Usos e circulação - parte 4

Page 4

Mas que relações mantinham os físicos, cirurgiões e boticários portugueses com os demais agentes de cura? Embora geralmente preconceituosos em relação a outros elementos pagãos e selvagens da cultura indígena, os colonizadores se interessaram em recolher informações sobre como os indígenas e seus pajés faziam para combater as doenças que grassavam no lugar. Observavam, imitavam, experimentavam e descreviam as propriedades terapêuticas das novas espécies e seus usos, e divulgavam-nas na metrópole, ampliando os saberes sobre a matéria médica. Mais tarde, tal saber retornaria à colônia em compêndios de farmacopeia, orientando a atividade de boticários profissionais, religiosos ou leigos.7 Tal roteiro não foi tão linear, entretanto, como possa parecer. Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), médico português e estudioso da flora brasileira, em fins do século XVIII, observou o pouco uso feito pelos médicos portugueses das plantas medicinais do país, entendendo que isso ocorria porque tendo aprendido medicina das universidades europeias, eles curavam tudo à europeia, desprezando a medicina indígena. De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais brasileiras era a que maior legitimidade popular possuía. Mezinheiros (vendedores de medicinas, ou mezinhas), curandeiros africanos e pajés utilizavam folhas, frutos, sementes, raízes, essências, bálsamos e resinas, partes lenhosas e brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam, dissolviam, maceravam. Cozinhavam, para ingerir, aspirar, friccionar, ou aplicar em cataplasma numa série de extensas enfermidades. Não se pode esquecer que o emprego dessas plantas tinha um sentido mágico ou místico. Determinados minerais, bem como partes do corpo de animais, eram usados como medicamentos ou amuletos. Se a antropofagia ritual era encarada com horror pelos europeus, a utilização da saliva, da urina e das fezes, humana ou animal, eram compartilhadas como recurso terapêutico, embora tendo um significado distinto para ambas as culturas. Enquanto a sucção ou sopro dos espíritos malignos, a fumigação pelo tabaco, os banhos, fricções com cinzas e ervas aromáticas e o jejum ritualístico eram desprezados como elementos bárbaros, a teoria das assinaturas, que supunha existir, radicado em cada região, o antídoto das doenças do lugar, autorizava a assimilação da farmacopeia empírica popular.8

7 Silva, Maria B. N. Da. 1991. A cultura implícita. In: Frédéric, Mauro (org.). O império luso-brasileiro (1620-1750). Lisboa: Editorial Estampa, p. 265-365. 8 Ibidem. 9 Souza, Laura de Mello e. Op. cit. 10 Anchieta, José de. 1970. Feitos de Mem de Sá. São Paulo: Ministério da Educação e Cultura, p.97.

100

Embora, em ampla variedade de aspectos, o saber erudito e o popular fossem indissociáveis na experiência dos distintos extratos sociais, os representantes da arte médica oficial lutavam ferrenhamente contra os que praticavam as curas na informalidade. Reivindicando para si o controle do corpo doente, a medicina metropolitana esvaziava o sentido dos conhecimentos terapêuticos populares e reinterpretava-os à luz do saber erudito. A fluidez entre o domínio da medicina e aquele da feitiçaria, com o emprego de cadáveres humanos e de animais associados ao universo demoníaco, como o sapo, o cão negro, o morcego e o bode na produção de remédios, impunha aos portadores de diploma a tarefa de distinguir o procedimento “científico”, das crenças populares “supersticiosas”. Nesta tarefa encontravam o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino.9 Desautorizadas pela Inquisição e pelas autoridades sanitárias, essas práticas de sanar com o toque das mãos, orações, sucções e remédios caseiros foram diabolizadas. O pajé, guardião do saber indígena, foi comparado a lúcifer por José de Anchieta: Já não ousas agora servir-te de perversos sacrifícios, perverso feiticeiro, entre os povos que seguem a doutrina de Cristo: já não podes com mãos mentirosas esfregar membros doentes, nem com lábios imundos chupar as partes do corpo que os frios terríveis enregelaram, nem as vísceras que ardem de febre [...] Já não enganarás com as tuas artes os pobres enfermos que creem, coitados! Nas mentiras do inferno.10

Jean de Léry, 1580. Ilustração do livro Les singularitéz de la France Antarctique [...]. Em seu relato da viagem que empreendeu, em 1557, à França Antártica, o calvinista Jean de Léry, antes de ser expulso por Villegagnon, descreveu vários costumes dos índios Tupinambá, com os quais conviveu. Seu testemunho constitui um dos primeiros registros das formas de cura realizadas e do emprego de plantas medicinais em alguns tratamentos. Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.