Revista Convivência 6/2016

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Expediente REVISTA CONVIVÊNCIA © PEN CLUBE DO BRASIL Praia do Flamengo, 172 / 11º. Andar – Flamengo - Rio de Janeiro / RJ CEP 22210-030 – Brasil - Tel. 21-2556-0461 pen@pencliubedobrasil.org.br - www.penclubedobrasil.org.br

EDITORA-RESPONSÁVEL: Marcia Barroca CONSELHO EDITORIAL Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado, Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar, Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira e Ivan Junqueira (in memoriam), Mary del Priore, Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão (in memoriam) e Tânia Zagury PROJETO GRÁFICO: Equipe PEN Clube CORRESPONDENTES Ceará: Roberto Pontes; Paraíba: Elizabeth Marinheiro Pernambuco: Lucila Nogueira; Bahia: Aleilton Fonseca; Minas Gerais: Ronaldo Werneck Brasília: Fabio de Souza Coutinho; São Paulo: Raquel Naveira. Santa Catarina: Péricles Prades; Paraná: Miguel Sánchez Neto COLABORADORES Ana Luiza Almeida Ferro é promotora pública do Estado do Maranhão, historiadora e poeta; Cláudio Aguiar é romancista, dramaturgo e ensaísta; Cyro de Mattos é professor, contista e poeta; Fabio de Souza Coutinho é professor e ensaísta; Getúlio Neves é historiador e poeta; Jorge Sá Earp é diplomata e contista; Luiza Lobo é professora, ensaísta e romancista; Maria Helena Kühner é dramaturga e ensaísta; Nelson Melo e Souza é professor e ensaísta. Raquel Naveira é ensaísta e poeta. Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide–se canje. On demande l´échange. Man bittet um Austausch. Chiesto di scambio. Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

! Ano VI | Número 6 | Rio de Janeiro | 2016 | Brasil (Segunda Fase) ISSN 1518-9996

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PEN CLUBE DO BRASIL Fundado a 2 de abril de 1936 e filiado ao PEN Internacional de Londres DIRETORIA (2016/2019) Presidente: Cláudio Aguiar Vice-Presidentes: Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado e Ricardo Cravo Albin Secretário Executivo: Edir Meirelles Conselho de Curadores: Bernardo Cabral, Domício Proença Filho, Godofredo de Oliveira Neto, Luiza Lobo, Nelson Melo e Souza, Reynaldo Valinho Alvares e Victorino Chermont de Miranda Conselho Fiscal: Francisco de Paula Souza Brasil, Helena Ferreira e Marcia Uebe 3


SUMÁRIO " Editorial _____________________________________________________________________

EM TODOS OS MEIOS

5 " Memória

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OS 80 ANOS DO PEN CLUBE

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" Ensaios _____________________________________________________________________

CERVANTES E SEU DOM QUIXOTE, Nelson Mello e Souza

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O SILÊNCIO DAS MULHERES, Maria Helena Kühner ..............................33 " Conto _____________________________________________________________________

OS LONGOS ANOS, Jorge Sá Earp

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" Crônica _____________________________________________________________________

CORUJA, Raquel Naveira

57 " Poesia

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QUANDO, Ana Luiza Almeida Ferro

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PÉRIPLO A NORTE DE TUDO, Getúlio Neves " Registro _____________________________________________________________________

SEXAMERON: NOVELAS SOBRE CASAMENTOS, Luiza Lobo

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" Posse _____________________________________________________________________

EDMILSON CAMINHA NO PEN CLUBE DO BRASIL

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"Obituário _____________________________________________________________________

EDUARDO PORTELLA, Cyro de Mattos

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Editoriall ____________________________________________________________________

Em todos os meios Este número de Convivência confirma a determinação da Diretoria do PEN Clube do Brasil em manter-se viva no cenário das letras e da cultura brasileiras. Mais do que isso. Na realidade, quando se descortina a bandeira ou lema desta entidade – promoção da literature e defesa da liberdade de expressão – nota-se, de imediato, que acima de qualquer situação ou condição restritiva,a missão buscada e cumprida destina-se a dar dignidade ao desempenho das atividades de todos os criadores no âmbito da palavra. Espaço, hoje, acrescente-se, ampliado a vários pontos da atividade intelectual, a exemplo dos que usam a Internet como eficaz meio para divulger suas ideias e princípios. Não mais se restringe esse espaço ao livro, ao jornal, ao radio, à televisão, ao cinema, mas, de modo, imediato à expressão pelas redes sociais, os blogs e aos sites, caminhos que convergem para novas formas de comunicação, às quais o cultor da palavra não pode mais deixar de utilizer. Os registros das comemorações, em festa solene, dos 80 anos de fundação deste Clube Literário ocorrido no Terraço Panorâmico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), aqui no Rio de Janeiro, bem como as profundas e inteligentes considerações de Nelson Melo e Souza sobre Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, alinham-se como efemérides que apontam para uma memória que ultrapassa a mera lembrança no tempo e no espaço. Além disso, outros escritores comparecem a este número com suas colaborações voltadas para a criação literária, quer da poesia, quer da narrativa, quer com o rigor da análise ensaística ou do próprio testemunho de uma época marcada por vivências exemplares. E por isso serão lembrados. CLÁUDIO AGUIAR Presidente do PEN Clube do Brasil

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Memória _____________________________________________________________________

OS 80 ANOS DO PEN CLUBE Cláudio Aguiar (1)

O PEN Clube do Brasil, fundado a 2 de abril de 1936, surgiu no cenário das letras e da cultura sob o signo das liberdades de pensamento e de expressão e da proclamação da necessidade do convívio dos escritores comprometidos com tais princípios além dos limites das fronteiras. Esse programa, iniciado em Londres desde 1921, ao ser trazido para o Brasil, representou verdadeiro desafio. o grupo que se reunira para criar o Clube, liderado pelo dramaturgo Cláudio de Souza, era oriundo, em sua maioria, da Academia Brasileira de Letras, embora entre os presentes estivessem outros escritores li- gados a entidades de áreas da literatura, da cultura e do poder político, principalmente os sediados no Rio de Janeiro, então a capital da República. No Brasil não se podia ignorar o clima reinante na Europa, onde as forças políticas de vários governos digladiavam-se diante dos caminhos da democracia, do nazismo, do fascismo e do

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Texto lido pelo Presidente do PEN Clube do Brasil, escritor Cláudio Aguiar, por ocasião da solenidade de comemoração dos 80 anos de fundação do Clube Literário no dia 25 de abril de 2016, na sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na mesma ocasião foi lançado o livro PEN CLUBE DO BRASIL 80 ANOS – LITERATURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

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comunismo. Talvez por isso a situação brasileira agravou-se cada vez mais com a vitória da chamada Revolução de 1930, que logo se converteu na ditadura Vargas. A fundação do PEN Clube do Brasil, por- tanto, surgia num momento marcado por problemas internos de crescente desestabilização política. Do ponto de vista externo, o mundo, de repente, assustara-se (e ainda mais os escritores e os artistas) com alguns gestos de barbárie, a exemplo do fuzilamento do poeta Federico García Lorca, no dia 19 de agosto de 1936, em Viznar, vila granadina de Espanha, a balaços, pelas costas. Dias antes o poeta declarara: “Na Espanha, os mortos são mais vivos que os mortos dos outros países do mundo.” ou com as ameaças e os perigos descortinados no horizonte do governo russo, animado pelo braço forte de Stalin, que não permitia a livre associação de escritores e artistas e os perseguia em todas as comunidades soviéticas. Ao mesmo tempo, os nazistas da Alemanha, liderados por Hitler, impunham aos escritores duros reveses com as queimas públicas de livros considerados proscritos pelos ideólogos daquele regime totalitário.

Enquanto isso, as regras estatutárias do PEN Clube do Brasil recém-fundado estabeleciam que a entidade “fará parte do PEN Internacional, funcionará na cidade do Rio de Janeiro e terá por fim estreitar as relações dos escritores nacionais, defender seus direitos e pô-los em comunicação com os escritores dos outros países”. Além do mais, o Centro brasileiro passaria a adotar as resoluções Canby e Raymond, aprovadas pelo V Congresso do PEN Internacional, realizado em Bruxelas, nos seguintes termos: 1ª – Defenderá a livre circulação das obras literárias em todos os países, sem embargo de dissensões internacionais;

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2ª – Defenderá as obras de arte, batendo-se para que, ainda mesmo em caso de guerra, sejam respeitadas como patrimônio da humanidade; e, 3ª – trabalhará pela concórdia entre as nações sem prevenções raciais ou políticas. O fundador, dramaturgo Cláudio de Souza, pertencente aos quadros da Academia Brasileira de Letras (ABL), ostentava em seu currículo obras e exemplos de homem corajoso e também devotado à defesa dos direitos humanos, como fizera, quando iniciou sua carreira, assinando, sob pseudônimo, na imprensa diária, alguns artigos polêmicos em defesa da liberdade da mulher. Por isso, no momento em que ele se dispôs a criar o PEN Clube do Brasil, também assumiu todas as bandeiras de defesa dos direitos humanos consagrados nos princípios da promoção da literatura, da defesa da liberdade de pensamento e de expressão e do livre convívio entre escritores de todos os gêneros e matizes. Eis o norte perseguido pelo Clube brasileiro. Nesse sentido, o PEN Clube do Brasil seguia os mesmos passos adotados pelo PEN Internacional, sediado em Londres, que, durante a Segunda Guerra Mundial e depois do final do conflito, assumiu a defesa da liberdade de pensamento e pugnou pela unidade dos escritores em torno desses postulados, associando-os, inclusive, aos direitos que seriam votados e aprovados pelas Nações Unidas na Declaração dos Direitos Humanos. No momento em que o PEN Clube do Brasil chega aos 80 anos de existência, cremos ser fundamental editar este livro na esperança de que ele sirva como ponto de reflexão sobre suas ações e omissões. Só assim será possível recordar os feitos com base em alicerces verdadeiros e coerentes aos passos culturais dados pelo País. Esse caminhar, que já venceu longas e difíceis estradas, permitirá, ao mesmo tempo, um olhar diferenciado para as atuais gerações e, possivelmente, ajudará a corrigir rotas e caminhos às novas gerações, evitando, na prática, os erros ou os equívocos do passado. O livro – PEN CLUBE Do BRASIL 80 ANOS (1936-2016) LITERATURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO – contém, ainda, alguns registros fundamentais que apontam para atitudes e responsabilidades assumidas ou não, a exemplo do destemido comportamento da direção da entidade durante os anos difíceis da ditadura Vargas e da Segunda Guerra Mundial. Também, por outro lado, não se pode esquecer as omissões de alguns dirigentes, notadas, sobretudo, durante os anos do Golpe Militar de 1964 e no posterior endure- cimento ditatorial vivido a partir de 1968. Nesses períodos, infelizmente, foram quase nulos os esforços do PEN Clube do Brasil em manter acesa a chama da defesa dos princípios norteadores de sua missão primordial: a defesa, a qualquer custo, da liberdade de pensamento e de expressão, quer de seus sócios, quer de cultores da palavra ameaçados dentro e fora do Brasil.

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Apesar disso, cremos ser possível admitir que a história do PEN Clube do Brasil permite afirmar, neste momento tão significativo, que a exemplaridade oriunda das primeiras décadas do seu passado, logo após a fundação, deve ser revi- vida no presente e poderá irradiar-se ao futuro. Com isso, a bandeira da esperança jamais será retirada de seu mastro ou ofuscada por dificuldades passageiras. Durante as últimas oito décadas passou pelo quadro social do PEN Clube do Brasil expressiva parcela de escritores brasileiros. Esse talvez seja o maior legado que o Clube tenha a ostentar no âmbito da literatura e da cultura brasileiras. São cerca de mil escritores, entre vivos e mortos. Por isso, foi necessário dar destaque aos nomes dos sócios do PEN Clube do Brasil em ordem alfabética. Cada um deles contribuiu de alguma maneira para que a entidade existisse e sobrevivesse, inclusive, nos momentos mais difíceis de sua travessia, ora com seus nobres trabalhos como voluntários dentro da entidade, gerindo-a e administrando-a, afirmando, assim, o sentido de pertencimento além da mera filiação protocolar, ora com suas produções literárias, cada uma a seu modo, integrando o rol do inventário da criação literária do Brasil, ultrapassando, portanto, a simples aferição quantitativa. O PEN Clube do Brasil, enfim, sempre estará voltado para os objetivos que lhe foram destinados como missão, quer nos exemplos dignificantes do passado, quer na ação dos atuais dirigentes e sócios, quer nos propósitos daqueles que virão, os que nos substituirão, porque tais finalidades dizem respeito à própria dignidade do ser humano naquilo que lhe é mais caro: o direito de criar, de viver em paz e de falar e escrever em plena liberdade.

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Ensaios ____________________________________________________________________

Cervantes e seu Dom Quixote Nelson Mello e Souza

Miguel de Cervantes

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O ano de 2016 marca quatrocentos anos da morte de Cervantes, ocorrida em 1616. Neste mesmo ano a Igreja da Contra Reforma, na sua única concordância explícita com Lutero e Calvino, condena, como herética a obra de Copérnico. Consolida-se a chamada “Contra Reforma”, expande-se a ação da Ordem Jesuíta e da catequese franciscana, movimentos ativistas da Igreja Católica, legitimados pelas decisões do Concilio de Trento, convocado meio século antes pelo Papa.(1) Sua Espanha era uma das bases de todo o processo, como bastião do catolicismo ortodoxo, expressão da mente religiosa construída em séculos de trabalho perseverante do cristianismo. (2) Cervantes foi um gênio dotado de força intelectual suficiente para reconhecer, na transição dos tempos, abalos na estrutura religiosa do pensamento coletivo. Não só pela pressão da Reforma Protestante, a negar de forma agressivamente herética, a validade dos sacramentos, o culto da Virgem, a existência dos santos, a Eucaristia e o simbolismo da hóstia, o sentido antinatural do celibato dos padres, a existência da Trindade e da infalibilidade Papal. Mas também pelos avanços da racionalidade científica que colocava a verdade dos textos sagrados sob suspeita. Sua obra nada revela sobre estes aspectos da época. Ela escapa de qualquer polêmica. Por isto não se sabe onde Ortega y Gasset foi encontrar base factual para considerá-lo “o mais profano” dos escritores espanhóis de seu tempo. (3) Cervantes apenas refletiu aspectos do lento esgarçar das “imago mundi” medievais. Fenômeno cultural que já vinha em aceleração continuada desde o século XII, quando se vão firmando algumas universidades como instituições de ensino superior, independentes da Igreja. O processo seguiu seu ritmo, avançou, ganhando densidade específica lá pelos fins do século XV, quando este dramático esgarçamento passou a se refletir em muitos expoentes da elite artística e intelectual da época. ( 4) Na verdade a aceleração da história, da qual surgiram as turbulências do século de Cervantes, teve início consistente no trágico século XIV, devido à devastação genocida de um terço da população da Europa pela Peste Negra, as guerras entre França e Inglaterra, as decisões do Concilio de Constança, dando fim à crise religiosa do Papado exilado em Avignon, bem como das inovações políticas que se sedimentavam nas cidades estado italianas, especialmente na Florença de Coluccio Salutatti e Leonardo Bruni. A arte registra a transformação do que veio a ser chamado de período “gótico” para o “moderno”. Os estudiosos referem-se às inovações de Giotto sobre domínio do espaço pelo sentido de proporção das figuras, bem como do inicio da preocupação com as psicologias individuais. Se o unirmos a arte dourada de Simone Martini, ao dinamismo contido das esculturas de Pisano e Duccio de Buoninsegna, além do inicio dos escritos em vernáculo, como veículo de comunicação válido para a elite intelectual, rejeitando o latim, inovação de Dante, seguindo o modelo do “dolce stil nuovo” de seus dois contemporâneos mais velhos, os dois Guidos, o Cavalcanti e o Guinizelli, teremos um quadro realístico e chocante das novidades deste longo período. Embora estes dois antecessores de Dante pertençam , cronologicamente, ao século XIII, na história da cultura não seria equivocado situá-los como precursores da poética dominante nos anos mais criativos de Dante bem como do apogeu de Petrarca e seu coetâneo Bocaccio, os “trezentos”. Resume a nova forma da elite intelectual descrever a realidade do amor, a baixar do espírito abstrato do platonismo medieval para a realidade sensual já expressa na poesia popular dos trovadores e da Carmina

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Burana, isto é, a “carne” concreta. Sua síntese pode estar no conhecido verso de Dante “Donne ch´avette intelletto d´amore”( mulheres que tudo sabem do amor). De forma paralela vai surgindo uma espécie de “crônica” dos tempos, seus valores, tipos e costumes, apresentados em verso tanto por Boccaccio no “Decameron” quanto por Chaucer, no inglês primitivo de seus “Contos da Cantuária”. Por isso o desabafo popular e grosseiro, os “filhos da p....” que surgem, várias vezes, no texto de Cervantes, já não assustam ninguém. No aspecto sócio econômico, o desprezado segmento burguês dá inicio a seu novo posicionamento social em função das necessidades inerentes ao profundo esforço de renovação da economia devastada pelo abandono dos campos. Mercadores, banqueiros e investidores comerciais assumem a liderança do processo de recuperação e inovação econômica da Europa. O século XV, portanto, especialmente depois da queda de Constantinopla, representa a cristalização cultural do processo lógico e secular de transformações, tudo explodindo, afinal, na chamada “renascença” dos tempos de Cervantes. Da interação dinâmica deste conjunto surge o corpo bem definido de seu humanismo, com o desvio do foco das preocupações intelectuais dos céus para a terra, de Deus e da filosofia escolástica para o Deus panteísta de Pomponazzi e sua nova perspectiva natural dos chamados “milagres”.(5) Foram nestes 40 ou 50 anos iniciais do “quatrocento” que se absorve e se valoriza a iniciativa de Mondino de Luzzi, formulada desde o século de Petrarca, sobre a anatomia como indispensável à medicina. A dissecção anatômica foi incorporada como prática corrente do ensino da medicina em várias escolas médicas, sendo sua defesa, por entre explicações de biologia evolutiva, a grande culpa de Vesalius ante a Inquisição.(6) Neste “quatrocento” teve inicio concreto a valorização do trabalho humano como o verdadeiro criador da história, das artes , da literatura, incentivando a crítica social e a percepção dos direitos individuais. Um novo clima mental favorável à absorção do paganismo e da filosofia grega, vai se firmando, em grande parte devido à imigração forçada de eruditos gregos com a queda de Constantinopla em 1453.(7) Notemos haver sido esta a época dos grandes protestos de massa chamados de Lullitas no norte e das rebeliões populares dos Hussitas na Europa Central. Como foi igualmente a época do “grande medo”, das danças macabras como histeria popular e das profecias finalistas, herança das guerras e das pestes do século anterior, incentivadas, em termos de psicologia coletiva, pelo avanço sobre a Europa dos turcos muçulmanos. Deste conjunto dinâmico de fatos e suas visões no imaginário da época resultou a simbologia do alerta, a idéia de uma “Europa”, proposta pelo Papa Pio II, o humanista Silvio Piccolomini. Cervantes, em sua obra magna, “Dom Quixote de la Mancha”, explora uma outra vertente dos tempos, igualmente indispensável para ser vista como “Era de Rupturas”. A do outro medo, o medo do processo civilizatório estimulando o idealismo pastoril saudosista, já visível desde Sannazaro, com sua “Arcádia”, além da visão “utópica” de Thomas Morus, com sua ilha de igualdade da renda e do trabalho.

