Livro economia popular e cultura do trabalho

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ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO Pedagogia(s) da produção associada



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Lia Tiriba

ECONOMIA POPULAR E CULTURA DO TRABALHO Pedagogia(s) da produção associada Tradução: Ricardo Saboya Filho Diego Tiriba Daniel Tiriba

Editora UNIJUÍ Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2001


© 2001, Editora UNIJUÍ Rua do Comércio, 1364 Caixa Postal 560 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0__55) 332-7100, Ramais 217 e 612 Fax: (0__55) 332-9100 editora@unijui.tche.br http://www.unijui.tche.br/unijui/editora Serviços Gráficos: Sedigraf Responsabilidade Editorial e Administrativa: Editora UNIJUÍ da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ; Ijuí, RS, Brasil) Capa: Ubiratan L. O. Pereira, Elias R. Schüssler e Lívio Maia Ilustração da capa: Zorraquino

Catalogação na Fonte Biblioteca Central UNIJUÍ T597e

Tiriba, Lia Economia popular e cultura do trabalho : pedagogia(s) da produção associada / Lia Tiriba; Tradução: Ricardo Saboya Filho, Diego Tiriba, Daniel Tiriba. — Ijuí : Ed. UNIJUÍ, 2001. — 400 p. — (Coleção fronteiras da educação). ISBN 85-7429-178-1 1.Economia 2.Economia informal 3.Economia global 4.Trabalho 5.Capitalismo 6.Desemprego 7.Sociologia - trabalho 8.Educação I.Título II.Série CDU :

Editora Unijuí afiliada:

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

316.334.2 331.101.2 331.101.21


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COLEÇÃO FRONTEIRAS DA EDUCAÇÃO FRONTEIRAS DA EDUCAÇÃO é um projeto editorial da Editora UNIJUÍ, vinculado a um conselho editorial interinstitucional, que visa à publicação de pesquisas que, com criatividade e ousadia, apresentam contribuições significativas e inovadoras para a área da educação. Atendem ao perfil dessa coleção as pesquisas que, emergindo do campo da educação, propõem revisões críticas em nível dos seus pressupostos, apontando para novas perspectivas em termos epistemológicos, éticos, axiológicos, estéticos, políticos etc., e conseguem estabelecer um diálogo crítico e fecundo com outras ciências e outros campos de reflexão, como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a estética e a psicanálise. Conselho Editorial 1 - Mario Osorio Marques (UNIJUÍ) - Pedagogia e Sociologia 2 - Jacques Therrien (UFC) - Filosofia e Pedagogia 3 - Gaudêncio Frigotto (UFF) - Filosofia e Economia 4 - José Carlos Libâneo (UFG) - Pedagogia 5 - Magda Becker Soares (UFMG) - Linguagem e Alfabetização 6 - Valdemar Sguissardi (UNIMEP) - Política da Educação 7 - Elenor Kunz (UFSC) - Educação Física 8 - Janete Bolite Frant (Santa Úrsula - RJ) - Educação Matemática 9 - Lúcio Kreutz (UNISINOS) - História e Filosofia da Educação 10 - Margareth Schaefer (UFRGS) - Psicologia e Pedagogia 11 - Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) - Pedagogia

Comitê de Redação 1 - José Pedro Boufleuer - Presidente 2 - Mario Osorio Marques 3 - Lindomar Wessler Boneti 4 - Joel Corso


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1 - Por Uma Teoria da Pedagogia: Pesquisas Contemporâneas sobre o Saber Docente Clermont Gauthier, Stéphane Martineau, Jean-François Desbiens, Annie Malo, Denis Simard 2 - O Tortuoso e Doce Caminho da Sensibilidade: um Estudo Sobre Arte e Educação Ângela Maria Bessa Linhares 3 - Co-Educação Física e Esportes: Quando a Diferença É Mito Maria do Carmo Saraiva 4 - A Escola no Computador: Linguagens Rearticuladas, Educação Outra Mario Osorio Marques 5 - Inter-Relação: A Pedagogia da Ciência - uma Leitura do Discurso Epistemológico de Gaston Bachelard Ilton Benoni da Silva 6 - História da Educação Brasileira: Formação do Campo Carlos Monarcha (Org.) 7 - A Eticidade da Educação: o Discurso de uma Práxis Solidária/Universal Alvori Ahlert 8 - Não Brinco Mais: a (des)Construção do Brincar no Cotidiano Educacional Maria Sílvia Pinto de Moura Librandi da Rocha 9 - Do Manifesto de 1932 à Construção de um Saber Pedagógico: Ensaiando um Diálogo entre Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira Pedro Angelo Pagni 10 - Economia Popular e Cultura do Trabalho: Pedagogia(s) da Produção Associada Lia Tiriba 11 - História da Infância Sem Fim Sandra Mara Corazza


Que para todos haja sempre pão para iluminar a mesa Educação para aliviar a ignorância Saúde para espantar a morte Terra para colher o futuro Teto para abrigar a esperança E trabalho para fazer dignas as mãos (EZLN, 1996)



SUMÁRIO

SIGLAS ....................................................................... 13 PREFÁCIO ................................................................... 15 INTRODUÇÃO ............................................................ 23 DESENVOLVIMENTO (DES)HUMANO E CRISE DO TRABALHO ............................................ 45 Economia da pobreza humana: o homem econômico e o mercado ............................ 47 Era do desenvolvimento e era do produtivismo .......... 60 O tempo livre que o trabalho assalariado escravizou ... 71 Trabalhar menos para que todos sejam explorados? ... 81 ECONOMIA POPULAR: SUA REEDIÇÃO PELO TRABALHO E PELO CAPITAL .......................... 95 Estratégias de sobrevivência e “economia moral das multidões” ............................ 98 Economia popular: mais além do “formal” e do “informal” .................... 105


Os atores da economia popular: quem pega pesado no trabalho? ............................. 124 Os agentes da economia popular: alívio aos pobres? ... 136 Movimentos populares: uma nova estratégia ........... 150 ESCOLA E OUTRAS ESCOLAS DE PRODUÇÃO DE UMA NOVA CULTURA DO TRABALHO .............. 165 Produção associada e mudança do sentido do trabalho ........................... 169 Práxis produtiva e princípio educativo: Gramsci e os comitês de fábrica ............................. 183 O conhecimento como calcanhar de Aquiles ............ 197 O técnico e o político na economia popular e na educação popular ........................................... 211 Cultura do trabalho e outros elementos da formação humana ............................................. 224 A “PEDAGOGIA DA FÁBRICA” NA VERSÃO DOS TRABALHADORES ...................... 241 Economia popular urbana e reprodução ampliada da vida ................................. 244 Tornar-se “senhor” do trabalho: como? Para quê? ... 260 Ação coletiva: algumas regras do jogo ............... 260 Os objetivos do associ@tivismo .......................... 268 Relações de mercado, de amizade e de solidariedade ................................ 286 Enfrentando os abutres do mercado: de pequenos grupos a um “grupaço” ................. 287


Entre o homem econômico e o comunitário ....... 295 Os trabalhadores e a “nova” base técnica da produção ...................... 312 Quando a máquina começa a trabalhar melhor .. 313 Socialização do trabalho e de outras instâncias de produção do saber ...... 321 PEDAGOGIA(S) DA PRODUÇÃO ASSOCIADA: PARA ONDE CAMINHA A ECONOMIA POPULAR? .. 335 “Trabalhadores livres associados” e produção associada na era do desemprego ........... 339 Economia solidária a quê? ...................................... 346 Viva o velho artesão? ............................................. 354 Da economia popular de solidariedade a uma nova economia do trabalho ........................... 365

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................. 377

ANEXO – Roteiro de Pesquisa .................................... 393



Prefácio

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SIGLAS

AGP – Associação dos Grupos de Produção ANTEAG – Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES – Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social CAD – Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento CAPINA – Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa CCAP – Centro de Cooperação e Atividades Populares CEDAC – Centro de Ação Comunitária CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e Caribe CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CONCRAB – Confederação de Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil COOPARJ – Cooperativa de Produção de Parafusos do Rio de Janeiro COOPBONDE – Cooperativa dos Trabalhadores do Bonde de Santa Teresa COPPE/UFRJ – Coordenação de Pesquisa e Pós-Graduação em Engenharia


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CUT – Central Única dos Trabalhadores FASE – Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador FMI – Fundo Monetário Internacional IBASE – Instituto Brasileiro de Análise Sócio-Econômica IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDESI – Instituto de Desenvolvimento do Setor Informal IPLANRIO – Empresa Municipal de Informática e Planejamento MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra NEDDATE – Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação OCB – Organização das Cooperativas do Brasil OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento OIT – Organização Internacional do Trabalho ONU – Organização das Nações Unidas OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PREALC – Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa SEFOR/MTb – Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância


PREFÁCIO

“As novas épocas não começam de repente. Meu avô já vivia num tempo novo, meu neto com certeza ainda vai viver no antigo A carne nova é comida com os velhos garfos.” (B. Brecht)

Chegamos ao final do século XX com balanços que nos indicam que embora a humanidade tenha tido um extraordinário avanço científico e tecnológico, sob domínio hegemônico do capital, houve mais destruição que bem-estar. Partindo do foco da sociabilidade do capital e suas crises cíclicas chega-se à conclusão que foi um longo século. Esta é a ênfase que nos traz Giovanni Arrighi. Mas, ao mesmo tempo, quando tomado sob as guerras e conflitos deflagrados em função da necessidade do domínio do capital, foi um curto século e repleto de extremos, como o analisa o historiador Eric Hobsbawm. É esse autor que nos adverte que não sabemos para onde vamos. Sabemos apenas o que nos trouxe até aqui e, em grande parte, por quê. Mas, se prosseguirmos com as estratégias do passado e do presente, o cenário futuro será de mais barbárie. Com efeito, a mundialização constitui-se, ao mesmo tempo, um processo mediante o qual o capital rompe as barreiras externas que o regulavam e limitavam tornando-se


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um capital “auto-regulado” e modifica a forma mediante a qual as suas contradições atingem o conjunto da humanidade. Nas mãos visíveis e invisíveis do capital estão cada vez mais concentrados o monopólio da ciência, da tecnologia e das redes poderosas de informação orientadas para a maximização do lucro. O capital-dinheiro descola-se cada vez mais de sua referência real e torna-se fictício e especulativo, permitindo, aos que tem o manejo das informações, auferir ganhos extraordinários, mesmo que seja à custa de milhares de trabalhadores em todas as partes do mundo, particularmente das nações do capitalismo periférico. Em suma, o capital desvencilhou-se da ameaça comunista, dos controles sociais do Estado de Bem-Estar e da organização e do poder coletivo da classe trabalhadora construídos a partir de meados deste século. Chegou a hora de sua vingança contra o trabalho. Mundializa-se o capital “sem sociedade” e acentua-se a contradição formulada por Marx, entre o avanço das forças produtivas e da exploração da força de trabalho. A nova base técnica do trabalho, do tipo eletrônico, produzem-se robots, máquinas informatizadas que, como nunca, podem aumentar a produtividade e a qualidade da produção, prescindindo de milhões de braços e cérebros, ao mesmo tempo em que ampliam a exploração e a precarização dos trabalhadores empregados e produzem um contingente absurdo de desempregados. A subordinação do trabalho ao capital efetiva-se hoje de forma mais complexa e heterogênea, intensificando seus ritmos e processos, ampliando o trabalho morto e, ao mesmo tempo, efetivando uma necessária interação entre este e o trabalho vivo. A novas tecnologias de base micro eletrônica e informacional agregam novos elementos à matéria e exigem outros atributos intelectuais e psicossociais do trabalhador, além da sua força


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física. Mas o sistema produtivo necessita apenas de uma pequena parcela de trabalhadores “estáveis” combinada com a grande massa de trabalhadores de tempo parcial, terceirizados ou que, por não serem imediatamente necessários à produção, são compelidos a serem trabalhadores “independentes” que se auto-empregam ou são “patrões de si mesmos”. O que se materializa efetivamente são formas diferenciadas e cada vez mais violentas de alienação ou superexploração do conjunto da classe trabalhadora. As políticas neoliberais de desregulamentação, flexibilização do trabalho e destruição da esfera pública, em voga especialmente nos países pobres, materializam de forma conjugada a exacerbação da face destrutiva do capital. A destruição mais visível é a do conjunto de direitos sociais e subjetivos duramente conquistados pela classe trabalhadora. Nota-se também a instauração de uma insuportável e desintegradora provisoriedade e um verdadeiro fascismo da insegurança. Este cenário muito real de horror econômico e éticopolítico, contraditoriamente pode estar sinalizando, como nos convida a análise de Istvan Mézáros, que o capital esgotou sua capacidade civilizatória. Para manter-se, agora, destrói o conjunto de direitos e conquistas construídas pela luta da classe trabalhadora. Esse esgotamento, entre outros âmbitos, manifesta-se no movimento contraditório do poder sem precedentes do capital de explorar trabalho abstrato subsumindo corpo e mente do trabalhador e, ao mesmo tempo, de atrofiar , esterilizar trabalho e mutilar milhões de seres humanos num contexto em que dilatavam-se e potencializaram-se as forças produtivas que tornariam possível o trabalho livre, tempo de escolha, de fruição e criação. Um movimento como indica André Gorz, onde o “trabalho anula trabalho” ou “produz riqueza e desemprego num só e mesmo ato”.


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Outro aspecto que nos permite entender uma qualidade nova da crise do capital em escala mundial é, de um lado, a capacidade fantástica do avanços das forças produtivas de produzirem mercadorias e serviços em escala sem precedentes, agravando a tendência às crises de superprodução, e, de outro, a vergonha da miséria e da fome que, em proporções diversas, atinge metade da humanidade. Ficam cada vez menos racionalmente justificáveis, em nome da saúde do mercado, dos estoques reguladores e das taxas médias de lucro do capital, as políticas que induzem à não-produção de alimentos, remédios, etc., ou a destruição de toneladas dos mesmos. Trata-se de políticas criminosas que produzem, por problemas ligados direta ou indiretamente à fome e subnutrição, trinta milhões de mortes anualmente. Também é insuportável o fato de que 4,5 bilhões de pessoas, especialmente dos países pobres, tenham para consumir apenas 14% da produção mundial e 1,5 bilhão se aproprie de 86%. O livro de Lia Tiriba – Economia Popular e Cultura do Trabalho - Pedagogia(s) da Produção Associada – capta, no plano teórico, ético-político e da práxis, o sentido para a classe trabalhadora das dimensões contraditórias que assume o capitalismo neste final de século. Mas, mais incisivamente, revela que a maioria dos trabalhadores, especialmente os excluídos do trabalho assalariado, estável, movidos primeiramente por sua necessidade de “manterem-se vivos”, mas não só, desvendam velhas formas e criam novas de produção associada. A autora, cautelosa e ao mesmo tempo de forma militante, busca no plano da complexa materialidade das relações de produção o fio tênue que a epígrafe anuncia: “As novas épocas não começam de repente [...] A carne nova é comida com os velhos garfos”. A cautela, tanto no plano da construção teórica quanto no plano do sentido da força política das experiências do trabalho associado, resulta de um longo processo de pesqui-


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sa e ação política com grupos de trabalhadores que, excluídos do mercado formal de trabalho, vêem-se compelidos a irem à luta pela sobrevivência. Neste percurso vai apreendendo que velho e novo se misturam nas experiências do trabalho associado. Competição e solidariedade, individualismo e coletivismo, convivem contraditoriamente. Como nos ensinou Antônio Gramsci, trata-se de uma realidade humana onde estes trabalhadores são “conformistas de vários conformismos” e convivem com diferentes consciências teóricas. Por isso, no diálogo crítico que estabelece entre o aprofundamento dos referenciais analíticos e, mediada por eles, a leitura da realidade empírica, afirma sua análise com conceitos como os de “economia popular” e “produção associada” e não assume o de economia solidária. O que a autora nos sinaliza em sua análise pode, talvez, ser expresso de forma metafórica tomando-se a economia popular que se efetiva mediante a produção associada como uma espécie de Labirinto do Minutauro. Os caminhos são múltiplos, contraditórios, desencontrados e repletos de armadilhas. Ao entrar nesse labirinto o risco é ser devorado tanto pela ideologia dominante que faz a apologia do “autotrabalho”, do empreendedorismo, do “trabalhador – patrão-de-si-mesmo”, da empregabilidade e do trabalho cooperativo e associado, emprestando-lhe, per se, um caráter transformador ou revolucionário. O eixo teórico que tece ao longo dos cinco capítulos, como o fio de linha de Teseu, lhe permite fazer uma crítica implacável ao ideário apologético conservador, dialogar criticamente com a denominação genérica de economia cooperativa e solidária e afirmar que existe, a exemplo da pedagogia da fábrica ou a pedagogia do capital, o desenvolvimento da pedagogia ou pedagogias da produção associada que têm a virtualidade de gestar uma nova cultura do trabalho. Não se trata, porém, de um determinismo, já que o constrangimento da sobrevivência e da ne-


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cessidade pode conduzir à formas culturais de trabalho embrutecedoras. Não há, por isso, na análise da autora, margem para idealizações e uma visão romântica do trabalho associado e da economia popular. A base teórica que orienta a análise permite-lhe mostrar-nos que a magnitude da exclusão de trabalhadores que o capital global ou mundializado efetiva, especialmente nos países do capitalismo periférico ou semiperiférico, empresta uma nova qualidade às estratégias de economia popular assentadas na produção associada. A quantidade engendra a virtualidade dessa nova qualidade. Este aspecto sinaliza duas ordens de questões cruciais para as forças empenhadas na superação do capitalismo. A primeira, de ordem teórica, é que o capital é uma relação social produzida historicamente. Isto significa que é uma relação produzida pelos seres humanos e que, por eles, pode ser superada. A densidade teórica que permite a leitura da sociabilidade capitalista e de suas contradições constitui-se em força (material) política para a sua superação. Daqui deriva a segunda ordem de questões: o capital é uma relação social, uma relação de força, uma relação de classe, não basta entender sua força, seus limites e contradições; é preciso reunir vontade política e organização, isto é, outra força para combatê-lo. Como intelectualmilitante a autora reitera-nos aqui uma antiga e ainda novíssima lição do legado de Marx e Engels: a impotência da consciência crítica dos intelectuais se for incapaz de tornar-se “consciência dos trabalhadores”. A autora consegue neste livro trabalhar de forma densa e original estas duas ordens de questões e só o consegue porque tanto a teoria quanto a práxis política é alimentada por uma convicção ético-política que Hobsbawm sintetiza numa curta formulação: os seres humanos não foram feitos para o capitalismo. Não se trata de produzir teoria por teoria, trata-se de ler criticamente as relações capitalistas e


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perceber como no seu bojo se gesta a utopia de novas relações de caráter socialista. Essa densidade e vigor ético-político fecundados pela utopia constitui esta obra no mais completo estudo no Brasil sobre economia popular e produção associada. Soma-se na mesma direção do livro de Roseli Caldart, A Pedagogia do MST (Vozes, 2000). Ambos nos mostram que a pedagogia que se tece na luta dos trabalhadores do campo e da cidade não começa e nem acaba na escola. Esta, quando articulada às suas lutas, é uma mediação imprescindível ou condição necessária, mas não suficiente. A pedagogia da produção associada no campo e na cidade começa na sociedade e nas lutas dos trabalhadores e acaba nesse mesmo locus com uma nova qualidade. O livro de Lia é, como sugere a coleção da Editora UNIJUÍ, “fronteira” no âmbito da teorização, vale dizer, da compreensão da complexa, rica e desafiante da realidade das lutas da classe trabalhadora naquilo que denomina de economia popular e de produção associada. É, também, fronteira na apreensão da pedagogia da produção associada e dos indícios de uma nova cultura do trabalho. Um livro de leitura e reflexão obrigatórias para o amplo campo de forças empenhadas, junto com a classe trabalhadora e os movimentos sociais e populares, na superação da última forma societária da “pré-história do gênero humano” – a sociedade capitalista. Forças essas empenhadas em arrancar, de dentro do contraditório e violento labirinto do capital, novas formas de trabalho, de relações sociais, de formação humana e de construção da aventura humana. A utopia não reside, pois, na luta pela sobrevivência – constrangimento imperativo –, mas na emancipação sob um novo modo de produção da existência humana – o socialismo. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2000. Gaudêncio Frigotto



INTRODUÇÃO

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, socializá-las por assim dizer; transformá-las, portanto em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. Antonio Gramsci, Concepção dialética da história, 1978.

Para quem se coloca mais atento, basta andar pelas ruas dos grandes centros urbanos para constatar o quanto o fim da “sociedade do emprego” vem desestruturando a vida de tantas pessoas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) informava que, em 1996, já existia um bilhão de desempregados e subempregados no planeta, isto é, quase 30% da força de trabalho. A lógica da sociedade de mercado, ao levar até as últimas conseqüências a ganância do capital em detrimento da própria vida, já não permite que se fale de ampliação exacerbada do “exército de reserva, mas sim de um exército de excluídos. No limiar do terceiro milênio, o desemprego apresenta novas dimensões. A primeira é a dificuldade de encontrar um primeiro emprego, o que tem deixado perplexos os jovens que tentam inserir-se no mundo do trabalho. A segunda é que não conseguem acesso a um posto de trabalho e são


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jogados no “olho da rua” não apenas os trabalhadores com baixo nível de escolaridade e, portanto, considerados semi ou “desqualificados”, mas também parte significativa daqueles que adquiriram as mais variadas gamas de qualificação. O desemprego aflige tanto as camadas mais empobrecidas como as camadas médias da sociedade, produzindo uma simbiose e, ao mesmo tempo, enfrentamentos, entre os tradicionais e os novos excluídos. Em outras palavras, as pessoas oriundas desses segmentos sociais encontram-se num mesmo campo de luta; no entanto, o desespero para conseguirem ocupar um lugar no mercado faz com que, muitas vezes, elas se desencontrem, passando a lutar em trincheiras diferentes. A terceira dimensão é a duração prolongada do desemprego, levando, muito comumente, as pessoas ao trabalho por conta própria, ou seja, a buscar – individual ou coletivamente – alternativas para a satisfação dos seus meios de sobrevivência. Em síntese, temos vivido em um mundo em que a sociedade está cindida em três terços: um terço composto pelas camadas sociais em ascensão e com grande poder de consumo; um terço precariamente incluído e satisfazendo suas necessidades básicas de forma parcial; e um terço de excluídos (desempregados, subempregados e aqueles que tentam sobreviver do trabalho por conta própria). O resultado não poderia ser outro: nos centros urbanos, cresce a cada dia a diversificação de atividades consideradas tanto legais como ilegais: flanelinhas, engraxates, perueiros, chaveiros, consertadores de panela, vendedores de planos de saúde, de frutas, legumes e outros ambulantes que vendem qualquer tipo de quinquilharia. E entre eles estão os chamados pivetes ou trombadinhas: meninos e jovens que, com suas mãos ágeis, dedicam-se à atividades ilícitas.


Introdução

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As políticas de globalização e internacionalização da economia, em detrimento de um desenvolvimento autônomo e autocentrado nas necessidades da população, têm contribuído para produzir “meninos de rua” no Brasil, “canalitas” no Paraguai, “polillas” na Bolívia, “gamines” na Colômbia – todos eles pequenos trabalhadores, meninos famintos que povoam os países periféricos. Também os adultos são capazes de matar seus semelhantes por um mero, mas fundamental, pedaço de pão. A violência nos grandes centros urbanos (tanto por parte da polícia, como dos chamados “bandidos”) é, talvez, a expressão maior da “sociedade dos três terços”. Não é novo o fato de que as pessoas inventem estratégias econômicas para defender-se das injustiças sociais. O que é novo, em relação ao paradigma do pleno emprego, é exatamente o fenômeno generalizado que se estende, principalmente nos países “em via de desenvolvimento”, como parte integrante do contexto maior da nova ordem internacional em que o “trabalho assalariado vem perdendo sua centralidade nas relações entre capital e trabalho. Para uma imensa quantidade da população, o que resta é o sonho de montar uma “barraquinha de cachorro-quente” numa esquina, de preferência longe da violência, longe da fiscalização, longe do controle do Estado, e, quem sabe – burlando ou não a lei dos mais fortes – , organizar com os amigos, com o companheiro/a e com os filhos, algo que possa ser mais duradouro no tempo e no espaço: uma minifábrica de pizza ou mesmo uma fabriqueta de calcinhas, que possa, um dia, “concorrer” ou ser terceirizada por uma De Millus, ou por qualquer outra empresa do grande capital. No atual contexto do processo de acumulação capitalista, que tem por base o investimento em alta tecnologia de produção e gestão da força de trabalho, poderia parecer um


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anacronismo (e até mesmo ridículo) o esforço de analisar o significado dos microempreendimentos populares que, muitas vezes, caracterizam-se por uma produção artesanal e semi-industrial (processos esses considerados tecnologicamente “atrasados”). Como constata Max-Neef (1986), ao excluir os setores populares como sujeitos econômicos, a “ciência econômica” tem-se dedicado a medir as atividades que aparecem no mercado, sem considerar se são atividades produtivas, improdutivas ou destrutivas, não valorizando as tarefas realizadas em nível doméstico ou de subsistência. Não por casualidade, praticamente os mesmos setores da humanidade que, ante os olhos dos historiadores, mostraram-se invisíveis para a História, permanecem invisíveis também para a Economia. As mulheres e os homens trabalhadores pertencentes aos setores populares (crianças, jovens, adultos e mesmos os idosos), embora produtores de riqueza, não são considerados como atores, protagonistas de uma economia que tenta driblar a perversidade do mercado para assegurar, a duras penas, a satisfação de suas necessidades básicas. Precisamos entender a(s) pedagogia(s) da produção associada e em especial aquelas que vêm sendo produzidas no contexto da crise do emprego, da mesma maneira e com a mesma dedicação com que temos tentado acompanhar – para poder compreender – os segredos da “pedagogia da fábrica” (Kuenzer, 1986). Além da pedagogia do capital, falta-nos desvendar as maneiras pelas quais os trabalhadores vêm tentando construir, na prática e de forma contraditória, sua pedagogia do trabalho (que, muitas vezes, constitui-se num arremedo da “pedagogia da fábrica”). Se os referenciais da economia informal já não são suficientes para explicar a proliferação de pequenas unidades econômicas, a necessidade de contribuir para a elaboração de uma teoria da economia popular (e de seus processos pedagógicos) corresponde a uma necessidade prática, imposta pela própria realidade.


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Mas, para que possamos avançar, não basta medir o grau de inserção destas atividades no mercado. Um dos pontos de partida é perceber os setores populares como sujeitos da produção social da vida humana e, ao mesmo tempo, contribuir para que seus empreendimentos se constituam em um locus de criação e recriação de relações econômicas e sociais que contemplem as necessidades da grande maioria da população – hoje excluída, inclusive, do direito à manutenção da própria vida. A eleição da economia popular como eixo central deste estudo (agora apresentado em forma de livro) é o resultado de minha inserção na área de trabalho-educação, à qual tenho-me dedicado, especialmente, à formação de trabalhadores em espaços singulares, onde são – eles mesmos – os gestores da produção, tanto de bens materiais, como educativos e culturais. Ora, a eleição de um determinado objeto de conhecimento não se dá por mero acaso, mas por estar intimamente relacionada com a trajetória de vida e a opção política do pesquisador frente aos problemas do mundo. Inspirada em Marx, em sua XI Tese de Feuerbach, tenho insistido que não é suficiente constatar que o modo de produção capitalista, ao assegurar a propriedade privada dos meios de vida, a expropriação dos frutos do trabalho e os saberes produzidos no chão da fábrica, acaba por expropriar o próprio sentido da vida. Não é suficiente constatar; é preciso transformar. Ora, quando as condições conjunturais e estruturais obrigam as pessoas a tentar ganhar a vida por conta própria, é preciso continuar a lutar por um emprego; no entanto, um dos desafio é o de reinventar o cotidiano do trabalho e, se possível, ainda que de forma limitada, contrariar a lógica perversa do capital. Nessa perspectiva, algumas antigas inquietações ainda me acompanham: quando os trabalhadores são os proprietários dos meios de produção, que relações estabelecem entre


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si e com a sociedade? Como organizam seus próprios empreendimentos? Como concebem o mundo do trabalho? A educação no cotidiano de trabalho reproduz a lógica da “pedagogia da fábrica” (Kuenzer, 1986) ou é um processo que permite a todos interferir nos rumos da produção? Em outras palavras, para os trabalhadores associados, qual é o sentido do trabalho? Os caminhos que me levaram ao estudo da economia popular foram trilhados a partir de aspectos teórico-práticos e até mesmo existenciais, surgidos da minha incursão pelo mundo, seja como educadora, seja como pesquisadora. Não existindo o “eu sozinho”, mas um “eu” construído e reconstruído na relação com os seus pares, nada melhor do que usar a primeira pessoa do plural para fazer um pequeno inventário desta incursão. Nos estudos anteriores, consideramos o processo educativo como uma das mediações dos movimentos de conservação/superação das relações capitalistas de produção. Na pesquisa Trabalho e educação da classe operária: a perspectiva política da escola técnica do Sindicato dos Metalúrgicos-RJ (Tiriba, 1989), foi possível analisar os diferentes horizontes do processo de produção pedagógico promovido, desde o início do século 20, pelos operários metalúrgicos no interior de sua associação de classe. Ressaltamos que, de acordo com a proposta político-pedagógica da escola operária, o saber técnico-científico se constrói a partir do encontro/confronto do conhecimento acadêmico com o conhecimento produzido/apropriado pelo trabalhador e expropriado pelo capital no cotidiano do trabalho. Quanto aos processos que, mesmo no seio do capitalismo, buscam na autogestão os princípios para a organização do trabalho, a pesquisa-ação Autogestão e chão-de-fábrica (ib., 1994) tentou apreender a articulação entre o mundo da cultura e o


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mundo da produção, tendo como objeto de análise as relações sociais em uma indústria localizada na cidade do Rio de Janeiro, cujos trabalhadores eram os proprietários dos meios de produção. Partimos do pressuposto marxiano de que a “associação de trabalhadores livres” – como negação do trabalho assalariado –, ao mesmo tempo que pode conter as sementes do novo, contém também as marcas do velho. Isso porque esse tipo de resistência ao capital não é capaz de derrotar o monopólio dos capitalistas, a menos que se desenvolva também em nível do poder político, passando de um movimento isolado a um movimento nacional. Também em Colectivo obrero, trabajo y educación (ibid, 1996) na qual, por meio de fontes primárias, reconstituímos a história de uma indústria encampada pelo governo republicano durante a guerra civil espanhola (19361939) tentando apreender a relação trabalho-educação, considerando a organização e divisão do trabalho no contexto dos desafios políticos e técnico-científicos da socialização da produção. A partir das contribuições de Gramsci, pudemos inferir que a experiência viva e histórica dos processos produtivos geridos pelos próprios trabalhadores tem representado para seus atores “uma magnífica escola de experiência política e administrativa”. No entanto pensamos que a dicotomia entre o “projeto educativo” e o “projeto laboral” tem se manifestado no próprio interior da produção associada, contrariando o horizonte de formação integral do trabalhador. Se o que vale é que “a produção não pode parar”, mesmo os processos produtivos inspirados nos princípios de autogestão não têm sido capazes de criar as condições necessárias para propiciar a todos os trabalhadores o direito de se tornarem “governantes” de seu trabalho. Daí que, se a relação trabalho-educação tem como pressuposto que o conhecimento produzido na escola tem como fonte inspiradora


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o saber produzido nas relações sociais que os homens estabelecem em seu processo de trabalho e em suas relações mais amplas, a possibilidade de transformar a ação em ação transformadora pode ganhar corpo quando os trabalhadores tiverem assegurado, ao menos, o direito à educação básica (fundamental e média). Incorporando novos referenciais teóricos, ângulos e perspectivas, este livro representa a continuidade e o aprofundamento dos estudos anteriores. Mas, agora, partimos de uma realidade mais ampla: a da proliferação de estratégias individuais e coletivas empreendidas pelos trabalhadores pertencentes aos setores populares, os quais, além de terem sido expulsos precocemente da escola, foram expulsos do chamado mercado formal de trabalho. No entanto, não é possível desconsiderar que essas unidades econômicas também representam o resultado das políticas de agentes externos (organismos internacionais, governos, empresários, etc.) que, em nome do “combate ao desemprego” e do “alívio aos pobres”, têm permitido a volta dos excluídos por meio de um trabalho precarizado, atenuando, assim, os conflitos sociais e contribuindo para acelerar o processo de restruturação produtiva. Em outras palavras, corroboram a nova ordem internacional calcada na globalização da economia e em um Estado que, embora “mínimo”, é forte. Apesar do caráter universal das políticas neoliberais, baseadas no desmonte do público, este livro refere-se à realidade de um país periférico, isto é, à realidade de uma população que tem sofrido intensamente as conseqüências da mercantilização da saúde, da educação e de outras conquistas históricas dos trabalhadores, nunca chegando a desfrutar plenamente dos benefícios de um Estado protetor. No Brasil, como nos demais países da América Latina, a sociedade nunca se configurou como uma “sociedade do pleno


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emprego”. O trabalho precário ou o subemprego sempre fizeram parte de nossa história, constituindo-se sobretudo em uma extensão do antigo sistema escravista, que, como diz Nosella (1993), convive com um “industrialismo de marca americana”. De frente à diminuição dos postos de trabalho assalariado e diante do conseqüente aumento da pobreza, é possível perceber que, à exceção de algumas empresas autogestionárias no Brasil (Tiriba, 1994), os empreendimentos sob o controle dos trabalhadores não têm, necessariamente, como referência os princípios da autogestão e do socialismo, mas são uma resposta dos setores populares para satisfazer às suas necessidades de subsistência. No entanto, se, de um lado, a diversidade de iniciativas de geração de trabalho é a forma sob a qual o capital obriga e estimula as pessoas a buscarem por conta própria seus meios de subsistência, de outro, contraditoriamente, vão surgindo e/ou tornando-se mais visíveis alguns novos tipos de experiência. Embora mescladas com profundos sentimentos de individualismo e de competitividade, em várias delas o trabalhador vai descobrindo, mesmo sob os limites impostos pela sociedade de mercado, ser possível criar uma economia que tenta ser alternativa à lógica excludente do capital. Ora, sem falar dos possíveis resultados econômicos, qualquer estratégia popular de sobrevivência – como prática social – está permeada por motivações e expectativas que refletem os valores e as concepções de seus atores quanto à vida em sociedade. Assim, as condições necessárias para a reprodução da vida não podem ser contabilizadas somente por meio de “uma simples soma matemática” dos rendimentos monetários do trabalho, pois também são a expressão das diversas formas de solidariedade entre os trabalhadores, suas famílias e a comunidade local (Cariola, 1992).


