida sem comprometer a competitividade das empresas e ameaçar o emprego. “Por outro lado, a redução da jornada distribuirá melhor os ganhos de produtividade resultantes da inovação tecnológica. Será uma nova divisão da renda, em especial dos ganhos de produtividade, em favor dos trabalhadores, que é justa em um cenário de crescimento da produtividade como o atual”, afirma Edson Trajano. N

perfil empreendedor, encarar desafios como oportunidades e inovar sempre abrem portas na busca do emprego dos sonhos. por Luciana Thomé

O

PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP)

Herman Brinkman

>>

14

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

mundo passou por uma grande trans­for­ma­ção na última década. O mercado de trabalho e o perfil dos profissionais também mudaram. Com a internet, as vagas estão a um clique de distância e, tão importante quanto a experiência e a especialização, uma boa rede de contatos possibilita novas oportunidades de emprego e carreira. Um levantamento do Sistema Nacional de Emprego (Sine) indica que os jovens de 16 a 24 anos têm 3,5 vezes mais dificuldade de conseguir um emprego do que as demais faixas etárias. Driblar essa realidade é o principal papel do Centro de Integração Escola-Empresa (CIEE). “O estágio preenche essa lacuna e dá a oportunidade das primeiras experiências na vida profissional”, enfatiza o Gestor de Relações Institucionais do CIEE/ RS, Cláudio Bins. Além disso, as exigências no perfil dos candidatos alteraram-se desde a década de 1990. Agora, para a maioria das vagas, são solicitados conheci-


Emin Oskan

ículo e elacionamentos

mentos de informática e em­pre­en­de­ do­ris­mo. De acordo com Bins, 90% das vagas disponíveis para estagiários requisitam domínio de computadores e softwares. E empreender não precisa estar relacionado à abertura de um negócio, mas no sentido do profissional ter um perfil empreendedor, encarar os desafios como oportunidades e inovar sempre.

E quando o profissional já está con­solidado, o que mais atrapalha no momento de conseguir um emprego? A insegurança. Especialistas em gestão de recursos humanos indicam que romper essa barreira psicológica é essencial. A qualificação técnica e o conhecimento são imprescindíveis. No entanto, os profissionais que têm uma autoestima mais consolidada e

são mais corajosos e impetuosos conseguem a vaga com mais facilidade. Segundo a vice-presidente de Eventos Científicos da Associação Bra­­sileira de Recursos Humanos (ABRH-RS), Lígia Silveira, o profissional do futuro será aquele que tiver gestão sobre a própria carreira. “Em­pre­ga­bilidade, sucesso e dinheiro são consequências. Para ser bem-sucedido, é preciso traçar um plano de voo, pois a pessoa não vai conseguir chegar a algum lugar se não souber onde é”, ressalta. Para Lígia, duas ferramentas devem favorecer o trabalhador: um bom currículo e uma rede de relacionamentos. “No currículo, é importante sinalizar não só as funções exercidas, mas o que foi feito efetivamente pela empresa”, explica. A networking deve ser valorizada e protegida. “A rede de relacionamentos não pode ser interesseira, mas interessada, e promover uma troca entre as partes”, declara. A verdade é que não existe uma fórmula pronta para entrar ou rein­gres­sar no mercado de trabalho. A conquista passa por estudo, força de vontade e qualificação. E um novo ingrediente é adicionado: auto­co­nhe­cimento. “Sempre há espaço para quem conhece o seu próprio talento. Isso passa também pela paixão no que se faz”, afirma Lígia. Esta é a lição que precisa ser valorizada: descubra o seu talento e encontre um lugar onde ele pode ser aproveitado. O físico Humberto Garotti especia­ lizou-se na área de tecnologia da informação e, há dois anos, atuava como gerente de projetos. A demissão ocorreu em março de 2010. “Foi uma surpresa, mas estou tentando me manter calmo para procurar uma nova oportunidade”, destaca. Para ele, a net­working é importante. “Ajuda a conhecer pessoas da mesma profissão. A chance de conseguir um emprego é maior pelos contatos”, sinaliza. N LUCIANA THOMÉ é jornalista em Porto Alegre (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

15


CAPA

Segurança: principal item para o trabalho SEGURANÇA É UM ASPECTO AINDA NEGLIGENCIADO NO AMBIENTE DE TRABALHO NO BRASIL. JULIANA VOLPATO QUER MUDAR ISSO, INCLUSIVE ENTRE OS trabalhadores AVULSOS. por Luciana Reichert

N

os últimos três anos, os acidentes de trabalho cresceram aproximadamente 46,4% no Brasil, segundo dados do Ministério da Previdência Social. Em 2006, foram con­t a­b ilizados 512 mil acidentes, e os casos de doenças no trabalho subiram, em 2008, para quase 750 mil. As despesas com acidentes e condições inadequadas de trabalho chegam a R$ 50 bilhões por ano, cerca de 1,8% do Produto Interno Bruto (PIB) – soma de todas as riquezas produzidas no país. Os setores econômicos com os piores índices são alimentação, construção civil, têxtil, automobilístico, comércio, serviços, transporte de cargas, agricultura e armazenamento, que respondem por mais de 50% dos acidentes no país. Os cortes em mãos e pés lideram o ranking de acidentes. Em segundo lugar, aparecem movimentos excessivos e esforço repetitivo, seguido pelos transtornos mentais e de comportamento. Todos esses dados levam o Brasil a ser o campeão mundial em acidentes de trabalho.

16

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

A preocupação com a segurança esteve presente durante os 27 anos de trabalho de Celso Nestor Kleemann no Polo Petroquímico, em Triunfo (RS). “Fui treinado para fazer parte de uma equipe que tinha como meta principal a prevenção de acidentes e o combate a incidentes (emergências). Como era uma empresa da área de petroquímica, que trabalha com produtos altamente inflamáveis e tóxicos, era inevitável que essa preocupação fosse altamente relevante”, conta Kleemann. Boa parte do tempo em que Klee­ mann trabalhou na empresa foi como líder de equipe, atuando na prevenção e eliminação de condições de risco e treinando equipes (brigada de incêndio) para o atendimento das ocorrências. Conforme Kleemann, sempre foi realizado um forte trabalho de conscientização dos empregados desde o momento de admissão. “Não havia resistência dos funcionários, pois todos sabiam da importância das informações e da necessidade de estar bem treinados”, recorda.

A diretora técnica e fundadora da Volpato, empresa especialista em gestão e consultoria em segurança do trabalho, Juliana Volpato, acredita que o tema é tão importante, que deveria ser trabalhado nas escolas. “Deveria ser trabalhado no ensino fundamental, pois a grande massa trabalhadora que se forma vai para o mercado de trabalho sem conhecimento sobre segurança do trabalho”, avalia. Juliana reforça que os empresários também devem investir em treina-


Luciana Reichert

PROTEÇÃO: As empresas, além de fornecer os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), também são obrigadas a treinar o empregado para utilizar corretamente o EPI.

mento para os trabalhadores. As empresas, além de fornecer os Equipamentos de Proteção Individual (EPI), também são obrigadas a treinar o empregado para utilizar corretamente o EPI. Em doze anos de empresa, ela cita um novo desafio: preparar os trabalhadores avulsos de movimentação de mercadoria para uma vida mais digna e segura. Em parceria com a Federação dos Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral, Comércio Armazenador e Auxiliares de Administração de Armazéns Gerais do Estado do Rio Grande do Sul (Fetrammergs) e sindicatos dessa categoria, os antigos “chapas”, agora “associados”, receberão diversos treinamentos, tais como postura profissional, uso de equipamentos e muitos outros. “É o resgate dessas pessoas e também um projeto pioneiro no estado”, diz Juliana. N LUCIANA REICHERT é jornalista em São Leopoldo (RS)

JULIANA VOLPATO: Deveria ser trabalhado no ensino fundamental, pois a grande massa trabalhadora que se forma vai para o mercado de trabalho sem conhecimento sobre segurança do trabalho.

Dia do Trabalho No dia 1° de maio comemorase no Brasil e em várias partes do mundo o Dia do Trabalho. É um feriado dedicado a festas, manifestações, passeatas, exposições e eventos reivindicatórios. A história do Dia do Trabalho remonta ao ano de 1886 na industrializada cidade de Chicago (EUA). No dia 1° de maio daquele ano, milhares de trabalhadores foram às ruas reivindicar melhores condições de trabalho, entre elas a redução da jornada de trabalho de treze para oito horas diárias. Houve uma greve geral. Dois dias depois, um conflito entre trabalhadores e policiais provocou a morte de alguns manifestantes. Por causa disso a rebelião aumentou, e houve novos enfrentamentos. Nesses também morreram sete policiais. Enfurecida, a polícia atirou nos manifestantes, matando doze e ferindo dezenas. Para homenagear aqueles que morreram nos conflitos de Chicago, a Segunda Internacional Socialista, ocorrida na capital francesa em 20 de junho de 1889, criou o Dia Mundial do Trabalho, que seria comemorado no dia 1° de maio de cada ano. Conta-se que aqui no Brasil a data é comemorada desde o ano de 1895. Porém foi somente em setembro de 1925 que essa data se tornou oficial, após a criação de um decreto do então presidente Artur Bernardes. Foi num dia 1° de maio que o presidente Getúlio Vargas instituiu o salário mínimo, o qual deveria suprir as necessidades básicas de uma família (moradia, alimentação, saúde, vestuário, educação e lazer). Também foi nessa data que foi criada a Justiça do Trabalho, destinada a resolver pendengas judiciais nas relações de trabalho. N Fonte: suapesquisa.com

