CADERNO DE RESUMOS - 1 CICLO DE DEBATES DO IMAM IMAGEM MEMORIA ARTE E METROPOLE

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CADERNO DE RESUMOS EXPANDIDOS

1⁰ CICLO DE DEBATES DO IMAM-UFRJ

LABORATÓRIO DE IMAGEM, MEMÓRIA, ARTE E METRÓPOLE

ANDRÉA CASA NOVA MAIA DINAH DE OLIVEIRA (ORGS.)

RIO DE JANEIRO 27 E 28 DE MAIO UFRJ 2021

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SUMÁRIO Apresentação………………………………………………………………………………5 Programação………………………………………………………………………….……7 Resumos Expandidos…..………………….……………………………………..….….10 Índice Remissivo……………………………………………………………………..…149

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APRESENTAÇÃO

O Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metrópole – IMAM – convida pesquisadoras, pesquisadores e estudantes para seu 1.º Ciclo de Debates, a ser realizado no formato on-line nos dias 27 e 28 de maio de 2021, com mesas nos turnos da manhã e da tarde e apresentação de trabalhos artísticos. Em 2021 o 1.º Ciclo de Debates do IMAM – on-line é um convite para a apresentação das pesquisas desenvolvidas pelas pessoas integrantes do Laboratório e convidados de outras instituições de pesquisa. A proposta é uma ação que aglutina pesquisadoras e pesquisadores, colocando seus trabalhos em debate. O convite a reflexão em meio ao nosso cotidiano que sofre as consequências da crise sanitária e humanitária imposta pela Pandemia do Covid-19, reitera o compromisso de trabalho da universidade pública diante da produção e divulgação de saberes. Propomos ainda que as mesas de apresentação de pesquisas sejam compostas por docentes associados e estudantes pesquisadores, com a intenção de promover um encontro de conhecimentos e trocas mais horizontais. O grupo de pesquisa IMAM é certificado no diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq desde 2010 e conta com pesquisadores de diferentes instituições de ensino e pesquisa brasileiras em diferentes níveis de formação. O grupo se propõe a desenvolver projetos de pesquisa voltados para a relação entre imagem e história social da cultura, tendo como principais enfoques os estudos sobre arte, ethos artístico e relações entre política e culturas visuais em diferentes suportes. Também procura reunir pesquisadores, sobretudo historiadores, mas também

cientistas

sociais,

antropólogos,

arquitetos,

geógrafos

e

outros

pesquisadores ligados à problemática dos estudos sobre as metrópoles e a memória dos sujeitos históricos que nela vivem. As principais repercussões esperadas, além da realização de encontros periódicos entre os participantes, é a participação em diferentes eventos (congressos, simpósios nacionais e internacionais) para divulgação dos resultados das pesquisas do grupo, bem como a produção coletiva ou individual de artigos e livros sobre diferentes temáticas voltadas para o campo em

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questão, além da orientação de trabalhos de graduação, mestrado e doutorado por parte dos professores pesquisadores que participam do grupo e atuam em programas de pós-graduação. Este é o primeiro de muitos encontros do grupo. Temos como objetivo também divulgar as pesquisas, projetos e resultados para além da academia, por isso todas as mesas serão gravadas e disponibilizadas no canal do IMAM-UFRJ do YouTube. Isso também repercutirá na formação de um quadro de especialistas e contribuirá para a consolidação dos estudos históricos sobre a imagem, a memória, a arte e a metrópole dentro e fora da Universidade.

Andréa Casa Nova Maia e Dinah de Oliveira

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PROGRAMAÇÃO Dia 27 de maio, quinta-feira Sessão de Abertura - 8h30min Profa. Dra. Andréa Casa Nova Maia e Profa. Dra Dinah de Oliveira MANHÃ Sessão 1 - 9h - 12:30h - VISUALIDADES E RESISTÊNCIAS

Sessão 2 - 9h-12:30h - URBANIDADES E POLÍTICAS

A BATALHA PELO IMAGINÁRIO POPULAR: OS ACADÊMICOS REBELDES DE 1890. (Matheus Romano Palmieri de Souza)

O ESPAÇO PÚBLICO COMO REPRESENTAÇÃO PARA OS SKATISTAS: COLETIVO XV-RJ E SALVE O VALE-SP EM PERSPECTIVA COMPARADA. (Luciano Hermes da Silva)

O PÁTHOS DA CÂMARA: UMA ANÁLISE DAS REAPROPRIAÇÕES DA ANTIGUIDADE DOS GRUPOS ESCULTÓRICOS DO PALÁCIO TIRADENTES (Douglas Libório de Souza) TRANSMISSÕES DE UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO (Dinah de Oliveira) CORPO-MEMÓRIA: RESISTÊNCIA AO TEMPO E ESPAÇO ATRAVÉS DA TRANSMISSIBILIDADE (Gabriel Vieira) PERTURBAÇÕES TEMPORAIS (Allan Corsa)

“DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”, OS PILARES DA NAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE CARECAS INTEGRALISTAS (Camilla Maria Silva Cavalcante) CULTURA FERROVIÁRIA SOB O VIÉS COMPARATIVO: OS IMPACTOS DA PRIVATIZAÇÃO DA RFFSA EM CORINTO E DIVINÓPOLIS - 1975 A 2010 (Willian Santos Pereira) MEMÓRIA E DIREITOS EM CIDADES MINERADORAS (Regina Helena Alves da Silva)

POR QUE UMA IMAGEM SEMPRE FALTARÁ? MEMÓRIA E CONTRAHISTÓRIA EM RITHY PANH (Roberta Veiga)

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TARDE Sessão 3 - 14h-18hh ESPACIALIDADES E CULTURAS

Sessão 4 - 14h-18h - GEOPOLÍTICAS E IMAGÉTICAS

A COMUNIDADE TRADICIONAL CAIÇARA DO BONETE – PENSANDO AS FONTES E A METODOLOGIA NO SOBRE AS PALAVRAS E A CULTURA ESTUDO SOBRE OS MEGAEVENTOS NO INDÍGENA. (Carla Teodoro Costa) RIO DE JANEIRO E A SOCIOESPACIALIDADE DO CONFLITO AYAHUASCA, IMAGENS E MUNDOS (Ingrid Gomes) (Wladimyr Sena Araújo) TOUJOURS PERDRIX!: PENSAR A AMAZÔNIA BRASILEIRA POR MEIO DAS IMAGENS (Maurício Elias Zouen)

QUILOMBOLAS NA CIDADE: MEMÓRIA E ANTROPOLOGIA URBANA NA DIÁSPORA (Denise Pirani)

MALANDRAGEM E CIDADE: REPRESENTAÇÕES DO RIO DE JANEIRO NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO ZÉ CARIOCA (Mario Brum) DIREITOS HUMANOS E TERRITÓRIOS: GEOGRAFIAS PLURAIS EM OMÃ (Valnei Pereira)

Sessão de Atividades Artísticas - 19h às 20h. Apresentação de Vídeos: Tempo Suspenso: Mulheres em tempo de pandemia através de um registro audiovisual (Luciene Carris) Em março de 2020, fomos surpreendidos com o novo coronavírus que atingiu o Brasil, batizado de Covid-19, e alterou as nossas relações pessoais e de trabalho, afetou o nosso cotidiano, aprofundando as desigualdades socioeconômicas e de gênero. Nesse sentido, pretendemos apresentar o olhar feminino de onze mulheres através do teaser de um minuto do documentário “Tempo Suspenso” produzido em 2020. Link: https://youtu.be/n41oZdsmifo

Performances e ações políticas em vídeo. Curadoria: Dinah de Oliveira.

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Dia 28 de maio, sexta-feira MANHÃ

TARDE

Sessão 5 - 9h - 12:30h CINEMA, TV e OUTRAS MÍDIAS

Sessão 6 - 14h-17:30h - MEMÓRIA, GÊNERO E IMPRESSOS

O RIO SAMBA EM BRASÍLIA: A ENCENAÇÃO DA CAPITALIDADE PELAS CHANCHADAS (Carlos Eduardo Pinto De Pinto)

RAÇA, GÊNERO E CLASSE NAS CAPAS DA REVISTA PRESENÇA DA MULHER (Beatriz Monteiro Lemos)

FESTIVAL INTERNACIONAL DA CANÇÃO: INTERNACIONALIZAÇÃO E MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (José Fernando Monteiro)

USOS DO ERÓTICO COMO PODER: REPRESENTAÇÕES DO ERÓTICO FEMININO NAS ARTES VISUAIS EM DIÁLOGO COM O BOLETIM CHANACOMCHANA (Rita Lages Rodrigues, Barbara Lissa e Bruna Emanuelle)

BLOCKBUSTERS, CENSURA E PROPAGANDA – INTERFERÊNCIAS DO DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS EUA NO CINEMA DO SÉCULO XXI (Carlos Cesar de Lima Veras) E SE TIETA FOSSE TRAVESTI? A REPRESENTAÇÃO DAS TRANSGENERIDADES NAS TELENOVELAS DOS ANOS 1980 E 1990(Alberto Freitas) O ONTEM SEM FIM: HISTÓRIA E NOSTALGIA NA SÉRIE DE TV – COISA MAIS LINDA (Silvana Seabra)

IMAGENS E TEXTOS, CORPOS E PROPAGANDAS NA EU SEI TUDO E NA JE SAIS TOUS (Suzana Oliveira e Lucas Lourenço) “EU POSSO FALAR QUALQUER COISA COM ESSA VOZ”: O ENGAJAMENTO POLÍTICO DE NINA ROSA NO SAMBA CARIOCA (Bruna Aparecida Gomes Coelho) MEMÓRIAS DE UMA INTELECTUAL: A HISTÓRIA DE VIDA DE VERA (Andréa Casa Nova Maia)

COVID-19, DISCURSO E IDEOLOGIA: REFLEXÕES ACERCA DA PANDEMIA E AS DISPUTAS POLÍTICOIDEOLÓGICAS NO AMBIENTE DAS REDES SOCIAIS (Luana Sarto Gomes e Victor Henrique de Souza Arcanjo)

18H - Sessão de Encerramento e Lançamento do Livro Recortes do Feminino. Cristais de Memória e História de Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. Telha, 2020, organizado por Andréa Casa Nova Maia. 9


RESUMOS EXPANDIDOS

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MEMÓRIAS DE UMA INTELECTUAL: A HISTÓRIA DE VIDA DE VERA

Andréa Casa Nova Maia (UFRJ)

Entrevistei Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova, poeta, tradutora, professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG, minha mãe. Foi para um livro de história oral sobre envelhecimento e pandemia que será lançado em breve. Porém, antes de realizar o recorte temático proposto para a história oral, aproveitei a oportunidade para realizar uma pequena inserção na trajetória de vida dela. Passeamos por suas lembranças de infância e lá reencontramos memórias de outro Rio de Janeiro, dos anos 1940, 1950 e de bairros do centro, como a Gamboa e o Santo Cristo. Também redescobrimos a família de imigrantes portugueses, as tradições, as brincadeiras e o início dos estudos. A menina vai se tornando moça e passa a estudar no Colégio Pedro II, realizando estudos clássicos... conhece a literatura francesa também pelos estudos na Aliança Francesa. Atravessamos memórias de leituras, de livros, de professores, de namoros, de bailes e todas as possibilidades dos “anos dourados”. Mas rapidamente a entrada na Universidade do Estado da Guanabara faz ampliar a consciência política, a descoberta de um outro Brasil, mesmo que também, muito, através da literatura brasileira, com as leituras de Machado de Assim, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa e tantos outros. Além de estudar, lembra do início do trabalho de lecionar para jovens dos colégios da classe alta da zona sul da cidade... Mas também, rememora os “anos de chumbo”, os escritos proibidos, a militância política, o dia que depôs no DOPS... Conta da viagem para a França, quando vendeu o piano e do retorno para se casar. E veio a primeira filha, o mestrado na UFRJ sobre Mário de Andrade. A separação e o novo casamento... Outra cidade aparece em sua vida e permanece: Belo Horizonte. A vida universitária em Minas Gerais e na Faculdade de Letras vai iluminando amizades, projetos, cotidiano de militância docente também, de luta para votar para reitor, mas principalmente, para votar para presidente. E a volta para o Rio de Janeiro para fazer doutoramento na UFRJ, o memorável comício das Diretas Já na Candelária, o novo projeto de pesquisa. A morte do pai, a morte da avó e a volta para uma nova casa construída só na base dos juros da poupança no governo Sarney... A morte da mãe e o nascimento de outra

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filha. Amamentação escrevendo tese de doutorado, defendendo tese entre uma troca de fralda e outra. Ser mulher, ser mãe e ser pesquisadora e professora universitária. A descoberta do fazer poesia, do pensar o texto e a imagem. O retorno à França, desta vez para o pós-doutorado com aquele que viria a ser seu amigo, Georges Didi-Huberman e o início de um longo caminho de leitura de sua obra, tornando-se sua principal tradutora no Brasil. Outros projetos, sempre no encontro da imagem e do texto, poesia e imagem de Lygia Clark, Hélio Oiticica, mas também tantos outros artistas evocados, conhecidos, aproximados e feito amigos no trabalho de criação coletivo como Marcelo Kraiser e Wilson Avelar. E fomos chegando ao presente, à necessidade de isolamento, às novas tarefas do cotidiano, às novas leituras e a vontade de cuidar mais das plantas e dos bichos. Do envelhecimento junto com o companheiro Túlio, astrofísico e professor também aposentado da UFMG. Da saudade dos netos. Da saudade de um outro Brasil, mais alegre, mais justo, mais democrático. Da descoberta da espiritualidade para segurar também um pouco tantas perdas, tanta violência cotidiana, tantos relatos pelas telas (TV, computador, aparelho de telefonia celular etc.). Falarei um pouco nesta comunicação sobre como pode ser rico o uso da metodologia da História oral na elucidação de como Vera é uma potência de criatividade e dedicação ao ensino, mas também como conseguiu conciliar a vida acadêmica com o cuidado com os filhos e como ainda consegue, em meio a esse caos todo que estamos vivendo, produzir poesia e nos lembrar sempre em seus livros, gestos e falas que é possível manter o horizonte utópico e que a arte é ainda a saída. Vera continua a nos lembrar sobre a potência da arte em suscitar levantes por um mundo mais colorido, de maior solidariedade e respeito pelas diferenças. Numa mesa sobre memória, gênero e impressos, será muito bom refletir sobre seu depoimento, suas memórias de mulher e também seus debates sobre os impressos, entre livros e almanaques. Referências BOSI, Éclea. Memória e sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1979.

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E SE TIETA FOSSE TRAVESTI? A REPRESENTAÇÃO DAS TRANSGENERIDADES NAS TELENOVELAS DOS ANOS 1980 E 1990 Alberto Rodrigues de Freitas Filho (UFRJ) Com ou sem censura, a dramaturgia sempre permitiu que os limites do gênero fossem rompidos em nome da arte. De acordo com Trevisan (2018), já havia no século 18 homens que se travestiam e desempenhavam papéis femininos no teatro brasileiro. Em função de um decreto de 1780, que proibia a presença de mulheres nos palcos, “eles” interpretavam “elas”. Isso ocorria, segundo o autor, porque os teatros no Brasil antigo eram vistos como ambientes de má fama e, portanto, desprezados pelas classes dominantes. Os elencos eram compostos principalmente por negros e mulatos (escravizados ou libertos), “cuja condição social degradada se casa à perfeição com a desclassificada arte cênica – mesmo porque esses párias de então nada tinham a perder diante da sociedade.” (TREVISAN, 2018, p. 222-223). Para o autor, a prática do travestismo foi consagrada no ambiente teatral de forma nada inocente, em um contexto de disseminação da prática homossexual no Brasil. O travestismo teatralizado teria então evoluído para duas vertentes. A primeira, meramente lúdica, floresceu no Carnaval, “protagonizada por homens (inclusive pais de família) vestidos com roupas de suas esposas (ou irmãs, ou mães, ou amigas) durante pelo menos três dias por ano.” (TREVISAN, 2018, p. 232). A outra vertente teria se voltado para objetivos mais profissionais, “com o surgimento nos palcos do ator-transformista, que passou a viver profissionalmente da imitação de mulheres e, com frequência, tornou-se travesti também na vida cotidiana.” (TREVISAN, 2018, p. 233). Green (2019, p. 30) lembra que o costume de os homens brasileiros se travestirem com roupas típicas de mulheres afro-brasileiras já fazia parte do carnaval há muito tempo. Porém, para além do ato de vestir-se com as roupas emprestadas de mães, irmãs ou namoradas, havia um caráter subversivo assumido por meio das personificações de baianas à la Carmen Miranda, tão comuns à época. O gênero ali representado de forma festiva tornava-se performativo, remetendo a noções de masculinidade e feminilidade “que desafiavam e ao mesmo tempo reforçavam os

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padrões de gênero no Brasil na primeira metade do século XX.” (GREEN, 2019, p. 32). Na segunda metade do século, após o advento da televisão, surge a teledramaturgia, que também virá a desafiar as noções tradicionais de gênero. Entre 1972 e 1973, um homem se travestia pela primeira vez em uma telenovela brasileira. Em O Rebu, exibida no horário das 22 horas pela Globo, o ator Ziembinski vivia a velha Stanislava. “A personagem era uma senhora russa, mas por sugestão do próprio Ziembinski, que era polonês, o autor Bráulio Pedroso trocou o nome de Natasha para Stanislava Grotovistka, um nome polonês.” (XAVIER, 2007, p. 151). Anos depois, em 1977, uma travesti de verdade ganhava um papel em uma telenovela pela primeira vez. Em Espelho Mágico, Claudia Celeste interpretou corista de um teatro de revista, cujo dono era Carijó, personagem interpretado por Lima Duarte. Porém, segundo Xavier (2013), a atriz entrou para o elenco da novela sem que o diretor, Daniel Filho, soubesse de que se tratava de um travesti. “Na época do Regime Militar, os travestis eram proibidos de aparecer na televisão. Descoberto, o travesti teve que sair de cena.” O autor acrescenta que Claudia Celeste voltaria a cena em 1988 na novela Olho por Olho, dessa vez interpretando a travesti Dinorá. Ainda de acordo com Xavier (2007, p. 186), o público ficou chocado quando Ney Latorraca, Marco Nanini e Antônio Pedro se travestiram na telenovela Um Sonho a Mais, exibida pela Globo em 1985 na faixa das 19 horas. Embora se tratasse de personagens cômicas, “a censura da Nova República não gostou do rumo que as personagens estavam tomando. Anabela, a personagem de Ney, permaneceu na novela, mas as moças vividas por Nanini e Antônio Pedro tiveram de sair”. (XAVIER, 2007, p. 186). Em 1989, a travesti Rogéria fez um participação especial na novela Tieta. Em uma das cenas do folhetim televisivo, Tieta (Betty Faria) interpela o sobrinho e amante, Ricardo (Cássio Gabus Mendes), no meio de uma discussão do casal sobre a identidade de gênero da personagem Ninette (Rogéria). Após ouvir Ricardo afirmar que “um homem que se vestia de mulher não era uma coisa normal”, Tieta travou com ele um debate acalorado em defesa da amiga travesti, que visitava Santana do Agreste, cidade fictícia onde se desenrola a trama.

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A aparição da travesti na telenovela se deu apenas alguns anos após o fim da Ditadura Militar e a redemocratização. Durante o regime militar, a homossexualidade e tudo a que ela se relacionava era alvo de censura oficial. Quase vinte anos após a primeira exibição da telenovela, já não havia censura oficial, embora o conservadorismo nos costumes estivesse novamente em alta. Desse modo, o discurso inflamado de Tieta contra a transfobia do amante foi deslocado no tempo, para uma época em que o mesmo preconceito manifestado por Ricardo ainda se fazia presente nos setores mais conservadores da sociedade. A cena foi reexibida no dia 6 de setembro de 2017 durante a reprise da telenovela no canal por assinatura Viva e o diálogo em questão repercutiu bastante nas redes sociais. Afinal, as posições defendidas por Tieta há quase duas décadas ainda faziam muito sentido. No período em que a telenovela era reprisada, o Brasil era inundado por uma onda conservadora, que levou ao Palácio do Planalto, como presidente do Brasil, um militar reformado, defensor da família tradicional e contrário aos direitos da população LGBTQIA+. Portanto, a fala de Tieta na cena emblemática exibida em 1989 adquiriu valor de registro histórico quando reexibida, uma vez que nos permitiu enxergar a continuidade da censura à diversidade sexual e de gênero, que era característica do regime militar. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, “a falta de modelos positivos na mídia para contrapor os preconceitos e os estereótipos tradicionais foi um legado da ditadura para a homolesbotransfobia ainda atual em nosso país.” (BRASIL, 2014, p. 306). Assim,

é

possível

inferir

que

a

análise

das

representações

das

transgeneridades em telenovelas exibidas após a redemocratização nos permitirá avaliar como travestis e transgêneros - e quaisquer outros grupos ou indivíduos que desafiam as noções de gênero socialmente e historicamente estabelecidas - estavam inseridos no cotidiano da sociedade brasileira. De acordo com Ramos (2018, p. 82), “as obras audiovisuais podem servir de fonte histórica, porque todas elas são produtos de seu tempo, sendo testemunhos do presente: refletem as ideias e os símbolos da sociedade que os produziu e consumiu, usando a tecnologia existente na época”.

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Kornis (2007, p. 2), por sua vez, defende que “a televisão firmou-se como um meio de narração de nosso tempo, não só no telejornalismo mas também na teleficção e nos programas de viés documental.” Portanto, como fonte histórica, as narrativas televisivas são a representação de uma comunidade imaginada que tem como aspectos fundamentais “a língua, a paisagem, os hábitos e costumes, os problemas e os dilemas contemporâneos além de aspectos da própria história do país” (KORNIS, 2007, p. 2). A telenovela, portanto, de acordo com Motter (2001, p. 76), trata-se de um registro do presente, pois ela “constrói uma memória, ao mesmo tempo documental – por sua permanência física como produto audiovisual gravado, mas sobretudo por sua vinculação com o presente, que a impregna com suas marcas.” Por esse motivo, visando a uma história do tempo presente, a telenovela é uma fonte documental audiovisual de suma importância, enquanto registro de um cotidiano socialmente mediado e historicizado. Isso é o que nos leva a considerar a telenovela como uma fonte que possibilite a análise das representações das transgeneridades, bem como a sua inclusão ou exclusão no cotidiano dos brasileiros após a redemocratização, nas décadas de 1980 e 1990.

Referências BRASIL. COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório: textos temáticos / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 2. GREEN, James. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora Unesp, 2019. KORNIS, Mônica Almeida. Televisão, história e sociedade: trajetórias de pesquisa. Rio de Janeiro: CPDOC, 2007. MOTTER, Maria Lourdes. A telenovela: documento. In: Revista USP, São Paulo, n.48, fev. 2001. p. 74-87.

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RAMOS, Marcos. As telenovelas brasileiras como fontes históricas: uma análise audiovisual acerca das religiões. Revista Jesus Histórico, [S.l.], n. XI, v. 21, 2018. p. 79-93. TREVISAN, João. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. XAVIER, Nilson. Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books, 2007. ____________. Relembre os travestis e transexuais das novelas. Universo Online, São

Paulo,

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fev.

2013.

Seção

TV

e

Famosos.

Disponível

em:

<https://tvefamosos.uol.com.br/blog/nilsonxavier/2012/02/22/relembre-os-travestis-etransexuais-das-novelas/>. Acesso em: 22 nov. 2020.

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PERTURBAÇÕES TEMPORAIS

Allan Corsa (UFRJ)1 A memória racial fundamentada em nossa existência, distribui modos de pensar e agir, herdados pelo agenciamento europeu disposto no mundo através da colonização. Durante os últimos cinco séculos, a violência física e cognitiva, foram e são, forças de ação implantadas nos corpos racializados durante o período colonial, reverberando também nos corpos que habitam o presente. O mundo como conhecemos, foi e é ordenado por posicionamentos hegemônicos, que distribuem na história, formas de pensar e existir, que excluíram da categoria de humanidade a própria natureza e o sujeito racializado como possibilidades de expressão, pensamento e subjetividade. (NATÁLIO, 2016. p.4) O conceito de raça como sendo uma categoria científica construída pelo pensamento filosófico moderno (FERREIRA DA SILVA. 2019. p.94), se constitui como uma ferramenta que posiciona diferentes grupos humanos, em uma hierarquia de mundo, sendo o homem branco europeu, este que escreve a história em seu formato hegemônico, localizado no topo desta cadeia. Dentro dessa estrutura, esse sujeito é inscrito como sendo autodeterminado, que compreende a si próprio como não faltando nada, um sujeito que pensa e existe, a exemplo do plano cartesiano, e também um sujeito que pode determinar todas as coisas do mundo através da razão e do juízo. (FERREIRA DA SILVA. 2019. p.38) Muitos pensadores que desenvolveram seus programas de conhecimento filosófico do mundo, sustentaram a categoria de raça, fora do campo de significação da história, como aponta Denise Ferreira da Silva em seu trabalho A dívida impagável (2019), no mundo como conhecemos a inscrição do ser racial só é disposta como força de trabalho, que contribui diretamente na vida do capital global, onde suas ações no tempo, são impossíveis de acontecer sem serem atravessadas pela violência. Em uma parte de seu trabalho, Denise desenvolve conceitos específicos que expõem

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Allan Corsa, artista-pesquisadora do curso de Artes Visuais – Escultura, da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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formas de pensar o mundo através da concepção de temporalidade linear, neste caso ela propõe a noção da Sequencialidade, onde a partir do programa filosófico desenvolvido por Hegel, expõem a noção dominante de movimento do corpo e espírito no espaço-tempo.

Figura 1. Encontre, 2020 Espelho e flecha com lascas de Pau-Brasil 30 x 35 cm. Acervo da artista. A experiência de tempo constituída pelas ciências corre através de uma flecha, onde o passado está totalmente separado do presente. Os experimentos visuais que compõem esse texto funcionam como uma questão em aberto sobre os efeitos temporais da experiência do corpo no espaço, seja dentro, fora, adiante, acima e ao lado dele. Nesta proposição a flecha é invertida pelo espelho, e atravessa a imagem de quem se pôr diante do objeto. Invertendo a flecha e ao mesmo tempo criando um embate com essas materialidades que habitam narrativas das quais explicitam importação de algo trazido de fora, deste corpo, deste território, e de outras histórias. A concepção de tempo é questionada dentro de nossa contemporaneidade, junto com esse embate de materialidades e corpos, propondo uma implicação temporal dentro de um sistema implicado em que todos os corpos estão correlacionados de alguma forma, e não separados, como proposto pela modernidade, no momento em que o sujeito autodeterminado se opôs a natureza e ao outro racial. (FERREIRA DA SILVA. 2019. p.43) 19


Figura 2. urbanocoreográfico, 2017. vídeo 59:00’, in https://vimeo.com/user70780494

Em urbanocoreográfico (2017), o corpo apresentado ocupa o espaço urbano através de uma coreografia que corre contra a timeline2 na edição do vídeo. O tempo acontece de forma implicada com outras temporalidades presentes por todos os corpos que atravessam o quadro, em direções inesperadas. Meu corpo sendo racializado pode aparecer em destaque no vídeo, justamente porque nesta posição visual, ele habita o lugar da vigilância no espaço público. Denise Ferreira da Silva neste sentido identifica esse aspecto, através da imagem do que ela chama de “Evento Racial”, mapeando os fatos da história que é sempre narrada por homens brancos, que sempre ocupam uma posição de poder hierárquico sobre o outro, explicitam a esse outro sempre como algo ameaçador, seja tanto no período escravocrata quanto em nossa contemporaneidade, onde inúmeros jovens negros são identificados como sujeitos ameaçadores diante de operações 2

Traduzido como “linha do tempo”, é o nome dado a esta ferramenta presente entre os softwares de edição de vídeo, onde a linha temporal da janela de edição corre para um único lado.

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policiais na cidade do Rio de Janeiro. O espaço urbano direciona os corpos em seus fluxos construídos e pensados para o movimento ordenado dentro da cidade, na maioria das vezes escoltado pelos agentes de segurança do Estado, criando uma espécie de coreografia (LEPECKI. 2011. p.46) diária vivenciada pelos corpos que assim circulam. Essa experiência urbana, e, ou, social é desde sempre performada por quem constrói as categorias de subjugação e por quem ocupa, não por vontade própria, essas categorias, criando assim uma “ocupação colonial” (MBEMBE. 2016. p.135), que se atualiza no tempo, sempre acionando as mesmas maneiras de intervenção, que distribui papéis de atuação no espaço social em que vivemos, tendo o corpo racial sempre no papel do outro. Neste caso o corpo se mostra como “inatemporal” refletindo sempre a forma como o valor que foi dado a ele reverbera de forma reformulada em nossa contemporaneidade, unindo presente e passado em um mundo implicado.

Referências FERREIRA da SILVA, Denise. A Dívida Impagável. São Paulo, 2019. MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes e Ensaios n.42 - PPGAV/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016. NATÁLIO, Rita. Acabar o mundo, Torcer o Mundo. Oficina de imaginação política. 32° Bienal de São Paulo, 2016 LEPECKI, André. Coreo-política e Coreo-polícia. Revista Ilha - UFSC. Santa Catarina, 2011.

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USOS DO ERÓTICO COMO PODER: REPRESENTAÇÕES DO ERÓTICO FEMININO NAS ARTES VISUAIS EM DIÁLOGO COM O BOLETIM CHANACOMCHANA3

Bruna Emanuele Fernandes (EBA/UFMG) Bárbara Lissa (EBA/UFMG) Rita Lages Rodrigues (EBA/UFMG)4

Introdução As representações dos corpos femininos nas sociedades ocidentais modernas foram marcadas pelo olhar masculino, um olhar que nomeia, classifica, desenha, pinta, esculpe, e assim cria e reproduz a estigmatização social. A partir do estudo do boletim (também denominado folheto ou zine) ChanaComChana, uma publicação independente lésbico-feminista do Rio de Janeiro, resultante do GALF (Grupo de Ação Lésbica Feminista, 1981-1990) que vigorou entre 1981 e 1987, mostraremos como, na publicação, uma outra representação (e apresentação) do corpo e do erotismo femininos foram possíveis. O boletim constituía-se como dispositivo de posicionamento e afirmação de mulheres lésbicas e de seus desejos, sexualidades, medos; por meio dele, uma rede de apoio e trocas intelectuais e afetivas foi criada entre essas mulheres. Uma das estratégias de construção da identidade e afirmação da sexualidade era a veiculação de imagens com conteúdo erótico-afetivo lésbico nos impressos, o que desafiava o

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Um artigo completo com este tema será publicado em breve pela Zines Journal, em inglês, no dossiê Embodied DIY: Feminist and Queer Zines in a Transglobal World. 4 Bacharel em Letras, com ênfase em Estudos de Edição (UFMG), e mestranda em Artes na linha de pesquisa Artes Plástica, Visuais e Interartes pelo Programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (PPG-Artes/EBA/UFMG). Bolsista CAPES. Licenciada em Letras (UFMG), bacharel em Artes Plásticas (Guignard/ UEMG) e mestranda em Artes na linha de pesquisa Artes Plástica, Visuais e Interartes pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (PPG-Artes/EBA/UFMG). Bolsista FAPEMIG Historiadora, doutora em História pela UFMG, professora de Teoria e História da Arte da EBA/UFMG, trabalha com temáticas de história da arte, patrimônio cultural, estudos urbanos e história das mulheres. Coordena o Grupo de Pesquisa Estopim, Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Patrimônio Cultural e é co-coordenadora do Laboratório de Curadoria de Exposições Bisi Silva.