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A obra inicial de Cervantes é uma novela pastoril, “Galatéia” e em vários de seus escritos posteriores como Persiles e Sigismundo há traços de utopismo social. Em meio a estas transformações transparecia o sensualismo pícaro do povo, refletido na literatura do período e na visão de mundo correspondente, assimilando o “riso” como forma irônica de crítica social e até de protesto. Por tudo isto acabou sendo bem aceita a ironia que se vê completa no “elogio da loucura”. Erasmo, de certa forma, renasce no “Quixote”, em cujo texto não poucas páginas se dedicam à denúncia da verdade escondida pela hipocrisia aceita nas ficções sociais. (8)

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II

Realcemos o sentido de seus paradoxos. O personagem central era um “louco” cuja “loucura” estava um pouco longe de ser “louca”! O que nos obriga a defini-lo em outros termos. Seus momentos de lucidez são freqüentes, abrindo espaço para visões diferenciadas da obra. Depois de sua apresentação, definindo-o para o leitor como “louco” irremediável e cômico, até bem avançado o volume I, Quixote exibe certas ilhas de lucidez filosófica , além de exuberante cultura clássica, especialmente a partir do vol II.

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Este Quixote do vol II culmina nas reflexões da agonia final, depois de perdido o sentido da vida, pela derrota em justa cavalheiresca, o combate bizarro contra outro “cavaleiro” , “ o cavaleiro da Lua” , que era, afinal, seu vizinho disfarçado. O que este vizinho tentara fazer era apenas “salvá-lo”, aliás pela segunda vez, de sua vida de doideiras e riscos. O paradoxo final é que esta “salvação”, impedindo-o de seguir como “cavaleiro andante”, o fez recolher-se de modo definitivo à casa, à sobrinha, aos vizinhos e aos cuidados da governanta. O que o levou à morte. (9) Podemos igualmente ver sua composta e serena lucidez nas conversas com um aristocrata, encontrado em suas andanças, o “cavaleiro do verde gibão”, Don Diego de Miranda. Quixote tece considerações práticas sobre a vida, ajudando-o nas conversas com seu filho poeta. (10) Ainda mais clara é sua lucidez nas ponderações que emite a título de conselho a Sancho, quando seu fiel escudeiro é nomeado pelo Duque “governador da ilha de Barataria”. Primeiro lhe dá conselhos, seguidos de uma carta. (11) Na carta, Cervantes nos faz Dom Quixote antecipar temas modernos como o da psicologia das massas, falando sobre a função carismática da pompa e do esplendor das Cortes, envolvendo o que pode ser chamado de “metafísica do poder”. Aconselha Sancho a dar atenção especial a este tipo de gasto. Neles estaria o berço pedagógico da aceitação passiva das lideranças. Consolidariam as diferenças necessárias à aristocracia do mando, secular ou eclesiástica, para o exercício do poder, fenômeno social indutor da obediência automática e passiva do povo. Era a base da ordem social e por isso Sancho não deveria ser cauteloso em seus gastos com festas, roupas, luxos e banquetes.

Carta de um sábio que poderia ser subscrita pelo realismo exemplar de Maquiavel! Em muitos momentos de sua jornada, sua fala é coerente, ordenada, lógica e principalmente culta. (12)

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Quixote é um “louco” cujos rasgos de lucidez transformam esta loucura em consistente forma de equilíbrio para a avaliação da vida. Parece então razoável indagar: não seria esta “dissociação” da personalidade de Quixote, entre o “louco e o sábio”, um artifício da arte de Cervantes para retratar a cisão do ego que se dá em todos nós, em certos momentos de vacilação, depressão, indecisão ou mesmo alucinação, nos quais predominam a ambivalência e tantas vezes a insensatez? Sabemos não sermos, nenhum de nós, imunes a eles, mesmo em nossas mais complacentes vidas ordeiras. O “dualismo” de Quixote, portanto, é questão hermenêutica séria, que abre para o leitor rumos para o encontro de si mesmo. Da mesma forma dual, seu “Sancho” está bem longe de ser padrão da sensatez popular, desconfiada e conservadora, a ele atribuída pela interpretação popular. Afinal, deixar casa, mulher, lavoura e filha, para seguir um heterodoxo “cavaleiro andante”, seduzido por vida de aventuras, mas principalmente pela promessa de ascensão social sintetizada no governo de uma “ilha” a lhe ser doada pelo “louco”, não é lá demonstração aceitável de sabedoria, nem oculta , nem revelada. Este traço de Sancho não passou despercebido a alguns críticos que o sublinharam. (13) Destarte, a dialética subjetiva das fantasias pessoais por um lado e a da relação complicada em sua harmonia complementar entre “Quixote e Sancho” por outro , é uma das forças da novela, um dos encantos da narrativas e uma das verdades do Ser. III Quando escreveu sua obra prima o século XVI chegava ao fim. Entravamos pelos meandros dos “600”. Cervantes já ia chegando aos 60 anos, pobre e surrado. Mas seu texto seminal, na verdade, deu origem ao romance moderno. A tese é bem aceita, mesmo quando nela notamos a prática do romanceiro quinhentista de inserir poemetos, trovas e sonetos com a finalidade de complementar ou realçar a narrativa. A novela tem inicio com várias páginas de poesia e segue com inserções frequentes, forma seguramente inaceitável para o leitor de hoje. A originalidade da concepção, no entanto, supera a força deste hábito pouco aceitável. A imensa novela, com seus quase 700 tipos, inicialmente lida como parte da literatura cômica, acabou reconhecida, após longa travessia no tempo, como sério paradigma existencial. Destarte, o termo “quixotesco” foi popularizado a partir do século XX, convalidando Unamuno quando nos diz que não lhe importa muito o que se lê em Cervantes mas o que nos inspira a leitura de Cervantes. Por isto o termo “quixotismo” tendo sentidos multiformes revela uma só verdade porque descreve um estereótipo do Ser. Seu Dom Quixote, ao romper as expectativas de comportamento, estimulou a alma contemporânea, esmagada pela rotina, a viajar pelo espaço da fantasia, assumindo o encanto do devaneio. Abriu espaços generosos para que esta “alma” viesse a se reconhecer na figura do surrado “ cavaleiro andante”, cultivando em seus sonhos o cenário em aberto para a fuga da realidade rotineira. É Milan Kundera que, em sua Estrutura da Novela, reafirma o ponto ao notar sermos todos herdeiros de Cervantes na modernidade literária do Ocidente. Na verdade, não seria impreciso afirmar que a imensa maioria dos críticos atuais assim considera nosso quixotismo implícito: somos “herdeiros de Cervantes”. Harold Bloom o inclui como um dos pilares do cânone Ocidental; Arnold Hauser dedica espaço impor-

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tante a Cervantes e mesmo um marxista de tradições impecáveis como Lukacs, considera Cervantes exemplo do uso do grotesco para realçar as contradições, falsidades e misérias da vida. (14) IV Ao que tudo indica, deve-se a Michelet, seguido pelo suíço Burkhardt, nome de “Renascimento”, para com ele batizar a “Nova Era”.

o

Embora sendo reflexão apressada e historicamente simplificada, já que não se pode negar o impulso reformador como tendo sua origem esboçada desde o século XIII, como aliás já o notamos mais acima, o novo termo abriu perspectivas diferenciadas para dividirmos a história do Ocidente, com seu cenário de rupturas na formação de suas diversas “personalidades de base”. Não apenas pelo que notamos, mas pelo conjunto de suas evidências e repercussões.(15) Por exemplo: pela primeira vez o mundo, de forma súbita, dobrava de tamanho, com a descoberta das rotas atlânticas. Ante o espanto dos crentes, surgiam do nada, regiões e povos desconhecidos. Audácia viabilizada pelos aperfeiçoamentos da bússola. Entre suas resultantes estão os estudos de cultura comparada, como se vê em Montaigne, utopias de igualdade na descrição do que se entendia como vida natural, o interesse pela zoologia e o avanço da botânica, devido aos relatos e contatos com fauna , flora e povos diferentes de tudo o que se conhecia até então. O uso da pólvora deixou de ser fenômeno tópico. Tornou-se generalizado na prática da guerra, pelo aperfeiçoamento dos canhões e bombardas agora plenamente capazes de abrir brechas em muralhas; do mosquete que liquidava a cavalaria com suas cargas.

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Tudo aumentava os custos da guerra, acelerando “ a morte anunciada” do feudalismo. Mais ainda, a imprensa se multiplicava através de casas editoras abertas em vários países, divulgando estes e outros conhecimentos a massas crescentes de leitores, enquanto as artes mecânicas avançavam rápido, induzindo maior protagonismo histórico da burguesia, devido às crescentes necessidades de produção e comercio. A revolução mental atingia a arquitetura, a valorização da matemática e da ciência geométrica, consolidando os nomes de León Battista Alberti, Bruni, Bruneleschi e Paolo Toscanelli, gerando novas formas de ver o mundo pela relativização das verdades aceitas. Da Vinci reflete o novo clima em seu desenho famoso do homem geometricamente concebido. Mais ainda, dedica-se, em sua arte, a retratar particularidades individuais, como a amante de Ludovico Sforza, a belisima Cecilia Gallerani, na tela “A Dama com Arminho”, mas principalmente com a enigmática “Mona Lisa”, exaltando o mistério do “individuo”, tema que Rafael repete com o segredo da sua “Dama do Véu”. Outros gênios da pintura já o vinham realizando, enquanto Botticelli recupera mitos gregos, Corregio pinta o “nu” com toques sensuais de entrega e Mantegna o faz como simples respeito à natureza das coisas. Seus “nus” naturais são os mesmos que Michelangelo nos revela em suas esculturas e termina embelezando o teto sagrado da “Capela Sistina”!

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Para bem longe foram exilados os preconceitos contra o corpo e o sexo, constantes das verdades fixadas pelo milênio anterior. Era tanta a sensação de rompimento que parecia fazer todo o sentido a proposta de Petrarca, que desde o século XIV, já havia dado, à origem nebulosa do Ocidente medieval, o nome abusivo de “Idade das Trevas”. Pois bem, desde aquele século XVI a passividade da mente genuflexa ante a verdade religiosa não mais absorvia a emergente amplidão expansiva do homem. O que se formava agora era um conjunto instável, agravado, não só pela “revolução copernicana” a deslocar uma Terra do seu lugar central outorgado pela Bíblia, senão também pela visão relativizada da pequenez do homem ante a grandeza infinita de outros mundos e outros espaços, sem dúvida existentes, embora ainda desconhecidos, apenas concebidos. Não parava por ai a extensão da Crise Psicológica resultante do abalo de todas as certezas, a maior delas o ataque à vaidade, agora desfalecente, de ser “o homem o centro do Universo”. Houve mais, muito mais. A Reforma protestante denunciava o saber religioso tradicional iniciando-se um período de intolerâncias absurdas, com os centros de poder e suas instituições agarrados aos fiapos de verdades abaladas para, a partir de suas defesas, desfechar guerras sádicas, genocídios de inocentes e desmandos autoritários. A sensibilidade poética de John Donne definia a perplexidade emergente como “um centro que não mais se firma, com tudo ao redor caindo aos pedaços”. (“The Center does not hold; Everything falls apart”) Cervantes foi coetâneo e também herdeiro destes tempos com seus grandes gênios que ainda significam muito para nós. De certa forma colaboraram para neles fixar a beleza precária da suposta eternidade humana. Shakespeare que morre no mesmo ano de Cervantes, e Marlowe, Brueghel, Michelangelo, Caravaggio, Ticiano, Bronzino, Tintoreto. Na sua Espanha vivia-se o que se convencionou chamar de “Idade de Ouro”. Eram os tempos de grandezas

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imperiais e riquezas das Indias, tempos de El Greco, pouco adiante Velazquez e Murillo. Na literatura Lope de Vega, Calderón, Tirso de la Molina, Garcilaso, Gongora, Quevedo, além de Camões e Gil Vicente de um Portugal que se incorporava a Espanha a partir de 1580. Foi a época da grande revolução estilística da música com a obra de Josquin de Pres, Orlando de Lasso, Monteverdi e Palestrina. Do balé que deixava de ser simples diversão de banquetes cortesãos para se tornar arte sofisticada e profissional; do pioneirismo da polifonia orquestral dos Gabrieli em Veneza. A musica complementava a poesia e a dança, dando inicio a formas embrionárias de recitativos dançados, origem da “opera” que culminou o século. A arte musical complexa não mais se destinava aos salões fechados das cortes seculares ou para encher de assombro as velhas catedrais. Destinava-se ao povo, estimulando a construção de teatros populares. O processo de evolução da musica inspirou avanços nos instrumentos de execução para aumentar a amplidão sonora e favorecer melhor combinação de efeitos. Inovações vieram rápido. Aperfeiçoados foram os instrumentos de sopro, percussão e cordas. Na Inglaterra de Elizabeth, o coetâneo de Cervantes, William Bird trabalhou com o genial Thomas Tallis na Capela Real, como organista e foi dos pri-

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meiros a compor peças para teclado , a serem executadas nos chamados “virginais”, o bisavô do piano. No que se refere às cordas surge o violino como evolução da “Viola di Bracci”, os cellos aperfeiçados pelo engenho, até hoje misterioso, de artesãos especializados como os Amati em Cremona. Tudo isto devemos a estes tempos. Até a renovação dos costumes inspirando a obra de Castiglione sobre modos e maneiras de se comportar em sociedade, além do uso do garfo na corte francesa, dos grandes colarinhos brancos estufados e artisticamente redobrados sobre si mesmo, das perucas, todos símbolos da nova moda de esplendores vistosos em roupas de seda e damasco. Iniciava-se a fase culminante da “Renascença”, que veio a ser conhecida com o nome nada elogioso de “barroco”. Foi dado décadas adiante para sintetizar o que parecia, à sensibilidade ajustada ao materialismo do burguês moderno, como bizarro,exagerado, intenso de cores, ondulado de formas confusas. Na verdade o qualificativo é enganador. A época avança, como vimos acima, na exploração de novos temas como o uso livre do nu, na combinação harmônica de cores, na arte do retrato, nas formas exuberantes das mulheres com curvas e contornos sensuais, no realismo da pintura religiosa agora desprovida de halos metafísicos e sagrados , especialmente com o gênio de Ribera e de Caravaggio. Época da vitoria final do Ocidente sobre os turcos pelo domínio do Mediterrâneo, na batalha naval travada em Lepanto.

V

As contradições explodiam porque estes clarões racionais não iluminavam todos os céus. Eles se davam em meio a noite perseverante do culto antigo da feitiçaria, do poder das bruxas, de práticas cabalísticas, da alquimia insistente, da crença em palavras e ações mágicas, fluidos de amor e força dos demônios. Não se pense que apenas o povo era o centro destas visões de “medo e tremor”. (16)

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O grande pacto de Fausto, o da ânsia do saber dentro do envoltório da feitiçaria pode ser considerado a síntese deste século. O texto, de autor anônimo, foi divulgado rapidamente. Descrevia a vida misteriosa de um médico sombrio. Ansiava a sabedoria, resumo psicológico dos tempos, mas dentro dos parâmetros confusos de uma época supersticiosa e mística, crente no jogo mágico de palavras secretas ou em pactos solitários com o demônio. A obra revelou o que de mais profundo havia na consciência coletiva, seus arquétipos. Foi transformada em peça teatral por Marlowe. E acabou conquistando o imaginário do Ocidente de forma firme e duradoura, chegando a inspirar Goethe e Thomas Mann. Tornou-se um mito síntese, no cultivo da natureza como viveiro de forças ocultas pelo mistério de sua sabedoria enigmática. O grande personagem de Cervantes, o “ Cavaleiro da Triste Figura”, como veio a ser chamado por Sancho depois de desfigurado por uma de suas inúmeras surras, vivia sob a perseguição de feiticeiros invisíveis, encantadores que “transformaram” sua bela Dulcinea naquilo que ela realmente era, uma rude lavradora, gigantes travestidos em moinhos de vento, bandidos perversos em tropas de pastores, assassinos em rebanhos de ovelhas. Para ele, pequenas pousadas do interior eram ricos cas22


telos e seus vendeiros broncos, castelões refinados; grutas profundas, como a de Montesinos, encerravam segredos da história, profecias de Merlin, visões do passado. Pode-se dizer que a obra magna de Cervantes nos revela um tempo de crenças antigas e realidades modernas, fundindo suas ambiguidades pelo imenso poder de seu imaginário criativo. VI Cervantes teve vida pouco conhecida, a despeito de seu mais importante biógrafo, Astrana Marin, ter-se, paciente e obstinadamente, empenhado em desvendála.(17) Nasceu em 1547 . Em sua descendência familiar há muitos médicos o que o situa, talvez, como de origem cristã nova, com bisavós convertidos pelas perseguições do século XV. Mas não havia dúvidas quanto a ser uma família pertencente aos segmentos médios da burguesia espanhola. Não tinha e nunca teve recursos materiais fáceis. Sua formação cultural por isto mesmo foi incompleta, necessitando suplementações necessárias que vieram através de esforçado auto didatismo. Serviu como militar e como militar navegou para Lepanto, para enfrentar os turcos na referida batalha final travada pelo controle comercial do Mediterrâneo. Foi ferido por um tiro no braço que lhe inutilizou a mão esquerda. Ao regressar de Lepanto tentou sobreviver como pode. Viajou. Pouco adiante foi a Argel. Aprisionado por piratas berberes, fato relativamente comum à época, passou cinco anos preso. Foi liberado pela família que reuniu quase todos os bens para resgatá-lo. Devido a estas dificuldades tentou saná-las através das chamadas “mercês”, ou empregos públicos. Pouco logrou. Mais adiante, já iniciado nas letras pela publicação do romance pastoril “Galatéa”, em 85, foi preso outra vez, na década dos 90, por problemas de dívidas. Nesta segunda prisão, já com cerca de 50 anos, concebeu e deu inicio ao Primeiro Volume do Dom Quixote, fato que registra no prólogo da 1ª. edição. O reino da cavalaria andante já havia desaparecido há tempos. Mas seguia vivo no imaginário das fantasias clássicas, versando sobre os cancioneiros dos tempos do mítico Rei Arthur, passando pelas gestas de Carlos Magno nos textos populares sobre a epopéia de Rolando em Roncesvalles. Amadis de Gaula era seu exemplo. Mas o nome de cavaleiros famosos rondava o espaço do imaginário como se pode ver na larga listagem feita por Cervantes no inicio do volume I . Na literatura espanhola deste fim de século XVI eram mais populares os textos sobre a vida pastoril, surgidos com a voga da “Arcádia” e a obra de Sannazaro na Itália. Foram divulgados na Espanha por Jorge de Montemayor com sua popular “Diana”. Além destes, havia os pícaros que tinha em Lazarillo de Tormes seu expoente, alem da linha literária que compreende os textos refinados de Lope de Vega, Quevedo e Calderón. Mas os romances de cavalaria seguiam com boa receptividade. Cervantes não foi, de imediato entendido como um grande autor. Pelo contrário. “Galatéa” teve repercussão modesta e sua poesia não tinha muitos leitores. Mas não desistiu. Seguiu escrevendo pequenas peças para teatro e alguns textos avulsos, mais tarde reunidos em suas “Novelas Exemplares” bem como um romance épico sobre a resistência de Numância aos invasores, numa espécie de símbologia da iden23


tidade espanhola. Esta preocupação leva alguns interpretes de Don Quixote a ver na sua decisão de ir buscar no fundo de um velho baú “as armas de seus bisavós, para limpa-las, poli-las”, para com elas armar-se cavaleiro, um símbolo do passado glorioso da Espanha na jornada de sua formação nacional. VII Pode-se indagar qual foi a inspiração de Cervantes e qual sua relação com seu Dom Quixote. Mas seguramente não a encontraremos na busca da identidade espanhola. O que teria então motivado Cervantes para conceber “ Dom Quixote” ? Teria sido , por acaso, a resultante irônica de um ataque de desprezo pela humanidade, mesclado com doses picantes de sadismo, resultando num texto que nos faz rir da loucura e nos divertir com suas desventuras? Nada poderia estar mais afastado da realidade psicológica de um humanista como ele. Cervantes sofria desilusões em sua velhice desprotegida , é certo. Possivelmente síndromes depressivas. Mas, para mim sua composição de “ Don Quijote” foi impulso criativo de gênio. Um “louco”, sem duvida, produzindo com suas proezas e jogos do imaginário a grande gargalhada dos séculos, mas garantindo com ela o que os bobos da corte medieval garantiam com a deles: o direito de dizer verdades duras demais para serem ouvidas sem reparos pelo senso comum e a Censura Real, obediente à Inquisição espanhola. Por baixo de sua superfície hilariante corre, caudaloso , um rio subterrâneo de reflexões sobre a autenticidade do ser, as angustias humanas, os paradoxos da existência, o jogo das ficções sociais deformantes do comportamento coletivo, fazendonos atores de papéis impostos pelo processo educativo. É o caso do episódio com o fora da lei Gines de Pasamonte. Vale a pena relembrá-lo. Quando Quixote o reencontra não o reconhece no disfarce de “Maese Pedro”, ou “Mestre Pedro”, um habilidoso manobrador de “títeres”, com seu macaco amestrado em adivinhar o .... “passado”. No caso de Quixote a adivinhação foi fácil e convincente, pois o velhaco já sabia quem era Quixote desde o episódio em que fora por ele libertado, num arroubo de fúria similar, ele, prisioneiro condenado e destinado às galés. Quixote, imaginando ver um grupo de injustiçados pelo poder libertou a ele e a todos os outros, também a golpes de espada contra os guardas. A partir daí o malandro foi ganhando a vida como podia, adotando esta “profissão” de “titereiro” ou manobrador de títeres num palco improvisado. Sabemos haver sido esta profissão adotada por vagabundos andarilhos, em suas andanças de aldeia em aldeia, para divertir e lucrar. Na peça foi mostrada a Quixote a luta do “grande cavaleiro Don Gaiferos”, “contra os mouros” para libertar sua mulher. Quixote não resiste. Invade o pequeno palco e, a golpes de espada e gritos de fúria, defende “Don Gaiferos” destruindo os “mouros” de “Maese Pedro”. Desalentado com o prejuízo, o patife o acusa e o responsabiliza pelo desastre. Diz haver orientado muito mal sua fúria descontrolada. Com ela lograra apenas destruir um mero símbolo da vida. A vida seria o que ele estava a revelar, um grande teatro de papéis sociais, de nada valendo o ataque a quem representa esta verdade. A resposta foi um silêncio constrangido. E finalmente a con-

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cordância de Quixote em indenizar o prejuízo, num óbvio reconhecimento de seu dramático equívoco. ( 18).