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

17


Fotos: Paulino Menezes/FLD

CAPA

UNIÃO DOS PEQUENOS: Dona Isaurina, da Cooperativa Univens

Cooperativa – uma alternativa “Comece a fazer o que é necessário, depois o que é possível e de repente estarás fazendo o impossível”. lema da Cooperativa Univens. por Susanne Buchweitz

A 18

falta de emprego e a busca por um outro formato de relação econômica levaram um grupo de mulhe-

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

res a criar sua própria alternativa de trabalho. A experiência da Univens é reconhecida internacionalmente e motivou muitos grupos a trilhar o

mesmo caminho. “Grande parte das fábricas de confecção faliu. O mercado de trabalho muito dificilmente absorve trabalhadoras com as nossas idades. E a situação de mães que não têm onde deixar seus filhos e, quando têm, o valor elevado a pagar não compensa o salário recebido como empregada. Então decidimos que poderíamos trabalhar juntas, ou seja, criaríamos uma nova relação de trabalho, sem patrão. Tudo seria dirigido por nós”, contam as integrantes da Cooperativa Unidas Venceremos – a Univens, localizada na zona norte de Porto Alegre (RS). Com essa determinação, em maio de 1996, 25 mulheres com idades de 20 a 70 anos fundaram seu próprio negócio. Edilia Tejada participa da Univens desde o início. Ela havia parado de trabalhar para cuidar dos filhos, mas


a situação financeira estava difícil. “Ouvi falar que algumas mulheres estavam organizando uma reunião sobre uma oportunidade de trabalho. Resolvi ir.” Edilia encontrou cerca de 30 mulheres, que, assim como ela, não tinham o que fazer e precisavam de dinheiro. Dessas, 25 “toparam” a ideia e cada uma entrou com três cotas de R$ 1,00 para formar a cooperativa. No entanto, se as costureiras sabiam tudo sobre confecção, questões como gestão, administração, contabilidade, distribuição dos produtos e atendimento a clientes exigiam uma enorme energia para ser compreendidas. Isaurina da Silva – a dona Isaurina, que já foi vice-presidente e tesoureira – lembra que se perdeu dinheiro pagando multas, pois o primeiro contador desconhecia a legislação voltada às cooperativas. “Esse é um dos grandes problemas enfrentados pelos grupos de

geração de trabalho e renda”, avalia a economista Angelique van Zeeland, assessora de projetos da Fundação Lutera­na de Diaconia (FLD), que tem um longo histórico de parceria com a Univens. “Toda a legislação é voltada para grandes empresas e desconsidera os pequenos empreendimentos. O resultado é que muitos desses não sobrevivem, pois não conseguem atender as inúmeras exigências e demandas da lei – facilmente cumpridas por quem é grande”, diz. Também para as mulheres, o “jeito de ser” da cooperativa era novo. Elas tiveram que aprender a sentar em grupo e discutir juntas desde a elaboração do estatuto até a definição do valor de cada produto. Tiveram que ter paciência para finalmente tirar o primeiro salário e compreender que reinvestir no negócio é fundamental para seu crescimento. Ainda precisaram assumir uma relação de transparência com

as colegas donas do negócio – as reuniões transformaram-se no momento de botar tudo para fora, eliminando mal-entendidos e problemas de comunicação que pudessem minar a união do grupo. O investimento pessoal em formação permitiu que o trabalho da cooperativa fosse para frente. Hoje, a Univens tem sede própria e ampliou sua linha de produção, atendendo a confecção de uniformes, sacolas, camisetas e agasalhos, junto com um serviço de serigrafia. Muitas vezes, os pedidos são tantos, que são repassados para outras associações e cooperativas. A Univens também integra a rede Justa Trama, uma etiqueta de roupas ecológicas produzidas a muitas mãos por organizações associativas localizadas desde o norte N até o sul do Brasil. SUSANNE BUCHWEITZ é jornalista em Porto Alegre (RS)

Apoio a projetos de geração de trabalho e renda O enfoque da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) deste ano, coordenada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), é justamente o apoio a iniciativas comunitárias e projetos que promovam “uma economia a serviço da vida, sem exclusões, contribuindo na construção de uma cultura de fraternidade e de paz” – como faz a Univens. Por sua experiência no apoio a projetos, a Fundação Luterana de Diaconia (FLD) foi convidada pelo Conic a integrar o Conselho Gestor da CFE. Junto com a Cáritas Brasileira, a FLD fará a gestão político-pedagógica do Fundo Ecumênico de Solidariedade, composto com os recursos financeiros obtidos pela campanha. A Cáritas e a FLD serão responsáveis pelo recebimento, análise e recomendações sobre os projetos apresentados ao Conselho, que decidirá sobre o apoio aos projetos. Os projetos encaminhados devem girar em torno de três eixos: formação e capacitação; mobilização para conquista e efetivação de direitos; e superação de vulnerabilidade econômica e geração de renda. Os projetos precisam atender a critérios determinados em documento que pode ser acessado nos sites do Conic (www. conic.org.br) e da FLD (www.fld.com.br). NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

19


INCLUSÃO: Na igreja luterana, a inclusão de portadores de deficiência está na pauta temática e de ação. Na foto, um encontro no Sínodo Norte Catarinense

Inclusão através do trabalho a igreja evangélica de confissão luterana no brasil e os correios são dois exemplos de entidades que levam a inclusão a sério no debate temático e no ambiente de trabalho. por Carine Fernandes

F

abiele Fortuna, 22 anos, e Vitor Santiago, 28, estão no último semestre do curso técnico em segurança do trabalho no Senai/Cetemp em São Leo­pol­ do (RS) e sonham com uma vaga de

20

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

estágio. A batalha por um espaço no mercado de trabalho, comum para muitos jovens em começo de carreira, tem uma barreira a mais para eles. Fabiele é cadeirante, e Vitor não tem o braço direito. Eles fazem parte dos

mais de 24,5 milhões de brasileiros deficientes físicos. Desses, muitos enfrentam ou um dia vão enfrentar um mercado de trabalho ainda pre­ con­cei­tuo­so. “As empresas não estão preparadas para empregar deficientes físicos. Assim como a sociedade não está adaptada”, diz Fabiele. Por sua vez, Vitor acredita que o problema está na falta de compreensão das limitações do deficiente físico. “O empregador confunde deficiência física com problemas mentais. Por eu não ter um braço, eles acham que não terei competência intelectual para garantir a segurança da empresa”, desabafa. Na contramão dessa realidade, os Correios dão o exemplo de como é possível promover a inclusão. Foi uma das primeiras empresas do setor público a admitir deficientes físicos em 1991. Hoje, no Rio Grande do Sul, eles fazem parte de 2% do efetivo num total de 120 funcionários ter­

Divulgação O Caminho

CAPA


cei­ri­za­dos. Os contratos são de cinco anos, mas alguns retornam à empresa, concursados. Para o gerente de recursos humanos Irapuan Medeiros, esses funcionários humanizam o ambiente e contribuem para um bom clima organizacional. “Além disso, trazem retorno satisfatório à empresa porque são dedicados e têm potencial para crescer”, afirma. “Não se pode rotulá-los pela aparência física, mas sim perceber o quanto podem contribuir com o cérebro”, completa. Mario Luis Silva de Quadros, 50 anos, com deficiência visual, auxilia os eventos no espaço cultural dos Correios em Porto Alegre. Para ele, a oportunidade chegou numa boa hora. “Nunca tive problemas em conseguir um emprego, mas agora com a idade mais avançada, somada à deficiência, ficou mais difícil.”

Outro exemplo de práticas inclusivas é feito pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Há anos, a IECLB promove reflexão e uma série de ações para promover a inclusão de pessoas com deficiência. Há 18 anos, essas ações são apoiadas e incentivadas através do Programa Diaconia Inclusão. A lista de ações é extensa. Vai desde motivar a reflexão através de materiais disponibilizados para todas as comunidades e instituições na Semana Nacional da Pessoa com Deficiência à recomendação de que todas as edificações no âmbito da IECLB sejam adequadas conforme a legislação sobre acessibilidade. Também promove cursos e seminários de capacitação. “Temos investido na área da formação porque entendemos que a pessoa com deficiência deve ter o papel principal como protagonista

nesse processo”, afirma a coordenadora do programa, a diácona Carla Vilma Jandrey. Na área da educação inclusiva, a IECLB também oferece capacitação para professores da rede pública e privada. “Temos consciência de que o processo de inclusão não é fácil, devido principalmente ao predomínio de práticas assistencialistas e excludentes na sociedade. Mas a igreja é parceira na busca por promover a inclusão de todas as pessoas e de ser um espaço de convivência onde as diferenças sejam respeitadas”, enfatiza Carla. A IECLB é a única igreja na América Latina que tem uma coordenação específica em âmbito nacional para desenvolver esse trabalho junto aos grupos e às comunidades eclesiais e à sociedade em geral. N CARINE FERNANDES é jornalista em Porto Alegre (RS)

Fotos: Divulgação/Correios e Carine Fernandes

Mario Luis Silva de Quadros conseguiu uma oportunidade nos Correios

Irapuan Medeiros foi promovido a Gerente de Recursos Humanos dos Correios

VITOR (FOTO MAIOR, ACIMA) E FABIELE (AO LADO) AINDA AGUARDAM: “O empregador confunde deficiência física com problemas mentais. Por eu não ter um braço, eles acham que não terei competência intelectual para garantir a segurança da empresa”, DESABAFA VITOR. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

21


Fotos: Susanne Buchweitz

capa

Lutero: Os cristãos entendem que profissão é vocação, e é no dia-a-dia do seu trabalho que dão testemunho

Despenseiros da graça de Deus a vocação está no topo da agenda das igrejas pela necessidade de encontrar pessoas que assumam seu chamado e coloquem-se a serviço. por Mauro Batista de Souza

É

isso mesmo que eu quero fazer da minha vida! É para isso que Deus me colocou no mundo! Essa é a minha missão! Se você algum dia já chegou a uma conclusão semelhante, então pro-

22

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

vavelmente você descobriu sua vocação. Ser atriz de cinema, sorveteiro na praia, médica no Afe­ga­nis­tão, pastor de comunidade. Não importa a escolha, mas o sentimento de estar fazendo aquilo para o qual você foi chamado.