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Desvelar os elementos da cultura do trabalho (e a partir deles a pedagogia da produção associada) pressupõe uma análise de ordem econômica, em seu sentido mais amplo, considerando seus aspectos sociais, políticos, educativos e culturais. Compreendendo o econômico como um espaço onde se configuram e se concretizam as relações sociais e considerando o contexto global em que os sujeitos se produzem, este estudo pretende enfocar a cultura do trabalho, de forma ampla, integrando seus diversos aspectos e dimensões, entre as quais, a sua dimensão educativa. Entendendo os processos produtivos como processos pedagógicos que medeiam as condições objetivas e subjetivas da cultura do trabalho, o objetivo não é propor um novo modelo de escola, tampouco buscar nos processos educativos dos “homens de negócio” um nível ótimo de formação para a garantia da “empregabilidade” e, sim, o caráter educativo das novas formas de trabalho, empreendidas pelos próprios trabalhadores, no contexto da crise do emprego. Sob nosso olhar de educadores, tentamos trazer à superfície a pedagogia da produção associada, a partir das motivações e práticas dos trabalhadores associados quanto à organização e gestão de seus empreendimentos, às relações de mercado, às instâncias de produção e socialização do saber e aos vínculos que estabelecem com o governo, os empresários, as instituições de apoio e outras redes de ação coletiva. Para isso, frente ao diversificado mundo da economia popular, delimitamos o campo de investigação a uma de suas particularidades: as estratégias associativas de geração de trabalho e renda, denominadas por Razeto de “organizações econômicas populares” (OEPs). Quanto à metodologia, acreditamos que “o método que consiste em elevar-se de abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para apro-


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priar-se do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado” (Marx, 1978, p. 117). Para os trabalhadores associados e também para os investigadores, atuar sobre a realidade é a primeira forma de compreendê-la, é a maneira objetiva e imediata pela qual construímos e apreendemos sua totalidade concreta e relativa. Da mesma forma que para os trabalhadores associados, a realidade das OEPs não se manifesta de imediato e por inteiro diante dos olhos dos investigadores, pois a pseudoconcreticidade com o qual o mundo se apresenta é “um claro-escuro de verdade e de engano” (Kosik, 1995). Além disso, ela não se revela a todos, em todos os seus ângulos, no mesmo momento e da mesma maneira: a cada olhar e de acordo com o estilo de inserção de cada um na realidade objetiva, desvela-se uma nova dimensão do real. A partir de nossas próprias histórias de vida e de nossa inserção na dinâmica social, apreendemos e construímos a realidade de diferentes maneiras. Para orientar nossa reflexão no plano empírico da problemática da economia popular, desenvolvemos o trabalho de campo em duas fases. Embora os números não sejam sinônimo e tampouco reflexo da vida material, mas somente indícios da dinâmica do real (uma abstração parcial e relativa da realidade), fazemos o levantamento de 61 estratégias coletivas de sobrevivência localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro, que dada a sua inserção nos movimentos populares, poderiam configurar-se como organizações econômicas populares. O propósito não foi quantificar o peso e a capacidade desse setor de interferir nos demais setores econômicos, mas o de obter uma “visão panorâmica” de sua localização, número de trabalhadores, setores e tipos de atividades que desenvolvem, formas de organização, personalidade jurídica e tipo de vínculo que estabelecem com outras “redes de solidariedade”. Nessa fase, a principal fonte fo-


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ram os registros escritos acerca das estratégias coletivas de sobrevivência, tendo como interlocutores os técnicos de algumas organizações não-governamentais que as assessoram e acompanham. Na segunda fase do trabalho de campo, selecionamos cinco grupos de trabalhadores (com seus subgrupos) que contemplam a diversidade de experiências quanto a sua origem e relação com os movimentos populares e, além disso, que são compostos por aqueles atores da economia popular que vivem nas favelas e cinturões de pobreza da região metropolitana e que, além de terem sido expulsos precocemente da escola, foram excluídos do mercado formal de trabalho. A partir de um longo roteiro de investigação, analisamos alguns elementos materiais e imateriais, bem como os movimentos contraditórios da cultura do trabalho nas organizações econômicas, por meio de quatro eixos básicos que se inter-relacionam, exigindo-nos uma análise transversal: 1) educação, organização e gestão do trabalho – forma de organização; tipos de investimentos para dar início à atividade, divisão do trabalho; processos de decisão/ democracia interna; aquisição, produção e socialização do conhecimento; qualificação/grau de desenvolvimento tecnológico; formas de propriedade dos meios de produção; remuneração do trabalho/distribuição das riquezas; grau de viabilidade econômica; 2) relações de mercado – forma de inserção na economia; critérios para definição dos produtos e serviços; critérios para estabelecer os preços dos produtos e serviços; princípios e condições para competir no mercado; compromisso com a qualidade dos produtos/serviços; amplitude da relação produtor-consumidor;


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3) redes de ação coletiva – origem do grupo/experiência associativa; relações com outras organizações econômicas populares; relações com a comunidade local; relações com os movimentos populares e instituições de apoio; relações com os empresários e o governo; 4) motivações/expectativas dos trabalhadores – objetivos do associativismo; concepção de autogestão; concepção de mundo e de vida. Evidentemente, debruçar-se no chão da produção, escutar, dialogar com os trabalhadores associados e estar atento às suas práticas laborais e às suas relações de convivência se constituíram em elementos fundamentais que nos ajudaram a confrontar teoria e prática. A investigação participativa, além de uma opção metodológica, representou uma opção política à medida que se constitui em instância de educação tanto dos pesquisadores como daqueles que, cotidianamente, fazem e pensam o mundo do trabalho. Vale registrar que (apesar da dificuldade dos trabalhadores, de um modo geral, com a palavra escrita) íamos de frase em frase, de parágrafo em parágrafo, discutindo e revisando, com vários deles, cada uma das temáticas que se iam apresentando no roteiro da pesquisa. Certamente, o maior ou menor grau de aprofundamento em relação a cada um dos temas e subtemas é o resultado imediato do grau das relações que nós, pesquisadores, conseguimos estabelecer com os trabalhadores. Uma vez que o concreto aparece no pensamento como um processo de síntese, a pesquisa se fundamentou nas contribuições teóricas de autores clássicos e daqueles que, atualmente, vêm-se dedicando à análise da complexidade do atual tecido social, onde se (re)produzem as estratégias de sobrevivência, em especial as organizações econômicas populares. Entretanto, o objetivo não foi o de prestar contas de


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cada um dos autores que compõem a extensa bibliografia, nem necessariamente confrontá-los, mas incorporar as contribuições teóricas que nos permitiram compreender o concreto “como a síntese de várias determinações, isto é, unidade do diverso” (Marx, 1978). Pelo fato de que este livro se estrutura partindo do “macro” para o “micro”, retornando posteriormente ao primeiro, não significa que o método de exposição seja, obrigatoriamente, o método de investigação. Também não é verdade que, enquanto pesquisamos, todas as proposições teóricas estejam definidas a priori, pois elas vão sendo repensadas e redefinidas ao longo do trabalho de campo – trabalho este que nos convida a revisitar a teoria. Assim, organizamos o texto de maneira que os conceitos se apresentem como resultado do movimento de nosso processo de pensamento, isto é, de olhar, teorizar, voltar a olhar, para tentar compreender a problemática da economia popular. Assumindo que esse pode não ser um “bom estilo”, é necessário precaver o leitor: talvez não seja falsa a sua impressão de que o texto “vai e vem”. Em Desenvolvimento (des)humano e crise do trabalho (primeiro dos cinco capítulos), nos dedicamos à analise de alguns aspectos presentes no cenário do limiar do novo século. A partir do suposto de que a crise do emprego é a manifestação do atual modelo de desenvolvimento econômico centrado na lógica do mercado, voltamos nossa atenção para a crítica do atual projeto de sociedade que, ao reduzir o homem à dimensão do “homem econômico”, tem gerado a degradação da natureza e do próprio homem. Levando em conta que as políticas neoliberais, calcadas na globalização da economia e na reestruturação produtiva, têm contribuído para aumentar o desemprego e a pobreza, consideramos que o trabalho, mesmo na versão capitalista, é um elemen-


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to-chave da constituição humana. Ao refletir sobre o trabalho como uma categoria histórica, indicamos que, no contexto da chamada “crise da sociedade do trabalho”, não é o trabalho que está em crise, mas a própria sociedade fundada no trabalho-mercadoria. Sinalizamos ser a produção de uma nova cultura do trabalho, calcada no fim do trabalhoalienação, parte constitutiva do processo de produzir outro modelo de desenvolvimento baseado em novos valores de convivência humana e de relações com a natureza. Para a crítica da ideologia tecnocrática e do racionalismo que impera na sociedade de mercado, destacamos as contribuições teóricas de diversos autores, entre os quais, Horkheimer e Adorno, Sánchez Vázques e Polanyi. Outros autores, como Riechmann, Antonio Esteban, Villasante e MaxNeef, também se constituem como importantes interlocutores para a formulação da necessidade de outro modelo de desenvolvimento. Quanto à categoria trabalho, nossos principais referenciais foram construídos a partir de Marx e Kosik, tendo Gorz, Arent, Schaff e Offe, todos eles fundamentais para reafirmar e problematizar sua centralidade nas relações sociais. Em Economia popular: sua reedição pelo trabalho e pelo capital, aproximamo- nos ainda mais do atual contexto onde se produzem as estratégias de sobrevivência. Em primeiro lugar, assinalamos a grande variedade de termos utilizados para fazer referência aos pequenos empreendimentos geridos pelos setores populares e constatamos que os conceitos de economia formal e informal não conseguem contemplar a diversidade das relações econômicas. Tendo Orlando Nuñez, Razeto e Corragio como referência, apresentamos como esses autores, por força de suas concepções de mudança social, formulam o conceito de economia popular. Depois de apresentar os cinco tipos de iniciativas indivi-


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duais e coletivas de sobrevivência, destacamos as características das organizações econômicas populares (OEPs), consideradas por Razeto como o subsetor mais avançado da economia popular. Ainda insistindo sobre um conceito de economia popular que dê conta da complexidade das relações sociais, questionamos o que é “o popular”, a partir da contribuição de Canclini. Buscando diferenciar quem são seus atores e quem são seus agentes, refletimos sobre os diferentes projetos políticos e econômicos que hoje interferem e/ou dão o tom à economia popular, ressaltando o emaranhado de interesses que movem os aliados e pseudo-aliados dos setores populares: organismos governamentais, ONGs, igreja, sindicato e outras instâncias dos movimentos sociais. Neste mesmo capítulo, também analisamos a economia popular/solidária como uma instância dos movimentos populares, dialogando com Singer, Kraychete, Arruda e Franklin Coelho. Em Escola e outras escolas de produção de uma nova cultura do trabalho, começamos a articular trabalho e educação. Para que, posteriormente, pudéssemos inferir sobre os desafios dos processos produtivos e educativos no interior das unidades econômicas que hoje são geridas pelos próprios trabalhadores, resgatamos as contribuições de Marx, Engels e Rosa Luxemburgo em relação ao significado da propriedade coletiva no interior do capitalismo. Algumas contribuições de Razeto quanto ao “fenômeno cooperativista” nos ajudam a problematizar as relações sociais no chamado “setor solidário” da economia. Percebendo tais empreendimentos como uma instância de produção e socialização de novos conhecimentos e valores quanto ao mundo do trabalho e à vida em sociedade, recuperamos o conceito de práxis de Sánchez Vázquez. Acrescentamos as contribuições de Gramsci referentes aos conse-


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lhos de fábrica, considerados como uma “escola maravilhosa” onde os trabalhadores podem reestabelecer o vínculo trabalho manual-trabalho intelectual. No que se refere aos pressupostos do “trabalho como princípio educativo”, é esse mesmo autor quem nos conduz a resgatar as bases filosóficas da relação trabalho-educação. Entretanto, levando em conta que, historicamente, a grande maioria dos trabalhadores associados não têm tido acesso à educação básica e aos bens culturais, sinalizamos que o conhecimento tem-se constituído em um “calcanhar de Aquiles” da produção associada. Também dialogamos com Kuenzer e com outros educadores como Frigotto, Arroyo e Machado, ou seja, com aqueles que nos ajudam a compreender a “pedagogia da fábrica” e os desafios da formação dos trabalhadores frente à atual base técnica da produção e à chamada “sociedade do conhecimento”. Ao ter as organizações econômicas populares (OEPs) como foco de nosso estudo, destacamos que, dos processos educativos (tanto os promovidos pelo governo e empresários, como os promovidos pelos trabalhadores), também fazem parte as práticas “deseducativas” que reproduzem a “pedagogia da fábrica” (Kuenzer). Assim, resgatamos algumas contribuições de Paulo Freire e problematizamos o conceito de “educação socialmente produtiva”, de Francisco Gutiérrez. Acreditando que “o próprio educador deve ser educado”, sinalizamos que, no processo educativo de tornar viável técnica e politicamente os empreendimentos populares, é necessário que os chamados “técnicos” e “intelectuais” busquem promover o encontro e o confronto do saber popular e do saber acadêmico, ensinando e aprendendo com os trabalhadores associados sobre como materializar, no cotidiano da produção, os pressupostos filosóficos de uma economia que se pretende popular e solidária. Indicamos a ne-


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cessidade de estudos que, ao articular a educação à economia popular, contribuam para a busca de uma nova racionalidade educativa, em consonância com uma nova racionalidade econômica. Tendo Arroyo como um importante interlocutor, no final desse capítulo, consideramos que os espaços produtivos geridos pelos trabalhadores se constituem em espaços singulares para a apreensão de alguns elementos materiais e imateriais da formação humana. Ao recuperar o trabalho como elemento que constitui a cultura e é por ela também constituído, tratamos dos desafios da produção associada, tendo como base o conceito de cultura do trabalho utilizado por Palenzuela. Considerando os conflitos multiculturais no processo de globalização, não apenas de bens materiais, mas também de bens simbólicos, acrescentamos as contribuições de Canclini quando problematiza a questão. Finalmente, recorremos a Villasante para reafirmar que a cultura do trabalho e, portanto, também a educação do trabalhador, é o resultado, sempre em contínua construção, das relações vividas no ambiente de trabalho e em ouras redes de convivência. Iniciamos o capítulo A “pedagogia da fábrica” na versão dos trabalhadores tentando ilustrar o espaço físico e subjetivo da região metropolitana do Rio de Janeiro. Refletimos sobre os significados da “cidade maravilhosa”, sinalizando que, mais além do mundo das drogas e da violência, vive nas favelas do Rio uma multidão de trabalhadores – entre os quais, a maioria dos integrantes das OEPs que pudemos analisar. Como resultado da primeira fase do trabalho de campo, reunimos algumas características de 61 organizações localizadas na região metropolitana, indicando que, além da geração de trabalho e renda, os trabalhadores associados realizam atividades de cunho social, educacional e cultural –


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por nós denominadas de atividades de “desenvolvimento comunitário”. Em seguida, fazemos uma análise transversal dos grupos de trabalhadores que elegemos para tentar apreender os elementos da cultura do trabalho que se materializa no cotidiano dos empreendimentos populares. Seguindo nosso roteiro de pesquisa, enfocamos a pedagogia da produção associada, tentando compreender, a maneira pela qual os processos de trabalho e os processos educativos os encaminham para a constituição de velhas e novas relações sociais e econômicas. A título de conclusão, em Pedagogia(s) da produção associada: para onde caminha a economia popular?, demarcamos algumas questões centrais sobre a problemática do trabalho no limiar do novo século. Ressaltamos alguns elementos indicativos de uma nova cultura do trabalho nas organizações econômicas populares, destacando seus aspectos contraditórios, os quais, em última instância, manifestam as próprias contradições da sociedade (entre elas, a armadilha do “homem econômico”, os limites da solidariedade e os impasses da relação trabalho-educação). Constatamos que, assim como é diversificado o vasto mundo da economia popular, também é diversificado o mundo das OEPs, sendo que, tampouco ali, apresentam-se os fatores ideais possíveis de servir de “modelo” para o conjunto da economia global. Sinalizamos que, ao contrário de mistificar esses empreendimentos associativos como um possível “paradigma” para o desenvolvimento da economia popular, é preciso que se instaure um processo de transformação do contexto maior, no qual se produzem o desemprego e a pobreza. Desse processo, também fazem parte os projetos econômicos, educativos e culturais que privilegiam o homem como ser integral, criativo, autônomo, solidário... Destacamos que, frente aos efeitos da nova ordem internacional, a gestão da


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produção pelos próprios trabalhadores se configura como uma realidade incontestável, mas pode representar uma ilusão se tiver somente como horizonte administrar a crise do capitalismo ou se reproduzir, sob outros moldes, a exploração e a degradação do trabalho. Para finalizar, cabe registrar que a primeira versão deste trabalho, que contou com o apoio do CNPq, resultou na minha tese de doutorado em sociologia econômica e do trabalho na Universidade Complutense de Madrid (Espanha), sendo que algumas de suas partes já foram publicadas em forma de artigo. Assim, este livro representa o privilégio de reunir cada um de seus pedacinhos que ficaram espalhados (e talvez perdidos) nas gavetas da academia. Sem me eximir da responsabilidade quanto às análises aqui apresentadas, nunca é demais dizer que embora os “direitos de autor” possam garantir a “propriedade intelectual” da produção científica, os trabalhadores precisam ser reconhecidos como autores da pedagogia da produção associada. São eles os coautores e protagonistas do árduo processo de interpretar, driblar e transformar a realidade. Espero que aqueles que ainda não conseguiram ter acesso à chamada cultura letrada possam ter acesso a este livro e, de preferência, numa biblioteca pública, gratuita e de qualidade. Gostaria de acrescentar que este trabalho só foi possível graças ao companheirismo de um significativo número de pessoas. Agradeço imensamente pelo carinho de Tomás Villasante e Gaudêncio Frigotto (meus orientadores no doutorado) e da equipe de pesquisadores do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados Sobre Trabalho e Educação (NEDDATE), com quem venho mantendo intensos debates na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, e também pelo apoio da equipe do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), em especial a


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Sérgio Schlesinger. Não é possível deixar de registrar, também, a competência de Edenise da Silva Antas e Elizabeth Serra de Oliveira (que participaram do trabalho de campo), de Alexandre Maia do Bonfin (que além de participar do trabalho de campo, leu e releu criticamente os originais), de Carmen Lozza e Leila Pereira (que fizeram a revisão final do texto) e de Luiz Carlos Manhães (amigo e companheiro de trabalho na UPF/Angra dos Reis). Não posso deixar de reconhecer o carinho de Ricardo Saboya Filho e de meus filhos Daniel e Diego (tradutores de espanhol), de minha filha Marcella (que organizou a bibliografia e tantas outras mais). Também agradeço a Luis Zorraquino que, durante todos estes anos, tem-me dedicado parte de seu imenso amor pelos povos latino-americanos.

Rio de Janeiro, agosto de 2000 Lia Tiriba



Desenvolvimento (des)Humano e Crise do Trabalho Não sabemos aonde vamos, somente que a história nos levou até este ponto [...] Sem dúvida, uma coisa está clara: se a humanidade tem que ter um futuro, não será prolongando o passado ou o presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio sobre estas bases, fracassaremos. E o preço do fracasso, isto é, a alternativa a uma sociedade transformada, é a obscuridade. Eric Hobsbawm, História do Século XX, 1995



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Economia da pobreza humana: o homem econômico e o mercado

De acordo com a Cruz Vermelha Internacional, no final do século XX existiam no mundo 802,3 milhões de famintos, dos quais 459,1 milhões estão na África (sul do Saara), 67,2 milhões na América Latina, 12,5 milhões no Oriente Médio e Norte da África, e 1,1 milhão na Europa, América do Norte e Austrália. Para uma população mundial de seis bilhões de habitantes, cerca de 80% vivem nos países do Terceiro Mundo. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) informa que cerca de 1,3 bilhão de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, das quais 70% são mulheres e crianças; 1,2 bilhão de pessoas carecem de água potável. Para completar, 507 milhões de pessoas morrerão antes dos quarenta anos de idade. A pobreza está mais generalizada na África, ao sul do Saara, e na Ásia Meridional, afetando em torno de 40% da população. Também nos países desenvolvidos, cem milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza (PNUD, 1997). Seria a pobreza conseqüência do “fim da sociedade do trabalho”? Se o trabalho está em crise, de que vivem as pessoas? Referindo-se à situação de extrema pobreza produzida pela política econômica internacional, Kabunda diz que ainda é possível existir a vida na África, graças à capacidade criativa dos africanos para desenvolver estratégias populares de sobrevivência: fraude, contrabando, poupança coletiva, caixinhas de ajuda mútua (“tontitas”), organização de oficinas de produção, hortas comunitárias, etc., inclusive, a emigração ou fuga clandestina para outros países. Para


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que as pessoas não morram de fome, as fontes de renda distintas daquelas que existem no setor formal assalariado são as mais variadas. Esse autor nos conta: O mais freqüente é que o operário, sem recursos, procure desesperadamente sobreviver mediante o roubo de instrumentos de produção e de peças de reposição na empresa onde trabalha, para instalar-se como pequeno produtor independente. [...] A matéria-prima se consegue clandestinamente através dos trabalhadores de uma empresa privada, que vendem os produtos de melhor qualidade do que aqueles que se pode conseguir legalmente no mercado oficial, depois de esperar muito tempo. (Kabunda,1994, p. 130)1

Os diferentes níveis de pobreza não nos permitiriam falar tão-somente de um Terceiro Mundo, mas de vários terceiros mundos (Schneider, 1986), de um Quarto Mundo (Kabunda, 1996), integrado pela população da periferia do centro e da periferia da periferia. Certamente, “se não existisse este setor que se destaca pelo seu dinamismo interno, se agravaria ainda mais a crise econômica e social” (ibid, p. 214), não somente na África, mas também na América Latina. Na verdade, as estratégias de sobrevivência têm jogado “um papel amortecedor importante, disfarçando a miséria dos povos e a crise econômica e social dos países do Sul” (idem, 1996, p. 225). Isso porque, ao contrário de resolver o problema da pobreza, os planos de ajuste estrutural têm contribuído para aumentar as relações de dependência dos

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As versões em português a partir do espanhol são de nossa responsabilidade.


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“países pobres” 2 em todos os níveis: econômico, político, educativo e cultural. O fato é que, além da econômica, diferentes tipos de pobreza – de subsistência, de afeto, de proteção, de participação, de identidade, liberdade, etc. – têm gerado patologias individuais e coletivas, remetendo-nos a uma pobreza maior: a pobreza humana. Ao analisar o caráter desumano do “projeto civilizatório”, a Plataforma por um mundo responsável e solidário 3 alerta-nos que sofremos de três grandes desequilíbrios: entre o norte e o sul do planeta; entre os ricos e os pobres no interior de cada uma das sociedades e, finalmente, entre os seres humanos e a natureza. Como crises inseparáveis, adverte que só conseguiremos a harmonia dessas relações se tivermos a capacidade de reconstruir a harmonia entre os próprios seres humanos. A maioria dos países tem vivido uma

2

Muitos têm sido os termos, com diferentes conotações políticas e ideológicas, utilizados para diferenciar a posição dos países quanto ao grau de industrialização, desenvolvimento tecnológico, concentração de riquezas materiais e de poder de interferência na economia e na vida política dos demais países. Utilizamos os termos “países do Norte/Sul”, “países Centrais/Periféricos” e “Primeiro Mundo/Terceiro Mundo”, sem esquecer que os setores sociais vinculados ao grande capital também estão fortemente presentes nos países que, por não se constituírem como centros de poder econômico, se apresentam na condição de dependência econômica, política e cultural, entre outras. Como nos referiremos neste capítulo, o termo “desenvolvimento” está contaminado pelo atual modelo de desenvolvimento que tem como referência a racionalidade tecnológica e a subordinação das relações sociais ao mercado. Nesse sentido, aparecem entre aspas os termos “países desenvolvidos/subdesenvolvidos/em vias de desenvolvimento” e “países ricos/pobres”.

3

Com o apoio da Fundação para o Progresso do Homem – (FPH; Suíça), a “Plataforma” foi formada em dezembro/93, por personalidades de diferentes nacionalidades. Considerando as diversidades das culturas e das sociedades, apresenta princípios comuns e estratégias conjuntas de ação que permitirão alcançar, até o ano 2010, um novo equilíbrio entre os seres humanos e o planeta.


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crise moral e espiritual, resultante dos modelos atuais de desenvolvimento científico-tecnológico e da generalização do reino da lógica do mercado que reduz as coisas e os seres a seu valor monetário. A chamada modernidade, ou seja, o modelo ocidental de sociedade e de desenvolvimento econômico difundido por todo o mundo, longe de produzir a paz, a segurança, a felicidade e a liberdade de todos os seres humanos, tem produzido a miséria e opressão para grande parte da humanidade e para os demais seres que povoam o planeta. A lógica do atual modelo de desenvolvimento econômico é a de que a plenitude do homem e de suas diferentes dimensões humanas devem ser reduzidas ao campo econômico. Nesse sentido, a totalidade humana foi substituída pela representação de um “homem econômico”, que se move pelo princípio do prazer e do desprazer. Sendo cada vez menor a diferença entre o destino econômico e o homem mesmo, “cada qual vale o que ganha, cada qual ganha o que vale [...] os indivíduos valorizam a si mesmos de acordo com seu valor de mercado e aprendem o que são através do que os acontece na economia capitalista” (Horkheimer y Adorno, 1994, p.253). Na Fábula das abelhas, editada pela primeira vez em 1729, Mandevile já sustentava que a prosperidade pública tem sua origem no desenvolvimento dos vícios privados. Todas “aquelas paixões das quais todos dizemos nos envergonhar são, precisamente, as que constituem o suporte de uma sociedade próspera” (1982, p. 22). O cimento da sociedade não são as qualidades amistosas, os afetos simpáticos e tampouco a abnegação, pois o que é considerado como perfeitamente bom tem sido prejudicial para o indivíduo e para a sociedade. O que nos faz avançar e ser sociáveis é exatamente o que chamamos de “mal”, seja moral ou natural: a avareza, a inveja, a ambição, a fome, a sede...


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[As] necessidades, os vícios e as imperfeições do homem, junto com as diversas inclemências do ar e de outros elementos, são o que contém as sementes da arte, da industria e do trabalho; são o calor e o frio extremo, a inconstância e o rigor das estações [...] que incitam nossa capacidade de invenção, para tratarmos de evitar os danos que nos produzem ou a corrigir sua malignidade e converter suas diversas forças em proveito nosso. (Mandevile, 1982, p. 246)

Para Mandeville, o homem deseja o bem para si mesmo; até mesmo a piedade e a caridade, em última instância, são virtudes, cujo objetivo é a satisfação do “eu”. O que é comum a todos os homens é que todos estão constituídos das mesmas paixões. O que os diferencia, ainda que tenham a mesma estrutura, são as paixões manifestas de diferentes maneiras, com diferentes intensidades. Se o homem não apresenta o sentimento de cobiça, por exemplo, é porque ela não está ativada. O que provém do homem é mal e são exatamente as más paixões que impulsionam o desenvolvimento da sociedade. A virtude privada é pura hipocrisia. No entanto, por ser impossível todos os membros de uma sociedade viverem desfrutando dos prazeres e de todas as comodidades, nem todo mundo pode desenvolver infinitamente seus “apetites”, nem todas as pessoas podem permitir o despertar de seus sonhos. Para que os prazeres possam existir para uma parte das pessoas, é necessário que os vícios privados sejam bem-manejados por um hábil político, de maneira que uma multidão de pobres trabalhadores se habitue a trabalhar não só para si mesmos, mas também para os demais, gerando benefícios públicos para a sociedade. Nesse sentido, os melhores homens para garantir a abundância das provisões serão aqueles “fortes e robustos que nunca tenham conhecido as comodidades, nem sabem o que é a ociosidade” (ibid, p. 189).


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Dada a perspectiva de um desenvolvimento (des)humano, a Riqueza das nações, de Adam Smith (1958), publicada no último terço do século XVIII, ainda conserva sua atualidade. O homem político é aquele que se comporta racionalmente tentando satisfazer suas necessidades e desejos – a garantia de que o sistema econômico pode constituir-se como uma rede de inter-relações de diferentes produtores e consumidores –, o que nos leva a uma sociedade opulenta. A construção da sociabilidade do homem seguiria sua natureza egoísta; o enriquecimento material é a medida do êxito humano; o campo de realização da liberdade humana é o campo do intercâmbio, do comércio, ou seja, do mercado. O homem racional é o homem econômico – indivíduo abstrato que desenvolve suas potencialidades por meio da maximização de sua utilidade e da minimização de sua não-utilidade. Em outras palavras, as pessoas não são compreendidas como produto das relações sociais, mas como sujeitos individuais; a liberdade é, então, concebida como liberdade individual de manifestação e de realização de seus desejos. Para isto, é preciso que a “livre vontade” funcione ordenadamente, ou seja, de acordo com as leis da sociedade de mercado.4

4

Sobre a crítica da economia de mercado e a mudança histórica da estrutura de pensamento econômico, destacamos o trabalho de Bilbao (1996, p. 73-87), o qual enfatiza as diferentes concepções de indivíduo e de sociedade. O autor resgata o pensamento de Aristóteles a respeito de que a aquisição ilimitada de bens representa que o objetivo final do homem já não é uma vida virtuosa, mas o aumento ilimitado da riqueza. As “profecias” de Aristóteles (em La política) sobre a sociedade de mercado também são analisadas por Polanyi em A Grande Transformação (1989).


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O homem econômico é uma representação de um homem essencialmente egoísta, movido pela ambição. Com a redução dos desejos humanos ao desejo de consumo, a paixão predominante é a da posse de bens materiais e, quanto mais se consegue explorar o trabalho alheio, maior é a quantidade de riquezas acumuladas. Seguindo essa lógica, a igualdade entre os indivíduos não significa igualdade de condições materiais, pois, assim como os homens não são concebidos como iguais em talentos e capacidades 5, tampouco podem ser iguais em riquezas. Se as pessoas não são individualmente iguais, conseqüentemente, não podem ser socialmente iguais. Ao contrário, a igualdade social é nociva, pois produz uma uniformização dos indivíduos, significando um ataque à individualidade. Cada indivíduo, trabalhando livremente, é capaz de buscar a realização de seus próprios interesses e, por conseguinte, de toda a sociedade. Por último, a democracia é necessária para garantir o individualismo, a propriedade, a liberdade e a igualdade (bandeira de luta da burguesia revolucionária). De acordo com as idéias liberais, para que o mercado se constitua como centro da sociedade, sustenta-se que o homem e a natureza devem ser “submetidos à oferta e à demanda e tratados como mercadorias, como bens produzidos para a venda” (Polanyi, 1989, p. 216). Em uma econo5

Ao analisar a noção de aptidão natural como um dos elementos do sistema ideológico da Revolução Francesa, Bisseret (1979) constata que sua importância passa a ser destacada a partir do século XVIII, articulando-se com as noções de mérito, competência e responsabilidade individual. A partir da metade do século XIX, a aptidão é compreendida como uma característica hereditária e, portanto, justificadora das desigualdades sociais, (ibid, p. 30-67).


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mia de mercado6, a qual só pode funcionar em uma sociedade de mercado, “no lugar da economia se ver marcada pelas relações sociais, são as relações sociais que se vêem enclausuradas no interior do sistema econômico” (ibid, p. 105). Se o mercado é um instrumento insubstituível para articular os agentes sociais, que oferecem e trocam suas diferentes capacidades para promover a satisfação das distintas necessidades e desejos, hoje – de acordo com a mitologia econômica da moda –, o mercado adquire um fim em si mesmo, ficando a dinâmica da política e da sociedade submetidas a ele. Isso não significa que a economia seja autônoma por si mesma: ela necessita do apoio da educação, da cultura e da política para moldar os comportamentos do “homem econômico” às necessidades do mercado ao qual os indivíduos devem apresentar-se e comportar-se como vendedores de sua força de trabalho. Mas não são as necessidades insatisfeitas as que definem a demanda mercantil e sim aquelas que têm respaldo monetário. Se de um lado a economia teria de preocupar-se com o bem-estar das pessoas, de ou6

Polanyi define a economia de mercado como “um sistema econômico regido, regulado e orientado pelos mercados, no qual a tarefa de assegurar a ordem da produção e da distribuição de bens é confiada a este mecanismo auto-regulador”. Compreendendo que a marca central do intercâmbio, como intercâmbio mercantil, é a auto-regulação, explica que essa “implica que toda a produção está destinada à venda no mercado e que todas as rendas provinham dela” (Polanyi, 1989, p. 122). Em um artigo sobre a obra de Karl Polanyi, Carlos Prieto (1996, p. 23-34) destaca que, nos anos 40 – anos do keynesianismo –, quando surgiam duas obras de dois autores do pensamento liberal radical (O caminho da servidão, de Hayek, e Onipotência governamental, de Mises), Polanyi já se apresentava como um crítico radical da sociedade de mercado. Para a compreensão do conteúdo do pensamento socioeconômico de Polanyi sobre a economia de mercado, Prieto resgata contribuições de A grande transformação (publicada em 1944) e O sustento do homem (obra póstuma organizada por W. Pearson e publicada em 1977).


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tro “o sistema já não se expande para servir às necessidades de consumo das pessoas; são as pessoas que consomem para servir às necessidades de crescimento do sistema” (MaxNeef, 1986, p. 153). Em síntese, em vez de indagar o que é o homem, trata-se de indagar quais são as faculdades humanas tidas como favoráveis e que, portanto, devem ser desenvolvidas para pôr em marcha as relações capitalistas de produção. Ao abstrair a subjetividade e reduzir as representações dos homens aos objetos, para a economia, o homem existe como parte do sistema e ele só se reconhece dessa forma. Sendo o homem definido em relação ao sistema e não em relação a si mesmo, “a economia clássica não parte do “homem econômico” mas do sistema; e em beneficio do próprio sistema postula o “homem econômico” como elemento a ser definido pela própria instituição e pelo próprio funcionamento.” (Kosik, 1995, p. 96). Como sintetiza Bianchetti (1997, p. 45), de frente ao feudalismo, o pensamento liberal representa uma ruptura com a ordem medieval, apresentando-se como um modelo de sociedade fundado em três aspectos que se articulam: “como concepção de mundo ou filosofia centrada no indivíduo; como teoria política que se preocupa com as origens e a natureza do poder, e como teoria econômica organizada sobre as leis do mercado, e que fundamenta as relações de produção capitalista”. As tendências conservadoras, moderadas e democráticas que assume o liberalismo manifestam a hegemonia de um determinado setor da burguesia em cada momento histórico. Para as primeiras: As desigualdades sociais são equivalentes às desigualdades do mundo natural (que por outro lado garantem seu equilíbrio) e qualquer tentativa para modificá-las vai contra a natureza.


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[...] As tendências moderadas representam o pensamento liberal que, diante das pressões derivadas do conflito social buscam manter o essencial do sistema capitalista, cedendo naqueles aspectos que não põem em risco os valores da concepção global. As tendências mais democráticas que compartilham uma visão social das relações humanas, orientam sua perspectiva na busca de atenuar os efeitos sociais que derivam do modo de produção capitalista, avançando na aceitação de certos direitos sociais que limitam alguns direitos individuais. (ibid, p. 45-46)

A concepção liberal conservadora de que a liberdade de mercado, baseada nas leis das ciências da natureza, é um princípio que conduz à prosperidade, é resgatada na tese de Friederich Hayek (1987). Como forma de combater as teses keynesianas e o ideário do Estado do Bem-Estar e, sobretudo, os direitos sociais adquiridos pelos trabalhadores, é na década de 40 que o principal teórico do neoliberalismo retoma as leis puras do mercado, sendo suas idéias, posteriormente, complementadas por Friedman (1980). A partir do pressuposto de que o indivíduo é o juiz soberano de seus próprios objetivos e de que as políticas de igualdade não conduzem à libertação do homem, mas à sua servidão, o processo que exclui uma parcela da sociedade das benesses do capital é concebido de forma natural, como conseqüência da incapacidade de alguns de escolher as condições adequadas para competir no mercado. O bem-estar das pessoas vai depender de suas habilidades para penetrar no mundo do intercâmbio das mercadorias, no mundo do consumo. Nessa perspectiva, as políticas sociais representam um equívoco a respeito da verdadeira justiça, contribuindo para não fortalecer as atitudes que promovem a livre economia e, portanto, a liberdade. No contexto da crise do capitalismo avançado e do socialismo real, a partir da década de 70, tem início a adoção das teses neoliberais, em que já não cabe ao Estado


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uma ação protecionista para garantir as condições de vida da população, devendo ficar a cargo de cada cidadão a responsabilidade sobre seu destino. Como resultado da crise do fordismo e das contradições promovidas pelo Estado do BemEstar entre a apropriação e a distribuição dos bens socialmente produzidos, a resposta neoliberal à crise do paradigma keynesiano é acentuar a acumulação do capital, subordinando a distribuição às leis do mercado. Se, num primeiro momento, o liberalismo significou o confronto da concepção burguesa de mundo com a concepção de mundo feudal, num segundo momento, significou uma crítica às estruturas burocráticas que vinham provocando uma crise de eficiência econômica, tendo representado, também, a confrontação com grupos sociais que concebiam a dinâmica social como fruto de mudanças políticas e econômicas produzidas no interior da sociedade, sem advir de um evolução natural. Sem dúvida, “a história do desenvolvimento do capitalismo é a história das idéias liberais, mas também das idéias socialistas” (Bianchetti, 1997, p. 64). A crise da idéia da ação reguladora do Estado (como forma de impedir as crises cíclicas do capitalismo) e a ascensão dos postulados neoliberais contra a participação do Estado na vida econômica manifestam-se mais fortemente com o fenômeno do estancamento econômico dos países centrais e com a queda do “socialismo real”, que deixa de representar uma ameaça ao sistema capitalista. Tendo como suposto ser a liberdade econômica um requisito da liberdade política (e que, portanto, é necessário libertar o mercado das amarras do poder estatal), o neoliberalismo pretende converter-se em fundamento de uma nova ordem internacional. Sob o pressuposto da descentralização e da autonomia, o desmonte sem precedentes das instituições públicas tem-se materializado na mercantilização


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da educação, da saúde e de outros direitos anteriormente conquistados pelos trabalhadores. Para a ideologia neoliberal, não há outra saída para a humanidade a não ser obedecer à lógica de um mercado selvagem, já que ele mesmo é a lei social soberana na qual se fundamentam as relações sociais. A globalização da economia vem permitindo a produção e a distribuição de mercadorias, sem fronteiras, ameaçando a soberania dos estados nacionais: os interesses privados sobrepõem-se aos interesses públicos e populares, favorecendo o desabamento do Estado de Bem-Estar e promovendo um “Estado Mínimo” – o que para os países periféricos vem representando levar até as últimas conseqüências o processo de exclusão e marginalização dos setores populares quanto ao direito ao trabalho, à saúde, educação e moradia. Com a perda, por parte dos Estados-Nações, do controle monetário de suas economias e com os fundos públicos sendo reduzidos, as estratégias para o capital se recompor produzem a perda destas conquistas, de forma paulatina e crescente, a partir dos cortes salariais e do chamado enxugamento dos serviços sociais, da privatização das empresas estatais, das demissões em massa, etc., promovendo a precarização do trabalho, aumentando o desemprego e a pobreza. Não é uma novidade o fato de ser nos países “em desenvolvimento” que o povo tem sofrido mais intensamente as contradições entre o capital e o trabalho. Quanto mais pagam os países do Terceiro Mundo a seus credores, maior é o montante da dívida externa e, portanto, maior é o controle do Norte sobre o destino econômico do Sul. 7 E, como 7

Entre 1985 e 1992, o total de pagamentos da dívida externa dos países subdesenvolvidos foi de U$1,245 bilhão. Mesmo tendo pago esta quantia, neste mesmo período, a dívida cresceu de U$991 bilhões para U$1,510 trilhão, ou seja, aumentou 52.4% (Dados extraídos do Informe do Banco Mundial, “Debt Tables”, 1992-93, Washington D.C.)


