Um olhar sobre o mundo feminino - Revista Novolhar, Ano 10, Número 44, Março e Abril, 2012

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ANO l O · NÚMERO 44 · MARÇO E ABRIL DE 2012 · R$ 6,00

UM OLHAR SOBRE O MUNDO

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CINEMA:

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VIGÍLIA PASCAL:

A mãe de todas as vigílias

A extinção de uma magia

MONÃ:

Uma experiência rentável

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10 a 25

O mundo feminino Vitória contra a violência Wandschoner – renda e terapia Retorno ao ideal de igualdade Mulher: ser plural Racismo e sexismo causam desigualdade Pérolas negras Com a bola toda

ÍNDICE

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povo kaingang Reciprocidade: base das relações

Ano 10 –> Número 44 –> Março/Abril de 2012

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Compromisso com a ecojustiça

A extinção do cinema de rua encerra a magia

ecologia

cinema

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tema do ano

Os jovens estão na vez em debate na IECLB

SEÇÕES

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SUSTENTABILIDADE Monã – uma experiência rentável

36 drogas Lamentar não adianta

OLHAR COM HUMOR > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 ÚLTIMA HORA > 7 NOTAS ECUMÊNICAS > 8 DICA CULTURAL > 9 RETRATOS > 32 TESTEMUNHOS > 33 REFLEXÃO > 34 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Ana Isa dos Reis, Breno Carlos Willrich, Cledes Markus, Egon H. Musskopf, Fabiane Michaelsen, Flávio Magedanz, Katilene Willms Labes, Laísa Erê, Luciana Thomé, Maíra Freitas Barbosa, Nelson Kilpp, Nilza Iraci Silva, Paula Oliveira, Raquel Helene Kleber, Renate Gierus, Rui Bender, Santiago, Sofia Cristina Dreher, Suzel Tunes, Vera Maria Roberto, Vera Nunes e Willy Schumann.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

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Nova mulher

A

luta por igualdade e as respectivas conquistas da metade mulher da humanidade é coisa muito recente na história humana. Desde o tempo das cavernas, na esmagadora maioria das culturas que participaram da formação cultural e social da humanidade, as mulheres sempre foram vítimas impotentes de sujeição familiar e social, com raríssimas exceções. A sociedade humana sempre foi estruturada de forma patriarcal há milênios. O mundo, portanto, sempre foi machista, do Oriente ao Ocidente. As religiões e os textos sagrados de todas elas são fundamentos sólidos sobre os quais esse patriarcalismo foi concretado. No Alcorão, na Bíblia e em muitos outros textos sagrados, há justificativas, mandamentos, leis e recomendações que corroboram a visão de que a mulher é inferior e deve sujeitar-se. Somente essa constatação dá conta do tamanho da luta que as mulheres tiveram que enfrentar para atingir o patamar de respeito e o espaço menos apertado que ocupam hoje na configuração social e religiosa, ao menos no Ocidente, embora ainda falte muito para que elas conquistem a igualdade plena nas relações de gênero. A Novolhar que está em suas mãos buscou a opinião de especialistas no assunto para trazer a você os principais lances dessa trajetória vitoriosa das mulheres. Nas páginas a seguir, você pode mergulhar no mundo feminino que foi sendo construído com muito esforço e luta ao longo dos últimos dois séculos. O cenário que se desfralda diante dos nossos olhos revela persistência, capacidade, coragem e muita determinação. Dele emerge uma nova mulher, cujo legado de conquistas é admirável. O perfil dessa nova mulher é complexo e foi esculpido ao longo de muitas décadas de batalhas, que fizeram a sua voz ser ouvida e respeitada. Principalmente apresenta à sociedade patriarcal uma parceira à altura, preparada e disposta a participar da construção de um mundo menos preconceituoso. Essa nova mulher rejeita a condição milenar de coadjuvante e apresenta-se como protagonista, de igual para igual e reiteradamente mais competente do que o homem. Os exemplos da presença bem-sucedida da mulher no mundo de hoje são inúmeros em empresas, ONGs, iniciativas sociais, igrejas ou mesmo na presidência de nações. Equipe da Novolhar


opinião DO LEITOR

LIVROS DA SINODAL

Feliz 2012 Agradeço o envio das últimas edições de Novolhar. Quero parabenizálos pela excelente qualidade editorial e pelas interessantes e sempre oportunas temáticas apresentadas. Aproveito a oportunidade para pedir que seja atualizado o meu endereço para o envio da revista. Com votos de um 2012 cheio de paz e realizações. Celso Gabatz – por e-mail Pelotas (RS)

Templo de Testo Alto-Pomerode

Conte sua história A Novolhar lança um desafio às comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) para 2012: Envie a história da construção do templo de sua comunidade. O texto deve ter até 2.500 caracteres com espaço e fotos em alta resolução. O Conselho Editorial escolherá seis histórias para publicar em 2013. Conte a sua história para os nossos leitores. Com o passar do tempo, muitas vezes, ricas experiências na construção de templos são esquecidas. Por isso a Novolhar disponibiliza um espaço para passar à história esses momentos importantes. Prazo para envio das histórias é o dia 31 de agosto de 2012. Envie por e-mail: novolhar@ editorasinodal.com.br ou para Editora Sinodal (Caixa postal 11 – 93000-970 São Leopoldo/RS).

Novolhar: Obrigado, Celso, por seus votos para 2012. Já atualizamos seu endereço para que você siga recebendo as revistas.

OGA apoia iniciativa Lemos na edição de janeiro e fevereiro a chamada Conte sua história, incentivando relatos sobre a construção de igrejas em nossas comunidades. A Obra Gustavo Adolfo (OGA), com aportes financeiros do Gustav Adolf Werk, da Alemanha, ajudou muitas comunidades da IECLB na construção de suas igrejas. Esses relatos ajudarão a enriquecer nossa memória e a conhecer o trabalho que está por trás dessas construções. Portanto, a OGA incentiva pastores, pastoras e presbité­ rios a enviar seus relatos para a revista Novolhar. Ficamos na expectativa de ler essas histórias nas edições de 2013. Martin Volkmann – por e-mail Secretário Executivo da OGA São Leopoldo (RS)

Visite nosso site Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Tema da próxima edição A edição nº 45, de Maio/Junho de 2012, terá como tema de capa a MISSÃO. Como a teologia define o termo? História da missão. Os erros e acertos missionários.

por Doris Helena Schaun Gerber Nosso mundo informatizado reúne os imigrantes digitais, que precisam aprender a lidar com as tecno­logias da informação e comunicação (TICs), e os nativos digitais, que nascem na era da infor­ma­ti­za­ção. Nesse contexto e confronto de gerações está presente a educação. A recente publicação da Editora Sinodal, “Educação & Internet”, apresenta algumas questões da educação contemporânea e o papel da internet nesse âmbito. A internet é fonte de consultas, possibilita a troca de informações e a construção de conhecimento cooperativo e é um espaço que amplia contatos. O acesso à informação por crianças e jovens ocorre também por meio da tecnologia e, por essa razão, é legítima a preocupação das autoras com a formação dos professores, que, em sua maioria, são imigrantes digitais, os quais devem orientar estudantes a utilizar, criticamente, as ferramentas disponíveis. As autoras ainda abordam o letramento e a inclusão digital e surpreendem-nos com informações sobre tecnologias usadas na inclusão assistiva, mostrando-nos os recursos facilitadores que contribuem para que as pessoas com deficiência superem dificuldades funcionais e acessem as TICs. N DORIS H. S. GERBER é professora do ISEI e integra o Conselho Editorial da revista Novolhar NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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olhar com humor

MOSAICO BÍBLICO A oliveira é uma árvore que se desenvolve muito bem em solos áridos como os da Terra Santa. Ela tem raízes profundas, capazes de encontrar água a grandes profundidades. A oliveira começa a dar fruto depois de 15 anos, porém ela pode viver muitos anos. Em Jerusalém fica o conhecido Monte das Oliveiras, lugar frequentado por Jesus (Lucas 22.39).

Colheita de azeitonas

As azeitonas estavam maduras para ser colhidas nos meses de setembro e outubro, momento em que os meninos subiam nas árvores, chacoa­lha­ vam e batiam nos galhos para derrubar as azeitonas maduras sobre panos espalhados embaixo da árvore. A maioria das azeitonas era prensada para extrair o azeite.

Divulgação Novolhar

Azeite

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Lagar de azeitonas

O azeite era usado no pão como substituto da manteiga e para cozinhar alimentos. Também era usado como combustível para as lamparinas (Mateus 25.3-4), para fazer sabão, para esfregar na pele, a fim de torná-la mais brilhante, e como unguento para feridas.

Jardim das Oliveiras no Getsêmani

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Divulgação Novolhar

Azeitonas

As azeitonas eram prensadas no lagar, uma grande pedra escavada em que se colocavam as azeitonas para ser esma­ gadas por uma roda de pedra, que girava dentro da depressão. 0 óleo resultante era guardado em jarros.

Fonte: Bíblia Sagrada com Enciclopédia Bíblica Ilustrada – Sociedade Bíblica do Brasil – 2011


última hora

Heróis da floresta

José Ribeiro e Maria do Espirito Santo foram assassinados em 2011 por sua luta contra o desmatamento da Amazônia

A professora e ativista de direitos humanos Marie Ann Wangen Krahn, da Faculdades EST em São Leopoldo, representou a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) no encontro, em dezembro, da equipe internacional que organiza a campanha do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em favor da assinatura de um Tratado Internacional sobre o Comércio de Armas. Marie é coordenadora da ONG Serpaz. Para Marie, a informação de que a cada ano são produzidas 12 bilhões de balas é assustadora. “Isso dá quase duas para cada habitante do planeta, em transações que con­ta­bi­ li­zam entre 50 bilhões e 100 bilhões de dólares”, calcula.

Michael Vier Behs/ALC

Senhor das armas

Marie representou a IECLB no encontro

O grupo do CMI destaca que são prioridades as questões humanitárias em detrimento do enfoque econômico distinguido ao assunto. O Brasil, revelou Marie, ainda não aceitou a cláusula que proíbe a transferência de armas para paí­ ses onde esse comércio poderia facilitar N e in­cre­men­tar a corrupção.

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Amazônia, o brasileiro Paulo Adario, recebeu o prêmio “Herói da Floresta” na América Latina e Caribe. Essa foi a primeira vez que a ONU conferiu um prêmio em reconhecimento à contribuição para a preservação da floresta. Ele foi entregue na cerimônia de encerramento do Ano Internacional das Florestas, comemorado em 2011. A ONU nomeou “heróis da floresta” na África, Europa, Ásia e América do Norte depois de receber 90 indicações de 41 países. Os escolhidos foram Paul Nzegha Mzeka, de Camarões, Shigeatsu Hatakeyama, do Japão, Anatoly Lebedev, da Rússia, e Rhiannon Tomtishen e Madison Vorva, dos Estados Unidos. Segundo a ONU, o Ano Internacional das Florestas oferece a oportunidade de celebrar os esforços de “inúmeros indivíduos ao redor do mundo que dedicam suas vidas para ajudar florestas de formas silenciosas e heróicas”. N

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O casal de ativistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, assassinado no Pará em maio de 2011, recebeu um título especial póstumo das Nações Unidas no dia 9 de fevereiro em Nova Iorque. No mesmo evento, o diretor do Greenpeace para a

Morre Telmo Lauro Müller

Telmo Lauro Müller era historiador e museólogo em São Leopoldo

Morreu aos 85 anos, no dia 9 de janeiro, o professor, escritor, historiador e museólogo Telmo Lauro Müller. Autor de mais de 20 livros sobre a imigração e a colonização alemãs no Brasil, ele nasceu na localidade de Lomba Grande, entre São Leopoldo e Novo Hamburgo, e morreu devido a complicações causadas pelo Mal de Alzheimer. A documentação e a historiografia da imigração alemã no Brasil perderam um de seus entusiastas e expoentes. Telmo Lauro Müller foi fundador do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo em 1959 e foi seu diretor por 48 anos. Formado em Filosofia, Ciências e Letras pela UFRGS, estava licenciado como museólogo e historiógrafo. Entre seus livros constam “175 anos de imigração alemã” e “Imigração alemã: sua presença no Rio Grande do Sul há 180 anos”, ambos pela EST; “Herança: de geração em geração” e “Colônia alemã: histórias e memórias”. N NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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A catedral presbiteriana do Rio de Janeiro completou 150 anos em janeiro com culto festivo, lançamento de medalhas e selos comemorativos, além de um coquetel gospel. A catedral é o primeiro templo da denominação no país; foi fundada no dia 12 de janeiro de 1862 sob a orientação do missionário norte-americano Ashbel Green Simonton.