Segundo dicionários etimológicos, a palavra vocação vem do verbo latino vocare, que significa chamar. A raiz latina está em vox-vocis (voz). Vocação é, portanto, um chamado. Trata-se de um conceito muito importante para as igrejas cristãs, que entendem que Deus cria as pessoas com dons e habilidades específicas para que sejam colocadas a serviço do bem comum, a serviço do amor ao próximo. Como palavra que significa a ocupação ou profissão da pessoa, o termo começou a ser usado por volta do século 16. O reformador Martim Lutero deu grande importância ao assunto. Segundo ele, trata-se de um chamado divino que conduz as pessoas a exercer sua profissão, seja qual for, como uma vocação. Para Lutero, a pessoa cristã entende que sua profissão já é sua vocação, e é ali, no dia-a-dia de seu trabalho, que ela dá testemunho do amor de Deus e da salvação que vem pela fé em Jesus Cristo.


Em prédica baseada em Gálatas 6.4, Lutero afirma: “Assim, aquele que é magistrado, ou pai de família, ou empregado, ou mestre, ou aluno etc., permaneça na vocação em que se encontra e nela execute, digna e fielmente, a sua tarefa sem se preocupar com aquelas coisas que estejam fora de sua vocação”. Tanto mais a pessoa será útil para a sociedade quanto mais ela conseguir realizar exatamente aquilo para o qual está vocacionada. Ao chamamento que vem de fora (de Deus) se soma uma paixão inata de parte da pessoa vocacionada. Deus chama e dá os dons, mas a decisão de seguir o chamado cabe à pessoa. Uma vez que o trabalho é parte muito importante da vida, o ideal é que vocação e profissão caminhem na mesma direção. Já pensaram como o mundo seria diferente se cada pessoa trabalhasse naquilo que realmente

gostasse? Certamente os consultórios de psicoterapia receberiam menos gente frustrada, infeliz, com depressão e outras doenças. Uma pessoa que faz aquilo para o qual se sente voca­cio­ na­da vai fazê-lo bem e, con­se­quen­te­ men­te, terá mais chances de se sentir realizada. O assunto vocação está no topo da agenda das igrejas há algum tempo. Boa parte da reflexão enfoca a necessidade premente de encontrar vocações para o ministério tanto ordenado como leigo. É urgente que mais pessoas assumam seu chamado e coloquem-se a serviço. A partir do Batismo, Deus nos chama por nosso nome. Nossa vocação primordial é ser filho ou filha de Deus. Depois, mais tarde, somos novamente chamados e convidados a colocar-nos a serviço, onde quer que estejamos, e não para a própria glória, mas para a glória de Deus.

Talvez uma das imagens mais bonitas de vocação venha da Primeira Carta de Pedro 4.10, onde lemos: “Sirvam uns aos outros cada qual conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus”. Ser despenseiro da mul­t i­f or­m e graça de Deus: isso é vocação. É dizer sim ao chamado de Deus para viver e agir coerentemente de acordo com a nossa fé. Não se trata de cantar para fazer o sol nascer (como o galo da história infantil pensava que fazia todas as manhãs), mas de cantar de alegria porque o sol nasce. Deus continua no controle das coisas, mas Deus escolhe utilizar o nosso trabalho, os nossos dons, o nosso tempo, o nosso dinheiro – a nossa vocação, para colocar sinais do seu reino. N MAURO BATISTA DE SOUZA é teólogo e assessor da Presidência da IECLB em Porto Alegre (RS)

PAIXÃO: Uma vez que o trabalho é parte muito importante da vida, o ideal é que vocação e profissão caminhem na mesma direção

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

23


reflexão

Economia solidária: missão impossível? Economia baseada na solidariedade não é necessariamente sinônimo de falência. É, antes de tudo, sinal de valorização do ser humano e compromisso com o reino de Deus.

N

o Evangelho de Mateus 20.1-16, en­c on­t ra­m os uma parábola muito intrigante do ponto de vista eco­nômico. Nessa parábola, o proprie­ tário de uma vinha sai ao amanhecer em busca de trabalhadores. Estamos possivelmente no período da colheita das uvas. Era costume na época que os diaristas aguardassem em um determinado local até que alguém viesse contratá-los. Do amanhecer até o anoitecer, o tempo de trabalho era dividido em 12 horas. Mas não havia relógios como hoje. Uma hora no inverno podia ter 45 minutos. No verão, podia chegar a 75 minutos.

24

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

Logo na primeira hora do dia (por volta das 6 da manhã), o proprietário contrata alguns diaristas e combina o salário de um denário por dia. Denário era uma moeda romana, usada também na Palestina. O salário acertado era o praticado na época. Permitia cobrir não mais do que as necessidades básicas de alimentação diária de uma pequena família. Na terceira hora (por volta das 9 horas), o proprietário vai novamente à praça e contrata mais trabalhadores. Dessa vez, não há combinação de salário. Nas horas sexta (meio-dia), nona (três da tarde) e décima primeira (5 da tarde), são feitas novas contratações. Também nesses casos não há acerto concreto em relação ao pagamento.

Divulgação Novolhar

por Emilio Voigt

PEQUENOS: feira de economia solidária em belo horizonte, ESPAÇO DE TROCA DE EXPERIÊNCIA E OPORTUNIDADE DE NEGÓCIOS PARA OS PEQUENOS. Por que o proprietário foi várias vezes à praça para contratar diaristas? É possível que a real necessidade de mão de obra só pudesse ser avaliada com o andamento dos trabalhos. Mas tal forma de contratação pode também ser uma estratégia para baixar o valor do salário. Quem não foi contratado na primeira hora sabe que terá dificuldades para conseguir trabalho naquele dia. Por isso aceitaria trabalhar por qualquer valor. Não está em condições de negociar. Essa estratégia não era incomum. Mas a parábola reserva surpresas. O inesperado ocorre quando os que foram contratados mais tarde recebem um denário, ou seja, uma diária cheia. Os que foram contratados no início


do dia reclamam da equiparação. Afinal, eles enfrentaram o peso do trabalho e o calor do dia com mais intensidade. Como podem receber a mesma remuneração? Tal insatisfação é compreensível. O proprietário, todavia, remete ao que foi combinado. Não está sendo injusto com eles, mas sendo bondoso com os demais. Demonstra que conhece a necessidade e a aflição daqueles que ficaram esperando trabalho até a última hora do dia. Em vez de reclamar, os trabalhadores da primeira hora são convidados a alegrar-se com a imerecida graça dos outros. Em lugar de inveja e comportamento egoísta, devem ter uma atitude solidária.

Em termos econômicos, o procedimento do proprietário da vinha parece ser um verdadeiro desastre. Imaginemos que ele tenha contratado, em cada uma das vezes que foi à praça, dois diaristas. Colocando os números em uma tabela (na página ao lado), teríamos um resultado interessante. Considerando o total de horas trabalhadas, seria necessário contratar cinco diaristas para trabalhar o dia todo (5 x 12 horas = 60 horas). Com várias contratações ao longo do dia, dez diaristas foram empregados. Isso ainda não seria economicamente inviável se o proprietário pagasse de acordo com as horas trabalhadas. Entretanto, ele pagou diária completa a todos e teve um “prejuízo” de cinco denários. Olhando

somente os números, não há como aprovar tal forma de gestão. Essa possível falha administrativa pode ser uma crítica velada aos que se orientam exclusivamente por dividendos e que se aproveitam da situação de fragilidade para pagar baixos salários. Obviamente não é apropriado abdicar do lucro. Mas não se pode buscá-lo a qualquer custo. O bolso não pode ser mais importante do que o coração. Economia baseada na solidariedade não é necessariamente sinônimo de falência. É, antes de tudo, sinal de valorização do ser humano e compromisso com o reino de Deus. N EMILIO VOIGT é teólogo e assessor teológico do Sinodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

25


EM MEMÓRIA

Clovis Lindner

Homero Severo Pinto (1952-2010)

H

ospitalizado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital São Lucas, em Porto Alegre (RS), desde o dia 14 de março, o pastor primeiro vice-presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Homero Severo Pinto, 57 anos, morreu dia 23 de abril, de falência múltipla de órgãos. Em viagem pastoral a Mo­çam­bi­que, África, em fevereiro, Homero con­traiu malária cerebral, do tipo plas­modium falci­pa­rum. Desde o seu internamento hospitalar, lutou com bravura pela vida, sofrendo parada cardíaca, além de acidente vascular cerebral, convulsões, consequências da malária. “O falecimento do pastor Homero causa grande consternação e tristeza