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resposta aos famintos do Sul, que buscam asilo econômico em terras muito distantes, os países do Primeiro Mundo criaram verdadeiras cortinas de ferro: sabendo que o desemprego é estrutural e que, como uma praga, expande-se ao redor do planeta, restringem a entrada de estrangeiros como forma de defender seus postos de trabalho. Em nome da “eficiência econômica”, os desempregados têm vivido a angústia de serem considerados descartáveis. Vivemos momentos de mudanças profundas e, no entanto, para o mercado capitalista, a crise é sempre uma crise da manutenção das taxas de lucro. No final de século XX, o que se evidencia é a crise da forma de regulação social, até então sustentada pela teoria keynesiana, de intervenção planejada do Estado para regular o ciclo econômico, tendo em vista a garantia das condições gerais para o funcionamento da produção capitalista e evitar a desordem produzida pela fúria do mercado. A globalização do mercado, a reestruturação produtiva e a flexibilização das relações de trabalho não representam mais que uma nova modalidade para a busca da recomposição do capital à escala global. Na verdade, a perspectiva conservadora do liberalismo não é reduzir o Estado em todas as suas esferas, mas diminuir ou eliminar sua esfera pública, reservando e transferindo os fundos públicos para a ampliação crescente do capital. Comparando as atuais tendências do sistema capitalista com a época de Mandeville, Mészaros diz que o objetivo fundamental do Estado, no interior de cada país, era o de utilizar seu poder não só para assegurar a propriedade como também para que os pobres fossem reservados estritamente para o trabalho. Em nível internacional, seu papel era o de garantir as forças do capital na expansão colonial a partir da riqueza crescente da nação. Quanto à propriedade e aos pobres, mesmo que hoje os objetivos mantenham-se e de-


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vam permanecer “como propósitos permanentes do sistema durante o tempo em que o modo de produção capitalista e seu Estado sobrevivam”, a diferença radical consiste em que o estado capitalista precisa agora assumir um papel intervencionista direto em todos os planos da vida social, promovendo e dirigindo ativamente o consumo destrutivo e a dissipação da riqueza social em escala monumental. Pois, sem tal intervenção direta no processo metabólico social, não mais em situações de emergência, mas em base contínua, o extremo desperdício do sistema capitalista contemporâneo não poderia manter sua existência. (Mészaros, 1996, p. 147).

Ao Estado capitalista, reduzido a um Estado mínimo, cabe criar as condições para o livre funcionamento do mercado, para o desenvolvimento de um homem econômico sem limites, propagando a idéia de que o ajuste estrutural nos países do Sul é a única solução para o mundo globalizado.

Era do desenvolvimento e era do produtivismo Caminhando em direção a um produtivismo exacerbado, rumo a um pseudoprogresso, a ciência e a tecnologia têm acentuado o controle e a manipulação das mentes, estimulando sobremaneira atitudes depredatórias da espécie humana e do planeta, gerando a pobreza e o desemprego. A ciência, de uma maneira geral, tem cumprido o papel de promover uma racionalidade tecnológica com um fim imediato: a eficiência da produção. Sua maior meta parece ser a produção da mais valia, para reproduzir e perpetuar o sistema capitalista. O progresso tecnológico torna-se irracional


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porque estimula a apropriação do trabalho excedente e porque entra em contradição com a conservação e afirmação da vida, do homem e da natureza. Tendo como suporte uma “ideologia tecnocrática”, o avanço das forças produtivas pode ser caracterizado: a) pela “autonomia tecnológica”, cujo progresso é independente do contexto histórico-social em que se produz; b) pela idéia do “fetichismo tecnológico”, pelo qual o domínio do homem sobre a natureza eleva necessariamente o homem, e c) pela “identificação de tecnologia e domínio”, em que a dominação está nas relações técnicas e não nas relações sociais de produção (Sánchez, Vázquez, 1987). Na sociedade moderna, a razão torna-se irracional; o racionalismo, que se pretendia universal, “cega os olhos e ata as mãos [e] a mesma razão que funcionava como razão revolucionária, libertadora, no século XVIII, se transforma depois, encarnada na ciência, como logos da dominação” (ibid, p. 134), o que significa que a questão da emancipação humana não se reduz à aplicação científica da tecnologia, mas é um problema político “que requer uma ação política transformadora das relações sociais que determinam a orientação, o ritmo e o uso da tecnologia” (ibid, p. 101). A dinâmica de crescimento indefinido do capitalismo tem como suposto um antropocentrismo extremado, destruidor da natureza e do homem (que, não esqueçamos, é parte da natureza). Ao invés de concentrar o desenvolvimento econômico nas múltiplas dimensões do homem e no autodesenvolvimento dos povos e das nações, a globalização tem como eixo o avanço do capital em busca de mercados para além das fronteiras geopolíticas. Abandonando a busca de uma solidariedade dos seres humanos, entre si e com a natureza, o homem torna-se estranho a si mesmo, a tal ponto que


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criou a ilusão de que a terra lhe pertence. Com isto, criou também um paradoxo. Todas as demais espécies de vida, vegetais ou animais, ao nascer, conseguem obter da terra seus meios de subsistência. A espécie humana, ao contrário, encontra um planeta totalmente loteado, donde cada palmo de terra já pertence a alguém. [...] O ser humano parece não se dar conta deste absurdo. Alguns poucos prosseguem na tarefa insana de acumular uma quantidade de riqueza que jamais serão capazes de utilizar (Schlesinger, 1994, p. 30).

A irracionalidade do modelo de desenvolvimento radica-se no desenvolvimento do homem como centro do universo; reduzido à dimensão de homem econômico, a natureza externa apresenta-se como um mero recurso para a produção de valores de troca. Dessa perspectiva, a relação entre o homem e a natureza não se caracteriza pela integração dos diferentes elementos constituintes do universo, mas assume um caráter utilitarista, manifesto na exploração sem limites da biosfera. Sob a consigna do produtivismo, aproximamo-nos dos limites da Terra e da possibilidade de sobrevivência do homem: o envenenamento de rios e mares, a contaminação do ar, a deteriorização da camada de ozônio, a extinção de várias espécies da fauna e da flora, a perda de solos férteis, a alteração das condições climáticas, provocando efeitos catastróficos, sem falar do grande contingente de seres humanos do planeta que continuam vivendo em condições subumanas. Como disse Fidel Castro na Cimeira sobre Meio Ambiente, celebrada no Rio de Janeiro, em 1992, os estilos de vida e hábitos de consumo impostos pelos países do Norte fizeram com que “uma importante espécie biológica [esteja] em risco de desaparecer numa rápida e progressiva liquidação de suas condições naturais de vida: o ho-


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mem”. Nesse sentido, “pague-se a dívida ecológica e não a dívida externa, desapareça a fome e não o homem” (Castro, 1992). Na verdade, temos boas razões para crer que, neste final de século, estejamos vivendo um momento histórico crucial, tanto para a sobrevivência da nossa espécie como para a preservação de nossa casa comum: o planeta Terra. Entre 1950 e 1990, enquanto a população mundial duplicou, passando de 2.545 a 5.292 milhões de habitantes, a produção mundial se quintuplicou; em contrapartida, nesse mesmo período, a Terra perdeu quase um quinto da superfície de suas terras cultiváveis, um quinto de seus bosques e dezenas de milhares de espécies vegetais e animais (Riechmann, 1996, p. 37). Mas seria um equívoco culpar o homem comum pela devastação das florestas e pela degradação do espaço ambiental, quando sabemos que apenas 20% da população mundial consomem 80% dos recursos naturais, levando a grande maioria da população ao abismo 8.

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Considerando que, em relação ao grau de utilização de recursos naturais, falar de cem milhões de norte-americanos não é o mesmo que falar de cem milhões de hindus, Max-Neff crê que se deveria desenvolver um novo quantificador em demografia, tendo como medida o “ecoson” (pessoa ecológica), que, além de encerrar muitos aspectos subjetivos, estabeleceria a drenagem de recursos, diretos e indiretos, necessários a que uma pessoa possa conseguir uma qualidade de vida aceitável. Ele nos permitiria uma medição concreta dos “excedentes de desperdício”, considerados como a quantidade de desperdício resultante de níveis de consumo mais altos do que requer uma população em termos de “ecosones”. “Não seria surpreendente, por exemplo, descobrir que um habitante dos Estados Unidos equivale a cinqüenta “ecosones” e que só um habitante da Índia ou de Togo não consegue ser mais que uma fração de ‘ecoson’” (Max-Neef, 1986, p. 58-62).


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Na perspectiva da economia do desperdício, o termo “desenvolvimento” está contaminado pela idéia de que há somente um caminho para a promoção do bem-estar do ser humano. Para sair da condição de “subdesenvolvimento”, os povos e as nações que não alcançaram um sistema científico e técnico capaz de promover uma maior capacidade de produção de bens econômicos e, portanto, um maior bem-estar material, têm de abandonar suas formas tradicionais de subsistência, impulsionando as transformações sociais e culturais necessárias para inserir-se nos mercados nacionais e internacionais. Enquanto a sociedade desliza para o caos, o modelo de desenvolvimento, baseado no desenvolvimento do homem econômico, segue sendo apregoado como a única saída para os problemas da humanidade, apresentando-se, agora, sob novas versões. Para justificar as novas políticas econômicas que visam ao ajuste estrutural dos países periféricos, nos últimos anos, o termo “desenvolvimento” foi acompanhado de adjetivos que tentam salvaguardá-lo como mito. Conforme sintetiza Antonio Esteban: A primeira [maneira de qualificá-lo é como] “desenvolvimento sustentável”, que tenta proteger o desenvolvimento dos efeitos da crise ecológica que ele mesmo tem provocado, e que continuará agravando enquanto continue em vigor. A segunda [como] “desenvolvimento humano”, que persiste no empenho de classificar toda a população mundial em uma nova lista unidirecional e fechada, sob critérios de evolução universal dos quais ninguém pode escapar: capacidade de produção econômica, matizada pela alfabetização e pela esperança de vida. (Esteban, 1995, p. 98)

O crescimento econômico é bom para a humanidade, mas confundimos justiça social com crescimento. Na verdade, o livre mercado e a concorrência estão restringidos às


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empresas transnacionais, aos grandes e poderosos9. A própria realidade já demonstrou que a idéia de desenvolvimento baseado na aplicação do modelo de progresso científico e tecnológico ocidental não nos levou ao reino da abundância e da felicidade universal. Não sendo mais do que uma construção ideológica, esse tipo de desenvolvimento é inalcançável para a maioria dos povos do mundo, “precisamente porque não é mais do que um mito, carente de existência real” (Esteban, 1995, p. 103). Sobretudo é perverso e desrespeitoso. Frente aos países que alcançaram o avanço científico e tecnológico, as culturas locais se apresentam como retrógradas, carentes de racionalidade econômica e, portanto, necessitam ser submetidas a mecanismos de ajuste. Ao buscar implementar o “progresso” de toda a humanidade a partir de relações econômicas uniformes, o atual modelo de desenvolvimento nega a diversidade cultural e submete os povos e as comunidades locais10 a um processo de homogeneização dos estilos de vida e de sobrevivência. Ao invés de promover o bem-estar, produziu o aumento do mal-estar para a maioria da população do planeta, aumentando também as for-

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Schlesinger analisa que, ao contrário da livre concorrência e de reger a lei da oferta e da procura, na verdade, “no mercado internacional, somente 7% dos bens comercializados mundialmente estão de fato sujeitos à dita lei. Os 93% restantes estão nas mãos dos cartéis, monopólios, oligopólios ou correspondem a intercâmbios entre empresas de um mesmo conglomerado” (1996, p. 17).

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Além de um espaço delimitado que pode ser identificado como território ou microrregião, o local não se resume a ele. Referimo-nos ao local também como um espaço abstrato, onde se desenvolvem determinadas relações sociais e que, portanto, conserva um movimento de interação e articulação entre os atores sociais, a partir de confrontos e alianças em torno de seus interesses.


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mas de controle, de dominação política e de dependência econômica dos países considerados “subdesenvolvidos” e “em vias de desenvolvimento”. Numa perspectiva diversa, baseada em outro modelo de desenvolvimento e que, inclusive, questiona essa nomenclatura, Villasante nos diz: Melhor que desenvolvimento é o reequilibro, porque, no fundo, não se trata de crescer ou decrescer globalmente, mas de precisar em que setores da economia cabe avançar (tecnologias brandas), e nos quais se deve reconverter (as pesadas). O sustentável (social) parece também mais interessante que o sustentável (técnico)... Um conceito como “reequilibro sustentável” trata de precisar isso. (1996a, p. 6)

É necessário rechaçar os conceitos de desenvolvimento/subdesenvolvimento, países avançados/países atrasados, mais favorecidos/menos favorecidos, “e quaisquer outros termos que pretendam hierarquizar os povos do mundo, tão só em razão de sua suposta riqueza, esquecendo outras expressões da riqueza (cultural, social, natural, biológica, etc.) de transcendência superior à monetária” (ibid, p. 115-6). Mais que rechaçar os conteúdos do atual modelo de desenvolvimento e buscar novos valores, trata-se de “pôr término à era do desenvolvimento” (ibid, p. 114). A política de “crescer para redistribuir” chegou a seu limite, não só porque não conseguiu diminuir as desigualdades sociais, mas também pelo caráter destrutivo do metabolismo da humanidade com a natureza. Como Riechmann (1996), cremos que a origem da crise ecológica está na submissão da natureza aos imperativos da reprodução capitalista e que, portanto, a luta por uma nova relação entre o homem e a natureza é necessariamente uma luta anticapitalista, requerendo a reestruturação


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da totalidade da vida social, política e econômica. Seria uma ingenuidade pensar que se trata simplesmente de soluções tecnocratas para administrar a crise global ou de uma planificação do desenvolvimento para aperfeiçoar o sistema, como se fosse possível conceber um capitalismo ecológico. Nesse processo, também “é necessário o advento de uma espécie de humanismo ecológico capaz de substituir ou, ao menos, de corrigir o antropocentrismo que prevalece entre nós” (MaxNeef, 1986, p. 52). Trata-se de compreender que, se “o papel dos humanos é estabelecer os valores, o papel da natureza é o de estabelecer as regras. A questão é passar da mera exploração da natureza e dos mais pobres do mundo, a uma integração e interdependência criativas e orgânicas” (ibid, p. 63)11. Diferentemente do atual modelo de desenvolvimento econômico, o postulado básico do Desenvolvimento à Escala Humana (Max-Neef, 1993) refere-se às pessoas e não aos objetos. Os pilares que o sustentam são a satisfação das necessidades humanas fundamentais, a autodependência e a articulação orgânica dos seres humanos com a natureza. 11

Sem acreditar em nenhum tipo de solução permanente, a sociedade concebida por Max-Neff é inspirada em uma filosofia política que a identifica como “eco-anarquismo-humanismo”. O autor explica que é ecológica porque crê que “os seres humanos, para se realizarem, devem manter uma relação de interdependência e não de concorrência com a natureza e o resto da humanidade [...] É uma filosofia humanista porque sustenta que os humanos têm consciência de si mesmo e que realizam suas relações com a natureza e com outros seres humanos, por meio da cultura. [...] Finalmente é anarquista, não no sentido vulgar, mas na medida em que se baseia no conceito de que toda forma de concentração de poder (e todos os sistemas atuais nos levam a ele) aliena as pessoas em seu meio natural e humano, e limita ou anula sua participação direta e o sentido de responsabilidade, restringindo sua imaginação, informação, comunicação, capacidade crítica e criatividade” (1986, p. 63-4).


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Sem dúvida, na busca desse novo tipo de desenvolvimento, temos de diferenciar “necessidades” de “satisfatores dessas necessidades”, pois “tem-se acreditado, tradicionalmente, que as necessidades humanas tendem a ser infinitas; que estão sempre mudando; que variam de um meio a outro, e que são diferentes em cada período histórico” (ibid, p. 36) 12. Combinando categorias existenciais e axiológicas, a classificação inclui por uma parte as necessidades de Ser, Ter, Fazer e Estar e, pela outra, as necessidades de Subsistência, Proteção, Afeto, Entendimento, Participação, Ócio, Criação, Identidade e Liberdade” (ibid, p. 37). Em tal sentido, a moradia, a alimentação e o vestuário não devem ser compreendidos como necessidades, mas como “satisfatores” da necessidade fundamental de “Permanência”. A educação, a pesquisa e a meditação são “satisfatores” da necessidade do “Entendimento”; os sistemas de saúde são “satisfatores” da necessidade de “Proteção”, etc. Max-Neef também nos ajuda a avançar, a pensar novos paradigmas de desenvolvimento, quando nos diz que todas as necessidades humanas se relacionam e interagem. À exceção da necessidade de subsistir (estar vivo), não existe hierarquia dentro do sistema: as necessidades se complementam e se entrelaçam. Não existindo uma relação fixa e tampouco uma correspondência biunívoca entre necessidades e “satisfatores”, uma determinada necessidade pode requisitar diversos “satisfatores” para ser realizada, da mesma maneira que um desses pode contribuir simultaneamente à satisfação de várias daquelas. Nessa perspectiva e considerando que não ter ou perder um posto de trabalho 12

A palavra satisfatores não existe no idioma português (e tampouco no castelhano). Na falta de outra expressão, a utilizamos no sentido de “algo que satisfaz” uma necessidade.


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“pode provocar um lento e agonizante processo de morte” (Kirsh apud Max-Neef, 1986, p. 240), podemos inferir que, frente à crise do trabalho assalariado, o “satisfator” geração de trabalho e renda pode corresponder à satisfação de algumas necessidades dos setores populares, entre elas, a de matar a fome e ainda desfrutar de uma atividade laboriosa. Do mesmo modo, a necessidade de proteção, por exemplo, pode requisitar diversos “satisfatores” como moradia, saúde, ter amizades, participar da vida comunitária etc. As necessidades humanas podem satisfazer-se, pelo menos, em três contextos: em relação à própria pessoa, ao grupo social e ao meio ambiente, mas “a qualidade e intensidade tanto dos níveis como dos contextos dependerá do tempo, lugar e circunstâncias” (ibid). Nesse sentido, acreditamos ser necessário repensar o conceito de pobreza, em geral compreendido em referência à situação das pessoas que se situam abaixo de um determinado nível de renda. Se, além do fator econômico, adicionamos outros fatores, em vez de “pobreza” teremos de falar de “pobrezas humanas” (pobrezas de subsistência, de afeto, proteção etc.) e considerar que cada um desses tipos de pobreza gera patologias como medo, ansiedade, angústia, frustração etc., que se manifestam não apenas no plano individual, mas também no plano coletivo. Reivindicando a multidimensionalidade humana, esse enfoque, ao falar de outro tipo de desenvolvimento, tem como horizonte ir além do velho paradigma do “homem econômico”, em que a satisfação das necessidades humanas se reduzem ao acesso a bens e serviços, como se a vida estivesse a serviço dos artefatos e objetos. As necessidades não podem ser consideradas somente como “algo que falta”, aquilo de que o homem carece. Para superar a redução do ser humano à categoria de uma existência fechada, é preciso


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considerar outro aspecto da necessidade: além de carência, a necessidade é potência, pois, por exemplo, “a necessidade de participar é potencial de participação, tal como a necessidade de afeto é potencial de afeto” (ibid, 1993, p. 46). Compreendendo as necessidades como carência e, às vezes, como potência, tornar-se-ia impróprio falar de necessidades que “satisfazem” ou que “não satisfazem”, pois seu movimento incessante revela seu caráter dialético, e é “daí que, quem sabe, seja mais apropriado falar de viver e realizar as necessidades e de vivê-las e realizá-las de maneira contínua e renovada” (ibid). Mas, embora possam ser mudados os meios utilizados para sua satisfação, as necessidades humanas são finitas, poucas e classificáveis, sendo as mesmas em todas as culturas e em todos os períodos históricos13. A eleição da quantidade e a qualidade dos “satisfatores” é um dos aspectos definidores de uma cultura, pois o que está culturalmente determinado não são as necessidades humanas fundamentais e, sim, os “satisfatores” dessas necessidades. A mudança cultural é – entre outras cosas – conseqüência de abandonar “satisfatores” tradicionais tomando-os por outros, novos e diferentes” (ibid, p. 38).

Contudo, além de fazer a crítica a um projeto de desenvolvimento baseado na sociedade de mercado, é preciso buscar as raízes de irracionalidade das relações entre os homens e entre o homem e a natureza, indicando também a necessidade de reverter o caráter alienado que vem marcando o trabalho no modo capitalista de produção. 13

O autor diz ainda que “é provável que no futuro a necessidade de transcendência, que não incluímos no nosso sistema por não considerá-la tão universal, chegue a ser tanto como as outras. Parece legítimo, então, supor que as necessidades humanas mudem com a aceleração que corresponde à evolução da espécie humana. Ou seja, a um ritmo sumamente lento” (Max-Neff, 1993, p. 50).


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O tempo livre que o trabalho assalariado escravizou Na atual fase de reordenamento geopolítico, conseqüente da crise do socialismo real, diz-se que vivemos o “fim das utopias”, que o marxismo perdeu sua capacidade de explicar a realidade. Também os neomarxistas afirmam ter o trabalho deixado de ocupar um lugar central nas relações sociais. A tese da “crise da sociedade do trabalho” e da não centralidade do trabalho procede de diferentes ordens de análise: do impacto da nova revolução tecnológica sobre os âmbitos econômico, político-social e cultural; do diagnóstico de um novo tecido social que foi produzido ao longo do desenvolvimento do capitalismo e, em um plano filosófico, do questionamento do trabalho como condição e como síntese da identidade humana (Habermas, 1982; Offe, 1984; Schaff, 1992). Offe (1984) considera que, de acordo com as tradições da sociologia clássica (Marx, Weber e Durkheim), a sociedade e sua dinâmica são constituídas como “sociedade do trabalho”. No entanto, acredita que, no atual contexto, a fábrica não seria mais o único centro das relações de dominação e tampouco o palco mais importante dos conflitos sociais: frente às transformações no mundo da produção, a posição que o trabalhador ocupa no processo produtivo não seria mais o princípio organizador das estruturas sociais e nem o centro dos conflitos de classe. A crise do trabalho fundar-se-ia na perda da qualidade subjetiva dos processos produtivos que, dada a sua profunda divisão, fragmentação e racionalidade, não representariam espaços de construção da auto-estima e de referências sociais e morais. É o próprio Offe quem argumenta que, com o desemprego estrutural e a produção de um maior tempo livre (resultados do desenvol-


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vimento científico-tecnológico), a lógica capitalista produziu novos critérios de racionalidade no metabolismo do homem com a natureza, descaracterizando as antigas atividades laborais. Mesmo para aqueles que estão ativamente engajados numa profissão, o trabalho perderia sua centralidade. Pôr no trabalho e na atividade remunerada o centro para a análise da estrutura e da dinâmica sociais seria uma posição conservadora. Se, em conformidade com a tradição clássica, a sociedade deveria ser analisada a partir da produção e das relações de propriedade, agora esses critérios nos indicariam muito pouco da complexidade da dinâmica social. Reconhecendo que o trabalho se desconfigurou e também se tornou subjetivamente periférico, pergunta o autor: “Não seria mais apropriado concluir que o trabalho teria se tornado “abstrato”, no sentido de considerá-lo tão-só como uma categoria da estatística social descritiva, e não mais como uma categoria analítica para a explicação de estruturas, conflitos e ações sociais?” (ibid, p. 20) Baseado na teoria da ação comunicativa de Habermas, Offe considera que, na atual fase de desenvolvimento do capitalismo, mesmo para os trabalhadores, a categoria trabalho perdeu o poder de explicar a vida social. A sociologia deve fundamentar-se em outras categorias como “modo de vida”, “espaço vital” e “cotidiano”. Isto porque considera o fato de que um trabalho é muito pouco informativo, pois que se descaracterizou ao longo do capitalismo, tornando-se subjetivamente periférico. Além disso, o desemprego, a relação perdida entre formação e profissão e a redução do tempo de trabalho no tempo da vida tornam, cada vez mais, o trabalho “um assunto como outros”, deixando de ser o ponto de referência para a construção da identidade. Para ele, seria inútil a tentativa de compreender a complexidade da vida a partir do trabalho como unidade subjetiva coerente, já que perdeu seu papel de centro de integração da personalidade.


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Nos debates sobre as conseqüências sociais da atual revolução industrial, Schaff (l992) considera o avanço das forças produtivas responsável pelas mudanças na base técnica da produção, na organização e distribuição do trabalho, acarretando o desemprego e outros tipos de relações que substituem o modelo clássico de trabalho assalariado. Já que o desenvolvimento das forças produtivas torna o trabalho humano supérfluo, defende a tese da inevitabilidade do desemprego estrutural ou desemprego tecnológico, acreditando que deter esse processo seria indesejável e inclusive prejudicial do ponto de vista social. Isto é assim porque a atual revolução industrial não é um desastre: pelo contrário, sempre e quando se satisfaçam certas condições, resultará vantajosa e abrirá as portas de um novo paraíso. É um desafio ao Jeová bíblico que condenou os seres humanos a ganhar o pão com o suor de seu rosto.” (Schaff, 1992, p. 21-22)

Para Schaff, a automatização e robotização permitiriam ao homem liberar sua atividade criativa para seu desenvolvimento pleno, para o qual são imprescindíveis medidas para repor ao antigo trabalho ocupações socialmente necessárias. Ainda que não garanta automaticamente o paraíso, haveria uma grande probabilidade de que a “sociedade informática” mudasse o “estilo de vida”, compreendido como o modo pelo qual o homem ocupa seu tempo entre trabalho e tempo livre, levando aos países industrializados “um bem-estar sem precedentes para o conjunto da população (inclusive para as pessoas afetadas pelo desemprego estrutural)” (1985, p. 175). Dado que o futuro não é determinado pela tecnologia, mas pelo homem mesmo, na busca de um sistema de valores, a opção por uma proporção sempre maior para o tempo livre constituir-se-ia como o fator determinante da transformação do estilo de vida.


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O impacto das novas tecnologias sobre o mundo da produção e do trabalho deve ser entendido como produto de relações sociais excludentes. Em vez da “harmonia” postulada pela ideologia liberal, o desenvolvimento sócioeconômico e o modelo de industrialização capitalista não são generalizáveis para todo o planeta: no fim do século XX, a industrialização é um luxo exclusivo de parcelas da população mundial, mas não beneficia a maioria de seus habitantes (ver Altvater, 1995). As novas tecnologias facilitam a vida cotidiana, porém não se pode esquecer que a implantação da nova base técnica da produção e as transformações surgidas não se fazem de uma forma linear e homogênea. Nos “países em desenvolvimento” convive-se, de um lado, com a automatização flexível e, do outro, com processos produtivos artesanais; sob o significado da fome e da miséria, vivemos um período de transição entre o estilo taylorista-fordista e as diretrizes da modernidade tecnológica do chamado Primeiro Mundo; sob a denominação de “flexibilização” das relações entre capital e trabalho, o que tem lugar é o acirramento da precariedade da forma de ser deste último, o que denuncia as relações assimétricas de poder entre as nações e entre os grupos sociais do planeta. Convivendo com tudo isso, verificamos ainda o fenômeno das pequeníssimas unidades produtivas como “resposta” dos setores populares à pobreza estrutural. É importante desmitificar e mediatizar o significado do avanço tecnológico, já que as novas tecnologias de produção e de gestão representam uma nova versão de controle sobre o trabalho alheio – agora de uma forma mais elegante e sutil. Embora favoreçam uma maior participação e o acesso do trabalhador a um saber mais amplo, a nova base técnica não terminou com a alienação do trabalho. Enquanto a


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tecnologia não abre as portas de um “novo paraíso” a todos os cidadãos, os processos produtivos tanto de bens materiais como de serviços têm lançado milhões de trabalhadores no fosso da exclusão social e, ao mesmo tempo, condenam milhões de crianças ao trabalho precoce. Tanto nos países do Norte como nos do Sul as transformações no mundo do trabalho têm sido tão profundas que se pode afirmar a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século que atingiu não só sua materialidade, mas teve profundas repercussões em sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou sua forma de ser. (Antunes, 1995, p. 15)

Mesmo não sendo nosso propósito analisar com profundidade as inovações tecnológicas, é necessário reconhecer que a microeletrônica, a automatização flexível e a robótica promoveram mudanças substanciais na organização e nas relações de trabalho. A chamada qualidade total e a gestão participativa são alguns dos novos paradigmas da fábrica moderna, em que a polivalência se torna um requisito básico de qualificação do trabalhador. Numa investigação encarregada pela Federação de Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas de Bolonha sobre os efeitos da informatização da produção e da introdução de novas tecnologias de gestão da força de trabalho, Rebecchi (1990) destaca serem o isolamento e a perda do significado de seu trabalho as principais razões para o desequilíbrio e a perturbação dos trabalhadores, inclusive daqueles considerados altamente capacitados. Mesmo considerando as transformações do estilo capitalista de produção, para os trabalhadores de “colarinho branco” e de “colarinho azul” e ainda para os “trabalhadores


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da rua”, é preciso questionar se o trabalho deixou de ser um elemento fundamental do modo de vida e do cotidiano dos homens14 . Conquanto o capitalismo o tenha transformado em mercadoria, tornando-o repetitivo e monótono para o trabalhador, qual significado resta para o trabalho? Com a crise do trabalho assalariado, muitas pessoas dispõem do sonhado tempo livre mas, ao contrário de significar a conquista da liberdade, o novo modo de vida vem se constituindo em tempo escravizado e/ou em tempo de busca de trabalho em forma de subemprego. Na verdade, neste contexto, garantir o direito ao trabalho é garantir o direito de tornar-se mercadoria. Como nos indica Frigotto, Uma sociologia do trabalho que atente para as relações sociais de produção marcadas pela exclusão social crescente, cujo resultado é não apenas o aumento do desemprego estrutural e subemprego, mas também de uma crescente concentração de capital nas mãos de poucos, deveria mostrar que, nesta circunstância, perversamente, o trabalhador luta para ser mercadoria, já que o fato de estar empregado (mesmo sob a forma de mercadoria) é menos dramático que o desemprego ou subemprego. (l996, p. 117-8)

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Embora fazendo referência a “cotidiano”, “cotidianidade” e “vida cotidiana” dos trabalhadores, sabemos que a utilização destes termos careceria de maior fundamentação teórica de nossa parte. No entanto, não nos referimos a eles como o conjunto de ações diárias que se caracterizam por sua trivialidade ou pela falta de reflexibilidade sobre o mundo da produção. Considerando o cotidiano como reflexo e ao mesmo tempo antecipação do movimento histórico, que, portanto, pode conter as sementes do devenir, nos referimos a ele de uma forma genérica, ou seja, ao ambiente imediato dos trabalhadores, nos quais criam-se seus projetos e seus mecanismos práticos para sua reprodução social. Para o estudo da temática, ver Heller (1991), Lefebvre (1984) e Kosik (1995).