Notas ecumênicas

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Peregrinação Direitos que aproxima sexuais Peregrinos não vêm à Terra Santa para entender a política ou a geografia. Antes de qualquer coisa são peregrinos religiosos. Quando vêm como cristãos, eles estão expostos à compreensão e à presença de outros cristãos e entendem o que é diálogo ecumênico e por que é tão importante.” Frei PIERBATTISTA PIZZABALLA, prior dos franciscanos na região, cujo título oficial é Curador da Terra Santa.

“Que toda gravidez seja desejada, todos os partos sejam seguros, todos os jovens estejam livres de DST, em especial de HIV/AIDS, e todas as meninas e mulheres sejam tratadas com dignidade e respeito.” Esses são os objetivos centrais da Consulta Continental sobre Igrejas e Direitos Sexuais e Reprodutivos, convocada pelo Conselho Latino Americano de Igrejas-CLAI para este ano. O objetivo da consulta é apresentar, aprovar, lançar e introduzir em todos os âmbitos da educação e da formação de lideranças das igrejas uma proposta concreta de ação com perspectiva de respeito.

Quantos somos Dos 7 bilhões de habitantes do planeta Terra, 2,18 bilhões (31,7% do total) pertencem a alguma denominação cristã, mostra o relatório “Cristianismo Global”, elaborado pelo Centro Pew de Pesquisa, dos Estados Unidos. Quase 34% dos cristãos estão nas Américas do Norte e do Sul, 26% na Europa, 23,6% vivem na África subsaariana e 13,1% na região Ásia-Pacífico. Apenas 0,6% está no Oriente Médio e norte da África.

O ambientalista japonês Shigeatsu Hatakeyama, um dos finalistas para receber o prêmio “Herói da Floresta” da ONU, edição 2011, tem uma inspiração incomum para a sua luta pela preservação das florestas, cuja saúde, segundo ele, depende dos oceanos e vice-versa: o Salmo 42. Assim como o salmo compara a sede por água com o desejo da alma por Deus, a campanha de Hatakeyama pelo plantio de árvores, educação e conservação tem o slogan “A floresta anseia pelo mar, o mar anseia pela floresta”. Ele atua na Universidade de Kyoto e é membro da União Batista Japonesa.

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Inspiração nos salmos


Extremismo de direita Divulgação Novolhar

“As ideias propagadas pel0 pnd não correspondem à imagem dos cristãos sobre a pessoa humana. Todo ideário de direita ou de esquerda que recusa dignidade humana a pessoas ou grupos não é aceitável para um cristão.”

Dom RAINER MARIA WOELKI, arcebispo católico de Berlim, ao sugerir que as comunidades se empenhem ativamente no combate a seus membros que sejam do Partido Nacional Democrático (PND) ou defendam pensamentos extremistas. As igrejas da Alemanha lutam pela proibição do registro do partido extremista.

DICA CULTURAL

Gracias a la vida!

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Divulgação Novolhar

uem de nós já não parou por um instante e olhou para trás e pôde agradecer por tudo aquilo que recebeu e construiu? Normalmente, fazemos esse tipo de reflexão quando finalizamos o ano e planejamos o próximo, quando passamos por uma situação-limite ou quando percebemos que a nossa dor e o nosso sofrimento não são nada diante do sofrimento do outro. Mercedes Sosa sabia fazer isso como ninguém. Como muitos já

disseram, Mercedes deu voz aos sem voz. Argentina, nascida em 9 de julho de 1935, ela nos brindou durante 74 anos com canções de cunho político e social, dando voz ao povo latino. Seu timbre era o contralto. Muitas crianças foram embaladas ao som de Duerme Negrito, assim como muitos corações apaixonados foram acompanhados por Yo vengo ofrecer mi corazón. Dona de uma voz inconfundível, Mercedes Sosa passou por um exílio em Paris e Madri por conta de pensamentos políticos contrários ao governo da época. Mesmo distante de sua pátria, continuava dando voz ao povo argentino e latino-americano. Em 1982, Mercedes retornou a Argentina, onde viveu e veio a falecer no dia 4 de outubro de 2009. Seu último trabalho foi o álbum “Cantora”, com dois volumes, que recebeu três indicações ao Grammy Latino. Em novembro, um mês após sua morte, o álbum levou o prêmio de melhor álbum de folclore. O álbum traz diversos duetos com personalidades da música latina, tais como Jorge Drexler, Fito

Divulgação Novolhar

por Sofia Cristina Dreher

Paez, Shakira, Julieta Venegas, Pedro Aznar, Charly Garcia e os brasileiros Caetano Veloso e Daniela Mercury. Entre as 35 faixas destaco aqui Cántame e Parao. Entre as clássicas, Mercedes revisita a canção Razón de vivir, onde canta: “Para descubrir que la vida va sin pedirnos nada y considerar que todo es hermoso y no cuesta nada”. No Palácio do Governo da Argentina, a Casa Rosada, há uma sala dedicada às mulheres argentinas. Como não poderia deixar de ser, logo na entrada está o quadro de Mercedes Sosa, a quem agradecemos a vida que nos deu tanto por meio de seu canto, de sua voz. N SOFIA CRISTINA DREHER é coordenadora do Bacharelado em Musicoterapia da Faculdades EST em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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CAPA

Foto Stock.xchng

As mulheres já conquistaram espaço na sociedade, mas ainda é preciso melhorar muito para consolidar uma completa igualdade entre os gêneros.

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Q

por Luciana Thomé

uem é a mulher da atualidade? O soció­logo francês Gilles Lipovetski analisou os papéis femininos no mundo contemporâneo e defende que a mulher não se encaixa mais no papel de vítima dominada pelo homem e tampouco no papel de mulher liberada e com­ba­ti­va apregoada pelo feminismo histórico. Segundo ele, existe uma terceira mulher, diferente dessas duas citadas. A complexidade que o assunto requer está contida no pensamento de Lipovetski. Mas talvez tenhamos que ir mais longe e reconhecer que podem existir ainda outros tipos femininos.


No mundo ocidental, ela é a mulher que batalha no mercado de trabalho, preocupada com a maternidade e as funções na família. Mas que, ao mesmo tempo, cobra uma efetiva parceria do companheiro. Ela pode ser a mulher erótica, a descolada, a Amélia, já tão consagrada na música popular brasileira. E se pensarmos nos países árabes, africanos e orientais, teremos uma diversidade ainda maior. Mas uma coisa é inegável: esse perfil complexo é fruto de décadas de batalhas para que a voz das mulheres fosse ouvida. Essa opinião é defendida por Jussara Reis Prá, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e na Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM/UFRGS). “Não podemos negar o movimento feminista que tivemos e temos, talvez hoje existindo com outra tonalidade, mas que contribuiu para alterar totalmente a participação da mulher na sociedade. É inegável que os frutos do feminismo estão aí, principalmente nas novas gerações. Mas temos também as questões socio­eco­nô­mi­cas, de classe, religião, escolaridade e outras, que vão determinar a atuação dessa mulher”, explica Jussara. Feminismo é um movimento social, filosófico e político que tem o objetivo de eliminar os padrões opressores baseados em gêneros e criar uma vivência igualitária para homens e mulheres. A história do feminismo pode ser dividida em três “ondas”. A

primeira teria ocorrido no século 19 e início do século 20, a segunda nas décadas de 1960 e 1970, e a terceira teria ido da década de 1990 até os dias atuais. Isso alterou as perspectivas predominantes em diversas áreas da sociedade ocidental. As ativistas femininas fizeram campanhas pelos direitos legais das mulheres (direitos de contrato, direitos de propriedade, direitos ao voto), pelo direito da mulher à sua autonomia e à integridade de seu corpo e pelos direitos reprodutivos (incluindo o acesso à contracepção e a cuidados pré-natais de qualidade), pela proteção contra a violência doméstica, o assédio sexual e o estupro, pelos direitos trabalhistas, incluindo a licença-maternidade e salários iguais, e todas as outras formas de discriminação.

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“o perfil complexo da mulher atual é fruto de décadas de batalhas para que a sua voz fosse ouvida.”

Luciana Thomé

Dra. Jussara Reis Prá

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Ainda vai levar tempo – Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) a igualdade de gêneros, com homens e mulheres tendo os mesmos direitos e responsabilidades, vai acontecer, mas demorará. É possível que somente no longínquo ano de 2490 as disparidades de gênero desaparecerão completamente. Um relatório intitulado As mulheres no mundo 2010: Tendências e estatísticas aponta os progressos alcançados e o que pode ser melhorado em oito áreas: população, família, saúde, educação, trabalho, poder e tomada de decisões, violência contra as mulheres, meio ambiente e pobreza. Alguns resultados são: – Chefes de Estado ou de Governo são cargos que ainda são quase “imperceptíveis” para as mulheres. Em 2010, 18 mulheres ocupavam essas posições em 192 países pes­qui­sa­dos. – As taxas de mulheres vítimas de violência física variam de 12 a 59 por cento, dependendo de onde vivem, e a mutilação feminina mostra uma ligeira diminuição na África. – Existem aproximadamente 57 milhões de homens a mais do que mulheres no mundo. – Na África Subsaariana, foram registradas 270 mil mortes de gestantes em 2005, isto é, metade das mortes maternas do mundo. E, no mesmo local, as mulheres representam 60 por cento dos adultos soropositivos. – Em nível global, a taxa de me-

ninas em idade escolar matriculadas na escola primária aumentou de 79 para 86 por cento no período de 1999 a 2007. Mas na África Ocidental e Central, existe uma das menores taxas do mundo, com 60 por cento das meninas matriculadas. – No ensino superior, o equilíbrio entre os sexos mudou em favor das mulheres, e o domínio dos homens diminuiu. – Os salários das mulheres representam de 70 a 90 por cento dos salários de seus colegas homens. As mulheres ainda são raramente empregadas em trabalhos com status, poder e autoridade. E a maternidade continua sendo uma fonte de discriminação no trabalho. Protagonismo concreto – De acordo com Jussara, existe um pro­ ta­go­nismo maior da mulher na sociedade atual, especialmente na área da política. Já tivemos Evita Perón, presidentes mulheres eleitas no Chile e na Argentina e, em 2011, assumiu a primeira mulher presidente do Brasil, Dilma Roussef. E será que ainda permanece o estigma de que mulheres cuidam de assuntos soft e homens dos hard? “Se a questão social é tão importante quanto a econômica, então precisamos colocar mais mulheres no poder, porque essas questões estão muito carentes. O mundo precisa do olhar feminino, porque as mulheres se

Still Searc

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trajetória das conquistas femininas 1792 – Inglaterra Mary Wollstonecraft escreve A reivindicação dos direitos da mulher.

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1827 – Brasil Surge a primeira lei sobre educação das mulheres, permitindo que frequentem escolas elementares.


A mulher ainda se sente muito culpada pelo tempo que não deu atenção integral à família. Mas ela não deve se sentir assim, pois o orgulho de um filho é saber que a sua mãe realizou diversas coisas.

preocupam com o outro, não só com o material”, enfatiza. Na área do trabalho, as mulheres ainda ganham menos do que os homens. E ainda há segregação ocu­pa­ cio­nal e feminização de algumas profissões (como magistério, enfermagem e psicologia, que já partem de um piso salarial menor). De acordo com Jussara, a figura do homem provedor sempre esteve instituída no mundo e, mesmo que isso tenha mudado, muitas das tarefas domésticas ainda são responsabilidade exclusiva da mulher, duplicando a carga diária de trabalho quando ela já possui um emprego formal. E isso pode afetar a maternidade. “A própria redução do número de filhos por família nas classes média e alta é um exemplo de que as mulheres estão abrindo mão disso. A questão é: a mulher ainda se sente muito culpada pelo tempo que não deu atenção integral à família. Mas ela não deve, pois, ao se analisar uma trajetória de

1857 – Estados Unidos No dia 8 de março, em uma fábrica têxtil em Nova Iorque, 129 operárias morrem queimadas numa ação policial porque reivindicavam a redução da jornada de trabalho de 14 para 10 horas. Mais tarde, foi instituído esse dia como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem a elas.