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moralismo e o conservadorismo heterocispatriarcais da sociedade, além da presença constante de charges e tirinhas, por meio das quais suas editoras e redatoras expressavam seu ponto de vista sobre determinados assuntos. O erotismo no ChanacomChana, ademais, extrapolava o campo da representação de sexualidades femininas, após reapropriá-lo e ressignificá-lo. Assim, buscamos desenvolver uma análise do erótico contido na lesbianidade manifestada nos boletins como locus de afirmação dessas mulheres, em contraponto político à construção do corpo da mulher na sociedade, no discurso midiático, veiculado sobretudo em mídia impressa e na história da arte como objeto de desejo por e para o sistema heterocispatriarcal. Apontamos, ainda, rupturas que ocorreram na forma como corpos e desejos femininos foram apresentados a partir do momento em que mulheres passam a se autorrepresentar. O corpo feminino representado pelo homem: a alienação da mulher da agência de sua sexualidade Historicamente, no Ocidente desde o período moderno, transpareceu, na construção da figura da mulher, a tônica de uma representação do corpo feminino como o “outro”, alternativo ao “normal” masculino, como substância derivada, e não derivativa e autoconstitutiva enquanto sujeito social (DE LAURETIS, [1994] 2019). No contexto do surgimento e estabelecimento de uma mídia autoafirmativamente feminina e/ou feminista no Brasil, entre o final do século XIX e o século XX, mulheres buscavam, por essa via, a produção de conteúdos femininos e/ou feministas, assumindo o papel de agentes na veiculação desses conteúdos sobre si, a partir de uma perspectiva política. Quando falamos no erótico, a publicidade, o cinema, a pintura, a história da arte

contêm

uma

série

de

representações

construídas

pelo

sistema

heterocispatriarcal, em que a mulher aparece majoritariamente como objeto de desejo do olhar voyeurístico masculino. Acerca disso, Laura Mulvey, feminista inglesa e crítica de cinema, desenvolve uma ampla análise da representação da mulher no cinema, a partir de um olhar patriarcal dos diretores. Segundo Mulvey, todos os filmes assumem que o desejo do(a) espectador(a) é masculino, o que transforma o público – independente de gênero – num eterno voyeur falocentrado. Como John Berger

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apresenta em seu livro Formas de ver, os homens são o expectador ideal e “a imagem da mulher é desenhada para lhe dar prazer” (Berger, 1972, p. 64). O erótico como poder: “Mergulho em uma análise gráfico-visual do Chanacomchana. Por meio do conteúdo produzido por suas editoras, colaboradoras e entrevistadas e dos debates por elas propostos, o ChanaComChana pode ser interpretado como documento de registro abertamente feminista e lesbocentrada, além de podermos ver, ao longo de suas treze publicações, o “engatinhar” de reflexões de gênero, do começo de um reconhecimento da interseccionalidade e do queer como um caminho, e da lesbianidade para muito além do sexual: como um modo de viver e lidarmos umas com as outras, como uma forma de usufruirmos do poder do erótico em nossa socialização. Sobre o poder do erótico, discorre Lorde: O erótico é uma dimensão entre as origens da nossa consciência de si e o caos dos nossos sentimentos mais intensos. É um senso íntimo de satisfação, e, uma vez que o experimentamos, sabemos que é possível almejá-lo. Uma vez que experimentamos a plenitude dessa profundidade de sentimento e reconhecemos o seu poder, em nome de nossa honra e de nosso respeito próprio, esse é o mínimo que podemos exigir de nós mesmas (LORDE, [1978] 2019, p. 67-68, grifos nossos). O erótico como poder foi suprimido da socialização do gênero feminino, o que impede um processo de tomada de consciência plena de si, de autoafirmação. No entanto, as mulheres, ao longo da história e por toda parte, têm trilhado o caminho para fora do cerco, e, para isso, a tomada de consciência da potência do erótico contido nas existências – na força vital, psíquica, que confere autonomia e confiança perante elas e a vida – exerce papel central. O erótico, afinal, em essência, como defende Lorde ([1978] 2019, p. 67-74), é algo bem diferente e maior que o que a concepção aproximada da pornografia - um dos mecanismos mais usuais de opressão masculina sobre corpos femininos.

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No fazer do Boletim, é recorrente a presença de figuras femininas sozinhas ou compostas, charges, tirinhas, e de símbolos como o lábris e o espelho de Vênus, sobretudo a figura de dois espelhos de Vênus entrelaçados lateralmente, utilizados pela militância lésbica. O próprio símbolo do GALF, reproduzido no topo da capa de cada edição, é o de dois espelhos de Vênus entrelaçados, com suas cruzes formando o “LF” de “lésbica feminista” (Figura 1)

Figura 1. Mural contendo: espelhos de Vênus entrelaçados; espelhos de Vênus entrelaçados com o “LF”, marca do GALF; lábris acompanhado de assinatura. Chanacomchana. O uso das imagens na composição gráfica do boletim é construído majoritariamente sob a forma ilustrativa de textos, com um caráter de representação da mulher lésbica, seja por desenhos com linhas simples ou fotografias de jornal. Os boletins contêm imagens que representam mulheres indianas, negras, indígenas, brancas – embora essa representatividade se dê majoritariamente por mulheres brancas, e mesmo mulheres europeias, com referências a esculturas gregas. Bastante provocativas para a época, apresentando desenhos que tratam do sexo lésbico, as imagens são também um veículo de fortalecimento da identidade lésbica, ali representada a partir de conteúdos afirmativos de sua sexualidade e do erótico. As representações de interações afetivas entre mulheres – em contexto explicitamente afetivo, ocasionalmente sexual ou não (Figura 2) – estão presentes. O boletim ChanacomChana foi um espaço fundamental para as autorrepresentações do corpo feminino feitas por e para mulheres no campo da imagem e do erótico na imprensa feminina e/ou feminista brasileira, contrapondo-se a um sistema de representação, então e ainda hoje vigente, do homem sobre a mulher.

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Figura 2. Montagem feita a partir de algumas das várias representações de afetividade e sexualidade femininas lesbocentradas que observamos ao longo de nossa análise dos números do boletim (ChanacomChana, n. 0-12, 1981-1987). As autorrepresentações do corpo feminino feitas por e para mulheres no campo da imagem e do erótico materializam a consciência de si por parte das mulheres, que se tornam autoras do próprio desejo, contrapondo-se a uma narrativa visual sobre corpos femininos realizada por homens. A escolha por imagens eróticas do sexo lésbico no boletim ChanacomChana, e mesmo a escolha do próprio nome do boletim, aponta um movimento de extrema importância para validar a sexualidade lésbico-feminina, não só por validar o desejo e a liberdade de expressá-lo, mas por abrir um campo de discussão no campo da arte, da imprensa, da edição, e mesmo de representações que circulam na sociedade, pautadas pelo amor romântico heteronormativo e pela ponografia. Abordamos o pioneirismo jornalístico e histórico deste boletim, refletindo sobre a força dos eróticos feminino e lésbico ali presente, que buscava a autonomia feminina a partir do controle sobre os próprios corpos, o controle de sua autorrepresentação, fundamental para as mulheres existirem como

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sujeitos e não simplesmente como objetos de desejo de outros, explicitando o caráter político-erótico do Boletim.

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RAÇA, GÊNERO E CLASSE NAS CAPAS DA REVISTA PRESENÇA DA MULHER Beatriz Monteiro Lemos (UFRJ)5

Como instrumento de atuação política e de resistência à censura, a imprensa alternativa ou “nanica” exerceu durante a ditadura militar um papel importante nos movimentos sociais cujas ideias eram vetadas na mídia hegemônica, elencando pautas que visavam a atingir a esquerda e muitas vezes uma militância específica mulheres, negros, LGBTs, indígenas. Já nos anos 1970, no momento de transição política da ditadura, tiveram destaque na luta pela democracia os movimentos feministas e a imprensa dirigida por mulheres, como o Brasil Mulher (1975) – portavoz do Movimento Feminino pela Anistia - o Nós Mulheres (1976) e o Mulherio (1981). Segundo Schwarcz e Starling,

“Os movimentos de minorias políticas alargaram os contornos da luta democrática e fizeram circular seus pontos de vista em publicações próprias que combinavam um novo ativismo político, no qual se reivindicava o reconhecimento da diferença associado à pauta da demanda por igualdade e universalidade de direitos, e que introduzia novas categorias analíticas, como gênero ou sexualidade” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.474). Especialmente com a instauração da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 - na qual o movimento de mulheres foi o primeiro grupo a organizar suas demandas - intensificou-se o debate no interior das mais diversas correntes feministas sobre a questão geral versus específico, ou seja, se era o momento de defender incondicionalmente os direitos “universais” ou exigir o reconhecimento das diferenças, a partir da compreensão de que as variadas existências demandam 5

Beatriz Monteiro Lemos. Mestranda em História Social no PPGHIS-UFRJ. Licenciada e Bacharela em História pela Universidade de Brasília. É pesquisadora colaboradora do Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metrópole do Instituto de História da UFRJ. E-mail para contato: biamonteirolemos@gmail.com

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variadas atenções. Nessa conjuntura da Constituinte e com a proposta de interlocução entre essas duas lutas que pareciam incompatíveis, vêm à público a revista Presença da Mulher em julho/agosto de 1986. A revista surge em um novo momento para a imprensa

alternativa,

agora

direcionada

especificamente

à

militância

de

organizações ou partidos políticos - a Presença era composta majoritariamente por mulheres do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Este trabalho analisa as capas das primeiras 25 edições da revista, entre 1986 e 1993, assumindo que por meio delas é possível constatar sobre o público-alvo da revista e apreender quais foram, naquele momento, as principais demandas da corrente elaborada pelas criadoras da Presença da Mulher, o feminismo emancipacionista. Essa teoria buscava a correspondência da luta pela emancipação das mulheres com a luta de classes, em uma elaboração baseada no que alguns autores marxistas como Mészáros (2002, 2016) e Marcuse (1975) nomeiam de emancipação humana, e também defendia a mobilização das massas de milhões de mulheres – principalmente operárias, camponesas, trabalhadoras em geral, estudantes, intelectuais progressistas para abraçar a causa da emancipação da mulher em sua especificidade, mas interligada com a luta revolucionária rumo ao socialismo, único caminho capaz de acabar com toda a exploração e opressão (VALADARES, 1990, p.5). O trabalho pressupõe que os recursos imagéticos e a linguagem utilizadas pela revista são fundamentais para analisarmos a trajetória e amadurecimento de suas principais pautas - como trabalho, racismo, eleições, sindicalismo, desigualdade de gênero, maternidade, entre outras. Assim, a pesquisa indica que esse movimento incorporou demandas das mulheres brasileiras especialmente na conjuntura de restabelecimento da democracia, permeado por crises, e identifica na revista Presença da Mulher um marco positivo na representatividade das mulheres brasileiras engajadas na luta pela democracia e por emancipação no âmbito público e privado.

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Referências MARCUSE, Herbert. Eros E Civilização Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. ________ A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2016. SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Brasil: uma Biografia / Lilia Mortiz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling - 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. VALADARES, Loreta. “A ‘controvérsia’ feminismo x marxismo”. Revista Princípios. São Paulo: Ed. 18 jun-ago, 1990, p. 44- 49. PERIÓDICOS Presença da Mulher. São Paulo: Liberdade Mulher. 1986-1993. Irregular.

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“EU POSSO FALAR QUALQUER COISA COM ESSA VOZ”: O ENGAJAMENTO POLÍTICO DE NINA ROSA NO SAMBA CARIOCA

Bruna Aparecida Gomes Coelho (UFRJ)6

Nasce uma mulher sambista Nina Rosa foi criada na cidade do Rio de Janeiro e desde cedo se envolveu com a música. Quando estudou no Colégio Franco-Brasileiro teve uma professora que lhe ensinou sobre músicas indígenas, africanas e outros ritmos brasileiros, além de ter sido aluna da Escola de Música Villa-Lobos, onde aprimorou seus conhecimentos de percussão. A família teve sua parcela de influência para a cantora: o pai tinha uma loja de discos e a avó era mangueirense de coração e levava a neta aos ensaios da Mangueira e a blocos de carnaval. Contudo, Nina começou a cantar profissionalmente apenas quando estava estudando na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), no início dos Anos 2000. Nesse período ela fundou com alguns amigos o grupo Samba de Maria, que se apresentava em regiões próximas à UERJ, como o bairro de Vila Isabel. Cantora, compositora e percussionista, Nina Rosa faz parte da nova geração de talentos da música popular brasileira que conseguiu despontar no cenário do samba devido à sua potente interpretação e notável voz. Já fez apresentações por todo país e esteve ao lado de grandes nomes como Leci Brandão e Nei Lopes. Somase ao seu repertório canções de variados estilos como samba-canção, samba-deroda, bossa-nova, coco, jongo, baião, ijexá e até a defesa de sambas de enredo – Histórias Para Ninar Gente Grande, samba de enredo da Mangueira em 2019, foi defendido por Nina ao lado da pequena Cacá Nascimento. Ao longo dos anos foi

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Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre as mulheres do samba, dando visibilidade ao seu engajamento político e cultural. Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail para contato: bruna.agcoelho@gmail.com.

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construindo seu nome musical e no universo sambista das rodas, blocos e escolas de samba, sendo hoje uma das expoentes do samba carioca. As escolhas artísticas de Nina Rosa Para compreendermos o engajamento político presente na obra de Nina Rosa analisaremos uma entrevista concedida no dia 4 de agosto de 2020 para o canal Portela Cultural (YouTube), em que a cantora foi entrevistada por Dandara Luanda, e as seguintes canções gravadas pela artista: Pra Matar Preconceito, Negra Linda, Vale Saída. Em determinado momento da conversa a entrevistadora afirmou que, em sua perspectiva, Nina não desvinculava sua arte de seu posicionamento político, ao que a cantora respondeu da seguinte maneira: Você está totalmente certa [...] e é como muita gente me vê também. [...] Eu acho que a postura em cantar, em chegar em algum lugar e dizer “eu sou mulher negra, preta, eu sou mulher que mereço espaço e respeito, sou mulher trabalhadora da música, do samba”. São essas mensagens que eu passo, que são muito simples, mas a sociedade complica isso de uma forma que eu acho que quando você está com o microfone na mão é uma boa maneira de você explicar para um tantinho mais de gente. (Nina Rosa, 4 ago. 2020). É evidente que a cantora avalia que sua música é uma forma de defender seu espaço na sociedade. Em outro momento, a entrevistadora levantou a questão sobre existir uma resistência às mulheres dentro do samba e questionou Nina sobre como a artista lida com tal problema. A cantora fez a seguinte análise: Eu acho que essa coisa do machismo é em decorrência da sociedade. É o machismo estrutural. Então ele vai acontecer em qualquer lugar da sociedade, inclusive no samba que é o lugar de tantas mulheres, de tantas matriarcas, de tantas tias importantes. [...] Eu caminho pelo samba como eu tenho que caminhar, como eu gostaria de caminhar: se pisar no calo a

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gente canta mais uma música, a gente ganha o samba. (Nina Rosa, 4 ago. 2020). Nina admite que precisou aprender a andar nesse território marcadamente masculino, construindo sua trajetória e vencendo as adversidades através da própria música. O que ainda acontece, muitas vezes, é uma necessidade de se afirmar diante dos seus iguais, enfrentando e vencendo desafios para ser reconhecida pelos seus pares. Portanto, em sua fala a artista demonstra o interesse por combater duas questões importantes, que são o machismo e o racismo. Isso é perceptível em duas músicas gravadas por ela: Pra Matar Preconceito (Manu da Cuica e Raul DiCaprio) e Negra Linda (Déa Santtos e Hamilton Fofão). A primeira foi gravada em 2016, em parceria com Marina Iris, e deu origem a um clipe roteirizado pelo Coletivo Bando. Já a segunda faz parte do primeiro EP do grupo musical Muxima Muato, que foi fundado em 2018 e do qual a cantora é integrante. O EP recebeu o título de Coração de Mulher, que é a tradução de Muxima Muato (dialeto africano quimbundo) para o português. A música Pra Matar Preconceito já diz a que veio nos primeiros versos: “Na rua me chamam de gostosa / E um gringo acha que eu nasci pra dar / No postal mais vendido em qualquer loja / Tô lá eu de costas contra o mar”. Após essa abertura que fala da objetivação do corpo feminino, especialmente negro, a letra centraliza a condição da mulher negra e a visão que a sociedade tem sobre elas. Posteriormente, ao citar importantes nomes como Ciata, Dandara e Quelé, a poesia remete a importantes figuras femininas da resistência negra. A canção afirma que ninguém pode dizer o lugar dessas mulheres, e que sua história de resistência é muito antiga. Há como objetivo conseguir demonstrar a força e altivez dessas personagens que sobreviveram ao longo dos séculos, construindo suas histórias e contribuindo para a libertação de seu povo não apenas das correntes físicas, mas também das correntes sociais e culturais. A canção Negra Linda é um jongo que exalta a beleza da mulher negra e ao mesmo tempo suas raízes: “Negra, Linda, Joana, Axé, Saravá / Força, fé em Oxalá / Ginga, Maria, Jongo, Benguela, Alujá / Chega de negro só penar”. As palmas e o

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coro no fundo evidenciam o clima de roda de jongo, reforçando a imagem das raízes africanas presentes na canção ao mencionarem elementos que compõem as religiões de matriz africana e citarem povos que foram trazidos da África. É uma música que remete ao ouvinte um sentimento de empatia e reconhecimento da luta do povo negro. Durante a entrevista, Nina pontuou que sua obra artística também tem relação com o amor, que é um componente principal da última canção mencionada neste texto. Vale Saída é um samba cadenciado escrito por Ivan da Gamboa e gravado por Nina em 2020, narrando o possível fim de uma história de amor: “Não me procura mais, se quer olha pra mim / Nenhuma graça faz, não sei amar assim / Decide o que fazer: se vai dar atenção / Ou dar um vale saída das garras do teu coração”. Como a própria artista afirmou em sua entrevista, ela também gosta de cantar sobre a natureza, o amor e outros temas que atravessem a sua sensibilidade. Conclusão Existe uma movimentação no samba carioca em que as mulheres têm buscado criar seus próprios espaços para se apresentarem como artistas, não esperando mais a boa vontade de territórios já ocupados e estabelecidos em sua maioria por homens. É o caso do Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba, que teve sua terceira edição em 2020 e contou com a participação de mulheres de outros países. Um evento criado por mulheres e feito por mulheres para o público em geral, que se tornou palco para homenagear as grandes mulheres sambistas, além da oportunidade delas apresentarem suas pautas, projetos e trabalhos musicais. Um ambiente para terem voz, como a própria Nina disse: “Eu posso falar qualquer coisa com essa voz, mas é importante que a gente tenha voz” (Nina Rosa, 4 ago. 2020). A artista busca fazer parte desses novos projetos e ocupar esses territórios como, por exemplo, integrando o bloco carnavalesco “Comuna que Pariu!” (do qual é instrutora de percussão) e os grupos “Vibra Negra Voz” e “É Preta”. Nina Rosa e seu engajamento político no samba carioca é um exemplo dessa nova geração de mulheres sambistas que não ficam mais esperando que as oportunidades surjam, mas que as criam e se beneficiam delas. Por se reconhecer enquanto mulher negra do samba, a cantora faz escolhas artísticas que refletem suas

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lutas sociais e culturais, pois o palco se tornou um momento para conversar com o público e ampliar sua voz, fazendo com que outras pessoas ouçam seu discurso e entendam suas lutas. Desta forma, as fontes apresentadas neste breve texto exemplificam o seu olhar sobre questões que permeiam o seu cotidiano, como essa luta contra o machismo e o racismo. É importante ressaltar também a busca dessas mulheres por recontar a história pela ótica de suas ancestrais, as quais foram relegadas muitas vezes ao esquecimento ou até mesmo ao silenciamento na construção desse importante universo cultural que é o samba carioca7.

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PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [Tradução Ângela M. S. Côrrea]. – São Paulo : Contexto, 2007.

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MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro – 2ª edição – Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1995. NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. – 3. ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2005. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. [Tradução Ângela M. S. Côrrea]. – São Paulo : Contexto, 2007. WERNECK, Jurema Pinto. O samba segundo as ialodês: mulheres negras e a cultura midiática. 2007. 318 f. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

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“DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”, OS PILARES DA NAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE CARECAS INTEGRALISTAS

Camilla Maria Silva Cavalcante (UFRJ)8

Introdução e metodologia No século XX, principalmente na Europa, no contexto social turbulento dos pós Segunda Guerra, surgem grupos juvenis que compartilham um estilo conhecido como “Skinhead”9 e partem de uma identidade10 coletiva (CASTELL,1999). No Brasil, na região dos subúrbios da cidade de São Paulo, um grupo que adota este estilo emergiu da ruptura com o estilo Punk, na década de 1980. Tratava-se de um grupo influenciado pelos movimentos Skinheads europeus, sobretudo pelos coletivos de caráter ultranacionalista e que se expressavam através de simbologias apropriadas, que faziam referência ao Nacional-Socialismo Alemão da década de 1930. Entretanto, em busca de uma caracterização nacional e de elementos que os diferenciassem do movimento Punk, o grupo passou a se chamar “Carecas do Subúrbio”. Hoje em dia, o grupo não se restringe à cidade de São Paulo. De maneira plural no Brasil, existem em diversos Estados pessoas que se identificam como Carecas. Uma característica peculiar aos dissidentes deste grupo, os Carecas do ABC11 , que são o foco deste estudo, é admitir associações ideológicas com o Integralismo Histórico12.

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Camila Maria Silva Cavalcante, formada em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestranda em História Social pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, hist.cami@homail.com. 9 Cabeça raspada 10 Toma-se aqui identidade como o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados. o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. Cf. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade.; Tradução Klauss Brandini Gerhardt." A era da informação: economia, sociedade e cultura” v2.1999. p.22. 11 Grupo de Skinheads da cidade de São Paulo. A sigla ABC faz menção às cidades que originalmente formavam a região industrial da cidade. Santo André (A), São Bernardo do Campo (B) e São Caetano do Sul (C) 12 Na primeira fase a AIB pode ser interpretada, em acepção gramsciana, como um aparelho privado de hegemonia que aglutinou segmentos políticos de tendências variadas: antissemitas, simpatizantes e seguidores do fascismo italiano, e nacionalistas ligados ao catolicismo social. Cf. BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Chauvinismo e extrema direita: crítica aos herdeiros do sigma. UNESP,2015,p. 324.

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Principalmente a partir da década de 1980, há uma intensificação e diversificação dos discursos políticos dos Skinheads, sendo o nacionalismo uma característica comum a eles, principalmente aos que possuem associações ideológicas com a extrema direita. Historicamente o nacionalismo consiste em uma ideologia surgida na chamada idade moderna e possui como marco de sua ascensão o rompimento com as estruturas de poder das monarquias absolutistas. Como um processo econômico e político passa a ser teorizado principalmente após a revolução Francesa nas mais diversas abordagens. As primeiras teorias focavam em identificar elementos subjetivos e objetivos que compunham a nação. A partir do século XX foram surgindo novas abordagens que buscam ir além, para uma compreensão mais completa do que seria a nação. (BREUILLY, 2000) As fontes utilizadas na composição desta pesquisa fazem parte das redes sociais oficiais utilizadas pelo grupo Carecas do ABC. O site oficial do grupo13 e a rede social, do Facebook14. As publicações sobre a inauguração da página do Facebook se iniciam em 2013, sendo a inauguração do site no ano de 2016. Ambas possuem como objetivo político, informar e agregar seguidores “para a defesa da causa nacionalista”. Circunscrito em um momento de efervescência de manifestações de junho no Brasil do mesmo ano. O grupo se apresenta na descrição destes sites como uma organização sem fins lucrativos. Ao assimilar valores de um tradicionalismo típico da “nova direita”(MIGUEL, 2018, p.509)15, recebem ampla visibilidade e difusão devido a amplitude dos meios de comunicação. Estas páginas da internet estão circunscritas no que Fábio Almeida define como “documento digital” (ALMEIDA, 2011, p. 17)16. O pesquisador do tempo presente tem acesso exclusivo a esse material, neste sentido o historiador não atua apenas com a análise, mas também com preservação da informação. Toda a documentação é arquivada em formato de arquivo PDF, assim como todos os recursos disponíveis devem ser salvos; 13

Disponível em: <http://carecasdoabc.wix.com/carecasdoabc> Disponível em:<https://www.facebook.com/CarecasdoABC/?epa=SEARCH_BOX> 15 Aglomerado ideológico semi-coeso onde se misturam ideias do conservadorismo, do libertarianismo e do reacionarismo, somadas a ideais que fazem apologia ao eugenismo e à segregação racial. Flertam por vezes de maneira direta ou indireta aos constructos do nazismo e do fascismo. Esses ideais circulam frequentemente defendidos sob a justificativa da liberdade de expressão. MIGUEL, Felipe. A reemergência da direita Brasileira In: SOLANO, Esther (Ed.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. Boitempo Editorial, 2018. 16 O documento é o registro da expressão da experiência humana, em suas mais variadas manifestações, independentemente de seu suporte material. Podemos considerar que “documento digital” é aquele documento de conteúdo tão variável quanto os registros da atividade humana possam permitir-codificado em sistemas de dígitos binários, implicando na necessidade de uma máquina para intermediar o acesso às informações. Tal máquina é, na maioria das vezes, um computador. Cf. DE ALMEIDA, Fábio Chang. 14

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músicas, vídeos e sites relacionados ao principal que se incluem como parte auxiliar dessa mesma documentação, criando-se assim um banco de dados (Ibidem, p, 25). Fazem parte da metodologia desta pesquisa planilhas, banco de sites, divisões temáticas afim de acompanhar os conteúdos que mais se repetem. Quadro teórico A pesquisa pioneira sobre os Carecas do Subúrbio produzida por Márcia Regina da Costa, ressalta as dinâmicas contraditórias e conflituosas do grupo analisado. Segundo a mesma, há um processo de desterritorialização causada pelas mudanças da modernidade da globalização e consequentemente de uma cultura de massas. Ocorre um nomadismo, neste sentido o homem contemporâneo não é apenas desterritorializado, seu corpo reage como substância informática ao “terror do mesmo” (COSTA, 1992, p. 216). Assim Punks, Skinheads e Carecas são apontados como uma espécie de antevisão desse nomadismo produzido pela perda desse território. Neste sentido, o Estado produz a violência legitimada, enquanto os Skinheads e Carecas evocam o direito de exercer a violência como expressão imaginária de uma vontade totalitária. Segundo Jefferson Rodrigues Barbosa, há diferenças entre o integralismo da década de 1930 e os integralistas contemporâneos. O autor defende a hipótese de que mesmo os militantes buscando atualizar seus temas, permanecem seguindo os princípios integralistas. Assim, as organizações são caracterizadas por um discurso fortemente moralizador que critica o caráter materialista da vida moderna, fazendo referência a princípios de ordem simbólica, como a defesa de uma comunidade étnico cultural que precisa ser resguardada. Como por exemplo, os White Power paulistas e o Partido Nacional Socialista Brasileiro. Para estes grupos ou organizações que correspondem a essa primeira vertente tradicionalista, geralmente utilizam o prefixo “neo” fascista ou nazista. Enquanto a outra vertente busca adaptar a suas concepções diante da conjuntura contemporânea e algumas vezes negando simbolismos tradicionais (BARBOSA, 2012). Segundo Bourdieu, apesar do poder estar presente em tudo, seria necessário desenvolver técnicas para enxergá-lo nos meios menos aparentes. Este poder invisível só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que estão sujeitos a ele. O poder simbólico é uma construção da realidade que tende a estabelecer um sentido

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imediato do mundo e em particular do mundo social o que contribui para a reprodução da ordem, a lógica moral. As disputas pelas narrativas, a imposição de instrumentos de conhecimento, é uma luta para o monopólio “da violência simbólica legítima” (BORDIEU, 1989, p.12). Assim a linguagem é compreendida como uma forma de legitimar o poder. Observamos nas fontes o caráter central que o nacionalismo possui para a construção do próprio discurso dos Carecas do ABC. O nacionalismo aqui é compreendido como parte integrante do poder simbólico do grupo. Umut Özkirimli se propõe a pensar o conceito como uma forma particular de discurso e delimita as operações do mesmo: 1ª) O nacionalismo divide o mundo em “nós” e “eles”; 2ª) O discurso do nacionalismo hegemoniza, trata-se de poder e dominação, produz hierarquias entre os atores sociais, autorizando formulações particulares da nação contra as outras, ocultando as fraturas e divisões de opinião dentro da nação. 3ª) O discurso do nacionalismo naturaliza-se. “Valores nacionais não são mais vistos como valores sociais e aparecem como fatos da natureza”. Isto faz com que a linguagem da identidade nacional seja transformada em uma linguagem da moralidade e torna o nacionalismo o próprio horizonte do discurso político; 4ª) A identidade nacional tem de ser aprendida e interiorizada por meio da socialização (ÖZKIRIMLI, 2005, p, 3233). Estas definições mostram que o nacionalismo é um fenômeno cognitivo, que funciona através de categorias e conhecimentos. Nesse sentido, as nações só existem quando os seus membros entendem a si mesmos e o mundo ao seu redor por meio do discurso nacionalista. No que se refere a minha pesquisa, a ideologia defendida pelos Carecas, poderia ser parte de uma correlação da violência simbólica para a violência política (dominação),legitimando assim o Integralismo enquanto teoria para impor uma versão de um mundo social, conforme seus ideais. Prestigiamos uma compreensão ampliada da noção de poder que ultrapassa as categorias da história política tradicional, como Estado, soberania, governo etc., para considerá-lo também, como efeito do funcionamento e dinâmica de relações e práticas sociais constituídas entre os sujeitos. Nesta perspectiva, falamos do discurso

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que atua na “periferia da política” (CALSALS apud VIÑAS, 2013, p. 38)

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e é

protagonizado pelo próprio grupo. Resultados parciais Analisando as fontes podemos perceber duas temáticas principais em todo o discurso dos Carecas do ABC. A primeira é o “anticomunismo” que se apresenta através do “antipetismo”, marcado também pela intolerância a homossexuais; a segunda é a “teoria conspiracionista judaico maçônica”. Dentro da análise buscou-se identificar o encaixe entre todas essas temáticas, o que chamamos de “categorias” que é a relação Deus, Pátria e Família, slogan do grupo e que possui vínculo com suas noções de nacionalismo. Entre as trinta e oito obras indicadas no site dos Carecas do ABC dezessete abordam temáticas associadas ao antissemitismo, isso sem contar nas panfletagens e recursos imagéticos espalhados pelas páginas. O grupo afirma se posicionar contra o “racismo” utilizando a justificativa da “miscigenação brasileira”, exaltando os povos indígenas. Partindo destas análises podemos ressaltar a forte relação que o grupo possui com o nacionalismo e sua relação com o Integralismo Histórico, por vezes atualizando temas comuns a abordagem dessa ideologia política.

Referências BARBOSA. Jefferson, Rodrigues. Integralismo e ideologia autocrática chauvinista regressiva: crítica aos herdeiros do sigma. Marília, 2012. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, 2012. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br>. Acesso em: 27 de set. 2020 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

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Termo utilizado pelo historiador Xavier Calsals para fazer referência aos espaços que os skinheads atuam ou ocupam em seus respectivos coletivos políticos. “Periferia de la política”. CALSALS, X. Neonazis en España (1966-1995), tesi doctoral, Barcelona. Apud VIÑAS, Carles, Gràcia."Skinheads"a Espanya:Orígens, implantació i dinàmiques internes (19802010). 2013.Tese(Doutorado)- Faculdat de geografia e història, Universitat de Barcelona.p,38.

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BREUILLY, John. Abordagens do nacionalismo. Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 155-184, 2000. CALSALS, X. Neonazis en España (1966-1995), tesi doctoral, Barcelona. Apud VIÑAS, Carles, Gràcia."Skinheads"a Espanya:Orígens, implantació i dinàmiques internes (1980-2010). 2013.Tese(Doutorado)- Faculdat de geografia e història, Universitat de Barcelona COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio: caminhos de um nomadismo moderno. Vozes, 1992. Disponível em:<https://tede2.pucsp.br>. Acesso em: 27 de set. 2020. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade.; Tradução Klauss Brandini Gerhardt." A era da informação: economia, sociedade e cultura v2.1999. DE ALMEIDA, Fábio Chang. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas históricas. Aedos, v. 3, n. 8, 2011. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br>. Acesso em: 10 ago. 2020. GALLEGO, Esther Solano et al. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São

Paulo:

Boitempo,

2018.

ÖZKIRIMLI, Umut. What’s Nationalism? In: Contemporary Debates on Nationalism. A critical Engagement. New York. 2005.

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A COMUNIDADE TRADICIONAL CAIÇARA DO BONETE – PENSANDO SOBRE AS PALAVRAS

Carla Teodoro Costa (PPGHIS UFRJ)18 O Bonete, os boneteiros e a comunidade caiçara tradicional O objetivo desse artigo é pensar sobre a escolha dos termos ao se tratar de comunidades tradicionais partindo do exemplo do Bonete, comunidade tradicional caiçara de Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, onde até 2017 eles se reconheciam apenas como boneteiros e boneteiras, não como caiçaras e tampouco identificavam seu território como comunidade tradicional, mas apenas como Bonete. A escolha dos conceitos que seriam utilizados para definir o Bonete e os boneteiros nas pesquisas realizadas foi escolhido de forma que não ficasse longe do que é reconhecido por eles, nem fora do que é reconhecido por lei, por outras comunidades e movimentos sociais, pois reconhecemos que há mobilizações das diversas comunidades tradicionais com pautas que convergem com as do Bonete e foi justamente em um momento de luta contra a especulação imobiliária, em 2018, que o termo comunidade caiçara tradicional se popularizou no Bonete, restrito ao grupo que se envolveu na contenda pela preservação do território que rapidamente acabou sem que os boneteiros conseguissem o que estavam exigindo. Por base nessa experiência de 2018, como moradora da comunidade, foi considerado manter em qualquer trabalho a ressalva de que são boneteiros e que a comunidade é por eles reconhecida apenas como Bonete, pois acreditamos que esses termos os fortalecem como grupo, ao mesmo tempo que respeita seu modo de falar e se reconhecer e ressalta a importância do território para eles. Consideramos que as formas de reconhecimento devem ser respeitadas e mantidas também para manter a representatividade dos boneteiros e sua soberania

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Carla Teodoro Costa foi professora em comunidade tradicional, é fromada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e agora é mestranda no Programa de Pós Graduação em História Social da UFRJ. carla.teo.costa@gmail.com .