26

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

na IECLB. Somos gratos pela vida e testemunho dele no Brasil, como entre igrejas irmãs e parceiras. Na confiança que temos em Deus, as sementes que Homero disseminou frutificarão em bênçãos para muitas pessoas”, disse o pastor presidente da (IECLB), Walter Altmann. “A IECLB perde uma pessoa extraordinária”, assinalou o secretário do Ministério com Ordenação, pastor Edson Edílio Streck. Em fins de fevereiro, Homero representou a IECLB na reunião das igrejas parceiras da Igreja Evangélica Luterana de Moçambique na missão local, que avaliou a possibilidade de envio de obreiro do Brasil para o país africano. Em Moma, área rural de Nampula, Moçambique, Homero participou da inauguração de posto

de saúde que leva o nome da irmã brasileira Doraci Edinger, morta em março de 2004. No enterro da irmã, no dia 9 de março do mesmo ano, em São Leopoldo, o pastor Homero frisou que a ressurreição de Cristo “permite um novo olhar, uma vez que a fé não se limita a este mundo”. O reitor da Faculdades EST, Dr. Oneide Bobsin, disse que o pastor Homero se orientava pelo diálogo, “reconhecendo as diferenças e sem encobrir injustiças”. O coordenador do Programa de Estágio e Intercâmbio da mesma instituição, Martin Volkmann, lembrou que Homero foi um dos primeiros estudantes a ingressar na Faculdade de Teologia sem saber falar alemão, quebrando o para­digma de ingresso, quando o conhecimento dessa língua estrangeira era uma premissa. “Esse simples fato mostra que Homero era uma pessoa vocacionada para o ministério”, afirmou. Homero tinha a indicação de sí­no­ dos que o queriam na presidência da IECLB, escolha que ocorrerá no Concílio Geral da igreja, em outubro. Natural de Sobradinho (RS), Homero, nascido a 8 de julho de 1952, ingressou na Faculdade de Teologia, em São Leopoldo, em 1972, concluindo o curso cinco anos depois. Trabalhou como pastor em Igrejinha e Portão, no Rio Grande do Sul. Foi pastor sinodal e secretário de Educação do município de Portão, na região metropolitana de Porto Alegre. Assumiu a primeira vice-presidência da IECLB em dezembro de 2002 e a coordenação de Missão Global da igreja, em fevereiro de 2007. Era casado com Denize Inez Volkart Pinto e o casal teve dois filhos: Catarina e Mateus. O corpo do pastor primeiro vice-presidente foi sepultado no Cemitério de Taquara (RS) no dia 24 de abril. N Fonte: www.alcnoticias.org


Divulgação Novolhar

TECNOLOGIA

EM GANA: milhares de pessoas vivem da reciclagem, inclusive crianças a partir dos cinco anos

Sobrevivência tem prioridade por Brunilde Arendt Tornquist

É

difícil hoje conceber o mundo sem o computador. Ele se tornou essencial no trabalho, na escola, no lazer. A agilidade na informação permite que eu acompanhe no Brasil o que acontece na China quase simultaneamente. Nos anos 1990, acreditava-se que a tec­ no­lo­gia digital criaria uma harmonia global, sem preconceitos e limitações geográficas, e que as informações que ultrapassariam as fronteiras do mundo tecnicamente avançado para os países em desenvolvimento acabariam provocando um aumento da riqueza mundial, diminuindo o fosso entre os países pobres e os ricos. Esse sonho não se tornou realidade. E o que é cada vez mais preocupante é o outro lado da tec­no­lo­gia: seu impacto na ecologia, as matérias-primas tóxicas usadas na produção e o lixo tecnológico.

De acordo com um estudo da ONU de 2003, a produção de apenas um computador requer mais de 240 quilos de combustíveis fósseis, como petróleo e carvão, cerca de 22 quilos de produtos químicos e 1.500 litros de água. Muitos metais usados são raros (incluindo cobre, alumínio, níquel, zinco, ouro, platina, alcatrão e cobalto) e muitas vezes disponíveis apenas em países do Terceiro Mundo. As pessoas que vivem perto das minas de cobalto na Zâmbia, por exemplo, sofrem muito devido à poluição do solo, em que já não podem cultivar vegetais, e à água poluída. Na produção dos chips, a situação é ainda mais grave. O risco de câncer de cabeça, dor muscular, dificuldades respiratórias, in­fer­ti­li­da­de e de abortos é bem maior. Em Gana, África, atrás do Mercado Agbogbloshie, no maior lixão

eletrônico do mundo, milhares de pessoas vivem da reciclagem, inclusive crianças a partir dos cinco anos de idade. Uma análise do Green­peace mostrou que o solo e a água em torno desse mercado estão poluídos por químicos, alguns usados para amaciar plásticos. Essas substâncias causam dor de cabeça; dificuldade respiratória; in­fer­ti­li­da­de; diabetes; câncer de coração, fígado, pulmão; doenças renais; edema cerebral e atrofia muscular. É uma questão de sobrevivência exigir uma avaliação inter­dis­ci­pli­nar e uma previsão das con­se­quên­cias do avanço tecnológico e aumentar a pressão política sobre empresas e governos. Exemplos de iniciativas são o ranking ambiental do Greenpeace – que publica uma lista de nomes, a cada trimestre, de fabricantes de produtos eletrônicos com base na quantidade de substâncias perigosas em seus produtos – e a campanha em prol da produção de computadores politicamente corretos, desenvolvida por duas organizações eclesiais da Suíça: “Brot für alle” e “Fastenopfer”. Faz-se necessária uma nova postura ética e política. Por exemplo, em 1990, no livro “Projeto ethos mundial”, o teólogo católico Hans Küng afirmou que os interesses do bem-estar comum têm prioridade sobre os interesses individuais; que a sobrevivência da pessoa ou da humanidade tem prioridade sobre a autorrealização da pessoa ou++ de um determinado grupo e que o sistema ecológico tem prioridade sobre o sistema social – a sobrevivência é mais importante do que uma vida melhor. N BRUNILDE ARENDT TORNQUIST é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo (RS). Baseado em Jörg Becker, Computers and ecology, Media Development, Journal of WACC (Associação Mundial para a Comunicação Cristã), n. 2, 2009.

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

27


olhar com poesia

RETRATOS

Momento a momento

Hector Landaeta

por Lola (Louraini Christmann)

É no dia a dia do lar Que amar Pode se tornar O mais perfeito amar É no hora a hora da vida Em pacto de aliança Que o impacto do mundo Não vai comprometer Confiança Segurança Aliança mútua É no segundo a segundo do casamento É no momento a momento É nos braços dados Abraço dado com coração e ternura Com paixão e loucura E Deus abraçando junto Entrelaçando ... NADA MAIS SEGURA! É pura felicidade! (dedico pro Hildo, amor da minha vida há mais de 30 anos)

28

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

A casa de Lídia tornou-se um exemplo de casa aberta para receber irmãos perseguidos e visitantes. por sua causa, A hospitalidade tornou-se uma das mais importantes características da igreja cristã.

Arte: João Soares

Lídia, a tintureira

por Nelson Kilpp

N

as origens da igreja cristã quase sempre se encontram mulheres. Elas estão no sepulcro vazio; elas testemunham a ressurreição de Jesus; elas participam intensamente da vida das primeiras comunidades, embora nem sempre recebam o destaque merecido nos documentos à nossa disposição. Especialmente uma mulher foi decisiva para a expansão da fé e a promoção da vida comunitária nos inícios da igreja. Trata-se de uma tintureira e vendedora de púrpura, apelidada de Lídia por causa de seu lugar de origem. Essa mulher foi a primeira pessoa do continente europeu a abraçar a fé cristã. O capítulo 16 de Atos dos Apóstolos fala dela.

Lídia morava na cidade de Filipos, na atual Grécia, um importante centro comercial e cultural romano. Ela era proveniente de Tiatira, uma cidade da região da Lídia, na atual Turquia, e migrara para Filipos provavelmente em busca de melhores oportunidades de sobrevivência. Era, portanto, uma das muitas mulheres que saem de sua terra para encontrar meios de vida para si e sua família em outros cantos do mundo. Nada se diz sobre se era casada ou não. Como não se menciona um marido, talvez fosse viúva ou solteira. Nesse caso, ela seria uma dessas pessoas que têm que sustentar sozinhas a família. Atos 16 menciona que ela possuía uma casa. Provavelmente mais pessoas moravam com ela e precisavam ser sustentadas.