1879 – Brasil As mulheres têm autorização para estudar em instituições de ensino superior.

vida, o orgulho do filho é saber que a sua mãe realizou diversas coisas”, defende Jussara. Ao mesmo tempo, a mulher tem sua imagem utilizada, principalmente a partir de estereótipos, na publicidade. De acordo com Jussara, a publicidade ocupa duas frentes: afirma que o lugar da mulher é no lar, como dona de casa, ou erotiza a mulher, para vender bebidas alcoólicas ou carros. “A publicidade em geral e a mídia, especialmente a televisiva, constroem a imagem da mulher assim. E isso é tão introjetado em nossa sociedade, que, muitas vezes, nem mesmo o profissional responsável pelas peças percebe”, ressalta. Mas em diversos setores as coisas estão mudando. No rodapé histórico, abaixo, aparecem alguns dos mais representativos marcos da trajetória feminina de conquistas que valem a pena ser recordadas. Várias outras nuances do mundo feminino serão abordadas nas maté­rias seguintes desta edição de Novolhar, que também ressaltarão as dificuldades e batalhas das mulheres. Mas muitas foram as conquistas ao longo da história, e muitas outras ainda virão, sempre buscando a igualdade dos gêneros num mundo que privilegia a atuação de homens e mulheres. N LUCIANA THOMÉ é jornalista em Porto Alegre (RS)

1887 – Brasil Rita Lobato Velho é a primeira médica formada no país.

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CAPA

Vitória contra a violência

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iolência contra a mulher é crime. Se alguém ainda duvida disso, pode acabar na prisão. A responsável por essa sentença categórica é a lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha e que aumentou o rigor das punições nas agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar. Segundo a delegada titular da Delegacia de Polícia para a Mulher de Porto Alegre e coordenadora das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Nadine Tagliari Farias Anflor, a lei trouxe celeridade ao atendimento às vítimas de violência e inverteu a lógica em que a mulher sempre perdia no jogo de forças contra o agressor. Antes da nova legislação, diz a delegada, a mulher que fazia uma denúncia era retirada de casa e colocada em um abrigo, muitas vezes na companhia dos filhos. Já o parceiro era intimado a comparecer a uma delegacia, onde assinava um termo circunstanciado no qual se comprometia a comparecer para inquérito e

era liberado. “A mulher acabava sendo vítima duas vezes: uma em casa e outra pelo Estado, que não lhe garantia, por exemplo, voltar para casa, de onde havia saído, às vezes, só com a roupa do corpo”, lembra. Com a lei, muita coisa mudou. Hoje, num caso flagrante de agressão, o homem é preso e encaminhado ao presídio. Já se for um registro de ocorrência, a vítima solicita medida pro­te­ti­va de urgência, que retira o agres­sor da casa e impõe-lhe a proibição de determinadas condutas (porte de arma, frequentar os mesmos locais da vítima, pensão para os filhos etc.). Nesses casos, o juiz tem 48 horas para se pronunciar e, caso o agressor não cumpra as determinações, é determinada a sua prisão. Rede de atendimento – Apesar dos avanços, nem todas as questões que envolvem o drama da violência feminina estão resolvidas. “A legislação fala em rede de atendimento, e nós sabemos que isso, na prática, ainda não acontece”, observa Nadine. A rede deve ser composta por centros de

Vera Nunes

por Vera Nunes

referência, delegacias es­pe­cia­li­za­das, casas de abrigo, defensoria especializada, juizado de violência doméstica e familiar, com apoio do Ministério Público. E articulada com as redes setoriais de saúde, assistência e todo o sistema de segurança pública. Ainda falta muita coisa. A primeira delegacia de mulheres foi criada em 1988 em Porto Alegre. Hoje existem apenas 15 em todo o Rio Grande do Sul e 27 postos de atendimento. Como nesses locais o atendimento é mais especializado e o pessoal é insuficiente – na capital são duas plantonistas para trinta mulheres/dia –, a demora no atendimento é de cerca de seis horas. “Elas até poderiam procurar uma

trajetória das conquistas femininas 1893 – Nova Zelândia Pela primeira vez no mundo, as mulheres têm direito a voto.

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1927 – Brasil Ocorre, no Rio Grande do Norte, o primeiro voto feminino no Brasil. Quinze mulheres votaram, mas seus votos foram anulados no ano seguinte. No entanto, foi eleita a primeira prefeita da história do Brasil, Alzira Soriano de Souza, no município de Lages (RN).

1932 – Brasil Novo Código Eleitoral garante o direito de voto às mulheres.


“AS MULHERES PODERIAM PROCURAR UMA DELEGACIA COMUM, COM DEPOI­MENTO NO BALCÃO. JÁ na DP da Mulher, ela vai sentar e conversar numa sala separada, com gente especializada e com muito mais privacidade.” Delegada Nadine Anflor

delegacia comum, mas o depoimento é de pé, no balcão, relatando seus problemas na frente de quem estiver por ali. Já na DP da Mulher, ela vai sentar e conversar numa sala separada, com gente especializada e com muito mais privacidade”, observa. Além da estrutura e de pessoal para o primeiro atendimento, prossegue a delegada, falta a rede de atendimento, que inclui, por exemplo, tratamento compulsório ao agressor. “Na maioria dos casos, o problema está relacionado com álcool e drogas, e, muitas vezes, o agressor pede ajuda, mas isso extrapola o nosso poder”, salienta. Nadine lembra que, apesar da grande procura pelo atendimento concentrarse na classe baixa, ela tem aumentado nas classes média e alta, especialmente pela agilidade no encaminhamento. “É mais ágil ir a uma delegacia do

que aguardar pela sentença judicial determinando a separação de corpos”, afirma, lembrando que a lei desvelou uma realidade: a violência doméstica não escolhe classe social. O resultado dos seis anos de existência da lei são positivos, garante a delegada. Em 2011, caiu em 30 por cento o número de vítimas de homicídios. Em 2010, morreram 223 mulheres, enquanto que, em 2011, foram 188. Dessas 188, 39 foram vítimas de crimes passionais. Em 2010, na capital gaúcha, esse número havia sido de 84 mulheres. “Salvamos 45 mulheres no ano passado”, comemora, lembrando que 306 homens foram presos em flagrante em 2011. Quase um por dia. N VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)

A Lei Maria da Penha, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de agosto de 2006, é uma referência ao caso nº 12.051/ OEA, de Maria da Penha Maia Fernandes. Ela foi espancada de forma brutal e violentada diariamente pelo marido durante seis anos de casamento. Em 1983, ele tentou assassiná-la por duas vezes, tamanho o ciúme doentio que ele sentia. Na primeira vez com arma de fogo, deixando-a paraplégica, e na segunda, por eletrocussão e afogamento. Após essa tentativa de homicídio, ela tomou coragem e o denunciou. O marido de Maria da Penha só foi punido após 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em regime fechado, para revolta de Maria com o poder público. A lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, e, já no dia seguinte, o primeiro agressor foi preso no Rio de Janeiro após tentar estrangular a ex-esposa.

1945 – ONU A igualdade de direitos entre homens e mulheres é reconhecida por meio da Carta das Nações Unidas.

Divulgação Novolhar

Lei Maria da Penha

Maria da Penha Maia Fernandes deu nome à lei de 2006

1951 – OIT Aprovada pela Organização Interna­cional do Trabalho a igualdade entre trabalho masculino e feminino para função igual.

1969 – Israel Golda Meir, ex-professora primária, diplomata de carreira e cofundadora do moderno Estado de Israel, torna-se primeira-ministra de Israel, cargo que ocupou até 1974. NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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Wandschoner – renda e terapia

A

agulha está para a bor­da­dei­ra assim como o pincel está para o pintor. Bor­da­dei­ra e pintor são ver­da­dei­ ros artistas. Assim a octo­ge­nária Celita Holler encara a técnica do bordado de Wandschoner (panos de parede), muito cultivada em Ivoti, um dos berços da colonização alemã no Rio Grande do Sul. Os Wandschoner representam um artesanato típico da cultura alemã que cruzou o oceano e chegou à região por volta de 1826. As famílias imigrantes gostavam de enfeitar as paredes internas de suas casas com quadros ou panos de parede bordados, que continham principalmente citações bíblicas e mensagens de natureza religiosa e moral. O bordado é uma arte eterna, reconhecem as pessoas que apreciam essa técnica. E à medida que se revitaliza essa arte, valorizam-se os conhecimentos dos antepassados. E também se descobre o quanto ela faz diferença especialmente na vida das mulheres.

No ano de 2004, nasceu em Ivoti um movimento de resgate cultural dos Wandschoner pelo grupo de terceira idade Amizade. Foram organizadas oficinas de bordado e uma pesquisa sobre a sua história. Em 2008, um projeto chamado Tecendo Memórias ofereceu uma oportunidade a 30 mulheres do município de Ivoti para aprender a arte de bordar. Além da técnica de bordado, elas também adquirem conhecimentos sobre história do bordado, gestão de negócios, informática, criação e arte, direitos humanos e cidadania. O projeto Tecendo Memórias é desenvolvido pelo Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI), em parceria com a Fundação Luterana de Diaconia, Prefeitura Municipal de Ivoti, Sínodo Nordeste Gaúcho, entre outras entidades. Conforme a pastora Marli Brun, gerente de Ação Social da Associação Evangélica de Ensino, mantenedora do ISEI, o projeto Tecendo Memórias busca fomentar uma nova alternativa econômica para o município de Ivo-

Rui Bender

por Rui Bender

ti, associando o resgate cultural dos Wandschoner à promoção da inclusão social. Ele envolve bordadeiras de Ivoti e do município vizinho de Estância Velha. No momento, são quatro grupos em Ivoti e um em Estância Velha, totalizando mais ou menos cinquenta mulheres envolvidas. Elas confeccionam panos de parede, camisetas, toalhas de mesa, panos de prato, guardanapos, trilhos etc. Mas o carro-chefe são os Wandschoner. “Essas mulheres promovem a solidariedade, o companheirismo, o aprendizado mútuo e a integração

trajetória das conquistas femininas 1974 – Argentina Isabel Perón torna-se a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente.

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1985 – Brasil Surge a primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher.

1994 – Brasil Roseana Sarney é a primeira mulher eleita governadora de um estado brasileiro.


mulheres que só ficam em casa sentem-se frustradas e caem em depressão. Quando passam a produzir algo que é valorizado e complementa a renda familiar, elas se sentem enriquecidas. aprender coisas novas melhora sua autoestima.

comunitária. Sem contar que é uma fonte de renda para elas e suas famílias”, completa Marli. Os produtos são comercializados em feiras municipais e regionais. As bordadeiras até já estão organizadas em forma de associação: a Associação de Bordadeiras Tecendo Memórias. Quinze mulheres estão inscritas nela. “É uma grande satisfação e alegria poder vender algo que se produziu”, orgulha-se Valesca Kreutz, vice-presidente da associação. No ano passado, as vendas foram satisfatórias. “Em torno de 4 mil reais”, lembra Valesca.

Assim, o trabalho das bordadeiras pode ser uma fonte de com­ple­men­ta­ ção de renda, admite a pastora Marli. Principalmente para as pessoas mais necessitadas, qualquer retorno é significativo. Mas a arte de bordar também é uma terapia, observa Celita. Senhoras deprimidas por maus-tratos em casa, mormente em consequência do alcoo­ lismo, sentem-se valorizadas. Isso é uma vitória para elas. Muitas mulheres que só ficam em casa cuidando da casa e dos filhos sentem-se frustradas e caem em depressão. Quando passam a produzir algo que é valorizado e pode complementar a renda familiar, elas se sentem en­ri­que­ci­das. Também o simples fato de reunir-se com outras mulheres e aprender coisas novas contribui para melhorar sua autoestima, acrescenta a pastora. Por sua importância, o projeto Tecendo Memórias foi premiado com um espaço no livro “Mãos, Meninas, Mulheres”, do jornalista e escritor Ricardo Bueno. O autor viajou com o fotógrafo Ita Kirsch a quinze cidades de diferentes estados do país atrás de histórias que fazem do artesanato uma ferramenta de inclusão social. Números recentes apontam que cerca de 8,5 milhões de pessoas trabalham na produção de artesanato no Brasil. Nada menos do que 87 por cento delas são mulheres. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

Pesquisa de Luciana Thomé; imagens da internet.

1996 – Brasil Nélida Piñon torna-se a primeira mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras.