Semelhante critica das ficções sociais, exposta linear e claramente, colocaria Cervantes em choque com o “establishment”. A grandeza oculta de seu texto é dissolvê-la em meio a atos de insânia. Afinal de um louco espera-se qualquer coisa, até os incômodos da verdade, com sua loucura solitária provocando a inversão de sentidos, de tal modo que acabamos por considerar o que há de cômico na sanidade coletiva. O primeiro volume foi publicado em 1605. Seu êxito foi relativo.Provocou boas risadas , mas ficou bem longe, do sucesso estrondoso de Lope de Vega. O segundo tomo, foi a público poucos anos depois. No prólogo Cervantes faz questão de nos revelar sua discordância com o estilo literário dominante. Afirma que seu texto não terá as numerosas citações tão comuns, nem as referências eruditas a nomes latinos.

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Era uma estocada evidente a Lope de Vega, o maior nome literário da época, que havia publicado nos fins do século um livro muito bem recebido, contendo mais de 400 citações de autores consagrados. Cervantes não o tinha em alta conta. Com sua rebeldia ao estilo em voga, Cervantes logrou, sem o pretender, uma antecipação genial ao que hoje se costuma chamar de “meta narrativa”. Sua técnica ficcional era, da fato, completamente nova. Por exemplo: Cervantes elimina o narrador tradicional . Cria vários narradores. E eles se alternam e se complementam. Um sai do outro, em sucessão metafísica. Um dos principais é Cid Hamete Benegueli, um mouro que ainda por cima, por escrever em árabe, necessita ser traduzido pelo outro narrador. Por isto chega ao cúmulo de parar, no primeiro tomo, a narrativa de um duelo, com os litigantes, Quixote e o Vizcainho. As espadas, Cervantes as deixa suspensas, até que o narrador encontrasse a sequência da cena depois de traduzir o texto de Cid Hamete. Mais ainda. Sua história central é complementada por outras, de outros personagens, histórias dentro da história, com assincronias e fusões de tempo na narrativa das aventuras. Tudo se vai desdobrando numa espécie de jogo de bonecas russas, cada uma saindo de dentro da outra. Estilo completamente original. Cervantes criava algo desconhecido pelos tempos. Mais um exemplo, entre tantos, pode ser oferecido para ilustrar a tese. No volume dois, parte substancial é dedicada à historia de um casal nobre, um duque e uma duquesa. Eles resolvem divertir-se com Quixote e Sancho, criando situações teatralmente ensaiadas para envolver a verdade fictícia que criavam. Divertiram-se provocando festas em sua homenagem e desafios com rivais ficticiamente cavalheirescos. Quanto a Sancho, os dois o nomearam governador da fantástica “ilha da Barataria”, ilha de mentirinha, porque bem no meio das terras de Espanha! Era um pedaço de seus imensos latifúndios que reservaram para desfrutar de sua diversão. Um leitor modestamente realista tem o direito de indagar: como foi possível ao Duque realizar toda a sucessão de cenas e eventos envolvendo centenas de personagens em sua grotesca decisão? E tudo sem ensaios, sem tempo, sem preparo de roupas, de cenários, etc... etc... Mais ainda. Como teria sido possível ao Duque saber da vida e das loucuras de Quixote? Pois bem, não só todas as cenas se desenvolveram em sucessão ordenada senão também o casal só o fez por estar devidamente informado de tudo que se referia a ele. Mas como teria sido possível isto? Porque o casal de nobres havia lido a historia, já publicada, das aventuras de Quixote e Sancho. Mas que história seria esta? Ela abrangia acontecimentos recentíssimos, sem qualquer tempo para serem transcritos, editados e publicados. Alguns deles até constavam de eventos em andamento! Difícil conceber fusões e transposições de tempo como estas. Tudo feito, “à la science fiction”, naquela época. Com seus narradores fantásticos e suas edições que saiam ao mesmo tempo em que as aventuras se desenvolviam, Cervantes vai levando o leitor a viajar num espaço surrealista.

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Notemos algo mais. Todas as aventuras constituíam narrativas detalhadas. Cervantes é um mestre dos detalhes, descrevendo roupas, paisagens, tipos, rotas, grutas, abrigos e vendas, com ares de verossimilhança, em projeções de espaços oníricos. O caráter nebuloso da odisséia quixotesca nos é garantido pela frase de abertura, a que nos ficou na memória por sua beleza e significação: “en algun lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme”, isto é, lugar impreciso, tempo vago, origem nebulosa, mundo que já começa indefinido e vai ganhando corpo com os incidentes do texto, coleção de equívocos risíveis de um imaginário contaminado pela “loucura”. O livro é, na verdade, uma sucessão de desacertos entre fantasia e realidade, supostamente imaginada para ridicularizar a cava laria andante, mas, de fato, com os objetivos psicofilosóficos acima referidos. Acreditamos que só aceitando este posicionamento ante a obra será possível captar toda sua riqueza de significados. E entender por que Cervantes é um gênio da narrativa, cultivado até hoje, lido e relido, admirado e memorizado. VIII Se a partir de Cervantes a palavra “quixotesco”, como referida acima, foi entendida como uma constante da condição humana e incorporada a nosso vocabulário, é porque nela reconhecemos aspectos de nossa verdade, sempre em busca de nossos sonhos. Como tipo, sua “loucura” define a frustração da normalidade. Revela o “outro” metafísico que se esconde de nossa razão crítica, abrindo a distância existencial entre a pequenez do que somos e a grandeza que o devaneio nos faz ser. Logo no inicio do Tomo I, ao regressar de suas primeiras andanças, Quixote retorna à casa para curar-se da surra que levou. O diálogo reproduzido com seu salvador, um vizinho de aldeia, lavrador simplório, acaba sendo o mote do livro. Ao vêlo moído de pancadas, armadura rachada, o elmo desengonçado, lhe diz : “você não é cavaleiro andante, sou seu vizinho, sei quem você é”. Ao que Quixote lhe responde, firme e decidido: “ eu sei quem sou. E sei que posso ser os doze pares de França, os nove deuses da Fama e que meus feitos irão ficar para sempre”. (19) Completava-se neste jogo metafísico de “retiro e retorno”, a transformação do pacato e sisudo solteirão, “Alonso Quijano”, velho morador de aldeia, em “cavaleiro andante”. Obviamente o fato não podia ser aceito pelos vizinhos antigos, os que o conheciam desde jovem, senão como evidência de “loucura”. Mas no grotesco da situação, Cervantes nos faz refletir sobre a rebeldia do Ser negando a identidade imposta pela vida, no seu confronto de todos os dias entre a realidade e a utopia. O duplo dostoievskiano “Alonso/ Quixote” ressurge transfigurado. Nesta transfiguração encerra a afirmação coerente do que entende como sua verdade essencial e sua motivação na vida. Revolta sub liminar contra o estado de sonambulismo crítico que a sociedade insiste em manter, ajustando-nos à ordem social e aos valores impostos.

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Logo no início diz a Sancho haver nascido nesta idade de ferro para reconstruir a de ouro. Sua utopia de um tempo em que inexistia o “meu” e o “teu” é a do Pais da Cocanha, projeto medieval de um mundo sem trabalho e servidão. Antecipa o Rousseau do “estado da natureza” e a “Pasárgada” de nosso Manuel Bandeira. No importante episódio do enterro do rico pastor Grisostomo, morto de amores por haver sido repudiado pela bela e pobretona pastora Marcela, Cervantes reforça o tema da verdade de cada um. Marcela estava sendo criticada e ofendida pelo grupo de sua aldeia, por haver menosprezado o amor de um jovem estudioso, belo, culto e rico como Grisostomo. Defende-se dizendo que não o amava, não era responsável por reações alheias e não

obedecia aos costumes de subserviência da mulher. Não era obrigada a ceder só porque ele era rico e a amava. Sendo a dona de sua vida, sua decisão respondia a seus sentimentos. Ela seguiria sendo ela mesma, acima de tudo livre de imposições. Quaisquer que fossem as conseqüências. Nada tinha a ver com o desejo e a opinião dos outros. Quixote ouve a narrativa em silêncio. Ao fim a defende e a apóia contra o rancor popular proibindo que alguém a perseguisse quando Marcela desaparece por

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entre a vegetação cerrada. Desaparece também da novela. Já havia cumprido seu papel como símbolo da liberdade de Ser, um dos motes centrais de Cervantes. Em sua obstinação Marcela é a moderna Antigona. A rebelde que enfrenta o poder dos preconceitos em defesa de sua verdade, como Antígona enfrentou o poder do Estado em defesa da sua. Neste jogo de autenticidades afirmadas, a força interior da consciência exprime a consciência de sua força exterior. Cervantes não é claro, mas na entretela das reflexões parece adequado supor que Quixote havia visto em Marcela seu alter ego. No fim do Tomo II, na cena da morte de Quixote, há um brado sobre o valor da liberdade. E no contexto da obra a liberdade de que se fala não é a política e sim a de ser e de pensar. As lições de Cervantes são lições de vida. Por isto o seu “quixotesco”, uniu-se ao legado de outros arquétipos literários como a “duvida Hamleteana”, o “dantesco”, o “platônico”, o “Don juanesco”, o impulso “faustico”, o “bovarismo” que nos deprime, ou o “labirinto kafqueano” em que nos consumimos em meio à burocracia anônima. Todos eles saem do mundo da literatura, das personagens que nele vivem, para nos fazer reencontrar nossa realidade. São cânones não só do Ocidente, mas de todas as culturas letradas, construídos pela fluidez da narrativa para nela recolher a solides de nossa essência espiritual. Pouco importa se o projeto de nossa vida não resiste à realidade. Pouco importa se o objetivo é sempre adiado, como adiado para sempre foi o “feitiço” que manteve a ideal e nobre Dulcinea de Toboso como a rude e torta camponesa analfabeta, Aldonza Lorenzo. Nem por isto abrimos mão de sua força, o que talvez só ocorra, como ocorreu com Quixote, quando sentimos a força da derrota, o desalento da perda e a realidade da velhice desprotegida. Diante do fim iminente o desfile do passado que se fez perdido inteiro no desencanto do naufrágio existencial.

reaparece

A lição que Quixote absorveu na hora de sua morte, foi a da força da realidade. É quando nos vemos não mais como o cavaleiro andante, ofuscado pelo ideal das glórias e proezas sonhadas, mas na verdadeira e prosaica condição do velho, pacato e solitário “Alonso Quijano”, a caminho do fim. Ele, “Cavaleiro andante”, na verdade, jamais deixara de ser... “Alonso Quijano” que agora, em seu leito de morte, despediase para sempre de seus sonhos! Mas o tamanho da derrota não gera o tormento do remorso. O que permanece com ele é a angustia de não poder recuperar jamais, ante o fim iminente, o sonho que lhe foi negado. Fica-nos a impressão de, nesta hora em que tudo se esvai, se lhe fosse dado renascer, seguramente o faria ainda e sempre, como “Quixote”. E como “Quixote” insistiria em viver, jamais como “Alonso Quijano” que não sonha com nada e pouco deseja além da sequencia rotineira de seus dias. Por isto o anti herói Cervantino não morre em paz consigo mesmo. Leva com ele a mais perversa das frustrações: a consciência de haver falhado ao sustentar a verdade que imaginou num esforço vazio para escapar da sonolência da rotina. Ela tem 29


lá as suas garras. Ela nos prende. Ela nos leva de roldão para o infinito do esquecimento. Mas a lição básica nos fica. Importante retirar de dentro de nós mesmos, forças que ignorávamos por lá existissem e que unidas num impulso decisivo formam da vida algo que merece ser vivido. Pouco importa o desastre do naufrágio. Sem nadarmos no mar revolto jamais chegaremos à praia. Nada é possível sem o rebelde, sem o contestador que existe em alguns de nós. Um mundo de conformistas é um mundo destinado a repetir-se eternamente sobre si mesmo. É o mundo dos lagartos inexpressivos, jamais o do homem cujo símbolo é oscilar entre o castigo de Prometeu e o desacerto de Fausto. Por isto mesmo não há “bovarismo” em Cervantes. Ele permanece defendendo a teimosia de seus tropeços e o valor de seus sonhos. “Dom Quixote”, a novela, Cervantes começou a escrevê-la já acima dos 50 anos. Nada mais esperava de si mesmo. Mas este esforço final nos mostrou que o sonho que insistimos a sonhar nos ensina o valor da esperança. O fim pode ser o inicio de um novo princípio e a luta para realizá-lo, quando bem travada, jamais pode ser perdida porque nela se encerra a denuncia contra a insignificância da rotina. Esta, de modo algum, e a despeito da arrogância dos desacertos, pode ser projeto de vida. Nosso real sentido é dar a nós mesmos um sentido real. Por tudo isto nos parece correto concordar com o objetivo misterioso da literatura, tal como proposto pelo contemporâneo de Cervantes, Quevedo. Sua verdade psicológica revela-se na resultante objetiva de sempre nos valermos da literatura para exprimir o que desejamos ser, definir o que somos, aprender o que não sabemos e criar o que não temos. Por isto sempre que “ Retirado a la paz de los desiertos Com pocos pelo doctos libros juntos Vivo em conversación com los defuntos Y escucho com mis ojos a los muertos”

A literatura é uma oferenda de significados, visões e condições do Ser, descritas por gerações encadeadas pela capacidade de recebê-las no silêncio das reflexões estimuladas. Se nossa vida não pode vencer a realidade, que ela seja vencida por nossos devaneios. Jamais nos despedimos de Quijote. Sempre o levaremos conosco. E quando o tempo chega, para nos “retirar à paz de nossos desertos” sempre o “escutamos com os olhos postos” na sedução de seu exemplo.

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Notas

1 – O Concilio de Trento, convocado pelo Papa em 1542, durou cerca de vinte anos. Foram anos de debates, reflexões, discursos e decisões voltadas para os problemas criados pela Reforma Protestante. Sentia-se a necessidade imperativa de renovar os padrões comportamentais da Igreja, reforçar o dogma cristão abalado pelos ataques liderados por Lutero, reforçando o papel institucional da Igreja e a autoridade abalada do Papado. Na Espanha de Filipe II, a Espanha de Cervantes, o apoio foi coeso e decidido. Era a época de Teresa de Ávila e João de la Cruz; de Inacio de Loyola, fundador e organizador da combativa Ordem Jesuíta, das freqüentes procissões, do ritual das missas e dos diversos sacramentos obedecidos a rigor. Não era só a Espanha. Lucien Febvre em seu bom trabalho sobre Rabelais, indica que o individuo daquela época era envolvido, pela mente cristã, desde o nascimento. Começava pelo ritual do batismo, seguia sob a catequese educacional da família e da Igreja na formação do espírito pelas histórias de Jesus, Maria, salvação, pecado, missas, santos e rezas, para chegar à morte, com todo o aparato da confissão final e do sepultamento. 2 – Desde Carlos V, sob cujo reinado nasce Cervantes, a Espanha era um baluarte da Igreja e do Papado. Nos dois séculos seguintes foi o palco mais ativo da Inquisição e da luta contra a heresia luterana e calvinista. 3 – Ver Ortega y Gasset, Meditações do Quixote, Libro Ibero Americano, SP. 1967, p. 124; 4 – Para o gradual esgarçamento das visões medievais, a literatura sobre o avanço da ciência é esclarecedora. Ver, por exemplo, Marie Boas, The Scientific Renaissance, 1450-1630. Harper Torch Books, N. Y, 1962, pp. 130/133. Acima de tudo parece imperativo consultar o excelente trabalho do italiano Eugenio Garin, Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano, Ed. UNESP. SP. 1994; indispensável a leitura de Johan Huizinga, The Waning of the Middle Ages. Há tradução portuguesa pela Ed. Ulisspéia, s/d. 5 - Sobre Pomponazzi, seu pensamento e influência, Eugenio Garin nos dá excelente indicação, op. cit. p. 89. 6 - O médico Mondino di Luzzi é hoje nome esquecido. Mas foi eminente em sua época e influente depois dela. Pioneiro da anatomia, seus estudos deram base objetiva a Vesalius no século XVI. O renome deste grande cientista o levou a ser medico do complicado filho de Filipe II, Don Carlos, cuja trágica vida mereceu um poema de Schiller e uma ópera de Verdi. Mais adiante, Vesalius, outro inovador de gênio, acabou condenado pela Inquisição e sacrificado na fogueira “purificadora”. Não era nada fácil ser cientista e filósofo racional naqueles tempos obscurantistas de transição de valores e fanatismos impiedosos. Razão pela qual lamentamos discordar de Ortega, como registrado mais acima. Cervantes, cercando-se de cuidados, andou bem longe de discutir temas sagrados e polêmicos em suas obras, resistindo a suspeitas e a alguns ataques feitos sem maior força. 7 – O grande impulso renovador do pensamento ocidental que mereceu, séculos adiante, o nome de “renascimento” deveu-se, em grande parte, à vinda de eruditos gregos iniciada pela iniciativa de Coluccio Sallutati, convidando o erudito grego Miguel Crisolora a Florença, seguindo –se a convite anterior feito a Demetrio Paleólogo. Após a queda de Constantinopla,em 1453, a imigração de mestres gregos tornou-se um fato marcante na vida intelectual da Italia. Ver Eugenio Garin, op. cit. passin; mas na verdade o chamado “renascimento”, como iremos ver adiante, é parte de um processo que vinha sendo gerado pelos tempos. Sua origem é imprecisa, mas não seria nenhum absurdo histórico fixá-la em torno do século XII. 8 – O texto que nos serve de base é, El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Ed. ilustrada da Ed. Salvia, Barcelona, s/d. 9 – Ver idem , idem, vol II, pp. 473/539. 10 - Ver capitulo XVIII do volume II onde se pode ler as reflexões de Quixote sobre poesia, em conversa erudita com Dom Diego de Miranda, o “cavaleiro do verde gabão” seguindo-se os conselhos dados a seu filho poeta.