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Embora o trabalho tenha mudado sua configuração, “não deve dar-se por suposto, como parece a muitas pessoas, que a natureza ou as condições de trabalho se transformaram completamente para uma parte substancial da população geral” (Bottomore, 1992, p. 120). Os progressos científicos e tecnológicos produziram duas categorias de trabalhadores: a) a dos cientistas e engenheiros – uma minoria de pessoas altamente qualificadas, que criam e mantêm os sistemas de informação e controle, e b) a dos usuários rotineiros de terminais informáticos – “os empregados em fábricas, caixas de supermercado [que] se ocupam de operações rotineiras mediadas por computadores, subordinados a estritos procedimentos de trabalho e [que] são, em efeito, escravos da máquina” (ibid). Sem esquecer da extensa classe dos trabalhadores urbanos e campesinos do Terceiro Mundo, Bottomore conclui que as sociedades atuais ainda têm uma evidente e marcada estrutura de classes e que a base classista do movimento socialista continua sendo um fator político importante, ainda que as conceitualizações das relações de classe e da política de classe, indubitavelmente seguirão mudando no futuro como fizeram no passado. (ibid)

Como resultado das mudanças substantivas que se verificam nos processos de produção da existência, quanto mais se desenvolve o capitalismo, menos visível se apresentam as classes sociais. Tudo isso, entretanto, não pode confundir-se com a superação dos antagonismos entre as classes que representam o Trabalho e as classes que representam o Capital. Ainda que, ao longo da história, o proletariado tenha mudado sua configuração de classe, são os trabalhadores de “colarinho azul” – agora trabalhadores informais ou da rua –


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aqueles que mais sofrem com o nova ordem internacional. Isso se acentua no Terceiro Mundo, que nunca deixou de ser uma sociedade de trabalho, mesmo que nele nunca tenha existido uma sociedade de pleno emprego. No artigo Em busca do trabalho perdido (e de uma sociologia capaz de encontrá-lo...), Juan José Castillo enfatiza que “a sociologia do trabalho perde seu rumo ou se enfraquece em debates diletantes que pouco ou nada têm que ver com as mulheres e os homens reais (que, sim, trabalham)” (1995, p. 24). Devido a que estejam dispersos social e geograficamente nos entremeios do que era até agora espaço privativo do não-trabalho, os trabalhadores ficaram invisíveis aos olhos dos sociólogos. Devido à complexidade social que dissimula e esconde os contornos do trabalho assalariado – antes visível e transparente – , o que falta é renovar o instrumental conceitual e metodológico, de maneira que as teorias e os métodos de abordagem sejam capazes de ver e interpretar as novas formas de trabalho. Morán constata: O trabalho submergido massivo junto com a proliferação dos serviços pessoais como prestações dos assalariados menos qualificados aos setores profissionais de alta remuneração (cuidar de jardins, piscinas, limpeza, trabalho doméstico, cuidado de crianças, vigilância, etc. nos fazem voltar aos velhos bons tempos de fins do século XIX quando na Inglaterra 14% das ocupações eram de criados e de prestadores de serviços pessoais”. (1997, p. 90)

Nesse sentido, acreditamos que as teses do fim da sociedade do trabalho e da não-centralidade do trabalho são incapazes de explicar a vida real de tantos seres humanos que, desesperadamente, têm tentado, a qualquer preço, “ganhar a vida”. Para aqueles que não se encontram entre os


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trabalhadores de colarinho “branco” e tampouco entre os de “colarinho azul”, mas que fazem parte do grande contingente de trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho, o cotidiano do trabalho, o “ganhar a vida”, continua sendo o centro de seu espaço vital, de seu modo de vida. É certo que, também para as crianças e jovens trabalhadores, a ética do trabalho “ficou caduca”, pois a vida real lhes ensinou que “não é certo que para produzir mais tenha-se que trabalhar mais, nem que produzir mais conduza a viver melhor” (Gorz, l997, p. 278). Sem dúvida, a sociedade foi incapaz de dar às pessoas uma posição estável, o que as obriga a definir sua identidade por seus próprios meios. Os meios encontrados pelas camadas empobrecidas da sociedade são aqueles criados a partir do trabalho diário. O que fazem “fora” do trabalho é parte constituinte do próprio reino da necessidade; seu tempo livre é o tempo para renovar-se como homem e ter forças para criar novas formas de sobreviver. Entre uma atividade laboriosa e outra e ainda em meio a cada uma delas, também é tempo para jogar bola, para sorrir, para buscar uma forma, mesmo que simples, de lazer. Em seu modo de vida, também as crianças não fogem dessa lógica: os sonhos de infância (agora chamados valores “pós-materialistas”) estão repletos de materialidade: também para elas, “o autêntico reino da liberdade começa, portanto, além das fronteiras do trabalho, se bem que justamente o trabalho é que constitui sua base histórica necessária.” (Kosik, 1995, p. 209). Se, de um lado, o trabalho muda seu desenho, sua geografia, de outro, a contradição entre o capital e o trabalho se mantém como fonte de desigualdades. Mesmo no atual contexto, em que o aumento da pobreza e da miséria – agravado pela crise do emprego – produz angústia e medo, é na esfera do trabalho que cada um pode afirmar-se e


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equilibrar-se existencialmente. Situar-se em esfera alheia ao trabalho – do tempo livre, das atividades do ócio e consumo – “gera um sentimento de perda de posse de si mesmo, uma sensação de carência” (Linhart, l991, p. 518). Na realidade, “a crise e o desemprego atropelam, golpeiam violentamente os trabalhadores em seu ser, em seu equilíbrio” (ibid, p. 538). Contraditoriamente, a “sociedade do tempo livre” – como expressão do avanço tecnológico e como expressão da crise do emprego – contribui para a negação de relações sociais fundadas na mercantilização da força de trabalho, e para que mulheres, homens e crianças possam redescobrir novos significados para o trabalho – “agir humano que não abandona a esfera da necessidade mas ao mesmo tempo a supera e cria nela os reais pressupostos da liberdade humana” (Kosik, l995, p. 207). Indo além dos debates teóricos, neste fim de século, no qual uma nova base técnica é capaz de fazer produzir em grandes quantidades com um número cada vez menor de trabalhadores, o problema central é propor o que fazer com os excluídos. Se temos como referência os países periféricos, em primeiro lugar, é preciso considerar que entre os excluídos estão não só aqueles que foram expulsos do mercado formal de trabalho, mas também aqueles que nunca nele ingressaram (os trabalhadores da rua, os indigentes, etc.). Em segundo lugar, é importante não esquecer que, para aqueles que nunca viveram a “sociedade do pleno emprego”, trabalho não é sinônimo de emprego. Não cabe dúvida de que a crise do trabalho assalariado castigou severamente a população do Terceiro Mundo, tornando-se um elemento a mais – um elemento crucial – que agrava ainda mais os antigos e novos processos de exclusão social. Levando em conta que ainda seguimos vivendo nesta cruel sociedade, é imprescindível afirmarmos algumas questões, negando tudo aquilo que possa contribuir para refun-


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cionalizar o sistema capitalista. Assim que, em terceiro lugar, é fundamental indagar a nós mesmos: queremos que os excluídos sejam incluídos em qual lógica de mercado? Em que tipo de trabalho? Com que perspectiva de homem? Com que perspectiva de mundo e de sociedade?

Trabalhar menos para que todos sejam explorados? Para o homem-mercadoria, qual é o sentido de seu trabalho? Indignado ante a situação de que os direitos do homem não têm conseguido representar outra coisa que não os direitos da exploração capitalista, em O Direito à Preguiça, publicado em 1883, Lafargue ironizava: “Trabalhem proletários, trabalhem para aumentar a fortuna social e vossas misérias individuais, trabalhem para que, ficando ainda mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e ser miseráveis” (1977, p. 25). E continuava denunciando que “o trabalho está na origem de toda a degeneração intelectual e de toda deformação orgânica”, é um mal, uma “estranha loucura” que atormenta a humanidade. A produtividade empobrece já que, ao invés de prolongar o tempo de descanso, o operário dobra em tempo de trabalho, “como se quisesse rivalizar com a máquina. Oh, que competência absurda e assassina”, diz ele (ibid, p. 11-15). Por que necessita trabalhar tanto se a maquinaria mesma é capaz de substituir o labor de tantos obreiros? Por que ele, proletariado, precisa abdicar do mundo do gozo? Na verdade, no julgamento de Lafargue, o resultado da nova ordem moral capitalista é a propagação da


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dignidade e da nobreza do trabalho, que é origem das misérias sociais: “a paixão cega, perversa e homicida do trabalho transforma a máquina libertadora em um instrumento de servidão dos homens” (ibid, p. 33). Para ele, o homem deveria resgatar seus instintos naturais, instintos de ócio, de gozo e de preguiça; o trabalho poderia tornar-se um “condimento ao prazer da preguiça”, se houvesse a diminuição da jornada das “máquinas de carne e osso” ou se fosse “regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia” (ibid, p. 30). Ora, o trabalho – como categoria histórica – plasma-se no tecido das diferentes formações sociais e econômicas. “O sabor do pão não nos revela quem plantou o trigo e o processo examinado nada nos diz sobre as condições em que ele se realiza, se sob o chicote do capataz dos escravos ou sob a mirada ansiosa do capitalista” (Marx, 1980, p. 208). Isso significa que a cultura do trabalho, como realidade dinâmica, modela-se e modifica-se ao longo do processo histórico, representando a síntese do desenvolvimento das forças produtivas no contexto das relações estabelecidas e desenvolvidas pelos homens na “boca da máquina” e nas relações sociais mais amplas. Assim, acreditamos que Lafargue esqueceu, ou não explicitou, no seu tratado sobre O direito à preguiça, que o trabalho não, necessariamente, representa um sacrifício para o homem. Se o trabalho produz o mundo material e o mundo espiritual, é necessário buscar a essência dessas relações nos diferentes momentos da história da humanidade, compreendendo o significado do trabalho no contexto das relações sociais de produção na qual ele se produz. Em outras palavras, se o homem se faz homem no processo de vida real, a cultura do trabalho pode revestir-se diferentes significados na constituição do seu ser.


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Mas se, como Gorz (1997), baseado em Arendt (1993)15, restringimos a noção de trabalho à atividade reconhecida como útil na esfera pública, descartando o trabalho artístico e as atividades indispensáveis para a reprodução da vida de cada um de nós (trabalho doméstico, trabalho de auto-reprodução), podemos chegar à conclusão de que, ao longo da história, o trabalho necessário para a subsistência não pôde, jamais, converter-se em um fator de integração. Era, ao contrário, um princípio de exclusão: aqueles que o realizavam eram conhecidos como inferiores em todas as sociedades pré modernas; pertenciam ao reino natural, não ao reino humano. [...] O trabalho era indigno do cidadão não porque estivesse reservado às mulheres e aos escravos; muito ao contrário, estava reservado às mulheres e escravos porque “trabalhar era submeter-se à necessidade”. (Gorz, 1997, p. 26)

A diferença fundamental entre o mundo moderno e a Antigüidade é que nessa a produção material não estava regida pela atual lógica econômica; o trabalho estava confinado à esfera privada, da família, confundindo-se com a esfera econômica. A liberdade só começava mais além da 15

À condição humana, Hannah Arendt distingue “labor” de “trabalho”. Como labor, considera “a atividade correspondente ao processo biológico do corpo humano, cujo espontâneo crescimento, metabolismo e decadência final estão ligados às necessidades vitais produzidas e alimentadas pela labor no processo de vida”. Como trabalho, considera “a atividade que corresponde ao não-natural e à exigência do homem, que não está submerso, constantemente, no ciclo vital da espécie, nem cuja mortalidade fica compensada pelo dito ciclo. O trabalho proporciona um ‘artificial’ mundo das coisas, claramente distintas de todas as circunstâncias naturais. Dentro de seus limites se alberga cada uma das vidas individuais, enquanto que este mundo sobrevive e trascende a todas elas” (1993, p. 21).


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esfera econômica, na polis: a família devia “assumir as necessidades da vida para que a polis pudesse ser o domínio da liberdade, ou seja, da busca desinteressada do bem público e da vida boa” (ibid, p. 28). É a sociedade industrial – como uma “sociedade de trabalhadores” – que se distingue de todas as que a precederam, transferindo o trabalho da esfera privada à esfera pública. Além dessa constatação acerca da transferência do espaço produtivo, também podemos inferir sobre a sociedade moderna que essa, ao fortalecer a idéia de a vida política e a liberdade estarem na esfera pública, ou seja, na esfera da economia, fortalece, também, o ideário liberal de que o homem se realiza no mercado. Além do mais, se concebemos que o “reino da necessidade” representa necessariamente o trabalho imposto pela miséria e pela coação externa, também podemos cair na tentação de confundir o caráter ontológico do trabalho com a forma como ele se apresentou ao largo da história da dominação do homem pelo homem. Considerando esse caráter ontológico do trabalho como atividade humana, Kosik (1995) diz-nos que é na esfera do trabalho que se opera a metamorfose, entretida como mediação dialética do desejo animal no desejo humano. Se, de um lado, tanto os homens como os demais animais vivem as emoções e sensações relativas ao instinto primário, como a fome, o medo, a raiva, o gozo, de outro, a distinção entre o homem e outros animais é sua subjetividade, objetivada no trabalho e na vida cotidiana. Em semelhante processo, “da animalidade nasce o humano e o desejo animal se transforma em desejo humanizado, desejo do desejo” (ibid, p. 202). Indo além do niilismo, do desejo animal, e fazendo a superação dialética da atividade puramente instintiva, Kosik crê que “os momentos existenciais como angústia, náusea, medo, alegria, riso, esperança, etc., não se apresentam como


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“experiência” passiva, mas como parte da luta pelo reconhecimento, ou seja, do processo de realização humana” (ibid, p. 204). O homem diferencia-se dos outros animais quando descobre a tridimensionalidade do tempo como dimensão de seu ser, o que lhe permite compreender o presente como resultado de todo o passado e como anúncio do futuro. Como ser criador e recriador de sua própria existência, o animal-homem luta contra sua morte, contra sua destruição como espécie: busca a realização de seu aprendizado, busca no passado e no futuro as bases para seu presente. Dominando o tempo físico e o tempo histórico, serve-se do passado para fazer o presente, em função do futuro. Diferentemente de Gorz, pensamos que o trabalho alberga as atividades desenvolvidas pelo homem, tanto na esfera pública quanto na esfera privada, que asseguram a sobrevivência e a vida da espécie, seja no espaço individual, seja no espaço coletivo da humanidade. Sem deixar de considerar as atividades humanas, cujo objetivo essencial é atender às necessidades imediatas da vida, pensamos ser o trabalho (labor de nossa mão) a extensão do labor de nosso corpo. Comer, beber, vestir-se, dormir e ainda sonhar não têm como referência um corpo abstrato, isolado da materialidade histórica. Como disse Arendt, “a atividade do labor não requer a presença de outro, contudo um ser laborando em completa solidão não seria humano” (1993, p. 37). Assim que, ao trabalhar, não só como atividade socialmente remunerada, mas também como atividade para a manutenção da vida privada, o homem estabelece relações com a natureza externa e com outros homens e, como uma das forças da natureza, transforma-se a si mesmo em homem. Ao transformar a natureza à sua volta em “um “artificial” mundo das coisas” (ibid, p. 22), o homem objetiva e dá humanidade às coisas da natureza; humaniza-se a si mesmo com as criações e representações que reproduz e produz sobre o mundo.


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As diferentes culturas do trabalho carregam a historicidade das relações dos homens com a natureza e com outros homens e assim deve ser analisada tendo como referência uma determinada relação social de produção, em um momento histórico dado. Nas formações sociais pré-capitalistas, sob condições de submissão ao senhor, o servo e o escravo mantêm uma posição de alienação em relação à propriedade dos meios de produção e em relação aos frutos do trabalho que não lhes pertencem; no entanto conservam o controle sobre seu processo de trabalho. O tempo social dedicado ao trabalho tem como referência a quantidade de valores de uso necessários para a manutenção do senhor e as determinações da própria natureza; definidoras da intensidade e do ritmo do trabalho. Assim, a organização do tempo social no porto se ajusta aos ritmos do mar; e isto parece natural e compreensível ao pescador e ao marinheiro; a compulsão pertence à natureza.

De maneira similar, o trabalhar de amanhecer a anoitecer pode parecer “natural” em uma comunidade agrícola, especialmente durante os meses de colheita: a natureza exige que se recolha o grão antes que comecem as tormentas (Thompson, 1979, p. 244-5). A partir desta hipótese, tanto a natureza como o trabalhador são senhores do processo produtivo: do trabalhador exige-se não só dominar a natureza, mas, ainda, buscar nela seu ponto de encontro. Este ponto é a medida mesma para o encontro do homem consigo mesmo, como ser que, além de precisar buscar nela os elementos para sua sobrevivência, projeta nela seu repouso, seu prazer, seu gozo do direito à preguiça. Trabalho e ócio são capazes de conviver na proporção em que a lógica da produção seja a satisfação das necessidades de subsistência – trabalho e não-trabalho confundem-se à medida que o primeiro é a extensão da vida doméstica.


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É no plano das relações sociais concretas que podemos verificar a redução do caráter ontológico do trabalho a dimensões economicistas de “fator de produção”, emprego, tarefa... Ou seja, foi reduzido à mercadoria, trabalho abstrato, trabalho alienado (Frigotto, 1996). No capitalismo, a ciência e a tecnologia encarnam o progresso da razão, permitindo o desenvolvimento das forças produtivas, embora esse desenvolvimento, não necessariamente, cumpra o papel de emancipação da humanidade. Não é à toa que “o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, e no trabalho fora de si” (Marx, 1995, p. 109). O avanço das tecnologias de produção e gestão da força de trabalho não permitem uma pauta de produção calcada em períodos alternados de trabalho e ócio16. Ócio e trabalho representam momentos separados e, como tais, devem permanecer. Como disse Marcuse (1984), o tempo de ócio representa o tempo necessário para recuperar novas energias para voltar a trabalhar (e/ou procurar um emprego). A nova racionalidade é que o trabalho vivo é substituído pelo trabalho morto encarnado nas máquinas. Para Marx, na perspectiva da unilateralidade humana, a nova medida da riqueza não seria o tempo de trabalho, mas o tempo livre, já que “o tempo de trabalho como medida da riqueza põe a riqueza mesma fundada sobre a pobreza” (1972, p. 232). “A riqueza real é a força produtiva de16

Thompson (1979) indica-nos como no mundo ocidental, em especial entre os anos 1300 a 1600, as concepções de tempo acompanharam as transformações do processo de trabalho. O relógio, por exemplo – um artigo de luxo – transformou-se em um objeto popular – indispensável para controlar o ritmo e a intensidade da produção. Sobre a relação trabalho e ócio nas sociedades pré industriais, a perda do número de dias de festas populares e o papel da escola de massas no processo de disciplinamento dos trabalhadores assalariados, veja Fernández Enguita (1989).


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senvolvida de todos os indivíduos” e, para tal, a redução do tempo de trabalho socialmente necessário caminha junto com o aumento do tempo livre, no qual o primeiro “encontrará sua medida nas necessidades do indivíduo social” (ibid, p. 232). Sob essa outra lógica, ao contrário de como se apresenta na economia burguesa, o trabalho não tem o nãotrabalho como sua antítese. Mas, como nos indica Mészáros (1996), na perspectiva de converter o benefício do trabalho a favor do capital, o “útil” e a “utilidade” são definidos do ponto de vista da possibilidade de ser vendido, aplicado a todas as dimensões da produção e do consumo. A taxa de utilização decrescente dos valores de uso manifesta-se não só em termos de diminuição do tempo de utilização das mercadorias, provocando o incremento do consumo, mas também em relação à diminuição do tempo necessário de trabalho vivo, gerando o desemprego crescente. O desemprego, como “tempo livre escravizado”, afeta não só os trabalhadores dos países do Norte, como as economias dos países do Sul: a globalização da economia produz a própria globalização da pobreza, produzindo novos mecanismos de exclusão social. Como reflexo da nova ordem mundial, as duras condições de vida empurram também às criança ao “mercado do subtrabalho”. Diante dessa situação, é necessário refletir sobre quais são as outras caras com que o trabalho se apresenta hoje, pois a vida cotidiana das classes populares nos diz não ter perdido o trabalho atual, em sua forma mercadoria, mesmo que degradador da espécie humana, sua centralidade nas relações sociais. A idéia de “trabalhar menos para que trabalhem todos” (Aznar, 1995; Gorz, 1997) é, sem dúvida, uma reivindicação justa, a qual tem, como horizonte, reduzir a jornada de trabalho, socializar os cada vez mais escassos postos de trabalho e, com isso, aumentar o tempo de ócio e os espa-


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ços de autonomia e de liberdade das pessoas. De fato, como nos diz Lafargue (1977), não tem sentido que as “máquinas de carne e osso” sigam trabalhando tanto, quando os sistemas automatizados são capazes de executar os trabalhos embrutecedores e fastidiosos. Em um momento em que tenta-se fazer crer não existir volta para a tentativa de construção da sociedade do pleno emprego, a redistribuição dos postos de trabalho e também do tempo liberado pelo trabalho representa um avanço. No entanto, trata-se apenas de um paliativo, sendo insuficiente para um mundo em crise. Tampouco é suficiente que o Estado, em uma atitude de escamotear a perversidade das políticas de ajuste estrutural, reassuma algumas funções de Estado do Bem-Estar e, reconhecendo todos os excluídos como “cidadãos”, lhes proporcione as condições para suportar o desemprego duradouro, criando postos de trabalho voluntário e temporário nas instituições públicas, concedendo-lhes uma esmola ou uma “renda de cidadania”17. Para Morán, devido ao trabalho não ser um bem escasso, mas sobreabundante, o verdadeiro problema “não é tanto a distribuição do trabalho, mas a distribuição do produto social e a criação das condições políticas necessárias para ele” (1997, p. 97). “Trabalhar menos para que todos trabalhem” não pode tornar-se sinônimo de “exploração do trabalho para todos”. Não é esse o tipo de democracia que queremos. Mais além 17

Ao analisar o impacto da tecnologia na sociedade, repercutindo em número vertiginoso de pessoas subempregadas ou que carecem de trabalho, Rifkin (1996) propõe a necessidade de uma “era pós-mercado”, na qual o “terceiro setor” (sem intenção de lucro), baseado tanto no mercado como no setor público, assumiria o papel de criar novos postos de trabalho. Propõe também que o governo conceda o pagamento de um “salário social”, permitindo assim que os desempregados possam trabalhar como voluntários nas comunidades e organizações locais.


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de encontrar paliativos para a crise, o desafio é buscar um novo sentido para o trabalho e para a vida. Mais que crise do emprego, a crise do fim de século configura-se como crise do modelo de humanidade, como crise do homem mesmo e de seu processo de estabelecer relações com outros homens e com a natureza. É necessário reconhecer que, mesmo sob as atuais condições de exploração do trabalho e sob a crise do emprego, o trabalho segue como central nas relações sociais. Assim, como parte integrante de um novo modelo de desenvolvimento humano – não mais fundado no homem econômico e no desperdício – os marcos fundamentais de uma nova cultura do trabalho seriam o abandono dos tradicionais “satisfatores” das necessidades humanas para substituí-los por outros, caracterizados pela perspectiva de valor de uso e não pelo valor de troca. Em outras palavras, o desafio é a construção de uma sociedade em que todos trabalhem (sem que a força de trabalho se constitua como uma mercadoria), e que o tempo livre (não forçado) seja um privilégio de todos. A ruptura com a atual ordem internacional estaria na constituição de relações de trabalho que se caracterizariam por relações de propriedade, em que a expropriação do conhecimento e a própria alienação tenderiam a desaparecer. O novo sentido do trabalho tem como horizonte a constituição de uma nova sociedade, na qual o trabalhador supere sua condição de mercadoria, resgate o direito de ser proprietário coletivo dos meios de vida, consiga superar a desvinculação entre si e seu produto, controlando o ritmo e o tempo de trabalho. Uma nova cultura do trabalho pressupõe a libertação do tempo livre, a transformação do tempo escravizado em tempo de ócio e tempo para o desenvolvimento da plenitude do homem.


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Se a libertação do homem está na libertação do trabalho forçado (escravo, servil ou assalariado), a libertação do homem não está na libertação do trabalho, em seu aspecto genérico – considerado como uma mediação de primeira ordem.18 Acreditamos que, sob outra lógica (centrada no ho18

Como indica Mészaros, em Beyond capital, diferentemente da mediação de segunda ordem, as medições de primeira ordem referem-se a: “– A regulamentação necessária, mais ou menos espontânea, da atividade biológica reprodutiva e do tamanho da população sustentável, conjuntamente com os recursos disponíveis; - A regulamentação do processo de trabalho, através do qual o intercâmbio necessário de uma comunidade específica com a natureza possa produzir os bens necessários para a satisfação humana, assim como os instrumentos de trabalho apropriados, empreendimentos produtivos, e conhecimento, por meio dos quais o próprio processo produtivo possa ser mantido e melhorado; - O estabelecimento de relações de troca, nas quais as necessidades, historicamente variáveis, dos seres humanos possam ser relacionadas, no propósito de otimizar os recursos naturais e produtivos disponíveis, inclusive os culturalmente produtivos; - A organização, coordenação e controle da multiplicidade de atividades, através das quais os requisitos materiais e culturais para um processo de reprodução social metabólica bem sucedido de comunidades cada vez mais complexas possa ser assegurado e garantido; – A alocação racional de recursos humanos e materiais disponíveis, combatendo a tirania da escassez, através da utilização econômica (no sentido de economizar, poupar) das formas e meios de reprodução de dada uma sociedade, o mais próximo possível, com base no nível alcançado de produtividade e dentro dos limites das estruturas socio-econômicas estabelecidas; e, – A promulgação e administração de regras e regulamentos de uma dada sociedade como um todo, em conjunto com as outras funções e determinações de mediação e primeira ordem”. Como podemos ver, nenhum desses imperativos de mediação de primeira ordem, por si mesmo, exige o estabelecimento de hierarquias estruturais de dominação e subordinação para a reprodução social. “As determinações opressivas dos modos hierárquicos de controle reprodutivo emanam de outras raízes, no curso da história. [...] Assim, através das mediações de segunda ordem do capital, cada uma das formas primárias é alterada, impossibilitando qualquer reconhecimento, para atender às atividades expansionárias de um sistema fetichista e alienante do controle social metabólico, que deve subordinar absolutamente tudo ao imperativo de acumulação do capital (Mészáros, apud Frigotto, 1997a, p. 4).


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mem integral e não no mercado), o trabalho pode proporcionar o bem-estar da humanidade. Também acreditamos que uma nova racionalidade tecnológica pode, um dia, promover novas relações de convivência. Nesse contexto, aumento do tempo livre não seria resultante do desemprego, mas a verdadeira medida da riqueza humana. As forças produtivas, sob as leis de sociedade de mercado, levaram às últimas conseqüências a fragmentação do trabalhador, confinando-o no mundo da miséria humana. Hoje, desafortunadamente, o trabalhador luta para tornar-se uma mercadoria (Frigotto 1996), para conseguir manter – ao menos – o direito à vida. Enquanto isso, o capitalismo continua produzindo suas próprias contradições, fazendo com que as pessoas, motivadas pela crise, manifestem novas formas de gerar a vida. Diante deste quadro, cabe indagar: o que pode estar significando a produção associada e, agora, o fenômeno da proliferação de unidades econômicas populares? Trata-se da mudança de um ciclo: quando o trabalhador assalariado saía de um emprego, da mesma forma que o substituía por outro, era substituído em seu posto. Agora esse ciclo está em crise: o trabalhador é demitido, busca emprego, mas não encontra. Dependendo da idade, aposenta-se, na maioria das vezes, com uma pensão de fome. De uma ou outra maneira, ele se vê obrigado a buscar uma forma distinta de remuneração para assegurar sua sobrevivência: o trabalho por conta própria. Mesmo que as novas formas de geração de trabalho e renda sejam a manifestação da excrescência do sistema capitalista, o fato é que, contraditoriamente, elas também permitem ao trabalhador estabelecer o trabalho sob outros parâmetros, descobrindo existir outra forma de produção mais


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humanizada, menos hierarquizada, menos violenta... Na verdade, frente à crise do trabalho assalariado, a produção associada (como uma das particularidades da economia popular) pode configurar-se em uma economia de auto-ajuda coletiva dos excluídos, como “alívio para os pobres” e como parte integrante do projeto de ajuste do capital. Para o trabalhador, o problema está em como ir além das estratégias de sobrevivência e dos novos estilos de relação entre capital e trabalho, criando as condições para que, no interior mesmo dessa sociedade, germinem os elementos de uma nova cultura do trabalho e, com ela, novos valores, novas relações econômicas e sociais. Nesse sentido, perguntamo-nos: além de alternativa à crise do emprego, poderá representar também a produção associada uma “maravilhosa escola de formação de trabalhadores”?



Economia Popular: Sua Reedição Pelo Trabalho e Pelo Capital Como expressão extrema da crise, os setores invisíveis revelam a máxima precariedade de condições de vida e de trabalho [...] Isto não significa que uma política de desenvolvimento autodependente deva direcionar-se exclusivamente ao fortalecimento interno dos setores invisíveis. Semelhante atitude seria parcial e reducionista. Trata-se de resgatar todo o arsenal de criatividade social, de solidariedade e de iniciativas autogestionárias que o mundo invisível tem forjado para sobreviver em um meio excludente, para contrapô-las, através de políticas globais, ao império exclusivo de uma lógica competitiva e dependente. Manfred Max-Neef, Desenvolvimento à escala humana, 1993.



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Neste capítulo, começamos a aproximar-nos do objeto específico de nosso estudo: as alternativas coletivas de economia popular que, hoje, proliferam frente à crise do trabalho assalariado. No capítulo anterior, dedicamo-nos ao cenário deste fim de século, marcado pelas políticas neoliberais, pelos novos paradigmas de produção e gestão da força de trabalho, o que nos leva a uma crise de humanidade. Ao reafirmar que, sob o processo de exclusão social, o trabalho – ainda mudando sua configuração – segue como elemento chave do processo de constituição da realidade humana e social, indicamos a perspectiva de um novo modelo de desenvolvimento, não calcado na globalização competitiva, mas, sim, no autodesenvolvimento da comunidade e das pessoas, a partir da independência econômica e cultural de cada grupo humano. Agora, vamos dedicar-nos a uma primeira análise das atuais estratégias de geração de trabalho e renda que, hoje, frente ao panorama de crescimento da pobreza, têm sido empreendidas pelos setores populares. Tomando como referência não só as contribuições teórico-práticas dos principais autores latino-americanos que se têm dedicado a esta temática, como também alguns dados empíricos sobre a realidade em questão, debruçamo-nos sobre as chamadas economias formal e informal, buscando compreender quem são os atores do diversificado e complexo mundo da economia popular. Tentando distinguir os projetos conservadores e mantenedores do atual sistema excludente dos projetos de emancipação dos setores populares, apresentamos o emaranhado mundo de interesses que movem as ações de cada um dos principais agentes sociais que têm impulsionado esse setor da economia.


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Estratégias de sobrevivência e “economia moral das multidões”

Para analisar a “economia moral das multidões” na Inglaterra do século XVIII, Thompson se pergunta: “quando estão famintas (ou com apetite sexual), que fazem as pessoas? Como se modifica sua conduta: pelos costumes, pela cultura, pela razão?” (1979, p. 64). Esta mesma “economia moral das multidões” do século XVII também se realiza intensamente na América Latina e no Caribe, onde (no limiar do 3º milênio) 130 milhões de pessoas vivem na pobreza1 . Sobre a situação chilena, Razeto (1987) recorda-nos que há dez ou vinte anos, quando se falava de pobreza, perguntávamo-nos: o que afeta os pobres? De que necessitam? Quais são as suas carências? Hoje, entendendo a pobreza como uma pobreza ativa na qual os sujeitos desenvolvem capacidades, energias e forças reais para satisfazer às suas necessidades básicas, é preciso perguntar: frente à crise do emprego, como se organizam os excluídos do mercado formal de trabalho? Como enfrentam seus problemas e necessidades? Entendemos que são questionáveis os diferentes critérios que vêm sendo utilizados para estabelecer a fronteira entre economia formal e informal. Mesmo assim, é importante registrar que o Programa Regional de Emprego para a América Latina (PREALC) informa que, entre 1980 e

1

“Pobreza chegará a 30% na AL.” (Jornal do Brasil, 31/3/99).


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1993, o setor informal urbano cresceu rapidamente, passando de quarenta a 55% da PEA (Tokman, 1996). Um recente relatório da OIT revela que, na última década, 85% dos novos postos de trabalho originaram-se nesse setor da economia2. O Instituto de Desenvolvimento do Setor Informal (IDESI) estima que, no Peru, nos anos 90, cerca de 78% da população economicamente ativa ocupavam-se em microempresas (das quais 60% funcionam com tecnologia artesanal) estão compostas de um a três trabalhadores e atuam em mercados locais (em especial, de vizinhança). Apresentando uma rentabilidade muitas vezes negativa, caracterizam-se como empreendimentos cujo objetivo é a sobrevivência imediata de seus integrantes3. Na área metropolitana de Santiago do Chile, a economia popular abarca cerca de 50% da força de trabalho, envolvendo em torno de um milhão e duzentos mil microunidades econômicas dirigidas individualmente, familiarmente ou em grupos, sem contar com nenhum capital: “sua única riqueza é a força de trabalho e – sobretudo – a ânsia de viver” (Razeto, 1993a, p. 32). Quanto ao Brasil, no início dos anos 90, de acordo com o IBGE, 57% da população economicamente ativa estava vinculada a atividades do chamado setor informal. Os dados da pesquisa “Economia

2

“Desemprego vai a 9,5% na AL”, (Jornal do Brasil, 23/8/99).

3

Dados obtidos no Seminário Economia Informal, promovido pelo IBASE/ SEBRAE (Rio de Janeiro, 16 a 18 de abril de 1997).


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Informal Urbana 1997”, recentemente divulgados, indicam que 25% dos trabalhadores urbanos estão vinculados a esse setor, produzindo 8% do Produto Interno Bruto4. Quando a pobreza e as estratégias de sobrevivência se convertem, para os economistas e demais especialistas, em objeto de análise da problemática socioeconômica mais ampla? Nos anos 60, junto aos países do Terceiro Mundo, os observadores internacionais começam a perceber a presença dos “marginais” (ou marginalizados) nos cinturões de pobreza que rodeavam os principais centros urbanos, questionando a capacidade do setor empresarial moderno de absorver o excedente da força de trabalho. Nos anos 70, começase a buscar explicações para o fenômeno da “economia submergida”, que aparentemente produzia um sistema econômico dual. Ainda que parecesse isolado, sem vínculo e como uma deformação e disfunção do “setor formal”, reconhecia-se a importância da pequena produção mercantil que, mesmo não correspondendo às tradicionais formas capitalistas de produção, servia como um instrumento para amenizar os efeitos do crescimento da pobreza nos países do Terceiro Mundo. Em 1969, já havia surgido o Programa Mundial de Emprego, promovido pela PREALC para os países da África, América Latina e Caribe. Nas décadas de 80 e 90, outros diversos projetos surgiram, implementados pelos países do Norte nos países do Sul. Com o apoio técnico (e financeiro) de instituições públicas e privadas e levados a 4

Essa pesquisa também revela que as principais atividades do setor informal estão concentradas no comércio (26%); nos serviços de reparação, pessoais, domiciliares e de diversão (20%); na construção civil (16%) e na indústria de transformação, englobando confecções e artesanato, entre outros (12%). (Retrato da informalidade urbana. Jornal do Brasil, 9/6/99).


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cabo por cooperantes, peritos e voluntários, as denominadas “ajuda”, “assistência” ou “cooperação” internacional ao desenvolvimento5 têm contribuído para escamotear e, em certa medida, atenuar as desigualdades sociais. Com a crise econômica agudizada pelos fatores de dependência, os países “em vias de desenvolvimento” convertem-se em exportadores de capital para os países “desenvolvidos”; submetem-se aos planos de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial como condição de obter novos créditos e outras formas de “ajuda”.

5

Os programas e projetos de desenvolvimento para o Terceiro Mundo procedem de dois grandes grupos de doadores (e/ou investidores): a) em menor escala, pelos países pertencentes à Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP); b) em maior escala (mais do 90%), pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), por meio do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD), criado na década dos 60, do qual fazem parte 21 países desenvolvidos. Além de bilateral (de um Estado ao outro), a cooperação pode ser multilateral, orientando-se sobretudo a organismos intergovernamentais e multilaterais de cooperação, entre os que cabe diferenciar os especificamente financeiros (Banco Mundial e demais bancos regionais de África, Ásia e Interamericano) dos não-financeiros ou doadores, pertencentes em geral às instituições do sistema das Nações Unidas. Em 1994, o total das contribuições financeiras feitas por parte dos países da OCDE aos países em vias de desenvolvimento ascendeu aos 184 bilhões de dólares, dos quais cerca de 60% correspondiam a investimentos privados (investimentos diretos, empréstimos bancários, créditos comerciais, investimentos em cadernetas de poupança etc., quer dizer, ajuda reembolsável ou com taxa de retorno) e cerca de 38% à ajuda oficial ao desenvolvimento, realizada com fundos públicos (em geral uma parte importante deles, em torno de 70%, pode ser considerada como doações a fundo perdido). Esta última cifra situa-se em torno dos 59,2 bilhões de dólares, correspondendo a 0,30% do Produto Interno Bruto dos países da OCDE (Fonte: Fundação de Cooperação ao Desenvolvimento. Informe 1995, Madrid, 1996).


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A dívida externa total, que, de acordo com o FMI e o Banco Mundial, era, em 1970, de cerca de cem bilhões de dólares, havia chegado, em 1982, a 750 bilhões de dólares; no ano de 1992, praticamente se duplica, passando a ser em torno de 1,5 trilhão de dólares. Ao mesmo tempo, entre l984 e 1990, a transferência de capitais do Sul para o Norte foi de 178 bilhões de dólares, o que representa duas vezes o montante total do Plano Marshal para a reconstrução da Europa6. Em vias de estabilizar a balança de pagamentos da dívida externa, reduzir a pobreza e promover o desenvolvimento, as políticas neoliberais têm-se caracterizado, entre outros aspectos, pela redução dos gastos públicos (em particular no campo social), pela eliminação ou redução da proteção do mercado interno (em favor de menos restrições para os investimentos estrangeiros) e pela privatização das empresas públicas, acelerando assim o processo de exclusão social. Evidentemente, a cooperação internacional não foi capaz de alterar as condições estruturais do subdesenvolvimento, contribuindo para dissimular e manter o círculo vicioso da dependência. Segundo Jódar e Lope (1985), dada a dificuldade de absorção da força de trabalho nos países centrais, a partir dos anos 80, o tema da informalidade ultrapassa as fronteiras dos países periféricos. Ao fazer uma revisão da literatura sobre o trabalho na “economia submergida” e apresentando uma panorâmica dos casos da Itália, França, Espanha e dos países do Leste, os autores indicam que o processo de descentralização produtiva, anterior ao estouro da crise do petróleo (1973-75), produziu a emigração de atividades 6

Dados extraídos de: a) B. M., FMI, World Economic, 1992, em Fernández Duran, 1993, p. 55 e b) Informe do Banco Mundial, “Debt Tables 199293”, Washington D.C.