2006 a 2010 – América do Sul Em 2006, Michelle Bachelet foi eleita presidenta do Chile. Hoje ela é diretora executiva da ONU Mulheres. Em 2007, é a vez da Argentina eleger Cristina Kirchner, que foi reeleita em 2011 para um segundo mandato. Em 2010, o Brasil elegeu Dilma Roussef presidenta do país. NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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Retorno ao ideal de igualdade por Suzel Tunes

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eja em que denominação for, os bancos das igrejas revelam: há mais mulheres do que homens na membresia. Mas, nos cargos de liderança das instituições eclesiásticas, essa diferença

se inverte, mesmo entre as igrejas evangélicas, que aceitam o pastorado feminino há vários anos. Para as teólogas Margarida Ribeiro e Suely Xavier, pastoras metodistas e professoras da Faculdade de Teologia da Universi-

dade Metodista de São Paulo, essa disparidade não ocorre por acaso: é consequência de uma sociedade que ainda enxerga homens e mulheres de maneira desigual, o que requer reflexão, ensino e até mesmo conversão no interior das igrejas. Margarida e Suely são coordenadoras do Centro Otília Chaves, centro de estudos ligado à faculdade, que visa à capacitação da membresia feminina da Igreja Metodista e ao apoio de iniciativas em defesa da mulher. Elas desenvolvem publicações, encontros e cursos baseados numa leitura da palavra de Deus sob a ótica feminina. Margarida e Suely evitam o termo “teologia feminista” pelo estereótipo de radicalismo que a palavra carrega, erroneamente confundida com uma espécie de “machismo às avessas”. Para que o discurso não seja desqualificado pelo uso de uma palavra pouco compreendida, as teólogas preferem falar em “leitura da mulher” na Bíblia. “Evitamos criar barreiras para começar o diálogo”, diz Suely. Fazer uma leitura da Bíblia que dê vez e voz à presença feminina na sociedade e na igreja exige um sério

“Toda leitura bíblica é feita a partir de um contexto que não é o bíblico. O que se procura é compreender o contexto no qual o livro foi escrito.” Pastora Suely Xavier

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Teologia feminista e luta por direitos

Fotos: Suzel Tunes

National Portrait Gallery

Com a institu­ ciona­lização, o cristianismo foi sucumbindo ao machismo reinante na sociedade e aniquilando a participação feminina. Valorizar o papel da mulher como cristã e cidadã é, portanto, um retorno aos ideais que marcaram o início de um contagiante movimento religioso.

Margarida Ribeiro fala em “leitura da mulher” na Bíblia

trabalho de interpretação. É preciso contextualizar as passagens bíblicas sem cair em um relativismo que poderia esvaziar o conteúdo do texto. “Toda leitura bíblica é feita a partir de um contexto que não é o bíblico. O que se procura é compreender o contexto no qual o livro foi escrito”, diz Suely, que é professora da área de Bíblia. Ela explica que, embora a Bíblia reflita a sociedade patriarcal na qual foi escrita, está repleta de exemplos de mulheres que ousaram transpor os limites que a sociedade lhes estabelecia. Assim, por exemplo, embora o apóstolo Paulo aconselhe silêncio à mulher, em suas epístolas também se encontram grandes exemplos de liderança feminina no cristianismo primitivo. Lídia surge nos textos do apóstolo Paulo como protagonista da nascente igreja cristã em Filipos. “Na casa de Lídia nasce a primeira igreja

cristã da Europa”, diz Suely. Febe, possível portadora da Epístola de Paulo aos Romanos, exercia na igreja de Cencreia um papel considerado masculino – diakonon (diácono), palavra que tem hoje em diaconisa o seu equivalente feminino. Mas é sobretudo na vida e nos ensinamentos de Jesus que estão os maiores exemplos da influência decisiva das mulheres na história do cristianismo. Com a institucionalização, o cristianismo foi sucumbindo ao ma­chis­mo reinante na sociedade e aniquilando a participação feminina. Valorizar o papel da mulher como cristã e cidadã é, portanto, um retorno aos ideais que marcaram o início de um con­tagiante movimento religioso em que mulheres, homens e crianças eram tratados com igualdade. N SUZEL TUNES é jornalista em São Paulo (SP)

Elizabeth Cady Stanton foi precursora do feminismo e de uma nova interpretação da Bíblia sob o prisma do feminismo

O feminismo nasceu no século 19 como uma luta por igualdade de direitos políticos e por políticas públicas voltadas às necessidades das mulheres. No final do século, chegava ao pensamento teológico por intermédio da presbiteriana Elizabeth Cady Stanton, uma ativista pelo voto feminino. Junto com outras mulheres versadas nas Escrituras e nos idiomas bíblicos, Elizabeth desenvolveu um projeto ambicioso e polêmico: uma nova interpretação da Bíblia sob prisma feminino. Publicado em dois volumes, entre 1895 e 1898, o projeto foi denominado A Bíblia da Mulher e é considerado o ponto de partida de um longo processo que culminou no desenvolvimento de uma teologia feminista, simultanea­ mente à teologia da libertação, na segunda metade do século 20. Na América Latina, África e Ásia, a teologia feminista desenvolveu-se a partir da década de 1980, geralmente à margem das instituições religiosas, mas muito próxima dos movimentos sociais, como os movimentos de trabalhadores rurais, sem-terras, grupos de mulheres de periferia e grupos de consciência negra. Há quem diga que hoje a teologia feminista está ultrapassada, juntamente com a teologia da libertação. Mas as teólogas que se dedicam à luta pelos direitos da mulher – um amplo espaço de atuação cristã que ainda espera uma presença mais efetiva das igrejas – somente vão acreditar nisso no dia em que forem ultrapassados o preconceito, a opressão e a violência contra as mulheres em suas várias formas.

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Mulher: ser plural por Maíra Freitas Barbosa

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foi para a grande maioria de nossas mães e avós. Hoje, devido ao uso de métodos contraceptivos e aos avanços da medicina da fertilidade e inseminação, a gravidez não é um fato dado e simples na vida das mulheres, uma etapa necessária em seu desenvolvimento e realização, como retratam diversas peças publicitárias veiculadas em ho-

Foto Stock.xchng

alar sobre mulher e família em suas atuais configurações significa infinitas projeções de temas: o feminino, trabalho, filhos, ausência de filhos, mulheres chefiando famílias, educação (delas e da família) são apenas alguns dos mais evidentes a se pensar. Façamos um pequeno apanhado desse universo em sua construção cotidiana, em pequenos encontros. Retomemos algumas datas emble­ má­t icas das mulheres na história ocidental recente: os protestos entre 1897, 1908 e 1911 das trabalhadoras têxteis de Nova Iorque por melhorias nas condições de trabalho; as três ondas feministas (fim do século 19, década de 1960 e a iniciada na década de 1990 até hoje). Esses acontecimentos resultaram em diversas conquistas nos campos político, cultural, social e de direitos civis. A mulher redefiniu como infinitos os lugares que pode ocupar na sociedade, não mais se resignando ao de esposa, mãe, dona de casa. Isso amplia de forma inevitável as liberdades, responsabilidades e desafios que as mulheres têm de enfrentar. O fato de ter a maternidade como uma opção e não obrigação, por exemplo, complexifica a relação de esposa e mulher perante a sociedade, pois a “mulher esposa” não é mais uma definição óbvia por si só, restrita e limitada, com deveres claros e inques­tio­ná­veis, assim como

menagem ao 8 de março. Há que levar em conta mulheres que não podem ou optam por não ter seus filhos, o que não as define como menos mulher, mesmo que propagandas veiculem essa ideia. Certo dia, em um desses cruzamentos casuais com pessoas desconhecidas que ocorrem cotidianamente, escutei as dificuldades de uma jovem mulher que vive uma nova realidade. Ela enfrenta muitos dilemas na criação de um filho de três anos de idade: toda a energia que ele possui e a atenção que demanda; o fato de ele ser adotado e as questões afetivas que isso envolve; um marido duas décadas mais velho, que tem dificuldades para auxiliar nos cuidados com a casa e o filho; o trabalho desgastante e não valorizado de ser professora de crianças e adolescentes; os cuidados


com os pais e os sogros idosos; as ansiedades que tudo isso gera e que provocam o aumento de peso dessa mulher, trazendo prejuízo à saúde e à auto­es­tima. Mulher mãe, mulher filha, profissional, esposa, solteira: são tantas as possibilidades quantas são as exigências. Outro dos maiores desafios que as mulheres enfrentam e que estão intimamente ligados às decisões de retardar a maternidade é a busca por espaço no mercado de trabalho. A procura pela independência econômica, o tempo de dedicação aos estudos e a profissionalização são apenas alguns dos fatores. Essas buscas fazem com que as mulheres enfrentem grandes e difíceis desafios, desde as greves do fim do século 19 até a busca (ainda atual) pela equiparação dos salários em relação aos dos homens e a ocupação de importantes cargos em espaços públicos e privados. Esses desafios levamnas a um novo status social, chegando hoje à presidência do Brasil. Não ter mais o papel e a função social determinados é uma conquista, mas pode ser também um grande gerador de sofrimento. Certo dia, ao encontrar uma profissional com formação superior, inserida no mercado de trabalho, em busca de aperfeiçoamento constante, mas dedicada nos últimos dois anos quase que em tempo integral à maternidade, ouvi a seguinte frase, que expressa sua dificuldade com tarefas que lhe são novas, mas que sua mãe sempre desempenhou: “O problema é que nossas mães não nos ensinam mais como cuidar de uma casa, de um lar”. Talvez o desafio seja justamente este: integrar as novas conquistas de ser uma mulher contemporânea à sabedoria da tradição. N MAÍRA FREITAS BARBOSA é psicóloga social e assessora de projetos da Vivá Moara – Assessoria em Projetos Sociais e Metodologias de Formação, em Porto Alegre (RS)

Reprodução Novolhar

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MULATA: Óleo sobre tela do pintor Di Cavalcanti, o primeiro a retratar a mulher negra brasileira

Racismo e sexismo causam desigualdade por Nilza Iraci Silva

D

ados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geo­g rafia e Estatística (IBGE) em 2010 revelam que o Brasil é um país habitado por uma população de 191 milhões de pessoas. A população negra soma 97 milhões de pessoas e, pela primeira vez, é maioria no Brasil. As mulheres negras representam 49 milhões do total das brasileiras.

Trata-se de um contingente popu­ la­cional exposto a diferentes formas de violência e mecanismos de exclusão dentro e fora das políticas públicas em decorrência da força com que o racismo, o sexismo e a lesbofobia incidem – e estruturam – a sociedade brasileira. Ser mulher negra significa muitas coisas diferentes, porém tem em comum fortes marcas decorrentes da

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existência do racismo, que cria um conceito e uma hierarquia de raça, que, aliado ao sexismo, tem produzido historicamente um quadro de destituição, injustiça e exclusão. As mulheres negras estão entre o segmento populacional que vivencia a situação de maior pobreza e indigência do país. Possuem menor escolaridade, com uma taxa de analfabetismo três vezes maior do que as mulheres brancas, além de uma menor expectativa de vida. São trabalhadoras informais sem acesso à previdência, residentes em ambientes insalubres e responsáveis pelo cuidado e sustento de seu grupo familiar. 60 por cento das famílias chefiadas por mulheres não possuem rendimentos ou sobrevivem com rendimento inferior a um salário mínimo. Entre as diferentes ocupações exercidas pelas mulheres negras no Brasil, com maior destaque para a atuação no setor de serviços, são

exer­ci­das com alto grau de in­for­ma­ li­dade e em condições de exploração de mão de obra e baixos rendimentos. O trabalho doméstico cor­res­pon­de a aproximadamente quatro milhões de negras num universo estimado de cerca de sete milhões de trabalhadoras domésticas em atividade no país. As meninas negras representam cerca 75 por cento das trabalhadoras domésticas infantis, vivendo em regime de semiescravidão nas casas grandes modernas. As mulheres negras contribuíram de forma inquestionável para a construção socioeconômica e cultural do país e têm participação decisiva nas conquistas de direitos das brasileiras. Sua luta contra o racismo e o des­m as­c a­r a­m ento do mito da democracia racial têm conquistado o envolvimento e o comprometimento de outros setores da sociedade civil. Cabe destacar ainda o protagonismo especial das mulheres rurais e das

Reprodução Novolhar

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MULATAS: A mulher negra na obra de Dina Garcia

por Vera Maria Roberto “Pérolas Negras” é uma seleção de depoimentos que visa transmitir ao leitor o desafio de 15 mulheres de contar experiências de suas vidas e a percepção que cada uma tem de ser mulher, negra e cristã. Esse livro é uma pequena amostra de pérolas negras existentes na sociedade brasileira. As mulheres apresentadas vivem, sonham e desenvolvem-se pessoal e profissionalmente. Além de suas atividades, conciliam o cuidado de suas famílias e atuam nos espaços religiosos com inteligência perspicaz, sem perder a graça e a leveza. Lan-

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çam mão de estratégias mantenedoras de suas principais características: a força e a beleza. Esse material, cuidadosamente garimpado, é uma iniciativa da Pastoral de Negritude do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI/Região Brasil) com o apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), que tem como um de seus objetivos o combate a qualquer forma de preconceito e discriminação, com especial foco no meio religioso. O Projeto Pérolas Negras é inovador porque se trata de um levantamento histórico de mulheres negras brasileiras cristãs vivas, contemporâneas à nossa sociedade, mulheres que têm histórias e características semelhantes, porém vivem em diferentes cidades do Brasil,