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11 – Os conselhos fazem parte do capitulo XVII do vol. II. 12 - Sobre a lucidez de Dom Quixote, aliás, são várias as passagens; basta citar as mais claras, como as conversas das pp. 52-57 do vol II, bem como os diversos exemplos da admiração de Sancho, boquiaberto ante a sabedoria lúcida de seu “senhor”, sintetizadas quando, ante mais uma evidência desta lucidez não se contém: “ válate AL diablo por cabalero andante que tantas cosas sabes”, p. 154. Vol II. Os conselhos de Quixote a Sancho e a Carta enviada quando Sancho governava a “ilha de Barataria”, ver pgs. 370/371 vol II. 13 – Sobre o Quixotismo de Sancho ver “El Quijotismo de Sancho Panza”, revista Santander, abril de 1949, pp. 49-66, texto de Antonio Uribe Prada. 14 - Milan Kundera, The Art of the Novel; Grove Press, N. Y., 1088, Part 1a. “The Depreciated Legacy of Cervantes”, pp. 3-20; Georg Lukacs, The Theory of the Novel, Mit Press, 2a. ed. 1975, pp. 13; 103 e 110, entre outras referências; Harold Bloom, O Cânone Ocidental, Ed. Objetiva, R. J., 1994, pp. 168191; Arnold Hauser, História Social da Literatura e da Arte, Ed. Mestre Jou, S. P. 1972, pp. 528/531 do vol 1 e tantas outras fontes que seria cansativo enumerar. 15 – “Renascimento”, como vimos em nota acima é nome escorregadio. Na verdade o processo de transformação dos quadros mentais do Ocidente, que para nós torna-se mais claro a partir do século XIV, para muitos teve inicio no século XII, com as universidades, a arte gótica, a racionalidade lógica do Tomismo, os grandes intelectuais e artistas que daí em diante, em sucessão cumulativa, vieram a constituir as bases do pensamento e da arte dos tempos de Cervantes. O fato revela as dificuldades de se parcelar e datar as transformações históricas. Sobre o renascimento do século XII, por exemplo, basta ver os ensaios que constam do livro Robert L. Benson and Giles Constable, Renaissance and Renewal in the Twelfth Century, Harvard Univ. Press, 1982. Para o século seguinte trabalho interessante é a síntese das inovações artísticas que marcaram o período chamado de “gótico”. Ver sobre o tema de Marcel Aubert, O Gótico em seu apogeu, Ed. Verbo, 1983. 16 – Coloco entre aspas “medo e tremor” por ser retirado do título de um livro famoso de Soren Kierkegaard. 17 - As biografias de Cervantes devem muito à pesquisa paciente de Luis Astrana Marin, Vida Ejemplar y heróica de Miguel de Cervantes Saavedra, Madrid 1948-1958 em 7 volumes! Bem mais sóbrio é o texto de Jean Cannavaggio, Cervantes, Ed. Mazarine, Paris, 1986, além de Juan Antonio Cabezas, Cervantes: del Mito al Hombre, Biblioteca Nueva Madrid, 1967. 18 - O episódio de “Mestre Pedro” consta dos capítulos XXV a XXVII, op. cit. 19 - A passagem do “eu sei quem sou” está no Vol I, de Dom Quixote. op. cit. p. 27.

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Artigo resultante de palestra sobre o tema, sugerido pela União Brasileira de Escritores realizada no dia 20/9/2016, na Academia Luso-Brasileira de Letras, o qual provocou animado e participativo debate, confirmando o interesse que esse tema suscita.

O SILÊNCIO DAS MULHERES, AO LONGO DOS SÉCULOS Maria Helena Kühner

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Desde o início dos tempos a Mulher se viu associada à Natureza e à Terra, como provam os mitos mais antigos. Filhos do Caos, Urano e Gaia (o Céu e a Terra), geram os Titãs, os Cíclopes, e os Hecatônquiros, três Gigantes de 50 cabeças e 100 braços. Mas Urano, temendo ser destronado pelos filhos, os enterra nas profundezas do mundo subterrâneo. E Gaia, indignada, pede vingança. O Titã Cronos, seu filho mais novo, a atende: castra o pai (separando o Céu da Terra) e assume o governo do mundo. Casa-se com sua irmã Réa (para os romanos, Cibele), portadora e doadora da fertilidade que vai propiciar a agricultura, necessária à sobrevivência humana, e torna-se a Grande Mãe dos homens. Mas Cronos, com o mesmo temor do pai, devora e engole os filhos que nascem. O que leva Réa a dar-lhe lhe uma pedra para engolir, conseguindo salvar um, Zeus (Júpiter, para os romanos) que, escondido em uma caverna e criado por pastores e agricultores, virá a trazer uma nova ordem, tornando-se o Pai dos deuses e dos homens. Mas os mitos falam também de Pandora. Se Prometeu,"o que pre-vê", rouba dos deuses o fogo (associado à sabedoria e à capacidade de, pela previsão, evoluir) e o traz à humanidade, seu irmão gêmeo, Epimeteu, é "o que só vê o acontecido". Esquecendo os conselhos do irmão Prometeu, de jamais aceitar um presente de Zeus, casa-se com Pandora, a 1ª mulher, por ele enviada. A quem, Zeus no casamento, dá uma caixa, dizendo-lhe que nunca a abra. Mas, levada pela curiosidade, Pandora desobedece, abre a caixa e dela saem todos os males que irão afligir a humanidade (em outra versão, todos os bens, que voltam para morada dos deuses e são assim perdidos pelos homens). Só fica no fundo da caixa a Esperança, em sua permanente Espera. Na linguagem dos mitos já surgem os caminhos, marcos e marcas que vão traçando a trajetória humana e definindo sucessivas idades ou gerações: a idade de ouro, em que Gaia propiciava fartas colheitas e os homens conviviam em harmonia, sem cansaço, doenças ou dores. Mas a idade se encerraria pelos terríveis erros de Cronos. Surge a idade de prata, na qual os deuses criam outra raça de homens, incapazes e tolos, alimentados por suas mães em interminável adolescência, sem noção de bem e mal, vivendo do que tomavam pela força e matando-se uns os outros. Não ofereciam aos deuses sacrifícios (sacri-ficar = tornar sagrado) e Zeus, ofendido por essa arrogância, elimina a todos. Passam à idade do bronze, de guerreiros que, com as armas por eles próprios criadas, não mais cultivam a terra, vivem da caça e da coleta e, orgulhosos, tentam tomar o Olimpo, a morada dos deuses que, irados, os exterminam. A quarta raça ou geração é a que surgiria com Hércules, Orfeu, Jasão, Aquiles, Agamenon e demais heróis que, com suas ações, iriam trazer a essa geração o título de Idade Heróica. Convivendo com os deuses, ou mesmo filhos de algum deus, eram por eles protegidos. E neste período surgem importantes cidades, como Atenas, Esparta, Creta, Micenas, Corinto. Mas essa geração pereceria nas lutas fratricidas nas sete portas de Tebas ou nas que se travaram por dez anos em Tróia. A quinta geração já não seria mais criada por Zeus, nem nasceria no seio da Terra. A idade mítica se fecha com a geração do ferro, cuja raça nasce do homem e da primeira mulher, Pandora. Sobre essa quinta raça cairão todos os males da caixa aberta por Pandora: dor e doença, miséria, inveja, rudeza. Presa ao fundo da caixa, Espera/Esperança não fazem parte da herança dessa raça de humanos. Vivem por viver. Vagando a esmo no deserto ou na imensa floresta. Apenas caminham. Nesse traçado se vê que o primeiro momento é o do olhar, do admirar, com espanto ou encanto, para o vazio em torno. Nada ainda pronto, tudo por descobrir. A própria verdade será um desvelar, um arrancar de véus, o encanto e espanto desse olhar provocando a palavra - termo cuja origem, parábola, fala dessa expressão matizada em

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que o real e o imaginário se confundem, e faz dos mitos a primeira tentativa humana de apreender a realidade e estruturar seu mundo, buscando o sentido oculto das coisas, tentando entender a origem de todas as coisas criadas. E essa Natureza ambivalente, em que ora vê deusas doadoras e protetoras, que representam a terra fecunda e as águas fertilizantes (Cibele, Deméter, Rea, Gê, Isis, Miriam, Maya), ora deusas maléficas, pressionantes, pluralizadas e dominadoras (As Eríneas, as Parcas, as Moiras, as Hárpias), que o ameaçam com o extermínio ou a involução em seu corpo de água e terra. Natureza cifrada, que desafia o homem: "decifra-me ou te devoro". Desafio a que Édipo, ainda de pés atados (é o que significa seu nome), unido à Natureza-Mãe vai dar resposta ao se confrontar com essa Esfinge enigmática e voraz, que lhe pergunta: "Qual o animal que de manhã tem quatro pernas, de dia, duas e ao anoitecer, três? " E a resposta traz a imagem do decifrador vitorioso: "O homem". A Esfinge se precipita do alto dos rochedos e Édipo, unindo-se a Jocasta, sua mãe, após matar o pai, Laio (pois uma nova ordem pressupõe sempre a ultrapassagem da anterior) caminha para a cidade, onde terá inicio sua história. No principio o Verbo. O Homem, em silêncio, não é ainda homem, é apenas um ser vivo, como os demais. Só quando experimenta e descobre a fala, que o define e distingue, é que se torna humano. Mas a fala não é apenas algo mais: a fala é o anseio de falar o Sonho, o impulso de rebelar-se contra a herança de Pandora, de vir a fazer, do Sonho, projeto capaz de lançar adiante. Porque no Sonho o homem pode ver-se livre de Pandora e seus males, no sonho o homem pode ultrapassar a submissão, e fazer, da Espera, Esperança. Ao falar o sonho o homem se vê em tensão entre o submeter-se e o rebelar-se. O rebelar-se do Sonho lhe acena com a promessa de recapturar sua autoctonia, a completude, que vai exilar Pandora, e, com ela, a falta. Descobre a força do Sonho e a força da Fala. E descobre que, juntos, esses dois poderosos aliados lhe permitem derrotar Pandora. A unidade primordial, a plenitude intrínseca à autoctonia, havia sido destruída por Pandora. Agora reinava a falta. Mas o homem descobre que o Sonho e a Fala, juntos, amalgamados, têm o poder de desenterrar as ruínas do reino que Pandora destruiu. E nessas ruínas ele reencontra a

beleza do perdido. E busca reconstruir as ruínas. Para nelas poder morar. Descobrindo a força e o poder da fala, o homem irá falar. Com a ajuda de Mnemósine, que impede o esquecimento recolhendo o que seu irmão Cronos vai deixando pelos caminhos, vai ultrapassar os balbucios de uma sociedade ainda extremamente dependente da natureza-mãe, e vai falar, reconstruir, em seus mitos e lendas, a própria história, e o que ela 35


diz da vida, da morte, de suas vidas e suas mortes, de seus amores, suas dores, seus caminhos. Caminhos que o levarão à cidade e, com ela, a uma nova ordem que a cena teatral grega já ilustra com suas duas arquibancadas em semi-circulo uma diante da outra, deuses e homens frente à frente e, ao centro, o ator/intérprete, Prometeu que, mesmo amarrado à rocha, com a águia lhe roendo o fígado que se recompõe seguidamente, afronta Zeus, até ser libertado por um herói humano, Héracles (Hércules, para os latinos). Na polis grega nascente a tripartição do poder social: sacerdotes, guerreiros, produtores (pastores, agricultores). Na Ágora, lugar de discussões e decisões, só cidadãos. Mulheres e escravos sem direito à cidadania. Na divisão de papéis sociais, para estabelecer e manter a ordem desejada, cabe ao homem o espaço público, e à mulher o espaço privado, onde exercerá seu papel de esposa e mãe. Onde a voz, a subjetividade, o lugar da fala feminina nessa nova ordem social, que assim se afirma como patriarcal, masculina? Sobre determinada pelo elemento natural, que os mitos assinalam, pela tecnologia agrícola e por seu lugar social, ela não vai ter lugar próprio de manifestação e expressão. Se a nova ordem se estabelece em nome do Pai, a subjetividade feminina vai ser interpretada, isto é, falada por normas e códigos estabelecidos pelo homem. O que não significa ausência. Mas poucos nomes femininos aparecem. Há mulheres, como Safo de Lesbos (Séc. VII e VI A.C.) , poetisa e educadora, considerada a criadora da poesia lírica (tal como Homero o foi da épica). Sua obra seria posteriormente reunida por estudantes de Alexandria em 10 livros de poesia. Mas é com ironia crítica que é lembrada nos adjetivos a ela referentes ainda hoje: "safada" e "lésbica" não são em geral ditos em tom elogioso... Aspásia de Mileto (Séc. 470 a 410 A.C.) foi do círculo político de Atenas, sofista competente e assessora de Péricles. Mas é como tal que seu nome fica registrado (ratificando o senso comum quando ainda hoje diz que "atrás de todo grande homem existe sempre uma grande mulher"...) Diotima da Mantineia (Séc. V A.C.) é citada como sábia no Banquete de Platão, que a ela atribui a melhor teorização sobre o que é o Amor. Mas há quem diga que ela sequer existiu, é personagem por ele criada. Tal como o são as inúmeras e famosas personagens femininas - Antígona, Electra, Helena, Fedra, Penélope, Cassandra - sempre faladas, descritas e narradas pela fala e interpretação masculinas. Que imagem ou modelo de mulher nelas surge? Poderíamos lembrar a fala de Andrômaca em "As Troianas", a peça de Eurípedes que canta/conta o destino das mulheres que, após o estratagema do cavalo de Tróia, viram sua cidade tomada, seus guerreiros mortos ou assassinados e elas próprias se vendo levadas como amantes ou escravas dos vencedores. É de Andrômaca (cujo nome em grego significa "a que luta como homem"), viúva de Heitor, que se tornará mulher do filho de Aquiles, a fala em que diz: Todos os bens imagináveis que dão valor à mulher eu me empenhava em praticar no lar de Heitor. De inicio, há lugares que uma esposa, embora procedendo bem, só por frequentar merece a acusação de não se dedicar à casa. Longe de procurar lugares desse tipo, eu ficava no lar e tinha mil cuidados para impedir que transpusesse suas portas a vil maledicência própria das mulheres. [.......] Uma boca silenciosa, e um rosto sempre sereno

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eis o que eu oferecia a meu esposo." A ótica masculina é evidente, não só nos valores, espaço, comportamento e atitudes que atribui (ou sugere e aconselha) ao feminino, como até mesmo nos termos e expressões usados: para evitar "a vil maledicência própria das mulheres"... O esquema de valores esboçado resume o que cabia à mulher: manter a passividade, a submissão, a repressão, a serenidade, o silêncio. O silêncio. Silenciadas, não silenciosas. E apenas faladas por. Mesmo quando sob ótica outra, que poderia ser então considerada "feminina", por falar em nome das "leis naturais" (morte e vida, o afeto, o direito de escolha e de expressão, a justiça dos deuses, ou seja, natural), a transgressão do modelo dado tem um preço que a peça Antígona, de Sófocles, vai fazer ver.

Antígona era filha do Rei Édipo, de Tebas, nascida de sua união com a mãe, Jocasta. Expulso do reino e perseguido pelas Fúrias, Édipo se exila. O poder devendo então passar a seus filhos, Etéocle e Polinice. Mas, ao final de seu reinado, Eteócle recusa passar o poder ao irmão, gerando uma luta fratricida em que ambos morrem. Creonte, irmão de Jocasta, assume o trono e, sem dar ouvidos ao adivinho Tirésias, que o adverte das possíveis consequências de seu ato, decreta que Etéocle seja enterrado com honras e corpo de Polinice seja deixado sem sepultura - o que, segundo as crenças gregas, o deixaria vagando sem rumo por toda a eternidade. E Antígona, afrontando o édito real, sepulta o irmão. As razões de seu comportamento e atitude ficam evidentes em falas de seu diálogo e confronto com Creonte, seu Rei e tio: Creonte - Me diga em poucas palavras: sabias que um decreto meu proibia o que fizeste? Antígona- Não poderia ignorar: era público. Creonte - E te atreveste a desobedecer a minha lei? Antígona - Sim, porque não foi Zeus que a promulgou. nem a Justiça, companheira dos deuses subterrâneos, que a ditou aos homens. Não creio que teus decretos tenham tal poder que permitam a um mortal violar leis divinas leis que não estão escritas, mas são inevitáveis. [....... ]

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Sei que hei de morrer - seria inevitável. mesmo sem teu édito. E morro antes do tempo [.....] Mas não me assusta a morte que me espera.[......] Se te pareço insensata por agir como o fiz é como se me acusasse de insensatez o maior de todos os insensatos [.......] Creonte-.[........] Sei de potros indóceis que são contidos por um freio pequenino. O orgulho não cai bem a quem depende da vontade alheia. [......] Antígona - Todos os que me ouvem ousariam me aprovar se o medo não lhes fechasse a boca." E o Coro comenta: Esta sabia perfeitamente o que fazia ao transgredir a lei apregoada. E agora, pela segunda vez, ufana-se do que fez e e se mostra insolente. Dos dois seria ela o homem e não ele se a deixasse vencê-lo impunemente " E, na tragédia, Antígona é realmente castigada, condenada a morrer emparedada dentro de uma rocha. E o comentário final do Coro mostra a hierarquização de papéis sociais, já então vigente, e que iria perdurar por séculos. Cassandra, também personagem famosa, pagará o preço de outra forma: recebe de Apolo o dom da profecia, que, ao recusar a seguir o coito com ele, será acompanhado de uma maldição: por mais válido e importante que seja o que diga, ninguém lhe dará crédito, e para seu desespero, verá os males por acontecer (ex: a guerra de Tróia) e não lhe darão ouvidos. A trajetória humana irá assinalar os marcos e marcas do poder, domínio e controle masculinos ao longo dos séculos, estendendo os territórios à amplitude de impérios, a ação se desdobrando progressivamente com a expansão comercial que levaria descoberta e ao desenho de um Mundo Novo, as invenções que culminariam com a revolução industrial e abririam às novas tecnologias do futuro. Mas quantos já ouviram falar de uma Hildegarde de Bingen, cuja vasta obra, reunindo os conhecimentos até então existentes ligados à biologia, à botânica, à astronomia e à medicina, ficou preservada apenas por ser abadessa de um mosteiro em uma época em que a Igreja tinha inegável poder? Tal como sucedeu a Heloísa de Paráclito (Séc.XII) cujo tio foi membro influente do Clero e lhe propiciou formação vasta e erudita, dada pelo filósofo Abelardo, seu professor e amante, com quem teria uma relação amorosa e, dela, um filho. O que leva à castração de Abelardo pelo tio, e o leva a tornar-se monge e fundador de uma comunidade, e Heloísa a ser a abadessa do convento de Argenteuil. Mas a dupla Abelardo e Heloísa ficaria muito mais conhecida apenas por essa relação amorosa... Ou sabem quem foi Catalina de Siena (Séc. XIV), que liderou toda uma comunidade de homens e mulheres e foi importante reformadora religiosa, de erudição comprovada não só em obras literárias como nas 381 cartas de sua influente correspondência, inclusive com Papas, como Gregório XI e Urbano VI - o que levaria Paulo VI, em 1970, lhe dar o título de Doutora da Igreja? Ou conhecem Maria ou Miriam (Séc. I D.C.) como fundadora da alquimia, e sabem que é por suas descobertas sobre o ponto de ebulição da água que seu nome vem associado a um termo banal, de uso corrente, o banho-maria?

