Usos e circulação - parte 4

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Das transformações da arte médica lusitana nos séculos XVII e XVIII

19 Apud Abreu, Jean Luiz Neves. 2011. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. 1a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 38. 20 Martins, Carlos; Fiolhais, Décio. 2010. Breve história da ciência em Portugal. Coimbra: Gradiva-

Até a promulgação dos Estatutos de 1772, no período pombalino, os jesuítas exerciam poderoso controle sobre o ensino na Universidade de Coimbra. Regido pelos Estatutos de 1563, o ensino médico mantivera a venerável tradição galênica, cultuada sob as regras da pedagogia escolástica, relativamente à margem da renovação cultural que atingia outros países sob o influxo dos avanços nos estudos de anatomia, publicados, dentre outros, por Andreas Vesálio (1543) e William Harvey (1628) e das filosofias experimentalistas, químicas e mecanicistas que propunham uma descrição da fisiologia humana alternativa ao paradigma humoralista. Isso não quer dizer que as outras ideias não chegassem a Portugal, nem que a sua rejeição, por parte dos seguidores da tradição aristotélico-tomista, significasse superstição ou atraso, posto que o que estava em jogo eram os fundamentos metafísicos que imprimiam diferentes racionalidades às explicações sobre a estrutura causal do mundo. Defensores das ideias alquímicas de Paracelso e van Helmont, dos princípios químico-animistas de George Ernesto Stahl e das hostes do vitalismo de Montpellier também se envolveram no combate ao que um contemporâneo definiu como os erros do Alcorão galênico.19 Com a inclusão das obras de Paracelso no Index, a Inquisição portuguesa perseguiu os remédios alquímicos. Do ponto de vista doutrinal, a medicina galênica se opunha às drogas secretas de ampla difusão, pois essas ignoravam as particularidades do paciente: sua constituição, seu temperamento, sua idade e hábitos alimentares e higiênicos. No entanto, no século XVII, apesar da proibição emanada da Inquisição, as principais obras literárias de famosos alquimistas eram conhecidas em Portugal. O lente de medicina em Coimbra, João Bravo Chamisso (?1636), em sua obra De Medendis Corporis Malis per Manualem Oprerationem (1605), considerava a alquimia parte da medicina. Do mesmo modo, Duarte Madeira Arraes (?-1652), médico de D. João IV, foi autor de um Tratado dos óleos de enxofre, vitriolo, philosophorum, alecrim, salva, e de água ardente (1648).20 Nas primeiras décadas do Setecentos, o droguista Jean Vigier (1662-1723) e, principalmente, João Curvo Semmedo (1635-1719) desenvolveram rumorosa campanha que punha em cena a retórica dos Modernos contra os Antigos, para chamar a atenção da superioridade da farmácia química e dos remédios secretos diante da tradição galênica. Comentários sobre a insuficiência da sabedoria dos Antigos também podiam ser encontrados em obras como a impressa em Lisboa, em 1720, Cirurgia metódica e Química reformada, de Francisco Soares Ribeira, que apresentava o movimento circular do sangue, e no Tratado fisiológico, médico-físico e anatômico da circulação do sangue (1735), do médico João Marques Correia (1671-1745).21

Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 32-36. 21 Abreu, Jean Luiz das Neves. Op. cit.

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Portanto, o debate científico português é anterior à difusão das ideias mecanicistas e vitalistas de Descartes, Newton, Torricelli ou Boerhaave. A partir de meados do século XVIII, críticas igualmente contundentes ao ensino médico português partiram de autores ligados ao ideário ilustrado, como o clérigo Luís Antônio Verney (1713-1792) e o médico Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783). Tanto o primeiro, em seu Verdadeiro método de estudar (1746), quanto o segundo, em Método para aprender e estudar a medicina (1761), propuseram a reformulação nos estudos da anatomia e da fisiologia que banisse a filosofia aristotélica da natureza e as ideias alquímicas e incorporasse a filosofia natural renovada. Esses dois reformadores se associavam à divulgação dos ideários mecanicista e vitalista fomentados, dentre outros, pelo cristão-novo Jacob de Castro Sarmento (1691-1762) que, da Inglaterra, enviou ao Reino sua Matéria médica físico histórico mecânica (1735).

À esquerda: Antônio Ribeiro Sanches, 1756. Frontispício do livro Tratado da conservaçaô da saude dos povos [...]. A partir de meados do século XVIII, ao lado das farmacopeias e compêndios médicos relativos ao diagnóstico e à cura das doenças, as preocupações relativas à higiene pública e privada da população se afirmam como um novo objeto da medicina. Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), médico, filósofo e pedagogo, foi, em Portugal, um dos pioneiros na divulgação dessa literatura. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa À direita: Autor desconhecido, segunda metade do século XV. Ilustração do Opusculum Alchemicum, originário da Alemanha. No início da época moderna, a herança mágico-astrológica do pensamento grego antigo e medieval ganhou novo impulso com o movimento humanista. A natureza, percebida como um todo vivo que contém em si mesmo uma alma, autorizava o estudo das correspondências secretas entre o mundo (macrocosmo) e o homem (microcosmo). A alquimia utilizou muitos símbolos herméticos, como a cópula entre figuras humanas representando o Sol e a Lua como alegoria de processos. Acervo British Library, Londres

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