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para responder pela comunidade ou se posicionar para defender políticas públicas, mas é preciso reconhecer que o Bonete não é um lugar isolado, nem único e o relacionar com as demais comunidades tradicionais fortalece o movimento contra todos os ataques sofridos, desde a falta de políticas públicas que garantam o bem estar dos povos tradicionais, até a invasão deliberada dos territórios por empreendimentos privados ou até pelo Estado, como no caso dos Parques Nacionais e Estaduais. Dessa forma, sabemos que o termo precisa ser expandido para ampliar seu poder de alcance, por isso no processo de escolha consideramos essa ampliação. Nesse sentido, concordamos com Guilherme Lima Pachoal, que escreveu sobre o Bonete, defendendo o uso do termo comunidade tradicional por suas relações comuns de convivência (LIMA, 2015) e sobre a definição de conceitos afirma: Entendemos que no atual momento do debate travado por alguns setores da sociedade, dentre os quais o científico, a respeito das populações tradicionais, é importante que lapidemos o conceito que as define, contribuindo para que se torne

mais

operacional

teoricamente

e

mais

efetivo

politicamente. Em verdade, estamos mais preocupados em realizar uma proposição teórica que possa abranger uma grande quantidade de pessoas desfavorecidas pelo avanço do modelo hegemônico de (re)produzir o espaço, ditados pelas grandes empresas e pelo Estado, do que em tornar o conceito tão estreito que apenas poucos grupos específicos possam se favorecer dos ganhos já conquistados e dos potenciais. Porém, um conceito muito abrangente pode se voltar contra a argumentação a respeito da importância e dos direitos das populações tradicionais e, na prática, pode beneficiar agentes sociais economicamente favorecidos que queiram se aproveitar desses ganhos – adquirindo terras, explorando recursos naturais, solicitando crédito de programas governamentais, solicitando ao Estado a implantação de infraestruturas, apenas para citar possíveis exemplos – sem necessitarem. É preciso encontrar um equilíbrio estratégico. (LIMA, 2016, p. 524)

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Consideramos que a definição de conceitos não é fechada, por isso partimos de Bonete e boneteiros e boneteiras, ampliando para outras possibilidades sem perder o lastro com a especificidade. A questão de serem boneteiros e não apenas caiçaras ressalta sua ligação com o território e podemos considerar também sua colocação como indígenas no sentido de estarem ligados à sua terra de origem. Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um povo. (CASTRO, 2017, p.4) O termo comunidade tradicional que optamos por utilizar veio do Decreto 6040 de 7 de fevereiro de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades tradicionais. (BRASIL, 2007) e consideramos que essa nomenclatura é importante para inserção nos movimentos sociais por possuir aparato legal. De acordo com o decreto, temos a definição de povos tradicionais. Art 3º Para fins desse Decreto e do seu anexo compreende-se por: I – Povos e comunidades tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007) Esse conceito é relativamente recente e se formou com a necessidade de defender as comunidades tradicionais durante as fundações dos Parques Nacionais e Estaduais, a partir da década de 1960, que não consideravam os povos indígenas como parte do meio ambiente e realizaram diversos ataques a seus modos de vida 48


(DIEGUES, 2008), porantanto reconhecemos a definição como comunidades tradicionais, mas nos atemos aos perigos de considerar os caiçaras com visões idealizadas que os colocam como guardiões da natureza ou como remanescentes de um passado idealizado em favor da cultura hegemônica, como alerta Cristina Adams. Meu argumento central será de que a “identidade” Caiçara “ecologicamente correta” é uma representação historicamente datada, construída pelos antropocentristas com o intuito de garantir o direito dessas populações à permanência nas unidades de conservação de Mata Atlântica. A minha leitura, entretanto, será de que a construção dessa “identidade” terá um efeito inverso a médio ou longo prazo, e apenas contribuirá para o enfraquecimento político destas sociedades, a despeito das boas intenções de seus propositores. (ADAMS, 2002, p. 2) Realmente percebemos o uso dessa definição para favorecer a colocação das comunidades tradicionais em em formas que submetem o modo de vida tradicional à cultura hegemônica, até para favorecer o turismo, explorado por pessoas de fora das comunidades, como Paulo Stanich, que traz interpretações sobre as comunidades tradicionais que refletem isso. O autor faz uma coletânea sobre legislação e interpretações e defende a criação de leis que protejam as comunidades caiçaras tradicionais, mas utiliza o argumento do congelamento dessas comunidades no tempo: O patrimônio cultural é sem dúvida o fator que gera mais urgência de tutela, e mantê-lo é uma necessidade coletiva para preservar também a história do povo brasileiro. Essas comunidades ainda mantêm muitos aspectos que são fiéis ao modo de vida da época da primeira colônia. Até o sotaque guarda reminiscências do português arcaico (STANICH NETO, 2016, p. 31). Essa ideia de transformar em patrimônio cultural é evidentemente um olhar de fora e mais questionável a afirmação de que é uma cultura que mantém o modo de vida colonial, o que mostra o objetivo de preservar o passado imaginado da cultura

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hegemônica, ignorando a forma de vida das comunidades, o que seria no conceito de Pierre Nora (1993), um “local de memória”, mas criado com a comunidade inteira como atração. Nossa proposta é pensar o caiçara tradicional como o que mantém a cultura e tradição oral, mas reconhecemos que essas comunidades estão em processos de transformação e até aceleração de tempo e não são repsentação de um passado da cultura hegemônica, mas resultados de processos de temporalidades específicas dessas comunidade e devem ter sua cultura, modo de vida e territórios protegidos em função de si, não de interesses do mercado turístico, embora possam se beneficiar dele para garantir melhoras para a população. Referências ADAMS, Cristina. Identidade Caiçara: exclusão histórica e sócio-ambiental. In: Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia. Palestras convidados do IV Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Recife: Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, 2002. CASTRO,

Eduardo

Viveiros

de,

Os

involuntários

da

pátria

elogio

do

subdesenvolvimento. Caderno de Leituras. Belo Horizonte, n. 65 p. 3-9, maio de 2017. DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. 6ª ed.São Paulo: Huctec – Nupaub, 2008. LIMA, Guilherme Pascoal. Turismo e poder em lugares tradicionalmente habitados por caiçaras: o caso do Bonete, Ilhabela, SP. 2015. Dissertação (mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. ______________________. Populações tradicionais: o conceito em foco. Boletim campineiro de geografia, Campinas, v. 6, n.2, p. 523-542, 2016. STANICH NETO, Paulo (org). Direito das comunidades tradicionais caiçaras. São Paulo: Editora Café com lei, 2016 NORA, Pierre. Entre memória e história a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, 1993.

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BLOCKBUSTERS, CENSURA E PROPAGANDA – INTERFERÊNCIAS DO DEPARTAMENTO DE DEFESA DOS EUA NO CINEMA DO SÉCULO XXI

Carlos Cesar de Lima Veras(UFRJ)19 A concepção do filme como agente histórico (FERRO, 2010, pp. 15 – 21) referese às possibilidades de uso do produto cinematográfico com fins ideológicos, suscetíveis a estimularem e/ou moldarem percepções e compreensões de seus públicos-alvo; tais interferências podem ser representações que tanto dialogam com os poderes constituídos quanto atuem como resistência a eles (BARROS, 2012, p. 63), mesmo que seu caráter ideológico não seja explícito (FURHAMMAR, ISAKSSON, 1976, p. 227). Morettin (2003) destaca que, para analisar o produto cinematográfico, é preciso que o(a) historiador(a) tenha cuidado com o aporte documental e historiográfico para entender como a(s) obra(s) selecionada(s) dialoga(m) com seu contexto de produção e recepção (pp. 39 – 40). Com tais considerações salientadas, é necessário compreendermos em qual contexto os filmes que selecionamos para esta comunicação estão inseridos, sendo eles Hulk (Hulk, 2003, Ang Lee) e Transformers III – O Lado Oculto da Lua (Transformers: Dark of the Moon, 2011, Michael Bay), blockbusters baseados em personagens de sucesso mundial em outras mídias, como as histórias em quadrinhos e séries animadas. O início do século XXI nos EUA foi marcado pela Guerra ao Terror, a campanha militar deflagrada pelo então presidente estadunidense George W. Bush (2001 – 2009) em resposta aos ataques terroristas cometidos no território daquele país em 11 de setembro de 2001. Um dos recursos utilizados pelo presidente para mobilizar a opinião pública de forma favorável às ações militares e seus necessários esforços econômicos e humanos foi recorrer aos conglomerados de mídia e seus diversos meios de comunicação de massa, dentre os quais a televisão, a imprensa escrita e o cinema. Os diálogos com representantes dos estúdios de cinema logo começaram a se concretizar: dois meses após os atentados, o presidente da Motion Picture Association of America - MPAA, Jack Valanti, se reuniu com o delegado-chefe da Casa Civil da 19 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. José D’Assunção Barros.

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Presidência, Karl Rove, no intuito de estruturar de que forma a associação poderia apoiar a campanha de combate ao terrorismo (VALANTIN, 2005, p. 102). Simon Redstone, acionista majoritário do Viacom, um dos principais conglomerados midiáticos contemporâneos e proprietário da Paramount Pictures, também se prontificou a produzir em seus veículos de comunicação de massa conteúdo favorável à investida militar e condizente com o aspecto de “autodefesa” que a Guerra ao Terror simbolizaria (DICKENSON, 2006, p. 109). Como consequência, nos primeiros anos da administração de W. Bush diversos filmes, em sua maioria do gênero ação e drama, abordaram de variadas maneiras os Estados Unidos ou símbolos em sua alusão em contextos que remetiam à necessidade de engajamento militar do país, dentre os quais Fomos Heróis (We Were Soldiers, 2002, Randall Wallace) e Lágrimas do Sol (Tears of the Sun, 2003, Antoine Fuqua), que evocavam a figura do soldado como um “guerreiro ético” e obstinado (DODDS, 2008, p. 1626). Naturalmente, tal interação entre Estado e cinema não consistia em uma prática incomum nos EUA, mesmo que discursos conservadores e liberais apontem para uma suposta “liberdade” total na produção cultural de um país capitalista. Na década de 1930, o Federal Bureau of Investigation (FBI) já contava com um escritório voltado para o suporte e consultoria da agência para o entretenimento. Em 1947, o Departamento de Defesa (Department of Defense – DoD) também institucionalizava seus primeiros contatos diretos com a indústria de entretenimento, expandindo escritórios similares nas forças armadas e demais órgãos ligados à defesa no país (JENKINS, 2009, p. 229). Entretanto, ao contrário de uma mera consultoria e concessões de autorizações de uniformes, equipamentos e locais de filmagens para os produtores de filmes e televisão, o DoD exige a análise prévia de roteiros e argumentos, que então tornam-se suscetíveis a modificações ou mesmo censuras de elementos que sejam considerados indesejáveis, além de alterações que visem favorecer a imagem das forças armadas (ROBB, 2004, p. 26). Reconhecermos tais induções ideológicas nas produções estadunidenses nos leva a dois tipos de implicações: primeiro, em situarmos as produções em sua recepção no mercado interno e, posteriormente, em entendermos quais são os possíveis efeitos na recepção das produções nos mercados externos, em um contexto no qual os Estados Unidos é responsável pelas produções de maior arrecadação 52


mundial. Nye Jr. (2005) nos auxilia a compreender tais possibilidades com seu conceito de soft power, que consiste na habilidade de um Estado em atrair indiretamente outros Estados e corpos políticos a partir de seus recursos culturais e ideológicos, reconhecendo também os filmes como elementos constituintes desse conceito (pp. 10 – 12). Kellner (2001) reforça essa noção ao apontar que, além da leitura desses produtos culturais em seus contextos sociopolíticos, é necessário compreender “de que modo os componentes internos de seus textos codificam relações de poder e dominação” (p. 76), reconhecendo ainda que os filmes, como outros espetáculos de mídia, podem demonstrar quem são os que detentores de poder, autorizados a utilizar a violência, e quem são os que devem se sujeitar (p. 2) Portanto, ao abordarmos filmes estadunidenses produzidos durante o contexto da Guerra ao Terror, devemos considerar não somente os possíveis diálogos dessas narrativas com o público de seu mercado interno, mas também as pretensões voltadas aos públicos dos mercados externos que contam com ampla presença dessas produções. Um conjunto de documentos tornados públicos em meados da década de 2010 nos auxilia a compreender de forma mais sistemática algumas das operações do DoD junto a produções de grande orçamento. Os autores Matthew Alford e Tom Secker conseguiram, a partir de petição formulada com base no Freedom of Information Act, tornar públicos diversos documentos relativos a comunicações, relatórios e dossiês do DoD junto a produtores de cinema e televisão de diversas décadas. Além de terem publicado um livro que sintetiza alguns dos resultados obtidos na análise dos documentos (National Security Cinema, 2017), os autores disponibilizaram os arquivos em um endereço eletrônico (www.spyculture.com) mantido por Secker. As documentações nos possibilitam compreender tratamentos distintos dedicados pelo DoD às requisições dos produtores dos filmes que pretendemos analisar; mais especificamente, no caso de Hulk os documentos indicam a censura a alguns elementos do roteiro, enquanto no caso de Transformers III – O Lado Oculto da Lua temos um tratamento positivo em relação à produção e sua possibilidade propagandística. A primeira comunicação da produção de Hulk com o DoD ocorreu em 16 de janeiro de 2002, no intuito de obter autorização para acessar imagens de arquivo da 53


U.S. Marine Corps para fins de elaboração de algumas cenas do filme. Um relatório de seis páginas, datado de 3 de fevereiro do mesmo ano, foi enviado em resposta, orientando alterações narrativas bastante significativas no roteiro. Dentre as alterações, o DoD solicitou que o roteiro especificasse que o laboratório responsável por causar a mutação no herói não tinha ligações com órgãos militares, além de retratar Glenn Talbot, antagonista das narrativas de Hulk desde as histórias em quadrinhos e então oficial da Força Aérea dos EUA, como um ex-militar e especificar que ele não estava sob ordens de qualquer força armada. Outra mudança significa foi a alteração do nome da operação que tinha por objetivo capturar o personagem Hulk: originalmente chamada “Operation Ranch Hand”, após a solicitação o nome “Operation Angry Man” foi utilizado no filme. A solicitação no relatório fundamenta a mudança citando que Operation Ranch Hand foi uma “operação da era do Vietnã”, mas não especifica que foi o programa responsável pelo despejo de milhões de litros de produtos químicos, dentre os quais o agente laranja, ao longo da maior parte do período no qual os EUA estiveram em conflito contra os vietnamitas. Por fim, diversas alterações pontuais foram solicitadas no intuito de ampliar a importância dos militares na solução dos problemas que a narrativa apresentava. Já no caso de Transformers III, um compilado de quase 1400 páginas contendo relatórios de 2010 a 2015 traz informações relativas às ações do Exército dos EUA em relação à produção. No geral, os relatórios apresentam dezenas de pequenas notas que registram detalhes das filmagens e da pós-produção do filme ao longo de 2010, e as informações que nos atentam são as considerações por parte do responsável em gerenciar a comunicação com a produção do filme acerca da importância da obra. Além de salientar a receptividade do diretor Michael Bay (notável por suas produções exacerbadamente nacionalistas) em adotar as alterações exigidas (tais alterações não são mencionadas no documento), o responsável em acompanhar a produção do filme salienta que o filme será uma ótima oportunidade de demonstrar os “valores e a bravura” dos soldados, além da avançada tecnologia do Exército dos EUA para uma “audiência global”. Curiosamente, nas mesmas considerações acerca do filme é destacado que ele se trata de um “blockbuster apolítico”. Por fim, em uma nota presente no conjunto datado entre 2 e 8 de novembro de 2010, é registrado que foram gravadas cenas com diversos veículos militares no Kennedy Space Center e, destacando que o filme anterior da franquia alcançou a maior arrecadação em 54


bilheteria em 2009, é expressa a suposição de que o filme “auxiliará nos esforços de recrutamento do Exército”. Portanto, a análise das informações dos dois filmes na documentação aponta dois métodos de uso ideológico de produções cinematográficas por parte do DoD. No caso de Hulk, elementos foram censurados no intuito de evitar possíveis representações negativas das forças armadas, em um contexto no qual a Guerra ao Terror ainda estava em seus primeiros momentos e, portanto, ainda em um período de validação das causas e objetivos de tal investida militar. Já em Transformers III, o DoD age no intuito de utilizar o filme como elemento propagandístico de variados alcances, seja para apresentar o poderio do Exército dos EUA para os espectadores estrangeiros, seja para exaltar os valores da instituição e angariar novos candidatos à carreira militar, em um contexto no qual a Guerra do Terror já se encontrava em desgaste, com suas consequências políticas e sociais expostas.

Referências ALFORD, Matthew; SECKER, Tom. National security cinema: the shocking new evidence of government control in Hollywood. Drum Roll Books: 2017. BARROS, José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. (orgs.). Cinema – História: teorias e representações sociais no cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. DICKENSON, Ben. Hollywood’s New Radicalism. London; New York. I.B. Tauris, 2006. DODDS, Klaus. Hollywood and the popular geopolitics of the War on Terror. Third World Quartely, 29: 8, December 2008. pp. 1621 – 1637. FERRO, M. Cinema e História. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2010. FURHAMMAR, Leif; ISAKSSON, Folke. Cinema e Política. Paz e Terra, 1976.

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JENKINS, Tricia. Get smart: a look at the current relatioship between Hollywood and the CIA. Historical Journal of Film, Radio and Television. Vol. 29, No. 2, June 2009. pp. 229 – 243. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: EDUSC, 2001. MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, pp. 11 – 42, 2003. Editora UFPR. NYE JR., Joseph. Soft Power: the means to sucess in world politics. New York: Public Affairs, 2005. ROBB, David L.. Operation Hollywood: How the Pentagon shapes and censors the movies. New York: Prometheus Book, 2004. VALATIN, Jean-Michel. Hollywood, the Pentagon and Washington: the movies and national security from World War II to the presente day. London: Anthen Press, 2005.

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O RIO SAMBA EM BRASÍLIA: A ENCENAÇÃO DA CAPITALIDADE PELAS CHANCHADAS Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ)20

RESUMO O trabalho propõe uma análise da chanchada Samba em Brasília (Watson Macedo, 1960), abordando o modo como o filme tematiza a disputa pela capitalidade entre Rio e Brasília. Embora todo o enredo se desenvolva na antiga capital, a representação de Brasília ocorre pela menção a imagens associadas à modernização e ao modernismo, valores agregados à capital recém-inaugurada. Em contraste, o Rio é equiparado ao samba e à cultura popular de modo geral. Essa dicotomia se manifesta na trajetória da protagonista, moradora de uma favela e empregada doméstica, cortejada pelos patrões (pai e filho), que tentam seduzi-la com elementos atrelados à modernidade (os mesmos relacionados a Brasília). No fim da trama, ao rejeitar a sedução e preferir ficar na favela, a moça abraça os elementos culturais associados ao Rio, capital de fato. PALAVRAS-CHAVE Rio de Janeiro; Brasília; capitalidade; chanchadas; Watson Macedo.

As reflexões apresentadas aqui são decorrentes da pesquisa (Quase) sem perder a majestade: a produção de uma história pública sobre o Rio de Janeiro em filmusicais e chanchadas entre o Estado Novo e a inauguração de Brasília, coordenada por mim no Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades (NUBHES), na UERJ. A proposta geral desta investigação é explorar as conexões políticas entre a comédia musical carioca e o Estado, por meio da representação visual do Rio de Janeiro e as subjetividades urbanas atreladas a ela. O filme escolhido para análise é Samba em Brasília (Watson Macedo, 1960), localizado em um dos extremos do recorte cronológico da pesquisa, em que o Rio deixou de ser capital, sendo transformado em um novo ente da federação, o Estado da Guanabara (MOTTA, 2000). Tal mudança de status envolveu uma reconfiguração da capitalidade carioca diante da concorrência de Brasília. Segundo Marly Motta (2004, p. 9), a cidade-capital é “o lugar da política e da cultura, (...) da sociabilidade intelectual e da produção simbólica, (...) foco da civilização, núcleo da modernidade, teatro do poder e lugar de memória”. Vale enfatizar, no entanto, que a capitalidade pode ser exercida à parte a ocupação do posto de capital, como exemplifica o Rio de Janeiro após a construção de Brasília. Já que a nova capital foi concebida e propagada como a concretização do auge da modernidade brasileira, houve uma tentativa de reforçar o caráter modernista da antiga capital, levada a cabo pelo primeiro gestor da Guanabara, Carlos Lacerda (MOTTA, 2000). O melhor exemplo dessa empreitada é a inauguração, em 1965, do 20

Carlos Eduardo Pinto de Pinto é doutor em História pela UFF. Atua como Professor Adjunto do Departamento de História do IFCH-UERJ e como Coordenador Adjunto do PPGH-UERJ. Pesquisa as relações entre audiovisual e história, especificamente a representação do Rio de Janeiro pelo cinema brasileiro (de 1930 a 1970), os filmes históricos cinemanovistas e a arquitetura no cinema. É escritor de romances, contos e poemas, com o nome literário Eduardo Chacon. e-mail: dudachacon@gmail.com

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Parque do Flamengo, concebido em sintonia com os valores da arquitetura e do urbanismo modernistas. Contudo, no filme analisado o caminho seguido para reforçar a capitalidade do Rio é outro: a ênfase de elementos da cultura carioca que não poderiam ser encontradas em Brasília. O samba, alçado ao posto de “ritmo nacional” pelo Estado Novo (CAPELATO, 2013), foi um dos mais mobilizados. Tendo essas observações no horizonte, é possível perceber o tensionamento que Samba em Brasília tematiza, já que o ritmo musical inserido no título representa também a capitalidade carioca. Ainda que na aparência a modernidade da nova capital seja louvada pelos diálogos e números musicais, há uma disputa entre dois modos de conceber a nacionalidade, com preferência pelo Rio, conforme demonstrarei ao longo do texto. Samba em Brasília é um dos últimos trabalhos de Watson Macedo, que havia se formado profissionalmente no estúdio Atlântida nos anos 1940, tendo contribuído para a criação do gênero chanchada. Tributárias das comédias carnavalescas dos anos 1930 realizadas pela Cinédia – denominadas filmusicais –, as chanchadas tiveram sua estrutura consolidada na década seguinte. Além dos números musicais e dos comediantes, já presentes na Cinédia, os enredos ganharam um casal de mocinhos, cujo enlace era prejudicado por vilões. Estes poderiam ser personagens sentimentalmente interessadas num dos polos do casal de protagonistas ou pessoas ambiciosas que, por algum motivo, precisavam sabotar o romance para alcançar seus objetivos – casar-se com um/a ricaço/a, receber uma herança ou assumir o controle de uma empresa. Watson Macedo, enquanto ainda atuava na Atlântida nos anos 1940, acrescentou às chanchadas as conexões com o cinema estadunidense, por meio da paródia de filmes hollywoodianos de sucesso (VIEIRA, 2018, e-book). Além disso, adicionou aos roteiros os jogos de inversões, em que pessoas pobres se passavam por ricas, ignorantes por sábias, desconhecidas por celebridades e assim por diante. Essa lógica estava sintonizada com a cultura carnavalesca, que já era a base das comédias da Cinédia e permaneceu ativa nas chanchadas. Como nos festejos de Momo, os papéis sociais poderiam ser invertidos, sem que tais inversões sofressem as sanções que lhe eram dedicadas no restante do ano. Ao fim das tramas, os enganos eram desfeitos, os vilões castigados (sem muito rigor) e o casal de mocinhos finalmente se unia. Samba em Brasília foi realizado fora da Atlântida, já na fase independente do diretor, em que tinha maior liberdade de criação (RAMOS; MIRANDA, 2004). Ainda assim, a sinopse disponibilizada pela Cinemateca Brasileira confirma a estrutura tradicional, conforme se pode ler abaixo: Tereza, porta-bandeira da Escola de Samba do Salgueiro, briga com a rival Ivete. Após a briga, Valdo, compositor da escola, a convida para uma feijoada. A mãe de Tereza ajuda sua irmã Clotilde numa casa burguesa. Prepara-se uma grande festa para a recepção de Ricardo, filho de Wladimir e Eugênia, que chegou da Europa. Tereza vai ajudar a mãe no trabalho de cozinha. Durante a recepção. todos reclamam da comida, preparada com muita pimenta por Tereza. Wladimir manda chamá-la para a despedir, mas desiste e passa a cortejá-la. Eugênia quer despedir Tereza, mas pai e filho a protegem. Como Tereza diz que seu santo é forte, Eugênia acha que ela é macumbeira e pede um trabalho para entrar na “lista das dez mais”. Ricardo começa a se 58


interessar por Tereza. Pai e filho marcam um encontro com ela para um drinque, no mesmo horário e local, sendo manobrados por Tereza. Ela passa a frequentar menos o morro, e Valdo começa a sentir saudades. Tereza passeia de carro ou barco com Ricardo, apesar das recriminações da mãe, preocupada com Virgínia e o desnível social. Eugênia tenta subornar Tereza para que abandone o filho, mas ela afirma que só não se casa com ele porque não sabe se o ama. Beatriz propõe que apresentem Tereza à sociedade como uma grande dama. Eugênia manda os convites, enquanto Tereza é preparada por maquiadores e cabeleireiros. Beatriz e Virgínia armam para que a festa dê errado, mas são derrotadas. Quando Valdo faz sucesso com um samba e anuncia na televisão que a escola não vai mais sair por falta de uma porta-estandarte, Tereza resolve voltar ao morro. Na avenida, Tereza desfila com a escola, enquanto Virgínia e Ricardo aparentemente ficarão juntos (FUNDAÇÃO..., 2021).

Apesar de bastante detalhada, esta descrição do enredo deixa escapar alguns dados relevantes para a análise proposta aqui, justamente por trazerem alguns traços de novidade à estrutura narrativa das chanchadas. O primeiro diz respeito ao fato de que a atriz que interpreta Terezinha ser Eliana, a principal estrela das chanchadas. Sobrinha de Watson Macedo, era uma “mocinha” branca e loira, seguindo os padrões fenotípicos privilegiados por Hollywood (VIEIRA, 2018, e-book). A maioria de seus papéis era de meninas bem-nascidas encasteladas em mansões ou garotas bemcomportadas de classe média, como em Sinfonia carioca (Watson Macedo,1955) e Depois eu conto (Watson Macedo e José Carlos Burle, 1956). Em menor número, estavam as migrantes pobres, como em Amei um bicheiro (Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1953) e Rio fantasia (Watson Macedo, 1956), sendo o primeiro um dos poucos dramas que protagonizou. A sua escalação para interpretar Terezinha, moradora de uma favela e porta-bandeira do Salgueiro, estabelece uma tensão racial que não aparece nas outras personagens pobres de sua carreira. Aqui, a pele branca de Eliana, que é também a de sua personagem, gera incômodo entre alguns componentes da escola de samba, sobretudo Ivete, sua concorrente pelo posto de porta-estandarte. Interpretada por Carmen Montel, uma atriz negra, Ivete explicita seu inconformismo com a necessidade de ter que competir com uma mulher branca. Durante uma briga ocasionada por esta situação, uma vizinha interfere afirmando que ali, na favela, se vivia em uma sociedade democrática, sem preconceitos. A reação violenta de Ivete a essa fala permite inferir que ela discorda e, de fato, se sente preterida por conta da presença de uma branca ocupando lugar de destaque numa escola de samba, locus de tradição afro-brasileira. Esse tema está diretamente conectado com o segundo ponto que a sinopse ignora – a representação de Brasília, presente já no título, conforme comentei. O filme foi produzido e lançado no ano da inauguração da Novacap – corruptela de “nova capital”, que havia batizado a empresa responsável pela construção de Brasília e, por extensão, passou a referenciar a própria cidade – e a utiliza como chamariz de público. Ainda que Brasília objetivamente só apareça em números musicais e nas falas dos personagens, o filme se refere a ela também ao tematizar a modernização e o modernismo, tão em voga naquele contexto. Há menções à Bossa Nova nas falas e a

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presença de pinturas e esculturas modernistas na mansão em que Terezinha trabalha, além de aparelhos de cozinha modernos. Em contraste, toda a ação do filme se passa na Belacap, “apelido” adotado para o Rio em resposta à Novacap. No modo como se dá a representação da ex-capital ocorre o reforço de traços associados à cultura afro-brasileira que, pela lógica da capitalidade, haviam sido alçados ao patamar de “cultura nacional”, com destaque para o samba, especificamente aquele produzido nas favelas pelas escolas de samba. Importante salientar que Samba em Brasília é uma chanchada tardia, lançada quando o gênero passava por uma crise – entre outros fatores, a consolidação do TV no país havia diminuído as bilheterias dos cinemas, sobretudo de filmes brasileiros. Talvez como estratégia para enfrentar a crise, Macedo entabula um diálogo com outras vertentes do cinema brasileiro, introduzindo algumas modificações na estrutura básica do gênero. Para o tema abordado aqui, o elemento mais significativo é a resposta do roteiro ao cinema independente carioca, sobretudo a Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955). Considerada obra inaugural do cinema moderno no Brasil, o filme narra o percurso de cinco meninos negros, moradores de uma favela, ao longo de um dia no Rio de Janeiro. O diálogo com o neorrealismo italiano aplicado à então capital do Brasil marcou o modo como se dava a representação das favelas, sobretudo ao ter sido proibido pelo chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, Meneses Cortes: “O que se disputava nessa batalha era, enfim, o direito à imagem da cidade. Mais especificamente, o direito a decidir qual aspecto da capitalidade do Rio deveria figurar nas telas” (PINTO, 2015, p. 130). A reverberação desse fato pode ser notada em Samba em Brasília: diferente da maioria das chanchadas, em que as favelas eram representadas de modo estilizado em números musicais (FREIRE; FREIRE, 2018), o filme apresenta sequências gravadas – parcialmente – em locações. Além disso, seu roteiro busca, ainda que de modo limitado, debater questões sociais vinculadas às favelas, como o racismo. O samba, portanto, acaba conotando mais do que a “carioquice”, sendo usado também para se referir às favelas, de onde se origina. Ao fim, ao unir o Rio a Brasília, a película encena a tensão entre capitalidades, sobretudo durante a execução do samba que batizou o filme, de autoria de Bené Nunes e Mariano Pinto. Num cenário repleto de referências à arquitetura e às esculturas modernistas da Novacap, Eliana performa acompanhada por figurantes vestidos como baianas e “malandros”, figuras típicas da cultura popular carioca (LEAL, 2018; NORONHA, 2003). Se aqui a relação entre as duas cidades e seus índices parece amigável, o desfecho do filme – com Terezinha preferindo o morro e o samba à riqueza e modernidade dos patrões – reforça a defesa da capitalidade carioca. Afinal, os elementos rejeitados pela protagonista estavam agrupados no mesmo conjunto de valores associados à nova capital – modernização e modernismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves Delgado (orgs.). O Brasil republicano. vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 60


FREIRE, Rafael de Luna; FREIRE, Letícia de Luna. As favelas cariocas nas chanchadas: de berço do samba a problema público. Comun. Mídia Consumo, São Paulo, n. 43, v. 15, maio/ago. 2018. p. 276-301. FUNDAÇÃO CINEMATECA BRASILEIRA, Filmografia Brasileira, Samba em Brasília. Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgibin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&expr Search=ID=017538&format=detailed.pft#1. Acesso em: 01/05/2021. GAVA, José Estevam. Momento Bossa Nova. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006. LEAL, Léa Maria Schmitt. A performance da baiana: traje, corpo e persona (1890-1938). Anais do 14º Colóquio de Moda, 2018. Disponível em: <encurtador.com.br/dgJ19>. Acesso em: 18 out. 2020. MOTTA, Marly. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. ______. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de Janeiro (196075). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. NORONHA, Luiz. Malandros: notícias de um submundo distante. Rio de Janeiro: RelumeDumará; Prefeitura, 2003. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Rio, 40 graus: a disputa pela imagem da capital do Brasil nos anos dourados. Acervo, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 120-131, 2015. RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe A. de (orgs.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. VIEIRA, João Luiz. A chanchada e o cinema carioca (1930-1955). In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila (orgs.). Nova história do cinema brasileiro, vol 1. São Paulo: Edições Sesc, 2018. Edição Kindle.