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emergentes para os países periféricos (possibilitando a utilização intensiva de mão-de-obra e, portanto, maiores taxas de produtividade e a abertura de novos mercados). De outro lado, ocasionou também atividades mais ou menos submergidas nos países centrais, por meio de uma relação estreita entre as grandes empresas e o resto dos setores da cadeia produtiva: pequena empresa, ateliê de artesanato, cooperativa e trabalho a domicílio7. Nos países periféricos, as políticas sociais e de desenvolvimento das iniciativas populares têm sido propostas por agentes de diferentes matrizes ideológicas, o que produz também diferentes estratégias de ação, tanto da parte dos governos, partidos políticos, organismos internacionais e ONGs8, como de parte da igreja e dos movimentos populares (sindicatos, associações, etc.). Como disse Jaworski (1992, p. 64), o processo de luta contra a pauperização paulatina também foi acompanhado pela emergência do protagonismo dos setores populares rurais e urbanos e “de sua vontade quase alegre para superar a crise a partir de suas próprias forças” (o grifo é nosso). Assim que, em meados da década dos 80, já se fazia visível o conjunto crescente de pequenos empreendimentos populares. Na década seguinte, enquanto as pessoas, no cotidiano, continuavam criando for7

Sobre o fenômeno dessa economia nos países centrais, em especial na Itália, veja-se Saba (1981) e Capecchi (1983).

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A denominação “Organização Não-Governamental” tem sua origem no artigo 71 da Carta das Nações Unidas, a qual facultava relações econômicas e sociais da ONU com organismos não criados por acordos governamentais e que têm uma estrutura internacional (Schneider, 1986). Referimo-nos às ONGs como organizações privadas sem ânimo de lucro, parcerias voluntárias e demais grupos que, de maneira permanente, desenvolvem projetos em diferentes países com vistas à ajuda, assistência ou cooperação ao desenvolvimento.


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mas próprias de sobrevivência, os estudiosos continuavam tentando desenvolver os marcos de teorias interpretativas do fenômeno de proliferação de alternativas de geração de trabalho e renda nos centros urbanos. Muitas têm sido as propostas e análises políticas e econômicas sobre os efeitos da pobreza; entretanto, ainda são poucos os estudos sobre a diversidade e complexidade da dinâmica interna dos empreendimentos populares. Os conceitos e denominações utilizadas para fazer referência às experiências de pequena escala têm sido os mais diversos, dependendo das diferentes perspectivas políticas e enfoques teóricos e da diversidade das práticas econômicas populares: além de economia informal, subterrânea, invisível, submergida, surgem novos termos, como economia popular, economia solidária, economia de solidariedade e trabalho, socioeconomia solidária e cooperativismo popular. É importante enfatizar que, sob a mesma denominação de “economia popular” ou “economia solidária”, diferentes enfoques e propostas têm sido sugeridos por analistas de diversas correntes de pensamento, desde experiências cristãs até de instituições não-governamentais e governamentais (nacionais ou internacionais). Entre as últimas destacamos o Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 1990) que, a partir dos anos 90, reconhece a dita economia como um importante elemento para a luta contra a pobreza na América Latina e no Caribe. Considerando que é necessário saber quais são os agentes sociais que podem respaldar ou, ao menos, não se converter em adversários da “transformação produtiva com eqüidade” e propondo, para os anos 90, uma política explícita e descentralizada de fomento das formas associativas de produção, a CEPAL também indica que “os estratos médios e populares urbanos e rurais deveriam constituir o sustento natural da transformação, pois eles, provavelmente serão seus principais beneficiários” (1990, p. 61).


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Como veremos mais adiante, a economia popular, como “economia moral das multidões” (Thompson, 1979) é, fundamentalmente, mas não é apenas, o resultado da inspiração dos pobres para tentar sobreviver. No entanto, antes de analisar a complexidade da questão, é preciso situar as fronteiras e os campos de confluência da economia popular com os demais setores da economia global, distinguindo seus atores e agentes.

Economia popular: mais além do “formal” e do “informal” Os diversos tipos de unidades econômicas organizadas pelos setores populares costumam apresentar algumas características que são consideradas específicas do chamado setor informal: pequena escala de produção, tecnologia artesanal ou semi-industrial, máquinas e equipamentos de segunda mão, mercado consumidor predominantemente local; dependência de empresas maiores para a compra de matérias-primas e para a venda de seus produtos, unidade produtiva localizada na residência de um de seus integrantes e, em geral, em áreas de baixa renda; clandestinidade dada a inadequação de uma legislação própria para o setor, relações de trabalho não institucionalizadas; predomínio de atividades comerciais e de serviços, produção e comercialização sazonais, etc. (Ceas Urbano, 1991, p. 55). Mas, pela diversidade e magnitude com que se apresenta, seria um equívoco classificar o conjunto dos empreendimentos da economia popular como pertencentes à economia “informal”, “subterrânea” e, tampouco, “invisível”. Se o termo “informal” se refere a algo que falta (alta tecnologia e relações de trabalho


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institucionalizadas, por exemplo) e se as realidades sociais não podem ser descritas unicamente por critérios negativos (mas pela sua complexidade), seria um reducionismo entender a economia popular como pertencente ao mundo da economia informal. Um aspecto importante a considerar é que a formalização de uma cooperativa ou de uma associação, por exemplo, choca-se não somente com a quantidade e lentidão dos trâmites burocráticos, mas também e, fundamentalmente, com os altos custos da legalidade (Soto, 1987 e Ceas Urbano, 1991). Geralmente, os pequenos empreendedores não dispõem de um capital inicial9, assim é preciso a contribuição prévia dos integrantes do grupo para a aquisição dos principais meios de produção e de subsistência, antes que o trabalho dê algum fruto. Para que os trabalhadores iniciem qualquer atividade, é necessário buscar um lugar para seu funcionamento, ter um estoque mínimo de matérias-primas, ferramentas... Para que consigam manter a si mesmo e os seus dependentes, além de reservar um dinheiro para os imprevistos, é preciso contar com a ajuda da família, de um amigo, contar com a ajuda da comunidade ou de uma instituição qualquer. Para não sucumbir, a maioria dos empreendimentos populares encontra-se na ilegalidade. Com custos menores e com os preços de seus produtos mais baixos, a pequena

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De acordo com a já citada pesquisa, “Economia Informal Urbana 1997”, 95% dos empreendimentos desse setor não recorreu a nenhum tipo de empréstimo bancário.


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unidade econômica tem maior possibilidade de êxito10, permitindo-lhe concretizar seu objetivo fundamental: a manutenção da atividade econômica para tentar garantir a sobrevivência dos trabalhadores e de seus familiares. No entanto os critérios de “legalidade” ou “não-legalidade” de um empreendimento não podem ser utilizados como um parâmetro para enquadrar as iniciativas populares na economia formal ou informal. Além disso, porque, em sua relação com o Estado, não são poucos os casos de empresas oficialmente formalizadas que não pagam impostos, são ilegais quanto ao cumprimento dos direitos dos trabalhadores, inclusive utilizando vendedores ambulantes, diante de suas lojas, para escoar mais facilmente suas mercadorias11. 10

Referindo-se à atual realidade de Nicarágua, Orlando Nuñez comenta que “hoje em dia muitos capitalistas nicaragüenses se queixam de não poder competir com esta economia, devido aos gastos muito diferenciados de produção: não pagam escritórios, nem água, nem luz, nem telefone; seus gastos fixos são quase inexistentes, não pagam impostos, a reprodução ou status dinâmicos de seus donos é muito barata, não têm que investir muito, sua composição orgânica do capital é risível, não pagam assalariados, não têm muitos riscos, o limite da auto-exploração é maior que o da exploração capitalista” (1995, p. 128). No entanto, parece-nos importante complementar que são, exatamente, os baixos custos da produção o principal elemento que atrai tantos empresários ao mundo da informalidade.

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Na perspectiva de que a economia informal pode ser um elemento de dinamismo, sempre que sua lógica não prevaleça sobre a lógica da economia formal, ao analisar o caso do Rio de Janeiro, Lopes afirma que o efeito perverso da informalidade não está na falta de pagamento de impostos, já que seu valor econômico é mais limitado do que se imagina. “O efeito extremamente danoso da economia informal é o incentivo que cria à economia formal para sonegar impostos no sentido de aumento de sua competitividade. Os comerciantes incapazes de obter margens adequadas, quanto aos preços que a economia informal pode praticar, iniciam um amplo processo de sonegação de impostos, que – estes sim – podem constituir um volume considerável em qualquer economia” (Lopes, 1996, p. 35). Essas políticas públicas seguem a mesma linha de Soto (1987) no que diz respeito à necessidade de tornar visível a informalidade através de reformas institucionais básicas promovidas pelo Estado, facilitando o desenvolvimento do mercado.


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Vários têm sido os critérios para estabelecer a fronteira entre os setores formal e informal12, mas quanto à natureza das atividades populares, também seria interessante se nos perguntássemos: qual é a diferença entre um vendedor ambulante registrado que paga seus impostos à prefeitura e outro que, ilegalmente, busca atenuar suas péssimas condições de vida? Se o que distingue, em geral, uma atividade econômica “formal” de outra “informal” é seu status legal (ou a maior ou menor subordinação à regulamentação estatal), também merece destaque o fato de que a estrutura das atividades “informais” se caracteriza por sua maleabilidade e adaptação, frente aos mecanismos de articulação com instituições “formais”, por uma rede própria de informações e de legalidade. Não por casualidade, o estudo do PNUD (1990, p. 122) sobre o desenvolvimento da economia popular na América Latina enfatiza que o principal mercado e a dinâmica desse setor estará dada pelo setor assalariado da economia “moderna”, por meio de um processo pró-cíclico, pois, quando a economia formal cresce e a massa salarial incrementa-se, a demanda pelos produtos da economia popular se incrementa de maneira proporcionalmente maior. De fato, tanto a realidade do setor formal como o do setor 12

No estudo “Economia Informal Urbana: Município do Rio de Janeiro, 1994”, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define como pertencentes ao setor informal, “todas as unidades econômicas de propriedade dos trabalhadores por conta própria e de empregadores com até cinco empregados”, caracterizando-se “pela produção em pequena escala, baixo nível de organização e quase inexistência de separação entre capital e trabalho, enquanto fatores de produção”. O IBGE destaca que, “embora útil para propósitos analíticos, a ausência de registro não serve de critério para a definição do informal na medida em que o substrato da informalidade se refere ao modo de funcionamento da unidade econômica, e não a seu status legal ou às relações que mantêm com as autoridades públicas” (em IBASE/SEBRAE, 1997, p. 7-8, 14).


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informal estão determinadas em um só processo, pois uma não é independente da outra na determinação de sua existência (Prandi, 1978). Assim que, mesmo existindo uma grande gama de atividades que, de acordo com determinados critérios, pode ser classificada sob o termo de “trabalho informal”, a verdade é que “existe uma única economia com um único sistema de circulação monetária e um único sistema bancário, e não é necessário postular uma economia informal separada da denominada formal” (Pahl, in Prieto, l994, p. 256)13. Embora os economistas se valham de vários critérios para delimitar o mundo da economia informal e também os governos, organismos internacionais e ONGs dirijam políticas de desenvolvimento para esse setor da economia, a economia popular não se define pela ilegalidade ou informalidade dos empreendimentos populares. Desde a perspectiva da economia crítica, o conceito de economia popular tem sido construído considerando que, apesar dos diferentes tipos de unidades econômicas organizadas pelos setores populares costumarem apresentar algumas características consideradas específicas do chamado setor informal, os conceitos de economia formal e economia informal já não são capazes de explicar o novo e complexo tecido social em que os setores populares desenvolvem suas atividades produtivas. Em geral, para a “economia crítica”, a economia popular é entendida como um setor que corresponde à atividade econômica desenvolvida pelos setores populares para tentar satisfazer às suas necessidades básicas. Seu objetivo não é a acumulação do capital e, sim, a reprodução da própria vida. 13

Também com respeito aos debates sobre os conceitos e relação entre os setores formal e informal da economia, vejam-se, entre outros, os trabalhos de Bagnasco (1983 e 1991).


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No entanto podemos inferir que a forma de concebê-la pode resultar em conceitos que, em alguns aspectos, diferenciamse, contrapondo-se ou complementando-se, de acordo com as diversas perspectivas e projetos de sociedade que fundamentam as práticas concretas de seus atores e agentes. Estudando essa temática, entre os pesquisadores latino-americanos que se dedicam à economia popular, destacamos aqui, de forma sintética, Orlando Nuñez, José Luis Coraggio e Razeto, complementando, posteriormente, com outros autores que nos ajudam a analisar a questão. A partir da experiência nicaragüense14, Nuñez acredita que a economia popular está composta pelos operários e assalariados do campo e da cidade, os pobres e desempregados, os produtores-trabalhadores diretos, individuais e agrupados em redes, sindicalizados ou cooperativados, associados ou autogestionados, que, apesar de subordinados e dirigidos pela economia capitalista, não estão dispersos, tendo como identidade pertencer a um projeto de desenvolvimento nacional, alternativo ao capitalismo (1995, p. 244-5). Os atores da economia popular, orientados pela “valorização da força de trabalho e pelo valor de uso, valor de uso dos bens e

14

Na Nicarágua, tentando resistir às políticas implementadas pelos atuais governos de desapropriação das terras agrícolas coletivizadas durante a revolução sandinista e sua devolução aos somozistas (antigos proprietários da terra), existem 150 mil trabalhadores assalariados permanentes no campo, entre os quais, hoje em dia, há uma taxa de desemprego aberto e/ ou encoberto de 65%. Na APTs agropecuárias (Área de Propriedade dos Trabalhadores), vivem atualmente em torno de 25 mil sócios; as APTs industriais, comerciais e de serviços aglutinam cerca de dez mil trabalhadores organizados em torno de cem empresas. As APTs estão dentro do programa econômico da Frente Sandinista de Liberação Nacional (FSLN) e incluídas no programa do Movimento de Renovação Sandinista (MRS) (Núñez, 1995, p. 295-306).


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valor de uso da própria força de trabalho” (ibid, p. 291), não somente se “refugiam” na produção mercantil, também têm uma estratégia associativa e autogestionária em torno da produção mercantil, como projeto de emancipação: Da mesma maneira que no capitalismo, na evolução do socialismo existem diversos momentos e etapas que podem suceder-se ou conviver simultaneamente; neste sentido somos da opinião que o projeto associativo e autogestionário da atual economia popular não exclui qualquer experiência socialista em marcha ou por vir. (Nuñez, 1995, p. 179)

Tendo como referência as revoluções socialistas anteriores, Nuñez fala da perspectiva de uma “economia popular, associativa e autogestionária” que não pode ser concebida fora do contexto maior de um projeto revolucionário. Para ele não é preciso esperar pela tomada do poder para que possam ocorrer avanços significativos, pois eles mesmos são parte da tomada do poder político, são parte da revolução, da transição e da construção do socialismo. Devido a que o controle do Estado exige o controle da economia, a revolução socialista terá de seguir o mesmo caminho da revolução burguesa: “questionar a velha ordem econômica, social e política”. Assim, será necessário “incubar novas formas de produção; madurar sua superioridade no seio da velha sociedade, até que a tomada do poder político seja um resultado que permita completar sua tarefa” (1997, p. 50). Considerando o acúmulo de experiências autogestionárias e grande potencial de associatividade empresarial, acredita Nuñez que “é precisamente nas formas de produção e de intercâmbio mercantil simples onde se pode expressar a possibilidade de que os setores da economia popular possam fazer incursões na economia como estratégia de mercado” (1995, p. 119). Dessa perspectiva, a economia


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popular corresponde a uma luta defensiva e, ao mesmo tempo, ofensiva: é concebida não somente como frente de resistência à lógica do capital, mas também como frente de luta para a instauração de uma nova ordem mundial: Ainda que uma grande quantidade de unidades econômicas populares seja muito democrática, estará condenada a se subordinar ao sistema capitalista se não consegue ascender a uma economia de escala. Efetivamente, a única maneira em que uma economia popular pode empreender uma estratégia de mercado e tentar competir com o capitalismo e sua economia de escala, sem que os produtores-trabalhadores populares se convertam em capitalista, é precisamente através da associatividade. (ibid, p. 121)

Uma segunda concepção de economia popular está representada pelo argentino Coraggio. Para esse autor, é necessário que os economistas busquem na realidade concreta os dados empíricos que tenham por referência os atores e interlocutores centrais da política econômica. Afirmando não ser possível uma visão da totalidade do sistema econômico se o reduzimos a apenas dois subsistemas (formal e informal), indica que é preciso incorporar a economia popular como mais um subsistema. Na verdade, dada a complexidade do novo tecido social, a economia estaria dividida em três subsistemas: economia empresarial-capitalista, economia pública (empresarial estatal e burocrática estatal, não orientada para o lucro) e economia popular (Coraggio,1991, p. 334). Em seu trabalho posterior (1997, p. 36) apresenta o seguinte esquema sobre os atuais subsistemas econômicos, com suas respectivas lógicas e agentes:


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Subsistema

Lógica/Sentido

Agentes

Economia empresarial

acumulação de capital

empresas e suas redes e aparatos ad hoc.

Economia pública

acumulação/legitimação do poder

Organizações do Estado, partidos políticos, redes e aparatos ad hoc.

Economia popular

reprodução ampliada da vida

unidades domésticas, suas redes e aparatos ad hoc.

Compreendendo a economia popular como o conjunto de recursos, práticas e relações econômicas próprias dos agentes econômicos populares, o autor adiciona que são as organizações econômicas domésticas a unidade elementar de constituição do terceiro pólo da economia metropolitana e que são suas redes interativas de circulação de bens, serviços e informações, potencializadas pelos centros que as apóiam, as que lhes dão organização. Diferente de outros setores, cujas lógicas são a da acumulação e a da legitimação do poder, o setor da economia popular inclui todas as unidades domésticas que “não vivem da exploração do trabalho alheio, nem podem viver da riqueza acumulada (incluídos investimentos em fundos de pensões, etc.), mas que seus membros devem continuar trabalhando para realizar expectativas médias de qualidade de vida [...] ainda que todos ou alguns de seus membros trabalhem em outros dos subsistemas” (ibid). Coraggio considera que uma das características relevantes da economia popular urbana é o caráter múltiplo de sua identidade. Considerando as relações econômicas por ela estabelecidas como não isoladas do conjunto do sistema, destaca que “se trata de um segmento dependente, subordinado, e que sem mudar tais condições não se pode propor um projeto de desenvolvimento independente” (1991, p. 340).


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Além disso, devido ao fato de que muitas das atividades da economia popular urbana “cumprem em nível macrossocial um papel mais redistribuidor que criador de riquezas (a intermediação informal “socialmente necessária”), não é possível qualificar, aprioristicamente, esse segmento, como “economia de solidariedade”. Desse modo, “o grau e as formas de solidariedade deverão ser determinados em cada caso e [de acordo] com a conjuntura local ou nacional específica” (1991, p. 341). Mais que mitificar os valores populares e idealizar uma cultura popular que foi produzida sob a lógica da dominação, o desafio radica-se em como materializar um projeto comum que possa fortalecer-se e se confrontar com os outros setores da economia global. Portanto: Trata-se de ir construindo democraticamente uma estratégia compartida para ir transformando a sociedade mas também para reformar o poder estatal. [...] Um poder estatal que esteja fortemente fundado na sociedade e que dependa menos de imagens ideológicas e mais de histórias e práticas compartidas. Trata-se de ir ganhando espaço no mercado dirigido por poderes monolíticos ou pela tendência à acumulação sem limites e, portanto, de uma contraposição de valores, pugnando por controlar o mercado como instituição criada pelo homem, fazendo predominar a reciprocidade e a qualidade da vida por cima do enriquecimento de uns poucos e a degradação das maiorias. (ibid, p. 356).

Em síntese, quanto às perspectivas de desenvolvimento da chamada economia informal, Coraggio identifica três correntes de pensamento: a) a corrente neoliberal, representada por Soto (1987), que considera a necessidade de mudar as regulações estatais para que aqueles setores possam sair da informalidade; b) a corrente empresarial-modernizante, que, sob as vertentes individualista ou associativista, está presente nos programas de governo, organismos internacio-


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nais e ONGs, os quais se propõem a modernizar os pequenos empreendimentos, para atingir a sua competência no mercado; e c) a corrente solidária, associada principalmente a grupos cristãos católicos e que, contando com a ajuda das ONGs, pretende estender “de baixo”, desde o local, os valores de solidariedade e reciprocidade, nas estratégias familiares e comunitárias de sobrevivência. No entanto haveria uma quarta proposta, distinta das anteriores, ainda que possa tomar elementos delas: não idealizando os valores e as práticas populares atuais e não se propondo a superá-las tendo como meta a modernidade capitalista, trata-se de uma proposta de construção de uma economia popular que “tampouco aceita a opção excludente entre sociedade e Estado, mas que se propõe a trabalhar em sua interface, prevendo que o atual processo de desmantelamento dará lugar necessariamente à geração de novas formas estatais” (Coraggio, 1995, p. 160-163). Além da de Nuñez e da de Coraggio, uma terceira concepção de economia popular está representada por Razeto, que tem-se dedicado aos aspectos “macros” da problemática, mas, também e fundamentalmente, aos aspectos micros das unidades econômicas e de suas redes associativas15, tendo como perspectiva a constituição e o fortalecimento de um “mercado de solidariedade”. Sobre o conteúdo desse setor, o autor acredita que, sendo muito complexa e heterogênea e constituindo-se como o resultado de diferentes atividades e experiências que os setores populares desenvolvem com o objetivo de tentar assegurar a satisfação de suas necessidades econômicas, a economia popular está com15

Daí que, sem descartar os contribuições teóricas de Coraggio, Orlando Nuñez e outros autores, elegemos Razeto como nosso principal interlocutor na análise do trabalho de campo (ver capítulo 4)


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posta basicamente de cinco tipos de atividades e empreendimentos, os quais podem dar lugar à formulação de uma tipologia: • soluções assistenciais, como mendicância nas ruas, subsídios oficiais para indigentes, sistemas organizados de beneficência pública ou privada orientados a setores de extrema pobreza etc.; • atividades ilegais ou envolvendo pequenos delitos, como prostituição, pequenos roubos, pequenos pontos de venda de droga ou outras atividades consideradas ilícitas ou à margem das normas sociais e culturais; • iniciativas individuais informais, como comércio ambulante, serviços domésticos de pintura e limpeza, mensageiros com locomoção própria, guardadores de carros, coletores e vendedores de ferro-velho etc., muitas vezes vinculadas ao comércio formal; • microempresas e pequenos escritórios e negócios de caráter familiar, individual ou de dois ou três sócios, como pequenos comércios de bairro, oficinas de costura, bares etc. (geralmente dirigidos pelos próprios proprietários, com a colaboração da família); • organizações econômicas populares, como organização de pequenos grupos para buscar, associativa e solidariamente, a forma de encarar seus problemas econômicos, sociais e culturais mais imediatos (geralmente surgidos de paróquias, comunidades, sindicatos, partidos políticos e outras organizações populares) (Razeto, 1993b , p. 36-37). Considerando as diversas atividades desenvolvidas pelos setores populares, o potencial da economia popular consistiria em “pouco a pouco, esta estratégia defensiva, de sobrevivência, transformar-se numa opção social, econômi-


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ca e política” (Razeto, 1993a, p. 37). Para o autor, as diferentes modalidades de iniciativas produzidas pelos setores populares não se caracterizam pelo investimento de capitais, mas pelo investimento de trabalho. No entanto, nem toda economia popular é solidária, devido ao fato de nela não sempre estar presente o fator C (letra que, em muitos idiomas, é a inicial de palavras como cooperação, companheirismo, colaboração, comunidade, coletividade, coordenação...) – símbolo de valores que caracterizam uma ação conjunta e solidária. Do mesmo modo, nem toda economia de solidariedade é economia popular, já que é possível encontrar elementos de solidariedade em outras organizações ou em outras atividades econômicas realizadas por setores sociais não-populares (Razeto, 1993b, p. 39-43). Entre as diferentes atividades que compõem o mundo da economia popular, destacar-se-iam as “organizações econômicas populares” (OEPs), que, como iniciativas organizadas e solidárias, transitando entre a economia popular e a economia de solidariedade, apresentam algumas características e aspectos comuns: a) são iniciativas que desenvolvem os setores populares tanto no campo como nas cidades, alcançando uma maior extensão nos cinturões de pobreza dos grandes centros urbanos; b) não são iniciativas meramente individuais, mas associativas, nas quais se organizam as pessoas e/ou famílias em pequenos grupos ou comunidades; seus integrantes não se apresentam como multidões anônimas, mas são facilmente identificáveis; c) são iniciativas organizadas em que seus integrantes propõem, de forma explícita ou informalmente, um programa de atividades com objetivos precisos, dando lugar a uma estrutura e procedimentos para a tomada de decisões;


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d) são iniciativas para enfrentar um conjunto de carências e de necessidades concretas como geração de trabalho e salários, alimentação, moradia, saúde etc.; além das fisiológicas, busca-se satisfazer às necessidades individuais de convivência, de desenvolvimento da cultura, de educação, de autonomia e integração crítica na sociedade. e) são iniciativas que buscam enfrentar os problemas por meio de uma ação direta, mediante o esforço coletivo e a utilização de recursos próprios; f) são organizações que implicam relações e valores solidários, não como algo acessório ou secundário, mas como algo inerente ao modo com que se busca enfrentar os problemas e satisfazer às necessidades; g) são organizações que, embora tenham de experimentar variadas formas de dependência com respeito aos sujeitos externos, pretendem que a dinâmica interna das relações entre seus integrantes se dê de maneira participativa, democrática, autogestionária e autônoma; h) são iniciativas que não se limitam a uma só atividade, mas que tendem a ser integrais, combinando atividades econômicas, sociais, educativas e culturais; i) são iniciativas que pretendem ser diferentes e alternativas com respeito ao sistema vigente, propondo-se ser, ainda que em pequena escala, uma mudança social, na perspectiva de uma sociedade melhor e mais justa; j) são experiências que, surgindo dos setores populares para fazer frente a suas necessidades, geralmente são apoiadas por instituições religiosas ou organizações não governamentais, através de atividades de capacitação, assessoria e doação de recursos materiais, tendo como objetivo o desenvolvimento social, cultural, político, econômico e humano integral dos setores populares (Razeto, 1990, p. 11-14).


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Assim como o é a própria realidade, as OEPs são heterogêneas com respeito não só à sua possível constituição jurídica, mas também ao grau em que apresentam os dez elementos anteriormente citados; os grupos podem ser mais ou menos coesos, de acordo com a clareza, a pertinência e a aceitação de seus integrantes quanto à finalidade da organização associativa e, evidentemente, de acordo com o grau de adversidade que o meio lhes proporciona. De acordo com sua história e com a cultura grupal, constroem identidades próprias que os distinguem das demais por suas formas específicas de gestão, pela relação que os trabalhadores estabelecem entre si, com a comunidade local e com a sociedade. Entendendo a economia popular de solidariedade como um ponto de interseção entre a economia popular e a economia de solidariedade, as organizações econômicas populares (OEPs) seriam concebidas como um modo de fazer a economia cuja tendência (não necessariamente sua realidade) é a de constituir como um modo de produzir e distribuir bens e recursos e de consumir alternativos ao capital. Sob a forma de cooperativas, grupos de produção, centros comunitários, associações etc., legalizados ou não, é necessário distinguir as OEPs das pequenas microempresas convencionais, pois aquelas não se caracterizam pelo investimento de capitais com o objetivo de sua máxima rentabilidade, mas, fundamentalmente, pelo investimento da força de trabalho16. Mas, qual seria a diferença entre uma empresa capitalista e uma OEP? Se o desafio não é a acumulação do capital, o que significa dizer que os fins da OEP se definem como sociais e de ajuda mútua? 16

Para Ortiz (1993), nem toda microempresa é uma OEP, ainda que uma OEP possa ser uma microempresa quando se caracteriza por ter uma organização solidária em que a gestão se realiza com a participação de todos os seus integrantes.


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Não se trata de unidades em que se unificam as figuras do empresário capitalista e do operário assalariado, ou em que ambos, em um processo de cogestão, constituem-se como acionistas da empresa. Trata-se de organizações compostas por trabalhadores pertencentes aos setores populares nas quais, desaparecendo as relações empregador-empregado, desaparece também o trabalho assalariado como forma de valorização do capital. Nessas organizações, muitas vezes, a remuneração do trabalho, como uma quantidade variável que resulta da repartição dos excedentes, costuma representar somente o mínimo necessário para a subsistência dos trabalhadores e seus familiares; no entanto, já não estando sob a coerção e o controle do proprietário dos meios de produção, o processo de trabalho não se converte em um instrumento de criação de mais-valia e, tampouco, a própria produção converte-se em processo de reprodução do capital, mas em um processo de valorização do próprio trabalho. As organizações econômicas populares representariam uma particularidade da economia popular, apresentando, em diferentes níveis, uma racionalidade interna distinta das demais iniciativas empreendidas pelos setores populares e da própria racionalidade da empresa capitalista. Para Razeto, a diferença fundamental residiria na dimensão social da organização econômica, que atua “sempre em benefício de grupos sociais cujo posto e função na sociedade não está dada pela possessão de capitais, mas pela carência deste e que, precisamente por este motivo, encontram-se subordinados em uma sociedade capitalista” (1991, p. 51). Ainda que não disponha de capitais, busca organizar os fatores e recursos econômicos de modo a atuar no mercado de maneira relativamente autônoma, não subordinada ao capital, mas ao fator financeiro.


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Para esse autor, trabalho e comunidade são as categorias econômicas organizadoras das “empresas alternativas”. Mais do que o princípio ou fundamento da cooperação, são exatamente estas duas categorias que, ao contrário das demais empresas (que subordinam a pessoa e a comunidade ao capital), vão configurar relações sociais que valorizam o homem, a mulher, a comunidade e a solidariedade. Em outras palavras, as relações de solidariedade não se configuram como algo já dado, a partir da idéia da benevolência humana, mas a partir das categorias econômicas específicas constituintes da racionalidade de um processo econômico que, não por casualidade, chama-se convencionalmente de “economia popular de solidariedade”. Dependendo do grau de estabilidade e duração das alternativas econômicas, ou dependendo do valor que seus protagonistas lhes atribuam, Razeto distingue três níveis de atividade: a) estratégias de sobrevivência (emergencial e transitória); b) estratégias de subsistência (satisfação de necessidades básicas, não sendo possível nenhuma forma de acumulação ou crescimento); c) estratégias de vida (valorização da liberdade/companheirismo/autogestão, preferência por trabalhar por conta própria ou porque consideram-se fechadas as formas tradicionais de trabalho) (1993bb, p. 378)17. Como um indicador do crescimento das OEPs no interior da economia popular, as investigações desenvolvidas pelo Programa de Economia do Trabalho (PET) constatam que, entre 1982 e 1992, do total dos integrantes de pequenas unidades localizadas na área metropolitana, 70% dos que 17

Outras terminologias são utilizadas para distinguir os três níveis básicos de desenvolvimento das iniciativas econômicas populares: “sobrevivência, subsistência e desenvolvimento” (Ortiz, 1993, p. 15), “sobrevivência, acumulação simples, acumulação ampliada” (Parra, apud Silveira e De Mello, 1991, p. 50).


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inicialmente consideravam suas atividades apenas como um recurso para reduzir os problemas do desemprego passaram a afirmar que não estavam interessados em voltar ao mundo do trabalho assalariado. Em outras palavras, em uma década, as atividades que até então eram consideradas como estratégias de subsistência e de sobrevivência, passaram a ser entendidas como de integração econômica (Razeto,1993b) e muitas vezes como estratégias de vida18. Ora, a perspectiva de mudança social de Luis Razeto é distinta tanto da de Orlando Nuñez como da de José Luis Coraggio. Porém, ao contrário do que afirma Coraggio sobre Razeto, o autor chileno não reduz a economia popular à economia de solidariedade, mas identifica as organizações econômicas populares (OEPs) como uma de suas particularidades, e, ao mesmo tempo, reconhece-as como elemento que pode gerar um “processo de solidarização progressiva e crescente da economia global” (Razeto, 1993c, p. 18). A partir de uma visão nitidamente cristã, Razeto enfatiza a dimensão espiritual da economia de solidariedade, propon-

18

Entre as diversas experiências chilenas, vale a pena conhecer a das Feiras da Economia Solidária (FESOL), organizadas desde o ano 1991 com o objetivo de articular e fortalecer as diferentes iniciativas dos trabalhadores, ampliando e consolidando a inserção de seus produtos e serviços no mercado. Em 1993, a FESOL congregou 1.100 organizações econômicas populares, contando com a participação de dez ONGs de apoio. Além dos estudos e atividades desenvolvidas pelo Programa de Economia do Trabalho (PET) em torno da economia popular, ver também as experiências do “Instituto Vivarium para o Desenvolvimento da Economia de Solidariedade e Trabalho”, organização dirigida ao setor dos trabalhadores autônomos e associados da economia popular. Conforme um documento de apresentação, o Instituto pretende ser “um viveiro para o cultivo dos valores, idéias, sentimentos, comportamentos e relações próprios de uma cultura e uma economia de solidariedade e trabalho (mimeo, 1997).


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do um modelo econômico alternativo que possa ser o resultado do aperfeiçoamento das práticas populares e de sua paulatina universalização no conjunto da sociedade. Tendo como horizonte uma nova racionalidade econômica extensível à economia global, enfatiza a “necessidade de introduzir a solidariedade na economia, de incorporar a solidariedade na teoria e na prática da economia” (ibid, p. 14)19. De nossa parte, pensamos serem muito significativas as contribuições dos três autores, no sentido de que nos ajudam a refletir sobre a complexidade da economia popular. Em primeiro lugar, é necessário desmitificar a concepção de que “o bom” é o que vem do povo. Além do mais, a economia popular não resulta somente da iniciativa autônoma dos setores populares, mas também se prolifera a partir do estímulo e da ação dos empresários, de organismos internacionais, dos governos, dos setores conservadores e social-democratas, da igreja e dos movimentos sociais. Ou seja, considerando as diferentes perspectivas políticas presentes na consigna “combater o desemprego”, pensamos que a corrente neoliberal e a corrente empresarial-modernizante (Coraggio, 1995) estão fortemente representadas na dinâmica do dito 19

Razeto enfatiza que “por muito tempo os chamados à solidariedade, à fraternidade e ao amor permaneceram exteriores à própria economia. Comprovamos esta distância na ação social que instituições cristãs realizavam entre os pobres, que deram lugar a verdadeiras organizações econômicas, dificilmente reconhecidas como tais. (...) Muitas dessas resistências foram superando-se entre nós desde que S. S. João Paulo II, em sua viagem ao Chile e Argentina em 1987 e especialmente em seu discurso na CEPAL, difundiu com força a idéia de “uma economia de solidariedade” na qual, disse, ‘poremos todas as nossas melhores esperanças para a América Latina’. Tal chamado foi fundamental na discussão e incorporação à cultura latino-americana de uma economia de solidariedade, mas o conteúdo dela permanece indeterminado e impreciso para muitos.” (Razeto, 1993d, p. 13-4).


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setor da economia, o qual, mesmo sendo heterogêneo e disperso, não se configura como um setor que, necessariamente, possa representar os interesses populares. Por tudo isso, é necessário “separar o joio do trigo”, identificando o caráter das diferentes iniciativas de geração de trabalho e renda: quem são seus atores, quem são seus agentes, que diferentes perspectivas de sociedade orientam os projetos e as práticas das experiências populares.

Os atores da economia popular: quem pega pesado no trabalho? Alguns dados confirmam a exoistência de um grande “exército de excluídos”. Segundo as estatísticas da Organização Internacional do Trabalho, em 1995, existiam no mundo cerca de duzentos milhões de crianças sem infância, dos quais cem milhões viviam na rua. Embora seja de quatorze anos a idade mínima admitida pela OIT para o ingresso no trabalho, o número de crianças trabalhadoras é muito grande, principalmente na África, na Ásia e na Amética Latina. Estima-se que 11% da população economicamente ativa da Ásia e 17% da África estavam constituídos por menores de idade. No Paquistão existiam vinte milhões de trabalhadores submetidos ao regime de semi-escravidão, dos quais 7,5% são crianças. No Brasil, dos 150 milhões de habitantes, oito milhões eram meninos e meninas de rua que, frente à miséria, são empurrados precocemente para o mundo do trabalho informal ou marginal20. 20

“Niños sin infancia”, El País, Madrid, 20/1/95.