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A hierarquização apontada manteria por séculos essa concepção autoritária e vertical na relação homem/mulher. O historiador Michelet (1798) assinalaria no decurso da História a correlação, permanente, Mulher-Natureza e Homem-Cultura. O Renascimento seria caracterizado como um "Movimento Anti-Natureza", e muitos de seus atos, cujos efeitos seriam mais tarde notórios, apontados como "des-naturados". O próprio Michelet diz que faz parte de "uma geração cevada no silêncio, na qual a ruptura com o passado e a tradição foi quase total... pois a palavra de ordem era o silêncio”. Nascido em 1795, ele precisaria resgatar do silêncio a própria história da Revolução (Francesa), "por seu amor aos mortos e como reação à aridez da razão logicista e o cálculo utilitarista do passado". E os sentimentos e as emoções profundas da História foram revividas por Michelet porque ele reviveu suas causas dentro de si. Tal como Rousseau, em suas “Confissões”, o historiador resgata a si mesmo quando resgata o passado e busca conciliar os acontecimentos com sua identidade pessoal. Mas Evelyne Berriot-Salvadore, em "Un corpos, un destin. La femme dans la médicine de la Renaissance" (1993), traz um dado para nós, hoje, provocador de espanto e de risos, registrado por Roberto Muchembled em livro que eu traduzi, A História do Diabo. Diz ele: "No Renascimento, em todos os ramos do conhecimento e da vida social operou-se uma redefinição da natureza feminina. A medicina, o direito, a propaganda difundida nas imagens e pinturas - para limitar-nos apenas a alguns setores - reforçaram a idéia de (grifos nossos) uma indispensável vigilância para controlar este ser imperfeito, profundamente perturbador. Os médicos viam na mulher uma criatura inacabada, um macho incompleto, daí sua fragilidade e sua inconstância. Inútil, canhestra, e lenta, desavergonhadamente insolente, mentirosa, supersticiosa e lúbrica por natureza, segundo inúmeros autores, ela só era movida por movimentos de seu útero, do qual procediam todas as suas doenças, sobretudo sua histeria. Mulher-útero, ela trazia ao mesmo tempo em si o poder da vida e o poder da morte.[........] A visão da feminilidade mesclava, inextricavelmente, as teorias eruditas, produzidas pela Teologia, a Medicina e o Direito, com os preconceitos populares correntes. Entre os tópicos religiosos - que representam 3/4 desse corpus, predomina a ideia do pecado. Que, ao que dizem, a mulher pratica com o maior despudor: primeiro, o da luxúria, seguidamente mostrado, depois a inveja, a vaidade, a preguiça, e por fim o orgulho. Este sistema de pensamento foi produzido por homens e para seus semelhantes a fim de preveni-los contra as armadilhas femininas, diretamente inspiradas por Satã [.........] Essa ligação da mulher com o Diabo, ou seja, o fato de "terem o diabo no corpo" fundamentava a superioridade masculina e explicava a sujeição exigida das mulheres no conjunto da sociedade. Mostrando que a mulher é inferior por natureza, isto é, pela vontade divina." Para quem se lembra dos seguidos momentos de "caça às bruxas" ou das "feiticeiras" queimadas na fogueira ao longo das inquisições da História, da Idade Média ao século XVI, ou o adjetivo "diabólica" tantas vezes (des)qualificando a mulher, o texto citado dispensa maiores comentários, pois o que é aí dito fala por si. Como dispensa comentário o que diz o referido historiador Michelet em outra obra

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sua A Feiticeira: "É certo e evidente que não havia bruxas, mas as terríveis consequências da crença em bruxas foram as mesmas que se verificariam se elas tivesse tivessem existido. " Acrescenta: "É impossível falar sobre este assunto sem que a pena grite de indignação." E faz toda uma análise da condição feminina na Cristandade medieval, e em especial a daquelas que eram chamadas de bruxas ou feiticeiras, para em seguida serem encerradas em conventos, enterradas em claustros, ou queimadas vivas nas fogueiras. Mostrando que, por monstruosa perversão de ideias, a Idade Média via a carne como "impura", o corpo feminino como um "convite ao pecado", e a mulher por tal "associada ao diabo", como vimos. Esse anátema lançado ao corpo é um dos itens que explicam ter aquele período passado à História como a "era das trevas", sob o pesado jugo de monarquias teocráticas e papados tirânicos. O que o Iluminismo, até no termo que o define, iria posteriormente denunciar e condenar. E levaria Nietzsche a assinalar algo que não pode ser esquecido: "não se ataca o corpo sem atacar a vida em sua raiz." Se de novo perguntássemos: onde, então, a presença ou a voz feminina? Ofélia, a famosa personagem do Hamlet, de Shakespeare, nos diria: "Nós sabemos o que somos, não sabemos o que podemos ser." A ideia de poder ( tanto o poder, substantivo, quanto o poder, verbo que diz eu posso, nós podemos (Yes, we can, foi o lema de campanha de sua Obama à presidência...) é importante. Cabe repensar o que diz Muniz Sodré: " O poder significa dominação através da força. Mas nenhuma força se mantém por dispositivo de força strictu sensu. O poder é, na verdade, um conjunto de efeitos da força inicial. Esses efeitos são da ordem do sentido, da ordem da palavra. Portanto todo poder é, em seu exercício, um conjunto de signos de poder. O poder precisa sempre se justificar, precisa sempre falar. Precisa convencer, seduzir, persuadir. Para tal existe a palavra do poder, ou melhor, o poder da palavra. Acho que até o amor é, na verdade, da ordem do poder das palavras. As palavras desencadeiam, as palavras fazem. Quando eu digo "prometo fazê-la feliz" essa palavra prometo é performativa, a ação já está realizada na palavra. Não precisa ser falso ou verdadeiro. Aí já está dada uma ação - eu prometo. Há uma dimensão de palavras em que a ação já está dada. Na forma eu te amo, eu te quero, já há uma ação, uma carícia na própria palavra. Esse poder desencadeador atua falando. Portanto, não é a fala do poder, mas o poder da fala. Essa a diferença." A sedução, tradicionalmente atribuída à mulher, é, na realidade, um exercício de poder, que se dá através da fala. Cabe aqui uma observação que não pode ser ignorada:

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a ideologia da relação homem-mulher foi construída por homens, ou seja, não houve a fala feminina, a palavra feminina. Quando a mulher começa a falar, a falar como expressão de si mesma, sem essa preocupação de exercitar ou exercer um poder, essa fala, silenciada por séculos, este silêncio trará, como veremos, uma dimensão nova, de mistério, de intimidade, de segredo, um tipo de fala que será modificadora. Em um simpósio sobre Sedução, na Universidade Católica de MG, Renato Janine Ribeiro mostrou a ligação do exercício de sedução com o exercício masculino de poder em uma sociedade patriarcal falando de D. Juan, o sedutor por excelência. Mostrou que D. Juan não quer amar, talvez nem apenas possuir, ele quer conquistar. Ao dizer "eu conquistei esta mulher" ele exibe o caráter da sedução como poder, conquista, que se dá em três etapas: primeiro, o momento da "caça", em que ele leva a mulher para um lugar privado onde se dá, se não a posse, pelo menos a sedução; segundo, o momento em que ele desperta, obtém, conquista o desejo da mulher, que é o que mais lhe importa; e por fim, 'o momento mais forte', em que ele procura seduzir o próprio social, ou seja, contar sua conquista, fazer, dos possíveis ouvintes, seu público, sua plateia. Há um divertido conto de Esdras do Nascimento sobre "um desses coronéis do interior que vêm se divertir na capital e acham ótimo trepar com uma mulher que aparece em revista", para ter algo a contar em sua volta... A concepção hierarquizante, vertical, autoritária (superior/inferior, nobreza/povo, adulto/criança, patrão/empregado, homem/mulher), de início proibitiva e repressora, vai ser o eixo mesmo de um sistema que se estrutura como excludente, marginalizador, discriminador, em que o normal é estabelecido por aceitação da norma estabelecida e demarca o campo fora do qual se situa o que deve ser evitado, discriminado, marginalizado. Marginais (como as palavras são significativas!) são as camadas da população que se quer colocar à margem, demarcando a fronteira delimitadora que diz: "eles não são iguais a nós". As consequências de tal visão e forma de ação não tardam em mostrar seus danos. Esse mecanismo de exclusão que atravessa, subterrânea ou abertamente, a construção de toda a civilização branca, ocidental, cristã e patriarcal exclui, discrimina, aparta, marginaliza ou mesmo se impõe pela força, vitimiza, domina e mata o "selvagem" dos Novos Mundos descobertos ou de continentes inteiros, os "gentios" de um Oriente ou de uma África, diversos na cultura e na cor, os "bárbaros" (bárbaro significa aquele que gagueja) que têm uma palavra outra, diferente e não se expressam ou agem em nome do Pai. Exclusão que ainda marca as lutas étnicas, raciais ou culturais do Oriente Médio, da África do Sul, da Bósnia e põe em choque duas lógicas, com domínio da vertente política, do coletivo e dos partidos, ou da economia classista; que dá origem a todos os conflitos de uma civilização em que religiões apregoam um 'amor ao próximo', mas nele não vêem o humano, apenas o semelhante ou igual dentro dos limites de raça, cultura, classe, ou mesmo gênero. Fazendo-nos entender o gesto do califa que mandou queimar os milhares de volumes da preciosa Biblioteca de Alexandria dizendo que, se todos aqueles livros dizem o mesmo que o Corão, são supérfluos, não precisam existir, e se dizem algo diverso ou contrário, não são verdadeiros e, portanto, devem ser queimados. Poderia ser considerado o antecessor, orientador e guia de todas as formas de censura e ditaduras, e de todas as tiranias implantadas e mantidas ao longo dos tempos, e ainda com presença e força indiscutíveis em pleno século XX (Hitler, Mussolini, Franco, Mao, Pinochet, Pol Pot...).

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Ou que leva ainda a distorções, como a de induzir as mulheres a usar pseudônimos masculinos. De que o exemplo mais famoso é o de George Sand. Mas que aqui no Brasil também aconteceu: tese de dou torado de Valéria Souto Maior (SC), fruto de cuidadosa pesquisa, comprova que, das 52 escritoras mulheres brasileiras que tiveram suas obras publicadas ao longo do século XIX, apenas 3 (três) não usaram pseudônimos masculinos - sem os quais não teriam sido aceitas pelos editores. E uma das três é Júlia Lopes de Almeida que (ao que dizem as más línguas...) só "ousou" manter o próprio nome porque o marido, Filinto de Almeida, intelectual de renome na época, lhe abriu portas. (O engraçado é que hoje o nome dela é muito mais conhecido que o dele...) As linhas dessa trajetória nos permitem, portanto, afirmar que o silêncio não foi apenas feminino. E entender porque é com satisfação que constatamos o imenso salto qualitativo que viria a ser dado por todos esses excluídos e marginalizados. A partir das décadas de 60/70 os diferentes movimentos - de mulheres, de negros, de comunidades, de descolonização - surgem com força expressiva em diferentes partes do mundo. Denunciando a opressão, a repressão como não-naturais, mas construídas social e culturalmente. Rompendo o silêncio por elas imposto. Enfatizando a necessidade de mudanças e transformações não só de estruturas, mas de mentalidades. Assinalando , a importância de conhecer, analisar e modificar o processo que implantou essas relações de poder e as formas de violência pelas quais ele se impôs ou se mantém. Formas entre as quais está o silêncio. Se é a fala que define, distingue e identifica o ser humano, silenciá-lo, seja a que pretexto for, é animalizá-lo, brutalizá-lo, coisificá-lo. E os que sofrem essa repressão o sabem por viver ou ter vivido isso. Pois se o ser humano é “o ser da linguagem” (Heidegger), uma das violências cometidas por essa civilização fundada no domínio e na força foi silenciá-lo ao longo de 2.500 anos. E silenciar alguém, repetimos, é uma violência – como bem sabem as tiranias quando amordaçam pela Censura todas as bocas, reduzindo populações inteiras ao silêncio. Reduzindo, sim: pois obrigar ao silêncio, seja a que pretexto for, é uma violência que desumaniza, transforma o ser humano em objeto, que se busca tornar manipulável ou massificado. 42


Até mesmo o animal tem direito ao grito, a expressar-se, mesmo que não pela palavra, marca humana criadora e desveladora. Resgatar o direito à fala, o direito de expressão é, portanto, resgatar algo que nos define como humanos. Direito a ser estendido a todos os que foram, ou ainda são, silenciados, excluídos e marginalizados nesta sociedade classista e racista em que vivemos. Para nós, que vivemos no Brasil, há, portanto, algo mais, que não pode ser passado em branco: os 21 anos da ditadura militar (1964-1985), em que o silencio não foi apenas imposição de uma Censura amordaçando todas as bocas. Se, nos interrogatórios, o silêncio dos interrogados foi, por vezes, uma forma de resistência, também o silêncio foi não raro, um dos instrumentos usados para "destruir um homem sem precisar matá-lo" - expressão terrível então ouvida - e cujo peso e força busquei fazer ver na fala dada a um personagem da peça "Represa", escrita na época, dando voz ao que tinha ouvido de alguém que esteve preso pela ditadura : "Vocês não sabem... Não sabem o que é ficar meses e meses em silêncio... Emparedado, trancado dentro de paredes estreitas e nuas... (foco de luz vai circunscrevendo sua figura e música, em sons distorcidos, sublinhando momentos de sua fala) fechado no silêncio. Era noite ou era dia? Perdi a noção das horas, do tempo, da voz humana... Só aquela luz baça, dia e noite, noite e dia... E quando vinha gente... eram eles que vinham! Eu ficava esperando, esperando... Não sabia quando iam vir. Só sabia que tinha que estar preparado, que tinha que ter forças, forças para aguentar, pra não dizer nomes, fatos, coisas que pudessem comprometer alguém! Eu ficava esperando. Silêncio. Nada. Mas eu sabia que eles iam vir! Aquelas paredes me fechando... aquele silêncio... me alucinavam. E eu só tinha uma ideia na cabeça: não falar, não falar, não falar! E aí eles vinham... Começavam aos poucos, iam aumentando, aumentando, pancada no estômago, nas costas, no corpo, golpes, gritos, choques... Choque elétrico, meu corpo sacudia... a gente estala, não aguenta, urra de dor sem querer, a cabeça gira, gira, uma só ideia, força pra guardar uma só ideia, não falar, não falar! (esgotado) não falar..." Na mesma época da ditadura, o silencio foi também vivido de outra forma: o silêncio do exílio e da clandestinidade, decorrentes da militância política. Que me levaria a ficar sozinha, isolada, em um lugar ermo, uma casa sitiada de matas, e estrelas, de nuvens, de espaços, sem eletricidade, sem qualquer forma de comunicação, convivendo apenas comigo, alimentada apenas de mim mesma. Silêncio de introspecção, de interiorização, da meditação. Silêncio que um trecho de conto então escrito registraria: "É em silèncio que examina a paisagem. Olhando de cima, contemplando do alto, pode separar as partes, ver as diferenças, consegue rever todo o panorama, e perceber onde é possível reencontrar seus pares, e onde é preciso cortar aparas, ou o que é preciso apartar para dar, a todos, estrada aberta e chão firme para andar. É em silêncio que ri dos homens-rãs, parados à beira de seus charcos, sua alma revirada em lama, a coaxar alto e estufar o peito para fazer crer aos tolos que são bois. É em silêncio que se volta para dentro de si, mergulha as mãos e seu rosto, o corpo inteiro, na água de seu poço, para buscar descobrir em seu fundo mais fundo a fonte mesma da palavra – aquela palavra que um dia, pela primeira vez articulada, fez o ser humano perguntar. E ao perguntar, e perguntar-se, ver sua imagem no espelho, reflexo que provoca sua reflexão e o faz descobrir nos olhos do outro sua alegria de serem iguais e diferentes, singulares e plurais. Não mais confusão, indiferença e conformidade primeiras, mas fusão com, o interno derramando-se em ternura que faz as mãos se encontrarem para a união e a ação. Na ausência de respostas escutando atentamente as perguntas. É em silêncio que fica ouvindo o silêncio, a linguagem mais funda, introduzida em sinais, sonda dos espaços, descida vertical até a origem do poço, da fonte e da água.

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Em silêncio, sem pressa, embora ainda sem pouso. É no silêncio que vão se fechando em noite os crepúsculos. É no silêncio que seu fogo e cinza se faz incandescência de uma nova aurora, sempre tão esperada e anunciada no canto dos galos. Pensei que fosse ser muito difícil ficar aqui sozinha. Não foi. Fui aprendendo a conviver comigo mesma. A me voltar para dentro. E a ouvir esse silêncio. Algo misterioso, desconhecido, oculto, inexplicado ou inexplicável. Que traz algo mais, que inquieta, levanta perguntas, leva a buscar mais fundo e mais longe. Que leva a dizer a mim mesma: estou viva. Viva. E como ser humano que sinto e sei que estou viva. Mas o que é, exatamente, estar viva? O que é isso que chamamos de vida? E que sabemos não ser apenas um coração por algum tempo batendo dentro de um corpo?" O silêncio. Múltiplo. Multifacetado. Podendo ser forma de agressão, capaz de isolar, confinar, enlouquecer, alucinar um ser humano, de "destruí-lo sem precisar matá-lo", como aprenderam em Fort Bragg os detentores da ditadura militar. Ou ser forma de resistência, como o foi no caso de tantos interrogados cuja única resposta foi o silêncio. Ou ser momento de introspecção, de meditação e mergulho interior, a pausa e pouso necessários ao caminhar. A fala feminina, que começa a proliferar nesta segunda metade do século XX, vai ser rica e significativa, e não se limita à luta pelos direitos civis ou pela progressiva inserção da mulher na vida pública, ou pela redefinição de papéis sociais, que vão permitir à mulher deixar de ser e sentir-se objeto e passar a ser, ver, sentir-se, e expressar-se como sujeito, e comprová-lo em sua ação e em sua fala. Christa Wolf, em seu Cassandra, pergunta em determinado momento: "Em que em que medida existe realmente uma fala feminina?" E ela própria responde: "Na medida em que as mulheres, por motivos históricos e biológicos, vivenciaram uma realidade diferente da dos homens. Na medida em que vivenciam diferentemente dos homens a realidade e por isso diferentemente a expressam. Na medida em que não fazem parte dos dominantes, e sim dos dominados da sociedade, que durante séculos existiram como objetos dos objetos, como objetos de segundo grau, ou muitas vezes objetos de homens que também são objetos ou seja, cuja situação social as fez, ou faz, membros de uma segunda cultura. Na medida em que abandonam a tentativa de se integrar no irracional sistema dominante e buscam sua autonomia, em sua vida, ou em sua fala e escrita. Encontrando-se assim com homens que aí buscam também autonomia. Pessoas, Estados e sistemas autônomos atuando reciprocamente uns sobre os outros como estímulos, não necessitando se confrontar ou lutar entre si, como é o caso daqueles cuja insegurança ou imaturidade intrínsecas continuam exigindo afastamento e dominação. E se ensaiássemos, por uma vez que fosse, substituir as grandes figuras masculinas da literatura universal por mulheres? Aquiles, Hércules, Ulisses, Édipo, Agamenon, Jesus, Rei Lear, Fausto, Julien Sorel e Wilhem Meister? O radar da literatura não as poderia detectar. A isso chamam de "realismo". E a existência das mulheres até hoje foi irrealista". A diferença. A noção da diferença trazida pela presença e a voz femininas tem sido seguidamente sublinhada. Essa fala feminina que, como acima apontamos, traz dimensões novas, registrando não só fatos e ideias que descrevem/narram/comentam sua nova presença no espaço maior do mundo atual como os confrontos e conflitos, rupturas e inovações que para tal e com tal se deram, mudando as relações interpessoais