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QUILOMBOLAS NA CIDADE: MEMÓRIA E ANTROPOLOGIA URBANA NA DIÁSPORA

Denise Pirani (ASF-MG/Cedefes)

O discurso oficial da construção de Belo Horizonte sempre se dirigiu aos esforços de trabalhadores estrangeiros, principalmente italianos, que vieram para a nova capital mineira na esperança de construir, igualmente, uma nova vida. No entanto, este discurso oficial sempre negligenciou outras comunidades também importantes na construção da nova capital mineira: as comunidades quilombolas! Já alguns anos, muitos pesquisadores estão se debruçando sobre este aspecto, ou seja, a importância do papel das comunidades negras na construção de Belo Horizonte. Neste trabalho, que é fruto de uma consultoria coletiva para a Prefeitura de Belo Horizonte e para IPHAN-MG, iremos ver a influência de uma comunidade quilombola na construção da capital mineira e, mais além, a importância desta comunidade quilombola como memória e patrimônio da cidade de Belo Horizonte. Trata-se do Kilombo Souza. Empregando diversas metodologias, mas, principalmente, utilizando a história oral como a nossa principal ferramenta, vimos o papel fundamental desta comunidade na história e na memória da capital mineira. Neste estudo, houve a preocupação de discutir conjuntamente áreas distintas do campo do patrimônio, para assim tratar o Kilombo Souza como um bem em sua diversidade cultural, a fim sobretudo de apontar elementos fundadores da história da capital, oriunda de uma narrativa ausente de suas formas de expressão, que tão silenciada é pouco dita nas histórias da capital mineira, permitir o aparecimento dessas narrativas é fortalecer e proteger uma memória que construiu e constrói a cidade até os dias atuais. Outro aspecto importante a sublinhar é que este estudo contempla para além de sua imaterialidade, uma discussão sobre aspectos materiais existentes no território da Família Souza, por sua vez tem um leque de possibilidades para se ler a cidade a 62


partir de uma ótica dos ancestrais, principalmente aqueles que vieram para a construção da cidade, exemplo disso, a Família Souza, que até os dias de hoje permanece em seu território original. O Kilombo Souza ilustra a relevância de um excepcional bem cultural para a capital mineira, e mais ainda, sob a perspectiva dos negros na construção da cidade nos tempos remotos de sua história. Tendo em vista que a família Souza, que se instalou em Santa Tereza no início do Século XX, prestaram seus trabalhos para a capital recém formada, tanto para o trabalho da agricultura quanto para o trabalho da construção da nova catedral da capital. Por fim, gostaria de mencionar o papel da diáspora desta comunidade pois ela tem uma forte ascendência no que concerne à memória coletiva da comunidade e da capital mineira.

Referências ESTUDO PARA DOSSIÊ | Kilombo Família Souza – PBH/IEPHA-MG, Belo Horizonte, 2020.

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TRANSMISSÕES DE UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO

Dinah de Oliveira (EBA/UFRJ)21

Trazemos Walter Benjamin ao ambiente desse trabalho no sentido de investigar o fundamento da tradução (exercício formal de transformação) como uma forma que, por princípio, deve retornar ao original legitimada pelo índice de traduzibilidade presente nele. Uma das hipóteses em curso na pesquisa se encontra em uma base metodológica que opera com a chamada quebra - breakdown (KASTRUP, 2008) entendida como paragem, ou seja, como cortes epistêmicos (MOMBAÇA, 2019) que se abrem aos aspectos das diversidades radicais na linguagem. Então experimentamos uma metodologia menos causal e mais associativa, mais ensaística na qual noções seminais da teoria da linguagem presentes em Benjamin emergem como um pensamento em devir. Por meio deste paradigma inicial, conceituações como médium, a comunicação da essência espiritual – leia-se, cognitiva – que é uma manifestação de diferença (o novo) comunicada na língua, no modo, na expressão, na matéria, nos coloca em contato com autores e autoras do campo de estudos da decolonialidade. O cruzo epistemológico nos aproxima com as provocações da obra da professora, filósofa e artista Denise Ferreira da Silva (2019) na recusa do modelo racional da constituição do sujeito estético moderno kantiano, em favor de uma apreensão crítica implicada na corporalidade, no espaço e no tempo. Neste sentido toma-se importante para nós experimentar as condições de possibilidade na contemporaneidade um atrito com noção de experiência em Benjamin (BENJAMIN, 1996) efetivada sob a vivência, ou seja, como sensibilidade coletiva. A qualidade da experiência coletiva é investigada na comunidade humana, mas também na extrahumana, por meio de circuitos de afetabilidade e inseparabilidade manifesta nos

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Professora e pesquisadora do Ensino Superior na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no curso de Bacharelado em Artes Visuais/Escultura. Doutora em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, Mestra em Artes Cênicas e Bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO, é associada do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro. Contato: dinahcesare@gmail.com.

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trabalhos de arte. A pesquisa alia ainda o caráter destrutivo (BENJAMIN, 1986) como contraponto pulsional fragmentário à aglutinação racional da determinabilidades do sentido, em uma dialética infinita de forças. Interessa a expressão de outras formas narrativas para ir além dos discursos massivos que confinam as subjetividades e a ameaça que eles representam. Será que conseguimos inventar outros modos de presença, recriar a dimensionalidade a partir de experiências poéticas? Tiganá Santana no texto “Tradução, interações e cosmologias africanas” se alia a noção de interação do escritor e pensador congolês Zamenga B. para propor outras possibilidades de traduzires, tendo como fundamento determinadas cosmologias negro-africanas, mais especificamente a cosmologia bantu. O referido artigo faz uma torsão epistêmica em torno do significante negro, localizando como ponta de lança da África subsaariana. Recorrer às cosmologias negras é um modo ativo de operar na implicação entre pensamento e corpo e na produção de temporalidades outras, em que os tempos ancestrais são atualizados por meio da complexidade estrutural das diferentes matrizes diaspóricas. Neste sentido, os povos ameríndios também se apresentam como instância de conhecimento em favor rupturas na cadeia dos circuitos pulsionais de destruição da hegemonia colonial. Situamos a linguagem como lugar de disputas pulsionais, na medida em que se trata de uma instância estruturante do social que opera as divisões dentro do sistema capitalista. Ao pensarmos em cosmologias negras, concedemos que se construíram outras matrizes, por meio dos fluxos diaspóricos, ou seja, não temos nas américas, se quisermos, apenas fragmentos e vestígios de narrativas existenciais egressas de partes do continente africano. Urdiram-se novos sistemas, linguagens, novas

materialidades,

fizeram-se,

conforme

imaterialidades nos

lembra

e

Paul

impermanências; Gilroy,

criações

inacabadas (SANTANA, 2019, p. 66).

As formas de intensidade das cosmologias negras e sua capacidade encarnatória

de

multiplicidades

trabalham

no

desfazimento

da

hegemonia

eurocentrada, em favor de uma experiência radical de viver ético diante de “Outrem, sem pulsão ou razão que o aniquilem”. Tinganá resgata o termo Kalunga, da língua 65


bantu, cujo sentido se abre esgarçando a categoria temporal: “Kalunga é a fonte do poder universal que faz todas as coisas acontecerem no passado, faz as coisas acontecerem hoje, e, sobretudo, fará as coisas acontecerem amanhã” (SANTANA, 2019, p. 68). No entanto, a reflexão institucional que engendra o discurso criador do evento da racialidade (FERREIRA SILVA, 2019) não concebe o real por meio desses saberes como epistemes, alicerçada pela lógica homogeneizante do capital que precisa mapear muito precisamente a construção de seus consumidores em um constante processo de hierarquia de culturas, práticas discriminatórias e violências assimétricas. Sob a ótica epistêmica que nos aponta Tiganá Santana, não podemos pensar então em um real da linguagem naquilo renovado incessantemente enquanto falamos? A poética da artista Castiel Vitorino Brasileiro na série Corpo-flor22 materializa o caráter da linguagem como inscrição corporificada da constante transformação implicada no mundo humano e extra-humano. Em sua diferença radical, Corpo-flor denuncia como os discursos comunicacionais são produtores de políticas de globalização camufladas de epistemes. Corpo-flor nos interpela de tal modo com sua liminaridade e efemeridade! Exaustão é o que vai aparecer no fracasso de toda linguagem como sistema totalizante de sentidos – circunscrição simbólica, no entanto agressiva, justamente na medida em que quer dar conta com seu processo de significar, em detrimento do caráter pulsional da linguagem que é o mostar seu caráter sempre liminar. O modelo construtor da cultura imposto pela invasão do europeu, engendrado pela aniquilação do Outro ameaçador, se mantém de pé pela destruição de todo um regime discursivo e visual. Desdobrando o problema Walter Mignolo entende o advento da modernidade como uma transformação de duplo cenário. Se a ordem mundial até o século XV se estrutura de forma policêntrica e não capitalista, a torção moderna vai constituir um processo globalizado com o qual coexistem formas múltiplas e diversificadas “de movimentos, projetos e manifestações contra a globalização neoliberal” (MIGNOLO, 2017, p. 2). A pesquisa se aproxima de Mignolo na contrapartida das esferas istitucionais de produção acadêmica de conhecimento eurocentrado, operando com com deslizamentos em seus mecanismos internos. A 22 Site da artista: https://castielvitorinobrasileiro.com/sobre. Faço notar que o que escrevo aqui sobre o trabalho da artista pertence mais ao que o trabalho provoca e menos a qualquer possibilidade de autoria minha.

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noção de Pachamama, constituinte da cosmologia das pessoas do povo anauta quíchuas e das pessoas do povo yatiris aimarás, se contrapõe a separação natureza e cultura – fenômeno cristão ocidental disseminado pelos padres Jesuítas. Pachamama é fenômeno em que humanos e extra-humanos se atravessam, ou seja, não se concebe a distinção entre a natureza e a cultura. Nossa pergunta sobre a transmissibilidade contemporânea em arte aponta para regiões do sensível em que as formas hegemônicas dos enunciados e dos corpos, das visualidades e materialidades resistem e propõem alternativas aos processos do capital e suas economias de acumulação. Terminamos aqui com a transcrição de um trecho da Cartilha da Mezinhagem - reunião de receitas de bomviver da senhora ribeirinha do Xingú, Raimunda Gomes da Silva, ativista desalojada pelo empreendimento da usina de belo monte que nos dá notícias de Pachamama: Os espíritos das águas, eles são como o vento. Você não vê, mas você sente. Você vê o vento? Mas você sente. É o espírito das águas. Você não vê, mas você sente. Às vezes a gente tá sentado assim na porta de casa, e ele faz assim, bem na sua perna, devagarzinho. Aqui na nuca, fazendo um carinho, fazendo alguma coisa. Ou agradecendo por algo que você fez. E você sente algo. Uma vez, mas você sente. Coisa boa ali, lhe abençoando. Quem sabe até lhe cuidando. A pessoa tristinha olhando para lá, aquele ventinho vem, você olha para baixo, para um lado para outro, você vê um escorpião, você vê uma cobra. Ele tá te avisando. Entendeu como é? O Xingu é isso.

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Referências BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. In:_____. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação Willi Bolle; tradução Celeste H.M.Ribeiro de Sousa (et al.). São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986. p.187-188. _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. FERREIRA da SILVA, Denise - A Dívida Impagável, (São Paulo: 2019). KASTRUP, Virgínia. Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008. MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. São Paulo: Edição 2020 @ Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand e et al. MIGNOLO. Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Trad.: Marco Oliveira. RBCS Vol. 32, número 94 junho/2017. SANTANA, Tiganá. Tradução, interações e cosmologias africanas. Cad. Trad., Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019

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O PÁTHOS DA CÂMARA: UMA ANÁLISE DAS REAPROPRIAÇÕES DA ANTIGUIDADE DOS GRUPOS ESCULTÓRICOS DO PALÁCIO TIRADENTES

Douglas de Souza Liborio (UFF)23 Com sua construção iniciada em 1922 para ser a nova sede da Câmara dos Deputados do Brasil no Rio de Janeiro (então capital federal), o Palácio Tiradentes teve sua inauguração realizada no dia 6 de maio de 1926, integrando as comemorações do Centenário do Poder Legislativo Brasileiro. Projetado pelo arquiteto Archimedes Memoria em parceria com o Franscique Couchet, o novo Palácio da Câmara foi um dos ícones do Ecletismo tardio carioca, mantendo o furor das formas arquitetônicas remanescentes da Exposição Internacional do Centenário da Independência em 1922 e apresentando grandes inovações, como o uso do concreto armado em sua estrutura. Localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, no eixo conhecido como Centro Antigo, o Palácio Tiradentes se localiza no sítio da antiga Casa de Câmara e Cadeia, edifício que abrigou o Senado da Câmara e a Cadeia da Relação do Rio Colonial entre os séculos XVII e XIX. O prédio também foi sede da Assembleia Geral Legislativa durante o Império e a Câmara dos Deputados nos primeiros anos republicanos. A “Cadeia Velha” - como veio a ser conhecido o espaço - notabilizouse por ter sido o local da prisão do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), - o Tiradentes - devido ao seu envolvimento no movimento contestatório a Portugal, conhecido como Conjuração Mineira. Tal fato ensejou que o Palácio fosse nomeado em sua homenagem após a demolição do casarão colonial, em 1922. O Palácio Tiradentes funcionou como o espaço do poder legislativo federal até 1960, sendo palco de eventos de relevante importância política como as Assembleias Nacionais Constituintes de 1934 e 1946 e as posses dos Presidentes da República. Com a transferência da capital federal para Brasília, abrigou a Assembleia Legislativa da Guanabara (Aleg) entre 1961 e 1963. Após a fusão do estado da Guanabara com o

23

Douglas de Souza Liborio é bacharel e licenciado em História pela UFRJ, Mestrando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da UFF. Atualmente desempenha as funções de Historiador e Pesquisador na Subdiretoria-Geral de Cultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), sendo um dos responsáveis pela Exposição Permanente “Palácio Tiradentes: ugar de memória do parlamento brasileiro”. Email: douglasdesouzaliborio@gmail.com.

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estado do Rio de Janeiro, em 1975, o Palácio, se tornou a sede da nova Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), criada em 197514, função que mantém até a presente data (BELOCH; FAGUNDES, 1996). Sendo um dos primeiros prédios de autoridade republicana construído no início do século XX, o Palácio foi concebido como uma arquitetura narrativa, típica da linguagem historicista do ecletismo, com grande destaque para os elementos decorativos. O programa artístico do Palácio teve grande relevância no âmbito artístico carioca de então, por constituir uma ampla gama de artistas, da pintura à escultura, além de contar com a contribuição dos Estados da Federação para erguer o novo espaço. A fachada do edifício foi coroada com grupos escultóricos colossais e com abundância de relevos ornamentais, com a ideia de narrativa com pompa do Poder Legislativo Brasileiro:

Figura SEQ Figura \* ARABIC 1. Palácio Tiradentes. Fonte: Acervo Alerj. Fotografia: Thiago Lontra, 2017

A Independencia e a Republica déram ao Brasil o Poder Legislativo: para que a Autoridade e a Liberdade se apoiem na Lei; para que á sombra da Lei se desenvolvam a Agricultura, o Comemrcio, a Viação e a Industria; para que, em base solida, sob a protecção do Direito, que é Força e Verdade, se estabeleça a Ordem, e sob a égide da Paz, que ampara o Trabalho e a Prosperidade, se assente o progresso. (BRASIL, 1926, p. 94). 70


Há na fachada, uma abundância de elementos típicos de uma iconografia do poder republicanizada como barretes frígios e alegorias femininas da República. Os motivos, porém, ressaltam uma excessiva referência ao mundo romano: a alcunha “Lex”, duas colunas com gigantescas Vitórias aladas, de autoria de Paulo Mazzucchelli e uma presença intensa dos fasces lictores romanos, nos ornatos, relevos escultóricos e desenhos dos mosaicos. No

coroamento

dos

pilones,

encontram-se

os

grupos

escultóricos

“Independência” e “República”. Escolhidos por concurso público, são modelos do escultor Hildegardo Leão Velloso, sendo executados por Modestino Kanto e Magalhães Corrêa. Os grupos representam D. Pedro I e Deodoro da Fonseca em pose equestre, trajados à romana e num ladeados por um cortejo de figuras inspiradas e trajadas à maneira clássica, como José Bonifácio e Benjamin Constant. Em suma, a questão que se ergue é a seguinte: qual é o significado da Antiguidade clássica para a cultura artística carioca da década de 1920? Entre os meios de ampla circulação e a fachada do Palácio da Câmara, qual seria o “espírito” do Antigo? As ideias presentes no Livro do Centenário da Câmara dos Deputados que justificam a estilização à antiga do Palácio são cruzadas com a circulação da tradição clássica no cotidiano carioca da década de 1920. Busca-se enfatizar a instrumentalização e crítica à noção apolínea de Antigo winckelmaniana a partir das reações à disposição dos grupos escultóricos “Independência” e “República”, com base na sua carnavalização e não inclusão nas estilizações definidas. A discussão da crise da tradição do Ecletismo nas primeiras décadas republicanas será associada às diversas discussões de um projeto de “moderno”. O Palácio se tornando um símbolo de um deslocamento, de uma não categorização na história dos estilos tradicionais. A atuação dos escultores da fachada em sua manipulação da tradição clássica vem sendo revista através dos modelos vigentes, que busquem reconstruir a ideialização do páthos triunfal. Os suportes e eventos de circulação, como os modelos classicizantes para o Carnaval carioca serão dignos de atenção, buscandose compreender o intercâmbio cultural entre as camadas sociais. Tal visão menos “idealizada” de uma pureza das formas permite um diálogo com a própria dinâmica da sociedade antiga e a desterritorialização das fronteiras, que teve seu significado 71


instrumentalizado para fins políticos a partir do surgimento dos Estados nacionais. Aqui, se deseja pensar a Nachleben de uma Antiguidade “dionisíaca”, deslocada e recalcada (utilizando os termos warburguianos) e a pórpria ideia de “greco-romano”, como concebida por Paul Veyne para se conceber a Antiguidade. Com a construção dessa linha de atores e circulação de imagens, se busca compreender as formas de transmissão do modelo da marcha triunfal da Antiguidade, através da associação de imagens cívicas no século XIX e início do XX, dando-se ênfase aos modelos franceses e latinoamericanos (Monumento a Independência em São Paulo, Monumento a Constituição de 1812 em Cádiz, etc.). O modelo do Atlas warburguiano é o que inspira tal associação. Se busca discutir os usos e apropriações da parafernália do triunfo antigo: indumentária, ornamentos, organização espacial, etc. e como isso é ressignificado nas personalidades brasileiras da fachada. A partir disso quer se estabelecer a linha do páthos da marcha triunfal romana – configurado como o “carro alegórico da Câmara” -, com os préstitos do Carnaval carioca.

Referências

BELOCH, Israel; FAGUNDES, Laura R. (coord.). Palácio Tiradentes: 70 anos de História. 2. ed. Rio de Janeiro: Memória Brasil, 1996. BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Livro do centenário da Câmara dos Deputados (1826- 1926). Rio de Janeiro: Empreza Brasil Editora, 1926. DIDI – HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. v. 1, Tradução de Cássio Fernandes, São Paulo: Editora Unicamp, 2018. _______________. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científicoculturais para a história do Renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. _______________. História de fantasma para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. WINCKELMANN, J. J.. Reflexões sobre Arte Antiga. Porto Alegre: Movimento, 1975. 72


CORPO-MEMÓRIA: RESISTÊNCIA AO TEMPO E ESPAÇO ATRAVÉS DA TRANSMISSIBILIDADE

Gabriel Vieira (UFRJ)24 A pesquisa corpo-memória: Resistência ao tempo e espaço através da transmissibilidade está vinculada ao projeto de pesquisa PIBIC que iniciou em 2020 e ainda está em andamento, nomeada Transmissibilidades contemporâneas: arte, pedagogias e tecnologia, orientado pela Prof. Dra. Dinah de Oliveira. Em linhas gerais, a principal questão da pesquisa é sobre os modos de transmissibilidades possíveis nos campos da arte e da pedagogia, por meio de compartilhamentos presenciais e ambientes virtuais. Procedendo disso, o objetivo geral aqui é analisar mediante um repertório conceitual o caráter enunciativo da modernidade e suas afetações na cultura, e através disso rastrear e inventar uma transmissão por meio de cooperação artística com o projeto Margens – sobre rios, Buiúnas e vagalumes. A metodologia aplicada tem um cunho teórico-prático e neste sentido investiga a transmissibilidade ligada às transformações no campo da arte, juntamente com as alterações na percepção do sujeito e do coletivo tomando conceitos mais ensaísticos de Walter Benjamin, em interlocução e complemento com questões da colonialidade e modernidade abordadas por Walter Mignolo, e como esse modus operandi aparece no campo da cultura e ainda intercruzamentos com Ailton Krenak, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Benjamin tomará as transformações que atravessaram o período anterior e posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) no texto Experiência e Pobreza, escrito em 1933. Neste artigo, pensa sobre a existência dos provérbios, das parábolas e histórias naquele contexto histórico, e elucida a importância da transmissão de experiências e conhecimentos que eram disseminados boca a boca entre familiares e parentescos, e como esses tipos de experiências transmissivas passaram a se

24 Gabriel Vieira, graduando em Artes Visuais/Escultura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. contato: gabblazar@gmail.com.

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empobrecer com o silenciamento que a guerra trouxe, e com as evoluções culturais e tecnológicas da modernidade. Já em O Narrador (1996), discorre sobre a narrativa oral nos contos de Nikolai Leskov e indica em passos históricos como o sistema capitalista, em especial com o aparecimento da burguesia que implicará no desaparecimento desse narrador oral dando lugar a outro tipo de narrador mais atual, os romancistas. Contudo, o semiólogo argentino Walter Mignolo irá assinalar que o complexo projeto da modernidade e o termo colonialidade (elaborado durante a Guerra Fria junto com o conceito de “descolonização”), partindo do sociólogo peruano Anibal Quijano (1928-2018), como sendo ambos intrínsecos e indissociáveis em sua introdução do livro Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Mignolo conjurará por meio de relações históricas a origem desse projeto, na Europa

renascentista

do

século

XVI,

passando

pelo

Iluminismo

e

seus

desdobramentos com a globalização até o século XXI. Não obstante, com a exaltação desse projeto particular muitas vezes não abordam seu lado mais obscuro, ou é ocultado dessa narrativa, que é a própria colonialidade, marcada pelas invasões europeias que formaram as Américas e o Caribe; o tráfico de africanos escravizados e os conflitos pelas partições imperiais da África no final do século XIX e início do século XX, que provocou a Primeira Guerra Mundial, e os 500 anos de violências sobre os povos nativos da América do Sul. O teórico segue nesse fio condutor e com a concepção da historiadora britânica Karen Armstrong, que estuda o Islã, pensando nas conquistas ocidentais pela história desde o século XVI. Dentre elas, sublinha dois pontos que se destacam: a economia (o capitalismo) e a epistemologia (ciência enquanto conhecimento e arte enquanto significado). O primeiro vem com a ideia de aumento da produção com base nos recursos das colônias, e o segundo, relacionado à revolução científica no século XVI, que permitiu aos renascentistas maiores domínios sobre a natureza e a propagação da ideia de salvação e novidade. Entretanto, penso nesses pontos epistêmicos informados como dicotômicos por Mignolo, dialogando com Armstrong, como convergentes, pois a ciência teve trocas intensas no momento da Renascença com a arte. Assim, creio que a ciência e a arte possam ser consideradas ambas como produtoras de conhecimento e significados. Além disso, existe uma outra camada da colonização que o teórico apresenta, que é a do tempo e do espaço: 74


Entre os dois cenários descritos acima surgiu a ideia da “modernidade”. Apareceu primeiro como uma colonização dupla, do tempo e do espaço. Estou também argumentando que a colonização do espaço e do tempo são os dois pilares da civilização ocidental. A colonização do tempo foi criada pela invenção renascentista da Idade Média, e a colonização do espaço foi criada pela colonização e conquista do Novo Mundo. (DAGENAIS, 2004 Apud MIGNOLO, 2017, p. 4)

Dessa maneira, pela América não ser um lugar a ser descoberto, então esse lugar explorado e apropriado violentamente, alicerçado na bandeira da missão cristã, foi um cenário em que a modernidade veio junto com a colonialidade. Quijano irá pensar no MCP (patrón colonial de poder – matriz colonial de poder) como quatro domínios inter-relacionados em que seus interesses são as instâncias da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e por fim do conhecimento e da subjetividade. Contudo, podemos considerar um quinto domínio da matriz colonial, separando-a da economia: a natureza. Há diferentes lutas políticas e elaborações epistêmicas pela retomada ou desvinculação da MCP, contudo, vemos na Constituição da Bolívia e do Equador um pensamento que não está associado a um partido ou uma luta social em específico, mas sim é imanente à visão dos povos nativos, líderes e intelectuais indígenas, a seguinte manifestação descolonial:

Para os aimarás e os quíchuas, fenômenos (assim como os seres humanos) mais-que-humanos eram concebidos como pachamama, e nessa concepção não havia, e não há ainda hoje, uma distinção entre a “natureza” e a “cultura”. Os aimarás e os quíchuas se viam dentro dela, não fora dela. Assim, a cultura era natureza e a natureza era (e é) cultura. Assim, o momento inicial da revolução colonial foi implantar o conceito ocidental de natureza e descartar o conceito aimará e quíchua de pachamama.5 Foi basicamente assim que o colonialismo foi 75


introduzido no domínio do conhecimento e da subjetividade. (MIGNOLO, 2017, p. 7)

O pensamento relatado pelos cristãos em relação ao conceito de natureza, entendido como separado do sujeito humano, existia em contraposição à cultura, e em Novum Organum (1620) de Francis Bacon nota-se a proposição de que a natureza estava ali para ser dominada pelo sujeito. À vista disso é que Mignolo verá os estudiosos nesse papel de agir no domínio hegemônico da academia em que a ideia de natureza permanece como algo fora dos humanos, e nessa mesma orientação acredito haver relação com o que é proposto por Donna Haraway, Isabelle Stengers e Bruno Latour quando pensam no papel dos artistas, frente ao Antropoceno, de imaginar ou figurar novos futuros possíveis. Quanto ao futuro, o intelectual indígena Ailton Krenak, pensa: “(...) imaginar outro mundo possível, é no sentido de reordenamento das relações e dos espaços, de novos entendimentos sobre como podemos nos relacionar com aquilo que se admite ser a natureza, (...)” (KRENAK, 2019, p. 32).

Compreendo que talvez não consigamos retomar o tempo e o espaço (já colonizados) de forma literal, ou mesmo adiar o fim do mundo, mas podemos inventar ficções ou mitologias em relação ao presente, pois segundo Danowski e Viveiros de Castro a semiótica do mito não se importa se o conteúdo empírico ali é verdadeiro ou falso e aparece dentre os humanos sempre que sua existência se levanta como problema para a razão. Assim, continuam:

Pois estamos aqui diante de um problema essencialmente metafísico, o fim do mundo, formulado nos termos rigorosos dessas

ciências

supremamente

empíricas

que

são

a

climatologia, a geofísica, a oceanografia, a bioquímica, a ecologia. Talvez, como Lévi-Strauss observou repetidas vezes, a ciência, que começou a se separar do mito por volta de três 76


mil anos atrás, terminará mesmo por reencontrá-lo (...). (DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, 2014, p. 17)

Como resultado parcial desta pesquisa houve a elaboração de um trabalho de experimentação artística em confluência com o projeto Margens – sobre rios, Buiúnas e vagalumes associado à pesquisa Transmissibilidades Contemporâneas. O projeto Margens visa em um dos seus objetivos a produção de uma cartilha que tem como ponto guia as mezinhas de Raimunda Gomes da Silva, ativista ribeirinha do Xingú, em que nos apresenta a prática da mezinhagem, uma série de receitas que foram adquiridas por ela através de sua mãe e sua avó. Tais receitas, passadas a ela por meio da oralidade, estão se materializando nessa cartilha através de uma transcrição. Pensando com Benjamin, investigamos o que ainda é possível narrar frente a iminência do pueril que a colonialidade impõe sobre esses conhecimentos, processo legitimado muitas vezes pela academia. Cheguei a uma proposição do que poderia ser transmitido: um objeto que funcionasse como uma membrana de proteção para a cartilha, uma cápsula do tempo. As cápsulas para a botânica funcionam como envoltório de sementes e de grãos. Já uma cápsula do tempo é um tipo de contêiner que irá armazenar objetos seletos como representantes do tempo agora, enterrados para serem descobertos no futuro. A cápsula do tempo enquanto produção de objeto de memória. Um invólucro que tem fim de guardar e proteger um pedaço do presente para o futuro. Um corpo-memória. Finalmente, a coletividade revela-se como um campo transmissível de entre-saberes.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Trad: Sergio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

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DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie : Instituto Socioambiental, 2014. 176p. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2019. ISBN: 978-85-359-3241-6 MIGNOLO, Walter D. COLONIALIDADE: O lado mais escuro da modernidade. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v.32, nº 94, 2017.

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AS FONTES E A METODOLOGIA NO ESTUDO SOBRE OS MEGAEVENTOS NO RIO DE JANEIRO E A SOCIOESPACIALIDADE DO CONFLITO

Ingrid Gomes Ferreira (UFRJ)25

O trabalho irá discutir como os megaeventos esportivos, Copa do Mundo e Olimpíadas impactaram, sobretudo, a cidade do Rio de Janeiro, sem negligenciar a escala nacional e as problemáticas experienciadas em outros territórios, ocasionando um cenário de conflito social decorrente das intervenções no espaço urbano para a realização desses Megaeventos. Os dados e informações que serão apresentados e, posteriormente, analisados foram recolhidos, majoritariamente, de plataformas digitais que estavam ligadas à produção formal de informação variando entre veículos de comunicação que noticiaram a ocorrência dos conflitos. Como, por exemplo, jornais e revistas ligados a mídia hegemônica, e documentos oficiais disponibilizados pelo Estado em seus sítios eletrônicos de transparência26 contendo ações, gastos, propostas e planejamentos para os megaeventos. Porém, houve um levantamento de documentos que eram dotados de um caráter de denúncia sobre os impactos negativos que a população e o espaço sofreram ao longo das obras e remoções. Estes foram produzidos pela mídia informal/alternativa, ressaltando o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas e blogs investigativos, além das cartas de denúncia, dossiês e documentários. Após esse processo foi adotada a metodologia de criação de tabelas, com diferentes atributos dentre os quais se destaca: localidade, data, tipo de conflito, motivo(s), protagonista(s), antagonista(s), tipos de organização e manifestação. Assim possibilitando uma análise cronológica dos conflitos, na primeira tabela, 25

Graduada em História (Universidade Federal Fluminense- UFF) e mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ). E-mail: igomes020@gmail.com. 26 As fontes utilizadas contendo a valor dos gastos dos empreendimentos da Copa do Mundo e Olimpíadas, acrescidos dos dados sobre as desapropriações e realocações oficiais por conta de tais interferências foram retirados do Portal da Transparência, disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/programas-degoverno/20-copa-----?ano=2014>, Rede Nacional do Esporte, disponível em: <http://www.brasil2016.gov.br> e Prefeitura do Rio de Janeiro, disponível em: <http://prefeitura.rio/web/transparenciacarioca>. Acesso em: 20 dez. 2018.