CLAI/Região Brasil

Pérolas negras

A autora em noite de autógrafos


quilombolas na árdua luta para a preservação e ti­tu­lação de suas terras e por um desenvolvimento sustentado para suas comunidades. Há muito tempo, a mobilização política das mulheres negras tem apontado para o reconhecimento do papel do Estado na produção de ações capazes de reduzir o impacto que o racismo, o sexismo e a lesbofobia têm em suas vidas. Entretanto, o Estado não tem sido eficiente na construção de políticas capazes de enfrentar as discriminações e as demais ini­q ui­d a­d es que excluem uma grande parcela da população brasileira, impedindo seu acesso às políticas sociais. Embora a implementação de algumas políticas para a questão racial, elas ainda não têm sido suficientes para produzir alterações significativas e imediatas na vida das mulheres negras. A partir da consciência de sua dignidade, as mulheres negras, a

confessam religiões diferentes e desenvolveram as mais diversas atividades profissionais. Considerando que, na população negra brasileira, existe o pressuposto de que ela está ligada a religiões de matriz africana, o Projeto Pérolas Negras não tem a intenção de fazer segregação religiosa e sim iniciar um debate, mostrando outra face da população negra religiosa. Por outro lado, esse projeto elucida não apenas a aceitação da mulher negra cristã nas comunidades religiosas, mas também em outros contextos da sociedade, como o profissional, o social e o educacional, entre outros. O desafio do Projeto Pérolas Negras não é somente para pessoas religiosas e/ou instituições com o mesmo caráter. O projeto desafia as pessoas a conhecer e falar nas suas rodas de diálogo como a mulher negra cristã tem sido vista, recebida e inserida tanto nas conversas informais como nas

despeito da profusão de violências, desvalorizações e violações de direitos que as atingem, permanecem atuantes de forma protagônica. A história das mulheres negras é, ao fim e ao cabo, a história da construção da democracia no país, pois uma nação democrática implica dar lugar a várias vozes e olhares muitas vezes silenciados e encobertos por mecanismos de discriminação. As mulheres negras acreditam que a luta contra o sexismo, o racismo e todas as formas de preconceito é tarefa de todas as pessoas que acreditam na construção de uma sociedade justa e igualitária, onde todas as pessoas possam viver com dignidade e prazer. N

NILZA IRACI SILVA é coordenadora executiva do Geledés – Instituto da Mulher Negra e da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras em São Paulo(SP)

formais e ainda como tem sido sua participação nos espaços de decisão. Mulheres que falam com autoridade do que é para elas ser uma mulher negra cristã. Dessa forma, o projeto atua na área de direitos humanos, com foco na educação. Educação é um processo, porém se faz necessário iniciá-lo para garantir, num futuro não muito distante, igualdade de oportunidades para todos e todas (inclusive nos espaços religiosos), respeitando a diversidade social N brasileira. VERA MARIA ROBERTO é mestre em Ciências da Religião e coordena a Pastoral de Negritude do Conselho Latino-Americano de Igrejas, em Balneário Camboriú (SC)

Como adquirir o livro

Preço: R$ 20,00. Depósito: CLAI Brasil Banco Itaú, Ag. 0609 – c.c. 31.126-1 Fazer depósito identificado, enviar o comprovante para o e-mail: negritude@claibrasil.org.br com nome e endereço para recebimento do livro.

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Com a bola toda

por Paula Oliveira

A

Karla Cruz

A luta das mulheres por igualdade profissional vem de longa data. Melhores salários, oportunidades iguais às dos homens, mas, acima de tudo, respeito no ambiente profissional.

s mulheres ocupam cargos na presidência, nos tribunais superiores, nos ministérios, no topo de grandes empresas... Pilotam jatos, ônibus, comandam tropas, perfuram poços de petróleo e, em muitos casos, são as provedoras do lar. Embora muitas tenham conquistado espaço em áreas que antes eram reduto masculino e ocupem cargos de liderança, elas ainda ganham salários inferiores aos dos homens. Em média, ganham 22% menos do que os homens na mesma função, mesmo sendo mais preparadas do que eles. Segundo Silas Regis (46), gerente de Recursos Humanos (RH), a resistência e o preconceito no mercado de trabalho ainda existem e a diferença salarial predomina sim, mas gra­da­ti­ va­men­te cresce o número de mulheres que ganham mais do que o marido. “O grande desafio para as mulheres desta geração é reverter definitivamente o quadro da desigualdade salarial”, afirma. Outro desafio no crescimento feminino dentro das organizações é a falta de preparo das empresas em lidar com o período da maternidade. As empresas evitam a contratação de mulheres que

“no lado profissional, as empresas são mais exigentes com as mulheres e, de outro, há um consenso de que a responsabilidade no cuidado dos filhos é principalmente da mulher.” Escritora Lúcia Cyreno

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Paula Oliveira

se mostram predispostas a uma gravidez. “Muitos empresários acreditam que o gasto com auxílio-maternidade é totalmente desnecessário e, para eles, a concessão do benefício faz com que as mulheres não tenham a mesma chance de promoção do que os homens”, diz a jornalista Juliana Leite (35), que já sentiu na pele esse despreparo das empresas. Resta à mulher enfrentar o dilema de conciliar o trabalho sem deixar a vida pessoal de lado, como acontece com muitas mulheres na faixa dos 30 anos que abandonam seus empregos para ser mães e depois voltam a trabalhar apenas no mercado informal ou, ainda, não retomam sua carreira. Na opinião da escritora Lúcia Cyreno (39), as mudanças sociais e de valores impuseram às mulheres uma competição desigual em relação aos homens: no lado profissional, as empresas são mais exigentes com as mulheres e, de outro, há um consenso de que a responsabilidade no cuidado dos filhos é principalmente da mulher. Essa tripla jornada de trabalho so­ bre­carrega muito a mulher. Por isso Lúcia optou pela maternidade em primeiro lugar. “Tenho três filhos, e o ca­ çu­la tem necessidades especiais. Decidi ser mãe em tempo integral e escrevo nas horas vagas”, diz com bom humor e completa: “Estou casada há 14 anos, tenho uma família unida e estruturada. Mas muitas mulheres cuidam sozinhas dos filhos, vivem sobrecarregadas e sem qualidade de vida”. “Em minha opinião, essa questão da mulher realizar tripla jornada de trabalho passa ainda por uma questão cultural. Muitos homens ainda se escondem de determinadas responsabilidades no lar, e outros não aceitam e nem admitem ter que ajudar nessas atividades”, completa o gerente de RH. Outra tendência da mulher

“O grande desafio para as mulheres desta geração é reverter definitivamente o quadro da desigualdade salarial.” Gerente de RH Silas Regis

contemporânea é deixar para casar depois dos 40, pois só assim consegue dedicar-se profissionalmente. Apesar das dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mundo corporativo, as notícias são otimistas: elas já ocupam pelo menos metade dos postos de trabalho, e quando se trata de cargos de direção, elas estão na frente. De acordo com a pesquisa realizada em diversos países do mundo pela Grant Thornton Inter­national Business

Report (IBR), as mulheres aos 36 anos já são líderes, contra uma média de 40 anos para os homens. “Elas são melhores líderes e administradoras porque sabem conduzir melhor a equipe na busca e na conquista de resultados e compreendem bem esse conceito sem se deixar levar pelo poder que o cargo traz”, comenta Silas. “Elas têm um grande destaque na área de Gestão e Administração”, afirma. Para superar as dificuldades, muitas mulheres optaram pelo em­preen­ de­dorismo. De acordo com estudo do SEBRAE, realizado pela Global Entre­ preneurship Monitor (GEM), de 49,3% a 50,7% dos empreendedores brasileiros são do sexo feminino. Independentemente das escolhas, as mulheres mostram que estão “com a bola toda”. Trabalham, estudam e ganham espaço por onde passam. N PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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ecologia

Os jovens realizaram protestos contra os líderes dos países reunidos em Durban

Compromisso com a ecojustiça por Raquel Helene Kleber

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rinta jovens de 21 países e de diversas igrejas reuniram-se para aprender sobre eco­jus­ti­ça durante a 17ª Conferência das Partes (COP17) da Convenção Quadro das Nações Unidas para a Mudança do Clima em Durban, África do Sul, em dezembro de 2011. Organizado pelo Conselho Mundial de Igrejas, em conjunto com a Federação Luterana Mundial, o encontro

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oportunizou a troca de ideias e experiências acerca dos contextos locais de cada participante, assim como também incentivou a planificação de projetos a serem implementados poste­r iormente nos respectivos países. Enquanto os 194 países negociavam na COP17 a redução das emissões de gases do efeito estufa, principais causadores das mudanças

climáticas, o grupo Youth for EcoJustice (Juventude pela ecojustiça) engajou-se ativamente em mobilizações da socie­dade civil que cobravam dos governos uma ação rápida e efetiva de combate às mudanças do clima. O Global Day of Action (Dia de Ação Global) é um exemplo, que contou com mais de 30 mil pessoas. A questão das mudanças climáticas está intimamente ligada às injustiças socioambientais em nosso mundo, uma vez que são as comunidades mais pobres e vulneráveis aquelas que mais sofrem as consequências. Muitas reflexões e diálogos durante o treinamento relacionaram-se a esse conceito de justiça, sempre tendo como base a palavra de Deus. Enquanto os jovens aprendiam sobre o significado de ecojustiça, termo que conecta justiça climática, ambiental, social e econômica, aprenderam também sobre a teologia da mesma,


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que apresenta a busca pela justiça como centro do ser cristão, chamando a atenção da igreja para atuar em defesa daqueles que mais precisam: os excluídos e os oprimidos. A ligação com o ambiental encontra-se em versículos como Romanos 8.18-23, que revelam que a criação sofre os impactos de seu uso irresponsável por parte dos seres humanos. E é ainda por intermédio das palavras da Bíblia que os cristãos são então chamados a se tornar os “cuidadores” da criação de Deus. Tendo chamado a atenção da mídia global, o trabalho dos jovens participantes no treinamento internacional reafirmou o papel crucial da igreja para atuar ativamente na sociedade em defesa da ecojustiça e o comprometimento dos jovens com essa causa, uma vez que são eles que têm a esperança e a energia para alterar essa situação, somadas à sua capacidade de networking (trabalhar em rede) e tecnologia. Serão os mais afetados pelas decisões de hoje, tendo em mãos a oportunidade única de apresentar e aplicar soluções para este mundo. A essência do encontro Youth for Eco-Justice foi perceber a presença de

Raquel (esquerda) ao lado de crianças de Durban

Deus em toda a criação. O desafio dos cristãos é cuidar dela, no sentido de que estão interconectados com ela e não são uma parte independente. Foi relevante também perceber a importância da igreja em abordar questões de justiça socioambiental, em­po­de­ran­do as pessoas para que reflitam sobre as causas dos problemas e relacionando as ações com a fé. Esse treinamento acentuou que existe um chamado para toda a so-

ciedade de se engajar na construção de justiça e sustentabilidade, e os jovens devem assumir um papel de liderança nesse contexto. N RAQUEL HELENE KLEBER é estudante de Relações Internacionais e participa da coordenação do Conselho Sinodal da Juventude do Rio dos Sinos (COSIJE) em Sapiranga (RS)

Mais informações: http://lwfyouth.org/2011/12/04/ y4ej-youth-participate-in-global-day-of-actiondemonstration/

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povo kaingang

Reciprocidade: base das relações nos povos indígenas do Brasil não se podem separar as categorias feminino e masculino. porque o que existe é uma com­plementaridade, é o andar juntos, é o fazer juntos.

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participação da mulher indígena na vida e organização do povo Kaingang é determinante para a sua existência e continuidade. Essa é a visão da bióloga Laísa Erê, da Terra Indígena Guarita, sobre a percepção de mundo das mulheres do povo Kaingang. Laisa pertence ao povo Kaingang, que é um dos mais numerosos do Brasil e vive em cerca de 30 terras indígenas demar­cadas e em diversos acampamentos nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Ao falar sobre a mulher do povo Kaingang, Laísa afirma que, como nos demais povos indígenas do Brasil, não se pode separar as catego­r ias feminino e masculino, porque o que existe é uma com­ ple­men­ta­r i­da­de, é o andar juntos, é o fazer juntos. Ela explica que um dos fundamentos da vida dos povos indígenas é a reciprocidade.

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Essa palavra expressa um envolvimento de troca e de respeito com tudo o que os cerca, sejam pessoas, a natureza e tudo o mais que existe. Laísa afirma que “através da relação de troca são cria­d os laços definitivos de amizade, respeito e cumplicidade”. Assim, a reciprocidade é a base das relações que se constroem entre homens e mulheres, entre mães, pais, filhas e filhos e entre as pessoas e a natureza. O cuidado mútuo é o que molda a vida e a es­pi­ri­tua­lidade cotidiana das relações dos povos indígenas. A organização social dos Kaingang é formada por duas metades: Kanhru e Kamê. Para esse povo, tudo neste mundo pertence a uma das duas metades, e ambas se complementam. Assim, por exemplo, no caso de doença, somente uma pessoa Kanhru pode curar uma pessoa Kamê e vice-versa.