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Seguindo a maldição bíblica de “ganhar o pão com o suor do rosto”, homens, mulheres e crianças trabalham por conta própria, recebendo remunerações miseráveis, e, além de viverem no mundo da mendicância, prostituem-se por dinheiro, comida e droga. Diz o dito popular que as pessoas “fogem do trabalho como o diabo foge da cruz”, embora a realidade nos indique o contrário: frente à crise do emprego, a busca por uma atividade laboriosa é, para os jovens e adultos e também para as crianças e os idosos, uma necessidade para garantir as condições mínimas e imediatas de subsistência. Na verdade, a vida da maioria das pessoas (mesmo de classe média) continua a girar em torno do trabalho, seja do mundo da economia formal ou informal, oculta ou submergida, seja trabalho “legal”, “trabalho negro” ou “sujo”. Em um momento em que o trabalho assalariado, além de não garantir uma remuneração suficiente para a satisfação das necessidades básicas, apresenta-se como um bem escasso, a lógica que move as pessoas não é necessariamente buscar um emprego, mas tentar assegurar a sobrevivência por meio da iniciativa própria. Pelo que se sabe, nunca se trabalhou tanto e, como resultado do desemprego involuntário, as pessoas têm buscado qualquer tipo de “bico”, tanto no centro como na periferia das grandes cidades. Para fazer referência ao conjunto dos pequenos empreendimentos econômicos criados pelos trabalhadores, o termo “economia popular” é questionável: com quais critérios definimos o que é “o popular”? Evidentemente, há que perguntar-se se o tráfico de drogas, por exemplo, forma ou não parte da economia popular. Geralmente atribuído aos setores populares, o problema da marginalidade urbana costuma estar associado aos debates e investigações sobre o chamado setor informal e, em particular, à “economia informal criminal”, hoje tão di-


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fundida nas grandes regiões produtoras e/ou distribuidoras de drogas, como Colômbia, Bolívia e Peru. Estendendo-se a outros países da América Latina, entre os quais o Brasil, o incremento do consumo e da distribuição de cocaína, desde o início dos anos 80, foi considerado como a principal causa do aumento da violência nos grandes centros urbanos e, em especial, no Rio de Janeiro, desde o final dessa década 21. No entanto, em relação ao possível caráter “marginal” das iniciativas econômicas empreendidas pelos setores populares, um recente estudo sobre a realidade de 101 pequenos empreendimentos no Rio de Janeiro (dos quais quarenta estavam localizados em favelas e outros quarenta em áreas onde predominam setores sociais e atividades de baixa renda) indica-nos ser possível estabelecer as distâncias sociais entre os envolvidos no “mundo da delinqüência” e os que estão “fora da lei”, inclusive com a proximidade física existente entre eles. Ainda que não tenham o contrato de trabalho ou o certificado de atividade econômica como forma de distinguir o legal do ilegal, a opção pelo trabalho, em detrimento da delinqüência, evidencia-se pela realização de atividades lícitas, apesar de “informais”: É o trabalho, mais do que qualquer outro elemento, que dá o sentido de pertencimento a determinado grupo e, em contraposição, de afastamento do outro. Em um mundo partido entre o tráfico, o ilícito e ilegal por excelência e o trabalho, este torna-se marca simbólica fundamental de inclusão na ordem legal e legítima da sociedade. (IBASE/SEBRAE, 1997, p. 26)

21

Para uma análise crítica da economia informal ilícita ou criminal e, em particular sobre o mercado de narcotráfico e sua relação com a violência no Rio de Janeiro, ver Misse (1997). Sobre outros tipos de delitos e conflitos entre vizinhos, ver também a investigação coordenada por Cariola (1992) em relação à cotidianidade dos lares pobres na Venezuela.


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A citação anterior evidencia-nos também que os conceitos “trabalho negro”, “trabalho clandestino”, “oculto” etc. não esgotam todos os tipos de atividades geradoras de renda, constituintes da diversificada economia popular. Ainda mais, olhando por dentro das favelas e de outras comunidades de baixo nível de renda, há que considerar-se que, por detrás do preconceito e dos estereótipos de violência, de banditismo e vagabundagem, o trabalho se apresenta com outra cara. Tentando otimizar os escassos recursos existentes para a reprodução da vida-trabalho, as pessoas desenvolvem atividades que vão desde a prestação de pequenos serviços (nos bairros nobres da cidade ou no próprio bairro) às barraquinhas de cachorro-quente e indústrias artesanais localizadas no fundo da favela. Além de autoproduzir bens para o consumo próprio (como a autoconstrução do barraco, a criação de animais e a costura caseira) e da busca de redes de apoio solidário de caráter familiar, local ou de instituições assistenciais, a incorporação ao mercado de trabalho urbano é a principal fonte de renda, que pode ocorrer mediante a venda direta da força de trabalho ou o “autoemprego”, sejam esses considerados lícitos ou ilícitos. Diferentemente das experiências históricas de produção associada (assunto a ser visto no Capítulo 3), em que a propriedade dos meios de produção tinha como alvo a instauração de uma nova cultura do trabalho, o objetivo imediato das estratégias de sobrevivência é manter-se vivo, inventando formas criativas de ganhar o pão de cada dia. Frente à situação de extrema pobreza, as formas de “autoemprego”, ou, melhor dito, as formas de trabalho por conta própria, não significam necessariamente a autonomia do trabalhador. São formas de subemprego/subtrabalho, representativas de um novo estilo de submissão do trabalho ao capital.


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Ou seja, em geral, a atividade do “vendedor-de-picolé” e de outros ambulantes pelas ruas da cidade não significa um “autoemprego” e nem, necessariamente, um “trabalho temporário” – compreendido como um contrato com determinada data de duração. A autonomia dos trabalhadores radica-se em sua liberdade para escolher entre morrer e não morrer de fome; seu trabalho é “temporário” à medida que não sabe por quanto tempo é possível mantê-lo. Talvez tenha de fugir da fiscalização e/ou mudar de atividade, dedicando-se a pequenos furtos. Evidentemente, na busca intensiva de satisfazer as necessidades básicas, os setores populares têm de estender sua jornada de trabalho, necessitando, assim, limitar sobremaneira o tempo de descanso e convivência, ocasionando seqüelas para a saúde física e mental, sua e de sua família. “Também se vêem obrigados a abandonar aspirações muito sentidas como o direito de estudar ou cuidar de seus filhos pequenos” (Cariola, 1992, p. 160). Nas distintas modalidades de estratégias de sobrevivência, trata-se de incorporar o maior número possível dos membros da “família” – não entendida somente em sua concepção clássica baseada em laços de consangüinidade, mas fundamentalmente estruturada a partir dos sujeitos que contribuem para a manutenção da unidade doméstica, do lar. Dependendo da situação de maior ou menor carência, a força de trabalho das crianças desempenha um papel principal ou secundário na soma das rendas pessoais de cada um dos membros da família, seja no cuidado de seus irmãos menores (enquanto os adultos saem para “ganhar a vida”), seja através de sua inserção direta no mercado do subtrabalho.


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Graças à capacidade para desenvolver estratégias de sobrevivência, as crianças e jovens exercem “profissões” variadas, valorizando qualquer atividade que lhes permita levar dinheiro para casa: vendedores de alguma coisa nos semáforos, limpadores de pára-brisas, limpadores de sapatos, limpadores de veículos, carregadores nas feiras e mercados, empacotadores de supermercados, catadores de lixo reciclável e, ainda, “catadores de pulgas de cachorro de madame” (Maccariello, 1986). As meninas costumam trabalhar não só nos lares das classes economicamente favorecidas, residentes nos bairros nobres da cidade, mas também nos lares dos favelados, que, para poder trabalhar, necessitam deixar seus filhos com alguma segurança. Além do trabalho como “babá” na favela, algumas meninas têm a oportunidade de exercer a atividade de educadoras leigas em creches organizadas e administradas por um grupo de mães ou ainda pela associação de moradores. Na escola da vida os trabalhadores aprendem outras formas de sobreviver: além de envolverem-se, individualmente e em grupo, em atividades de pequenos furtos e de prostituição, exercem outros ofícios ilegais. De acordo com os dados da polícia da cidade, em l993 havia cinco mil menores trabalhando com o narcotráfico nas favelas do Rio de Janeiro. Em geral são os meninos os que exercem a função de “avião” (levar a mercadoria para o consumidor) e as meninas são as “fogueteiras” (soltam fogos de artifício para anunciar a chegada da droga e/ou alertar os traficantes sobre a presença da polícia na favela)22. Como não poderia ser 22

“Miss Brasil 2000”, publicação sobre a situação das meninas de rua. UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância e Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, l994.


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diferente, é no contexto da vida e do trabalho que crianças, jovens e adultos dos setores populares constroem sua identidade, sintetizando-a a partir dos diferentes modelos de humanidade que a vida real lhes apresenta: ser “bandido”, ser trabalhador ou, ainda, “malandro-trabalhador”23. De uma perspectiva romântica e idealizada, de que a criatividade espontânea do povo (como um todo homogêneo e autônomo) manifesta os mais altos valores humanos, poder-se-ia objetar que quem não desenvolve atividades laborais lícitas ou encontra-se à margem das normas sociais e culturais (e, portanto, não se incluiria “na ordem legítima da sociedade”) não se constitui como ator da economia popular. Não concebendo o popular como algo “puro”, “bom” e tampouco necessariamente “liberador”, concordamos com Canclini que “as culturas populares são o resultado de uma apropriação desigual do capi-

23

A investigação de Suzana Coelho (1993) sobre o universo cultural e sua relação com a constituição das identidades masculinas entre os jovens trabalhadores favelados analisa o dilema entre “ser ou não ser trabalhador”, ou seja, entre optar pelo mundo do trabalho ou o ‘mundo do crime’. Considera que as questões como a estrutura do mercado de trabalho, as oportunidades e os benefícios sociais não constituem um mero cenário onde se desenvolvem hábitos, valores e comportamentos. Fatores como as condições de desemprego crônico e a ausência de infra-estrutura urbana, além dos processos educativos gerados pela escola, pela igreja e sindicato, produzem diferentes respostas nos sujeitos sociais, dependendo de sua inserção e de sua experiência concreta na cidade e no mundo do trabalho.


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tal cultural, uma elaboração própria de suas condições de vida e uma interação conflitante com os setores hegemônicos” (1984, p. 63) 24. Como uma resposta dos que negam a fatalidade de sua exclusão do sistema formal de trabalho, as diferentes experiências populares de luta contra o processo de exclusão social permitem, “aos que vivem na pobreza, considerar[em] desde outro ponto de vista sua própria situação e lugar na sociedade, ao mesmo tempo que exerce[m] uma influência evidente no domínio da cultura e do modo de vida das classes populares” (Razeto, 1993a, p. 32). Sobre a organização do trabalho, Mandel (1988) acredita que, quando o povo organiza processos de produção de sua própria existência, a tendência é que o faça de forma cooperativa e solidária, contrariando a lógica da produção capitalista 25. No entanto é preciso não desconsiderar que as práticas dos setores populares reproduzem, de alguma maneira, o sistema de dominação que tenta tornar universal a ideologia das classes economicamente dominantes. Uma vez que o conheci-

24

Dada a ambigüidade do termo “popular”, Chauí (1990, p. 39-60) sugere o uso de “culturas do povo” (no plural) a fim de resguardar-nos contra o perigo de considerar todas as manifestações populares como portadoras virtuais da liberação, preservando sua multiplicidade e resistindo às tentativas de sua homogeneização por parte dos setores dominantes. Apesar das formas de resistência do povo ao “autoritarismo das elites”, acredita que é importante considerar que não é pelo fato de que algo se encontre no povo que, necessariamente, pertença ao povo.

25

Para Kabunda (1996), as estratégias de sobrevivência na África e, em especial, a socialização dos meios de produção, sistemas de ajuda mútua e outros tipos de intercâmbio popular representam a ressurreição da cultura africana baseada na solidariedade familiar ou do clã, na mentalidade distributiva, e a busca do bem estar coletivo, ou seja, a supremacia do comunitário sobre o individual.


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mento de si mesmos, como oprimidos, encontra-se prejudicado pela imersão na realidade opressora, em um primeiro momento, em lugar de buscar sua liberação a partir da luta contra o opressor, os oprimidos assumem uma postura de “aderência” ao opressor. Seu ideal é o de serem homens, mas, para eles, “o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros” (Freire, 1975, p. 33). Em nosso ponto de vista, o termo “popular” não carrega uma conotação ideológica no que diz respeito à pertinência dos atores desse subsetor da economia a este ou aquele projeto de vida, de mundo e de sociedade. De qualquer maneira, como assinala Razeto, embora o termo “popular” possa ser posto em questão, “o que ocorre é que na América Latina não temos tanto problema para empregá-lo, pois bem sabemos o que é uma realidade popular e tampouco fechamos os olhos diante da divisão em classes sociais, das crises econômicas, das injustiças que produzem as favelas etc.” (Razeto, 1993a, p. 36). O aumento da pobreza resultante das contradições entre capital e trabalho é um fator indicativo de que os setores populares continuam bastante visíveis no interior de um complexo tecido social. A forma como as pessoas se inserem na estrutura econômica da sociedade apresenta-se como um elemento que caracteriza sua identidade. No entanto, a abertura das fronteiras geográficas para a interação de atividades econômicas e culturais é mais um elemento que não nos permite falar de uma identidade genuinamente “popular”. Segundo havíamos assinalado no capítulo anterior, devido à materialidade dos processos de globalização de bens materiais e simbólicos, já não é possível utilizar a definição socioespacial de identidade. Com as atuais mudanças na materia-


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lidade das relações sociais, torna-se ainda mais evidente que “o popular” não pode ser definido por uma série de conteúdos e pontos internos, como se eles fossem imunes aos processos de massificação e globalização da cultura. Conforme constata Canclini, a dificuldade de seguir falando do “popular” levou os estudiosos à substituição desse termo pelo de “sociedade civil”: A fórmula “sociedade civil” tem a vantagem, às vezes, de distinguir seus porta-vozes do Estado, mas a variedade de seus representantes, o caráter amiúde antagônico de suas reivindicações e a adesão quase sempre minoritária que os sustenta reproduzem os problemas que a conceituação do popular deixara sem solução. Assim como “o popular” foi-se tornando inapreensível pela multiplicidade de encenações com que o folclore, as indústrias culturais e o populismo político o representam, hoje se usa sociedade civil para legitimar as mais heterogêneas manifestações de grupos, organismos não-governamentais, empresas privadas e, até, indivíduos. Apesar dos variados interesses e estratégias que animam esses setores, todos concordam em acusar o Estado pelas desgraças sociais e supõem que a situação melhoraria se este cedesse iniciativas e poder à sociedade civil. Mas como cada um entende de forma distinta este nome, esta entidade amorfa aparece como uma típica comunidade imaginária” [...] A sociedade civil, nova fonte de certezas neste tempo de incertezas, parece outro conceito totalizador ao negar o heterogêneo e desintegrado conjunto de vozes que circulam pelas nações. (Canclini, 1995, p. 33-34)

O termo “sociedade civil”, à medida que homogeneiza os diferentes setores sociais, simplifica a complexidade, dificultando a apreensão das novas identidades que se constituem sob as contradições e os efeitos dos conflitos multiculturais da globalização. Sem deixar de considerar a neces-


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sidade de estudos interdisciplinares e transdisciplinares que contemplem os complexos processos de constituição e reelaboração das identidades, faz-se necessário, ao menos, esclarecer a que classes sociais nos referimos ao falar de economia popular. Para isso, precisamos diferenciar, na sociedade civil, quem são os atores e quem são os agentes da economia popular, ou seja, quem são aqueles que diretamente fazem esses empreendimentos econômicos e aqueles que, de fora, os estimulam por meio de ações criadas pelos governos, ONGs, igrejas etc. Compreendemos que são atores da economia popular não somente as pessoas desprovidas da propriedade e que nada mais têm seus próprios filhos, mas também o conjunto de camponeses, operários urbanos e rurais e demais trabalhadores que não desfrutam, com dignidade, de seus direitos à educação, saúde, habitação, enfim, dos direitos mínimos de cidadania. Nesse sentido, estão incluídos os trabalhadores assalariados ou por conta própria, pertencentes à chamada classe média da sociedade, segmento que, frente à crise econômica, está cada dia mais empobrecido. Em contraposição aos setores economicamente dominantes, compreendemos como setores populares as classes sociais que, devido à sua situação na hierarquia da produção, ficaram excluídos do acesso às riquezas socialmente produzidas. Assim, podemos afirmar que também são atores da economia popular aqueles que integram os setores populares “marginais”, pertencentes às classes com baixo nível de renda, que atualmente buscam formas alternativas de trabalho (lícitas ou ilícitas). Não é possível agrupar em um todo homogêneo a multiplicidade de manifestações culturais e socioeconômicas de todas esferas das sociedades que compõem a economia popular. No entanto, o que permite identificar a natureza


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dos empreendimentos desse setor da economia são, exatamente, seus atores, os quais são oriundos das classes populares, ou seja, das classes-que-vivem-do-trabalho. O fato de serem legalizados ou não é um dado secundário. Também é secundário se, nas estatísticas, oficialmente esses empreendimentos são classificados nos setores “formal” ou “informal” da economia. Caracterizando-se como atividades individuais, unidades familiares, como coletivos de donas de casa, operários ou artesãos, em última instância, o denominador comum desses empreendimentos é o envolvimento neles das pessoas e famílias de baixa renda que, frente à impossibilidade de assegurar o trabalho assalariado e de contar com um sistema de proteção ante o desemprego, mobilizam sua própria capacidade de trabalho e os escassos recursos de que dispõem para gerar seus meios de sobrevivência e subsistência (Coraggio, 1991). Levando em conta o contexto maior em que se produz a economia popular, é necessário investigar o próprio interior dos empreendimentos populares, tentando compreender as motivações que levam os trabalhadores a enfrentar, associativamente, seus problemas de subsistência e de satisfação de suas necessidades básicas. Seria importante indagarmo-nos como organizam o trabalho, como distribuem as riquezas, como se dá o processo de participação e socialização do saber no cotidiano da produção etc. Mais ainda: em que medida as iniciativas de geração de trabalho e renda se configuram como algo “alternativo”? São uma alternativa à exploração do trabalho assalariado ou simplesmente uma saída imediata para enfrentar a situação de desemprego? Além disso, qual é a real capacidade que têm os experimentos populares de resistir à lógica da sociedade de mercado? Qual é a sua potencialidade para constituir-se como projeto de vida e de mundo?


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Claro que tais atividades populares não são exclusivamente econômicas, mas estão atravessadas por relações sociais, por conhecimentos e valores partilhados entre as pessoas e dessas com a comunidade local e com os agentes das instituições que as apóiam. Assim, para desvelar alguns aspectos da identidade da economia popular, é necessário buscar nos diferentes setores da sociedade quem lhes dá apoio, seus pontos de convergência e de confrontação com o capital. Depois de inferir quem são os atores da economia popular – setor que extrapola os limites do formal e do informal – falta-nos questionar até que ponto sua lógica/sentido consegue ser distinta daquela que caracteriza os demais setores da economia propostos por Coraggio, o que, é claro, requer uma análise não só do interior desses processos produtivos, como também dos diferentes agentes que, hoje, estimulam e impulsionam essa economia: organismos internacionais, governos, empresários, partidos políticos, igrejas e ONGs.

Os agentes da economia popular: alívio aos pobres? Os problemas sociais que ocupam um lugar destacado no debate público na América Latina são os baixos salários, o desemprego e a pobreza (CEPAL, 1997). No entanto, é necessário distinguir os diversos projetos de geração de trabalho e renda e as diferentes perspectivas que orientam seus agentes. Evidentemente, os atores sociais integrantes das ONGs, dos partidos políticos ou dos sindicatos, por exemplo, não se apresentam como blocos monolíticos, mas mani-


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festam as diferentes concepções de mundo e de sociedade que convivem e que se confrontam no interior de uma mesma organização. Igualmente, também de parte da Igreja, o incremento da economia popular pode materializar diferentes lógicas ou sentidos. Conforme nos indicou Razeto (1993b), a dinâmica da economia popular é constituída por cinco grandes tipos de iniciativas, que vão desde atividades de mendicância, prostituição, comércio ambulante, pequenas oficinas individuais de dois ou três sócios, até as chamadas “organizações econômicas populares” (OEPs), as quais, surgidas de paróquias, comunidades, sindicatos, partidos políticos e outras organizações populares, seriam o resultado da organização de pequenos grupos para buscar, de forma associativa e solidária, os meios para a satisfação de suas necessidades básicas. Nesse sentido, a complexidade da economia popular não está dada somente pela diversidade de atividades com que se apresenta, mas também pela complexidade do emaranhado de interesses que orientam cada um de seus agentes e a sua totalidade. Para desnudar os pontos de interseção e confrontação entre as alternativas de trabalho empreendidas pelos setores populares e o projeto econômico neoliberal (e/ ou empresarial-modernizante), é necessário considerar o atual tecido dos movimentos sociais, aprofundando a análise concernente ao fato de que, se, de um lado, os trabalhadores criam instâncias para sua organização como trabalhadores “autônomos” ou como produtores associados, de outro, o governo, os empresários e seus agentes de apoio também estimulam o autoemprego, o cooperativismo e outras formas associativas nas quais os trabalhadores se tornem os proprietários e gestores de seu “próprio negócio”. Assim, cabe perguntar: de que maneira os diferenciados agentes contribuem para configurar a economia popular como realidade e, também, como projeto de sociedade?


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Para os governos e para os empresários, qual é o sentido adquirido pela economia popular e, em especial, pelas pequenas unidades produtivas gestionadas por trabalhadores? Sobre a situação dos países latino-americanos, a OIT informa que, em 1993, no setor não-agrícola, 26,1% das atividades eram desenvolvidas por trabalhadores independentes e 22,3% por trabalhadores empregados em pequenas empresas26. De acordo com os dados de 1990, mais da metade da PEA brasileira (cerca de 35 milhões de pessoas) já trabalhava em iniciativas econômicas com até dez trabalhadores, o que também nos fala diferentemente do ocorrido no período l950-l980, de uma reestruturação produtiva que tem sido marcada pela tendência de um modelo de desenvolvimento já não mais centrado na “grande indústria”, mas em pequenas unidades controladas por uma “empresa-mãe”. Segundo Murray (in Antunes, l995), a realidade atual desafia a tese da centralização progressiva e da concentração do capital exigindo, necessariamente, a concentração da produção em um mesmo espaço físico, pois a produtividade fica agora garantida com a articulação, via informática, das diferentes unidades da empresa-matriz e dessa com as pequenas e médias empresas. Organizando a produção em pequenas unidades, terceirizando os serviços, diminuindo custos de mão-de-obra, as grandes empresas estimularam os “novos-operários” a criar co-indústrias, pseudo-autônomas, que favoreçam a constituição de redes empresariais por meio de uma “divisão empresarial do trabalho”, baseada na cooperação das pequenas e médias empresas com as grandes. Dessa perspectiva, ab-

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Fonte: OIT Informa, América Latina e o Caribe, Panorama Laboral “94.


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sorvido pela legislação brasileira desde os anos 30 27, o cooperativismo vem sendo vislumbrado, hoje, como um mecanismo mais ágil e moderno, capaz de atender as novas exigências do novo modelo de acumulação alicerçado na descentralização da produção e na flexibilização das relações entre capital e trabalho. Um artigo publicado em um jornal brasileiro, integrante de uma grande rede de comunicação, ilustra muito bem o espírito dos empresários em relação às cooperativas de trabalhadores como mecanismo de diminuição dos custos de produção: O desemprego de hoje em dia realmente tem raízes tecnológicas, mas a causa imediata deve de ser buscada no protecionismo exacerbado que paralisa os empresários. [...] Com as cooperativas, desaparecem nas empresas os gastos desnecessários como cargos intermediários, perdas de tempo no trabalho, o desperdício das potencialidades, os trabalhadores passivos ocultos, os inconvenientes da rigidez e a supressão dos custos das contribuições improdutivas. [...] O trabalho cooperativo é um salto de qualidade nas relações sociais entre o capital humano e o capital financeiro, é a consolidação do sonho de ter organizações coesas, ágeis, eficazes, nas quais os resultados obtidos são repartidos com justiça entre as pessoas que desfrutam do pleno direito à cidadania”28. 27

A atual forma de cooperativa foi consolidando-se a partir do decreto n. 22.239 de 1932, durante o governo de Getúlio Vargas. Na década dos 40, outros decretos diversos confirmaram o caráter conservador da legislação brasileira no sentido de regular a vida das cooperativas, vinculando-as ao Estado. A lei n. 5.764/71, de autoria dos militares, cria, então, os mecanismos necessários para a concentração das cooperativas nas mãos dos grandes produtores e industriais, (Rech, 1995, p. 13-26).

28

“Escravidão, emprego e trabalho cooperativo”, no Jornal do Brasil 29/9/ 96. Também sobre a criação de “co-indústrias” ver, entre outros, “Vicunha estimula cooperativas para competir com os chineses”, jornal O Globo, 3/11/96.


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No caso brasileiro, é bem verdade que o governo federal29, com o apoio dos organismos multilaterais de cooperação e com a promessa de combater o desemprego, vem financiando programas de crédito popular para a formação de microempresas, cooperativas e associações 30, mas, evidentemente, em consonância com os interesses do empresariado moderno. No Brasil, merece destaque a ação de organismos empresariais semipúblicos, como o Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa (SEBRAE), que, para

29

No Brasil, desde o ano 1995, o Governo Federal vem criando vários programas contra o desemprego: Programa de Geração de Emprego e Renda (PROGER); Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e Programa Nacional de Qualificação do Trabalhador (PROEMPREGO). Os depósitos realizados nesses programas, entre 1995 a 1997, situam-se em torno dos 7 milhões de reais (cerca de U$ 5,8 milhões, câmbio de R$ 1,20 por dólar, no final de 1997). Os créditos a pequenos e médios empresários e produtores agrícolas e os cursos de qualificação de trabalhadores constituem a base destes programas. (“Mais ação contra o desemprego”, Jornal O Globo, 11/3/98).

30

Considerando que o câmbio era de R$ 1,12 por dólar, no final de 1996, a Caixa Econômica Federal estava financiando com 260 milhões de reais (cerca de US$ 232 milhões), projetos para a criação de oficinas de consultoria e pequenos negócios de pessoas físicas, trabalhadores autônomos, prestadores de serviços e artesãos informais. O Banco do Brasil também financiava, com 130 milhões de reais (cerca de U$116 milhões), programas de apoio a diversas atividades do setor informal, além das cooperativas e associações; o Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) disporá de 150 milhões de reais (cerca de U$ 134 milhões) para o Programa de Crédito Popular, conhecido como Banco do Povo (jornal O Globo, 20/10/96, “Governo libera partida para combater o desemprego”). O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) prometia investir, até junho de 1998, a quantia de US$ 100 milhões, os quais seriam destinados para pequenas e médias empresas brasileiras (Jornal do Brasil, 21/10/97, “BIRD investe no país mais de US$ 1 bilhão”).


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conter “o outro caminho” (Soto, 1987), fomentou o “espírito cooperativista” entre os pequenos produtores, oferecendo apoio e capacitação técnico-gerencial para a criação e consolidação de inumeráveis microempresas, com vistas à sua inserção na esfera da economia formal, subordinando-as à regulamentação estatal. Com o mesmo objetivo, a Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional (SEFOR), vinculada ao Ministério do Trabalho, tem como um dos objetivos do Plano Nacional de Educação Profissional “estimular e apoiar a ampliação da oferta de empregos e de oportunidades de geração de renda, buscando alternativas de trabalho autogestionário, associativo ou de micro e pequenos empreendimentos” (o grifo é nosso)31. Fazendo coro com o governo e com os empresários e promovendo programas conjuntos para combater a informalidade, a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) indica que o número de cooperativas de trabalho cresceu 50% em 1996 e que tanto os universitários como os analfabetos, tanto os intelectuais como os trabalhadores manuais podem reunir um grupo de no mínimo vinte pessoas, para criar um tipo de organização econômica em que “já não há espaço para a carreira individual e para a competição interna”. Não por casualidade, os meios de comunicação e em especial a grande imprensa, vêm publicando verdadeiras cartilhas para ensinar aos desempregados e subempregados todas as etapas de como organizar uma co-

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Plano Nacional de Educação Profissional (PLANFOR). Termos de Referência dos Programas de Educação Profissional. Brasília, outubro de 1996, segunda edição.


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operativa32. Como não poderia ser diferente, por parte dos agentes do capital, a capacitação dos trabalhadores associados não tem como objetivo a constituição de organizações autônomas dos trabalhadores e sim a formação de “novos empresários”, sob a égide da reestruturação produtiva. Na verdade, a multiplicação de pequenas unidades criadas pelos trabalhadores associados, em geral para funcionar como subsidiárias ou contratadas das grandes firmas, favoreceu os grandes produtores, que obtêm serviços com menores custos. Tendo como pressuposto que o poder, além de uma ação em nível vertical, constitui-se como uma ação dominadora, exercida de forma horizontal sobre os dominados, Canclini (1995) ilustra as contradições vividas pelos pequenos produtores, constatando o porquê do relativo consenso dos artesãos indígenas mexicanos quanto às “ações solidárias” das empresas privadas que comercializam seus produtos. Para o autor, tal consenso se deve ao fato de que suas ações não só exploram economicamente os artesãos, mas também incluem serviços: fazem empréstimos, ensinam como utilizar créditos bancários, sugerem mudanças de técnica e de estilo para melhorar as vendas, ajudam a realizar uma comercialização cujas regras os artesãos têm dificuldade para compreender. (ibid, p. 232)

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Os títulos dos artigos nos jornais da grande imprensa são dos mais apologéticos; entre tantos outros, citamos os seguintes: “Cooperativismo cresce no Brasil” (O Estado de São Paulo, 8/6/97); “A força das cooperativas/Aprenda a montar a sua cooperativa” (O Dia, Rio de Janeiro, 26/ 3/97); “Cooperativa é opção contra desemprego” (Folha de São Paulo, 15/9/96); “O cooperativismo recupera o fôlego” (Gazeta Mercantil, 8/ 11/96).


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O estímulo à produção cooperativa favorece a conversão dos patrimônios simbólicos tradicionais aos mercados econômicos e simbólicos globalizados. Além disso, a multiplicação de pequenas unidades produtivas leva os pequenos produtores a uma agudizada competição entre si. Dado que o crescimento dos microempreendimentos costuma depender da possibilidade de sua contratação pelas grandes firmas, “cada avanço obtido por uma pequena empresa representa uma perda equivalente para as outras” (Singer, 1996, p. 40)33. Analisando as potencialidades e os limites das cooperativas de produção e de consumo, como mecanismo de reinserção dos trabalhadores na economia, Singer acredita que esses empreendimentos somente se tornam viáveis com a formação profissional e com o aperfeiçoamento contínuo de seus integrantes, com concessão de créditos por um “banco popular” e com a criação de uma moeda própria, a qual poderia ser denominada “sol” – de solidariedade. Tal moeda representaria um mecanismo de proteção de um mercado específico desse setor da economia, sendo utilizada, exclusivamente, pelos associados em transações entre as pequenas unidades de propriedade dos trabalhadores. Diferentemente da acumulação capitalista, tendente a contrair o volume de emprego, a acumulação autônoma rege-se pela oferta de trabalho, daí que, neste momento, com a crise do emprego, a produção simples de mercadoria vem sendo considerada pelos governos (e trabalhadores) como um meio importante para absorver, produtivamente, o grande número de excluídos do mercado de trabalho assalariado. Evidentemente, em face do novo modelo de acumulação e

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Ver também o artigo de Paul Singer, “Economia solidária contra o desemprego” (O Globo, 11/7/96).


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em nome de “combater o desemprego” (leia-se garantir a eficiência e magnitude do sistema econômico), os economistas adictos da economia de mercado somente parecem estar voltados para os pequenos empreendimentos populares quando trata-se de sua utilização como garantia de desenvolvimento ou quando servem como mecanismos de ajuste dos interesses da economia de mercado (Schneider, 1986). A partir dessas considerações, o estudo de Sáinz (1997) sobre a economia comunitária na América Central também nos reafirma que, na dialética entre o global e o local, a dinâmica globalizadora permitiria duas vias de configuração do tecido produtivo: uma autônoma, fruto do próprio desenvolvimento histórico da comunidade, e outra imposta pelo processo de globalização. Se, por um lado, quando o tipo de inserção na globalização é sólido, há maiores chances de funcionamento de unidades econômicas com racionalidade protoempresarial e com capacidade acumulativa, por outro, quando tal inserção é espúria, tende a predominar a lógica de reprodução simples, sem maiores perspectivas de crescimento. Assim, no atual contexto concordamos com Jódar e Lope (1985): o crescimento e incremento desses novos empreendimentos de caráter individual ou coletivo não representa, necessariamente, uma resposta da sociedade civil contra os mecanismos capitalistas de exclusão social, tampouco aí se produz uma economia alternativa ao capital34. Verda34

Fazendo referência aos países da OCDE, para Bögenhold, as valorizações políticas com respeito à denominada “economia alternativa” não correspondem necessariamente à realidade; considera que os autores/estudiosos da temática, “elaboram um romantismo social, cujos efeitos são estéreis e - em sentido sociológico – artificiais” (p. 6). Acredita que a análise, desde o contexto dos chamados autônomos “alternativos”, permite concluir que é necessário distinguir esse conceito do conceito de “auto-exploração”. Disse: “é um exagero idealizar ditos estilos como tipo ‘alternativo’ básico, conceito no qual se mete quase tudo o que aparece como algo distinto, ainda como mera figuração (1992, p. 6-14).


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deiramente, a realidade que se configura tanto nos países periféricos, como também nos países centrais, não reflete “uma crise geral do sistema, no sentido de sua transformação profunda, mas [trata-se] de uma readequação da dinâmica de dominação e de exploração sobre o trabalho e sobre a periferia” (ibid, p. 8). De parte dos partidos políticos aliados ao grande capital, trata-se de uma prática assistencialista e clientelista: o estímulo e a promoção de pequenas unidades produtivas vêm cumprindo os objetivos de combater o desemprego e, também, de promover o ajuste estrutural, baseado na reestruturação produtiva e na flexibilização das relações de trabalho. Também para esses partidos, as iniciativas populares informais que, “invadindo” o ordenamento de espaço público, desenvolvem-se nas ruas e praças da cidade, devem estar submetidos à regulamentação estatal. A partir de 1993, Rodrigo Lopes (diretor executivo do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro), dirigiu ações de combate à “economia marginal”, estimulando a legalização de empreendimentos populares e expulsando (muitas vezes de forma violenta) os vendedores ambulantes das ruas e praças. Argumenta que “no mundo atual não se pode ligar a economia informal unicamente a fenômenos de exclusão social mas temos que entendê-la como um motor importante da nova ordem social exigida pelo mundo moderno” (Lopes, 1996, p. 20). Neste complexo contexto em que se produz a economia popular, é preciso considerar que, além das ações governamentais e empresariais, também fazem parte dela as diferentes iniciativas implantadas tanto pela igreja católica como pelas organizações não-governamentais e sindicatos. De parte da Igreja, têm-se desde a vertente caritativa de


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defesa dos pobres e oprimidos, até iniciativas de caráter nitidamente empresarial. Para além da simples cessão do espaço da paróquia e promoção de campanhas de doações para que os desempregados possam criar seus próprios empreendimentos, os cristãos inauguram um novo estilo de assistencialismo. Aqui merece destacar-se a chamada “economia de comunhão”, surgida em 1991 e originada do Movimento dos Focolares, fundado na Itália, por Chiara Lubich, no ano 1943, e aprovado oficialmente, em 1962, pelo Papa João XXIII. Baseada nas encíclicas Rerun Novarun (do ano de 1891) e Mater et Magistra (do ano de 1961) e iniciada em São Paulo, a idéia é a de criação de empresas com fins lucrativos, em vários países do mundo, “nas quais a produção da riqueza tenha como principal finalidade satisfazer as exigências de quem mais necessita” (Gui, apud Quartana et al., 1992, p. 161). A partir de uma segunda vertente cristã, o ensino social da igreja implantado na América Latina pelos adeptos da Teologia da Liberação junto às Comunidades de Base e Pastorais Populares, além de denunciar a exploração capitalista e as injustiças sociais, disseminou a idéia da necessidade da organização dos pobres para a defesa de seus direitos e para difundir novos valores a respeito do mundo do trabalho, estimulando a criação de relações de produção baseadas na solidariedade. Como constata Kabunda: Ante a repressão aos sindicatos, aos movimentos camponeses e às universidades na década dos anos 70 e 80, a Igreja latinoamericana converteu-se no principal canal de descontentes populares, de protesto e da organização social [...] Na atualidade, a Conferência Episcopal de bispos latino-americanos mostra-se cada vez mais crítica com o neoliberalismo, enquanto as comunidades cristãs convertidas em movimentos sociais de base, importante clientela eleitoral para a esquerda, se encarregam da


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luta diária contra a pobreza nos subúrbios, mediante novos programas de auto-assistência, educação política, associações de moradores, associações de operários, mulheres, cooperativas alimentárias... (Kabunda, 1996, p. 225)

Sem dúvida, foi a Igreja uma aliada constante das iniciativas econômicas populares e, também, inspiradora dos projetos de muitas ONGs, cuja presença na paisagem latinoamericana se manifesta desde o começo dos anos 50. Criadas por iniciativas das ONGs do Norte ou por iniciativas locais e apresentando-se como modalidades de ação social da Igreja Católica, a partir da segunda metade dos anos 70 – ainda em um clima marcado pelo predomínio de regimes ditatoriais –, contribuíram significativamente para apoiar e configurar grande parte dos movimentos sociais, por meio de práticas tanto de caráter assistencialista como de emancipação dos setores populares. No Brasil, as relações de diferentes instituições (governamentais ou não) com os setores sociais não absorvidos pelo mercado de trabalho formal não têm sido muito distinta das de outros países latino-americanos, predominando o assistencialismo, mesmo quando não prevalecem as intenções de cunho clientelista. Poderia afirmar-se também que o apoio concedido por grande parte das ONGs consiste apenas em intervenções muito pontuais, como doações ou contribuições de recursos destinados à aquisição ou melhoria dos meios de trabalho, não existindo, em geral, o acompanhamento dos técnicos quanto à formação dos trabalhadores para gestão autônoma do empreendimento.35 De acordo com

35

Sobre o fenômeno das ONGs no mundo, sua evolução e linhas de ação, ver Schneider (1986, p. 77-130).