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observando a sua espacialidade, os seus agentes e as estratégias/táticas por eles empregadas. Nas outras quatro tabelas seguintes ocorreu uma divisão entre os gastos e intervenções para eventos específicos, Copa e Olimpíadas, enquanto o restante do material foi direcionado para as intervenções urbanas, as remoções e os despejos27. Essa sistematização dos dados obtidos permitiu criar tipologias condizentes com as categorias de investimentos, a espacialidade e de empreendimentos construídos. É importante destacar que essa parte da análise foi correspondente a documentos como matriz de responsabilidades (copa e olimpíadas), plano de políticas públicas- legado (olimpíadas) e o relatório de situação dos jogos olímpicos (elaborado pelo Tribunal de Contas da União). Tomando como ponto de partida a temática trabalhada, buscou-se entender a relação entre espaço e ações sociais, em especial o papel desempenhado pelos seus agentes produtores, observando com atenção as práticas e estratégias adotadas pelos protagonistas na dinâmica da disputa pelo espaço geográfico, nesse contexto caracterizado pelo urbano, e também, por direitos frente aos seus antagonistas. Articulou-se essa relação com a severa interferência na vida urbana de milhares de brasileiros, a partir das intervenções no campo da mobilidade, moradia e renovação urbana, que se colocaram no epicentro da estrutura para receber esses megaeventos em detrimento do tão prometido “legado”. Os conflitos decorrentes das intervenções sócio-espaciais por conta dos megaeventos esportivos28 no país realizados em forma de protestos, manifestações, remoções e os despejos compuseram esta parte inicial da pesquisa. O referido conjunto de fatores foi observado como diretamente ligado ao período de surgimento de um novo panorama na conjuntura política do país, contendo uma conflitividade29 27

A exposição da apuração do material será dividida em três segmentos: o primeiro é concernente aos projetos, às intervenções urbanísticas, as remoções e aos despejos restritos a cidade do Rio de Janeiro baseado nas Olimpíadas de 2016. Enquanto, que o segundo traz uma abordagem em escala nacional, levando em consideração as doze cidades que receberam as partidas de futebol da Copa do Mundo de 2014, observando as tipologias dos gastos, os motivos dos conflitos e modalidades das obras. Já o terceiro, por fim, irá dialogar com os aspectos gerais e específicos verificados promovendo o entendimento dos pontos comuns e das diferenças tanto em escala local quanto em escala nacional, enfatizando os executores dos papéis de protagonismo e antagonismo que levaram aos conflitos no Brasil contemporâneo (2013-2016). 28 Os Megaeventos aqui analisados são os referentes à Copa das Confederações- 2013, a Copa do Mundo FIFA2014 e aos Jogos Olímpicos de Verão- 2016. Contudo, vale ressaltar a realização de outros eventos no Brasil de grande porte e mobilização, localizados principalmente na cidade do Rio de Janeiro, como o Rock in Rio-2013 e Jornada Mundial da Juventude Católica- 2013. 29 Cf. RAMOS, Tatiana Tramontani. A geografia dos conflictos sociais da América Latina e Caribe. In: Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. 2003.

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que até os dias atuais pode ser percebida na expansiva polarização da sociedade brasileira. Toda a reflexão foi produzida a partir do modelo teórico-metodológico advindo da articulação que se deu entre os campos da Geografia Histórica e Geografia dos ativismos sociais, assim as categorias de tempo e espaço, por serem elementos indissociáveis, são colocadas como primordiais para a tentativa de elucidação da dinâmica das ações humanas na produção e modificação do espaço. A opção pelo diálogo com a Geografia dos ativismos sociais permitiu a ruptura com a análise comum voltada para o setor econômico que acaba, por muitas vezes, privilegiando os componentes das altas classes sociais e detentores do capital, para amplificar a voz emanada de uma considerável parcela da população que é silenciada e marginalizada em diversas esferas não só da sociedade, mas também na pesquisa acadêmica. Portanto: É da experimentação concreta das condições objetivas e subjetivas de existência que homens e mulheres formulam ideias e noções de direitos que acreditam ser legítimas de serem instituídas e conquistadas. Dessa experiência concreta e cotidiana são construídos projetos políticos e identidades que dinamizam a ação social e impulsionam esses protagonistas para o campo dos conflitos e lutas sociais, constituindo os ativismos sociais. É desse processo crítico e conflituoso que surge a possibilidade do surgimento do novo, da realização de transformações conjunturais e estruturais nas relações de poder e na organização sócio-espacial (RODRIGUES, 2015, p. 243).

Os resultados parciais obtidos surgiram da sistematização dos dados analisados a partir das fontes citadas acima. Portanto, o empreendimento que mais recebeu investimentos foi o Porto Maravilha, de acordo com o documento Plano de Políticas Públicas Legado, cujo valor aproximado foi de 8.200 bilhões de reais. A região que teve o maior valor de investimentos foi a Barra da Tijuca totalizando, de acordo com a Matriz de Responsabilidades, 6.024,8 bilhões de reais, em categorias como instalações esportivas do Parque Olímpico da Barra, Vila dos Atletas, outras instalações não esportivas e energia elétrica. Ainda tendo como base este documento 81


observa-se que 42% dos investimentos se concentraram no campo da mobilidade, sendo que este setor concentrou a captação dos recursos financeiros, justamente, por conta da abertura de 153 quilômetros para o funcionamento dos novos serviços de transporte, 29% em renovação urbana e 21% em instalações esportivas e não esportivas. A análise do Plano de Políticas Públicas- Legado em conjunto com a Matriz de Responsabilidades foi de suma importância, pois permitiu entender a proposta que o poder público utilizou em sua retórica para implantar a partir da realização dos megaeventos diversos projetos urbanísticos na cidade do Rio de Janeiro. As intervenções que tiveram um maior impacto sobre a urbe e a vida dos seus habitantes estiveram presentes na temática da mobilidade e renovação urbana, que não se restringiram apenas ao recebimento de investimentos, mas também promoveram o maior número de remoções e conflitos sociais sob a justificativa do traçado dos projetos.

Referências RAMOS, Tatiana Tramontani. A geografia dos conflictos sociais da América Latina e Caribe. In: Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. 2003. RODRIGUES, Glauco Bruce. Geografia histórica e ativismos sociais. In: GeoTextos, vol. 11, n. 1, julho 2015. pp. 241-268.

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FESTIVAL INTERNACIONAL DA CANÇÃO: INTERNACIONALIZAÇÃO E MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

José Fernando Saroba Monteiro (UFRJ)30

RESUMO A música popular brasileira, em sua imensa trajetória, teve muitas fases e níveis de internacionalização. Desde os tempos da colonização, a música formada no Brasil a partir da confluência de diferentes culturas encontrou aceitação em outros países. Cada vez mais consolidada e com uma identidade fortalecida, ainda que híbrida e diversa, a música popular brasileira se internacionalizou de diferentes modos e através de diferentes gêneros. Estes pontos de convergência são encontrados na modinha, no maxixe, no samba, na bossa nova e também na MPB que, notadamente, teve nos festivais da canção um lugar privilegiado e plataforma de lançamento para países estrangeiros, em especial, por meio da fase internacional do Festival Internacional da Canção, como pretendemos comprovar.

PALAVRAS-CHAVE Música Popular Brasileira; MPB; Internacionalização; Festiva Internacional da Canção; fase internacional do FIC.

Música Popular Brasileira e internacionalização No período colonial, a confluência das culturas ameríndia, africana e europeia, resultou no surgimento de uma musicalidade própria, com raízes na então colônia portuguesa da América, mas que, devido ao pacto colonial que também incidia sobre a cultura, seguiu para a metrópole e, de lá, para outros países europeus e outros domínios portugueses no ultramar. Vieram para o Brasil as modas, as cantigas, as coplas portuguesas e os batuques dos africanos que se fundiram com a musicalidade ameríndia já aqui existente. Destas interações surgiu, por exemplo, a modinha brasileira (fusão entre a moda portuguesa e o lundu dos negros) que chegou em Portugal e foi aceita pela nobreza e sociedade portuguesa setecentista, além de 30 José Fernando Saroba Monteiro, Pós-Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com período sanduíche pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, Mestre em História do Império Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa, Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco, autor dos livros Modinha Brasileira: Trajetória e veleidades (sécs. XVIII-XX) (2019) e Mini História da Música Popular Brasileira (2016), jfmonteiro2@hotmail.com.

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assimilar a ópera italiana. Para o famoso Jornal de Modinhas, editado em Portugal no século XVIII, contribuíram músicos italianos, ingleses e franceses. Há diversos registros de viajantes (ingleses, alemães, russo, entre outros) que incluem a modinha em seus escritos e também foram encontradas partituras de modinhas na até mesmo na Biblioteca Nacional de Paris. Há referências ainda de que a modinha teria influenciado na formação da música de Cabo Verde, à exemplo da morna. E o lundu teria seguido o mesmo caminho, surgido entre os negros escravos no Brasil, mas depois indo para Portugal onde, devidamente adaptado, foi praticado e apreciado pela corte portuguesa No final do século XIX o Brasil seria um grande receptor de músicas estrangeiras. Chegaram neste período a polca, a schottisch, a quadrilha, a mazurca, a habanera, o tango espanhol, entre outros. Logo, entretanto, devido aos usos e abusos dos músicos e improvisadores brasileiros, originariam-se gêneros e ritmos autenticamemte brasileiros como o choro, o tango brasileiro e o maxixe. O tango brasileiro, evidentemente, iria aos poucos desaparecendo em virtude de sua pouca prática e do maior desenvolvimento de seu vizinho mais famoso, o tango argentino. No caso do choro, de vida mais longa, se tornou referência da música brasileira e consagrou inúmeras canções mundo a fora. O maxixe, por sua vez, surge na Pequena África, no bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, mas depois de ter sua dança estilizada por Antônio Lopes de Amorim Diniz, o Duque, “triunfou em Paris”, passando a ser interpretado em muitos outros lugares e até para grandes autoridades. Os dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers interpretaram o ritmo brasileiro no filme Voando para o Rio [Flying Down to Rio], de 1933, e neste contexto, podemos ainda destacar Apanheite Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, que foi interpretada pela organista Ethel Smith em uma animação de Walt Disney, A Culpa é do Samba [Blame it on the Samba], de 1948 A partir do maxixe se desenvolveu o samba que é inaugurado com Pelo Telefone, de Donga, gravada por Bahiano em 1917. Mas, se inicialmente possuia uma forma amaxixada, aos poucos vai ganhando forma própria e muito ao gosto do povo que a produziu, tornando-se sinônimo de ‘brasilidade’, reconhecido hoje em todo o mundo como expoente da identidade musical e cultural brasileira, difusão esta que também se deve a figura de Carmem Miranda que, mesmo sendo de origem portuguesa, representou, com seu Bando da Lua, a imagem do Brasil no exterior, se consagrando 84


como uma estrela hollywoodiana. Aos poucos o samba-enredo e o carnaval também começam a ganhar terreno no plano internacional, caracterizar a imagem do brasileiro e do samba e atrair cada vez mais visitantes para o Brasil para conhecer o que frequentemente se referencia como “o maior espetáculo da terra”. Da fusão entre o samba e o jazz temos a criação da bossa nova, sem dúvidas um outro grande expoente da internacionalização da Música Popular Brasileira. A tríade Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, foi responsável pela composição de obras conhecidas e reconhecidas em todas as partes do mundo. Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, tornou-se a segunda canção mais executada de todos os tempos, perdendo apenas para Yesterday, dos Beatles. Outras como Felicidade, Chega de Saudade, Desafinado e Eu Sei que Vou te Amar, também são facilmente identificadas mundo a fora. Contribuiu bastante para o princípio da internacionacionalização da bossa nova, a apresentação de artistas brasileiros no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, facilitando a troca de informações com artistas estrangeiros e a mimese por parte destes. Vale destacar que a internacionalização da bossa nova gerou uma contra-ofensiva dos militantes da chamada canção de protesto, percebidas em canções como Marcha da Quarta-Feira de Cinzas e Influência do Jazz, ambas de Carlos Lyra, dissidente da bossa nova. Em meio a estes embates emerge uma musicalidade nova, que procurava maior aproximação com a tradição popular brasileira, sem deixar de ser moderna, uma canção ao mesmo tempo erudita e popular, crítica e comercial, que se caracterizou como

uma

música

autenticamente

nacional,

mas

que

rapidamente

se

internacionalizou, encontrando nos festivais da canção seu lugar comum e uma plataforma de lançamento para essa internacionalização. Festivais da Canção e internacionalização Desde o início da chamada “Era dos Festivais” já havia a pretensão de se levar a música brasileira para além das fronteiras nacionais, como revela o jornal Folha de São Paulo ao noticiar o I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, realizado em 1965, na qual se lê: “Pela primeira vez firmas comerciais resolveram inverter parte de suas verbas de propaganda numa promoção que premia

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o esforço de compositores populares, e até, se bem encaminhada, projetará o Brasil no exterior.” (Folha de São Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965). No ano seguinte, empataram na finalíssima do II Festival da Música Popular da TV Record, de 1966, as canções A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. A Banda conheceu uma rápida propagação internacional, o que, deve se salientar, não ocorreu por meio do Festival da Record, o qual venceu, e sim em decorrência do Festival Internacional da Canção (FIC), promovido primeiro pela TV Rio e depois pela TV Globo e que era dividido em duas fases, uma nacional e outra internacional. Mais especificamente, foi em virtude da fase internacional do FIC, em que concorriam artistas de diversos países, para os quais A Banda foi reprisada em uma apresentação de Chico Buarque, então presidente do júri internacional, que ocorreu essa difusão. Em uma matéria, sugestivamente intitulada O Mundo verá A Banda passar, publicada no jornal Correio da Manhã, se afirmava que poucos eram os artistas estrangeiros, concorrentes da fase internacional do FIC, que não estavam “com A Banda em suas malas” e que, pelo visto, a canção de Chico iria “rodar o mundo” (Correio da Manhã, 30 out 1966). “O que realmente ocorreu, sendo A Banda regravada em diversos países como Argentina, Estados Unidos, França, Portugal e até na Escandinávia.” (MONTEIRO, 2014, p. 07). “Era o início de uma expansão internacional da “Moderna Música

Popular

Brasileira”,

depois

reconhecida

e

conhecida,

inclusive

mercadologicamente, como MPB.” (MONTEIRO, 2020, p. 51). A pesquisadora francesa Anaïs Fléchet destaca que os festivais contribuiram com o alcance global da música brasileira, por “abrigarem fases internacionais nos certames [...] e por repercutirem e terem sido transmitidos para diversos países, via televisão, imprensa escrita, etc.” (FLÉCHET, 2011, p. 161). Fléchet ainda afirma que “os festivais tiveram um papel de destaque no processo de globalização, favoreceram as transferências culturais entre diversas áreas culturais e definiram um lugar para a formação de uma cultura jovem, em ruptura com a ordem estabelecida” (FLÉCHET, 2011, p. 161). E o próprio FIC também ambicionava atingir proporções globais. O idealizador e organizador Augusto Marzagão, chegou a declarar que tinha como “sonho e lema”, conseguir uma canção que fosse cantada “da Patagônia aos Urais” (MARZAGÃO apud Veja, 08 out. 1969, p. 76). 86


Dentre os primeiros estrangeiros, que chegavam ao Rio de Janeiro para participar no FIC, era unânime a ideia de que a bossa nova e o samba se caracterizavam como a mais autêntica representação da música brasileira. Alguns, até um pouco saudosos, lamentavam que o Brasil não produzisse mais João Gilberto’s (Correio da Manhã, 26 out. 1966, p. 09). Aos poucos, entretanto, percebe-se uma alteração nos discursos dos visitantes que, cada vez mais anseavam por conhecer os artistas que surgiam e representavam uma nova música popular brasileira, muito mais moderna que o samba e muito mais enraizada na tradição popular que a bossa nova. Os estrangeiros chegavam atempadamente para acompanhar a fase nacional do FIC e auscultar o que se estava produzindo de mais recente na música brasileira. Em linhas gerais, o FIC terminava “trazendo ao Rio uma quantidade de nomes”, que seguramente promoveriam “a música popular brasileira no exterior.” (Veja, 16 out. 1968, p. 60). A partir daí, na verdade, tornaram-se comuns as regravações das músicas dos festivais por artistas estrangeiros e os convites para apresentações de brasileiros em outros países. Para além de A Banda ter sido uma das canções mais gravadas no mundo naquele tempo, Maysa, Gutemberg Guarabyra, Milton Nascimento e Geraldo Vandré, são alguns dentre os muitos dos que tiveram suas canções concorrentes nos festivais regravadas em outros países ou receberam convites para apresentações e gravações no estrangeiro, propagandeando ainda mais a música e os músicos brasileiros. Edu Lobo, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti, contribuíram com o jazz internacional. Elis Regina, Jorge Ben, Os Mutantes, entre outros, receberam convites de forma crescente para se apresentar no MIDEM (maior encontro empresarial de música do mundo) e foram muitos os que excursionaram pela América e Europa, por vezes incluindo África e Ásia. Tudo isso, portanto, confirma os festivais da canção, e mais especificamente a fase internacional do FIC, como um centro difusor da música popular brasileira para o exterior. Mais diretamente, se pretendeu evidenciar que os festivais catapultaram a “moderna música popular brasileira”, depois conhecida como MPB, caracterizando uma nova fase de internacionalização da música brasileira.

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Referências ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963. “‘Arrastão’ venceu facil festival, mas outra musica de Vinicius não convenceu. Folha de São Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_08abr1965.htm Acesso em: 20 maio de 2015. “Com Eles é Briga na Certa”. Veja, nº 06, 16 out. 1968, pp. 58-60. “Dori não esperava vencer, mas agora vai comprar casa”. Correio da Manhã, 26 out. 1966, 1º Caderno, p. 09. EFEGÊ, Jota. Maxixe: A dança excomungada. Rio de Janeiro: Funarte, 2009. FLÉCHET, Anaïs. Por uma história transnacional dos festivais de música popular: Música, contracultura e transferências culturais nas décadas de 1960 e 1970. Patrimônio e Memória, UNESP-FCLAs-CEDAP, vol. 7, nº 1, junho de 2011. GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao Som do Samba: Uma Leitura do Carnaval Carioca. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. MELLO, José Eduardo (Zuza) Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003. MONTEIRO, José Fernando S.. História Global e Festivais da Canção: Brasil e Portugal. In: anais [eletrônico] do 28º Simpósio Nacional de História – ANPUH-SC. Florianópolis: ANPUH, 2014. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/site/anaiscomplementares Acesso em: 20 nov. 2015. MONTEIRO, José Fernando S.. A Modinha Brasileira: Trajetória e Veleidades (sécs. XVIIIXX). Curitiba: Editora Appris, 2019. MONTEIRO, José Fernando S.. Festivais RTP e Festivais da MPB: Entre a tradição e a modernidade (1964-1975). 2020. 467 p. Tese (Doutorado em História - Programa de PósGraduação em História (PPHR), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, RJ, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/12320/1/PercepcaoAmbientalMuseus_Costa _2014.pdf. Acesso em: 29 março 2021. “O Mundo verá A Banda passar”. Correio da Manhã, 30 out 1966, Feminino, p. 01. “Os Sons de Sempre”. Veja, nº 57, 08 out. 1969. “Quero ver isso de Maxixe! Das origens na Cidade Nova à internacionalização do maxixe”. por José Fernando Monteiro. Musica Brasilis [portal], s/d. Disponível em: http://musicabrasilis.org.br/temas/quero-verisso-de-maxixe-das-origens-na-cidade-novainternacionalizacao-do-maxixe Acesso em: 06 mai. 2018. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 19171933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001. VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 6ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Editora UFRJ, 2007.

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COVID-19, DISCURSO E IDEOLOGIA: REFLEXÕES ACERCA DA PANDEMIA E AS DISPUTAS POLÍTICO-IDEOLÓGICAS NO AMBIENTE DAS REDES SOCIAIS

Luana Sarto Gomes (UFMG)31 Victor Henrique de Souza Arcanjo (UFMG)32

APRESENTAÇÃO Esse trabalho objetiva compreender como a falta de tecnologias e de conhecimentos necessários para criar estratégias de combate a crises sanitárias, no sentido de tratar de forma mais assertiva as moléstias que atingem a humanidade, coloca as doenças e o conhecimento sobre elas dentro do campo de disputas ideológicas. Dessa forma, relacionando ciências humanas e coleta de dados, o nosso principal objetivo consiste em compreender a mobilização dos discursos ideológicos em torno da pandemia de Covid-19 nas redes sociais. Foram considerados e analisados perfis de diferentes médicos, onde buscou-se entender a forma como o rigor científico é mais ou menos utilizado dentro da defesa de um ponto de vista, sendo este estruturado ideologicamente através dos discursos presentes nas mídias sociais. Assim, são trazidas reflexões sobre como a pandemia de COVID-19 foi mobilizada além das implicações na saúde pública, em meio a politização e ideologização da ciência principalmente através da conformação destes discursos no ambiente digital, tendo em vista seu grande alcance e essencial fundamento na formação de opiniões, assim como também suas peculiaridades. A metodologia utilizada nesta pesquisa consiste em pesquisa bibliográfica em produções sobre ideologias, formação dos discursos, as mídias e o ambiente virtual e a pandemia de Covid no Brasil. Além disso, os resultados da pesquisa foram baseados na coleta e análise de dados quantitativos dos perfis de oito médicos (sendo estes os perfis do Dr. Álvaro Galvão, Dr. Alain Dutra, Dr. Drauzio Varella, Dr. Felipe

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Aluna da graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais. Aluno da graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais.

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Ades, Dr. Fernando Gomes, Dr. Julio Pereira, Dr. Lair Ribeiro e Dra. Lucy Kerr) que produzem conteúdo nas redes Instagram e Youtube, principalmente os que se referem ao engajamento e repercussão em suas publicações. Neste sentido, buscamos compreender através destes dados e da bibliografia as implicações dos perfis de tais médicos com relação à pandemia de COVID-19 no Brasil, tendo em vista sua posição de autoridade em saúde assimilada pela população, tornando-se líderes de opinião no referente contexto de crise sanitária global. O conhecimento científico que ganha corpo racionalista a partir do século XVII, e maior intensidade no XVIII, assume caráter de rigor (LUZ, 2019, p. 90). A observação sistêmica e o controle da produção de conhecimento das ciências naturais adquiriu uma perspectiva de isenção tendo em vista a possibilidade de verdade baseada no dado (LUZ, 2019, p. 90). Na valorização do empirismo e da laicidade, afastou-se a ideia das disputas ideológicas que estão nos processos de construção dos saberes. Alguns trabalhos do campo da historiografia, como o de Anny Jackeline Torres Silveira em seu estudo sobre a Influenza de 1918, tem alertado para as disputas no campo do conhecimento científico. Nesse estudo é apontado como a falta de aparatos técnicos na descoberta do agente causador da moléstia, colocou em xeque a teoria bacteriológica a retomada da teoria miasmática. Ela alerta para a complexidade da construção do conhecimento científico que nem sempre se relaciona com evidências laboratoriais, levando em conta outras variáveis como o peso da autoridade. A conciliação de outros fatores que não somente o rigor da ciência e de defesa de ideologias também se faz presente no contexto da pandemia de Covid-19 (SILVEIRA, 2005, p. 91-105). A partir de Dijik e da compreensão de ideologia como pensamentos e crenças fundamentais de um grupo e seus membros caracterizado por representações sociais, pode-se afirmar que o uso da linguagem e do discurso são importantes elementos condicionados pela ideologia, sendo esta constituída como importante fundamento das práticas sociais (DIJIK, 2003, p. 14-17). Neste sentido, têm-se a compreensão das mídias como instrumentos de construção do discurso e do acontecimento (CHARAUDEAU, 2013, p. 189-190). Nelas são conformadas também as controvérsias, tendo na ampliação das redes e no surgimento do ambiente digital a complexificação desta dinâmica, com a facilitação do ganho de visibilidade e maior

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conformação dos chamados líderes de opinião. Assim, a formação discursiva a partir de tais controvérsias (MANNHEIM apud MAZUCATO, 2020, p. 109) bem como a multiplicidade de leituras que se tem sobre a realidade pandêmica e que, conforme Mannheim e Berger apontam, do conflito e disputas entre estes diferentes meios, seja por mudança ou permanência daquilo que predomina no momento, é criada uma “crise de sentido” em meio a politização da pandemia, em narrativas que são construídas não mais no âmbito científico, e sim político da situação (MAZUCATO; ANTÔNIO, 2020, p. 109-122). Quando da instauração da crise sanitária mundial, surgiu a necessidade da elaboração de medidas para controle da pandemia. O anseio por respostas às cobranças da população mundial e do sistema capitalista de produção elencou a corrida científica. Por um lado a busca por vacinas, por outro lado tratamentos com pouco ou nenhum respaldo no rigor da ciência. Ao passo que foram surgindo mundialmente a discussão de que a hidroxicloroquina e a cloroquina pudessem ser úteis no tratamento contra o coronavírus, tal perspectiva encontrou respaldo por agentes importantes do Governo brasileiro. No dia 21 de março, o presidente Jair Bolsonaro, abertamente a favor do uso da droga e incentivador enfático de sua ministração, declara que o laboratório do Exército brasileiro estaria produzindo o medicamento em larga escala. Partindo desta consideração, é importante destacar que os desafios políticos e de comunicação que se apresentam em situações de epidemias são anteriores ao COVID-19. Em artigo organizado por Flávia Thedim Bueno sobre o debate em relação a epidemia de Zika e Aedes aegypti, Mónica García destaca as incertezas e divergências existentes no campo científico frente a uma nova doença e que, ao contrário do que se infere inicialmente, as decisões políticas em saúde são tomadas antes de se dispor efetivamente de evidências científicas e consenso entre os pares pois a demanda social exige que algo seja feito. A necessidade de respostas rápidas eficientes requer uma comunicação responsável, no qual a articulação entre ciência e organismos de decisão política deve ser estabelecida com seriedade e clareza para que se estabeleça agendas prioritárias e se transmita informações coerentes e efetivas à população. García aponta que sem a legitimação do público, a ciência não encontra sua utilidade prática, fato este que essencializa a comunicação como

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instrumento fundamental para a aplicabilidade e desenvolvimento de pesquisas (COSTA; GARCÍA, 2017, p. 1167). No entanto, esta comunicação pode ser dificultada por conflitos que possam vir a se estabelecer na articulação ciência-governo. Neste sentido, o teor ideológico e político de uma epidemia influem na comunicação dos emissores autorizados sobre medidas de prevenção, combate e controle da doença, seja pela desvalorização e deslegitimação pública da ciência, pela disseminação de informações falsas, pela tomada de decisões desarticuladas, entre outras situações que tendem a agravar a situação epidêmica do local e que caminham conforme a disputa de discursos em relação aos acontecimentos e a polarização virtual da pandemia. A partir da compreensão dos dados coletados e tratados pelos pesquisadores do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais dentro do Projeto Covid Data Analytics, foi percebida a disputa entre discursos controversos nos perfis das mídias sociais dos médicos propostos para análise. De um lado a defesa (até prescrição) do chamado tratamento precoce por médicos como Álvaro Galvão e Alain Dutra, do outro a afirmação da não efetividade de tal tratamento, como no perfil de Dráuzio Varella. Esta contradição também engloba diferentes posicionamentos de tais médicos no que diz respeito ao isolamento social e às medidas nacionais e estaduais de combate à pandemia, divergindo em tais aspectos e exercendo influência sobre aqueles que acompanham os conteúdos, podendo esta ser visualizada através dos comentários coletados nas diversas publicações destes médicos em suas redes. Por um lado, alguns profissionais utilizam de sua posição enquanto líder de opinião para construir discursos em favor de tratamentos precoces e de medicamentos como a Hidroxicloroquina. Há também atuação de médicos em suas redes sociais que utilizam de sua profissionalização como forma de autenticação daquilo que se afirma e guiam esta disputa além do campo político da ciência, tendo efeitos conflituosos e desordenados no corpo social. Logo, a disputa assume contornos políticos quando da análise dos comentários nos quais torna-se o “antipatriota”, “o comunista” ou os “bandidos contra a cloroquina”, o que está no lado oposto da tensão. Por outro lado, os perfis com nenhuma adesão aos tratamentos precoces e uso de medicamentos respaldam-se mais de órgãos científicos que 92


legitimam suas comunicações, como a Organização Mundial de Saúde e universidades, como no caso do Dr. Dráuzio Varella. Ao final da pesquisa, concluímos que a incompreensão popular sobre como se dão as formações dos conhecimentos e conformidades científicas, o afastamento destes profissionais para com o público amplo, e o uso deliberadamente manipulado das controvérsias naturalmente surgidas neste campo, seguindo um rumo de compreensão ideológica e servindo a fins políticos fez com que as redes sociais se convertessem em ferramenta para a criação de um campo aberto de rivalidades e contestações, justamente em um momento em que o essencial seria a articulação conjunta de todo o corpo social a partir dos meios disponíveis para mitigar o quanto fosse possível os efeitos arrasadores desta moléstia. Neste sentido, os perfis demonstram que mesmo a controvérsia fazendo parte do próprio fazer científico, a mobilização discursiva dessas contradições dentro das disputas políticas em que o país já presenciava anteriormente contribuiu para uma desarticulação das políticas de prevenção, contenção e combate ao vírus, bem como para desagregação de informações e ideias dentro da sociedade civil engajada neste processo.

Referências COVID Data Analytics. Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (DCC/UFMG). Disponível em: http://covid.dcc.ufmg.br/. Belo Horizonte, 2020. DIJIK, Teun A. Van. Ideología y discurso: Una introducción multidisciplinaria. Editorial Ariel S. A, España. 1º Edição, 2003. COSTA, Flávia Thedim; GARCÍA, Mónica. Zika e Aedes aegypti: antigos e novos desafios. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 4, 2017, p. 1167. SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A medicina e a influenza espanhola de 1918. Tempo, v. 10, n. 19, p. 91-105, 2005.

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MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti. - São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MAZUCATO, Thiago Pereira da Silva; DE ANTÔNIO, Gabriel Henrique Burnatelli. Ideologias, utopias e cultura política-elementos para a compreensão da disputa ideológica no Brasil em tempos de Coronavírus. Simbiótica. Revista Eletrônica, v. 7, n. 1, p. 107-126, 2020. LUZ, Madel T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade moderna [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Fiocruz; Edições Livres, 2019. 184 p. (Coleção Memória Viva). CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Tradução Angela M. S. Corrêa. 2ª ed., 2ª reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2013.

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O ESPAÇO PÚBLICO COMO REPRESENTAÇÃO PARA OS SKATISTAS: COLETIVO XV-RJ E SALVE O VALE-SP EM PERSPECTIVA COMPARADA.

Luciano Hermes da Silva (PPGHC-UFRJ)

De um ponto de vista amplo, a pesquisa, da qual este texto deriva, pretende problematizar a prática do skate em espaços públicos, tema pouco explorado em Ciências Sociais. Mais detidamente, propõe-se aqui uma pesquisa sobre dois casos em que a prática do skate em espaços públicos sofreu interdição. Serão considerados os casos da Praça XV de Novembro33, no Rio de Janeiro e o Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Em ambos os casos se pode inferir que as ações dos gestores urbanos, bem como dos skatistas, seguiu alguns padrões, os quais se demostrará mais adiante. Ambos os espaços derivam de projetos de modernização das estruturas viárias nas áreas centrais dessas capitais. O Vale do Anhangabaú, localiza-se entre o viaduto do Chá e o viaduto Santa Efigênia. De acordo com Brandão (2020, p.21), no início da década de 1980, a Prefeitura de São Paulo realizou um concurso público para eleger o projeto urbanístico que transformaria o Vale do Anhangabaú num espaço livre de construções e de fluxo de veículos. O projeto vencedor propunha-se a “revivê-lo como uma área de permanência, com ares de um grande boulevard”. A Praça XV adquiriu suas feições e funções contemporâneas como resultado de transformações que se confundem com significativos eventos da história brasileira. No final dos anos 1990, a construção de uma via subterrânea para o tráfego de veículos deixou livre para pedestres toda sua extensão, adequando suas formas a

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Doravante Praça XV.

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seu uso predominante. Isto é, espaço de intensa circulação de pessoas que embarcam e desembarcam dos diferentes meios de transporte que a servem34. Em virtude das novas qualidades materiais atribuídas ao Vale do Anhangabaú e à Praça XV, esses espaços converteram-se em locais privilegiados para a prática do skate de rua, atraindo skatistas de todas as regiões das cidades, de outros estados e mesmo estrangeiros. O Vale do Anhangabaú foi primeiramente utilizado para a prática do skate ainda durante as obras35. De acordo com Brandão (idem.), já em 1993 era um local bastante utilizado pelos skatistas, tendo diversos registros na mídia especializada impressa e audiovisual. Na Praça XV não foi diferente. Mesmo antes do fim das obras, alguns skatistas conseguiram andar no chão liso e tão logo aberta aos pedestres, os skatistas se fizeram presentes, ainda no ano de 199736. Os dois espaços considerados diferem em muito entre si. Se na Praça XV a amplitude do espaço livre e de chão liso é de mais de 30 mil m², no Vale do Anhangabaú, os skatistas se concentravam nas arquibancadas e eventualmente, pelos estreitos caminhos de chão liso que cruzavam a praça. Em que pese o fato de que a prática do skate era em grande maior parte, confinada às arquibancadas, o skate só foi proibido no Vale durante um breve período, no início do ano 200037. A prática do skate na Praça XV de Novembro foi proibida pelo Decreto Municipal n° 17746 de 199938. Contudo, a proibição não resultou no abandono da Praça XV pelos skatistas. O que se seguiu foi o uso da praça pelos mesmos em horários de baixa visibilidade. Com o aumento do número de praticantes e, principalmente, pela veiculação de imagens captadas na Praça XV em diferentes canais de comunicação da mídia especializada em skate, a Praça XV se tornou cada

34

Trata-se de intervenção no âmbito do projeto Rio Cidade (1993-2000).

35

Conforme depoimento de David Toledo, o primeiro skatista a utilizar-se das arquibancadas no Vale do Anhangabaú (PRIETO, 2020, P.26). 36

Segundo relatos de alguns skatistas locais.