Fotos: Arquivo do COMIN

por Laísa Erê, Renate Gierus e Cledes Markus


As relações matrimoniais somente ocorrem entre Kanhru e Kamê, para que o casal possa se cuidar mutua­ mente, na doença e na saúde, na alegria e na tristeza. Laísa afirma que essa organização por metades é um valor cultural que não se pode perder, porque é ele que propicia a troca e os cuidados mútuos. Nas relações de reciprocidade entre homens e mulheres, existem atividades que cabem aos homens e outras às mulheres. Por exemplo, ambos são responsáveis pela confecção do artesanato, mas é o homem que busca o material no mato e a mulher faz o trançado dos cestos. Assim também é com outras atividades. As mulheres também assumen um papel fundamental na organização do povo e na continuidade da cultura. Nas reuniões e decisões comunitárias, participam como con­ se­lheiras. Nenhuma decisão é tomada sem antes ouvir os conselhos das mulheres. Como cu­ra­do­ras, conhecem as plantas medicinais, as dietas adequadas para doentes, as massagens para as gestantes e a forma de fazer o parto. As mulheres também desempenham a autoridade como Kujá e como tal conhecem as plantas que curam o corpo e a alma, são responsáveis para orientar e aconselhar a comunidade e interpretar sonhos e acontecimentos. A participação da mulher também é determinante na educação. São elas que ensinam os valores da cultura. Mantêm a língua Kaingang ao falar com as crianças e entre si. A educação é realizada de forma solidária e coletiva entre as mulheres, e nesse caso as avós têm um papel muito importante. Elas são conhecidas como Grande Mãe e como tais são corres­pon­sáveis pelos cuidados com as crianças.

Albertina Dias, da Terra Indígena Guarita, lembra os ensinamentos recebidos: “Nós ficávamos ao redor do fogo na aldeia escutando as histórias, recebendo conselhos das pessoas mais velhas, aprendendo o respeito e o amor pela natureza, que é nossa mãe, a lição de ter orgulho de ser indígena”. O mundo das mulheres indígenas, portanto, precisa ser visto a partir das relações de reciprocidade e cuidados que acontecem em comunidade e marcam todas as relações dos povos indígenas. N

LAÍSA ERÊ é estudante do Curso de Pós-Graduação “Educação, Diversidade e Cultura Indígena” da parceria COMIN/Faculdades EST RENATE GIERUS é teóloga e coordenadora do COMIN CLEDES MARKUS é teóloga e coordenadora do Projeto de Formação do COMIN

subsídios

Um caderno e um cartaz estão à disposição para a Semana dos Povos Indígenas 2012.

O Conselho de Missão entre Índios (COMIN), em parceria com a Secretaria de Formação da IECLB, oferece para estudo e reflexão nas comunidades e escolas o caderno “Povo Kaingang: Vida e Sabedoria” e o cartaz da “Semana dos Povos Indígenas 2012”. Informações e pedidos: cominsecretaria@est.edu.br Fone: (51) 3590-1440 Caixa Postal 14 93001-970 São Leopoldo (RS) Visite o site www.comin.org.br

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CINEMA DE RUA

Extinção de uma magia Com o fim dos cinemas de rua, as salas de exibição migraram para locais onde há grande concentração de dinheiro, transformando a sétima arte numa diversão para a elite. por Willy Schumann

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sala de cinema está praticamente vazia. O terceiro sinal avisa que a sessão irá começar. As luzes apagamse em baixa resistência. Na tela, a última sessão de cinema. Foi assim

que Cid Linhares (60) projetou, pela última vez, um filme no Cine Ritz, localizado no centro de Curitiba (PR), um dos últimos cinemas de rua, que já foi símbolo da modernidade e glamour até resistir bravamente a seu fecha-

mento em abril de 2005. “As pessoas arrumavam-se para ir ao cinema, que tinha, em média, 900 poltronas. Eu projetava filmes para 1.800 pessoas num único dia”, lembra Linhares, projecionista desde 1967. O servidor público Guilherme Osty (60) fala com nostalgia dos cinemas de vias públicas: “Sinto falta daquelas salas enormes, lindas. Tinha o lanterninha e aquelas cortinas que se abriam; era mágico”. Para ele, a extinção dos cinemas de rua deve-se ao fato do surgimento das videolocadoras e, posteriormente, dos shopping centers, onde há facilidade para estacionar o carro, o conforto das praças de alimentação e, principalmente, a segurança. Essa também é a opinião do cientista social, professor e pesquisador catarinense Adalberto Day, que mora em Blumenau (SC) há mais de 50 anos. Segundo ele, os cinemas localizados no centro e nos principais bairros da cidade foram, aos poucos,

Arquivo Pessoal

TEMPOS ÁUREOS: Cid Linhares em 1969 na sala de projeção do Cine Marajó no bairro Seminário em Curitiba

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Arquivo Pessoal

acoplados aos shopping centers misericórdia veio com a inaupela comodidade e grande varieguração do primeiro shopping dade de atrações que um centro da cidade, que inicialmente comercial proporciona. oferecia duas modernas salas Outro fator importante, sede exibição, o que os obrigou a gundo Day, foi a proliferação de fechar as portas definitivamente locadoras de filmes em DVD, que em 1992. trouxe a possibilidade de assistir Marlus Forigo (48), profesa filmes no conforto do lar. “Ensor de filosofia, ética e ciên­cia tender essa situação é a gente política, afirma que o fechapensar que tudo evolui, mas clamento dos cinemas de rua rero que com isso o cinema toma petiu o que aconteceu com as novos rumos, sem nunca perder mercearias de bairro, engolidas seu charme. É como um bom pelas grandes redes. “Quem apreciador de vinho: ele sempre tem dinheiro para pagar um irá degustar novas marcas. Só ingresso de cinema tem cartão mudaram a degustação, os novos de crédito para gastar com roumercados e nada mais; a qualipa, eletrônicos, sapatos etc., e dade sempre será primordial, e os shoppings, além do cinema, o cinema achará seu espaço seja são um templo do consumisCARLOS BRAGA MUELLER: “A força da TV foi o primeiro fenôonde for”, comenta ele. mo”, analisa Forigo. Para ele, meno que contribuiu para o fechamento das salas tradicionais”, “A força da TV foi o primeiro diz o ex-proprietário de cinemas em Blumenau as video­loca­doras não contrifenômeno que contribuiu para o buíram para o esvaziamento fechamento das salas tradicionais”, é a centro da cidade, mas a experiência dessas salas; pelo contrário, elas opinião do jornalista e cinéfilo Carlos dessa vez foi derrotada pela cri­mi­ (além da internet e dos camelôs) é Braga Mueller (72), que foi proprietá- na­li­da­de. Como não dispunham de que garantem que as pessoas menos rio de dois cinemas em Blu­menau. O estacionamento próprio, alguns favorecidas tenham acesso à sétima Cine Atlas, que ficava no bairro da Vila clientes eram surpreendidos com o arte. “O cinema perdeu a sua magia furto de seus veículos, que estavam para tornar-se apenas um negócio”, Nova, funcionou de 1965 até 1972. N Nos anos 1980, Mueller e seus estacionados nas proximidades do finaliza Forigo. sócios fizeram uma nova tentativa no cinema. Esse foi o grande primeiro ramo: o Cine Carlitos, localizado no abalo do Cine Carlitos, mas o tiro de WILLY SCHUMANN é jornalista em Curitiba (PR)

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RETRATOS

Arte: João Soares

A coragem de uma escrava

por Nelson Kilpp

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as páginas da Bíblia, nem sempre encontramos retratada a vida como ela deveria ser, mas como ela é de fato. As pessoas não são perfeitas, e seus sentimentos nem sempre são nobres. Elas são muito humanas. Assim como nós. Gênesis 16 narra o conflito entre uma escrava chamada Agar e sua dona, Sara, esposa do conhecido patriarca Abraão. Não sabemos como Agar, que era egípcia, tornou-se escrava e foi parar na casa de Sara e Abraão. Talvez tenha sido capturada por invasores ou vendida pelos próprios pais. Sara era estéril. Isso lhe causava grande angústia e sofrimento, pois, na época, uma mulher estéril era desprezada pela sociedade. Muitos consideravam a esterilidade uma ausência de bênção, o que era motivo de grande

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vergonha para uma mulher. Sem filhos, ela também teria dificuldades para enfrentar a velhice. Por sugestão de Sara, Abraão deveria manter relações com Agar, fazendo dela uma espécie de “barriga de aluguel”. Conforme normas da época, a criança a nascer seria, para todos os fins jurídicos, filho de Sara. Mas com a gravidez de Agar se instala, entre a patroa e a futura mãe biológica, uma competição pela posição de liderança na família de Abraão. A situação torna-se insustentável a ponto de a serva Agar ter que fugir diante das humilhações da patroa. Mas a fuga não foi uma solução para o problema. Sozinha no deserto, uma grávida não tem como sobreviver. Junto a uma fonte, o anjo de Deus encontra Agar, conversa com ela, ajudando-a a refletir sobre sua real

situação: De onde vens e para onde vais, Agar? Então ele a convence a voltar, para que a criança pudesse nascer e viver no círculo protegido de uma família. Por causa da sobrevivência do filho, Agar retorna. Comparado aos atuais conceitos de liberdade individual, Agar parece ter sido demasiadamente submissa ao retornar à patroa que a humilhara. Mas o texto permanece com os pés no chão: sem um lugar protegido, não haveria, na época, futuro nem para a mãe tampouco para o filho. A volta à casa de Sara também compromete o pai Abraão. Esse havia permanecido, até o momento, numa tranquila indiferença. Ao deixar que Sara tomasse todas as decisões concernentes a Agar, Abraão aparentemente consegue eximir-se de sua própria responsabilidade. Com o nascimento de um filho seu em sua própria casa, ele, no entanto, é obrigado a assumir os deveres de pai. Portanto o retorno de Agar foi antes um ato de coragem. Por causa de sua coragem e disposição para olhar de frente os problemas, Agar é tratada com o maior respeito pelo texto bíblico. Deus envia nada menos do que seu anjo para ajudar Agar no deserto. É a primeira vez que um anjo aparece após a cena da expulsão do jardim do Éden. E justamente a uma escrava egípcia. Agar é a única mulher do Antigo Testamento que recebe a promessa de ter uma grande descendência. De seu filho Ismael (que significa: “Deus ouviu”) descenderá um grande povo. Agar confia nessa promessa. Por isso consegue enfrentar as adversidades. Por fim, o texto também dá a entender que Agar permanece mãe de fato e de direito de seu filho (v. 15-16). N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha


TESTEMUNHOS

Sobre a ressurreição da alma

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ais uma vez, digo que Jesus venceu a morte por meio da morte e ressurgiu do túmulo como um espírito e uma força. Passeou em nossa solidão e visitou os jardins de nossa paixão. Ele não está mais na fenda atrás da pedra.

Nós, aqueles que o amamos, o vimos com estes nossos olhos, que ele abriu, e o tocamos com estas nossas mãos, que ele ensinou a estender mais do que o habitual. Eu conheço vocês que não acreditam nele. Fui uma de vocês. Vocês são numerosos, mas o número irá diminuir.

Arte: Roberto Soares

Maria Madalena, 30 anos depois

Por acaso é necessário quebrar a harpa ou a lira para encontrar a música dentro delas? Ou é necessário cortar uma árvore para então acreditar que ela dará frutos? Vocês odiavam Jesus porque alguém do norte disse que ele era o Filho de Deus. Mas vocês odeiam uns aos outros porque cada um de vocês se considera grande demais para ser irmão do próximo. Vocês o odiaram porque alguém disse que ele era nascido de uma virgem e não de uma semente de homem. Mas vocês não conhecem nem as mães que são enterradas como virgens tampouco os homens que acabam no túmulo sufocados pela própria sede. Vocês não sabem que a terra foi dada em casamento ao sol e que é ela que nos envia para a montanha e para o deserto. Há um abismo entre aqueles que o amam e aqueles que o odeiam, entre aqueles que creem nele e aqueles que não creem. Mas, quando os anos tiverem construído uma ponte sobre esse abismo, então vocês saberão que aquele que vive em nós é imortal, que ele era o Filho de Deus, assim como nós somos filhos de Deus, que ele nasceu de uma virgem, assim como nós nascemos de uma terra sem cônjuge. Pode soar estranho que a terra não dá aos descrentes as raízes para se amamentar em seu peito nem asas para voar alto e refrescar-se com o orvalho do céu. Mas eu sei o que sei, e isso me basta. N Fonte: KHALIL GIBRAN – autor do livro “Jesus – Filho do Homem”, Editora Sinodal

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REFLEXÃO

A ambição de servir “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.”