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os estudos de Silveira e De Mello (1991) e Silveira (1995) sobre as ações institucionais de fomento de trabalho e renda no Brasil, além da vertente assistencialista, destacam-se aquelas cujo principal objetivo é melhorar as condições estruturais, adequando os microempreendimentos à dinâmica do mercado. No entanto, no conjunto das ações desenvolvidas pelas ONGs, sobressai uma terceira vertente de intervenção, não centrada no favor, na dependência ou no mercado, mas no estímulo a formas associativas de produção em que os trabalhadores assumem a gestão do empreendimento através de um trabalho cooperativo e solidário, criando novas relações entre os próprios produtores e entre produtores e consumidores. Dessa última vertente, merece destaque o Fórum de Desenvolvimento do Cooperativismo Popular, organizado por algumas ONGs do Rio de Janeiro. O primeiro encontro foi realizado em outubro de 1996, contando com a participação de duzentas pessoas, representando organizações econômicas populares e instituições de apoio. Sem eximir o Estado do cumprimento de suas obrigações com respeito à geração de empregos, em carta aberta, seus participantes declararam ser o objetivo principal das atividades do dito fórum o de “promover a complementariedade, sociabilidade e irmandade entre grupos de produção, associações e cooperativas autogestionárias, com vistas à construção de um mercado solidário, de uma eco-sociedade cooperativa e de um Estado democrático, transparente e participativo” (Informe de atividades 1996/97). É preciso ressaltar o fato de muitas ONGs estarem voltadas para o objetivo de ampliar os espaços de solidariedade. Sob o signo da participação dos excluídos como atores fundamentais da luta contra a pobreza, tais organizações vêm contribuindo para o incremento da economia popular


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(ou economia solidária), estimulando e apoiando formas geradoras de trabalho e renda36. Sem desconsiderar a diversidade de estilos de apoio e os diferentes modelos de cooperação ao desenvolvimento (inclusive o modelo neoliberal), no atual processo de construção da identidade política das ONGs, como agentes do fenômeno da globalização, não é possível negar o papel contraditório que podem adquirir essas organizações, quando se fala no fortalecimento dos movimentos populares em geral e, particularmente, na geração de formas alternativas de trabalho e renda. Embora careçamos de um balanço global com respeito ao caráter político-ideológico dos resultados concretos das ações desenvolvidas pelas ONGs, o fato é que, com a ajuda da Igreja e como um braço importante para a execução dos projetos financiados pelos organismos multilaterais de cooperação, muitas delas vêm contribuindo para a busca de créditos, para a capacitação profissional e política dos trabalhadores associados e para a gestão de seus empreendimentos. Como nos sugere a pergunta de Arruda (1995) com respeito à relação das ONGs com o Banco Mundial, vale insistir: é possível colaborar criticamente?

36

Existe uma vasta literatura sobre os projetos desenvolvidos pelas ONGs. Sobre a promoção de microempresas junto aos setores populares em Lima e o trabalho desenvolvido pelo Centro de Investigação Social e Educação Popular/Alternativa (ONG peruana), ver Aguilar (1994). Sobre experiências populares desenvolvidas, com o apoio da Fundação Interamericana, na República Dominicana, Colômbia, Peru, Chile, Argentina e Uruguai, ver Hirschman (1986).


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Movimentos populares: uma nova estratégia A Ação da Cidadania37, iniciada em 1992, é um exemplo do estímulo às “ações-cidadãs”, surpreendendo os mais céticos quanto à possibilidade de um movimento de ampla repercussão nacional. Promovido pelas ONGs, sindicatos, partidos políticos e demais instâncias dos movimentos populares, a iniciativa tem conseguido sensibilizar amplos setores da sociedade para colocar a questão da pobreza na agenda nacional, indicando a necessidade de, pelo menos, nove milhões de novos postos de trabalho para atenuar a situação de pobreza e miséria em que vive a população brasileira. Em 1993, segundo o “mapa dos deserdados”, 32 milhões de brasileiros passavam fome e quase 70% da população não se alimentava o suficiente para ter saúde e vida digna. Assim, a partir da premissa de que “quem tem fome tem pressa”, além da distribuição de alimentos e de outras iniciativas para amortizar os efeitos das desigualdades nas áreas de alimentação e de saúde, a Ação da Cidadania passou a agir tentando atacar uma das causas do ciclo vicioso da pobreza: a criação das bases materiais para a subsistência da população. O que é novo na Ação da Cidadania? A começar do pressuposto de que “os cidadãos se fazem mais pelas ações que pela organização” (Jacobi, 1995, p. 30), o movimento é 37

A Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida foi coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza desde agosto de 1997 – ano de sua morte. Conhecido como Betinho, era um dos diretores de IBASE, organização não-governamental que atua no Brasil. Sobre a história dos diversos comitês no Brasil e para uma análise do significado desse movimento, veja-se PACS (1995) e Jacobi (1995), além do jornal mensal “Jornal de Cidadania”, publicado pelo IBASE, desde 1995.


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caracterizado pela sua estratégia de promover ações descentralizadas. Cada um dos comitês, distribuídos por todo o país, congrega um conjunto de pessoas que se associa em função de relações previamente existentes, tendo como referência seus vínculos de vizinhança com as associações do bairro, com a igreja local, tentando envolver as ONGs, as empresas e qualquer outra instituição interessada em participar de uma ação coletiva. Conforme indica Jacobi (idem, p. 31), mesmo que a descentralização haja favorecido a mobilização, “de fato, a criação de comitês ocorre espontaneamente. Mas, assim como se formam também desaparecem”, devido ao caráter informal de sua organização e estruturação, contribuindo para a inflexão do movimento. Na sua segunda fase, as ações de fomento e estímulo à geração de trabalho e renda têm conseguido mobilizar milhares de pessoas ao redor do país, repercutindo na criação de estratégias coletivas de sobrevivência: produzir pão, sandálias, confeccionar bijuterias, reciclar lixo, organizar oficinas de costura, hortas comunitárias e, ainda, construir as próprias casas populares dos integrantes. Devido à especificidade de nossa investigação, merecem ser registradas as ações das universidades do Rio de Janeiro, vinculadas ao Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida, em especial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com respeito à criação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares que está desenvolvendo o programa Adote uma Cooperativa, com o objetivo de canalizar os recursos arrecadados em campanhas de combate à fome, para apoiar cooperativas em processo de formação.


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Desde 1995, em colaboração com agências brasileiras de financiamento, a Incubadora tem prestado serviços para a criação e melhoria de cooperativas de trabalho e produção em favelas e outras áreas de baixa renda da região metropolitana do Rio de Janeiro. No campus universitário são realizados os processos de planejamento, metodologia, administração, legalização das cooperativas e produção de material didático; nas comunidades onde estão sendo formadas as cooperativas, são desenvolvidas atividades de formação básica no cooperativismo, legalização/organização e acompanhamento/operatividade. Em abril do 98, já eram dezenove, as cooperativas beneficiadas pela Incubadora. A perspectiva é de que o projeto se amplie em nível nacional, por meio de uma rede de incubadores instaladas em universidades brasileiras. As iniciativas coletivas de sobrevivência são anteriores à Ação da Cidadania; no entanto esse movimento tem contribuído sobremaneira para que as pessoas descubram que, mais que o trabalho por conta própria, isolado, a possibilidade de sobrevivência tem sua origem no trabalho associado e solidário. Anteriores às “ações cidadãs”, nos anos 80 e 90, além das experiências camponesas, proliferaram de processos industriais/artesanais e de produção de serviços em que, independente do apoio de ONGs, igrejas, sindicatos e partidos políticos e ainda com quase nenhum tipo de apoio, os trabalhadores associados converteram-se em seus dirigentes. Outra circunstância em que os trabalhadores vêm-se convertendo em proprietários dos meios de produção tem sido quando, depois de um longo processo de luta para garantir seus direitos trabalhistas e conseguir a transferência do controle do capital social das indústrias ameaçadas de falência, para


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suas mãos, tentam organizar o trabalho a partir dos princípios da autogestão 38. Também neste momento em que o Estado vem atuando no sentido de diminuir os serviços públicos à população, não são poucos os casos em que, depois da demissão gradual ou em massa, os trabalhadores cooperativam-se para prestar serviços tanto para o Estado como para outras empresas privadas39. Levando em conta o isolamento e a dispersão dos empreendimentos econômicos populares, a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária – ANTEAG é um exemplo de ação coletiva que visa à articulação política e à capacitação técnica dos trabalhadores associados, objetivando a manutenção dos

38

Entre as empresas brasileiras, cujas ações foram transferidas para os trabalhadores como resultado da negociação com os antigos proprietários, podemos citar, entre outras, Remington, Companhia Brasileira Carbonífera Araranguá (CBCA), Cobertores Paraíba, Makerli, Matarazzo, Haga Ferragens, Faet e outras. Para uma análise de alguns destes experimentos, ver Tiriba (1994, p. 193-213). Sobre o fenômeno da indústria subterrânea, Saba (1981) analisa a rede de pequenas e médias empresas, de forte tradição socialista e cooperativista, como alternativa à organização capitalista do trabalho e, ao mesmo tempo, como um dos fatores de recuperação produtiva da Itália, depois da crise de 1979. Destaca que “enquanto fazem poucos anos que a empresa autogestionária parecia um luxo ideológico superado em eficiência pelas empresas capitalistas tradicionais organizadas para extrair a máxima produtividade das economias de escala, agora as vicissitudes históricas, a mutação dos sistemas, nos oferecem a possibilidade de experimentar empresas autogestionadas onde as condições objetivas de eficiência possam ser claramente superiores às da empresa capitalista tradicional” (Saba, 1981, p. 174).

39

No Brasil, podemos citar, entre outros, os casos dos trabalhadores em telecomunicações, serviços urbanos, o metrô e outros meios de transportes coletivos em geral.


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postos de trabalho (no caso de quebra de uma empresa) e também à criação de novas empresas40. Para a associação, fundada em l994 e que tenta articular e assessorar as experiências autônomas dos trabalhadores, “a autogestão é a busca de soluções para os problemas sociais, marcadamente o desemprego, por meio do controle das empresas. É a participação direta dos trabalhadores na tomada de decisões e no controle dos meios de produção”. E, inspirada nos princípios de Marx, a ANTEAG declara: As empresas autogestionadas mostram como um novo modo de produção nasce naturalmente do antigo. Sem a crise conjutural/ estrutural do sistema capitalista junto à incapacidade administrativa empresarial não haveria empresas autogestionadas. Elas podem ser consideradas como formas de transição de um modo de produção individual, centralizado, para um modo de produção de produtores associados, coletivos. 41 40

Em 1997, vinte empresas estavam associadas à ANTEAG, que as assessora para a luta concorrencial e prepara projetos de autogestão para aquelas que serão assumidas pelos trabalhadores. A associação segue o modelo dos emploe stoch ownership pans (ESOPs), criados nos Estados Unidos em 1974, quando foi aprovada uma lei que buscava democratizar a propriedade do capital, concedendo incentivos fiscais às empresas cujos trabalhadores também tivessem participação acionária. Com a crise industrial nos Estados Unidos, os ESOPs também tentaram evitar a quebra das empresas e a conseqüente perda dos postos de trabalho, sendo seu patrimônio vendido aos trabalhadores, com o uso do fundo de pensão, ou doado em forma de pagamento dos débitos trabalhistas (em Singer, 1996). Mesmo não havendo no Brasil uma legislação específica, muitos têm sido os casos de compra das empresas pelos trabalhadores. Para um flash das experiências de indústrias autogestionárias no Brasil, veja-se Tiriba (1994, p. 193-213).

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Folheto da ANTEAG, sem data, no qual são apresentados os objetivos da associação.


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Mas nos sindicatos de trabalhadores e nos partidos de esquerda é polêmica a questão das empresas autogestionárias e a perspectiva de um “cooperativismo autogestionário e popular” (Arruda, 1996), que, contrapondo-se ao cooperativismo tradicional, pudesse representar um projeto político mediante o qual a sociedade organizada viesse a “ocupar democraticamente a economia, o Estado e a cultura” (ibid, p. 47). Quanto às cooperativas de produção e outras formas de associativismo, como instrumentos para atenuar o problema do desemprego, Singer (1996, p. 42) alerta os partidos, sindicatos e demais agrupamentos de esquerda que não devemos limitar-nos a denunciar a política econômica do governo federal. Para ele, a luta contra o desemprego terá de ser enfrentada “não apenas por políticas econômicas, mas também por inovações institucionais mais audazes, que mobilizem os próprios desempregados e lhes permitam tomar iniciativas que os reintegre à economia”. Até o final dos anos 80, os sindicatos e partidos atribuiam pouca importância política aos empreendimentos populares pelo fato de que, no processo de transformação social, esses experimentos não tinham a capacidade de promover mudanças políticas entre as reações de poder. Nessa ótica, a responsabilidade pela promoção de organizações econômicas e pela geração de trabalho seria de competência dos empresários e do Estado. Mesmo concebendo o trabalho assalariado como instrumento da exploração capitalista, tais setores dos movimentos sociais tinham apenas como horizonte o emprego, quer dizer, o trabalho na sua forma assalariada. No entanto a confirmação de que a crise do emprego não é simplesmente uma realidade conjuntural, mas estrutural (que afeta não somente aos países do Terceiro Mundo, mas também os países “desenvolvidos”) tem contribuído para alterar o conjunto de propostas oriundas dos setores populares e de seus aliados.


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Superando em maior ou menor grau a cultura do simples protesto e reivindicação, além de seguir reclamando a estabilidade no emprego, a criação de novos postos de trabalho, o aumento de salários e a garantia dos direitos trabalhistas, os sindicatos começam a atribuir às suas organizações parte da responsabilidade com respeito ao futuro do grande contingente de trabalhadores que, conforme estabelece a legislação sindical, deixa de pertencer à respectiva base sindical depois de um determinado período de desemprego42. Na atual conjuntura em que a eliminação acelerada do emprego vem colaborando para diminuir a capacidade de negociação com os empresários, os sindicalistas descobrem os empreendimentos econômicos populares como forma de resistência contra os efeitos da nova ordem internacional, passando a considerá-los parte integrante dos movimentos populares e uma da instâncias de luta pela construção de uma nova sociedade. Contrapondo-se àqueles que têm conservado a consigna “contra o cooperativismo” (já que o mesmo, em geral, tem sido utilizado como um mecanismo do capital), a CUT começa a estimular a participação de seus filiados em iniciativas que, até então, vinham sendo consideradas pelos críticos do “sindicalismo de resultado” como práticas assistencialistas: criação de cooperativas de crédito, educação, de construção de casas populares etc. Dito de outra maneira, a dura realidade tem colaborado para a constituição de novas 42

Nos EUA o número de trabalhadores sindicalizados caiu de 35%, nos anos 50, para 11%, em 1994 (em Arruda, 1996, p. 11). Como exemplo da diminuição do número de trabalhadores pertencentes a uma determinada categoria e legalmente representados pelo seu sindicato correspondente, citamos o caso do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro que, no final dos anos 80, possuía uma base de cerca de 150 mil operários, passando a cerca de setenta mil, em 1997.


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mentalidades quanto às perspectivas de melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. Feitas não “de fora para dentro”, mas “de dentro para fora”, tais mudanças têm resultado no envolvimento de alguns sindicatos em ações coletivas para tentar suprir aquilo que o Estado não tem sido capaz de garantir à maioria da população. No Brasil, de forma similar a muitos outros países afetados pelo desemprego, também surgem novas organizações, como é o caso do Fórum Nacional de Luta por Emprego, Terra e Cidadania, entre cujas propostas se encontra a redução da jornada de trabalho para quarenta horas semanais, o que permitiria criar ao redor de 3,6 milhões de novos empregos no país43. Desse fórum, o Movimento dos SemTerra (MST) vem sendo um ator importante. De acordo com o grito comum dos sem-terra, “somente haverá reforma agrária, com aliança camponesa e operária”44. Resulta evidente que no caso de levar-se a cabo uma Reforma Agrária e nas condições propostas pelo MST, esta seria a forma de criar o maior número de postos de trabalho da história do Brasil, além de reduzir drasticamente a migração do campo para as áreas urbanas. Não basta “assentar” os camponeses sem criar as condições para a sua subsistência. Assim, um dos pontos da reforma agrária do MST é “apoiar a produção familiar e cooperativada com preços acessíveis, créditos e segurança

43

Veja-se o documento “Desemprego. Ninguém merece isso!”, editado em 1998 pela CUT, MST e por mais de 31 entidades que participam do Fórum Nacional de Luta pelo Desemprego, Terra e Cidadania - entre elas partidos políticos de esquerda, ONGs, entidades estudantis e da igreja cristã.

44

“O apogeu da grande marcha”, Jornal do Brasil, 18/4/97, Rio de Janeiro.


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na produção agrícola” e, com ela, gerar recursos para o próprio movimento. Por meio da Confederação de Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (CONCRAB), criada em 1992, alcançou-se uma nova etapa de organização dos assentamentos e, possivelmente, uma das maiores organizações de cooperativas agroindustriais existentes na atualidade no Brasil. Em meados de 1997, já existiam onze mil sócios organizados em 24 cooperativas de produção agrária (CPA), dezoito cooperativas de prestação de serviços (CPS), duas cooperativas de crédito e oito cooperativas centrais de reforma agrária (CCRA), de âmbito nacional, e mais de 400 associações locais organizando diretamente mais de trinta mil famílias e relacionando-se com outras setenta mil famílias. Dado que “a pequena propriedade individual isolada, por si só, se inviabiliza do ponto de vista econômico, político e social [...] a filosofia é cooperar para produzir”45. Para Franklin Coelho (1995, p. 11), “o surgimento de novos atores sociais através da formação de redes ligadas a estratégias de sobrevivência econômica pode ser entendido como o contraponto da chamada crise dos movimentos sociais da década dos 90”. Reconhecendo as novas formas de mediação entre sociedade e esfera pública e a necessidade da autocrítica dos partidos políticos e sindicatos de esquerda que ainda não incorporaram as novas demandas dos setores populares urbanos, analisa que emergiram propostas de movimentos sociais que vêm optando pela ênfase no caminho “de baixo para cima”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Arruda (1996, p. 21) pergunta:

45

Revista Sem Terra, número 1, julho/agosto/setembro de 1997. São Paulo.


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“Não se esconderá nele (no caminho de baixo para cima) o potencial de arrancar do interior mesmo da pessoa, da comunidade, da empresa, da nação, a força motriz para impulsionar o desenvolvimento, concebido não mais somente como crescimento econômico, mas como o desabrochar de todos os potenciais do ser individual e coletivo?”

Fazendo uma breve retrospectiva dos movimentos populares urbanos, é possível verificar-se que, na década de 70 e nos primeiros anos da década de 80, esses movimentos também atuavam no pequeno: o local representava um dos poucos espaços possíveis de denunciar o global e, por sua vez, de promover a mobilização popular para o confronto com o Estado. Devido à concepção, desde então hegemônica, de que os problemas locais somente seriam resolvidos a partir de mudanças estruturais em nível de toda a sociedade, as ações que tinham por objetivo a melhora das condições de vida dos bairros populares eram consideradas reformistas. Em outras palavras, se de um lado era necessário lutar pela melhoria das condições locais de vida, de outro, as conquistas não poderiam dar-se de forma isolada; teriam de ser o resultado do conjunto das lutas sociais. A partir de finais dos anos 80, a mudança dos movimentos populares para o “pequeno” representa uma nova estratégia de luta, que busca redimensionar o caráter do local, do específico no processo de transformação social. Podemos inferir que, se a estratégia de luta no local era a conscientização popular para uma grande ação em nível nacional, agora os movimentos se apresentam sob outra lógica: são as pequenas ações as promotoras da conscientização da necessária transformação social. As práticas hoje predominantes entre os atores dos setores populares carregam, explícita ou implicitamente, o pressuposto de que o pequeno está imerso no grande, é parte do grande. Assim, cumpre


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tentar satisfazer as necessidades coletivas que são imediatas, sem descartar aquelas que só serão conquistadas a longo prazo, em um processo continuado de luta. Pensamos que, embora diminua o número de ações cujo objetivo é o confronto com o Estado, ainda assim este continua como alvo: o momento das eleições aos executivos e legislativos municipais, estaduais e federal, continua sendo um momento de grande importância para os movimentos populares. Seguem-se também – com maior ou menor nível de participação – as manifestações de rua promovidas em conjunto pelos partidos políticos, sindicatos e demais organizações de esquerda, para protestar contra o processo de privatização das empresas públicas, contra o desemprego e contra a política econômica em geral. No processo de “atuar localmente, pensar globalmente” ou “atuar e pensar local e globalmente”, é necessário ocupar o espaço econômico e outros espaços, além do espaço político. Mais que nunca, a questão econômica tem-se apresentado como condição para a reprodução da vida e para a própria manutenção da luta. Sobre as iniciativas econômicas populares, Kraychete destaca que se, de um lado, a ênfase unilateral nos resultados econômicos provoca a conservação ou recriação, no interior do grupo, de relações que reforçam antigos e novos laços de dependência, de outro, a ênfase na dimensão social ou político-pedagógica em detrimento de seus resultados econômicos e das práticas que são necessárias para sua viabilidade “termina por comprometer a própria existência do grupo, frustrando, em última instância, os objetivos sociais anteriormente enfatizados” (1997a, p. 6). Ao analisar as formas de resistência ao modelo econômico estruturalmente excludente e concentrador, acrescenta que, embora de forma incipiente,


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a percepção do mercado pelos movimentos sociais como uma realidade simultaneamente econômica e social contesta a visão liberal do mercado como um regulador sem reguladores e aponta para a resistência e proposições, desde o interior da economia de mercado, contra a exclusão imposta pela ordem capitalista (Kraychete, 1997b, p. 58)

Sem escamotear as divergências políticas, o fato é que os movimentos populares encontram-se em uma encruzilhada histórica, quer dizer, em um momento de redefinir seus rumos a partir do resgate de seu próprio caminhar. Têm sido diversas as iniciativas econômicas populares e ações de apoio e assessoria por parte das ONGs, no entanto, os sindicatos e partidos políticos de esquerda têm vivido um processo de repensar suas estratégias de luta. Ainda não estão convencidos de que as organizações econômicas gestionadas pelos trabalhadores “são estratégias de sobrevivência” que podem constituir-se como “estratégias de sociedade”. Na verdade, as idéias de “atuar e pensar local e globalmente” (ou qualquer outra variante) vem orientando as ações das ONGs e estão tornando-se, nos dias de hoje, um dos paradigmas condutores dos conteúdos e das práticas cotidianas dos chamados novos movimentos sociais. Supondo-se que houve um esgotamento dos modelos teóricos acerca dos movimentos urbanos marcados somente pelo confronto com o Estado e com os empresários, superando as visões economicistas e incluindo nelas as dimensões culturais e territoriais, ganhou espaço nos movimentos sociais a tese da possibilidade de um “efeito mariposa” (borboleta). Ou seja, frente às circunstâncias especiais, um processo de


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transformação social pode desencadear-se da situação de caos em que se encontram as relações sociais (Villasante, 1997)46. Estimulada por diversos agentes aliados ou pseudoaliados dos setores populares, é possível verificar a magnitude e presença real da economia popular nos países latinoamericanos. Sem falar do crescimento quantitativo do número de empreendimentos, é importante considerar o crescimento qualitativo dos movimentos populares como parte integrante dos novos movimentos sociais – movimentos esses que se constituem como “redes de cotidianidade” (Villasante, 1996b) e de fomento de projetos alternativos de sociedade. Seja pela apropriação dos meios de produção ou pela criação de novas formas geradoras de trabalho e renda, muitos trabalhadores compreendem já não ser mais possível manter o isolamento de suas experiências, sendo necessário articu-lá-las mediante projetos comuns capazes de dar consistência à economia popular, transformando-a na economia política dos trabalhadores. É evidente que o desemprego e o subemprego crescentes são os motores para a busca de formas alternativas de sobrevivência, entre elas a prostituição, a mendicância, o pequeno comércio de drogas (ou de cachorros-quentes) e, ainda, a formação de cooperativas, associações, centros comunitários e grupos de produção gestionados pelos trabalhadores de forma associativa. Como disse Thompson, se a 46

Villasante indica que ao menos são necessárias três condições para que se dê um efeito mariposa desencadeador de uma transformação social: “uma situação de consciência de crise na economia de um território que agrupe blocos populares, uma recomposição de grupos e conjuntos de ação em uma cultura coletiva, e propostas de qualidade de vida que sejam sustentáveis no hábitat concreto no qual se está vivendo.” (1997, p. 47).


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“economia moral das multidões” não pode ser descrita como “política”, tampouco pode ser caracterizada como “apolítica”, pois reduzir as complexidades das motivações e das condutas humanas ao estímulo primário da miséria é reduzir o homem ao homem econômico (1979, p. 66). Ainda que tão antigas quanto a fome, a novidade é que as iniciativas de sobrevivência na América Latina trazem uma nova dimensão: graças à mudança do “princípio de conservação” ao “princípio de mutação da energia social” (Hirschman, 1986), começam a ser reconhecidas como estratégias de sobrevivência e também como instância de luta econômica e política. Não obstante, a correlação de forças sociais não tem sido favorável à constituição de uma economia popular que, de fato, consiga reverter a lógica da nova ordem internacional que privilegia o mercado em detrimento da satisfação das necessidades básicas da grande maioria da população.



Escola e Outras Escolas de Produção de Uma Nova Cultura do Trabalho “Dos mortos, dos livros, não nos interessam tanto suas respostas, mas suas perguntas. As respostas dos textos nos interessam como história em seu contexto, mas suas perguntas (de classe, de hábitat, de poder) nos fazem sair das respostas seguras, para passar a construir o conhecimento na práxis com as próprias pessoas, em cada situação concreta.” Tomás R. Villasante, Do caos ao efeito mariposa, 1997.



Escola e Outras Escolas de Produção

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Ao longo da história, muitas têm sido as experiências que, proclamando-se ou não autogestionárias, manifestam diferentes concepções e graus de controle dos meios de produção pelos trabalhadores: a Comuna de Paris (1871), o controle operário e os sovietes de representantes operários, camponeses e soldados na Rússia (1905 e 1917), a guerra civil espanhola (1936-1939), a República Húngara de Conselhos Operários (1918/1919), os conselhos operários de Turim (Itália, 1919-1921) e também aquelas desenvolvidas depois da Segunda Guerra Mundial, como na Iugoslávia (1950), os conselhos operários surgidos tanto na Hungria (1956) como na Polônia (1956, 1970) e o movimento Solidarnosc (1980), a experiência daArgélia (1962) e da Checoslováquia (1968), além das comunas populares chinesas na época da Revolução Cultural e da Revolução dos Cravos, em Portugal (1974). No âmbito latino-americano, destacamos as revoluções cubana (1959) e nicaragüense (1979), algumas curtas experiências vividas na Bolívia, no Chile e no Peru e, ultimamente, a experiência dos indígenas em Chiapas (México, desde 1994). Não é nosso propósito analisar essas experiências; no entanto, cabe ressaltar que as formulações e propostas acerca de modelos de sociedade fundados na propriedade coletiva remontam à própria história de resistência e de busca de formas de trabalho e de vida alternativa ao capital, sendo seus precursores Fourier, Owen, Saint Simon e Proudhon. Sem deixar de considerar que, historicamente, o debate sobre a propriedade e gestão da produção pelos próprios trabalhadores tem produzido polêmicas no interior dos partidos, sindicatos e demais organizações do movimento operário, nossa intenção é refletir sobre os significados, hoje, da propriedade e posse coletiva dos meios de produção, seja


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como alternativa ao desemprego, seja como estratégia de sobrevivência e/ou como meio de luta dos trabalhadores para a construção do socialismo. Apesar da polêmica, o fato é que, desde o século XIX, como forma de reação da classe operária à revolução capitalista (Singer, 1998), os trabalhadores vêm constituindo, por iniciativa própria, cooperativas e outras unidades produtivas de tipo familiar, associativo e mesmo microempresariais. A partir da década de 80, com o aumento do desemprego e da pobreza, têm crescido (mais acentuadamente nos países do Sul) as experiências em que são os próprios trabalhadores os proprietários dos meios de produção. Se, de um lado, a crise do socialismo real colocou em questão a propriedade social dos meios de produção, bem como a centralização e o controle da economia pelo Estado, de outro, o processo de exclusão social – agravado pelas políticas neoliberais – levanos a refletir sobre as perspectivas dos processos que, hoje, se pretendem autogestionários no próprio interior da sociedade capitalista. Para podermos inferir sobre os significados das iniciativas de geração de trabalho e renda empreendidas pelos setores populares, retomamos sucintamente o debate histórico acerca do significado das cooperativas de produção no interior da sociedade capitalista. Para os trabalhadores, quais são os horizontes e as dimensões econômicas, sociais, políticas e culturais da propriedade dos meios de produção? Após resgatar o conceito de práxis e considerar que, tanto na escola como no processo produtivo, o trabalho é um princípio educativo e um elemento fundamental da formação humana, indagamos: quais as possibilidades e desafios dos trabalhadores associados quanto à necessidade de apreender o


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conhecimento científico-tecnológico, como “arma” para colocar os meios de produção a seu serviço? A partir do pressuposto de que, mais que buscar alternativas ao desemprego, o desafio maior consiste em criar as condições para a mudança do sentido do trabalho, nos perguntamos em que medida a gestão da produção pelos trabalhadores pode configurar-se como parte integrante do processo maior de transformação social e de constituição de uma nova cultura do trabalho?

Produção associada e mudança do sentido do trabalho Para Marx e Engels, a forma de propriedade dos meios de produção e distribuição é um princípio determinante das relações que os homens estabelecem no processo de produção, exercendo um papel fundamental no complexo sistema de classes sociais. Afirmavam que, assim como a Revolução Francesa aboliu a propriedade feudal em proveito da propriedade burguesa, todas as relações de propriedade sofreram constantes mudanças ao longo da história da humanidade, e que são as transformações da propriedade – em sua forma tribal, comunal asiática, antiga clássica, germânica etc. – o que basicamente caracteriza as diferentes formações sociais1. Para eles, a contradição fundamental do capi1

Para a análise das relações de propriedade, além do conceito de propriedade, é necessário considerar o conceito de posse, que significa o exercício efetivo da propriedade e dos direitos de propriedade independentemente da propriedade jurídica (Bottomore, 1993, p. 304).


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talismo radica-se na própria contradição entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação dos bens produzidos, o que resulta na interação recíproca entre propriedade privada e trabalho alienado pois a primeira é produto do segundo e, ao mesmo tempo, é o meio pelo qual o trabalho se aliena. A propriedade privada dos meios de produção, ao representar a propriedade dos meios de produção da existência humana, torna o homem estranho à natureza e a si mesmo. Nesse sentido, o objetivo dos trabalhadores não seria somente transformar a propriedade privada capitalista em propriedade coletiva, mas também transformar a produção para a venda em uma produção socialista. Devido ao fato de a propriedade privada só poder existir quando a imensa maioria da sociedade está privada dela, sua abolição representaria a mudança do caráter social da propriedade, que perderia seu caráter de classe. Recuperando o sentido subjetivo da propriedade privada como marco da sociedade capitalista e a possibilidade de sua superação, os Manuscritos enfatizam: A propriedade privada nos fez tão estúpidos e unilaterais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é imediatamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, em resumo, utilizado por nós [...] No lugar de todos os sentidos físicos e espirituais apareceu assim a simples alienação de todos estes sentidos, o sentido de ter. [...] A superação da propriedade privada é por isto a emancipação plena de todos os sentidos e qualidades humanas; mas é esta emancipação precisamente porque todos estes sentidos e qualidades se fizeram humanos, tanto no sentido objetivo como subjetivo [...] Necessidade e gozo perdem assim sua natureza egoísta e a natureza perde sua pura utilidade, ao converter a utilidade em utilidade humana” (Marx, 1995, p. 148-9)


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Sobre o caráter da propriedade coletiva no seio da sociedade capitalista, é possível encontrar algumas referências de Marx quanto ao significado das associações cooperativas. Em 1864, no Discurso inaugural da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) 2, diz que, embora limitado na sociedade de classes, “o trabalho associado, que maneja suas ferramentas com mão hábil e entusiasmada, espírito alerta e coração alegre” (apud Bottomore, 1993, p. 20) representa a negação do trabalho assalariado. Mas condena a desvirtuação que fazem os “porta-vozes e filantrópicos da burguesia” quanto ao significado das cooperativas no processo de emancipação da classe operária. Mesmo re-

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Desde a criação da Associação Internacional do Trabalho (AIT), em 1864, e da fundação do Partido Operário Socialista da Alemanha, em 1875, que tentava unificar os principais agrupamentos do movimento operário alemão, já estavam presentes os debates acerca do caráter do cooperativismo no seio da sociedade capitalista e sua relação com a luta pelo poder do Estado. Apesar das duras críticas apresentadas por Marx na Crítica do Programa de Ghota (1979), o programa do Partido Operário Socialista Alemão, de 1875, havia sido aprovado contemplando as idéias lassalleanas. O ponto que provocava grande interesse e aceitação, em particular no seio da igreja católica e protestante, era a reivindicação da ajuda do Estado para o financiamento de cooperativas operárias de produção. De acordo com o programa, “o Partido Operário Alemão exige que se criem cooperativas de produção, com a ajuda do Estado e sob o controle democrático do povo trabalhador. Nas indústrias e na agricultura, as cooperativas de produção deverão ganhar vida em proporções tais que delas surja a organização socialista de todo trabalho” (Marx, 1979, p. 25). Em Tiriba (1997, p. 07-34), resgatamos os debates internos da social-democracia alemã sobre a produção associada e analisamos o significado das pequenas unidades produtivas de propriedade dos trabalhadores.