37

“...Na virada do século, o Bank Of Boston assumiu temporariamente a manutenção e conservação dos degraus. Durante alguns meses, enormes seguranças, trajando ternos pretos, ficavam postados em diversos pontos, mesmo debaixo de sol intenso, impedindo qualquer tentativa de sessão no local. Foi a única época que o skate foi proibido no Anhangabaú...” (CEMPORCENTOSKATE, 26 de setembro de 2017) 38 Art. 4° O exercício de atividades recreativas e esportivas tais como ciclismo, jogos de bola, "skate", dentre outras, nas praças, parques e jardins da Cidade do Rio de Janeiro, está limitado aos espaços especialmente destinados e sinalizados pelo Poder Público a tais fins, quando houver (RIO DE JANEIRO, 2012 [1999])

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vez mais um pico cobiçado e teve sua frequentação paulatinamente intensificada. Assim, a repressão por parte da Guarda Municipal se tornou igualmente mais intensa, culminando em episódios de violência e de apreensão dos skates. Ao longo do período de proibição, alguns skatistas frequentadores da Praça XV iniciaram o processo de organização de um coletivo com o objetivo de conquistar junto à Prefeitura o direito ao uso da praça. O Coletivo XV tem em seu histórico três manifestações realizadas na forma de ato público, nas quais se percorria de skate o centro da cidade do Rio de Janeiro, até a Praça XV, fazendo paradas temporárias para a realização de sessions39 de skate em diversos equipamentos urbanos situados ao longo do caminho. Essas manifestações, ocorridas entre os anos de 2008 e 2010 se realizaram na segunda quinzena do mês de junho, em concordância com a data de 21 de junho, quando é celebrado em todo o mundo o Go Skateboarding Day40 . O Coletivo XV representa uma forma de organização de praticantes do skate que não reivindica a construção de novas pistas de skate, tampouco a manutenção das pistas públicas. Pelo contrário, o que o I Love XV reivindica é o direito ao uso dos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, o coletivo XV elaborou um projeto de adequação do mobiliário urbano da Praça XV para a prática do skate. A adequação consistiria na aplicação de cantoneiras de metal nas bordas dos degraus, a fim de evitar o desgaste produzido pelo impacto e atrito de partes do skate contra o material que pavimenta a Praça. A prática do skate permaneceu proibida na Praça XV até o ano de 2011, quando foi liberada. Devido à repercussão das mobilizações dos skatistas, a Subprefeitura do Centro do Rio de Janeiro e a Secretaria Municipal de Esportes autorizaram a prática do skate na Praça XV. A partir de 2012, as mobilizações dos skatistas mudaram de caráter. De protestos tornaram-se celebrações. Em cada um desses eventos, à praça foram acrescentados novos mobiliários de interesse dos

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De acordo com Olic (2010), session é o termo nativo que designa o ato de andar de skate. Data em que se realizam internacionalmente confraternizações e sessions de skate. No site da organização Go skateboarding day o evento é definido como: “uma cooperativa de eventos descentralizados que acontecem ao redor do globo (...) Skatistas ao redor do mundo criam seus próprios eventos e tradições para celebrar o skate” (tradução do autor). 40

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skatistas, autoconstruídos ou financiados com recursos de empresas atuantes no mercado do skate. O skate segue liberado na Praça XV. No Vale do Anhangabaú, por outro lado, a prática do skate se deu sem interdição de maior monta durante pelo menos 27 anos41. Foi somente quando do início das obras do Projeto de Requalificação e Reurbanização do Vale do Anhangabaú e Entorno42 que a prática do skate foi subitamente interrompida. De acordo com diversos relatos (PRIETO, idem), não foi realizada nenhum tipo de consulta junto aos frequentadores, ou audiência pública. Os skatistas organizaram a campanha “Salve o Vale43” e realizaram um ato em frente à Prefeitura, em junho de 2019. Tal como no caso da Praça XV, a repercussão midiática pressionou o Poder Público a receber os representantes dos skatistas na reunião com os representantes das empresas envolvidas na obra. A participação dos skatistas foi no sentido de reivindicar a permanência das arquibancadas no novo Vale do Anhangabaú. Tal demanda não poderia ser atendida, já que o subsolo do Vale do Anhangabaú estava sob intervenção e toda a superfície havia de ser removida. O acordo se deu em torno do reaproveitamento das pedras de mármore que constituíam as arquibancadas para a construção de um “Memorial”. Ou seja, o pico mundialmente conhecido seria se não restaurado, pelo menos homenageado em um novo projeto. Da mesma forma como o Coletivo XV, a ação do movimento Salve o Vale é orientada para a produção social do espaço público: Durante anos, compartilhamos desse espaço com todo tipo de pessoas e situações que se pode encontrar em lugar esquecido pelo poder público. Demos vida ao Vale e o vale moldou nossas 41

A considerar o ano de 1993 como marco inicial das publicações na mídia especializada de imagens de skatistas no Vale do Anhangabaú. 42 A transformação do espaço público do Vale do Anhangabaú se insere no bojo de um conjunto de obras de adequação subterrânea de cabeamentos de energia e de comunicação na área central da cidade de São Paulo. Assim, todos os novos atributos materiais não são, a rigor, mais do que obras de acabamento da reforma infra estrutural levada a termo. (Gestão Urbana SP – Prefeitura Municipal de São Paulo, disponível em https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/projetos-urbanos/anhangabau/processo-participativo/). 43

Trata-se de uma mobilização convocada nas redes sociais, que contou com a participação de skatistas internacionalmente reconhecidos. A mobilização teve grande repercussão, reunindo mais de 6 mil assinaturas e milhares de compartilhamentos do vídeo no qual se faz uma paródia das publicidades de lançamentos imobiliários (https://www.youtube.com/watch?v=Gjy1CnqDbcc).

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vidas. No espaço público da nossa casa, o Vale do Anhangabaú é a nossa sala. É a nossa escola. É a nossa história. Nenhum de nós foi sequer comunicado antes da destruição desse lugar. Agora nos resta pedir o mínimo e o óbvio: 1.

Não queremos uma pista padrão, queremos uma obra de

arte "skatável" que homenageie o projeto da arquiteta Rosa Kliass, utilizando-se das pedras originais e que tenha caráter de espaço público. Nos confinar em uma pista - um espaço artificial feito somente para skate é diminuir não só a nossa prática, mas também a função social que exercemos. E também ignorar a história da cidade e sua cultura. Queremos uma homenagem ao projeto original, estética e conceitualmente. Queremos o Vale com o valor que nós, cidadãos paulistanos e skatistas, demos a ele através da nossa reinterpretação de sua arquitetura e do espaço público. E isso que o torna especial não só para nós, mas também aos olhos de urbanistas, arquitetos e amantes de skate do mundo inteiro. É isso que o coloca ao lado do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, da Court House na Filadélfia, do South Bank em Londres... A sua pedra marrom é não só nossa memória afetiva da cidade, como também a garantia material que dará o devido valor ao novo projeto. 2.

Queremos que haja instrução e estratégia na retirada de

todas as pedras que restam para que não ocorram perdas irreparáveis que representariam um total descaso com tudo dito até aqui. 3.

É essencial que haja skatistas frequentadores do local

encarregados de ajudar na implementação dessa obra. A especificidade da prática de skate no Vale torna indispensável essa medida, sendo impossível qualquer resultado satisfatório que não adote essa postura. (Klaus Bohms, skatista profissional em sua fala na audiência na Secretaria de Municipal de São Paulo, junho de 2019, In: PRIETO, idem, pp.98-99)

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Os skatistas representantes do movimento Salve o Vale participaram do processo de elaboração e construção do Memorial, que teve a abertura para o público realizada na segunda quinzena de fevereiro de 2021.

Referências BRANDÃO, Leonardo. Quanto vale? Uma história de bordas, gaps, viadutos e chás. In: PRIETO, Douglas (org.). Vale TXT. São Paulo: Flanantes, 2020, pp. 17-24. CEMPORCENTO SKATE. Skate: 10 fatos sobre o Vale do Anhangabaú. 26 de setembro de 2017. Disponível em: https://cemporcentoskate.com.br/fiksperto/skate10-fatos-sobre-o-vale-do-anhangabau/ OLIC, Mauricio Bacic. Entre o liso e o estriado: skatistas na metrópole. São Paulo: PUC-SP (Dissertação de Mestrado), 2010. PRIETO, Douglas (org.). Vale TXT. São Paulo: Flanantes, 2020. RIO DE JANEIRO. Decreto n° 17746 de 22 de julho de 1999. Dispõe sobre a regulamentação do uso das praças, parques e jardins da Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em: http://smaonline.rio.rj.gov.br/ConLegis/ato.asp?4657. SÃO PAULO. Lei Municipal 1.6050/2014, de 31 de julho de 2104. Aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo e

revoga

a

Lei

13.430/2002.

Disponível

em:

https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/arquivos/PDE-SuplementoDOC/PDE_SUPLEMENTO-DOC.pdf SILVA, Luciano Hermes da; DINIZ, Nelson; CAMPOS, Maicon Gilvan Lima. A apropriação do espaço público pelo skateboarding no centro do Rio de Janeiro: o Coletivo I Love XV e a conquista do direito à cidade. Lima: XIV Encontro LatinoAmericano de Geógrafos, 2013.

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SILVA, Luciano. Hermes da; DINIZ, Nelson. O skate e a produção social do espaço público. Vitória: VII Congresso Brasileiro de Geógrafos, 2014a. disponível em: http://www.cbg2014.agb.org.br. Acesso em: 16 jan. 2017

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Tempo Suspenso: Mulheres em tempo de pandemia através de um registro audiovisual

Luciene Carris (Casa Azul)44

Em março de 2020, fomos surpreendidos com o novo coronavírus que atingiu o Brasil. O vírus mortal, conhecido como Covid-19, alterou profundamente as nossas relações pessoais e de trabalho, afetou o nosso cotidiano, aprofundando as desigualdades socioeconômicas e de gênero, algo já advertido por muitos estudiosos. O mais grave disso tudo é que a pandemia se tornou a principal causa mortis no território nacional. Em meio a situação caótica, nos deparamos com um período marcado por um retrocesso político das instituições democráticas com discursos e pautas notadamente autoritárias com características neofascistas. Nessa conjuntura, a propagação ideológica de fakenews, de censura à imprensa, de revisionismos e de negacionismos ganharam, como até nunca visto antes, uma repercussão negativa e inigualável. Aliás, o negacionismo tem funcionado como um instrumento de manutenção de poder de governos populistas nos últimos tempos e representam um perigo para a democracia de seus países (Fancelli, 2021). As mídias digitais e os veículos tradicionais como a televisão e os jornais, diariamente, noticiam as recomendações necessárias para evitar o contágio do novo coronavírus, assim como contabilizam as cifras diárias de infectados e de óbitos, ultrapassando no último mês de abril a cifra de 400 mil mortos de acordo com os dados oficiais. Os historiadores não ficaram imunes a essa situação, pois é algo que afeta a nossa sociedade e o mundo, a existência da própria humanidade. Então, me indaguei sobre qual o papel do historiador em tempos de pandemia. Pois, lembrando Marc Bloch, se a história é filha do seu tempo, qual seria o ofício do historiador ou da historiadora nesse obscurantismo que nos circunda (Bloch, 2001). Não por acaso, em 2020, me envolvi em um projeto de um documentário de curta-metragem sobre a política de quarentena adotada naquele primeiro semestre. 44

Luciene Carris é Doutora em História pela UERJ com estágios pós-doutorais em Geografia Política FFLCH/USP e pelo Departamento de História da PUC-Rio. Pesquisadora associada do Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Memória (IMAM) do Instituto de História da UFRJ. É historiadora, pesquisadora e documentarista. Produziu os documentários Recanto (2019) e Tempo Suspenso (2020), é também uma das idealizadoras do canal no Youtube Entreconexões e do podcast Sarau da Casa Azul. Correio eletrônico: lucienecarris2016@gmail.com

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A ideia era compreender o olhar feminino de onze mulheres de diferentes formações, de gêneros e de origens socioeconômicas distintos sobre a pandemia. Mulheres dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, que apontaram olhares sobre as suas cidades e sobre como o cotidiano foi afetado com a nova divisão do trabalho doméstico e com o teletrabalho. A metodologia empregada para registrar os seus depoimentos partiu de um questionário previamente elaborado, seguindo a História Oral. O ponto em comum a essas mulheres é que praticamente todas trabalham ou trabalharam, excluindo a mais jovem que havia acabado de se graduar. O perfil escolhido foi variado. Mulheres casadas ou solteiras com profissões diversas: professoras

universitárias,

advogadas,

psicólogas,

biólogas,

historiadoras,

comissárias de bordo, artistas, cuidadora de idosos e aposentadas. Das onze mulheres, apenas uma delas abertamente relatou como a quarentena interferiu na relação com a rotina religiosa, que se restringia aos encontros virtuais e aos cultos através de plataformas digitais. Em todos os depoimentos, a fala se repete sobre a divisão das tarefas domésticas, a prática de exercícios físicos ou não, o desafio de aprender a cozinhar para si ou para a toda família ou ainda a impossibilidade de encontrar pais, filhos, netos e amigos, bem como a insatisfação com a conjuntura política. Um período que aprofundou reflexões existenciais como o enfrentamento da solidão e do cansaço. Aliás, sentimento vivido por uma delas que tinha acabado de ser mãe solo, uma situação vivida por mais de onze milhões de mulheres no território nacional. A pandemia da Covid-19 afetou diretamente a economia mundial e as relações interestados. Naquele primeiro semestre de 2020, pouco se sabia sobre o funcionamento do vírus e a vacinação não estava ainda no horizonte possível. As recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) se restringiam à adoção de determinados protocolos como a quarentena, o distanciamento social, o uso de máscaras e do álcool gel. De fato, tais precauções não foram tão bem assimiladas por muitos indivíduos. O certo é que o vírus acentuou as desigualdades socioeconômicas do Brasil como comentado inicialmente. Uma das nossas entrevistadas é moradora de uma comunidade da zona sul do Rio de Janeiro, a Rocinha, que possui mais de cem mil habitantes e perdeu naqueles primeiros meses um parente próximo. O seu depoimento e as imagens por ela gravadas demonstram como ali foi e é praticamente 103


impossível de serem adotados rigidamente as recomendações médico-sanitárias por razões diversas. Assim, evidencia-se a necessidade de sair de casa para ganhar o sustento de cada dia e a dificuldade de manter o distanciamento social em casas pequenas com poucos cômodos e com muitos familiares de idades diversas convivendo sob o mesmo teto. A aviação comercial foi um dos setores econômicos atingidos, a interrupção do tráfego aéreo, bem como a redução de demanda dos voos, atingiu milhares de trabalhadores e trabalhadoras do ramo. Podemos constatar a consequência desse acontecimento nas vidas de três mulheres que atuam como comissárias de bordo e acumulam outras profissões como historiadora e artista de lettering. Uma delas é solteira e optou por se mudar para o sítio de seus pais octogenários em outra cidade, apesar de possuir uma família extensa. A sua condição como mulher e solteira, aparentemente, determinou a sua condição como cuidadora de seus progenitores. As outras duas formam um casal. Os seus depoimentos revelam que vivenciaram a quarentena unidas e compartilhando fraternalmente as tarefas domésticas e o cuidado com o animal de estimação. São falas que manifestam uma certa resiliência ou que escondem em seus meandros a realidade daquele melancólico momento vivido. De todo modo, as falas femininas apontam para os olhares sobre o momento vivido no Brasil naquele momento, por outro lado, revelam as dificuldades já conhecidas pelas mulheres. A pandemia acentuou as dificuldades enfrentadas como a divisão dos papéis domésticos, ou seja, a tradicional divisão sexual do trabalho, o aumento da violência doméstica e do feminícidio, amplamente difundidos pelos jornais e nas diversas mídias digitais. Muitas mulheres perderam seus empregos ou tiveram redução salarial. Além disso, o aumento da sobrecarga de trabalho tem causado problemas de saúde mental. O cenário da pandemia despertou reflexões sobre a organização da vida cotidiana, uma vez que o prolongado isolamento exigiu das mulheres trabalhadoras estratégias para atender ao trabalho fora e dentro de casa. A participação feminina no mundo do trabalho produtivo sofreu certa ameaça no sentido de que não houve medidas institucionais que garantissem o apoio às famílias e às mulheres trabalhadoras,

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particularmente as das camadas menos privilegiadas (Bueno, 2021, p. 1548). Contudo, a cenas foram gravadas a partir dos celulares de cada uma das participantes, o que pode conferir aspectos interessantes e particulares de suas narrativas. A nossa intenção é divulgar o teaser de um minuto do documentário “Tempo Suspenso” apresentar um registro histórico da pandemia, que ainda assola o país, e discutir o papel do historiador nesse momento, o que nos permite repensar as atividades possíveis de atuação profissional, a relação da história e o universo do audiovisual como um registro do tempo presente. O curta-metragem é uma produção independente e foi produzido, dirigido e roteirizado em parceria com a jornalista Leila Meirelles. A responsabilidade pela edição e montagem coube ao videomaker Luis Felipe Mano. A relação entre o cinema e a história foi abordado no estudo clássico do historiador francês Marc Ferro em Cinema e História, que ressaltou que o filme é um documento histórico, mais do que uma obra de arte, pode contribuir na construção de uma contra-história, de uma história considerada não oficial. Assim, como um produto da história constitui: um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’, isto é, a sociedade que o contextualiza, que define sua própria linguagem possível, que estabelece seus fazeres, que institui suas temáticas. Por isso, qualquer obra cinematográfica – seja um documentário ou uma pura ficção – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que a produziu (Barros, 2011, p. 180).

Para concluir, o documentário como um gênero pode ser entendido como um “lugar de memória”, relembrando aqui Pierre Nora, cuja narrativa incita questionamentos e digressões sobre o passado e o presente, contribuindo para uma interpretação sobre o mundo e a realidade social.

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Figura 1. Cartaz do documentário com os nomes das entrevistadas e da equipe.

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Referências: BARROS, José D´Assunção. Cinema e História: considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas. In: Comunicação & Sociedade, Ano 32, n. 55, p. 175-202, jan./jun. 2011. Disponível em https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/CSO/article/view/2324/2504 Acesso em: 05 maio 2021. BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BUENO, Wilma de Lara. História das mulheres em tempos de pandemia. In: Filosofia e Educação. Campinas, São Paulo, v.12, n.3, p. 1544-1564, set./dez. 2020. Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8661985/25879 Acesso em: 05 maio 2021. FANCELLI, Uriã. Populismo e negacionismo como ferramenta para a manutenção do poder populista. Curitiba: Appris, 2021. MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; KORNIS, Mônica Almeida (orgs.). História e Documentário. Rio de Janeiro: FGV, 2012. PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. ______. Os excluídos da historia: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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A BATALHA PELO IMAGINÁRIO POPULAR: OS ACADÊMICOS REBELDES DE 1890

Matheus Romano Palmieri de Souza (UFRJ)45

No ano de 1890, no Largo São Francisco de Paula, um grupo de artistas da Academia Imperial de Belas Artes realizou uma exposição particular e ao ar livre, coberta por tendas brancas, pela estátua de José Bonifácio e pelo antigo céu da capital do Império. Evadindo suas produções iconográficas dos muros destroçados da Academia, eles afirmavam que a instituição da qual faziam parte já não mais era capaz de representa-los, nem muito menos (e mais importante) suas obras de arte. Retiravam da AIBA, com aquele gesto simbólico, sua mais importante e imponente ferramenta: a sua capacidade de representar, de acordo com os padrões culturais e sociais de seu universo de influência, uma classe de artistas genuinamente brasileira. É importante ressaltar que tratamos de um período extremamente conturbado das estruturas políticas que regiam a sociedade brasileira. A República, recém instaurada pelos militares e pela elite intelectual do país, tentava sorrateiramente penetrar a sociedade e impregnar-se na alma dos habitantes do antigo Império. Aqueles que venceram a disputa ideológica pelos caminhos políticos que trilharia nossa Primeira República, durante a década de 1880, tinham muitos problemas em suas mãos, e um dos mais imediatos deles, se levarmos em consideração a velocidade com a qual trataram de resolvê-lo, era o de reorganizar as antigas instituições cujos laços estavam imbricados (política, cultural e materialmente) à Monarquia. Uma dessas instituições era a Academia Imperial de Belas Artes, responsável por patrocinar e cultivar um verdadeiro arsenal de soldados na batalha pelo imaginário popular brasileiro. Em 1890, o ministro responsável pela instrução pública (Benjamin Constant) comandou a elaboração de uma reforma institucional que pudesse revigorar e reinterpretar o papel da nova Academia, que agora se chamaria Escola Nacional de 45

Historiador graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente mestrando do Programa de PósGraduação em História Comparada (PPGHC – UFRJ)

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Belas Artes. Dotados de certa autonomia na demarcação de suas demandas como uma classe, os professores Rodolpho Bernadelli e Rodolfo Amoedo erigiram o documento em formato de Projeto de Reforma que viria a estabelecer os parâmetros, métodos, regulamentos e objetivos da nova sede simbólica da classe de artistas oficializados e brasileiros. A velocidade com a qual o projeto foi demandado e aprovado (menos de um ano havia se passado desde a proclamação) demonstra a possível compreensão, especialmente do ministro responsável (Benjamin Constant), de que uma reforma educacional e artística era extremamente necessária. Outras evidências para pressupor a urgência dessa reorganização podem ser encontradas em outros Projetos de Reforma e em textos de articulistas e críticos da arte contemporâneos aos acadêmicos rebeldes de 1890. Em várias publicações impressas do período, tais quais jornais e revistas de grande circulação como “O Paiz”,

“Gazeta

de

Notícias”

e

“Revista

Ilustrada”,

ficam

evidentes

os

descontentamentos (por vezes radicais) de parte significativa do universo artístico carioca. Nomes como os dos pintores Pedro Américo e Ângelo Agostini, do articulista Pardal Mallet e dos críticos Gonzaga Duque e Júlio Verim, em diversas ocasiões manifestaram seu completo desânimo com a organização e com a própria existência da Academia Imperial de Belas Artes. Os pintores e acadêmicos Montenegro Cordeiro, Aurélio de Figueiredo e Décio Villares, para além de exporem suas críticas publicamente, resolveram tomar para si a missão de erigirem sua própria reforma “extraoficial”, ou melhor, sua própria proposta de extinção da Academia, que deveria, de acordo com eles, ser substituída por escolas livres espalhadas pelo país e articuladas de maneira descentralizada. Foi em meio a esse estado das coisas (e ainda esperando pela aprovação do Projeto de Reforma escrito por Bernadelli e Amoedo), que um grupo de alunos resolveu inaugurar um “barracão”, de acordo com Frederico Barata, que funcionasse como um “Ateliê Livre” onde aulas gratuitas seriam ministradas por professores como Zeferino da Costa e os próprios Rodolpho Bernadelli e Rodolfo Amoedo. Esse barracão, que servia como local de exposição e sala de aula ao ar livre, foi escolhido por ter sido o local onde Aurélio de Figueiredo (ironicamente, um dos “opositores” do projeto de reforma oficial) expusera pela primeira vez sua obra “A Redenção do Amazonas”. E ali, no Largo São Francisco de Paula, por baixo da estátua de José Bonifácio, aquele Ateliê, (inspirado certamente nas experiências que muitos daqueles 109


acadêmicos obtiveram em países como França e Itália) funcionou por dois meses, até que a prefeitura o proibisse de funcionar por motivos de segurança. Ao invés de desistirem da empreitada, os rebeldes foram se reunir na rua do Ouvidor, mantendo viva a fagulha de suas demandas. É possível afirmar que a fundação daquele “Ateliê Livre” era mais do que uma simples forma de propagandear suas produções artísticas. Quando analisamos esse evento em consonância com as manifestações de outros membros relevantes e influentes da comunidade artística e acadêmica carioca daquele último quarto de século, é possível perceber uma tendência sociocultural quase generalizada: de uma forma ou de outra, os descontentamentos daquela parcela da população brasileira encontravam suas raízes na exclusão do universo das artes da sociedade brasileira. Desde os anos de Manoel de Araújo Porto-Alegre como diretor da AIBA, na década de 50, é essa a principal, a mais latente demanda da classe dos artistas oficializados no Brasil: expandir a esfera de influência das doutrinas artísticas (fossem elas quais fossem) e penetrar as almas de uma sociedade pouco familiarizada com elas. Essas doutrinas, ou métodos e estilos, transformar-se-iam durante as décadas, e os meios com os quais desejou Porto-Alegre expandir a influência de sua instituição eram radicalmente distintos daqueles propostos por Amoedo e Bernadelli, mas obedeciam ao mesmo descontentamento: o Brasil não era uma nação devidamente educada por seus líderes políticos, e a única forma de fazer expandir o universo do qual retiravam legitimidade (o universo artístico acadêmico carioca dos finais do séc. XIX), era por meio de um sistema educacional e artístico que pudesse englobar todas as classes que compunham a sociedade brasileira. O Ateliê Livre de 1890 representava o apogeu desse desejo, pelo menos naquele século, e inaugurava uma tendência que jamais regressaria ao seu estado original: a demanda por educação imbricava-se agora, inegavelmente, a uma demanda por liberdade. A importância dessa demanda e o motivo pelo qual foi renomeada aquela Instituição não podem ser ignorados: os artistas acadêmicos do Rio de Janeiro daquele último quarto de século eram mais do que pintores ou escultores: eram (e se interpretavam como tais) agentes sociais, providos de uma ferramenta poderosa. Eram capazes, por meio de sua formação artística, de atribuir significados a símbolos, construir temáticas e elaborar representações que pudessem exaltar aqueles que os patrocinavam. No Brasil do século XIX, ou melhor, na época do nascimento das várias 110


ideias de Brasil que iriam confluir durante as décadas na direção do que podemos reconhecer hoje como a República sul-americana da qual fazemos parte, a utilidade dessa ferramenta é imprescindível. “Substituir um Governo e construir uma nação, esta era a tarefa que os republicanos tinham de enfrentar” (CARVALHO, 2007, P. 25), afirmou o historiador José Murilo de Carvalho, e a segunda parte de sua afirmação é que mais nos interessa. Não foi a primeira vez que uma nação teve de ser inventada nessas terras, e a cada reinvenção do que significa ser e estar no Brasil, soldados são convocados. Mas não se tratam de soldados convencionais, munidos de armas e canhões. Não: a época de construir nações é também a época da manipulação dos símbolos, das transformações de representações, de formação das almas, da transfiguração do imaginário popular. É a época dos soldados ideológicos, providos de armas capazes de penetrar o coração dos homens e fazê-los perceberem-se não só como Brasileiros, mas como súditos de D. Pedro I, de D. Pedro II ou como cidadãos de uma República.

Referências. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Z. Valverde, 1964. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. 2ª edição. Companhia das Letras. São Paulo. 2007. P. 25 CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os embates no meio artístico carioca em 1890 antecedentes da Reforma da Academia das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n.

2,

abr.

2007. Disponível

<http://www.dezenovevinte.net/criticas/embate_1890.htm>.

Acessado

em: em

22/02/2021. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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TOUJURS PERDRIX!: PENSAR A AMAZÔNIA BRASILEIRA POR MEIO DAS IMAGENS

Maurício Elias Zouein (UFRR/IMAM)46 A imagem como fonte histórica Autênticos monumentos-documentos, as imagens fotográficas, fotografias1 e xilogravuras na Amazônia brasileira entre 1865 a 1908 correspondem a ferramentas de construção da condição científica da memória. Por meio daqueles que foram modelos para imagens, dos que produziram imagens e das próprias imagens encontramos expressões visuais profundas e poéticas que surpreendem na manifestação do esforço humano em interpretar. Tais imagens revelam na Amazônia brasileira2 os ângulos das dinâmicas ideológicas mais impressionantes. Percebe-se nas imagens as diretrizes das práticas sociais. Pela escolha das cenas, pressupomos que o olhar de quem as produziu se comoveu diante das cores da gente daqueles lugares, dos mistérios míticos, da história se revelando, da estranha malícia sedutora que habita como um símbolo a essência da verdez amazônica. Na exposição do momento por meio da imagem, a realidade se pôs em desfile. Presunçosa à frente dos instrumentos e do seduzido. Ora, a imagem – pintura, gravura ou fotográfica – não apresenta o fato. Ela apresenta a si mesma e representa o fato. Se aquele que a percebe desconhecer o contexto (onde e quando a imagem foi produzida e consequentemente o objeto/sujeito/evento representado) dificilmente conseguirá interpretar o conteúdo imagético conforme o tempo histórico em que ele foi concebido. O máximo que poderá fazer é crer nos elementos empáticos expostos entre as margens indiscretas da tela, da página ou da fotografia. Além disso, se, por um lado, acreditamos na intenção como ação indutiva do aparato visual. Por outro, admitimos a imposição da imagem ao olho humano. Utilizando o pensamento flusseriano3: Ao olharmos para a 46

Coordenador do Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia e Curso de Comunicação Social-jornalismo (UFRR-RR), Membro do Programa de Pós-Graduação em Comunicação; Líder do Grupo Linguagem, Cultura e Tecnologia – Linha de pesquisa Visualidades Amazônicas, Mestre em Psicologia Social (UCB) e Doutor em História Social (UFRJ). Cursos: Seeing Through Photographs - The Museum of Modern Art (MoMA - USA), Understanding Research Methods - University of London (UK), membro do Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metropole.

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circumstantĭa4 de uma distância, que pode ser subjetiva, o que percebemos e a imagem que, por sua vez, transforma a circunstância em uma skēnē5. Confinamonos, então, a nossa capacidade interpretativa e/ ou imaginativa provocada por meio da imagem. A partir de tal distanciamento surge o que Wittgenstein (1889-1951) nomeou de Sachverhalt6 e Heidegger (1889-1976) batizou de verhältnisse7. Então, as imagens passam a ser uma espécie de mediação8 da circunstância. Com a mediação assomam tanto a capacidade de representar quanto a de ocultar9 a circunstância. E, quando a imagem assume a postura de deturpar o que precisamos imaginar, imaginamos imaginar. Id est, a alienação10 se manifesta. Minha preocupação recai por sobre o que foi renegado e/ ou ocultado oficialmente e destinado ao inconsútil disfarce do ideológico. Com tal preocupação fui forçado a refletir sobre a tessitura existencial da imagem emaranhada a personalidade ardilosa da memória. Ambas, imagem e memória, orientando e sendo orientadas pelo olhar. Perceber a vida, confeccionada pela imaginação, é um contexto que prima pelo relacionamento. As imagens possuem uma aura densa de magia11. Por tanto tais relacionamentos possuem um caráter mágico. Repensar o armazenamento é a única habitação possível para podermos carregar o fardo de testemunhar uma experiencia imagética. Desde tenra infância a humanidade procura enxergar na imagem a conquista sobre o logos12. Uma necessidade que remodela, com o passar do tempo, as associações sígnicas que o ser humano faz com a realidade. Não importa se enaltecemos ou lastimamos tais associações. O importante é não as desprezar. Para demonstrar como tratamos a imagem em nossa pesquisa tomemos a xilogravura13 (imagem 001) como exemplo no paradigma pré-fotográfico. Ora, a imagem/estampa apresenta a si mesma. E sim, é uma representação14, por meio do conteúdo sígnico. Ela é signo de alguém, de um fato, cenário e/ou circunstância como é signo de si mesma. Quem a percebe, ao desconhecer o lugar e momento cuja imagem/estampa é signo, é improvável que conseguirá interpretar o conteúdo imagético em concordância com o tempo histórico que ela é percebida como vorslellung15. Quem se dispor a interpretar a obra necessitará crer nos elementos empáticos expostos por entre a impertinente moldura enclausuradora da imagem.

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A técnica utilizada na xilogravura requer habilidade, paciência e concentração. Conhecimento dos tipos de madeiras, instrumentos de entalhe, tintas etc. Tais qualidades humanas revelam a imisção do artista/criador na obra. Então, acredito que concordamos... neste paradigma a ação humana direta, na elaboração do signo imagético, é considerável. Seja para instigar a imaginação ou para poupar o esforço do imaginário no sentido de aproximação com a realidade16.