Marcos 10.45

por Breno Carlos Willrich

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ocê é uma pessoa ambiciosa? Talvez a pergunta lhe cause escândalo. Afinal, ambição normalmente é vista como um sentimento negativo. Diz-se, por exemplo, de pessoas tidas como ambiciosas que elas são egoístas e não têm escrúpulos para alcançar seus desejos. De fato, se entendermos a ambição como aquele desejo insaciá­ vel de conquistar bens materiais ou poder para satisfazer o amor próprio, ambição é prejudicial à vida. Por outro lado, diz-se que quem não tem ambição parou na vida. E para sermos sinceros, todos nós temos ambições, temos metas a alcançar, sonhos a realizar e objetivos que nos impulsionam para

AMBIÇÃO: Jesus ensina a sonhar para a coletividade, com um mundo melhor não só para mim, mas para todas as pessoas

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continuar caminhando. Os pais que investem boa parte de seus rendimentos em uma boa educação para seus filhos fazem-no porque têm ambição: sonham em ver seus filhos com um bom emprego, uma vida financeira estável, reconhecimento social e valores que os permitam viver de forma eticamente correta. Um jovem que procura uma promoção na empresa em que trabalha tem ambição. Um casal que poupa para comprar uma casa maior para o conforto da família tem ambição. A pessoa de meia-idade que investe para ter uma vida estável em sua aposentadoria tem ambição. Uma comunidade que sonha em crescer e ser mais viva tem ambição. O problema não está em ter ambição, mas em torná-la maior do que o amor ao próximo. Então, em nome de seus sonhos, as pessoas passam por cima da dignidade dos outros, esquecem os valores cristãos como verdade e justiça e aceitam participar de pequenos e grandes atos de corrupção. Assim a vida fica prejudicada.


TEMA DO ANO

Divulgação Novolhar

As palavras de Jesus que marcam o tema deste artigo foram dirigidas a Tiago e João, discípulos de Jesus, que, assim como eu e você, tinham suas ambições. Queriam que Jesus, quando fosse declarado rei de Israel, os colocasse sentados um à sua direita e outro à sua esquerda. Jesus aproveita a ocasião, chama os discípulos para uma conversa muito esclarecedora. Se alguém ambiciona ser grande entre vocês, esse deverá estar disposto a servir. Quem ambicio­na ser o primeiro será servo de todos, diz Jesus. E termina dizendo: Eu, que sou o Filho do Homem – o Filho do próprio Deus –, não vim para ser servido, mas para servir e entregar a minha vida para resgate de muitos.

Como lemos na Carta aos Fili­pen­­ ses: “Jesus Cristo, subsistindo em forma de Deus, não julgou com usur­pação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, … a si mesmo se humilhou, tornandose obediente até a sua morte e morte de cruz” (Filipenses 2. 5-8). Jesus lança um novo olhar sobre a ambição que faz parte da natureza humana. Ele não está propondo que deixemos de sonhar com um amanhã melhor e que deixemos de lutar para a realização desses sonhos. Jesus está nos ensinando a sonhar para a coletividade, com um mundo melhor não só para mim, mas para todas as pessoas. Se sonharmos em ser alguém na vida, saibamos que isso só fará sentido se formos alguém que se torna importante no serviço aos outros. Em outra ocasião, Jesus diz: “Àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lucas 12.48). Então, se temos grandes ambições, saibamos que, proporcionalmente, grandes são os nossos compromissos. Como diz o ditado popular: todo cargo tem sua carga. Se você tem a ambição de ter uma boa formação profissional, que sua profissão esteja a serviço da vida. Se você tem ambição de adquirir conhecimento, compartilhe com os outros. Se você tem ambição de ter uma vida estável financeiramente, aproveite a sua estabilidade para ajudar aqueles que passam por necessidades. Se você tem a ambição de alcançar um cargo público, utilize sua influência para atender os clamores do povo. Se você quer uma função importante na Igreja de Jesus Cristo, trabalhe para que a palavra de Cristo alcance todos e muitos sejam salvos. N BRENO CARLOS WILLRICH é pastor sinodal do Sínodo Vale do Itajaí em Blumenau (SC)

Jovens na vez por Katilene Willms Labes

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Conselho Nacional de Juventude – CONAJE procura auxiliar e fomentar o trabalho com jovens na Igreja Evangélica de Confissão Lute­ rana no Brasil-IECLB nos diferentes sínodos, nas diversas realidades em que se encontram. Os grandes desafios que o CONAJE percebe são o desenvolvimento e o reconhecimento do trabalho com jovens nas comunidades. Ficamos muito felizes ao saber que o tema escolhido pela IECLB para este ano foi “Comunidade Jovem – Igreja Viva”. Sentimos nossos anseios acolhidos e nos sentimos concretamente parte de uma comunidade maior. A escolha do tema do ano indica que o jovem é reconhecido pela igreja como pedra de construção e que podemos contribuir com nossa criatividade, emoções, conhecimentos para a caminhada da IECLB. Nossas responsabilidades com a proposta amorosa que Deus nos ensinou por meio de Jesus se misturam com nossos desejos e objetivos de juventude. Queremos fazer a diferença. Um evento muito importante para o trabalho com jovens na IECLB é o Congresso Nacio­nal da Juventude, o órgão máximo da JE na IECLB. Compete ao Congrenaje apreciar todo e qualquer assunto do interesse da juventude e propor ações para a juventude nacional. O tema do

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Congrenaje 2012 é “Conectados com Deus: Protagonistas no mundo”, e o lema é: “Ninguém te despreze por seres jovem. Ao contrário, torna-te exemplo...” (1 Timóteo 4.12). Entendemos que diante da atual realidade é urgente que o jovem se conscientize do seu potencial, colocando seus dons a serviço e fazendo diferença. Compreendemos o pro­ta­go­n ismo, na perspectiva da fé cristã, como empoderamento pelo Espírito Santo para transformar o mundo “cuidando bem do bem da criação”. Reconhecer nossa responsabilidade dentro da comunidade cristã e em outras instâncias da sociedade, incentivando e despertando o prota­g o­n ismo da pessoa jovem nos estudos que permeiam o CONGRENAJE, nos colocará em

uma rede de justiça e dignidade, capaz de provocar grandes mudanças. Um estudo realizado pelo projeto “O Sonho Brasileiro” aponta que atual­mente 8% da juventude brasileira está envolvida em algum projeto social. São 2 milhões de pessoas jovens buscando formas criativas de mudar a realidade de suas comunidades religiosas, bairros, cidades, universidades, enfim, tentando construir uma nova realidade para o mundo. Ao escrever este texto, num dos encontros de carnaval organizados por grupos de jovens e que acontecem em todo o Brasil, faço releituras de diversas situações. Há muitos anos participo desses encontros e, apesar de não viver os momentos como nas primeiras vezes, a vontade de estar aqui é cada vez maior. As inúmeras possibilidades de crescimento, criação, trabalho estimulam esse desejo de retorno. “Comunidade jovem – Igreja viva”. Através do tema, entendemos que diante da realidade é imprescindível que o jovem se conscientize do seu potencial, colocando seus dons a serviço e fazendo diferença no contexto em que está inserido. Os jovens integram a comunidade cristã e querem participar ativamente na igreja. Sentem-se desafiados, junto com outras gerações, na construção conjunta de novos espaços de participação, bem como dos espaços já existentes. Poder construir junto com toda a IECLB é uma grande responsabilidade e incentivo para essa caminhada. N Katilene Willms Labes é coordenadora do CONAJE

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Edu Fortes

DROGAS

Lamentar não adianta por Egon H. Musskopf

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ampanhas contra o uso de drogas sempre existiram. Com o crack a questão é muito mais séria. Ele é barato e seu efeito é imediato. Especialistas afirmam que basta usar uma vez para tornar-se dependente. Uma vez dependente, a recuperação do viciado é extremamente difícil, possivelmente a mais difícil de todos os ví­cios. As recaídas de quem se submete aos tratamentos são de quase 100%. Em pouco tempo, o vício leva o dependente à morte.


Ninguém – nenhum de nós – pode permanecer alheio a essa questão. Não apenas os jovens, mas até crianças de pouca idade, bem como adultos desinformados são vitimados. Por ser barata a pedra, poderíamos imaginar que apenas as camadas mais em­po­ bre­c idas da população apelam ao crack. Grande engano! Pobres e ricos dividem-se nessa desgraça. Jovens sempre são rebeldes. Faz parte da etapa da vida das pessoas. É muito bom que jovens se rebelem contra situações que os desagradam, que empunhem bandeiras pelas quais queiram lutar, que se empenhem em querer um mundo melhor. Drogas, entretanto, não são uma forma de luta. São fugas, acovardamento, falta de perspectivas. É preciso que o jovem tenha uma bandeira de luta, um objetivo claro que o motive a protestar contra situações que considera injustas. Valer-se do uso de drogas é suicídio. A curiosidade também é normal. Mais do que isso, jovens precisam ser curiosos, precisam querer saber. Por isso o crack torna-se inimigo ainda mais forte, pois ele tira do jovem o direito de ser curioso. Por

curiosidade, ele poderá querer experimentar a pedra. Provavelmente será fatal. Muitos poderão dizer que é muito drástico, que é cruel demais dizer que não há chance. Não há! Pessoas vitimadas precisam ser amparadas, assistidas, tratadas. A única medicação que talvez tenha eficácia é o amor. Então, por mais que alguém esteja sofrendo com tal situação, encha-se de paciência, abarrote-se de amor e não negue sua lucidez a quem já está perdendo. Felizmente, começam a surgir campanhas; os meios de comunicação social estão se mobilizando para criar uma consciência sobre o assunto. Em todas as rodas, ele é discutido, e a sociedade – todos! – precisa envolver-se na questão. Ninguém está livre de seus danos e suas tristes con­se­quên­cias. Não dá para esperar acontecer em nossa casa, é preciso prevenir. Este é o único jeito: impedir que alguém comece. O crack não dá chance! Comente com sua família, chame as crianças e os jovens para uma conversa franca e amorosa. E vamos aprender a falar a linguagem deles, pois de nada adiantará “matar a pau”,

“meter bronca”. Imagine um barbante. Tente empurrá-lo. Ele não obedecerá ao comando. Então vá na frente e, em vez de empurrá-lo, puxe-o. E ele irá para onde você deseja levá-lo. Muitos pais já perderam o hábito ou a capacidade de ensinar. Ensinam a fazer embaixadinhas com a bola ou a andar de bicicleta, mas não ensinam a conversar, a pensar, a construir consciências. É preciso reaprender para poder ensinar. Pais, professores, todos nós, descuidamos muito de coisas importantes e dedicamos demasiado tempo a futilidades. Não dá mais, é preciso acordar para essa realidade que nos envolve, ameaça e assusta. Não basta lamentar diante do que nossos olhos veem todos os dias por toda parte. Juntemo-nos a grupos, entidades ou movimentos que estejam empenhados em melhorar a qualidade de vida da população. Não fechemos os olhos. Vamos orar e agir para que todos se motivem a assumir seu papel. Esse não dá para delegar. É nosso! Para o bem de todos, pois... lamentar não adianta! N EGON H. MUSSKOPF é jornalista em Balneário Camboriú (SC)

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SUSTENTABILIDADE

O PROJETO MONÃ, EM CANELA (rs), agrega e expande o conhecimento e A aplicação da sustentabilidade ambiental de uma forma holística. por Fabiane Michaelsen

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Daniel Castelli e o professor Carlos Frozi (na foto) desenvolveram em parceria os métodos de ensino e o Monã. O método biodinâ­ mico é um constante aprendizado que permite a compreensão das relações dentro do organismo-empresa agrícola ou sistema. A maior parte dos produtos biodinâmicos produzidos pelo Monã é utilizada em seus cursos e eventos internos e está no circuito de comerciali­zação da Rede Ecovida. No detalhe, a bela sede do projeto, com alojamento desenhado para facilitar a integração de equipes e o relacionamento interpessoal

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Fotos: Fabiane Michaelsen

Monã – uma experiência rentável

Monã Centro de Estudos Am­bien­tais é uma instituição de ensino, pesquisa, extensão e produção que desenvolve propostas realistas e ações concretas enquanto reforça a rede de parcerias em ciência e tec­no­ lo­gia, arte e cultura de forma multi­ cul­tural e interdisciplinar. Tudo isso iniciou com a Castelli Escola Superior de Hotelaria por meio de aulas sobre a separação de resíduos domiciliares, introduzidas pelo professor Carlos Frozi, que evoluiu e chegou à formação de um núcleo ambiental. Esses objetivos se uniram a outro sonho: a família Castelli precisava de um lugar onde pudesse trabalhar diretamente com o meio ambiente, um lugar que fosse a sua casa, e espalhar o conhecimento para todos.