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Romancista Virginia Woolf

e sociais. Trazendo uma maneira outra de ver, pensar e sentir o próprio cotidiano, antes julgado menor, e de atentar para o antes oculto, invisível ou impensado dentro do próprio real. Ou aprofundando dimensões esquecidas dentro do ser humano, ligadas à intimidade, à introspecção, ao segredo, ao mistério. Ou interligando o individual ao coletivo, na História e nas vivências, captando o plural dentro da singularidade. O que As Ondas, o conhecido romance de Virginia Woolf, poderia ilustrar ou exemplificar. O silêncio, que foi aqui o norte de nossa bússola, é o elemento central da consciência que se esboça a partir dos diferentes personagens que, em seus solilóquios, nos fazem compartilhar do que sentem, pensam e fazem: Rhoda se refugia em sua buscada solidão, fruto de sua insegurança e ansiedade diante do convívio humano e seus possíveis compromissos. Jinny, pelo contrário, é uma mulher que se compraz com a vida social a que se entrega e se liga apenas através de seu belo corpo. Susan vai vivenciar as emoções e incertezas da maternidade mudando de ambiente, fugindo da cidade para o campo. Bernard, escritor, contista, está sempre em busca da frase ou palavra mais sugestiva e adequada a dar expressão ao que deseja. Louis, em sua qualidade de forasteiro, está permanentemente em busca de aceitação e sucesso. Neville tenta encontrar o amor em ansiosa e permanente busca de algo transcendental na série de homens a que vai seguidamente se ligando. Mas, buscando ou trabalhando uma nova linguagem, em que os pontos se tornam complementares, a comunicação é também busca de um ser-em-comum. Não por acaso um Projeto de que participo, com sede na Itália e desenvolvendo-se em 12 países (Europa e América Latina), se denomina La Scrittura della Differenza / La Escritura de las Diferencias. O Concurso de Dramaturgia Feminina, aqui realizado em 2015, inscreveu 104 mulheres de 14 estados brasileiros que bem ilustram essa nova fala. Como assinalamos em ensaio escrito sobre o conjunto de obras, é grande o número de peças voltadas para a consciência de si, para um (re)conhecimento que é um (re)ver-se, analisar-se, interrogar-se sob as mais diferentes formas, dos monólogos à dramatização de experiências vividas, de encontros ou perdas que podem se aprofundar às dimensões de uma revisão existencial que indaga das próprias etapas da vida ou leva a interrogar quanto ao que lhe dá sentido ou significado. Ou enfocam as relações sociais e humanas, expandidas em um mundo que tem no social um de seus seixos, e pode levar tanto à deturpação dessas mesmas relações como ao aprofundamento de suas ligações com o político e o cultural. Ou retratam os comportamentos, atitudes e valores novos assim surgidos e espelhados. Ou vão buscar o sentido e significado dessa

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atuação, e, como a consciência é situada, aprofundando-a ou atualizando-a como consciência histórica, ligada às grandes transformações então vistas e vividas. Entre estas, as relações de gênero, exemplificadas na concepção da relação homem-mulher, por séculos hierarquizante e autoritária, e ora buscando equilíbrio ou igualdade. Não uma igualdade artificial, que anule ou ignore a diferença assinalada. Uma unidade que é busca, em cada ser humano, de ser inteiro. O que implica em nova visão do masculino e do feminino, como duas energias básicas do ser humano em seu estar-no-mundo. Retornando ao milenar esboço do Yin e do Yang. E à imagem do círculo tendo, no alto, à direita, a seta que dele sai apontando para o exterior, com a agressividade necessária à ação a ser aí desenvolvida - protótipo de masculino; e no mesmo círculo, embaixo, a seta que termina em cruz indicando o mergulho no interior, na intimidade e introspecção, nos sentimentos e afetos mais profundos, que estiveram associados a expressão do feminino. Com essa imagem, a reflexão e denúncia, geradora de uma nova forma de ver, de pensar e de agir: o masculino não está necessariamente associado ao homem, nem o feminino à mulher. Todo ser humano, para ser inteiro, tem de conjugar dentro de si as duas energias e utilizar cada uma a cada momento que a exija: sem essa energia masculina a mulher não conseguiria enfrentar o que hoje exige sua ação no mundo externo e ser capaz de aí afirmar sua voz e presença; sem o feminino, desdenhando seu interior, sua intimidade, sua voz, o homem estaria abafando parte fundamental do que o define como humano e que a cultura

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em outros tempos abafou, ao lhe dizer, desde menino que "homem não chora", ou que "o homem é um forte" e a demonstração de sentimentos "um sinal de fraqueza, dele exigindo ser Atlas virilizado e heroico carregando nos ombros o peso do peso do mundo. Inovação, visão, e busca de equilíbrio, que dariam lugar e peso à fala inesquecível Ricardo Reis (Fernando Pessoa): Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê tudo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive...

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oConto _____________________________________________________________________

OS LONGOS ANOS Jorge Sá Earp

Da sala viu sua cabeça deitada na cama no quarto do fundo do corredor. Dormia. Os cabelos brancos e a pele colada nos ossos. O queixo proeminente. Cedo de manhã finalmente encontrara o sono. A noite tinha sido tempestuosa de pesadelos. Muita pena da mãe. Mas fazia por ela tudo que podia. Agora tomava café com leite, pão e manteiga enquanto esperava a empregada, que tardava. A acompanhante se vestia para sair depois de relatar – como de praxe – a noite com D. Adelaide, noite que ela soubera muito bem como fora, plena de gritos e urros, mas com detalhes acrescentados pela acompanhante. Detalhes de antes dos sonhos tormentosos. Perguntara então se custara a dormir, se pedira chá ou leite, se voltara a insistir pela presença da filha ou se pedira para acomodá-la nos travesseiros. Nelí respondeu naquela manhã que não, que D. Adelaide adormecera logo depois de tomado o tranquilizante. Despediu-se então da acompanhante, suspirou fundo e se levantou da mesa. Deixara a louça toda ali pois Cida dali a pouco iria chegar. Já devia ter chegado, aliás. Se atrasava às vezes. Regina foi caminhando pelo corredor sentindo os primeiros ca-

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lores do dia. “Hoje vai esquentar...” Contemplou a mãe deitada na cama no quarto do fundo. O sentimento de profunda compaixão, no entanto, sendo substituído pela consciência do peso que aquela enfermidade impunha a ela, Regina. Suspirou de novo e se deixou cair na cama. Fechou os olhos e percebeu que o sono a submetia. “Quase não preguei o olho esta noite com os gritos de mamãe”. – ela ia dizer a Cida logo que chegasse. “A Cida tem se atrasado demais ultimamente”. – Regina ia reclamar com a filha mais tarde à noite pelo telefone. Quando o sono a ia conduzindo com seus braços leves, ela escutou um ronco surdo no quarto da mãe e um tilintar da louça e talheres na cozinha. Para lá se dirigiu e trocou com a empregada antiga o diálogo de costume. Na noite em que D. Nelí não podia vir, era Cida quem a substituía. - E nesses pesadelos ela chama muito a mãe. – contou Regina. Maria Aparecida a encarou com um sorriso compassivo, em resposta à frase que não lhe trazia nenhuma novidade. - Mamãe era muito ligada a vovó. Já vou, mamãe, já vou, ela dizia obediente como se vovó estivesse ali em frente. Outra noite ela chamou pelos irmãos Adolfo e Floriano... meu deus, mortos há já não sei quanto tempo... quando ela era menina, adolescente ainda. Tinha adoração pelo Adolfo, era bonito, oficial de marinha, você já viu retrato dele, Cida? - Já vi, sim. Um dia a senhora me mostrou. - A mulher foi uma peste pra ele. Morreu de desgosto. Desgosto do casamento. - A senhora me contou. – e o jorro d’água fazia xuá no fundo da pia despejando-se sobre a louça engordurada, misturada à espuma de detergente espremido da esponja pelas mãos de Cida. - Vai descansar, D. Regina; a senhora não dormiu bem essa noite. Passou ainda uma vez pelo quarto de D. Adelaide e disse consigo mesma: “Pelo menos estou com a consciência tranquila. Tenho feito tudo, tudo pela minha mãe. E Adelaide agora, cedo de manhã, parecia ter conseguido o repouso merecido, horas antes estilhaçado por relâmpagos de imagens do abismo. * A chuva forte caíra depois do dia quente. O limpador de para-brisa a custo lhe devolvia a visão da rua. À sua frente, por entre o embaçado e gotas d’ água, via os carros parados, as luzes vermelhas das traseiras, pedestres que aproveitavam o engarrafamento para atravessar fora do sinal, abrigados por guarda-chuvas ou não e a chuva revelada pelas luzes dos postes. Cruzou as mãos no volante e ali apoiou a cabeça. A irritação tinha cedido espaço ao cansaço. Sempre quando chovia o Rio ficava assim. Normalmente já era um trânsito da porra. Com essa tempestade... E o pior era o medo de ser assaltada nessas

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paradas que apreciam infinitas... E a fome se somou ao cansaço. E a música do rádio que há poucos minutos era agradável, agora a irritava a tal ponto que escolheu um cd e enfiou-o na frincha do aparelho. Até mesmo a música escolhida a cansou. Bom, até que enfim o trânsito andou. Deu primeira mas com a quase certeza de que ia estacar logo adiante. E a chuva que não passava. E a visão à sua frente mais enevoada, pontos de luz e cores tão dispersos como num quadro impressionista. Um amigo seu tinha uma pintura que era justamente a visão de uma fila de carros de uma janela embaciada pela chuva. Chegar em casa e beijar o filho. Abraçar e beijar Bruno. Mas logo depois o telefone estridulava: mamãe e suas histórias de vovó. Vovó na cama, vovó e seus gritos durante os pesadelos chamando pela mãe e pelos irmãos mortos. Às vezes faço companhia mas não aguento, simplesmente não aguento. Mônica você é egoísta, Mônica você tem que me ajudar – não, ela não fala isso mas sinto que sente isso quando me olha, quando eu digo que não vou poder ficar com vovó no domingo. E por que não um asilo? Não, minha mãe eu não vou por nunca num asilo. Tem umas casas de repouso, eu não tou falando asilo, mamãe, umas casas de repouso excelentes, feitas pra gente rica ou pelo menos pra classe média que nem a gente... dá pra pagar... Aí ela ia se sentir bem... Minha mãe não tem condições, Mônica! De ficar num asilo ou casa de repouso ou sei lá o quê! Ela está inválida, você não entende? Inválida! Mal consegue se levantar da cama, sou eu que tenho que dar banho nela porque as empregadas ela não aceita... - Mas tem que aceitar, mamãe! Regina acendeu um cigarro e se sentou no sofá da sala. Não conseguiu encarar a filha. - Você não está mais em idade... - Eu posso, Mônica, eu ainda posso! Ela não deixa nem a Nelí que é mais jeitosinha, que é enfermeira, nem a Dalva, que foi empregada dela quanto mais a Cida... - Porque é negra! - Não fala assim... - Ora mamãe, você sabe como a vovó é racista! Sempre foi! Não deixa elas tocarem nela porque são pretas, mulatas... Regina cruzou a perna e a deixou balançando. Deu um gole no uísque e aspirou forte a guimba do cigarro. - Até com o Zeca ela implicava porque ele tinha cabelo crespo! - A minha mãezinha, a minha mãezinha querida... Não implica você com a minha mãezinha... Você quer é se livrar dela botando ela num asilo! Mônica abaixou ligeiramente a cabeça, uma mecha quase tapou-lhe um dos olhos e olhou a mãe de viés.

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“Mamãe não entendia que eu não estava sugerindo ou tentando convencer ela de colocar vovó num asilo. Estava, no fundo, pensando era nela, na saúde dela. Mamãe já não tem idade nem forças pra levantar vovó da cama como ela vive exigindo.” -Mamãe é filha única, Bruno. E vovó... - Coitadinha da vovó. – quando o filho disse essa frase Mônica, além de sentir a incompreensão do filho, pressentiu uma raiva borbulhando dentro de si. Quis afastar esse pequeno incêndio no coração mas a prisão imposta pela avó a Regina teimava e soprar cada vez mais as brasas. Moveu então o pensamento para a infância com o intuito de se apaziguar e reviu o rosto da avó mais morto ou nem tão velha como agora, bem à sua frente, de olhos fechados deitada na cama. Um rosto quase colado ao seu; ela pequena e a avó enorme, gorda como cinco travesseiros juntos, com uma fisionomia pacificada, dormindo. Anos depois ela começou a ressonar, mas naquela época, seu sono era tranquilo. D. Adelaide a chamava para ir dormir com ela em sua casa na vila da rua dos Oitis. Ficava a dois quarteirões do edifício deles na Major Rubens Vaz. E Mônica gostava de fugir de casa para dormir com a velha e antes de ir para cama comer gemada que ela batia com força e canela. Ou leite queimado. Às vezes doce de abóbora. E agora ela queria metê-la num asilo, se livrar dela. “Mas vocês têm que entender: eu estou pensando na mamãe!” – Mônica gritou em silêncio para si mesma vendo de repente seu reflexo no espelho do quarto. Abraçou Bruno, que encolhido via televisão na cama com ela. Será que – especulou – Bruno também... um dia? * Regina mesmo em frente à televisão, ficava de sobreaviso pois a qualquer momento a mãe poderia chamá-la. Há anos Adelaide tivera uma isquemia. Todos pensaram em derrame fatal, porém ao recuperar os sentidos constataram a perda de sua capacidade locomotora. Não podia mais andar. De natureza vaidosa e caprichosa, deslocar-se montada numa cadeira de rodas era humilhante. Sentia-se diminuída, imprestável. O humor, que nunca fora dos mais alegres, mudou, tornou-se mais melancólico. Da cama para a cadeira, ajudada pela empregada (“Você está me machucando!” “A negra não tem jeito para me segurar; Regina!” - Não fale assim, mamãe; a Cida pode escutar...) e D. Adelaide era conduzida – como fazia sempre questão – à mesa nas horas sagradas das refeições. - Não como na cama. Não estou em hospital! - O remédio, Cida. - Que remédio? O da senhora ou os da D. Adelaide? - Ciiida!!! A mulata arregalou os olhos na cozinha. - Tomei o lexotan da mamãe por engano! Ela deixou escapar um riso ao rever a cena, o sono súbito, o caminhar lento e árduo até o seu quarto, onde se estatelou na cama e caiu num poço escuro até altas horas da noite. 51


- Um uísque. - O quê, mamãe? - Eu quero um uísque. – D. Adelaide ordenou imóvel sentada na cadeira de rodas junto à mesa de jantar. O amigo de Roberto aí foi ele quem arregalou os olhos. - Que idade tem mesmo a sua avó? Cida trouxe o copinho de licor com uísque puro, que a velha senhora virou garganta adentro. O visitante se espantou mais ainda quando D. Adelaide exprimiu nova ordem: - Me traga o vinho, sim? - Ainda vai tomar vinho? - Bom... antes ela tinha esse hábito no sábado ou no domingo durante almoços de família... – explicou Roberto também com um ar preocupado. - Um copinho só, mamãe! – Regina gritou no ouvido da progenitora. – ela tem que tomar remédios depois... – esclareceu ao filho e ao amigo, que continuava de olhos dilatados. Regina sorriu ainda mais ao lembrar essa cena e malevolamente a seguinte quando a mãe engrolou a voz depois de ingerir as pílulas habituais. - Tenho que rir, Cida... Olha: mamãe está me chamando de novo. Ah, é um calvário... O que é mãezinha? Adelaide a mirava pálida com o mesmo olhar súplice. Poucos traços restavam da fisionomia que estampara na infância de Regina; ou de sua adolescência. Permanecia uma leve semelhança com a Adelaide de outrora, só identificável por estar ali ao pé dela na beira da cama. Mesmo a voz guardava vagos resquícios da de antigamente: agora era rouca e grossa, quase masculina. - A velhice é muito chata, meu filho... – ela tinha desabafado com Roberto num fim de semana em que ele viera de visita. Mas onde está Roberto que não liga e que não vem? Ultimamente tomou chá de sumiço. Roberto não gosta de problemas e quando me vê assim toda dedicada à mamãe... - Me disse outro dia que está com um projeto importante, que tem trabalhado até nos domingos... - Desculpa, mamãe, desculpa pra não vir aqui e ter que se chatear com as suas lamúrias sobre vovó! – Mônica retrucava. - Mas que lamúrias? E eu lá me lamurio? No quarto no fundo do corredor aquela respiração opressa. De dia ela dormia, de noite não. De noite eram os gritos e pesadelos. Os irmãos e a mãe. Talvez Adelaide visse espíritos ou eles aparecessem para levá-la. Ah não... não estava desejando que a

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sua mãezinha se fosse – Deus me perdoe -, mas se isso acontecesse ou quando a morte vier, isso sim, será um alívio para ambas. - Tenho pedido a Nossa Senhora que me leve, Regina... - Regina! Regina! – era ela de novo em plena tarde. - O que é, mamãe? A filha encarava Adelaide pálida na cama, a cabeça voltada para ela, os olhos suplicantes, um escasso brilho entre as rugas, os lábios secos e fendidos, a pele flácida do pescoço, o queixo proeminente. Repetiu a pergunta entre aflita e impaciente e até com raiva, uma raiva originada no cansaço. Adelaide não respondia, se limitava a balançar negativamente a cabeça. Talvez tivesse se esquecido por que a chamara, talvez a chamasse por mero hábito ou talvez tivesse apenas despertado de um sonho ruim. Depois de anos da cama para a cadeira de rodas e desta para a cama, agora já mal se levantava. Só para tomar banho, o que era feito em meio a protestos. Como uma criança. E as pobres Aparecida e Nelí às vezes lutando juntas para lavar a senhora. - Vocês bem que estão gostando, hem? Vocês bem que estão gostando... eu sei porque. – ela murmurava numa espécie de delírio. - Mamãe, por favor! Deixem, deixem que eu dou banho nela! – Regina intervinha. O corpo da mãe branco, flácido e gordo. O que se tornou a bela e elegante Adelaide dos anos trinta do Rio de Janeiro. E Regina a custo segurava a mãe dentro do Box, debaixo do chuveiro. E Roberto que não aparece? O jorro de água caía pela pele em dobras, os seios caídos, as nádegas moles, fartas de gordura. Os cabelos brancos e ralos protegidos por uma touca, os olhos espremidamente fechados, a cara franzida. Roberto podia ao menos dar um telefonema. Tem dias que não dá notícia. Que raio de trabalho é esse que não tem tempo nem pra ligar pra mãe pra saber da avó? * O sol abandonava as nuvens cor-de-rosa e o céu ganhava tons de azul claro e escuro. Ao fundo o ruído do avião. Roberto reclina a cabeça no assento e fecha os olhos. Daqui a pouco estariam aterrissando. Mônica tinha-lhe telefonado nervosa, até mesmo gritado num daqueles seus ataques histéricos. Dizia que ele tinha abandonado mamãe e vovó. Tentou se desculpar com a falta de tempo mas não adiantou; Mônica continuava gritando do outro lado da linha. Sobrepôs então sua voz insistindo que ia pegar a ponte aérea naquela hora para o Rio se a situação se tornara tão grave como Mônica descrevera. E desligou na cara daquela menina raivosa. Menina não que já era mais do que mulher feita.