Imagem 001 - Toujurs perdrix! (Rio Madeira). Gramatura do papel 110g/m2, tons de cinza, porém, com o envelhecimento do papel a tonalidade se modifica - Dimensões: 9cm x 12cm. Autor - Franz Keller-Leuzinger in “The Amazon and Madeira Rivers: Sketches and Descriptions from the Note-Book of an Explorer” - 1875, p. 87. Fonte: Acervo particular. No caso da obra Toujurs perdrix! do engenheiro, desenhista, xilogravurista, e fotógrafo, Franz Keller (1835-1890)17 a imagem/estampa tenta reproduzir uma experiência que também foi descrita em palavras: Aconteceu-nos muitas vezes no baixo Madeira ter em roda do fogo de nossa cosinha tartarugas de todos os tamanhos, desde as que mediam um metro de comprimento até ás que não excediam de um metro de um palmo; preparavam-se com todos

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os molhos, inteiras ou em fragmentos, em sopa ou assadas, de panella, ao espeto, ou como se podia melhor desejar. Um banho no rio imediatamente depois da comida, passou para todos estes indios ao estado de segunda natureza; não vi um unico que sofresse por isto o mais ligeiro incommodo. (KellerLeuzinger, 1875, pgs. 88,89). Ler o texto, após a imagem/estampa, causa a impressão de que o artista/autor se preocupou em evidenciar imageticamente as tartarugas (inteira, no canto esquerdo; em pedaços, no espeto um pouco mais a frente e somente o casco, no centro) e os artefatos utilizados no preparo e consumo delas. Eram Tartarugas18, Suruanãs19, Tracajás20, Cunhamucus21, Aperemas22 e Jabutis23. Iguarias cujos ovos serviam para o fabrico de óleo utilizado na cozinha e iluminação da época. Em 06 de outubro de 1850 escrevia Henry Walter Bates24 (1825-1892): A flecha usada para matar tartarugas tem robusta ponta de aço, em forma de lanceta, adaptada a uma cavilha que penetra na ponta da seta. A cavilha é presa à seta por um torçal feito de fibras de folha de ananás, caprichosamente enrolado em torno do corpo da flecha. Quando o missivo entra na carapaça, a cavilha se destaca e o animal desce com ele para o fundo, deixando a seta a boiar na superfície. Feito isto, o caçador rema em sua montaria para o lugar e delicadamente puxa o animal pelo torgal, comprazendo-se em largar a rédea quando ela mergulha, até que é de novo trazida á superfície, quando a fere com segunda flecha. Com o auxilio de duas cordas não tem mais dificuldade em trazer para terra a presa. Até ao meio dia os homens tinham morto umas vinte tartarugas quasi adultas. (BATES 1863, p. 248) O conhecimento de Keller em xilogravura somado a experiência adquirida durante a viajem no Madeira resultou nas imagens/estampas de determinadas circunstâncias. No caso, as formas de se alimentar com os quelônios. Há de se reparar que escolher a circunstância precede a construção da imagem. Ao contrário, com a fotografia, existe a possibilidade de escolhermos entre várias imagens 115


fotográficas aquela que melhor possui a capacidade de ser a vorslellung da circunstância. A semelhança proposta por parte da imagem não é competente o suficiente para carregar consigo a dimensão da realidade. Tal semelhança é a porção finita da infinitude do real. O tempo e espaço indicados na imagem atuam no consciente com uma performance distinta da que desempenharam antes do Unbewusste25. Ao adentrarem a consciência ocidental, as associações sígnicas nos conduzem a aceitarmos que possuímos pouca experiência da imagem/estampa e estamos confinados a capacidade humana de interpretar, de imaginar. Considerações finais Trata-se de uma constante audição das vozes inconstantes que ressoam no tempo, oscilam, nos níveis, entre a imagem com segundas intenções, um pouco presumida, e uma seriedade muita enérgica que avança rumo à história. cada imagem experimenta a ação e, ainda a sua ação própria; logo, segue-se um movimento polimagético, introduzido pela afirmação paradoxal acerca da constância, que também seria uma forma de oscilação mais lenta. Esperamos que novas pesquisas possam dar continuidade a proposta de se pensar a Amazônia brasileira por meio das imagens. Por mais que a nossa humilde intenção tenha sido correspondida o processo revelou novas interrogações e intenções. O privilégio do contato com as fontes primarias adquiriu um significado esperançoso, do ponto de vista da inquietude, para a pesquisa histórica; pois a imagem fotográfica visa com sua aptidão de encerrar-se em qualquer todo, a pesquisa da condição do que foi fotografado, e manifesta, assim, o princípio heurístico do qual utilizamos continuamente, inconsciente ou consciente, quando estamos empenhados em entender a Amazônia por meio da expressão visual, seja contemporânea, seja longínqua e histórica; aplicamos-lhe as hierarquias que a nossa própria experiência nos proporciona de tal forma que nosso conhecimento da história, do que foi reproduzido por meio de imagens, depende profundamente do nosso conhecimento, de nós mesmos enquanto atores sociais e da amplidão do nosso horizonte interpretativo. Aliás, a expressão Toujurs perdrix! compreende o sentido de satisfação ou empanzinamento. Notas

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-Imagem fotografia = conteúdo, representação do que foi fotografado. Fotografia = objeto palpável, materialidade. 2-Para este trabalho entendemos por Amazônia brasileira a divisão territorial conhecida em 1850 por Amazonas e Grão Pará. E a divisão regional estabelecida em 1945 para a Região Norte que compreende: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima. 3-Vilém Flusser (1920-1991). 4-Do grego: περίστασις - Combinação de acontecimentos em dado momento. 5-Cena e/ou construção de cena. 6-Para Wittgenstein, Sachverhalt, é o que entendemos por uma proposição elementar, ou se esta é uma verdade. E, o conjunto de proposições elementares, foi definido como Tatsache. 7-Envolvimento e organização do cidadão com as circunstâncias próprias de seu mundo. 8-Do grego διαμεσολαβητής - diamesolavitís ou do latim “mediatio”, (para ambas as formas = intervir). 9-Do latim occultāre - “dissimular, reservar, manter secreto”, formado por ob-, “sobre”, mais cellare, “esconder, tirar da vista”. 10-Do lat. alienatĭo,ōnis 'alienação, transmissão do direito de propriedade, delírio etc. Conforme o pensamento hegeliano, processo essencial à consciência através do qual o observador comum da realidade vislumbra o mundo como sendo constituído de coisas independentes umas das outras. 11-Do latim magia, proveniente do grego antigo mageía (μαγεία) que por sua vez do antigo persa magush, possuidora da raiz magh- ("ser capaz", "ter poder"). Conforme Paracelsus, (Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim 14931541) a imaginação (imaginatio) é uma ferramenta que mobiliza à vontade e adequa a exteriorização da magia no universo. 12-Do grego antigo: λόγος (trad. – lógos). Conforme os escritos heraclitianos: lógos pode ser entendido como justa medida ou razão. 13-Gravura em relevo sobre madeira 14-(lat. Repraesentatio; ingl. Representation; franc. Représentation; al. Vorslellung). Vocábulo de origem medieval para indicar a imagem (v.) ou a ideia ([v.] no 2." sentido), ou ambas as coisas. O uso do termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de conhecimento como "semelhança" do objeto. "Representar algo, dizia S. Tomás,

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significa conter a semelhança da coisa" (De Veríi., q.. 7, a.5). (ABBAGNANO 1970, pg. 820). 15-“O substantivo Vorstellung não é termo de uso culto e vernacular, nem pertence ao jargão especializado da filosofia ou da psicologia. Trata-se de termo de uso coloquial, para designar a palavra "idéia" ou "concepção" (no sentido de "idéia visualizada"/ "imagem")”. (HANNS 1996, pg. 386). 16-Algumas interessantes inquirições de Charles Sander´s Peirce sobre realidade podem ser encontradas no The Collected Papers of Charles S: CP, 4.28; CP, 5.65; CP, 5.310 a 5.317; CP, 8.12 17-Um dos aprendizes, sobre fotografia, mais famosos de Keller foi Marc Ferrez (1843-1923) que possivelmente foi igualmente incumbido de ensinar ao jovem Walter Hunnewell (1844-1921), integrante da expedição de Jean Louis Rodolph Agassiz (1807-1873), a técnica de fotografar. 18-“A longa história de uso da tartaruga permite identificar pelo menos quatro fases. Na primeira fase (1700-1860), estima-se que foram colhidos 12-48 milhões de ovos por ano para a produção de óleo. Na segunda fase (1870-1897), a produção caiu para 1-5 milhões de ovos por ano”. (REBELO 2000, pg. 01) 19-Tartaruga do mar 20-Espécie com carapaça e pele negras e possui manchas amarelas na cabeça 21-Tartaruga, fêmea e jovem que ainda não pôs ovos. 22-Espécie de casco relativamente fino e a cabeça com pequenas manchas vermelhas e amarelas. 23-Espécie de casco alto e patas cilíndricas. 24-Explorador/naturalista inglês. Viajou pelo norte brasileiro entre 1848 e 1859 25-Palavra alemã para designar o termo Inconsciente (do latim inconscius) concebida por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) na obra System des transzendentalen Idealismus (1800)

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Referências BATES, H. W. The Naturalist on the River Amazons: A Record of Adventures, Habits of Animals, Sketches of Brazilian and Indian Life, and Aspects of Nature Under the Equator, during eleven years of travel. Londres: John Murray, 1863. KELLER, Franz. The Amazon and Madeira Rivers: Sketches and Descriptions from the Note-Book of an Explorer. London: Chapman and Hall, 193, Piccadilly, 1875.

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MEMÓRIA E DIREITOS EM CIDADES MINERADORAS Regina Helena Alves da Silva (UFMG) Os territórios das cidades mineradoras, podem ser abordados como sistemas complexos, abertos e dinâmicos. Para isso, eles possuem componentes ambientais, econômicos, sociais, político-institucionais e culturais estreitamente entrelaçados e interatuantes, que interagem influenciando uns aos outros, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, em outros e no sistema como um todo. A partir disso, os territórios se concebem como construções histórico-culturais com identidade e tecido social próprios, que resultam de interações entre pessoas e elementos da natureza. “O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence" (SANTOS, 2004, p. 96-97). Nesta perspectiva, seguindo o que conceitua Milton Santos, falar de território é ter em mente um "território usado, utilizado por uma população" (Ibidem). Seu desenvolvimento pode ter distintos graus de sustentabilidade ambiental, econômica, social, político-institucional e cultural. A conjunção desses fatores internos e as condições exógenas podem contribuir para essa sustentabilidade e para um desenvolvimento territorial equilibrado e integral. Para entender o território precisamos antes entender os fluxos, e para entender os fluxos, precisamos compreender as redes - as relações entre os objetos que compõem a multiplicidade do município. A Cartografia Social que temos em mãos consiste numa proposta conceitual e metodológica que se propõe a construir um conhecimento integral de um território, utilizando-se de diferentes instrumentos técnicos e vivenciais. Trata-se de um instrumento que privilegia a construção de um conhecimento simbólico e cultural da população do território que pode expressar seus diversos anseios e desejos, além das diferentes percepções sobre assuntos que se mostram relevantes para a construção social do território. A ideia e a prática desse tipo de cartografia social compreendem o estudo de como um determinado lugar se organiza tanto espacial quanto temporalmente.Trata-se, assim, de pensar a geografia pela história e a história pela geografia dos territórios em formação. Tal relação entre as ciências do espaço e do tempo é atravessada por uma série de interfaces e de controvérsias sociais entre diferentes atores humanos (indivíduos, famílias, instituições) e não humanos (elementos da fauna, da flora e do espaço “natural”) (LATOUR, 2012). Ainda que as políticas públicas sejam focadas em territórios-zona, nos quais é possível territorializar programas institucionais e recursos do Estado, os espaços vivenciais e relacionais devem ser vistos como territórios-rede, espaços gerados por interações humanas com significado e que são recorrentes ao longo do tempo.

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Uma questão fundamental para uma cartografia de um território é sua multiescalaridade: a) os territórios-zona podem ser locais, municipais ou estaduais e também podem ser associados a bacias ou sub-bacias hidrográficas, regiões de planejamento, unidades político-administrativas, ou regiões transfronteiriças e/ou grupos de países (como nas proposições que criaram os ODM e os ODS) b) os territórios-rede têm alcances sociais e espaciais muito variados, desde redes territoriais muito localizadas, baseadas em relações presenciais, e/ou com outras coberturas, como as possibilidades de existir a partir das tecnologias da informação e da comunicação (por exemplo, vimos em todo o mundo várias dessas redes atuarem durante a pandemia como forma de minimizar o impacto do isolamento). Um desenvolvimento territorial sustentável, com base em uma governança inteligente, abarca as diversas faces entrelaçadas da vida no território: 1) precisa ser participativo, porque é necessário um envolvimento ativo da comunidade com capacidade propositiva e decisória, de atores sociais privados e institucionais, e 2) também necessita de redes formais e informais que atuem no município. Nossa análise do território de Paracatu se baseia na Teoria Ator-Rede (ANT), uma teoria social que examina o relacionamento, as motivações e as ações entre os atores de uma rede. Esses atores podem ser entidades humanas ou não-humanas, incluindo tecnologias, elementos da natureza, minério, rios etc., que desempenham papéis que fazem diferença ou atuam na rede. A ANT se preocupa em mapear as ações e papéis desses atores em uma rede (Idem). É importante ressaltar, contudo, que as conexões são sempre próprias de cada contexto, sendo necessária uma análise única para cada território que se vá investigar. Uma rede é construída para atingir um objetivo e, por meio de um processo de tradução, produz o alinhamento dos atores a partir do construtor da rede. Durante a tradução, os atores focais enquadram um problema, analisam as soluções possíveis e definem uma delas como o ponto de passagem obrigatório de todos os outros atores. Em seguida, os atores focais iniciam um processo de negociação com os demais atores a fim de manter os interesses alinhados, definem seus papéis e assumem o lugar de representantes da rede, mobilizando os atores para a ação. Os atores focais mobilizam, negociam e persuadem outros atores a agirem para atingir um objetivo específico. Essas ações podem determinar o sucesso ou o fracasso de uma rede. Quando os resultados da rede se tornam irreversíveis e tidos como certos, surgem o que Latour denomina de “caixas-pretas”. A proposta da ANT é estudar a construção daquilo que normalmente é tido como certo (Idem) - “caixas-pretas” -, o que aparentemente está consolidado e é muitas vezes o ponto de partida para estudos e diagnósticos.

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Como a História é dinâmica, novas controvérsias podem surgir dessas caixas-pretas, questionando determinações já tidas como certas. São situações em que os atores discordam e, para fechá-las, deve surgir um consenso entre eles. A noção de sustentabilidade é um desses tensionadores da “caixa-preta” da economia extrativa no mundo. Ela lança diferentes desafios: é possível uma economia extrativa que leve em consideração a preservação ambiental? É possível um desenvolvimento territorial sustentável em regiões de mineração como Minas Gerais? Qual tipo de sustentabilidade é fundamental para a economia? Qual o papel dos atores para o desenvolvimento sustentável? Para Latour, as “polêmicas são os fenômenos mais dinâmicos da vida coletiva” e “precisam ser exploradas no tempo” (Idem). As controvérsias instaladas em disputas revelam incertezas e convocam à cena pública novas linhas de pesquisa e proposições para o futuro. Elas também podem colocar em evidência os eventuais processos de tensão enfrentados pelas caixas pretas. Nossa escolha metodológica, neste trabalho, optou por uma Cartografia Social das Controvérsias, que é um conjunto de técnicas desenvolvidas a partir da ANT, para mapeamento e representação das complexidades dos debates sociais e das disputas públicas. Um exercício necessário para a observação da vida social que permite a construção de cenários da vida social. Um conjunto de técnicas introduzido como forma de produzir análises que levem em consideração os atores humanos e não-humanos que estabelecem diversos tipos de interação entre si e nos possibilita traçar um território. Uma controvérsia pode ser definida da seguinte forma: são momentos de disputa nos quais podemos observar a formação do social, quando “as coisas” não estão ainda estabilizadas. São ocasiões de conflito, negociação e debates, nas quais os atores discordam entre si, ou mais ainda, quando compreendem que estão em desacordo. Neste trabalho, a Cartografia visa mapear a percepção social, econômica, política, ambiental e cultural das comunidades de duas cidades minerárias - Brumadinho e Paracatu, sobre a vida nesse lugar, bem como compreender os entendimentos e perspectivas da população local em relação ao processo de desenvolvimento. Para tanto, busca-se apreender o imaginário que se tem das atividades econômicas desenvolvidas no município e as dinâmicas territoriais e sociais decorrentes.

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Uma cartografia parte de perguntas gerais, desafios a serem respondidos. Com relação ao município de Paracatu, algumas questões se impõem: a) quais os desafios típicos de um desenvolvimento territorial sustentável? b) como potencializar, em diversas escalas, as sinergias do município levando em consideração seus elementos de diversidade? c) quais programas e projetos são importantes e viáveis para valorizar e reconhecer, econômica e socialmente, as potencialidades de diversos tipos do território? d) o que é necessário e possível de ser feito para que se estabeleça, efetivamente e de maneira generalizada, uma relação dialógica entre o conhecimento técnico-científico e o conhecimento tecnológico local para que se possa promover processos de inovação com sustentabilidade, apropriados ao território? e) de que modo os conflitos e tensões socioterritoriais surgem, estabilizam-se e renascem ao longo do tempo e manifestam-se atualmente? Quais os grupos e antigrupos envolvidos no sistema? Tais temas e questionamentos envolvem o objeto de estudo aqui especificado e guiam o olhar para as problemáticas de pesquisa: o desenvolvimento sustentável de Paracatu, sua diversificação econômica e o futuro do município após o término da mineração. Tendo tais questões como pano de fundo, procura-se identificar as diferentes perspectivas dos atores sobre a vida no passado, presente e futuro, em relação ao agronegócio, à mineração e seus riscos, à aposta em outras potencialidades, à vida cultural e social dos múltiplos territórios e à percepção de tais processos. Referências Bibliográficas LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador.Edufba,2012; Bauru, São Paulo:Edusc, 2012. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 11ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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POR QUE UMA IMAGEM SEMPRE FALTARÁ? MEMÓRIA E CONTRA-HISTÓRIA EM RITHY PANH

Roberta Veiga (UFMG)47 Após um acontecimento traumático, o cinema não pode reparar o dano social e histórico, mas pode conceder uma possibilidade de enfrentamento do passado. Por meio da partilha de imagens que rememoram a experiência da dor, na experiência da espectatorialidade, tal sofrimento é redistribuído coletivamente. Um vínculo, um comum, é criado e, com ele, uma brecha para elaboração, para o caminho do luto coletivo, se abre. Porém, é preciso que no processo de criação cinematográfica (da concepção à montagem) a memória encontre formas de se manifestar e de existir tanto em meio aos achados materiais e imateriais do passado - os arquivos físicos e as lembranças – como frente a falta deles48. Sabemos com Marcel Proust e Walter Benjamin que a memória opera dialeticamente: ao lembramos nos damos conta que esquecemos (no processo de rememorar se faz sentir a ausência, constituinte da memória), ao mesmo tempo, para lembrar é preciso esquecer. Não por acaso, Jean-Marie Gagnebin escreve “que as formas de lembrar e de esquecer, como as de narrar, são os meios fundamentais da construção d49a identidade, pessoal, coletiva ou ficcional” (2014, p. 218, grifo nosso). É em meio ao esquecimento – essa forma exposta da falta - que outras imagens são imaterialmente criadas no sentido de preencher a lacuna mnemônica e de produzir imaginário. Nesse sentido, quando concebemos o cinema como um dispositivo potente entre as políticas da memória – no sentido de dar voz e visibilidade aqueles que sofreram violência histórica - é preciso esclarecer melhor uma dinâmica positiva 47

Roberta Veiga – Professora Dra. do Dep. Comunicação e do PPGCOM (UFMG); editora da Devires – Cinema e Humanidades; coordenadora do Poéticas Femininas, Políticas Feminista (UFMG-Cnpq). Introduziu e leciona Cinema e Feminismo (graduação) e Estéticas Feministas (pós); traduziu o livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday, de I. Margulies, escreve artigos sobre “cinema: memória, escritas de si, feminismo”, e capítulos (Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro e Mulheres de Cinema). 48 49

“Benjamin exige, primeiro, a humildade de uma arqueologia material: o historiador deve se tornar trapeiro (...) da memória das coisas. Simetricamente, Benjamin exige a audácia de uma arqueologia psíquica: pois é com o ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, e com o ritmo dos recalcamentos e do retorno do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória se afina, antes de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 117).

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própria ao esquecimento como condição de ser da memória e outra negativa pois imposta pelo fora. Consciente da falta fundamental que constitui a memória, o cineasta que faz de seu cinema dispositivo de rememoração precisa lidar também com a natureza “isso foi” (passada) do acontecimento violento (do crime contra a humanidade) que quer reconstruir. Após fracassar na busca por uma imagem concreta de crianças trabalhando forçadamente nos campos liderados pelo Partido Comunista da Kampuchea (CPK), entre 1975 e 1979, no Camboja, Rithy Panh retorna a esses campos, onde, nos anos 70, viveu parte de sua infância e adolescência, submetido à repressão do regime comunista. Uma vez na aldeia, Panh não é capaz de conectar sua lembrança de um espaço povoada de terror ao território que seus pés tocam 40 anos depois. Diante dessa dupla falta de imagens – a foto das crianças e a que guarda dos campos - como manter seu projeto de filme, como filmar o evento passado e rememorar o trauma? Filmar os campos que não mais correspondem à força de seus piores afetos? Buscar outros arquivos? Para Panh, a saída será a invenção pelo cinema. Se o espaço é só ausência, não há como encenar a terrível vivência dos cambojanos, é preciso criar imagens a partir do jogo da memória entre lembrança e imaginação. O cineasta vai reconstruir o território perdido de parte de sua vida, onde sua família foi morta, povoá-lo de bonequinhos feitos de argila, e dispô-los para a câmera. Se, do ponto de vista dos arquivos, a imagem que Panh perseguia também não está lá, mais uma vez a falta que o impulsiona a buscar outras imagens. Não é nenhuma surpresa que em meio a rolos e rolos de película (como os que vemos na abertura do filme) só haja imagens produzidas pelos ditadores do CPK, e que os arquivos sejam aqueles feitos para maquiar o sofrimento dos cambojanos submetidos a várias formas de tortura, exibindo o trabalho forçado como um esforço engajado para uma sociedade igualitária. Resta novamente ao cineasta a invenção pelo dispositivo cinematográfico, o uso dos arquivos a contrapelo, ou seja, para desconstruir a história dos dominantes (os líderes do movimento comunista ditatorial do Camboja) era preciso montar as imagens com outras cenas e textos que as interpelassem em sua contradição, em seu engodo, em sua farsa. Além dessa dupla falta imagética que move o filme, vimos que a imagem “real” de um trauma coletivo vivido na infância sempre faltará, não só aquela que é a origem de tudo – a cena primitiva irrecuperável -, mas qualquer imagem que se arrogue capaz 125


de representar o absurdo dos fatos vividos no massacre da ditadura comunista no Camboja. Como diz Robert Antelm sobre a desproporção entre a realidade no campo de concentração nazista e a realidade das formas de comunicação: “parecia-nos impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos” (1957, p 9). Todavia, outras imagens involuntárias ou inconscientes - convocadas e desencadeadas pelo processo cinematográfico de narrar, montar e colocar em cena - vêm atender ao chamado político de Panh de reencontrar os seus pais, irmãos e companheiros mortos, e salvá-los do apagamento completo. Tais imagens só podem surgir quando a falta potencializa a imaginação. “A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 70), tamanha a irrealidade e, portanto, o coeficiente de incomunicabilidade do vivido. Nessa perspectiva, a hipótese aqui lançada é a de que imagens outras surgem na medida em que a ativação da memória e a reencenação das lembranças aconteçam através de um dispositivo cinematográfico que também parta da falta. Isto é, um cinema que se reconhece incompleto, portanto, que seja humilde para se deixar levar tanto pelos vestígios e como pelas ruínas da memória material e imaterial. Se por um lado a falta é a ausência da ou na imagem, por outro, como dissemos, ela é produtiva, pois pode fazer do filme devir memória. A imagem que falta (2013) foi feito após a trilogia do massacre, os filmes: Bophana, uma tragédia cambojana (1996), S21, A máquina de morte do Khmer Vermelho (2003), Duch, o mestre das forjas do inferno (2011). Todos eles abordam a experiência do totalitarismo no Camboja, da tortura e do genocídio promovido pelo governo de Pol Pot, o líder máximo do Khmer Vermelho [nome dado aos seguidores do Partido Comunista da Kampuchea (CPK) ou do Angkar, a organização], que tomou o poder naquele país do ano de 1975 até 1979. Trata-se de uma das histórias mais terríveis de ditadura violenta. Nessa época, estima-se que 1,7 milhões de pessoas foram mortas (25% da população cambojana) e que milhares foram torturadas. Em Bophana, uma tragédia cambojana, Rithy Panh investiga uma jovem torturada e executada por ter enviado cartas de amor a seu noivo que aderiu aos khmers vermelhos. Durante a filmagem de Bophana acontece o encontro entre um sobrevivente do massacre cambojano, o pintor Vann Nath, e um de seus antigos 126


torturadores, Him Houy, e é esse confronto que se tornará o projeto do próximo filme: S21, codinome do centro de detenção de Tuol Sleng onde 14 mil pessoas foram interrogadas, torturadas e executadas. Através de Nath, Panh solicita aos carrascos da época que reencenem suas ações contra os prisioneiros e falem de seus motivos incitados por documentos e fotografias. Em Duch, o mestre das forjas do inferno, o cineasta busca entender - através de um documentário também feito de entrevistas incitadas por arquivos da época, dessa vez conduzidas por ele mesmo - o que levou um “homem culto” como Duch se tornar um dos líderes do Khmer Vermelho e chefe do centro de tortura S21. A imagem que falta assim como os outros filmes da trilogia também remonta história coletiva do regime ditatorial comunista no Camboja, porém é o primeiro que o faz com um acento claramente autobiográfico, um exercício mnemônico através do qual o cineasta se coloca em obra. Panh conta que durante a realização de Duch encontrou a confissão do cinegrafista do regime, Ang Sarun, de que ele teria filmado as crianças cambojanas de modo a denunciar a tortura (até então escamoteada nas filmagens) constante nos campos de trabalho, e que o desejo por essas imagens o moveu em direção ao próximo filme. Ele imaginava que alguns desses filmes velados tivessem sido guardados como prova da traição do cinegrafista, e foi em busca de uma imagem concreta que, ao final, constituiria a falta que o levaria se voltar para a própria infância. Porém, ele deflagra a ausência da imagem do massacre cambojano, e coloca o cinema como um processo, uma busca por outra, aquela que irá “fabricar”, a que o cinema “permite”. Para que dessa falta surja algo é preciso recontar a história e ao mesmo tempo criar o mecanismo que a faça existir – daí a possibilidade de que vidas apagadas ressurjam e se possa dar voz as vítimas, e por aí elaborar um trauma vivido coletivamente. Perscrutamos, pois, dois aspectos metodológicos nos quais a falta (e sua multiplicação) se insinua nos procedimentos fílmicos de abordagem do passado e se faz sentir no filme, provocando uma escrita a contrapelo: 1) pelos arquivos: se durante a ditadura do Khmer Vermelho não se filmou as doenças, as torturas, as mortes, será preciso interpelar os filmes de propaganda do governo de forma que essa falta se faça sentir e que o embuste do registro seja denunciado; 2) pelas miniaturas: os bonequinhos de argila que Panh usa como personagens de sua história ao preencher as ausências do povo cambojano acenam para falta em suas diversas formas, entre elas a da infância. 127


Referências AGAMBEN, G. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. ANTELME, R. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957. BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. BENJAMIN, W. Obras escolhidas vol.I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOHLEBER, Werner. Recordação, trauma e memória coletiva: a luta pela recordação em psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, Vol. 41, n. 1, 2007. BUCK-MOR SS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Trad. Ana Luiza de Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó: Editora Universitária Argos, 2002. COMOLLI, Jean-Louis. A última dança: como ser espectador de Memory of the camps? IN: Revista Devires – Cinema e Humanidades. UFMG-FAFICH, v.3, n.1, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2015. ENDO, Paulo. Pensamento como margem, lacuna e falta: memória, trauma, luto e esquecimento. Revista USP: São Paulo, n. 98, junho/julho/agosto, 2013. KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. IN: TALES, E. e SAFATLE, V. (org.) O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. MAIA, Carla e FLORES, Luís Felipe (org). O cinema de Rithy Panh. São Paulo; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Ministério da Cultura, 2013. SILEGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Revista Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, vol.20, n.1, 2008. VEIGA, Roberta. Já visto jamais visto: devir memória ou a potência histórica na escrita de si. DEVIRES – cinema e humanidades, Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.14 n.2 (2017)

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O ONTEM SEM FIM: HISTÓRIA E NOSTALGIA NA SÉRIE DE TV - COISA MAIS LINDA

Silvana Seabra (POSCOM – PUCMINAS)50 RESUMO Este trabalho é uma pesquisa, ainda inconclusa, sobre nostalgia na série “Coisa mais Linda”. Tomando como partida a ênfase das sociedades atuais nos assuntos da memória, essa proposta pretende discutir brevemente o conceito de nostalgia e apresentá-lo como hipótese para interpretar a série em tela. A nostalgia tem sido considerada um tipo de memória, que têm cada vez mais atraído os pesquisadores sem, contudo, fixar sem entendimento. No caso da série, que se situa nos anos de “50”, os aspectos nostágicos se mesclam às questões sobre a modernização brasileira, produzindo um quadro social da época que provavelmente responde mais aos tempos atuais do que a aspectos de tom realista.