A aquisição de uma área rural a cerca de 7 km do centro de Canela (na serra gaúcha) deu origem ao Monã (nome do deus supremo das nações in­dí­genas tupi-guarani), que ainda não tinha nome, mas já tinha um destino: agregar e expandir o máximo possível de conhecimento e aplicação da sus­ten­ta­bilidade ambiental de uma forma holística. Há seis anos, o Monã vem sendo diariamente construído, ou melhor, recuperado. Hoje é autos­ sus­tentável e tem uma inte­g ração entre o homem e a terra e também é rentável. O Monã passou pela recuperação do solo, com a retirada de todos os tipos de agrotóxicos, depois hortas, demais plantios e animais. Segundo Daniel Castelli, gestor do Monã, o processo é lento, mas o resultado é totalmente positivo. “O retorno que a propriedade e a natureza dão em troca é recompensador”, avalia. Hoje a propriedade de 132 hectares está toda interligada, formando um ciclo de vida. Com o solo recuperado, o manejo das espécies torna-as mais saudáveis. Os produtos agrícolas produzidos na propriedade são destinados à alimentação dos alunos do Monã durante os cursos. A captação de água das chuvas destinada à lavoura e à criação, açudes, reflorestamento, laboratório, estufas de apoio e estruturas (casas) didaticamente construídas com telhado verde, tratamento de esgoto, iluminação e ventilação natural formam um ciclo. Essa nova prática rural levou também o Monã a comer­cia­lizar a carne de cordeiro orgânica – uma especiaria servida em diversos pratos junto ao Empório Canela (café-livraria). A procura por alimentos orgânicos está crescendo: segundo Castelli, hoje o Monã não consegue atender a toda a demanda. O Monã tem o certificado de propriedade orgânica, concedido pelo

Dentro da filosofia do Monã, a alimentação é considerada um pequeno ritual, um momento de sociabilidade e de convívio. O ambiente da cozinha é integrado pelo fogão a lenha e proporciona um momento social prazeroso para uma alimentação saudável

governo federal. Esse certificado está relacionado não só com as mudanças feitas, mas também com a Rede Ecovida, que tem cerca de 4 mil famílias no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A rede é interligada, e essas propriedades se relacionam discutindo todos os assuntos sobre a preservação das áreas, como o fornecimento de produtos entre si. Mas essa integração não está ligada somente aos cuidados com a natureza e a não utilização de agrotóxicos. O Monã está empiricamente ligado ao bem-estar, ao ser humano. Ele dispõe de espaços e infraestrutura apropriada com potencial para uma plu­ra­li­da­de de projetos e experiências concretas. As estruturas foram dispostas em forma elíptica, tendo ao centro um átrio circular de pedras verticais que remetem aos ensi­na­men­tos da cultura celta, do feng-shui, da per­ma­cul­tu­ra e outros que reforçam a visão sis­tê­mica do Monã. O ambiente rural do Monã foi construído de modo que o educando possa vivenciar e reter o máximo de

conhecimento em períodos de imer­ são. A aprendizagem é facilitada pela interação de diversos ambientes em salas de aula diferenciadas ou na própria mata. Em complemento, o educando tem aulas de campo na horta, no pomar, nas áreas de pastagem, na mata, entre outros locais. Pós-Graduação – O Monã iniciou em outubro de 2011 o primeiro curso de pós-graduação em Agro­eco­logia Aplicada. Esse curso de pós-graduação tem o objetivo de proporcionar ao profissional o aporte para a construção do conhecimento, o desenvolvimento das habilidades e a formação das atitudes que possibilitem atuar em um novo modelo de produção agropecuária. Esse modelo está baseado em princípios agro­eco­ ló­gi­cos, com competências para formular, planejar e executar ações para o desenvolvimento rural integrado, respondendo às exigências tecno­ló­ gicas, ambientais, culturais, sociais, econômicas e políticas dentro dos preceitos da sustentabilidade. A primeira turma de 25 alunos vivencia suas experiências em aulas presenciais na própria área rural do Monã, que dispõe de estrutura para práticas de campo, alojamentos e alimentação com produtos ecológicos. O curso tem N a duração de 13 meses. FABIANE MICHAELSEN é jornalista em Canela (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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ESPIRITUALIDADE

Vigília Pascal: mãe de todas as vigílias

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Vigília Pascal é muito antiga. Os judeus já a celebravam, lembrando a escravidão no Egito e a dádiva da libertação oferecida por Javé. Na Vigília Pascal cristã, celebramos a grande e formidável dádiva de Deus, seu Filho Jesus, o qual viveu, morreu e ressuscitou, trazendo-nos a vida e a reconciliação com Deus. A Vigília faz parte do Tríduo Pascal, iniciado na noite da Quinta-Feira Santa. A Vigília, que acontecia na noite do Sábado da Paixão, marcava o começo de um novo momento: a passagem da perspectiva da morte para a realidade da vida, da tristeza e da dor para a alegria e a festa. Nas origens, os Batismos aconteciam na Vigília Pascal, que culminava na Eucaristia pascal. Era nessa noite que os catecúmenos (candidatos ao Batismo cristão) eram integrados ao Corpo de Cristo através do Batismo e participavam, pela primeira vez, da celebração da Eucaristia. Segundo Paulo, pelo Batismo experimentamos o morrer e o ressuscitar com Cristo (Romanos 6.3-5). A Vigília é momento oportuno para a vivência batismal ao celebrar a passagem da morte para a vida.

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Ao celebrar a Vigília Pascal nos dias de hoje, a comunidade tem a oportunidade de reatualizar os acontecimentos da Primeira Páscoa. O clima é de alegria, gratidão e esperança. Durante a Vigília, faz-se uma retrospectiva dos eventos da obra criadora e salvadora de Deus, lembrando as quatro noites de alegria: noite da criação, noite em que Abraão se dispõe a oferecer a Deus seu filho Isaque em sacrifício, noite da passagem da escravidão para a liberdade (Êxodo) e noite em que a aflição finda com o cumprimento da promessa da vinda do Messias. A celebração da Vigília Pascal, em suas origens, iniciava no anoitecer do sábado, sendo celebrada durante toda a noite. Não havia uma liturgia adicional na manhã da Páscoa. Na Comunidade Evangélica Ijuí, a celebração da Vigília Pascal inicia no anoitecer do Sábado da Paixão e termina no Domingo da Páscoa. A celebração da noite do Sábado Santo acontece em dois momentos, iniciando fora da igreja. Ali, as pessoas reúnem-se ao redor do fogo novo, onde é aceso o Círio Pascal, celebrando que Cristo é a luz do mundo. Segue uma procissão com o Círio aceso à

Ana Isa dos Reis

por Ana Isa dos Reis

Ao celebrar a Vigília Pascal nos dias de hoje, a comunidade tem a oportunidade de reatualizar os acontecimentos da Primeira Páscoa.

frente até a porta da igreja, onde as velas da comunidade são acesas no Círio Pascal. Uma dica: sugiro que as pessoas mais próximas ao Círio acendam sua vela, protegida para não se queimar


Divulgação Novolhar

ou pingar cera no recinto, e repassem a luz para os outros. Com as velas acesas, todos adentram no recinto, que está totalmente escuro e, aos poucos, vai sendo iluminado. Nesse segundo ambiente,

acontecem a Liturgia da Palavra – em que são proferidas quatro ou sete leituras bíblicas – e a Liturgia Batismal com a Afirmação do Batismo. Nem sempre temos Batismo na Vigília, mas a Afirmação Batismal sempre

acontece, momento que as pessoas lembram umas às outras, fazendo um sinal da cruz na testa ou na mão, mergulhando o dedo na água da pia batismal, dizendo: “Lembra-te: tu és uma pessoa batizada”. É um momento significativo, que permite às famílias reviverem o Batismo. A primeira parte da Vigília termina com hino e convite para a comunidade permanecer em vigília ou retornar para a celebração das 6h e/ou das 9h. Jovens da Juventude e do Ensino Confirmatório e alguns adultos permanecem acordados a noite toda na igreja, vigilantes com o Círio Pascal. Temos a oportunidade de estreitar laços e escutar histórias de vida. Cantamos, oramos, assistimos a um vídeo sobre Jesus e, às 6h, com o raiar do sol, ouvimos o relato das mulheres que vão ao túmulo e descobrem que Jesus ressuscitou. Todos procuram o presentinho da Páscoa, tomamos café da manhã e preparamos a igreja para o culto eucarístico. O culto das 9h inicia com os vigilantes contando que as trevas terminaram, que Cristo ressuscitou. E todos se saúdam com essa mensagem de alegria. Segue uma homilia, celebra-se a Ceia do Senhor, finalizando com a Liturgia de Despedida, em que as crianças do Culto Infantil cantam e distribuem uma lembrança à comunidade. Há a Eucaristia aos ausentes, alcançando, assim, a alegria da Páscoa àquelas pessoas que não podem mais ir até a igreja. A Vigília Pascal permite à comunidade reatualizar a Páscoa de maneira profunda, transformadora e comprometida, colocando sinais da Páscoa no dia a dia da vida durante todo o ano. N ANA ISA DOS REIS é teóloga e pastora da IECLB em Ijuí (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2012

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Asas e raízes O filho é esse sujeito que tem que ir aos poucos se libertando dos pais, mas não das suas raízes. Sempre temos que ter para onde voltar e voltar a um lugar afetivo e querido. por Flávio Magedanz

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embro frequentemente de um cartaz que vi no ano passado e que trazia a seguinte imagem: diversas pedras colocadas cuidadosamente uma sobre a outra de tal forma que não caíssem. Ao lado, a seguinte frase: “Escola/ Amigos/Família/Trabalho: É tudo uma questão de equilíbrio”. Por outro lado, seguidamente ouço um conhecido provérbio que diz: “Bendito aquele que consegue dar a seus filhos asas e raízes”. Tudo isso ainda é apropriado para nossos tempos? Ainda vale para a era da comunicação, da rapidez, do descarte e da conectividade? Pergunto: O que dar aos nossos filhos, jovens e/ ou estudantes? Volto às frases iniciais. O que significa dar raízes e asas com equilíbrio aos nossos jovens? Todos temos uma história. Um lugar onde nascemos e por um certo tempo convivemos com nossos familiares e herdamos traços culturais. Mas também temos sonhos que nos

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levam a lugares distantes, horizontes sem fim, enfim queremos voar alto. As asas nos permitem conhecer as raízes de nossos semelhantes e aprender com eles. Para poder voar tran­qui­lo, é preciso saber que a gente tem um lugar para voltar. Asas e raízes são partes diferentes de objetos diferentes. Raízes são partes da planta que tiram do chão o seu alimento e a sua sustentação. Asas têm como sinônimo fundamental a questão da liberdade, da autonomia e da busca de novos horizontes. Agora sim podemos avançar. A função dos pais é fazer com que os filhos tenham as raízes neles e possam

ter asas também. Quer dizer, a família deve ser o lugar onde as pessoas têm uma referência, uma base e um ponto de apoio. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser uma prisão. Deve ser um espaço para a autonomia e a busca de novos horizontes. O filho é esse sujeito que tem que ir aos poucos se libertando dos pais, mas não das suas raízes. Sempre temos que ter para onde voltar e voltar a um lugar afetivo e querido. Por isso a função fundamental da família é ser raiz e, ao mesmo tempo, oferecer oportunidade de autonomia, sabendo que isso nunca se cinde, quebra e separa. Nós temos que ter asas e raízes, ou seja, devemos voar com os pés no chão. O que tem acontecido atualmente é que muitos pais têm criado um mito muito perigoso, que é a ideia de liberdade e autonomia ampla e total. Com isso temos jovens sem raízes e com asas quebradas. Penso que, muitas vezes, os pais têm imaginado que os filhos, por já saberem tanta coisa e terem acesso a tantas informações, são capazes de se cuidar e andar sozinhos. Então se abre espaço para algo muito perigoso, que é a negligência ou então a prática de jogar a culpa na sociedade. Ser negligente é não dar raí­zes nem asas. A negligência é abandono. É um filho sem asas que pensa que pode voar e, ao cair, não encontra nenhum espaço que o acolha. O grande segredo, a meu ver, está na fórmula mágica de encontrar o equilíbrio ideal e possível entre o controle, o estabelecimento de limites e a possibilidade do desenvolvimento de criatividade, da busca pelo novo, do sonhar, enfim, o salto para uma vida própria. N FLÁVIO MAGEDANZ é diretor-geral da Sociedade Educacional de Três de Maio (SETREM) em Três de Maio (RS)




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