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Tinha que se desculpar com o excesso de trabalho, o que não estava longe da verdade. Não podia era contá-la toda, não podia – apesar de tanto Regina quanto Mônica se dizerem liberais e tentarem se comportar de maneira, digamos, aberta – não podia era revelar que ultimamente sua vida estava sofrendo a crise da ruptura de sete anos de caso com Rodrigo. Descobrira a traição, e Rodrigo mesmo se dispôs a ir embora. No início decisão e raiva mas depois que o viu sair com as malas e bater a porta do apartamento, sua vida descer em uma espiral de tormenta. Não conseguira pensar em outra coisa e dera as costas para o falecimento lento da avó. Agora o avião pousava sobre um Rio de Janeiro já vestido de noite e dali a pouco Regina estaria à sua frente radiante de felicidade. No táxi entre o Santos Dumont e a Gávea, lembrou de quando D. Adelaide ainda morava na rua dos Oitis, e eles na Major Rubem Vaz. Roberto já trabalhava em São Paulo mas na época ainda sem escritório próprio. Regina e ele tomavam uísque na sala; e sua mãe recontava o quanto D. Adelaide a havia “castrado” em sua mocidade. Recontava – e Roberto às vezes punha a mão na boca para abafar um bocejo, embora as lágrimas nos olhos revelassem seu tédio diante de histórias e lamúrias tantas vezes expostas – que a mãe a pusera no colégio interno quando enviuvara e que a obrigara a trabalhar antes de completar o curso ginasial e que controlava suas saídas com as amigas na adolescência numa Gávea somente povoada com casas e onde o bonde tinha seu ponto final na praça do Jóquei. Repisava o remorso de ter permitido D. Adelaide de guardar ainda o molho de chaves que lhe franqueava livre acesso à casa, o que a possibilitava irromper sala adentro quando Regina e seu pai e às vezes um ou dois amigos conversavam tomando uísque na sexta ou no sábado á noite. Seu pai fechava a cara, os convidados se continham cerimoniosamente, ela se limitava a ficar sem-graça e D. Adelaide franzia ainda mais o cenho ao vê-los intoxicarem-se de bebida. E quando seu pai voltava tarde da noite, em suas escapadas boêmias, a mãe nunca deixava de perguntar-lhe ou pelo telefone ou pessoalmente se Cláudio já saíra para o trabalho ou – caso fosse sábado ou domingo – se o genro continuava dormindo. Roberto fazendo as vezes do muro de lamentações quando de repente escutei o ruído da chave na porta e ali surgiu no limiar D. Adelaide, não mais em sua postura altiva de alguns anos antes mas já meio encurvada pelo tempo e com a fisionomia quase conformada. Regina então saltou do sofá e foi saudá-la tomando-lhe as mãos enrugadas mas bem tratadas. Com expressão súplice disse: - Minha mãezinha querida... Como você está? Está precisando de alguma coisa? – e a acarinhava com dois beijos nas faces. Abriu a porta radiante ao vê-lo. Expirou forte e desabafou que andava cansada, esgotada mesmo, embora Roberto lhe perguntasse enquanto levava a mala em direção ao seu antigo quarto, que tinha sido transformado em saleta de televisão, se as acompanhantes não a aliviavam. - Mamãe me requisita toda hora. Ela não quer saber das empregadas nem da enfermeira. Agora ela está implicando é com a Nelí. Antes era com a Iraci. Com a Cida ela só não implica porque serve ela há muitos anos. E você? como é que está, meu filho? E o trabalho? Cê me disse outro dia, pelo telefone, que vai outra vez pra Nova York... Mas não era pra Londres? E o Rodrigo?

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Não adiantava tentar responder; Regina o metralhava com perguntas quase que como um hábito; quando Roberto abria a boca para tentar emitir uma resposta, a mãe o bombardeava com outras mais ou com notícias sobre o andamento do estado de saúde da moribunda. Porque era assim que Roberto a viu estendida na cama depois de meses, quase um ano, sem visitar a avó: um quase cadáver estendido no leito. O queixo proeminente, a pele cor de cera colada aos ossos, de olhos fechados, em placidez de morta. - Terminei com Rodrigo. – ele informou mesmo que a mãe já tivesse se esquecido da pergunta. Antes de retrucar, Regina suspirou: - Acho que até foi melhor pra você, meu filho. Talvez você não goste do que eu vou falar mas, na realidade, nunca gostei muito daquele rapaz. Ele não era do seu nível. Roberto ainda tomou mais um uísque e depois do jantar foi dormir. No dia seguinte Mônica e Bruno viriam almoçar com eles. Durante o almoço, a irmã o acusou de estar sempre longe. - É o meu trabalho... o que que eu posso fazer? - O seu trabalho mas você pode aparecer aqui no rio de vez em quando... Afinal você mora em São Paulo. – ela contra-atacou. O dique arrebentou quando Roberto anunciou que sua firma o havia designado para chefiar a representação em Londres. - Você quer é fugir dos problemas! – a irmã bombardeou. – E eu fico aqui sozinha com todo o peso nas costas! Acaba um caso, foge pro exterior! Vovó morrendo e cê se manda pra Londres! Maravilha! - Peraí, Mônica... também não é assim... - Calma vocês dois... – Regina contemporizou. - Calma não! Roberto se levantou da mesa e, em meio aos protestos da mãe e da irmã, bateu a porta de casa, não sem antes passar as mãos sobre os cabelos macios de Bruno. Descendo a ladeira lembrou de protestos semelhantes das tias-avós quando ele se erguera para deixar a saleta quando uma delas começava a falar mal de seu pai. - Safado! – invectivara tia Adélia. Caminhou da Gávea até o Leblon. Se sentou junto a um quiosque na beira da praia, pediu uma cerveja e contemplou o mar. A tarde declinava. Rodrigo. Rodrigo e seus olhos cor de mar. Cabelos crespos macios. Pipas amarelas e laranja contra o céu. Uns garotos chutavam uma bola na areia e na calçada carrinhos com bebês. Atletas correndo. Mãos toscas atiraram dois amendoins com casca na sua mesa. *

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Do banheiro escutou o telefone tocar. Teve um pressentimento. Há dois anos fora aquele fim de semana com a família no Rio. - Mamãe morreu essa madrugada. – escutou a voz de Regina do outro lado da linha. Confessou o seu pressentimento à mãe. - Não, meu filho, você não precisa vir pro enterro; sei que tem muito trabalho aí em Londres. Descendo os degraus da estação do metrô, imagens de D. Adelaide vinham e revinham. Escutou o rumor do trem e o viu chegando. As portas se abriram, multidões saíram e entraram. Roberto virou-se e voltou a subir as escadas. Um vento frio cortoulhe o rosto, e ele ergueu o olhar para o céu cinzento. Caminhou muito ao longo do Tâmisa até chegar ao trabalho. Milão, 14 de outubro de 2013.

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Crônica ____________________________________________________________________

CORUJA Raquel Naveira Sobre um poste, entre árvores de folhagens densas, brilhava uma coruja: lâmpada, bruxa, magia seleta. Seus olhos amarelos, destacados como faróis na noite de lua, fixam-se em mim e quase posso ouvi-la chamar meu nome. Enquanto ela remexe as asas e afasta os óculos de aros pretos, lembro que essa dominadora da morte, guardiã das moradias escuras, era a ave que acompanhava Atena ou Minerva, nomes grego e romano da mesma deusa da mitologia. Era a deusa da sabedoria; da pureza e da autonomia; do trabalho incessante em prol da civilização; da guerra justa, calcu-lada como estratégica forma de arte. Patrona dos ofícios e da cultura da oliveira, fonte sagra-da de óleo e unção. Nasceu de uma agressão, um golpe de martelo de Hefestos ou Vulcano na cabeça de Zeus. Nasceu, portanto da cabeça do pai, da razão, vestida com uma armadura masculina, empunhando uma enorme lança de prata.

Como professora, formada em Letras, sinto-me representada pela coruja. Ela é inteligente, arguta, sensível, com visão e audição potentes percebe segundas intenções no barulho do vento. A sua cabeça redonda como um globo terrestre derrama pensamentos uni-versais e conceitos filosóficos por todos os cantos do mundo. O seu coração pulsa no peito, pois é preciso ensinar com ousadia, generosidade, coragem e aprender ensinando. Platão a tomou por conselheira, pois a considerava protetora dos artesãos e admirava sua capacidade de ser prática. Como símbolo do magistério, geralmente ela é

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desenhada com capelo, diploma e capa debruada de arminho, sobre livros e lápis, que ela agarra com firmeza intelectual, cultura e pedagogia. A cauda de lado sinaliza o equilíbrio de sua personalidade segura. Identifico-me também com a coruja como mãe, com a expressão popular “mãe coruja”, que surgiu graças à célebre fábula “A Coruja e a Águia” do escritor La Fontaine. Conta a história, que a coruja encontrou a águia e lhe disse que se visse uns passarinhos muito lindos, num ninho novo, com biquinhos em forma de castanhas, que não os comesse, pois eram seus filhos. A águia prometeu que não os comeria. Foi voando pelos altos picos e encontrou numa figueira um ninho de folhas frescas. Abocanhou todos os filhotes. Quando a coruja chegou e viu que lhe tinham comido os filhos, foi ter, muito aflita, uma conversa com a águia. A coruja argumentou que a águia fora falsa e quebrara uma promessa. A águia defendeu-se dizendo que encontrara uns pássaros feios, desengonçados, sem bico e que fora enganada pela cegueira da coruja. Aos olhos das mães, os filhos são perfeitos. Fecha-se a fábula com a seguinte moral: “Quem ama o feio, bonito lhe parece.” Não escapo. Sou uma mãe coruja, preocupada com meus filhos. Gostaria de protegê-los sempre e, embora às vezes incompreendida, cubro-os com fé e amor. A coruja impõe respeito. Não se pode caçá-la como um pássaro qualquer, nem comer sua carne. Está lá impresso na lei judaica que não se pode comer coruja-dechifre, coruja-de-orelha-pequena, o mocho, a coruja branca, a coruja pescadora e a coruja do deserto. Seria como fazer um pacto louco com as trevas. Quando esta Babilônia em que vivemos ruir, com todo o seu sistema econômico, político e religioso, que nos seduz e suga nosso sangue, a cidade apocalíptica será reduzida a possessão de corujas e lagoas de águas, varrida com a vassoura da perdição. Contemplo a coruja sobre o poste entre as árvores copadas do grande Parque dos Poderes. O seu pio forte estremece meu coração. Mantenho-me serena. Sou um ser que medita e se entrega a chuvas e tempestades, como ela. Tenho certeza que chamou meu nome.

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Poesias __________________________________________________________________

QUANDO Ana Luiza Almeida Ferro Quando a última luz se apagar a noite eterna será meu sol as estrelas piscarão no atol e eu lá, pequena, a cismar. Quando a última voz se calar ouvirei o silêncio dos ressentidos soltarei o grito engasgado dos contidos em meio à solidão do mar. Quando o último perfume se esvair buscarei a fragrância das flores com o cheiro de mil amores e me porei, surpresa, a sorrir. Quando o último sabor se perder encontrarei o gosto da vida no doce aceno da partida e degustarei as delícias do ser. Quando o último toque se findar sentirei a chama que me consome apalparei a frágua da minha fome e descobrirei o verdadeiro lar. Quando a última porta se fechar daquele parapeito da janela do tempo verei a vida passar em contratempo e me olvidarei nas asas do sonhar.

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PÉRIPLO A NORTE DE TUDO (Excerto) Getulio Neves

Um rio passa em minha terra – ‘Inda que não seja propriamente minha Nem eu propriamente dela Mas em sendo lá que foi Que vi o mundo – E o mundo dividido era ao meio Pelo rio Cujas águas me alumbravam o coração de menino E eu inteiro, cativado, Nunca deixei em mim morrer o rio E o rio que corre no meu peito Sempre, em qualquer latitude, É o mesmo, Doce, manso Rio Que só atraiçoa mesmo ao despejar-se ao mar Vindo, que veio, de sertões adentro Pejado em dolorices Externado em mil volteios Corrompido em sujidades Rasgando entranhas no quinhão Poeiroso – veio Faltos ambos de sentido entre os veios líquidos “És, rio, quem a mim me vês Ou sou eu que em ti me miro?” Faltos de sentido são quem alcançar não pode Os cursos das vidas banhadas inteiras Em redor de seu leito, despejado e hirto Um rio passa em minha terra E no fundo eu, ora quem me dera, Adentrar-me-ia todo no seu leito ambíguo A buscar nas águas de um sonho outrora Me fluir relíquias, revivendo auroras.

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Registro _____________________________________________________________________

Sexameron: Novelas sobre casamentos por Luiza Lobo Tradução para o italiano de Maria Aparecida Fontes. Sexameron, Novelle sui matrimoni. Traduzione e postfazione di Maria Aparecida Fontes. LaBra / 1. Roma, Aracneeditrice, 2016. 148 p.

Sexameron narra diversas estórias sobre um grupo de jovens que se refugiam da peste que assola a sociedade num castelo existente no alto do bairro do Humaitá, no Rio de Janeiro. Essas novelas refletem o ambiente de peste – na verdade a AIDS – que domina a todos, relatando fatos ligados à vida de cada um na sua sexualidade e aventura diárias. Impossível à autora – que utiliza o nome de Margarida de Navarra – não recuperar a peste que serve de Leitmotiv a Boccaccio quando este escreveu o Decamerone, passado na cidade de Florença, onde jovens se referem à peste enquanto se refugiam num castelo, reconstituindo histórias populares picantes. Em Sexameron, cada autor de seis contos – seis e não 99 ou 100, como no Decameron - cada narrador adota um nome da mitologia clássica, ocupando-se com relatos de histórias e sua audição, já que todos os meios de comunicação – jornal, informática, telefonia – desapareceram após a grave crise de AIDS que assolou a cidade. A adoção de nomes mitológicos é feita por cada narrador num prólogo a cada história. Ela se inspira numa outra 61


leitora de Boccaccio, exatamente Margarida de Navarra, que publicou o Heptameron em francês, no século XVIII, dando-lhe, no entanto, um retoque culto e não popular, como no Boccaccio original. Trata-se aí de 70 novelas, todas de perfil culto, não só quanto aos personagens quanto à linguagem utilizada nas narrativas. A peculiaridade de Sexameron é a identificação entre o número seis (novelas) com o conteúdo implícito das novelas: sexo. A palavra sexameron pode indicar seis. Mas por que seis, e não sessenta, como nos autores precedentes que serviram de modelo a Luiza Lobo? Porque o mundo como conhecido até o século XX terminou e foi encontrado apenas um manuscrito abandonado sob um banco por alguns poucos remanescentes de uma sociedade tornada impossível pelo seu próprio encaminhamento cultural. Metáfora possível para a era pós-moderna, em que a cada momento nos perguntamos se haverá futuro para aquilo que criamos no mundo, deformando-o e hipertrofiando-o de forma incontrolável. O livro termina com um texto adaptado a partir do próprio Boccaccio por Margarida de Navarra, que é o pseudônimo da escritora brasileira. No posfácio, a tradutora e ensaísta Maria Aparecida Fontes traça um perfil literário de Luiza Lobo, professora de Literatura Comparada da UFRJ, e comenta seu romance Terras proibidas, da editora Rocco (2010), prêmio de narrativa do Pen Clube do Brasil, e o Guia de escritoras da Literatura Brasileira (UERJ, 2006) (p. 139146). Além disso, apresenta o ensaio “L’ago, il fuso e l’arvolaio” (p. 109-137), em que discute questões de antropofagia (canibalismo?) fazendo referências ao próprio texto e ao banquete de Antinoos, por exemplo. O livro tem tradução de Maria Aparecida Fontes, professora de Literatura Brasileira, atualmente pesquisadora da universidade de Studi di Padova e pode ser encontrado em papel e em forma digital no endereço da editora: www.aracneeditrice.it

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Posse ____________________________________________________________________

EDMÍLSON CAMINHA NO PEN CLUBE Saudação de Fabio de Sousa Coutinho

Presidente Cláudio Aguiar, Ilustres confrades, Senhoras e Senhores, Caríssimo Edmílson Caminha, O escritor que hoje recebemos no glorioso e octogenário PEN Clube do Brasil figura entre os melhores cronistas da língua portuguesa, sejam quais forem a época, o lado do Atlântico e o continente de que se a observa. Infelizmente, contudo, uma calada conspiração da indiferença umbiguista impede que se saiba disso, não apenas em Portugal e na África, mas também nas regiões Sudeste e Sul de nosso país. Até hoje, a extensa obra de Edmílson Caminha, cultivada com esmero, paciência, criatividade e originalidade por este artífice do vernáculo, era de conhecimento exclusivo do Ceará, do Distrito Federal e de alguns privilegiados leitores de fora, como o poeta e biógrafo baiano João Carlos Teixeira Gomes, para quem Caminha é autor de “um dos mais lúcidos e profundos estudos existentes na nossa crítica sobre a relevância do memoria63


lismo como criação literária, (...) em que ele efetua, pela primeira vez, a classificação e a tipologia do gênero.” Já destacou, também, Teixeira Gomes, que “do mais alto relevo são (...) as revelações contidas em estudo básico sobre Rachel de Queiroz, editado pela Academia Brasileira de Letras, relembrando as passagens essenciais da vida da magnífica romancista.” A eleição de Edmílson Caminha para o PEN Clube do Brasil, o reduto nacional da promoção da literatura e da defesa da liberdade de expressão, surgiu, assim, com o propósito de sanar essa gritante falha de autoconhecimento da cultura brasileira. No parágrafo vestibular do capítulo intitulado Massangana, de seu clássico Minha Formação, o inigualável Joaquim Nabuco assinalou: “O traço todo da vida é para muitos um desenho de criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...” Viajante contumaz, hoje conhecedor dos quatro cantos do planeta Terra, Caminha soube invariavelmente carregar, na mala que leva sobre a cabeça, a origem cearense de que sobremodo se orgulha, a do menino que nasceu, cresceu e se fez homem em Fortaleza, mas dela partiu para o mundo, fixando tudo em crônicas saborosas, captando o novo e a novidade como a criança intelectualmente curiosa que sempre foi e registrando-os em livros cultos, prazerosos, instigantes. A impressão que sobeja da fatura literária de Edmílson Caminha é a de que o livro é quase a concretização de um múnus público, ou seja, algo que dá aos outros qualquer coisa em termos de informação, de distração, de direito à felicidade. Um texto que faz o leitor ficar pensando nos viajantes, na geografia, na história, deixando fluir a imaginação, até mesmo embarcando com o autor. Nas palavras inspiradas do fenomenal escritor espanhol Javier Marías, “às vezes tenho a sensação de escrever prosa com a paciência e o senso de ritmo com que o poeta escreve seus versos.” E não basta escrever bem, tão bem que o leitor, a certa altura, pare de ler porque não segue uma aventura de viajante atento, observador, perspicaz, mas um mero, burocrático e enfadonho roteiro literário. Escrever é uma serventia oferecida à sociedade, a exemplo da medicina, da arquitetura, da carpintaria. É, como evidenciam os 64


livros de Caminha, uma prestação de serviço público, pois ele escreve para os outros, para quem, por enquanto, não pôs a mala na cabeça, mas, se e quando o fizer, será um viajante mais completo, mais educado e sábio. Em suma, o novo Membro Titular do PEN não escreve, jamais escreveu, para si, nem para seu grupo de amigos, muito menos para os críticos. Fá-lo erga omnes. Querido confrade Edmílson Caminha: sem conseguir escapar da força avassaladora do duplo sentido de um trocadilho, vislumbro que Vossa Senhoria ainda está fadado a alçar novos e mais altos voos. Aqui, nesta bela sede do PEN Clube do Brasil na Cidade Maravilhosa, de há muito era urgentemente esperado. A casa é sua: pode entrar, instalar-se na cadeira que conquistou com tantos méritos e competência tanta e conviver fraternalmente, enquanto merecermos o extraordinário dom da vida. Muito obrigado.