PALAVRAS-CHAVE memória, nostalgia, séries televisivas, globalização, série “Coisa mais Linda”

Nas últimas décadas, os estudos sobre memória se desenvolveram como um campo interdisciplinar. Os debates identificam processos de memórias coletivas, que se enredam nas formas culturais, políticas, e históricas, e no sentido mais amplo, são sempre "mediadas". Como objeto e tema de pesquisa, uma revisão bibliográfica mostra a temática associada a duas questões básicas: à formação das memórias coletivas nacionais e, após a Segunda Grande Guerra a discussão sobre traumas coletivos advindos de guerras, perseguições e genocídios. Nas últimas décadas, já no século XXI, uma nova frente começou a se formar, agora associada às novas configurações resultantes das Novas Tecnologias da Informação. De fato, a mídia teve um papel fundamental tanto no primeiro como no segundo contexto histórico, mas os estudos do campo comunicacional ainda tratam a memória como assunto periférico, quando comparados a outros temas mais clássicos. No entanto, com a rápida

Professora do Programa em Pós-graduação em Comunicação Social da PUCMinas. Pesquisadora do tema da memória e materialidade, especialmente na mídia. Participa do Grupo de Pesquisa (DGP-CNPq) Mídia & Memória, com várias publicações na área. 50

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ascensão das novas formas de comunicação, o tema tem se colocado de forma crescente. Nesse contexto, a televisão ocupa um papel muito importante, não apenas por sua capacidade de imaginar, evocar, citar, mostrar ou repetir aspectos do passado, inclusive os seus, mas também porque é simultaneamente um meio de esquecer. Não há memória total. A TV também pratica o jogo da memória, onde o esquecimento faz o par com a lembrança. No entanto, a televisão pode renovar imagens passadas "reais", se forem arquivadas, e inventar um passado imaginado através da estética e das narrativas de uma série. O armazenamento de mídia o salva e, portanto, torna-o repetível e memorizável hoje em dia. A televisão, nesse sentido, é uma máquina do tempo complexa que oscila entre um presente efêmero, um futuro desconhecido e um curioso passado (NIEMEYER, 2011). Nas últimas décadas a TV, que se imaginava teria sua audiência espoliada pelas plataformas sociais, se renovou dramaticamente. Não apenas soube se conectar com as Novas Mídias Sociais, como também se alterou profundamente em relação à sua própria forma de fazer TV. Ao longo desse período as séries de TV têm alcançado um sucesso sem precedentes, tanto em termos de audiência como de crítica. A “sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico e o consumo desses programas conformaram um cenário que pode ser chamado de cultura das séries” (SILVA, 2018, p. 5). As razões do sucesso se projetam desde a inauguração da TV a cabo, passando pelos recursos tecnológicos, e incluem as novas formas da estrutura narrativa, que foram introduzidas a partir dos anos 90- TV complexa (MITTELL, 2015) i . Muitos autores vincularam a nostalgia a um passado irrealista, na medida em promoveriam seu retrato exclusivamente com sentimentos positivos. Mas a televisão em geral e as séries de televisão em particular têm uma relação mais complexa com a nostalgia. Uma série nostálgica é muitas vezes o objeto do desejo de seu público. Ao mesmo tempo, a nostalgia parece ser um dos assuntos preferidos das séries de televisão por envolverem os públicos em variados níveis. Tanto num caso, como no outro, as séries, devido principalmente às suas características estruturais e temporais, é particularmente adequada para fazer surgir múltiplas dimensões da nostalgia. Uma das principais mudanças nas séries televisivas, que nos permite avaliálas como uma TV complexa é o abandono do fechamento episódico e a adoção de uma narração em série. (MITTELL, 2012, p. 31). Essa formatação também é propícia às narrativas históricas. Não à toa, esse é um dos mais candentes debates na historiografia, que objetiva analisar a especificidade de como se entrelaçam os modos de pensar a história e a forma de escrevê-la. Além disso, a nostalgia parece ser um conceito que se encaixa sem restrições as características estruturais da serialidade televisual. Como pressuposto a série sempre evoca um sentimento de nostalgia, porque eles são baseados no imperativo de sempre deixar um vazio. Além disso, a permeabilidade e complexidade narrativa (MITTELL, 2012) parece coincidir também com o aumento das preocupações com questões da esfera pública, sejam essas ligadas a males sociais ou as que tematizam a vida política, e que podem ser históricas. Segundo os Estudos Comunicacionais e os Estudos Culturais (MITTELL, 2015), as novas formas de contar histórias serializadas, ligam-se, portanto, a um maior interesse pelos assuntos políticos, constituindo-se numa espécie de “virada” da TV” ii. 130


Aqui também a questão da história, com nuances nostálgicas, podem apontar para algo mais do que uma simples estratégia da indústria cultural. Assim, seja pelas lacunas que não podem ser preenchidas, ou pela sua estrutura serial narrativa, a nostalgia pode ser entendida não apenas a preservação do passado, mas pode ser dirigida também para o futuro ou mesmo para o presente (BOYM, 2001) instável. O sujeito nostálgico se volta para o passado para encontrar / construir fontes de identidade, agência ou comunidade, que são sentidas como ausentes, bloqueadas, subvertidas ou ameaçadas no presente. A nostalgia, tal como a entendemos aqui, se situa dentro dos estudos sobre memória e identidade social. Lembrando de Huyssen, que afirma que o “boom da memória” nos alerta para efemeridade do moderno, a nostalgia também se localiza nesse espaço, sendo ao mesmo tempo, efeito colateral da modernidade quanto uma causa potencial de hostilidade ao esquecimento. Apesar dessa inegável importância, os estudos sobre as séries televisivas, no geral, e aquelas de cunho nostálgico em particular, não correspondem na mesma dinamicidade. Seja em função da rapidez com que o sucesso dos seriados se fez, ou talvez por serem esses programas, muitas vezes, considerados produtos triviais e ideológicos da cultura de massa moderna, o fato é que os estudos acadêmicos ainda se ressentem de um certo aprofundamento nessas pesquisas. A maioria das pesquisas sobre o tema da nostalgia, no âmbito das questões afetas aos processos sociais de memória ainda são tímidos. No tocante aos estudos comunicacionais também não são escassos. O debate sobre a nostalgia surge nas Ciências Sociais, ainda na década de 70 do século passado, com o clássico trabalho de Davis (1979). Nessa pesquisa, o sociólogo analisou as rupturas sociais dos anos 1960 na sociedade americana, principalmente com relação aos rápidos desafios às crenças sobre aquilo que se considerava ‘natural’ (raça, gênero, sexualidades e estilos de vida). Davis argumentou que as reações nostálgicas se deviam às percepções que consideravam certas mudanças como ameaças à continuidade da identidade. Mais recentemente o trabalho de Boym (2001) tem sido considerado também uma obra de referência. Na história das ideias, Stauth & Turner (1988) produziram artigos em relação ao pensamento intelectual na sua conotação nostálgica, como resposta às configurações sociais do que chamamos de Alta-modernidade ou pós modernidade. E na área dos Estudos Comunicacionais, mais recentemente surgiram trabalhos que tentam compreender o fenômeno nostálgico na sua relação específica com as novas mídias. Tentando compreender a nostalgia em tempo contemporâneos, a proposta desse trabalho é estudar o tema da nostalgia como uma prática de memória singular, que deve ser estudada no âmbito dos fenômenos globais da cultura. Esse processo será pesquisado através da série de TV brasileira Coisa mais Linda (2019). A pesquisa contemplará uma análise quantitativa e qualitativa sobre a recepção da série, com o objetivo de verificar a presença e a dinâmica de regimes de temporalidade (HARTOG, 2014), que geram, por sua vez um sentimento de nostalgia. Contudo, nesse trabalho apresentaremos apenas uma breve introdução ao debate sobre o conceito de nostalgia, tentando mostrar sua pertinência à cultura atual, bem como associá-lo como mote elucidador para a série “Coisa mais Linda”. _______________________________________ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 131


BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books. 2001 BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP. 1992 COOK, Pam. Screening the Past: Memory and Nostalgia. London and New York: Routledge, 2005 DAVIS, Fred. Yearning for Yesterday: A Sociology of Nostalgia. New York: Free Press, 1997. DIJCK, José van. Mediated Memories in the Digital Age Cultural memory in the presente. Stanford: Stanford University Press, 2007. HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano. Editora. 2000. MITTEL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. Revista Matrizes, nº2. 2012. Disponível em: http://www.journals.usp.br/matrizes/article/viewFile/38326/41181 MITTELL, Jason, Complex TV: The Poetics of Contemporary Television Storytelling. New York: New York University Press, 2015. NIEMEYER, K. Media and Nostalgia: Yearning for the Past, Present and Future. London: Palgrave Macmillan, 2014. SILVA, Marcel Vieira Barreto. Cultura das séries: forma, contexto e consumo de ficção seriada na contemporaneidade. Revista Galáxia (São Paulo, Online), n. 27. 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/viewFile/15810/14556. Acessado em 03/05/ 2021. STAUTH, Georg, TURNER, Brian S. Nostalgia, Postmodernism, and the Critique of Mass Culture, Theory, Culture & Society 5(2–3): 509–26, Television, Memory and Nostalgia, 1998 I “TV de qualidade” não é um termo consensual (Mitell, 2015). Seu uso tornou-se associado à TV a cabo ou por assinatura, quando da publicidade da HBO, em 1996, com seu logo “Não é TV. É HBO” – It’s Not TV. It’s HBO. (Akass; Mccabe, 2018). II O termo “virada” (turn) tem sido usado nas Ciências Humanas para designar ênfases em determinados assuntos, como, orginalmente, a “virada linguística”.

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IMAGENS E TEXTOS, CORPOS E PROPAGANDAS NAS REVISTAS ILUSTRADAS EU SEI TUDO (BRASIL) E NA JE SAIS TOUT (FRANÇA)

Suzana Barreto de Oliveira (IH-UFRJ)51 Lucas Lourenço Rodrigues (IH-UFRJ)52

RESUMO

A revista Eu Sei Tudo começou a circular no Brasil em 1917, encerrando-se em 1958. Estava integrada à realidade urbana do Rio de Janeiro e era composta de artigos, contos, romances, ilustrações e propagandas. Sua inspiração talvez tenha sido a revista francesa Je Sais Tout, criada em Paris e que circulou entre 1905 e 1939. Este trabalho procura discutir o papel da revista na propagação de determinados padrões de comportamento para a sociedade brasileira na Primeira República, com ênfase na circulação de ideias, suporte de memória e formação de opinião pública e sensibilidades sociais, já que iremos compará-la com a revista de mesmo nome publicada na França. Analisaremos as características das revistas em sintonia com às transformações da imprensa da época e o papel dos textos e imagens, não somente de propaganda, mas também de outras ilustrações. PALAVRAS-CHAVE Eu Sei Tudo; Je Sais Tout; Revistas Ilustradas; Primeira República.

O PROJETO DE PESQUISA Esta proposta é um dos resultados do projeto de pesquisa “História e Imagem em Eu Sei Tudo (Brasil) e Je Sais Tout (França): Sobre circulação de ideias e cultura visual em duas revistas ilustradas na primeira metade do século XX”, desenvolvida no grupo de pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) - IMAM, Laboratório de Imagem, Memória, Arte e Metrópole do Instituto 51

Suzana Barreto de Oliveira é graduanda em licenciatura e bacharel em História pela Universidade Federal do

Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica do CNPq (PIBIC) na pesquisa “História e imagem em Eu Sei Tudo (Brasil) e Je Sais Tout (França): sobre circulação de ideias e cultura visual em duas revistas ilustradas na primeira metade do século XX”, sob orientação da Profª. Drª. Andréa Casa Nova Maia. E-mail: suzanalisa@hotmail.com. 52

Lucas Lourenço Rodrigues é graduando em licenciatura e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica da universidade (PIBIC) na mesma pesquisa e orientação. Email: lucas200921@gmail.com

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de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ). O projeto advém de um vasto percurso e inúmeros trabalhos acadêmicos acerca da temática da história do uso das imagens nas revistas ilustradas brasileiras, a exemplo do livro “O mundo do trabalho nas páginas das revistas ilustradas” (Ed. 7 Letras, 2015), trabalho que, sob apoio da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), procurou pensar o mundo do trabalho nos magazines; E artigos da pesquisa “Cidades Submersas – História das inundações em perspectiva comparada (Rio de Janeiro, Buenos Aires, século XX)”, que procuraram pensar as imagens e textos sobre as inundações no Rio de Janeiro em perspectiva comparada com Buenos Aires nas revistas ilustradas, com destaque para a Caras y Caretas (BA) e Fon-Fon, O Malho, Careta e Kosmos (RJ). AS REVISTAS A revista Eu Sei Tudo começou a circular no Brasil em 1917, encerrando-se em 1958. Editada no Rio de Janeiro pela Companhia Americana, estava integrada à realidade urbana da cidade e era uma revista mensal ilustrada composta de artigos científicos, contos, romances, ilustrações e propagandas. Sua inspiração talvez tenha sido a revista francesa Je Sais Tout, que circulou entre 1905 e 1939. Uma característica marcante da revista brasileira era a grande quantidade de propagandas que apresentava, com destaque para os reclames direcionados ao público feminino, como produtos para o lar, além de artigos de moda e cuidados com os filhos também a este público. Dessa forma, a revista Eu sei Tudo possuía muitos elementos de uma revista feminina, buscando-se nas capas e nas fotografias de mulheres o ideário da mulher moderna. Enquanto a revista Je Sais Tout foi criada em 1905 por Pierre Lafitte circulando até 1939, embora tenha deixado de ser impressa entre Agosto e Dezembro de 1914 e tenha saído posteriormente, em novo formato, publicada pela Editora Hachette entre 1969 e 1970. O periódico francês também apresentava-se enquanto enciclopédia ilustrada. Je Sais Tout é um marco de uma transformação cultural e de marketing do

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período, na medida em que foi repentinamente um sucesso popular e adotado na França, logo replicado ao redor do mundo. METODOLOGIA, BIBLIOGRAFIA E RECORTE TEMPORAL A fim de trabalhar as revistas em uma leitura que articule seus elementos internos, imagéticos e discursivos, a seus contextos materiais de produção, contamos com uma base teórico metodológica heterogênea: no campo da análise dos discursos, das noções de representação, e dos signos verbais e não-verbais presentes na revista, utilizamos os trabalhos de Roland Barthes (1992) e Roger Chartier (1990); além disso, baseados nos estudos de Georges Didi-Huberman (1994) e Walter Benjamin (1987), utilizamos o método de leitura das imagens como montagem e remontagem do tempo vivido; por fim, também evocamos os estudos acerca da imprensa e a circulação de ideias em uma perspectiva transnacional, como trabalhados por Tânia de Luca (2005), bem como a pesquisa sobre a revista francesa Je Sais Tout realizada por Daniel Couégnas (2018). Para este trabalho o recorte temporal será o período entre guerras, que se extende do fim da Primeira Guerra Mundial até o início da Segunda Guerra Mundial, entre os anos de 1918 a 1939. Este é o único momento de comum disponibilidade dos exemplares digitalizados tanto da Eu Sei Tudo, quanto da Je Sais Tout e que facilita a comparação entre as revistas. Todo o acervo destas revistas ilustradas encontra-se digitalizado pelas hemerotecas digitais da Biblioteca Nacional no Brasil e pela Gallica e RetroNews, biblioteca digital da BnF (Bibliothéque Nationale de France) e IRIS, a biblioteca digital da Universidade de Lille. A ferramenta é um facilitador, pois, depois de escolhidos os dois periódicos que serão analisados, basta realizar a pesquisa na base de dados de ambos sítios acessíveis pela internet.

Referências BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1992. BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. Obras Escolhidas vol.2. São Paulo: Brasiliense, 1987. CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. 135


DE LUCA, Tania Regina. “A grande imprensa na primeira metade do século XX”. In: MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina (orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant L’Image. Paris: Les Éditions de Minuit, 1994. FEYEL, Gilles. La Presse en France des origines à 1914. Histoire politique et. matérielle. Paris, 1999, Éditions Ellipses. GUIMARÃES, Valéria. Revistas francesas no Brasil, caminhos da modernidade: catálogos e mediadores (Rio de Janeiro e São Paulo, séculos XIX e XX). Revista Territórios e Fronteiras, Cuiabá, vol.9, n. 2, julho-dezembro, 2016. MAIA, Andréa Casa Nova. "Eu sei tudo: cultura, ciência e história em uma revista ilustrada na época de Vargas". In: FERREIRA, Jorge. (Org.). O Rio de Janeiro nos jornais: ideologias, culturas políticas e conflitos sociais (1930-1945). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014. OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O Moderno em revistas. Representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

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DIREITOS HUMANOS E TERRITÓRIOS: GEOGRAFIAS PLURAIS EM OMÃ

Valnei Pereira (Golder)53

A reflexão busca nexos entre direitos humanos e territórios à luz de estudos realizados entre 2019 e 2020 no Oriente Médio, fronteiras de transformações socioculturais, econômicas e políticas materializadas em espaços em mutação do novo urbano industrial. Nestas paisagens, temas como gênero, migração internacional, mudanças climáticas, ativismos sociopolíticos e processos de reassentamento humano involuntário são atravessados por sistemas particulares do mundo árabe (kafala System) vis a vis à preconizações à princípios e guidelines multilaterais internacionais em direitos humanos. Palavras-chaves: direitos humanos, territórios, geografais culturais, Omã.

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Geógrafo (IGC/ UFMG), Mestre Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/ UFRJ) e Doutor pela FAU/ USP.

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AYAHUASCA, IMAGENS E MUNDOS

Wladimyr Sena Araújo (Unirio)54

O “vinho dos mortos”, a “liana dos espíritos” ou, ainda, “cipó com uma alma”, significados para a palavra quechua ayahuasca, são apenas alguns dentre inúmeros sentidos para a bebida que produz forte visões/imagens aos que fazem o seu consumo de forma sagrada. A bebida é considerada um enteógeno. Esta palavra é oriunda do grego e significa “deus dentro”. O termo servia para expressar um estado de espírito onde a pessoa se encontrava inspirada ou possuída por um ser divino que usa seu corpo como receptáculo. Era aplicado a transes proféticos, à paixão erótica e à criação artística, bem como a ritos religiosos nos quais estados místicos eram experienciados através da ingestão partilhada da essência divina (LABATE e ARAÚJO, 2002; MACRAE, 1992). Esta tecnologia vegetal, confeccionada com a decocção de um cipó (Banisteriopsis caapi) e de uma folha (Psychotria viridis) já foi chamada por alguns moradores das florestas acreanas de “cinema de caboclo” ou “cinema de índio”, visto os efeitos imagéticos que produz. Há

um

campo

de

usuários

de

ayahuasca

que

inclui

indígenas,

caboclos/vegetalistas, seringueiros, terapeutas, neo – pajés, neo-ayahuasqueiros e religiões brasileiras que utilizam a substância de forma sacramental, a exemplo do Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha. Neste trabalho pretendo falar de como imagens da Umbanda e Pajelança Cabocla amazônica reaparecem, por meio de imagens, no Centro Espírita Luz, Amor

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Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Autor da obra “Navegando sobre as Ondas do Daime: História, Cosmologia e Ritual da Barquinha (Campinas: EDUNICAMP, 1999). Co-organizador da Coletânea “o Uso Ritual da Ayahuasca” (Campinas: Mercado de Letras, 2002). Coordenou e trabalhou como técnico em inventários nacionais de referências culturais, ZEEs, Identificação e Delimitação de Territórios para comunidades tradicionais, meio ambiente e mudanças climáticas, dentre outros campos de atuação.

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e Caridade, da linha de Daniel Pereira de Mattos, a Barquinha, como se popularizou a partir da década de 70 (ARAÚJO, 1999). Me apoiarei na proposta do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e do conceito de naschleben (sobrevivências) das imagens que, para Didi – Huberman (2013), traz um passado que não para de sobreviver. Neste caminho, as imagens não devem ser encaradas como continuidade em sentido linear, mas observadas como “sintomas fantasmais”, à sua própria morte: desaparece num ponto da história, reaparece muito mais tarde, num momento em que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido, no limbo ainda mal definido de uma “memória coletiva” (DIDI – HUBERMAN, 2013:45). No Centro Espírita Luz, Amor e Caridade, local desta pesquisa, as imagens se tornam elementos da memória e remetem a tempos e mundos diversos. Desta forma, conectadas pelo uso da ayahuasca, elas reaparecem no extremo ocidental amazônico brasileiro e são experienciadas por meio de rituais. Este Centro foi instituído em 1967 por Juarez Martins Xavier, natural de Capim Grosso – CE e Maria Rosa de Almeida, nascida no sertão de Jacobina – BA. Ambos migraram para Rio Branco, capital do antigo Território Federal do Acre durante o período da Segunda Guerra Mundial, quando homens eram recrutados para trabalhar como soldados da borracha nos confins amazônicos. Eles se conheceram no Acre onde se casaram e frequentaram uma religião, criada na zona rural da capital do Território, entre 1958 à 1963, pelo maranhense Daniel Pereira de Mattos. Ele era negro, filho de escravos, oriundo da Freguesia de Vargem Grande – MA e pertenceu à Marinha Mercante brasileira. O espaço sagrado de Juarez e Maria Rosa se localiza até os dias atuais na Área de Proteção Ambiental (APA) do Amapá, na margem esquerda do rio Acre. Ele é um dos lugares de uma “cidade florestal”, como pode ser designada Rio Branco, visto que os seus moradores têm identidades e memórias que pertencem à floresta. O uso do chá se associa a práticas religiosas e filosóficas diversas que incluem: Umbanda, Pajelança Cabocla, Pajelança Indígena, Catolicismo Popular, Tambor de Mina, Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento e do Kardecismo. Trataremos, especificamente das duas primeiras relacionando as imagens aos êxtases.

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O Daime (nominação desta religião para ayahuasca) é usado em vários rituais. Porém, farei um recorte para as Obras de Caridade, onde se pratica limpeza, orientações espirituais e procedimentos voltados à cura. O enteógeno possibilita acessar três tipos de êxtase durante os trabalhos no terreiro: miração, irradiação e incorporação. A miração é um estado sinestésico onde ao tomar o Daime o participante do ritual pode ter visões. Simplesmente mirar, no infinitivo, representa olhar e miração, representa o conjunto de imagens espirituais obtidas por meio do êxtase com a utilização do chá. Possivelmente a palavra é advinda da região fronteiriça entre Acre (Brasil), Peru e Bolívia (MONTEIRO DA SILVA, 2000). Para Fernandes (1986), o indivíduo obtém transcendência para alcançar lugares de planos cosmológicos visíveis e “invisíveis”. Ainda assim, Mercante (2012) observa que as mirações são imagens mentais espontâneas e ocorrem onde há experiências transcendentais dos participantes dos rituais onde é consumido Daime e desempenham um forte papel no desenvolvimento pessoas dos frequentadores. A incorporação também é um dos elementos da Umbanda que ocorre no ritual das Obras de Caridade deste Centro. Neste contexto, o corpo dos médiuns é tomado pelo sagrado, dando a ele forma que identifica seres e, também, a lugares míticos. Neste caminho, o corpo representa os mundos e se torna um microcosmos. Além disso, ele metaforiza o passado (SENNET, 1997) por meio de expressões manifestadas nas crenças. A irradiação completa esta tríade extática. Ela consiste em obter sensações advindas de lugares espirituais e é marcada pelo contato com entidades. Desta forma, ouvir e sentir, por exemplo, constituem elementos decorrentes do processo de irradiação, que também é possível por meio do uso do Daime. Os êxtases, na maioria das vezes, se relacionam aos planos cosmológicos desta religião: céu, astral, terra e mar que, apesar de quatro, são chamados, também, de “três mistérios”. Sendo assim, os dois primeiros são considerados de planos do alto e são um, com macroníveis de elevações espirituais. Desta forma, o céu, corresponde ao mundo do Deus criador cristão, sendo designado como plano de plena luz, onde os seres só poderão alcançar após o dia do Juízo Final. O astral, por sua vez, também está no alto e é composto por muitos lugares, moradas, cidades, reinos. Neles, é 141


possível encontrar santos do panteão católico, a exemplo de São Francisco de Assis, mentor espiritual da religião, São Sebastião, São José, dentre vários santos. Se encontram no astral, também, os orixás e muitos encantados de religiões afrobrasileiras. Moram, ainda, reis, rainhas, príncipes, princesas, médicos, líderes espirituais de religiões ayahuasqueiras e tantos outros que poderiam aqui ser nominados (ARAÚJO, 1999). O astral rege os planos da terra e do mar. É na terra onde vivem não apenas os humanos, mas em realidade paralela, é permeado por entidades tais como exus, caboclos e pretos velhos, além de espíritos de pessoas já desencarnadas. No mar há vários encantos que incluem, dentre outros seres, as sereias. De um lado, por meio do uso do Daime, os adeptos e frequentadores podem fazer voos astrais e visitar e conhecer lugares dos planos míticos do astral, terra e mar. Afirmam que podem alcançar cidades e reinos, assim como ver, ouvir e sentir os ambientes e os seres que permeiam os lugares encantados. Desta forma, acreditam que por meio das mirações é possível conhecer castelos, lagos, vales, montanhas e uma diversidade de topônimos. Por outro lado, são manifestados no corpo, por intermédio de incorporações e irradiações, elementos sagrados de mundos dos “três mistérios”.

BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando sobre as Ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. DIDI – HUBERMAN, Georges. A Imagem Sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. FERNANDES, Vera Froes. História do Povo Juramidam: introdução à cultura do Santo Daime. Manaus: SUFRAMA, 1986. LABATE, Beatriz Caiuby e ARAÚJO, Wladimyr Sena (Orgs). O Uso Ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras, 2002 (2ª Edição). MACRAE, Edward. Guiado pela Lua. São Paulo: Brasiliense, 1992. 142


MERCANTE, Marcelo. Imagens de Cura: ayahuasca, imaginação, saúde e doença na Barquinha. Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 2012. MONTEIRO DA SILVA, Clodomir. O Palácio de Juramidam. O Santo Daime: um ritual de transcendência e despoluição. Recife: UFPE, 1983. SENNET, Richard. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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CULTURA FERROVIÁRIA SOB O VIÉS COMPARATIVO: OS IMPACTOS DA PRIVATIZAÇÃO DA RFFSA EM CORINTO E DIVINÓPOLIS - 1975 A 2010. Willian Santos Pereira(PPGHC-UFRJ)55

O desenvolvimento de várias cidades mineiras dialoga de forma íntima com os trilhos, é o caso de Corinto e Divinópolis. No decorrer de todo o século XX o cotidiano dessas localidades foi entrelaçado com as atividades ferroviárias na região, o que acarretou no desenvolvimento de uma forte cultura ferroviária que moldou o dia-a-dia de várias famílias que tinham alguma relação direta ou indireta com a Rede. A desestatização da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) na década de 1990 foi um acontecimento importante para esses municípios, muitos ferroviários foram demitidos ou transferidos após o encerramento das atividades da Rede em Corinto, alguns, inclusive, foram realocados para Divinópolis. Pretende-se, a partir desse projeto, compreender mais a respeito da cultura ferroviária, costumes e condições de trabalho nessas cidades, analisando as transformações e permanências desses itens após o fim da RFFSA. A história dessas cidades tem alguns pontos em comum: as duas localidades, quando ainda eram pequenos povoados, receberam uma estação cada para a chegada e partida de passageiros: a estação de Curralinho (Corinto) e a estação de Henrique Galvão (Divinópolis). Anos mais tarde, ambas receberam oficinas para manutenção de máquinas a vapor e equipamentos, se tornando assim referências em todo o estado. Uma forte cultura ferroviária nasceu em Corinto e Divinópolis e gerações inteiras de famílias trabalharam na ferrovia: filhos, pais, tios e avós. Todos com o cotidiano intimamente ligado às atividades nas oficinas. Práticas diversas foram desenvolvidas dentro e fora do âmbito de trabalho: clubes, salões de festas, campeonatos esportivos e escolas profissionalizantes fizeram parte do cotidiano do 55

Willian Santos Pereira, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, graduado em História pela Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail para contato: williansantoshistoria@gmail.com.

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ferroviário e movimentaram as cidades. As greves, as lutas por direitos e os entraves políticos locais também marcaram a classe de trabalhadores que, apesar do prestígio entre os cidadãos, tinha condições de trabalho desfavoráveis, sofria com atrasos em seus pagamentos e com acidentes rotineiros (CORGOZINHO, 2013, p. 197). A desestatização da RFFSA no durante a década de 1990 teve como consequência o encerramento definitivo das atividades da ferrovia em Corinto. A privatização fez com que a cidade, que já tinha perdido parte da sua malha ferroviária no decorrer dos anos, fosse afetada em diversos sentidos. Muitos trabalhadores foram demitidos, outros foram transferidos para as demais oficinas, inclusive para a de Divinópolis. Algumas famílias corintianas inteiras migraram para o centro-oeste mineiro. Este é um ponto primordial para a pesquisa aqui proposta, que nos faz levantar os seguintes questionamentos: Como era a cultura ferroviária em ambas as cidades? Como a desestatização foi experienciada pelos trabalhadores? A cultura e os costumes ligados à ferrovia permaneceram após a privatização da Rede? Como ficou a sua situação do ferroviário que foi desligado da RFFSA? Como foi a transferência e a adaptação das famílias que foram de Corinto para Divinópolis? A problemática aqui apresentada dialoga de forma direta com a História Comparada. Justifica-se a aproximação com essa modalidade historiográfica pela natureza da pesquisa proposta, que utilizará da abordagem comparativa para tentar entender a

cultura ferroviária nessas cidades e as transformações na vida dos

trabalhadores a partir de um mesmo marco temporal. A Histórica Comparada, seguindo a linha aprimorada por March Bloch, permite a análise de sociedades contíguas, partindo de um problema em comum entre esses lugares. Neste modelo, o pesquisador pode analisar diferentes recortes espaciais dentro de um mesmo recorte temporal. Essa análise permite que o historiador perceba as semelhanças, diferenças, influências e particularidades de cada situação apresentada. A partir desse modelo, podemos pensar a análise de sociedades contíguas como forma de entender parte da questão aqui discutida. Ambos os lugares têm algo em comum: a atividade e a cultura ferroviária; Passam pelo mesmo acontecimento: a privatização da Rede, mas cada espaço reage de uma forma, sendo que um chega a ter influência sobre o outro, criando assim um elo entre eles. 145


Apesar disso, a complexidade da questão vai além da comparação entre as cidades e seus trabalhadores. Ainda existe certa comparação dentro de um mesmo recorte temporal, já que um dos problemas da proposta de pesquisa é o antes e o depois da RFFSA e como a cultura ferroviária foi influenciada por este acontecimento. Este projeto propõe não apenas a comparação entre duas culturas ferroviárias em espaços diferentes, mas também propõe a análise a partir de dois momentos diferentes dentro do mesmo recorte temporal. O uso da História Oral será de grande relevância para o desenvolvimento dessa pesquisa, sendo a principal metodologia aqui abordada. A análise do testemunho poderá evidenciar traços da cultura, dos costumes e das transformações causadas pela estatização da RFFSA nessa geração de ferroviários, além da possibilidade de descobrir novos detalhes do objeto abordado. Nada mais justo do que entender a cultura ferroviária a partir dos relatos dos próprios trabalhadores. Abrir esse espaço de fala por meio da entrevista permite ao pesquisador descobrir uma ampla variedade de informações, relatos, curiosidades e vivências. A partir do contexto apresentado justifico esta proposta de pesquisa. É de grande importância analisar e compreender a cultura ferroviária do final do século XX. É necessário entender como a privatização da RFFSA modificou e impactou o cotidiano desses trabalhadores. A pesquisa se mostra relevante, pois busca evidenciar práticas, memórias, costumes condições de permanência do objeto em estudo. A análise comparada dessas realidades poderá evidenciar tendências e diálogos em comum, mas também vai salientar as diferenças e particularidades de cada situação aqui apresentada. Por fim, a pesquisa pretende contribuir com a produção historiográfica dos temas aqui citados, principalmente sobre Corinto e seus ferroviários, tendo em vista que existem poucos estudos aprofundados sobre o tema.

Referências BARROS, José D'Assunção. História Comparada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 181 p. BLOCH, M. Para uma História Comparada das Sociedades Europeias. In: História e Historiadores. Lisboa: Teorema, 1998. p. 119-150. 146


BURKE, P. Métodos e modelos: comparação. In: História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 39-46. CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. 2. ed. [S. l.]: DIFEL, 2002. 245 p. CORGOZINHO, Batistina Maria de Sousa. Pelos Caminhos da Maria Fumaça: O trabalhador ferroviário, formação resistência e trabalho. 1. ed. Divinópolis: O Lutador, 2014. 382 p. COUTO, Vanessa; PAIVA, José Eustáquio; VIANNA, Henrique; LOMMEZ, René; LIMA, Douglas. A situação do patrimônio ferroviário da cidade de Corinto (MG). Temporalidades - Revista de História, [S. l.], ano 2020, v. 12, n. 34, p. 503 525, 1 dez. 2020. GUIMARÃES, Benício. O vapor das ferrovias no Brasil: As “Marias-Fumaça” que trafegaram nas linhas da malha ferroviária brasileira.. Petrópolis: Jornal da Cidade, 1993. 212 p. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. 553 p. LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. A máquina, tração do progresso: Memórias da ferrovia no oeste de Minas, entre o sertão e civilização 1880 - 1930. 2003. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003. LIMA, Raimundo. O Campo da Garça - De João Tavares da Rocha a Ursulino Lima: História de Corinto. 1. ed. Belo Horizonte: Cutiara, 1998. 232 p. v. 1. MAIA, Andrea Casa Nova. Encontros e Despedidas: Ferrovias e Ferroviários do Oeste de Minas Gerais. 1. ed. Juiz de Fora: Fino Traço, 2009. 280 p. PAIVA, João Cirino de. Crônicas - História de Corinto: Projeto Cristo Rei. 1. Ed. Belo Horizonte: Gráfica Literatura Ltda., 2006. 368 p. v. 1. THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. 372 p.

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ÍNDICE REMISSIVO DOS AUTORES Andréa Casa Nova Maia (UFRJ) .................................................................................................... 11 Alberto Rodrigues de Freitas Filho (UFRJ) ............................................................................... 13 Allan Corsa (UFRJ) ............................................................................................................................. 18 Bruna Emanuele Fernandes (EBA/UFMG) ................................................................................ 22 Bárbara Lissa (EBA/UFMG) .......................................................................................................... 22 Rita Lages Rodrigues (EBA/UFMG) ............................................................................................. 22 Beatriz Monteiro Lemos (UFRJ) .................................................................................................... 31 Bruna Aparecida Gomes Coelho (UFRJ) ..................................................................................... 34 Camilla Maria Silva Cavalcante (UFRJ) ..................................................................................... 40 Carla Teodoro Costa (PPGHIS UFRJ) ........................................................................................... 46 Carlos Cesar de Lima Veras(UFRJ) .............................................................................................. 51 Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ) ........................................................................................ 57 Denise Pirani (ASF-MG/Cedefes) .................................................................................................. 62 Dinah de Oliveira (EBA/UFRJ) ....................................................................................................... 64 Douglas de Souza Liborio (UFF) ................................................................................................... 69 Gabriel Vieira (UFRJ) ........................................................................................................................ 73 Ingrid Gomes Ferreira (UFRJ) ....................................................................................................... 79 José Fernando Saroba Monteiro (UFRJ) ..................................................................................... 83 Luana Sarto Gomes (UFMG) ........................................................................................................... 89 Victor Henrique de Souza Arcanjo (UFMG) ............................................................................... 89 Luciano Hermes da Silva (PPGHC-UFRJ) .................................................................................... 95 Luciene Carris (Casa Azul) ........................................................................................................... 102 Matheus Romano Palmieri de Souza (UFRJ) .......................................................................... 108 Maurício Elias Zouein (UFRR/IMAM) ....................................................................................... 112 Regina Helena Alves da Silva (UFMG) ...................................................................................... 120 Roberta Veiga (UFMG) ................................................................................................................... 124 Silvana Seabra (POSCOM – PUCMINAS) ................................................................................... 129 Suzana Barreto de Oliveira (IH-UFRJ) ...................................................................................... 133 Lucas Lourenço Rodrigues (IH-UFRJ) ....................................................................................... 133 Valnei Pereira (Golder) ................................................................................................................. 137 148


Wladimyr Sena Araújo (Unirio) ................................................................................................. 139 Willian Santos Pereira(PPGHC-UFRJ) ...................................................................................... 144

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