Lídia trabalhava com púrpura: fabricava a tinta, tingia e vendia o pano. Era um trabalho pesado e nocivo à saúde. Era uma mulher estrangeira na cidade romana de Filipos, que buscava ganhar sua vida. Em tudo isso, Lídia não desleixava a sua religiosidade. Ela era “temente a Deus”, ou seja, uma simpatizante da fé judaica. Juntamente com outras mulheres, ela se reunia, aos sábados, num lugar de oração judaico fora da cidade, junto às águas de um córrego (Atos 16.1315). Aparentemente, nesse lugar de oração predominavam as mulheres. Não sabemos por que não são mencionados homens. De qualquer forma, o texto bíblico afirma que Lídia “escutava” as palavras dos apóstolos e que “o Senhor lhe abriu o coração para atender as coisas que Paulo dizia” (v. 14). Essa mulher deixou-se batizar juntamente com os outros moradores de sua casa e constrangeu os apóstolos a hospedar-se em sua casa. Assim, sua casa tornou-se o lugar de encontro da primeira comunidade em solo europeu. Chamam a atenção duas características dessa comerciante: em primeiro lugar, Lídia estava atenta àquilo que os apóstolos lhe diziam e

descobriu nisso algo de extrema importância para sua vida. Em segundo lugar, ela partilhava o que tinha com outras pessoas. Ela oferecia, primeiramente, a sua casa como lugar de pousada para os apóstolos iti­ne­ran­tes – também Lídia já fora uma mi­gran­te. Além disso, a casa de Lídia tornouse o ponto de encontro dos cristãos da cidade e até um esconderijo para cristãos perseguidos pelas autoridades da cidade. Essa hospitalidade que partilhava o domicílio, o íntimo da vida fami­liar, tornou-se constitutiva para a vida da igreja cristã. O aconchego da casa era oferecido aos visitantes e aos irmãos e às irmãs na fé, tornando-se, assim, um espaço de celebração e culto. A casa de Lídia tornou-se um exemplo de casa aberta para receber irmãos perseguidos e visitantes de fora. A hospitalidade tornou-se, depois disso, uma das mais importantes características da igreja cristã. Além disso, o culto no aconchego do lar tornou-se símbolo da estreita comunhão entre pessoas diferentes, mas iguais no amor de Deus. N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, obreiro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

29


Divulgação Novolhar

conto

Os três alicerces por Brunilde Arendt Tornquist

E

sta é a história de três irmãos e trata do alicerce sobre o qual as pessoas constroem suas casas. Três irmãos, de origem pobre, sem família e sem perspectivas de futuro, tiveram que sair pelo mundo em busca de sua sorte. O irmão mais velho conheceu um homem que lhe prometeu muito dinheiro com a venda de produtos contrabandeados e cargas roubadas. O trabalho era fácil, e o dinheiro entrava como água. Mas o sonho de ganhar dinheiro fácil é como um castelo de palha: desaba com um só

30

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

sopro. E foi o que aconteceu quando a polícia desbaratou a quadrilha. O irmão mais velho conseguiu safar-se, era peixe pequeno. E ele viu que uma casa construída sobre o alicerce da desonestidade e da contravenção não resiste ao menor sopro. E o lobo mau soprou, soprou, bufou, bufou, e a casa foi pelos ares. Ele decidiu procurar seus irmãos. O irmão do meio conheceu um homem que lhe ofereceu um emprego de auxiliar de pedreiro. Era um trabalho honesto e digno, mas o salário era baixo, e ele gastava tudo com festas,

motos, e até drogas rolavam. Por um lado, queria perseverar e progredir. Por outro, havia aquele sopro tentador no ouvido: o trabalho é pesado demais! Ganha muito pouco! Nunca vai chegar a lugar nenhum assim! E esse sopro aumentou até virar ventania. E o irmão largou tudo. Quando caiu em si, estava de novo sem rumo nem arrimo. E ele viu que uma casa, para subsistir, tem que ser construída sobre o alicerce da perseverança. E o lobo mau soprou, soprou, bufou, bufou, e a casa foi pelos ares. Também ele foi em busca de seus irmãos. O irmão mais novo conheceu um grupo que ajudava no encaminhamento de jovens. Esse arrumou uma moradia e um emprego para ele de office boy, com a condição de que voltasse a estudar e se empenhasse nos estudos. Quando a tentação de abandonar tudo assoprava em seu ouvido, balançava, confessa ele hoje, mas resistia e acabava não dando ouvidos à tentação. Não era fácil trabalhar de dia e estudar de noite. Não era fácil dizer não às baladas e a outras tentações. Mas venceu as dificuldades, cursou faculdade e hoje é um respeitado educador. Sua casa subsiste às intempéries porque foi construída sobre o alicerce da educação e do trabalho. E lobo mau soprou, e bufou, e soprou, e bufou, e bufou e soprou mais ainda, até ficar roxo e perder o fôlego, mas a casa não caiu. Então ele percebeu que essa casa era mais forte e que, por mais que soprasse, não conseguiria destruí-la. Quando seus irmãos apareceram e relataram seus fracassos e frustrações, ele os acolheu em sua casa, sólida, e orientou-os na construção de suas próprias vidas. N BRUNILDE ARENDT TORNQUIST é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo (RS)


áfrica

Desafios de uma igreja jovem por Rui Bender

N

igreja. “Nas cidades, os pastores apenas recebem ‘gratificações’”, observa Mário. Com isso “eles têm que se virar”. A igreja finlandesa continua ajudando nos trabalhos administrativos, mas isso significa “uma pequena gota”. Portanto, a igreja angolana tem muitos desafios pela frente. O secretário-geral aponta que é preciso encarar de frente problemas no quadro de obreiros e funcionários administrativos. Outro desafio são os refugiados angolanos que retornam ao país em busca de atendimento e a

>>

Rui Bender

ão é nenhuma novidade a penúria que sofrem as igrejas do continente africano. Especialmente depois que começaram a perder o apoio financeiro do Primeiro Mundo. É o caso da Igreja Evangélica Luterana de Angola (IELA), que viu sua ajuda por parte da igreja luterana da Finlândia minguar na última década. “Desde 2000, a situação começou a mudar. A Finlândia não podia mais pagar nossos obreiros”, lembra o secretário-geral da IELA, Mário Passala Velho (46). Mário é casado com uma professora de escola pública, Raquel Futi Velho. O casal tem seis filhos (um rapaz e cinco meninas). Desde janeiro, Mário está fazendo mestrado na Faculdades EST (São Leopoldo, RS) sobre o tema missão. A IELA tem aproximadamente 40 mil membros e 56 pastores atuando em suas congregações. Com a perda da ajuda finlandesa, a igreja africana decidiu que cada congregação deveria assumir a remuneração de seus obreiros. Mas as congregações não conseguem apoiar financeiramente a

igreja não consegue atendê-los. Por fim, Mário entende que a IELA precisa traçar um plano estratégico para assumir uma missão contextualizada. Atingir as cidades é uma grande tarefa. “Como igreja também temos a missão de reconstruir o país”, que sofreu com três décadas de guerra civil fra­tri­cida e somente há oito anos desfruta da paz, frisa Mário. Mas há um outro desafio político que Angola enfrenta ultimamente. O enclave de Cabinda, no norte, quer sua independência de Angola. A Frente pela Libertação do Enclave de Ca­bin­da monopoliza a guerrilha contra o governo angolano. Mário, embora nativo de Cabinda, teme a independência, porque ele acredita que então o vizinho país do Congo pode invadir com menos resistência a pequena Cabinda e anexá-la. Ele deseja, antes de tudo, a preservação da unidade nacional. A igreja luterana de Angola está engajada primordialmente em duas áreas:

MÁRIO VELHO: Como igreja temos a missão de reconstruir o país que sofreu com três décadas de guerra civil fra­tri­cida e somente há oito anos desfruta da paz. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

31


habitação

>>

saúde e educação. Na área da saúde, mobiliza-se na luta pela erra­dicação da malária e contra a proliferação da AIDS. Para isso mantém um centro de saúde. Na área da educação, a IELA sustenta cinco escolas em três províncias. A educação cristã é muito importante para a liderança luterana de Angola. Por isso ela busca estreitar laços com a IECLB. A mesma língua facilita o intercâmbio. “Há muito sangue africano no Brasil”, brinca Mário. O secretário-geral da IELA entende que as relações IELA-IECLB ainda podem avançar. E a igreja brasileira está muito receptiva a isso, admite Mário. Na área da literatura, já existe uma boa parceria entre as duas igrejas. A IELA recebe os devocionários “Castelo Forte” e “Senhas Diárias”, da Editora Sinodal, e Bíblias com Hinário. Mas a IELA também mantém relações ecumênicas com coirmãs africanas. Por exemplo, participa da Aliança Evangélica de Angola e da Comunidade dos Luteranos do Sul da África. Aliás, desde sua origem, a IELA traz a marca do ecumenismo. Ela tem dois nascedouros: um no sul e outro no norte. No sul de Angola, a igreja nasceu a partir do trabalho de missionários alemães no final do século 19. Em meados do século 20, a igreja luterana do sul passou a ser um distrito da igreja da Namíbia. Em 1973 chegaram missionários finlandeses, o que revitalizou a igreja, que ficou independente da Namíbia em 1992. Antes disso, na década de 1970, refugiados angolanos no norte começaram a testemunhar a fé luterana. Na década de 1980, os luteranos do norte procuraram os do sul para construir uma união, que finalmente se concretizou em 1994. Nasceu então a Igreja Evangélica Luterana de Angola. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

32

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

Meta: acesso à moradia digna por Silvana Campos

O

déficit habitacional no Brasil é de 6,273 milhões de domicílios, dos quais 5,180 milhões, ou seja, 82,6%, estão localizados nas áreas urbanas, segundo estimativas do ministério das Cidades em 2007. Na região Sudeste encontram-se 2,335 milhões, ou seja, 37,2% do total. Ela é seguida de perto pelo Nordeste, com 2,144 milhões (34,2%). Na região Sul, o déficit é de 703.167; na região Norte, de 652.684, e na Centro-Oeste, de 436.995. Para minimizar essas estatísticas, o ministério im­ple­men­ta a Política Nacional da Habitação, que pretende garantir à população de baixa renda acesso à habitação digna. O programa Minha Casa, Minha Vida, no contexto dessa política,

funciona com a concessão de financiamentos a beneficiários organizados por meio de alguma entidade de caráter associativo, como cooperativas, sindicatos, movimentos sociais e outros, com recursos do Orçamento Geral da União, aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social. Pode ter contrapartida complementar de estados, do Distrito Federal e dos municípios por intermédio do aporte de recursos financeiros, bens e/ou serviços necessários à composição do investimento a ser realizado. Por exemplo, a organização de cadastros, a liberação de terras e a mobilização de empresas são ações que podem depender das prefeituras e dos governos estaduais. Com a parceria dos estados e municípios, as cons-

