Revista Convivência n. 5 / 2015

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sentimentos. Com–movendo. Demovendo. Promovendo. Compartilhando com outros. Os outros, presenças onipresentes. Mesmo se anônimos e invisíveis, presentes. As palavras. Que permitem ir além das aparências, mergulhar no interior, próprio e de outros, repetir, reviver, como tantos, a eterna inquietação humana de saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Instigando a buscar, desvelar e revelar o próprio sentido da vida. E escrever. A palavra escrita. Registrar. Reler, desfrutar, pensar, repensar o visto, o dito. Tentando ir às raízes de comportamentos e atitudes, com o encanto e espanto diante de sua diversidade e multiplicidade imprevista e imprevisível nos seres humanos. Escrever. Transmitir. Comunicar. Comunicar: vital. A escrita trabalhando, oficineira teimosa, essa matéria impalpável e única — a palavra — apelo e desafio, sedução e entrave, elo que liga, desliga, religa. Escrever.

Seria resposta a fala de Hécuba às Troianas, ao dar–lhes a imagem–modelo da mulher: “Uma boca silenciosa, um rosto sempre sereno, eis o que eu oferecia a meu esposo”? Teria sido assim a vida das mulheres, ao longo de gerações? Penélopes silenciosas, tecendo os minutos de uma espera sem fim, sem aceno de esperança ou mostra de um possível desespero, suas agulhas, ponteiros de um tempo circular, em perpétuo e vazio retorno, um tempo sempre igual, sem mudanças, sem contornos novos na linha de um horizonte imóvel? Vida feita de ausências, da necessidade ou da falta de um Ulisses, onipresente ausência. Ainda não visto, ou, se nunca vindo, marcando nessa ausência uma inelutável e definitiva derrota em seu destino de mulher? As explicações convergentes das ciências humanas iriam aprofundar tais questões. Mostrariam, no século

Re–ligar. Busca e captura da energia amorosa da união pelo verbo. Mas onde a palavra, a fala, a escrita feminina expressando o que foi vivido, a pressão que lançou ao ex–terior tudo que as palavras são capazes de dizer, projetando e desenhando no espaço as ondas que agitavam o mar de sua vida embaixo? Silêncio. Ausência de respostas. Virada para os anos 60, Faculdade, curso de Letras, onde supunha poder ter respostas. E encontrando o quem sou eu? dos movimentos sociais que então surgiam (de estudantes, de operários, de mulheres, de comunidades, de gays), buscando re–conhecer, definir e expressar a própria identidade. Personalizando, em vez de abstrair e generalizar, Sabendo, ou intuindo, que o que digo quando falo EU, minha história própria e particular é minha forma de chegar ao mais geral, que só o EU diz, e que o diá–logo já será a fala outra, diferente e semelhante. E pluralizando as perguntas, indo à trajetória daquele silêncio: onde o equivalente feminino ao quem sou eu com que Édipo já se interrogava?

XV, Maquiavel aconselhando a seu príncipe “Divide para dominar” e no século XIX, a constatação de Freud, de que “a sociedade se organizou repressoramente”, com sua ordem social alicerçada no domínio e controle. Descreveriam essa sociedade patriarcal, regida pela Lei do Pai, na qual a mulher seria apenas um “segundo sexo’ (Simone de Beauvoir). O que todos os idiomas comprovariam ao personificar os seres humanos, a espécie humana, toda a humanidade, dizendo o homem (“a luta do homem com a Natureza”, as realizações do homem moderno, etc) seja com a palavra que designa o gênero masculino. O que até a linguagem coloquial espelharia ao falar da mulher como costela de Adão, braço direito do homem, ou do homem como a cabeça do casal — sem atentar sequer para a monstruosa figura de dois seres humanos com uma só e única cabeça. Exibiriam, na literatura, personagens femininas, da desafiante Antígona à doce Julieta ou à histórica Joana d’Arc criadas e expressas com desenho, visão e voz de autores masculinos. “Mme. Bovary c’est moi”, lembra Flaubert... Comprovariam, assim,


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