Cláudio Aguiar, Edmilson Caminha, Antonio Carlos Secchin e Fabio de Souza Coutinho.

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NO PEN CLUBE DO BRASIL, A CASA DE VILLAÇA Edmílson Caminha

Senhor Presidente do PEN Clube do Brasil, Cláudio Aguiar; Senhora Vice-presidente do PEN Clube do Brasil, Ana Arruda Callado; Acadêmico Fabio de Sousa Coutinho, amigo do coração, escritor brilhante, que fraternalmente me saúda quando chego a esta Casa; Acadêmico Antonio Carlos Secchin, nome que engrandece a literatura brasileira e dignifica as instituições a que pertence; Ana Maria, minha mulher e minha razão de viver; Amigos e colegas, a quem agradeço a homenagem da presença e a emoção do encontro; Minhas Senhoras e meus Senhores: Com muita honra, chego ao PEN Clube do Brasil, congregação de homens de letras que, em 2016, comemora 80 anos de luta em favor da dignidade, da justiça, da liberdade de pensamento e de expressão a que todo ser humano tem direito. Como bem declarou Marcos Almir Madeira, ao assumir a presidência desta sociedade em

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1972, somos, os que dela fazemos parte, “pela convivência intelectual com todos os povos, acima da política ou apesar dela. Por uma política cultural acima da classe, da crença e da cor.” Sei que devemos reconhecimento e admiração a Cláudio de Souza, nosso fundador e primeiro presidente, mas me seja dado enaltecer o PEN Clube do Brasil como a “Casa de Villaça”, o grande escritor Antonio Carlos Villaça, que lhe ocupou a vicepresidência. No 9° andar deste número 172 da Praia do Flamengo, Ana Maria e eu o visitamos muitas vezes, pois que o memorialista admirável de O nariz do morto realizava o sonho dos que temos a paixão da literatura: morar em uma biblioteca, inquilino que passou a ser da pertencente ao PEN Clube, por decisão generosa do presidente Marcos Madeira. Recebia-nos sentado em uma velha poltrona de couro, a enseada do Flamengo vista pelo janelão à frente, como o mais belo quadro que um carioca possa expor na parede. Ali era visitado por amigos e admiradores, para conversas em que lhe satisfazíamos, também, o gosto pelas fofocas literárias, ele que, como as comadres do Nordeste, não saía de casa mas sabia de tudo... Raramente, voltávamos do encontro sem o pacote de livros que costumava nos oferecer, como a coleção, com que me presenteou, das sete primeiras edições, hoje raras, da Convivência, revista do PEN Clube que se pretendia semestral. O número 1, de novembro de 1973, traz o artigo “Rui, uma presença”, em que Antonio Carlos Villaça, com a lucidez que lhe era própria, escreve sobre o ilustre baiano: “Terá sido um homem de ação? Ou um homem de gabinete? A contradição fundamental de sua vida, a meu ver, é a do homem de gabinete que se volta para a ação. (...) A circunstancialidade o levou para a tribuna e para o debate político. Rui é, hoje, sinônimo de eloquência política. (...) Fora a pregação política, o que dele subsiste é o jurista nos pareceres e o linguista, na riqueza dos textos. A opulência da sua língua nos perturba. É um filho de Vieira e de Camilo. Um herdeiro de Cícero (...).” Na Convivência número 3, de 1974/1975, coube a Villaça fazer o necrológio de Murilo Mendes, em que diz: “A consciência de que a palavra é ressurreição ou redenção o acompanhou até o fim. Que foi a sua obra senão a poesia em pânico, o amor em pânico? O amor é o núcleo de sua obra poética.”

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A quarta edição, de 1976/1977, traz, no expediente, Antonio Carlos Villaça como um dos três vice-presidentes do PEN Clube, com Paschoal Carlos Magno e Valdemar Cavalcanti. “O diário de Gilberto Freyre” (a propósito de Tempo morto e outros tempos) é a participação do memorialista em mesa-redonda sobre o autor de Casa-grande & senzala, quando afirma: “Gilberto Freyre é um escritor proustiano. Há um sentido profundamente dialético na sua condição de escritor. (...) Os longos caminhamentos, as transições sutis, os redemoinhos. (...) O que me impressiona nesse diário de adolescência e primeira mocidade é o que há belamente nele de íntimo. De vida pessoal. De cotidianidade. (...) A sua obra é uma explosão estética e psicológica.” Na Convivência número 5, de 1979/1980, lê-se o belíssimo discurso com que Antonio Carlos Villaça recebeu, no PEN Clube, a colega memorialista Rachel Jardim: “Vejo uma cigana que baila no pátio da PUC, dias longínquos de 1947, 1948, rua São Clemente. É uma jovenzinha que vai e vem, parece tecer uma teia indefinida e infinita, jeune fille en fleur, toda ansiedade, perplexidade, desejo de amor. É uma bailarina morena. (...) Há uma sombra no rosto juvenil da cigana lépida ‒ e a sombra a acompanhará. A menina sorri, quase amorosa, a sombra está por trás do riso, como um enigma, um estigma, um silêncio trágico. Rachel Jardim, você parece idílica e é vulcânica. (...) A cigana da PUC, insinuante e triste, nostálgica não sei de quê, me lembra Capitu, dissimulada e oblíqua.” Mais à frente, dirige-se à escritora, como se falasse de si próprio: “Você desceu ao limite do humano, sozinha. Você fez a sua viagem ao abismo. Você desceu e subiu. Lembro-me agora de São João da Cruz, que nos diz: ‘Bajarse hasta no poder más, subirse hasta no poder más...’ Você viveu. E, vivendo, amou a vida. Seus livros, trágicos e belos, propõem no fundo a mensagem do amor à vida. Há em Você, escritora, uma vitória do ser sobre o nada. A sua noite escura, a sua viagem ao fundo da noite foi, assim, uma libertação.” E reconhece, com o saber de experiência feito: “Sua obra corajosa e clara é a história em suma de uma crise, uma ruptura, uma não aceitação, um desafio. Você recusou uma falsa ordem. Você disse não à burguesia. Você assumiu o seu destino, solitária e audaz. Foi um mergulho na solidão.” O número 6 da revista, publicado em dezembro de 1982, traz uma colaboração de Villaça, “A poesia de Vitto Santos ou o itinerário do ser”, mas, principalmente, a saudação de Marcos Almir Madeira, “Vida, vocação, estilo”, ao fraterno amigo que se empossava na Academia Brasileira de Arte. Bem de acordo com o protocolo, observa: 68


“Fostes criança sem infância, jovem sem juventude, mas varastes a cerração, o cinzaescuro dos vossos dias adversos e fizestes da hostilidade das circunstâncias uma razão de vida, um germe de beleza e de vigor. Memorialista, mostrastes o passado em carne viva, mas também o outro, de feridas não expostas, e aquele, de coisas e criaturas que põem uma fímbria azul, às vezes rósea, no relato pontilhado de imprevistos e achados atraentes.” E conclui: “Mesmo a nota que dói, a verdade ácida, a vida sofrida chegam ao leitor com uma tal superioridade de estilo que as perplexidades, os traumas incoibíveis, as esperanças malogradas se desvanecem na própria trama do escritor.” Na Convivência número 7, que se lançou em abril de 1983, Antonio Carlos Villaça lamenta a morte de Dinah Silveira de Queiroz e assina, também, “Ave, monge poeta!”, com que recebeu Dom Marcos Barbosa no PEN Clube. Ao beneditino, tão familiar pela vocação religiosa e pelo amor à literatura, assevera: “Vossa obra nasceu da intimidade da vossa vida monástica, seminalmente, organicamente, uma poesia sutil, toda de entretons. Uma poesia ao mesmo tempo litúrgica e intimista, velada, como um órgão a tocar delicadamente, em surdina. Os vossos temas são os mais simples deste mundo, e o maior deles, em que vos moveis inteiramente à vontade, é o do amor. Vossa linguagem é viva, plástica e diáfana. Tendes uma transparência toda vossa.” E confessa: “Nunca ouvi, Senhor Dom Marcos, nunca ouvi coisas mais profundas, e belas, e finas, sobre o mistério do amor do que naqueles poemas em prosa, que são os vossos sermões de casamento, as vossas homilias, tão fraternais, tão humanas.” Esse, o Antonio Carlos Villaça que tive o privilégio de conhecer, luminosa figura humana, leitor diligente, intelectual brilhante. Imensamente gordo, barba e cabelos à escovinha brancos, sempre vestido de preto, compunha um tipo eclesiástico, um espécime abacial (“Dom Abade das Letras”, chamou-lhe Drummond), a representação do monge que não chegou a ser, pois não passou do noviciado no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro. Pobre, vivia parcimoniosamente, da colaboração em jornais, do pro labore por conferências e palestras, e dos poucos direitos que lhe asseguravam os livros. Alguma coisa havia nele de ingênuo e de menino, de puro e de santo, que nos despertava, nos sócios da Confraria Villaciana, um sentimento afetuoso de proteção, de cuidado e de zelo. Em 1975, Erico Verissimo começou a escrever-lhe: “Villaça, você é um homem singular por mais de uma razão” ‒ quando teve o infarto que o matou. “E fiquei sem

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saber por que sou um homem singular...”, dizia, alegre como só os inocentes sabem ser. Em 1998, festejei-lhe os setent’anos de existência com o livro Villaça, um noviço na solidão do mosteiro. Foram só 200 exemplares, fora de comércio, dos quais lhe enviei a metade, para que desse aos amigos e companheiros do PEN Clube. O volume enfeixa artigos de e sobre o homenageado, a que se acresce a excelente entrevista que me concedeu em 1984, para o jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza. Pergunto-lhe por que o título O nariz do morto. “Como indagou Drummond num poema que lhe dedicou, que nariz é esse, que morto é esse?” A resposta: “Sou eu, sem dúvida. E é qualquer pessoa, qualquer ser humano. Quando você vai a um velório, o que você vê é o nariz do morto. É o que sobra, são os restos da vida. No velório de Peregrino Júnior, eu estava olhando o caixão e vi o nariz do morto, foi o que realmente avultou. De modo que, numa primeira abordagem, seria isto: o que sobrou da vida, os restos do naufrágio. ‘Alguma coisa sobra do naufrágio das ilusões’, acho que é assim que termina Iaiá Garcia. Mas há outras perspectivas, outros ângulos de análise, talvez psicanalíticos...” Quatro anos antes fora, porém, mais direto, em carta que me endereçou: “O nariz, o pênis. Na página cem, V. encontra a revelação. O nariz é um livro intensamente sexual, fálico, embora não se fale de sexo. Eis toda a tensão do livro.” Publiquei a correspondência que trocamos no livro O monge do Hotel Bela Vista, lançado em 2008, quando o memorialista completaria 80 anos, não tivesse morrido havia três anos. O título alude ao pequeno hotel no bairro de Santa Teresa, em que morou por 17 anos, até mudar-se para a biblioteca do PEN Clube. Transcrevo, das cartas, as referências à instituição que hoje me acolhe. Em 6 de maio de 1981: “Terça, houve posse do Leodegário [de Azevedo Filho], no PEN Clube. Recebi-o com um discurso de sete laudas. Fomos depois jantar em Ipanema. E só me recolhi depois de uma e meia.” Em 31 de maio de 1981: “Tivemos, terça-feira, uma mesa-redonda lá no PEN Clube sobre Leopardi. Falamos Zé Paulo Moreira da Fonseca, Gilberto Mendonça Teles e eu. Casa cheia. Gente em pé. Que fazes tu, lua, lá no céu?... Dize-me, que fazes, silenciosa lua... Dize-me, lua, para que serve ao pastor a sua vida? Eterno Leopardi, lírico e trágico. Quinta-feira, fui ouvir o Fernando Namora, que tomava posse na Academia Brasileira, sucedendo ao Cardeal Manuel

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Gonçalves Cerejeira, Patriarca de Lisboa. Já na véspera, Namora nos visitara no PEN Clube e fez uma improvisada exposição a respeito da sua obra.”

Em 24 de junho de 1981: “Morreu Herman Lima, cearense tão querido. Não pude ir ao enterro porque havia eleições no PEN Clube, para titulares. Elegemos Carlos Chagas, Dom Marcos (para a sucessão de Otávio de Faria), Haroldo Bruno e Helena Parente Cunha.” Em 18 de junho de 1984: “Comunico a Você meu novo endereço (a partir do dia 30 próximo) ‒ Praia do Flamengo, 172, 11° andar. Como vê, é o endereço do PEN Clube. O hotel estava ficando caro. E há o apartamento, vazio, do Cláudio de Souza. Mudo-me para lá. E espero a sua visita.” Em 9 de março de 1985: “Aqui temos a posse do Carlos Nejar, dia 12. Vai ser recebido pelo Antonio Houaiss.” De todas as cartas, uma das mais belas é a que me dirigiu em 12 de agosto de 1984, a que intitulou Paternitatis Festivitas: “Abraço Vocês pelo nascimento da Ana Carolina. Ana Maria, Mariana, Ana Carolina... Você, cercado por três mulheres, três Anas... Felicidade suma. Hoje, é o seu dia, Patris Dominica. Você, tão moço, e já por duas vezes Pai. Eu... não sei o que seja isto. Não fui pai. Nem serei. Hoje, enquanto os pais recebem cumprimentos e presentes, eu vagueio pelas ruas, como uma sombra, um órfão às avessas. Criar, criar. Importante é isto − criar. Perdoe o desabafo de solteirão. Manchou a alegria da hora e dos cumprimentos. Cada um veio ao mundo com

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o seu ritmo. Você é ágil como um garoto e inteligente como poucos. Ou como um judeu. Te felicito. Deus te abençoe, grande e querido Amigo (e Mestre). Beijo efusivamente Ana Maria. Beijo a veterana Marianinha. E, sim, beijo Ana Carolina, que por certo se assustará com as barbas brancas deste avô carioca. Poderia ir ao cemitério, hoje, para ver a sepultura do meu Pai. Não tenho coragem. Grandes lascivos, esperanos a voluptuosidade do nada. Tudo ou nada. Viva a Ana Carolina!” Em dezembro de 2004, com problemas de saúde, transfere-se o memorialista para a Casa de Repouso São Luiz, no bairro do Caju, sob a responsabilidade de um pequeno grupo de amigos e admiradores. Ali, mergulhado na solidão e na tristeza, morre no dia 29 de maio de 2005. Antonio Carlos Villaça foi a maior, mais bela e mais profunda vocação literária que encontrei até hoje. Era só escritor, essencialmente escritor, totalmente escritor. “Encaro a literatura como uma vitória sobre o tempo e a morte. (...) O amor das letras é o único amor da minha vida, o grande amor. Nunca perdi essa paixão ingênua”, escreveu em O nariz do morto. Dele, ficaram-nos um belo exemplo e uma edificante lição: exemplo de generosidade humana, de riqueza espiritual e de ternura d’alma; lição de comportamento ético, de conduta limpa e de amor ao próximo. Orgulha-nos tê-lo por representante, escritores que somos porque, como ele, jamais poderíamos viver sem escrever. Parecem-me, pois, justificadas a honra, a alegria e a emoção com que chego ao PEN Clube do Brasil, a Casa de Villaça.

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Obituรกrio _____________________________________________________________________

Eduardo Portella: Pensador da Cultura Cyro de Mattos

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Eduardo Portella era um desses intelectuais atuantes que argumentava com lucidez sobre assuntos de nossas letras e cultura. Graduado pela Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco. Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lecionou até os últimos dias de vida. Ministro da Educação no governo do Presidente João Figueiredo, lutou pela anistia, foi demitido por ter dado apoio à greve dos professores universitários. Seu discurso de vida dirigiu-se para os parâmetros de um humanismo solidário com base na ordem da verdade. Foi interditado por aqueles que pensam ser suficiente para valer na dotação humana o poder que você exerce com o cargo. Dele é a célebre frase: “Não sou ministro, estou ministro”, para afirmar com isso, no tácito entendimento da palavra enunciada, que tudo é transitório ante o eterno que fica.

Crítico,

pesquisador, conferencista, editor, advogado e político brasileiro. Ocupou a presidência da Conferência Mundial da UNESCO. Foi diretor das Edições Tempo Brasileiro, divulgando Heidegger no Brasil e o Formalismo Russo de Yuri Tynianov. Membro titular da Academia Brasileira de Letras, recebido por Afrânio Coutinho. Naquela instituição recebeu João Ubaldo Ribeiro, Lígia Fagundes Telles e Zélia Gattai. Propôs um método crítico de base hermenêutica, teórica e filosófica. Sem inclinações para a interpretação da obra literária com base na inserção de autor e obra nos períodos históricos, nem decorrente de gratuitas impressões sobre a massa do que foi escrito, mas em função do estilo em que o autor se funda e marca sua obra na expressividade da escrita, tanto na forma como no conteúdo. Esteve à frente dos níveis usuais, sendo o responsável pela introdução da análise estilística nas letras brasileiras. Filtrou os pressupostos, métodos e ferramentas dos espanhóis Carlos Bousoño e Dámaso Alonso, propondo o julgamento como ato final na análise literária após a captura do fundamento que transita entre linguagem e uso da língua, responsável pela literariedade. Este fundamento é a visualização do entretexto. Sua tese de doutorado foi publicada sob o título Fundamento da Investigação Literária (1973), refundida em 1974. Deixou um legado constituído de 23 obras e, entre elas, Dimensões I (1958), Dimensões II (1959), África colonos e cúmplices (1961), Literatura e realidade nacional (1963), Dimensões III (1965), Teoria da comunicação literária (1970), Vanguarda e cultura de massa (1978) e A Sabedoria da Fábula (2011). Recebeu prêmios literários e títulos honoríficos de muito prestígio, como Gran Cruz de la Orden del Mérito Civil, 74


Madri (2001), Doutor Honoris-Causa, Universidade Federal da Bahia (1983), GranCruz de la Orden Civil de Alfonso X, el Sabio, Madri (1980), Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, Brasília (1979). Aprendi muito com ele. Acompanhou minha carreira literária desde o nascimento, há cinqüenta anos. Prestigiava-me. Prefaciou meu livro Cancioneiro do Cacau, que me deu quando inédito o Prêmio Nacional de Poesia Ribeiro Couto da União Brasileira de Escritores (Rio) e, quando publicado, o Segundo Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, o Terceiro Prêmio Nacional de Poesia Emílio Moura da Academia Mineira de Letras e foi finalista do Jabuti. É dele essa observação sobre o livro: “Mas o seu poema não irrompe de qualquer abalo sísmico, ou de qualquer intempérie facilmente previsível. Ele eclode da história revigorada, nasce do fundo do homem e das coisas, da sua raiz em curso, da origem protegida do menor sedentarismo... Cyro de Mattos se compraz em revalorizar a raiz, e reverenciar a origem, em reconhecer o fundamento radicalmente imune ao fundamentalismo. O poeta enraizado e, no caso, porque enraizado, generoso, recorda para a frente. Como quem retira dos filtros do passado, e dos detectores de metais do presente, lições, mesmo que enviesadas, para a construção do amanhã.” Que melhor prêmio poderia receber autor e obra do que essa opinião do enorme ensaísta? Humanista, leal, elegante, sóbrio, companheiro, intelectual de primeira grandeza. A última vez que estive com ele, na Academia Brasileira de Letras, quando fui proferir palestra sobre os mares trágicos de Adonias Filho, disse-me que estava escrevendo um livro sobre Adonias Filho e outro sobre Jorge Amado. Baiano de Salvador, nascido em 8 de outubro de 1932, Eduardo Portella passou desse plano terrestre para outra dimensão no dia 2 de maio deste ano.

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