O programa Minha Casa, Minha Vida já totaliza 247.950 unidades contratadas e R$ 13,8 bilhões de valor geral de vendas, correspondendo a 191.957 unidades contratadas de empreendimentos e 55.993 contratadas com pessoas físicas. São 3.066 propostas de empreendimentos com 619.036 unidades e R$ 36,85 bilhões recebidos na Caixa Econômica Federal. Dessas, 988 foram contratadas com 191.957 unidades, das quais 24.707 já foram financiadas pelas famílias. Em relação à faixa salarial, são 435 empreendimentos contratados de zero a três salários mínimos (R$ 5,6 bilhões e 134.766 unidades), 382 de três a seis salários mínimos (R$ 2,35 bilhões e 35.585 unidades) e 171 de seis a dez salários mínimos (R$ 1,78 bilhões e 21.606 unidades). São 80.700 unidades com famílias, incluídas as 24.707 unidades dos empreendimentos já financiadas com o mutuário final. O valor total aplicado é de R$ 5,7 bilhões, composto de R$ 4,1 bilhões de financiamento FGTS, R$ 1,2 bilhões de subsídio FGTS e R$ 404 milhões de subsídio. A meta final do Minha Casa, Minha Vida é construir um milhão de moradias. Inês Magalhães, Secretária Nacional de Habitação do Ministério das Cidades


família tem renda familiar de até três salários mínimos, pode contar com financiamento total e não precisa pagar o seguro. O próprio programa paga para a família. Se a faixa de renda é de três a seis e também de seis a dez salários mínimos, pode-se financiar parte do imóvel, com valores de seguro bem mais baixos e acesso ao chamado Fundo Garantidor, criado pelo governo federal e pela Caixa, para garantir a entrega da moradia. Nesse programa, o valor máximo da prestação é de 20% da renda familiar. Os gastos com cartório são bem menores ou até mesmo gratuitos para quem tem renda familiar de zero a três salários mínimos. O governo e o FGTS assumem a maior parte dos custos. “Enquanto apenas um programa, o Minha Casa, Minha Vida não tem condições de dar resposta ampla e

profunda que a questão habitacional no Brasil necessita”, comenta Marli Carrara, membro da União por Moradia Popular da Bahia – filiada à União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e Comunidade por Moradia Popular (CMP). Ela aponta para o perigo de se voltar a construir conjuntos habitacionais, verdadeiros “guetos”, baseada na localização de vários empreendimentos, distantes dos benefícios da cidade. Porém analisa também que houve avanços nesse programa de habitação do governo: “Desde o início, foi reconhecido por todos os movimentos como um passo importante, pois se conformou como o maior aporte de recursos para habitação dos últimos trinta anos, com a maior contemplação na faixa de zero a três salários mínimos”. Ela comenta que o programa acertou ao assumir, pela primeira vez, de forma concreta, a necessidade de fornecer subsídio (integralização de recursos pelo governo federal da diferença entre o valor real da moradia e a capacidade real de pagamento das famílias) para aquelas pessoas na faixa de zero a três salários mínimos. N SILVANA CAMPOS é jornalista em Brasília (DF)

Rodrigo Nunes/MCidades

trutoras terão maior possibilidade de ver seus projetos aprovados pela Caixa”, afirma Inês da Silva Magalhães, secretária nacional de habitação do ministério das Cidades. As famílias que ganham até dez salários mínimos podem fazer o financiamento pelo Minha Casa, Minha Vida. O governo federal e a Caixa disponibilizaram três faixas de financiamento da casa própria, de acordo com o valor da renda familiar: de zero a três; de três a seis e de seis a dez salários mínimos. As famílias com renda familiar acima de dez salários mínimos não são contempladas pelo programa, mas podem financiar imóveis de até R$ 350 mil reais e usar o FGTS para financiamento de casas ou apartamentos de até R$ 500 mil reais. Um dos destaques do programa é o baixo custo das prestações. Se a

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

33


haiti

O legado dos amaldiçoados A política colonialista pesou sobre o Haiti como uma sabotagem à estruturação de um estado igualitário, capaz de servir como alavanca para o desenvolvimento. por Antonio Lassance

A

tragédia que fez o Haiti desabar é mais um golpe sobre um povo com o qual toda a América Latina tem uma dívida histórica. O Haiti foi promotor dos ideais da Revolução Francesa, da luta contra a escravidão, do anticolonialismo e do americanismo bolivariano. Sob os escombros de sua tragédia, o Haiti carrega o fardo de uma trajetória sabotada. Compreender historicamente como essa região foi sistematicamente arrasada é a única maneira de evitar que se pense – como fez o presidente francês Nicolas Sarkozy – que uma maldição se abateu sobre aquele país. Um breve panorama nos permite ver a injustiça contra um povo que tem um legado bendito para toda a América. A região onde se encontra o Haiti viu, ao longo dos séculos, o massacre de sua população indígena, a escravização de negros trazidos pelo tráfico, a divisão artificial em domínios fabricados ao gosto do colonizador (espanhol e francês), sua separação definitiva em dois – Haiti

34

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

de um lado e República Dominicana de outro –, as tentativas de reconquista colonialista, a permanente intervenção norte-americana e frequentes golpes de Estado, entre eles o que deu origem a uma das ditaduras mais abomináveis que se pode mencionar (de Papa Doc e Baby Doc, de 1957 a 1986). Essa é a herança que antecipa a extrema dificuldade que haverá para pôr novamente em pé um país que teve frustradas as suas tentativas de construção autônoma e democrática do Estado. A região onde hoje se localizam o Haiti e a República Dominicana compunha o complexo das Antilhas, que havia se tornado, no século 18, o principal concorrente do açúcar brasileiro. Celso Furtado, no clássico “Formação Econômica do Brasil”, mostrou o impacto que causou o açúcar antilhano, mais barato do que o brasileiro, para a decadência daquele ciclo. No final do século 18, ajudado pelo desenrolar da Revolução Francesa, a ilha antes unificada sob o nome

de Santo Domingo foi sacudida pela revolta dos escravos. Confrontados com um povo que reclamava os próprios ideais proclamados pelos revolucionários, os franceses viramse obrigados a reconhecer o fim da escravidão. Fizeram-no como se fosse uma concessão, embora não houvesse outra opção. Para além da moral revolucionária, os franceses estavam diante do levante de uma população negra organizada e armada para defender sua república. Enfrentá-la demandaria mobilizar forças que eram essenciais para defender a própria França da invasão estrangeira, patrocinada pelas demais monarquias europeias, aliadas ao rei deposto (Luís XVI). Ao criar uma área livre de escravos, Santo Domingo provocou um efeito importante sobre toda a América. Criou o medo de que sua revolução se espalhasse, mostrou que era possível sobreviver sem escravismo e que se podia confrontar e vencer Napoleão (que queria reconquistar aquele território e trazer de volta a escravidão). A Inglaterra, que vivera a expe­ riên­cia de intensas rebeliões de escravos na Jamaica, conjugou razões suficientes que a levaram a capitanear a luta contra o tráfico: o abolicionismo, o liberalismo e a geopolítica de contenção do domínio francês. Em 1815, o Congresso de Viena, que formalizou a derrota napoleônica, trouxe como uma de suas resoluções a ex­tin­ ção do tráfico de escravos (mesmo que limitada ao norte do Equador). Os haitianos foram parte importante do processo que transformou o trabalho assalariado em opção mais vantajosa de exploração do trabalho do que a escravidão. Tornaram a abolição não apenas uma questão moral, filosófica e retórica, mas um tema político de primeira grandeza.


Novolhar / Worldpress

DESESTRUTURADO: A falta de Estado explica a falta de estruturas minimamente preparadas para socorrer pessoas diante da atual tragédia

O Haiti foi base de apoio a Bolívar em sua luta pela libertação da América espanhola e portuguesa. O país emprestou-lhe soldados, armas e munição com uma única condição: que Bolívar libertasse escravos onde quer que os encontrasse. A mesma generosidade levou-o a apresentar-se como opção para receber negros libertos vindos do sul dos EUA. No século 19, o país foi diretamente afetado pelas doutrinas que propugnavam a supremacia dos EUA sobre todo o continente: a doutrina Monroe (“a América para os americanos”) e a do “destino ma-

nifesto”. No século 20, tal política desdobrou-se em prática de intervenção sistemática, sendo cunhada por Theodore Roosevelt como o big stick (“o grande porrete”). A política colonialista europeia e depois a americana pesaram sobre o Haiti como uma sistemática sabotagem à estruturação de um Estado igualitário, soberano e capaz de servir como alavanca para o desenvolvimento de seu povo. É curiosa a tese de Samuel Huntington (“O Choque de Civilizações”), re­pro­duzida por alguns jornais, de que o Haiti isolouse do resto do mundo. Infelizmente, ele não teve essa chance.

A falta de Estado explica agora a falta de estruturas minimamente preparadas para socorrer pessoas diante da atual tragédia. Con­s e­ quên­cia imediata: um país que, após o terremoto, tornou-se um retrato daquilo que Thomas Hobbes chamou de estado de natureza: a luta de todos contra todos pela sobrevivência imediata. Uma situação em que a vida se torna, mais uma vez citando o filósofo inglês, solitária, pobre, suja, brutal e breve. N ANTONIO LASSANCE é cientista político e assessor da Presidência da República – em www. alcnoticias.org

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan./Fev. 2010

35


clima

É melhor respeitar os limites estatísticas provam quase tudo. há aquelas que afirmam que há aquecimento global e as que dizem haver resfriamento. na dúvida, é melhor não ultrapassar certos limites.

A

estatística é curiosa. Pode provar qualquer coisa. A temperatura do corpo humano é de 37ºC. Quatro graus a menos, o corpo entra em hipotermia. Quatro graus a mais, temos febre. Ambas são situações de risco à saúde. Podemos olhar isso de várias formas, e nossa opinião pode ir do desdém ao alarmismo. De zero centígrado até a temperatura corporal, a variação supera 20%. Um dado preo­cu­pan­te. Do zero absoluto do universo até a temperatura corporal, a variação seria de 2,5%. Pouco para ser considerado preocupante. Se a referência for a oscilação térmica do sistema solar, o dado é irrelevante. Mas para o paciente, as consequências são as mesmas, independente dos tratamentos estatísticos. A mídia brasileira tem dado voz aos climatologistas que defendem a tese do esfriamento global. Os mesmos que negam o aquecimento global

36

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

e sustentaram a política do senhor Bush. Eles falam nos ciclos de aquecimento e resfriamento climáticos das últimas décadas para prever um período de resfriamento. Por esses dados, uma ideia defensável. Os climatologistas que preveem o aquecimento falam de temperaturas altas nunca antes registradas, do derretimento de gelo glacial e, principalmente, de alterações da quantidade de gases-estufa na atmosfera. As perfurações no gelo glacial, que contém amostras da composição gasosa da atmosfera de centenas de milhares de anos atrás, apontam que o nível dos gases-estufa nunca foi tão alto. Os incrementos coincidem com a revolução industrial, baseada em combustíveis fósseis. Os climatologistas do resfriamento nada dizem sobre o aquecimento recente. Ele contraria suas projeções, que indicavam um resfriamento a partir dos anos 1990. Quanto aos

Divulgação Novolhar

por Arno Kayser


gases-estufa, dizem que, na dinâmica do carbono no planeta, os fenômenos não-humanos movimentam bilhões de toneladas deles, enquanto as emissões humanas são de milhões. Por serem dados estatísticos tão insignificantes em relação à movimentação total, defendem que reduzir emissões é bobagem e criticam os leigos, políticos e empresários dizendo que não entendem de clima e que tudo é uma guerra econômica e política. Por isso defendem o uso de combustíveis fósseis. Admitem a contribuição para a poluição, mas não veem mal em lançar gás carbônico no ar. Esse seria o “gás da vida” – e não o vilão ambiental. De fato, ele é fundamental para a fotossíntese nas plantas. Mas seu teor é muito homogêneo na atmosfera e não é causa da diversidade da vida vegetal. Ela se diversifica em função da variação de fatores atmosféricos, como umidade, temperatura, insolação e ventos. Isso explica a bio­di­ver­ si­da­de e não o nível de gás carbônico de cada local. Ao xingar seus rivais, leigos ou não, de lobistas de uma guerra geo­po­lí­ti­ca e comercial, mostram que também estão nessa guerra ao lado da indústria dos combustíveis fósseis. Políticos e empresários têm seus interesses particulares e nem sempre estão preocupados com o meio ambiente. Mas isso não significa que não devamos nos preocupar com as mudanças climáticas. Se vai esfriar ou esquentar, isso é o de menos. Como no corpo humano, tanto a hipotermia como a febre do planeta podem gerar dor, sofrimento e morte. Do mesmo modo, a contribuição humana de emissões de gasesestufa pode ser pouca em relação à dinâmica da biomassa do planeta. Mas, se estatisticamente é pouco significativa, na prática pode ter o mesmo impacto na saúde do plane-

ta que alguns poucos graus têm no corpo humano. Nenhum médico vai justificar com estatísticas a omissão de cuidados num quadro de febre ou hipotermia. Ele vai agir e depois discutir a causa. A gente deveria ter essa postura também. Mas estamos discutindo muito e agindo pouco. Em nome da ciência, devemos ouvir os climatologistas do res­fria­men­to. Mas ouvir questionando-os sobre a fonte dos recursos das pesquisas e sobre suas opiniões políticas. Também questionando seus dados em relação aos defensores do aquecimento global. Mas, principalmente, perguntando a razão da vida ter fos­si­li­za­do bilhões de toneladas de carbono ao longo de milhões de anos. Que motivo estratégico ela tinha para isso? Será que podemos mudar isso queimando carbono fóssil na velocidade de hoje, sem pôr algo em risco? Na dúvida, é melhor não ultrapassar certos limites. Portanto menos e­mi­s­sões e mais fixação de gás car­bô­ni­co. Enquanto isso, continuem questionando as “verdades estatisticamente comprovadas” que chegam até nós. N ARNO KAYSER é agrônomo, escritor e ecologista em Novo Hamburgo (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan./Fev. 2010

37


ECUMENISMO

Uma igreja identificada com ATUALIDADE: O presidente da IECLB, Walter Altmann (E), é o Moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, Suíça. Carlos Moeller (C) é o presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, em Brasília. Nilton Giese (D) é o secretário-geral do Conselho Latino-Americano de Igrejas, em Quito, Equador.

Carlos Bock e Heitor Meurer (E) atuam em comitês da Federação Luterana Mundial, enquanto João Artur Müller da Silva e Heinz Ehlert participam das relações interluteranas das duas igrejas luteranas brasileiras (IECLB e IELB).

Fotos: Peter Williams, Divulgação, ClovisLindner

PASSADO: O ex-presidente da IECLB, Huberto Kirchheim (E, acima), foi um dos vice-presidentes da FLM. Sílvio Schneider (acima) foi secretário para América Latina e Caribe na FLM, em Genebra, por oito anos. Ervino Schmidt (acima) foi secretário-geral do CONIC, em Brasília. O ex-presidente da IECLB, Gottfried Brakemeier (D, acima), foi presidente da FLM. HISTÓRIA: O pastor Bertholdo Weber (E) foi um dos pioneiros do movimento ecumênico no Brasil. O pastor Meinrad Piske (D, com o papa), foi delegado da IECLB em assembleias do CMI e da FLM nos anos 1980. COMPROMISSO: Um recorte de algumas lideranças da IECLB que estiveram e estão envolvidas no movimento ecumênico

38

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR


o movimento ecumênico A IGREJA EVANGÉLICA DE CONFISSÃO LUTERANA NO BRASIL TEM ENVOLVIMENTO HISTÓRICO NO ECUMENISMO, SEM PERDER A CLAREZA De SUA IDENTIDADE E A NOÇÃO De SEUS LIMITES. por Harald Malschitzky

O

caráter ecumênico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) está em sua certidão de nascimento ou, usando uma expressão mais moderna, está no seu DNA. Ocorre que a IECLB foi sendo construída a partir de mais de uma tradição protestante, o que, ali­ ás, também lhe rende críticas até os nossos dias. Fato é que somos uma igreja com traços ecumênicos. Pouco importa se em determinados momentos de sua história isso “passou despercebido”. Dois aspectos – entre outros – parecem imprescindíveis para um en­vol­vi­men­to ecu­mê­ni­co: ter clareza sobre sua própria identidade e ter humildade suficiente para reconhecer os próprios limites e outras igrejas como coirmãs. Sem isso dificilmente acontecerá um diálogo aberto. O receio de que o diálogo aberto e franco possa levar à perda da própria essência é infundado. Perdemos nossa essência quando não temos clareza sobre nossa identidade luterana, que, sem dúvida, obriga-nos a dizer também um claro não em determinados momentos, inclusive nas relações ecu­mê­ni­cas. O que não podemos é dizer não ao próprio diálogo e­cu­mê­ni­co.

Em nível de comunidade, há en­ vol­vi­men­to ecumênico em muitos lugares onde acontecem celebrações conjuntas, estudos bíblicos e te­má­ ti­cos, ações sociais e educacionais. Penso concretamente no Dia Mundial de Oração, na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, na Campanha da Fraternidade Ecu­m ê­n i­c a, pela segunda vez em âmbito nacional, mas já antes entre comunidades aqui e acolá. Não se deve esquecer que em Porto Alegre, por exemplo, existe o SICA (Serviço Inter-Confessional de Acon­s e­l ha­m en­t o), que atua há mais de 30 anos e é man­tido por diversas igrejas. A IECLB é integrante do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), da CESE (Coor­de­na­do­ria Ecumênica de Serviços), que atua na área de projetos sociais, do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), mas também da Federação Luterana Mundial (FLM), que, embora luterana, é ecumênica porque reúne igrejas luteranas de todo o mundo, cujo perfil é marcado por tradições diversas. Também o diálogo interluterano tem lá suas dificuldades! As relações ecumênicas implicam o envolvimento de pessoas. Em outras palavras, as relações ecu­mê­ni­cas

demandam investimento de tempo e do dom de pessoas. Apenas para ilustrar: o atual presidente do CONIC é da IECLB, o secretário-geral do CLAI é da IECLB, o moderador do Conselho Mundial de Igrejas é da IECLB. Já tivemos alguém da IECLB na presidência da Federação Lu­te­ra­na Mundial. Isso sem contar todas as pessoas que exercem funções executivas em órgãos ecu­mê­ni­cos e todas as pessoas que representam a IECLB pelo mundo afora. Isso se deve ao fato de que a IECLB tem caráter ecumênico e é reconhecida como tal por outras igrejas. Durante mais de uma década, fui membro da Comissão Fé e Ordem, do Conselho Mundial de Igrejas, que estuda especialmente questões doutrinárias e busca pontos de consenso entre as igrejas. Fiz experiências inesquecíveis, fui descobrir quantas irmãs e irmãos temos em outras igrejas e quanta coisa existe em comum. Descobri na prática que, apesar das diferenças, é possível atuar em conjunto principalmente na área social e educacional. Mas também descobri, e com sofrimento, tantos traços humanos e tradições humanas que teimam em nos separar. Seja lá como for, o caminho do ecumenismo não tem volta. O testemunho cristão será tão mais autêntico quanto mais as igrejas se derem as mãos, sabendo-se filhos e filhas do mesmo Deus, redimidos pelo mesmo Cristo. N HARALD MALSCHITZKY é teólogo e secretário executivo do Pró-Educ – Serviço de Projetos de Desenvolvimento em Educação da IECLB em São Leopoldo (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

39


ESPIRITUALIDADE

Vocês não estão sozinhos!

Divulgação Novolhar

o mestre que parte deixa os seguidores alvoroçados e tristes. o consolador do pentecostes, mais do que paliativo, é a certeza de não estarmos órfãos na esperança. por Germanio Bender

N

o mês de maio, dia 23, os cristãos do mundo inteiro celebram o dia de Pentecostes, festejam a vinda do Espírito Santo. Que festa é essa? A qual espírito se referem? Bem, Pentecostes é uma festa de origem judaica, também chamada de festa da colheita (Êxodo 23.16) ou festa das semanas (Levítico 28.26). Esse último nome se deve ao fato de ser celebrada sete semanas depois da páscoa dos judeus. O nome Pentecostes é de origem grega e significa “quin­qua­gésimo”, isso porque a festa acontecia cinquenta dias após a oferta dos primeiros frutos da colheita, chamados de primícias (Levítico 23.9-14). Foi no primeiro Pentecostes, depois da ressurreição de Cristo, que se cumpriu a promessa feita por Jesus sobre a vinda do Espírito Santo. Assim podemos ler no Evangelho de João 14.8-14;25-27. Sobre essas palavras de Jesus gostaria de fazer algumas considerações. A promessa de Jesus está num contexto de despedida. Depois de uma convivência e aprendizado intensos com Jesus, os discípulos são confrontados

40

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

Nessas situações, o Espírito Santo de Deus é aquele que nos quer auxiliar, animar, encorajar e consolar. Portanto nem os discípulos tampouco a igreja estarão sozinhos, serão órfãos de Deus, mas terão o apoio, a direção e o auxílio do Espírito Santo. Paulo dizia que o Espírito Santo nos assiste em nossas fraquezas (Romanos 8.26). E Jesus prometeu: Ele estará sempre com vocês.

com a despedida. “Ainda por um pouco e o mundo não me verá mais” (v. 19). O anúncio de que Jesus vai deixar os discípulos e voltar para Deus provoca a tristeza da separação, mas também gera insegurança e levanta ques­tio­na­mentos, como mostra o versículo 22. O que será de nós sem o mestre? Ficaremos órfãos em nossas esperanças? Como cumprir a nossa missão sem o apoio e a orientação do Senhor? Então vem a promessa de Jesus no versículo 16: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro consolador”. A palavra outro (allos) não indica alguém diferente, mas alguém além de, da mesma espécie, que dará continuidade às obras de Jesus e estará para sempre com os discípulos. Precisamos atentar para as atribuições ou funções do Espírito Santo. Vejam que a primeira característica do Espírito Santo é que ele é consolador. Duas vezes em nosso texto o Espírito Santo é chamado de consolador. A palavra “consolador” vem do grego parákletos e significa auxiliador, defensor; aquele que se coloca ao nosso lado e dá-nos coragem para enfrentar situações difíceis.


A segunda característica do Espírito Santo é que ele é o Espírito da verdade. Em João, o Espírito Santo é chamado três vezes de Espírito da verdade (14.17; 15.26; 16.13). Ele é o Espírito da verdade ao menos por três razões: ele vem de Deus e leva a Deus, a fonte de toda a verdade; ele revela Jesus Cristo como a verdade divina encarnada; e ele dá testemunho da verdade e nos guia à verdade.

Portanto, toda forma de mentira, falsidade e engano não vem de Deus, mas do maligno. O Espírito é santo porque vem de Deus e não se conforma com a mentira. Não é por menos que Jesus diz que o mundo não conhece e nem pode receber esse espírito. Temos que tirar as con­ se­quên­cias dessa afirmação. Quem pratica e defende a mentira está longe de Deus e com certeza não age movido pelo Espírito Santo.

E, por fim, o Espírito Santo leva-nos à fé em Cristo e nos capacita para conhecer e guardar os seus mandamentos. O Espírito Santo relembra, interpreta e aplica o que aconteceu com Jesus. Não se trata apenas de uma recapitulação, mas acima de tudo de compreensão, atualização e aplicação em nosso cotidiano daquilo que Jesus ensinou.

ÂNIMO: O Espírito Santo de Deus é aquele que nos quer auxiliar, animar, encorajar e consolar. A igreja não estará sozinha, não será órfã de Deus, mas terá o apoio, a direção e o auxílio do Espírito Santo, que a assiste em suas fraquezas.

A explicação de Lutero sobre o segundo artigo do Credo Apostólico pode ajudar-nos: Creio que por minha própria inteligência ou capacidade não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem chegar a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé. Portanto a promessa feita por Jesus não é algo que ficou perdido no passado e também não é algo válido apenas para os primeiros discípulos. A promessa de Jesus cumpriu-se em Pentecostes e, desde aquele dia, o Espírito Santo de Deus está conosco. Como dizia Jesus: “Ele habita con­vos­ co e está em vós” (v. 17). Assim, Pentecostes é festejado por todos aqueles que experimentam o consolo de Deus em situações difíceis; por aqueles que vencem seus medos e testemunham sua fé em Cristo; por todos e todas que condenam a mentira e defendem a verdade e por aqueles que amam Jesus Cristo e guardam suas palavras. Nesse espírito, teremos muitos motivos para festejar Pentecostes. N GERMANIO BENDER é teólogo e obreiro da IECLB em Joinville (SC)

NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2010

41


penúltima palavra

“Omens” desamparados e sem “agá”

a crise da masculinidade pega os homens desprevenidos, deixando-os perdidos, ao rever os papéis tradicionais atribuídos a homens e mulheres na sociedade. por Carlos Humberto Mendes Gothchalk

N

a prática do acon­se­lha­men­to, tenho participado da vida de muitos homens que se sentem desamparados: adolescentes, jovens, adultos, velhos. Alguns solteiros ou com relações estáveis e outros casados à maneira tradicional. Eles percebem que mudanças estão ocorrendo rapidamente em suas vidas. Um desses homens (43 anos), casado há 15 anos, afirmou desalentado: “No meio de todas as mudanças em relação ao jeito de ser homem e mulher me sinto ‘omem’ desamparado e sem ‘h’”. E completou: “Tudo o que aprendi sobre ser homem não serve para mais nada; sinto-me meio deslocado no dia- a-dia”. Mudanças rápidas

42

Mai/Jun 2010 –> NOVOLHAR.COM.BR

no modo de ser e fazer de homens e mulheres são evidentes. O Dr. Michel Dorais, autor do livro “O homem desamparado. Crises masculinas: como compreendê-las para enfrentá-las!”, constatou: “Não importa a fase de vida, todos os homens estão preocupados com as reviravoltas de sua existência masculina. Não sem motivos: nas duas ou três últimas décadas, a condição feminina e a masculina evoluíram mais do que nos dois ou três séculos precedentes...” Dorais destacou que o amor, a identidade e a parentalidade masculinas estão em crise. Somam-se outras questões como: a participação da mulher no mundo do trabalho, maior partilha de responsabilidades e de

poder entre os sexos, a reconsideração feminista dos papéis tradicionalmente atribuídos aos homens e às mulheres, o desmantelamento dos casais e da família, a reprodução artificial, “barriga de aluguel”, pânico de relacionamentos doentios. Essas transformações geram incerteza, angústia, raiva e até violência em muitos... A boa notícia da crise da masculinidade é o fato de que ela está em mutação, em que o ideal de ser homem pela conquista da força, do poder, do dinheiro, das mulheres, ruiu e está se desmantelando sempre mais. Uma pesquisa feita pelo jornal americano USA Today concluiu que, em cada quatro homens, três estão confusos quanto à atitude a adotar diante das mulheres do pós-feminismo. Os homens querem mostrar-se mais abertos às relações igualitárias, mas receiam perder com isso a própria masculinidade. As mudanças das relações homens/mulheres trazem novas formas de complementaridade amorosa, que se assentam mais na semelhança e na cumplicidade do que na diferença e na resistência. Na procura por parceiros, o outro não é mais visto como pessoa a conquistar, mas antes como pessoa a quem se aliar. As mudanças pedem aos homens de hoje: aprendam a encontrar formas de convivência com as mulheres que não se baseiem apenas na sedução e abandonem a eterna competição com os outros homens na vida amorosa e nas outras áreas da vida, dando mais lugar à solidariedade. A mudança supõe o risco, o desconhecido, às vezes más surpresas. Mas também descobertas, aprendizados e empurrões evolutivos, que são os próprios movimentos criativos e abertos da vida. N

CARLOS HUMBERTO MENDES GOTHCHALK é teólogo e especialista em Aconselhamento e Psicologia Pastoral em Indaiatuba (SP)


REVISTA NOVOLHAR


EDITORA SINODAL


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.