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conhecendo representarem as cooperativas um feito vitorioso da economia política da classe trabalhadora, denuncia a influência da burguesia no movimento cooperativista que, utiliza-o a serviço de interesses estranhos ao proletariado 3. Sendo uma “brecha aberta” dentro do sistema capitalista, as cooperativas de produção manifestam, na sua organização social, as contradições do sistema vigente. Assim, alerta que a derrota do capitalismo só será possível com o poder político nas mãos dos trabalhadores e que, enquanto as cooperativas não se desenvolverem em nível nacional, elas representam um “estreito círculo dos esforços casuais de grupos de trabalhadores” (ibid). Para Marx, o sistema de crédito é a base para a transformação das empresas privadas em sociedades anônimas e, também, para a extensão paulatina das cooperativas. Tanto as primeiras como as segundas devem ser consideradas como formas de transição entre o regime capitalista de produção e o de produção associada, quer dizer, devem ser concebidas como uma fase necessária para a transformação da propriedade privada em propriedade dos produtores associados, como propriedade direta da sociedade. Acredita que as forças produtivas se desenvolvem em meio de determinadas relações de produção e que, em um determinado estágio desse desenvolvimento, as relações de produção con3

No caso do Brasil, como de outros países, a cooperativa tem sido a forma jurídica pela qual, historicamente, a empresa capitalista tem tentado disfarçar-se, dando outro significado ao trabalho cooperativo. Sobre o estímulo e os investimentos dos empresários, no final do século XX, para a formação de cooperativas e outros empreendimentos geridos pelos trabalhadores, ver o capítulo anterior.


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vertem-se em uma trava para o avanço das forças produtivas. Não obstante, um novo modo de produção já está presente e se constrói no interior do antigo: Estas fábricas demonstram como ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento das forças materiais produzidas e das formas sociais de produção adequadas a elas, do seio de um regime de produção surge e se desenvolve naturalmente outro novo. Sem o sistema fabril derivado do regime capitalista de produção não teriam podido desenvolver-se as fábricas cooperativas e muito menos sem o sistema de crédito, fruto do mesmo regime de produção (Marx, 1974, p. 418-9)

O que significa a afirmação de Marx? Seria essa uma concepção de mudança social por etapas lentas e graduais? Em Reforma ou Revolução, Rosa Luxemburgo refuta o revisionismo de Bernstein4, o qual renuncia “à luta contra o modo de produção capitalista e trata de dirigir o movimento socialista em direção à luta contra a “distribuição capitalista” (Luxemburgo, 1976, p. 95). Luxemburgo enfatiza que as cooperativas são incapazes de transformar o capitalismo. Também para ela “as cooperativas, sobretudo as de produção, constituem uma forma híbrida no seio do capitalismo. Podemos descrevê-las como pequenas unidades de produção socializadas dentro do intercâmbio capitalista” (ibid, p. 92). Se na economia capitalista o intercâmbio domina a

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Berstein é considerado o “pai do revisionismo”. Suas idéias e de seus seguidores tornaram-se hegemônicas ao longo da história da social-democracia alemã. Como colaborador e amigo de Engels, é somente depois de sua morte, em 1896, que Bernstein põe de manifesto a crítica ao pensamento de Marx. Em As premissas do socialismo e as tarefas da socialdemocracia propõe “o caminho da luta parlamentária mediante a exploração de voto e a utilização dos meios legais” (Bernstein, 1982, p. 186) para a conquista do poder político.


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produção, significa dizer que a produção depende em grande medida das leis do mercado. Assim, se no interior das cooperativas de produção “seguem predominando os interesses operários, elas terminam por se dissolver” (ibid). Para analisar o assunto, é a mesma Rosa quem afirma: As cooperativas de produção só podem sobreviver no marco da economia capitalista se conseguem suprimir, mediante alguma artimanha, a contradição capitalista entre o modo de produção e o modo de distribuição. E podem consegui-lo só se evitan artificialmente a influência das leis da livre concorrência. E só podem conseguir este último quando estão asseguradas de antemão um círculo fixo de consumidores, ou seja, um mercado constante” (ibid, p. 93).

As cooperativas de produção tornam-se dependentes das cooperativas de consumo e a produção se vê limitada às manufaturas que satisfaçam às necessidades imediatas de um pequeno mercado local. No capitalismo, as cooperativas de produção “se reduzem a um apêndice das de consumo” (ibid, p. 94) e, devido à competição com as grandes empresas capitalistas, tanto as primeiras como as segundas ficam excluídas dos ramos mais importantes de produção de capital, como o da indústria petrolífera, têxtil, de construção de maquinarias, metalúrgica etc. Portanto, essas associações cooperativas são um instrumento ineficaz para atacar as bases da economia capitalista e tampouco representam um instrumento para a transformação social. Conclui que, ao defender o “princípio do cooperativismo”, Bernstein não vê na estrutura do capitalismo o processo que conduz ao socialismo. Mas, o que representam as organizações econômicas empreendidas pelos setores populares no atual contexto dos países chamados “em vias de desenvolvimento”? Termos


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como cooperativismo, cooperativismo popular, microempresas populares, produção comunitária e autogestão estão na moda entre empresários, governantes e os diferentes atores dos movimentos sociais. Como vimos, a luta contra o desemprego tem sido o motivo imediato que tem levado os trabalhadores a brigar pelo controle da produção. Assim, o atual fenômeno do cooperativismo da “apropriação da fábrica” não deve ser compreendido, necessariamente, como sintoma da luta pela transformação da sociedade, mas, fundamentalmente, como alternativa para que os trabalhadores garantam seus antigos postos de trabalho e/ou criem outras formas geradoras de trabalho e de renda. Em Empresas de Trabalhadores e Economia de Mercado, Razeto (1991) chama de “fenômeno cooperativo” o conjunto de idéias e experiências que são expressão do cooperativismo, como também outras formas de organização de empresas que, embora não se denominem como cooperativas, desenvolvem relações econômicas e sociais características dos modos cooperativos de fazer economia. Considerando ser a propriedade uma relação entre um sujeito e um bem econômico, acredita na possibilidade de coexistência de formas de propriedade no “fenômeno cooperativo”, não existindo apenas uma que possa ser considerada como a mais adequada para as “empresas de trabalhadores”5 . Além de outros aspectos, o que define a racionalidade das organizações econômicas administradas pelos trabalha5

Referindo-se às experiências de economia popular na Nicarágua, Orlando Nuñez fala da necessidade dos trabalhadores não perderem a motivação individual, combinando a propriedade e a produção individual com atividades coletivas e associativas. “No projeto associativo e autogestionário prioriza-se a propriedade para os produtores-trabalhadores (combinando a pequena propriedade individual com a propriedade coletiva)” (Nuñez, 1995, p. 224).


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dores não é sua forma de propriedade, mas as categorias trabalho e comunidade6 e o tipo de relações econômicas e de mercado em que elas se incluem. Razeto adverte sobre a necessidade de considerar que os diversos fatores intervenientes na produção são objeto da propriedade em geral e que, portanto, as relações de propriedade se estabelecem tanto no que diz respeito aos meios materiais e financeiros como também à força de trabalho (os quais se tornam objeto de apropriação por parte dos sujeitos econômicos). Mas, “na prática, os vínculos de propriedade constituem-se e desintegram-se, fortalecem-se ou debilitam-se, segundo o grau de constituição ou desconstituição dos sujeitos e à medida que se fortaleçam, debilitem ou mudem de caráter os distintos aspectos da relação entre o sujeito e o bem ou fator de que se trate” (Razeto, 1991, p. 106). Se as relações de propriedade não se estabelecem simplesmente por um ato jurídico, mas representam um complexo “processo de apropriação progressiva” por parte dos proprietários, teremos de centrar a atenção no modo pelo qual se estabelecem as relações entre os sujeitos e o seu patrimônio. A forma de apropriação de uma organização econômica depende, antes de tudo, de qual seja sua categoria organizadora – o capital ou o trabalho. Assim, “o sujeito, o objeto e o modo de propriedade correspondentes a uma empresa organizada pela categoria Capital são distintos dos que correspondem à outra em que a categoria organizadora é o Trabalho” (ibid, p. 108). 6

Pela categoria Comunidade, Razeto compreende o elemento de integração, colaboração e cooperação voluntária entre seus integrantes, que se encontra em qualquer empresa e que facilita a ação conjunta e a coesão social (1991, p. 35).


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Para Razeto, o caráter social do trabalho não está diretamente restrito à forma de propriedade social dos meios de produção, já que a conformação do “social” pode ser tanto o público, o comunitário e o associativo como o grupal – o que não impede que as unidades econômicas administradas pelos trabalhadores possam apresentar-se sob a forma de uma “propriedade pessoal cujos titulares são os trabalhadores associados na empresa”. Diferentemente da propriedade social, a propriedade pessoal associativa, que não é de tipo capitalista, “não tem nada que encobrir, nada de que envergonhar-se, sendo essencialmente Trabalho e estando constituída pelo próprio trabalho acumulado, pelo trabalho antecipado e pela força de trabalho atual que também é própria.” Nesse sentido, o patrimônio de tais unidades produtivas “é fixável às pessoas concretas que trabalham e se encontram associadas nelas e não ao ‘coletivo’ dos trabalhadores como tal (onde desapareça a precisa proporção que corresponde a cada pessoa na propriedade do patrimônio)” (ibid, p. 11011)7. 7

Para Razeto, o conceito de “propriedade” define-se pelo “direito que adquire um sujeito (individual ou coletivo) de considerar um bem econômico como próprio e de dispor dele como queira, dentro dos marcos jurídicos estabelecidos pela legislação que reconhece e garante tal direito”. Afirma que no setor cooperativo e autogestionário costumam ser quatro as formas mais difundidas de propriedade: a) Propriedade coletiva: o patrimônio pertence aos integrantes da unidade econômica, sem que se estabeleçam partes fixadas a cada pessoa e, conseqüentemente, sem possibilidade de resgate de parte individual quando um sócio se retira; b) Propriedade coletiva com reconhecimento das partes individuais efetuadas em dinheiro: propriedade é do grupo, não havendo diferenciação com respeito àquela parte da propriedade que se constituiu à base de doações e investimentos provenientes de utilidades geradas pela própria empresa; em troca se reconhece a procedência e a propriedade individual dos aportes das cotas de economia dos sócios, colocados na empresa, as quais poderão resgatar no momento em que se retirem da sociedade; c) Propriedade individual


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Diferentemente da lógica capitalista, além de acumular dinheiro e bens materiais, um empreendimento organizado pela categoria Trabalho “acumula-se também no próprio homem, nos trabalhadores, como crescimento de suas capacidades de trabalho, tecnológicas, empresariais, de suas relações sociais e valores solidários” (ibid, p. 95). Ora, tratando-se de uma organização econômica administrada pelos próprios trabalhadores, não é possível nos referirmos aqui somente à exploração do trabalho sob a forma de mais-valia, assegurada pela propriedade privada e posse dos meios de produção, já que a produção associada pressupõe a propriedade coletiva ou a propriedade pessoal associada, de maneira a garantir a divisão proporcional ou eqüitativa dos excedentes. Sobre a produção associada, também nos interessa questionar outras formas de exploração do homem pelo homem, as quais se manifestam na maneira como os trabalhadores se relacionam entre si e com os demais trabalhadores na sociedade. Em que medida a propriedade coletiva ou a “propriedade pessoal associativa” se constitui em elementos de socialização dos frutos do trabalho, não considerados tão-só como benefícios, mas também como utilidades (monetárias ou não) para os trabalhadores e para a comunidade local? Quem se beneficia das riquezas produzidas? Evidentemente, administrada associativamente: o patrimônio representa a soma das contribuições individuais, que permanecem vinculados aos sócios que os efetuam; a exceção de uma porcentagem destinada aos gastos gerais de administração, as utilidades são repartidas entre os sócios; d) Propriedade externa: quando a organização econômica arrenda os meios materiais e financeiros que pertencem a um sujeito econômico externo; as utilidades geradas são distribuídas entre os sócios-trabalhadores, que usam e gestionam o capital externo de maneira relativamente autônoma (Razeto, 1991, p. 101-2).


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essas questões remete-nos não só à discussão sobre a divisão dos bens materiais e espirituais coletivamente produzidos, mas também sobre o caráter do mercado e da sociedade que os produtores associados pretendem construir. Embora no capitalismo seja a relação de intercâmbio a forma dominante de relação econômica, os bens econômicos transitam entre as pessoas, grupos e unidades econômicas de diversas maneiras. Existindo uma profunda diferença entre as formas de relações econômicas que os homens estabelecem entre si, Razeto acredita que, além das normas jurídicas que se lhes possam aplicar, as mesmas se distinguiriam segundo o grau em que realizem os valores de justiça, liberdade e solidariedade, ou seja, pelas pautas de conduta e comportamento explicitadoras do critério supostamente objetivo da igualdade ou desigualdade no valor dos bens que fluem. Sendo a relação econômica uma relação social, o mercado não se constitui só em “um imenso arsenal de mercadorias”, como simplificaram os teóricos do mercado, pois “os bens econômicos não se apresentam só como mercadorias, mas também como presentes, tributos, itens orçamentários, cotas, contribuições, etc.” (Razeto, 1994, p. 32). Para esse autor, as relações econômicas no setor solidário da economia caracterizam-se, fundamentalmente, por: a) relações de comensalidade, quando os bens fluem em termos de um compartir, distribuir ou consumir em função de disponibilidades e necessidades comuns a todos ou individualmente diferenciadas, implicando um grau de integração entre seus membros (na família e outros grupos formais ou informais); b) relações de cooperação, quando os trabalhadores contribuem, com cotas, para a organização de um empreendimento administrado em comum, no qual utilizam suas próprias forças de trabalho e em que a riqueza gerada e aplicada em meios de produção é repartida entre os sócios,


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de acordo com critérios previamente estabelecidos entre eles; c) relações de doação, quando um dos sujeitos, individual ou coletivo, situa-se como doador e o outro como beneficiário, o que não implica um correspondente fluxo no sentido inverso; d) relações de reciprocidade, quando não há explicitação de um acordo de intercâmbio; o nexo entre as partes não é só econômico, podendo basear-se na afetividade (ibid, p. 34-43). Como não poderia deixar de ser, a produção associada no marco do capitalismo é mesmo limitada. Quanto às atuais estratégias coletivas de geração de trabalho e rendas, o relatório das atividades do CEDAC (organização não-governamental) diz que, “ainda que estes grupos se consolidem e consigam resultados econômicos satisfatórios, eles não representam uma solução quantitativamente válida. Em outras palavras, não tem sentido considerar como “resolvida” a questão, se as conquistas se limitam a pequenos grupos isolados” (1992, p. 6). Além disso, embora no universo da economia global possam constituir-se circuitos econômicos particulares como o “mercado de doações” e “mercado cooperativo”, (Razeto, 1994, p. 45), não se pode idealizar as relações comunitárias como se elas estivessem à margem das relações sociais mais amplas. Em uma sociedade de mercado, em que se difundiram, majoritariamente, relações econômicas baseadas em relações de intercâmbio, há que considerarem-se os obstáculos não somente econômicos, mas também políticos, culturais e ideológicos, para a constituição e difusão de um mercado alternativo à lógica do capital. Sabemos que, ainda sob os limites impostos pelo capital, ao tentarem criar uma economia alternativa à sua lógica excludente, os trabalhadores associados também vêm tentando produzir, ainda que de maneira contraditória, alternativas de organização do trabalho em que a atividade laborio-


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sa não se lhes apresente como sacrifício 8, mas como criação. Entretanto, no próprio interior de uma sociedade de mercado, até que ponto seria possível criar, de fato, uma nova cultura do trabalho? Em que medida o trabalho cria as condições para a liberação dos trabalhadores, aumentando o tempo livre e, também, a qualidade de vida? Sem dúvida é um avanço a propriedade ser coletiva (ou pertencer individualmente ao conjunto de trabalhadores) e a riqueza ser socialmente distribuída entre os trabalhadores e a comunidade local, mas isso não é suficiente para que os trabalhadores proclamem a criação de uma nova cultura do trabalho. O socialismo real já demonstrou-nos que a socialização da produção, centrada e controlada pelo poder supremo do Estado, não conseguiu a garantia de administrações democráticas, comunitárias e participativas, mas afastou dos trabalhadores a possibilidade de que eles mesmos se tornem, concretamente, os atores-protagonistas do mundo do trabalho.

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Considerando que o trabalho nunca muda de valor, Smith (1958) acredita que uma quantidade de trabalho representa sempre uma quantidade de sacrifício; uma hora de trabalho é sempre uma hora de trabalho. Assim, independentemente de como e de quanto se produza, o salário do trabalhador equivale a uma quantidade de sacrifício. Analisando a teoria do valor, de Smith, Marx afirmou que, nesta perspectiva, o trabalho é concebido como maldição, pois o repouso aparece sempre como antítese do tempo de trabalho. No entanto Marx concorda que nas formas históricas do trabalho escravo, servil e assalariado, o trabalho apresenta-se sempre como algo “repulsivo, sempre como forçado, imposto desde o exterior, frente ao que o não-trabalho aparece como liberdade e prazer (Marx, 1972, p. 119).


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Acreditamos que o atual desafio das relações sociais é a participação não apenas representativa, mas também direta, de todos os produtores na tomada de decisões básicas com respeito às organizações econômicas e à vida em sociedade: a autogestão consiste em que cada um possa constituir-se em senhor de si mesmo, de seu trabalho, como sujeito criador da história e construtor de uma nova ordem social, o que pressupõe uma relação estreita entre teoria e prática, entre o que-fazer no chão-da-produção e os fundamentos filosóficos e científicos-tecnológicos relativos ao mundo do trabalho. Na verdade, na perspectiva do capital, o avanço científico-tecnológico representou, historicamente, o avanço da dominação do homem sobre o homem. Mas, seria uma ilusão pensar na possibilidade de um processo alternativo de trabalho isento das relações capitalistas de produção e circulação. Ainda que limitados à política tecnológica nacional, que, por sua vez, encontra-se submetida à dos países industrializados avançados, as experiências de produção associada convidam os trabalhadores a inverter a atual racionalidade tecnológica mantenedora da subordinação real do trabalho ao capital, transformando a tecnologia em um instrumento de sua liberação. Em tal sentido, a produção associada pressupõe que, além da propriedade dos meios de produção, os trabalhadores necessitam apropriar-se dos fundamentos científico-tecnológicos que dão sentido a seu trabalho, colocando os meios de produção a seu serviço.


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Práxis produtiva e princípio educativo: Gramsci e os comitês de fábrica Por força ou capacidade de trabalho, Marx compreende “o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie” (1980, p. 187). Ao analisar o caráter do trabalho, plasmado na mercadoria, indica que o trabalho humano se mede pela força de trabalho simples, ou seja, aquela que todo homem comum, sem educação especial, possui em seu organismo (ibid, p. 51). No entanto, na cooperação, a força coletiva difere da soma das capacidades dos trabalhadores isolados, transformando-se em uma nova força coletiva. Diferentemente das jornadas de trabalho individuais (isoladas), nas jornadas de trabalho coletivas os trabalhadores reduzem o tempo necessário para a produção, produzem maiores quantidades de valores-de-uso 9, em um processo em que o trabalhador abandona “os limites de sua individualidade e desenvolve sua capacidade de espécie humana” (ibid, p. 378). Em O capital, Marx já demonstrava ser a desvalorização relativa da força de trabalho conseqüente da eliminação ou da redução dos custos de aprendizagem e que ela “redunda para o capital em acréscimo imediato de mais-valia, pois tudo o que reduz o tempo de trabalho necessário para reproduzir a força de trabalho aumenta o domínio do trabalho excedente” (1980, p. 402). Dada a dicotomia existente en9

Um dos fatores da nova força produtiva social radica-se no fato de que “o simples contato social, na maioria dos trabalhadores produtivos, provoca emulação entre os participantes, animando-os e estimulando-os, o que aumenta a capacidade de realização de cada um” (Marx, 1980, p. 375).


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tre trabalho manual e trabalho intelectual, que caracteriza o processo de produção capitalista e também o caráter antidemocrático da escola (a qual tende a criar e conservar a ilusão de que todos são capazes de adquirir uma preparação técnica que melhore sua posição social na hierarquia na pirâmide da produção), o que se percebe é que, sob os processos escolares ou sob a “pedagogia da fábrica”, poucos trabalhadores têm conseguido produzir a si mesmos como senhores de seu próprio trabalho, articulando ciência e técnica, teoria e prática, a partir de seus interesses de classe. Para inferir sobre os desafios da cooperação na produção associada, em primeiro lugar, partimos do pressuposto de que, tanto para aqueles que tiveram acesso a uma escolarização básica, que lhes permitiu apropriar-se dos fundamentos científico-tecnológicos do mundo do trabalho, como para aqueles que, em maior ou menor grau, não tiveram o mesmo privilégio, o fato é que é pela práxis que o homem transforma a realidade. Um dos pressupostos básicos da práxis é que o homem é um ser que cria a realidade humano-social e se constitui como unidade do próprio homem e do mundo, da matéria e do espírito, do sujeito e do objeto (Kosik, 1995). Como momento existencial e atividade objetiva dos homens, a práxis, “não é atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade” (ibid, p. 222). Como um processo cujo resultado já existia idealmente, a atividade pressupõe certa consciência de uma finalidade – finalidade que se acomoda e que se confronta com as condições objetivas necessárias para sua realização e, portanto, sujeita-se ao curso da própria atividade. Em outras palavras, a atividade apresenta-se com um duplo resultado: o resultado ideal (a intencionalidade/finalidade como produto da consciência, como antecipação do resultado que se deseja obter)


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e o produto real (resultado final do processo que pode assemelhar-se ou não com o projeto original). Nesse sentido, o trabalhador “não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante de seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade” (Marx, 1980, p. 202). Dado que sua consciência estabelece uma finalidade como lei de seu “que fazer”, ao contrário de encontrar-se em uma relação de exterioridade, o homem encontra-se em uma relação de interioridade com seus atos e com o produto de sua atividade prática e é exatamente a prefiguração ideal do resultado real da atividade o que diferencia a atividade humana da atividade de outros animais. Dirigido por sua subjetividade constante e atuante, ao propor objetivos, “o homem nega uma realidade efetiva, e afirma outra que, todavia não existe” (Sánchez Vázquez, 1977, p. 189). Assim, a práxis produtiva constitui-se como práxis fundamental, uma vez que, a partir do trabalho, o homem produz o mundo humano ou humanizado. Regulando e controlando seu intercâmbio material com a natureza e “atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza” (Marx, 1980, p. 202). Como uma atividade especificamente humana, o trabalho humano só pode resultar na transformação da natureza, se ocorre sob as condições materiais que lhe oferece a própria natureza, permitindo-lhe objetivar as finalidades (projetadas em seu cérebro), por meio de uma atividade que já não é pura atividade da consciência, mas atividade real, prática. Além de plasmar-se como materialização “de objetivos que prefiguram idealmente o resultado real que se pretende obter, a atividade humana se manifesta, também, como produção de conhecimentos, ou seja, em forma de conceitos,


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hipóteses, teorias ou leis mediante os quais o homem conhece a realidade” (Sánchez Vázquez, 1977, p. 191). Como nos indica Vázquéz, “o conhecimento humano em seu conjunto se integra na dupla e infinita tarefa do homem de transformar a natureza exterior e sua própria natureza” (ibid, p. 192) pois, sem a compreensão da prática, a racionalidade da atividade humana permanece oculta. Mas, a atividade cognoscitiva em si, como mera atividade da consciência, não leva o homem a reagir aos problemas que o mundo lhe apresenta, não sendo capaz de transformar a realidade natural e social. Ainda que só exista em relação com a prática e com o desenvolvimento histórico, a atividade teórica em si não se constitui como uma forma de práxis10; daí, “a questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim prática” (Marx in Marx e Engels, 1987, p. 12). Quando, na Tese de Feurbach, Marx (ibid, p. 14) diz que os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras e que o importante é transformá-lo, isso significa que o conhecimento humano só se torna um elemento fundamental da tarefa de transformar a natureza exterior e sua própria natureza quando se põe como mediador entre o pensamento e a ação, entre a atividade prática e os objetivos que se propõe realizar. Se interpretar a realidade não significa transformá-la, o conhecimento só pode contri10

Para Sánchez Vázquez, a práxis pode assumir diversas formas, de acordo com a matéria-prima ou o objeto sobre o qual o sujeito exerce sua ação. Entre as formas fundamentais em que a ação do homem serve de objeto de uma nova ação, destaca a práxis produtiva, a produção ou criação da arte, a atividade científica experimental e a práxis política. Quanto à prática política, enfatiza que ela própria, “como atividade prática transformadora, alcança sua forma mais elevada na práxis revolucionária como etapa superior da transformação da sociedade” (1977, p. 194-202).


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buir como fundamento do trabalho e da vida se arrancado “de seu estado meramente teórico e, através de mediações adequadas, buscar sua realização” (Sánchez Vázquez, 1977, p. 207). Ajustada a objetivos e plasmada no plano práxico, a teoria não é mais que um guia para a ação. Não só a apreensão da prática real e objetiva hoje existente, mas também daquela que existe de forma embrionária ou ainda como projeto exigem momentos de busca da unidade entre teoria e prática, momentos esses configurados como processos educativos. Na perspectiva da práxis, o objetivo da educação é a articulação entre teoria e prática, rumo à formação integral de cada ser humano, capaz de governar a si próprio e àqueles que, transitoriamente, são dirigidos por ele, pois a tendência democrática, intrinsecamente, não pode consistir apenas em que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada “cidadão” possa se tornar “governante” e que a sociedade o coloque, ainda que “abstratamente”, nas condições gerais para poder fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao fim de governar”. (Gramsci, 1982, p. 137)

Para isso, um dos pressupostos é criar as condições a fim de que o conjunto dos homens possa elaborar criticamente a consciência do que somos realmente, desenvolvendo uma concepção crítica e coerente do mundo a partir de um inventário, de “um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto de um processo histórico” – processo esse que deixou suas marcas em um presente bem-determinado (Gramsci,1978, p. 12). Como atividade teórico-prática e como equilíbrio entre ordem natural e ordem social, o traba-


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lho configura-se como fundamento e, também, princípio educativo, favorecendo os elementos para a compreensão do caminhar histórico do homem como passado e como projeção do futuro. Devido ao homem só conhecer e transformar a realidade à medida em se insere ativamente nela, não é possível reduzir o processo de conhecer o mundo ao espaço da escola, mas buscar os elementos materiais e imateriais da formação humana em outras instâncias educativas que, sobrepassando os muros da escola, acontecem como processos de vida. Para Gramsci, a educação vai além da educação escolar, invadindo todos os processos que envolvem a formação da consciência e a produção da subjetividade. A ruptura com a divisão da escola em formação geral e formação profissional e o aparecimento da escola unitária correm emparelhados com a criação de novas relações entre o mundo do trabalho e o mundo da cultura, não só na escola, mas também em nível de toda a vida social. Em um novo contexto de relações entre vida e cultura, “o princípio unitário [...] irá refletir-se em todos os organismos da cultura, transformando-os ou dando-lhes um novo conteúdo” (ibid, p. 125). Como dizia Gramsci (1978), toda relação de hegemonia11 é necessariamente uma relação pedagógica, a qual não pode ser entendida como aquela que se dá na instituição escolar, 11

Quanto ao conceito de hegemonia, Portelli analisa que, à diferença de Lenin, que centrava na sociedade política o terreno essencial da luta contra a classe dirigente, “a hegemonia gramsciana é a primazia da sociedade civil sobre a política. Para Gramsci, dado que a primazia econômica é uma condição necessária, mas não suficiente para a formação de um bloco ideológico, “o aspecto essencial da hegemonia da classe dirigente reside em seu monopólio intelectual, ou seja: na atração que seus próprios representantes suscitam nas demais camadas de intelectuais” (Portelli, 1977, p. 65).


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mas se verifica em todas as instâncias das relações entre os homens. Como resultado de um processo práxico-educativo que, na organização da escola e da cultura tem como horizonte e ponto de partida a busca da unidade entre teoria e prática, o “intelectual de novo tipo” representaria o intelectual orgânico dos trabalhadores. Para ele, os intelectuais não formam um grupo social autônomo e independente, mas uma categoria específica de cada classe social; ao nascer no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cada grupo social “cria para si, ao mesmo tempo, uma camada de intelectuais que lhes dá homogeneidade e consciência de sua própria função, não só no campo econômico, mas também no social e no político” (ibid, p. 3)12. Desde a perspectiva de uma nova sociedade, onde o objetivo da educação é o resgate da omnilateralidade do homem, fragmentado pela divisão social e técnica do trabalho: O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não 12

Distinguindo os intelectuais tradicionais (cristalizados como casta no processo histórico) dos intelectuais orgânicos (representantes das classes fundamentais que se apresentam no atual momento histórico), Gramsci propõe que a relação entre intelectuais e mundo da produção não é imediata, mas “é “imediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, das quais os intelectuais são precisamente os “funcionários”.” Identifica dois grandes planos de superestrutura: a sociedade civil e a sociedade política. A primeira corresponde “ao conjunto de organismos chamados comumente de “privados” “; a segunda – o Estado – corresponde “à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”.” (Gramsci, 1982, p. 10).


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apenas orador puro – e superior, todavia, ao espirito matemático abstrato; da técnica-trabalho, eleva-se à ciência-técnica e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a ser “dirigente” (especialista mais político). (Gramsci, 1982, p. 8)

Em tal sentido, a perspectiva gramsciana não é a constituição de novos intelectuais isolados, mas a de contribuir para “forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais” (Gramsci,1978, p. 20), concorrendo assim para a constituição de um novo bloco histórico13. Sendo um processo difícil e contraditório, o desafio da criação de uma camada de intelectuais com essas características também traz consigo uma questão política: “uma massa humana não se “distingue” e não se torna independente “por si”, sem organizar-se (em sentido lato); não existe organização sem intelectuais, ou seja, sem organizadores e dirigentes, sem que o aspecto da articulação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” (ibid). Em 1918, no jornal Li Grido del Popolo, é o mesmo Gramsci quem também vai falar da necessidade da generalização da educação, da cultura do 13

Para Portelli, o “bloco histórico” é um conceito central na obra de Gramsci, estando associado à concepção da unidade entre a estrutura socioeconômica e a superestrutura político-ideológica. Em uma situação histórica global, o bloco histórico significa o resultado de um vínculo orgânico entre estes dois elementos – vínculo esse que “é realizado por determinados grupos sociais, cuja função é operar não em nível econômico, mas em nível superestrutural: os intelectuais. [...] Tomando como exemplo a burguesia, Gramsci demonstra que, à medida que se desenvolvem as funções econômicas e sociais desta classe, foi necessário confiar a grupos especializados, estreitamente solidários, muitas vezes burgueses ou pelo menos saídos das classes aliadas da burguesia, a gestão das funções de organização da superestrutura ideológica, jurídica e política” (Portelli, 1977, p. 15).


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saber, como forma de tornar o povo independente, pois “socialismo é organização, e não só política e econômica, mas também e sobretudo organização do saber e de ter vontade de atuar, mediante a atividade cultural” (in Cavalcanti e Piccone, s/d, p. 77). Para ele, “no mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao mundo industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual” (1982, p. 8). No entanto, podemos apreender da obra gramsciana que a idéia do “trabalho como princípio educativo” não é só um pressuposto referente à educação escolar, mas também está presente no processo do próprio trabalho. Isso porque, como já nos referimos, ao final do processo de trabalho, o produto plasma-se como resultado da ação humana na transformação da matériaprima – ação essa representativa do resultado do movimento dialético entre o atuar e o pensar. Ao encontrar-se diante de uma dificuldade, o trabalhador analisa, experimenta, tentando descobrir soluções para os problemas com que se depara, mesmo sob a condição de “fator de produção” e relegado a mero executor das tarefas predeterminadas por uma gerência científica, que se mantenha fiel ao princípio de Taylor de que “todo possível trabalho cerebral deve ser banido da oficina e centrado no departamento de planejamento ou projeto” (Braverman, 1981, p. 103), Por mais mecânico e degradado que seja o trabalho, existe um mínimo de qualificação do trabalhador, ou seja, um mínimo de atividade intelectual criativa. Além de produção de bens materiais, o trabalho também produz bens espirituais, entre eles as habilidades técnicas, o saber sobre o trabalho e sobre as relações em que se produz o trabalho e o trabalhador. Dessa forma, o processo de trabalho mostra-se como instância e como processo educativo, em que o traba-


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lhador articula o que-fazer com o pensar, criando novas técnicas e buscando os fundamentos práticos e teóricos que podem dar sentido à sua atividade. Mas sob o regime de produção capitalista, como os trabalhadores poderiam imprimir sua capacidade criadora e transformadora do mundo? Ao analisar a obra de Gramsci, André Brandão (1989) acredita que a concepção do “intelectual de novo tipo” já existia de forma embrionária desde o período em que publicava seus artigos em “Ordine Nuevo”, dirigindo-se aos operários de Turim. Entre 1919 e 1922, inspirado nos conselhos operários da Rússia e preocupado com a necessidade de desenvolvimento de um novo “espirito social” entre os trabalhadores, propunha que os conselhos operários pudessem compor “um órgão idôneo de educação recíproca”. Considerando que a “classe operária também se governa fora do sindicato, se governa no seio da fábrica de acordo com seu local de trabalho” (Gramsci, 1976a, p. 83), a tarefa das comissões internas das empresas italianas era fazer um estudo minucioso do sistema de produção, realizado em cada uma das seções, buscando um ponto ótimo de produtividade e de relações de trabalho. Além de gestores técnicos, os trabalhadores tornar-se-iam os gestores políticos do processo produtivo, executando funções de arbitragem e de disciplina que limitassem o poder do capitalista na fábrica: A massa operária deve preparar-se efetivamente a fim de adquirir um completo controle de si e o primeiro passo para isto consiste em tornar-se solidamente disciplinado no interior da fábrica e sê-lo de modo autônomo, espontâneo e livre [...]. O homem trabalhará sempre melhor que o escravo. [...] Por que não criar, na fábrica, oficinas especializadas na instrução, verdadeiras escolas profissionais, em que cada operário possa, escapando ao embrutecimento e à fadiga, abrir seu espírito ao conhecimento dos diversos processos de produção e aperfeiçoando-se? (1976a, p. 43 e 46)


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O horizonte do controle operário da produção era uma questão que ocupava a atenção do movimento operário nos países capitalistas; o debate centrava-se, sobretudo, no direito a uma organização própria dos trabalhadores e à participação e interferência na resolução de todas as questões relativas à atividade das empresas. Em 1905, vésperas da primeira Revolução Russa, Lenin já proclamava a idéia do controle operário, considerando ser a inspeção operária nas fábricas uma das medidas práticas revolucionárias para preparar a tomada do poder. Também em 1917 veio considerar que, na fase de transição entre o capitalismo e o socialismo, o controle operário era a forma das massas populares participarem na gestão da produção e, também, uma forma de impedir a quebra das empresas, provocada tanto pela resistência como por seu abandono por parte dos empresários. O controle operário estava diretamente vinculado às transformações socialistas de toda a base econômica da sociedade. 14 Retomando os ensinamentos da experiência russa, na qual o controle operário contribuiria para a formação política e a competência dos trabalhadores quanto aos problemas econômicos, para Gramsci, os comitês de fábrica – como organismo da democracia operária – seriam instâncias em que se promoveria “uma energia e uma vida nova”, capaz de, no futuro, substituir “os capitalistas em todas as funções úteis de direção e administração” (ibid, p. 11). O objetivo era criar no operário o sentimento de “produtor”, constituir sujeitos ativos do processo de produção para, em um momento político oportuno, conquistar a direção da fábrica. 14

Sobre a história dos conselhos operários na Rússia, ver Vinogradov (1975). Sobre a adesão de Gramsci à experiência soviética, ver também Manacorda (1990, p. 32-41) e Nosella (1992, p. 30-45).


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Além disso era necessário, desde já, preparar aos trabalhadores para substituição do modo capitalista de produção, tornando-os capazes de exercer as “funções essenciais de gestão e de domínio do patrimônio nacional” (em Gramsci e Bordiga, 1981, p. 34). No entanto, o movimento italiano, iniciado em 1919, veio a fracassar em setembro de 1920, quando, depois da ocupação das fábricas pelos operários, os empresários turinenses conseguem desarticular a organização dos trabalhadores, levando os conselhos operários à condição de comissões internas. Embora reconheça, posteriormente, que a estratégia dos conselhos não poderia obter êxito sem a incorporação de outros setores sociais no processo de transformação social, Gramsci considera que os conselhos operários, como “centros de vida proletária” representam “uma escola maravilhosa de experiência política e administrativa” (ibid, p. 36), pois o homem, “trabalhando utilmente, produzindo desinteressadamente a riqueza social, afirma a soberania, exerce seu poder e sua liberdade criadora da história” (ibid, p. 43). A fábrica seria o locus de produção de intelectuais de novo tipo – sujeitos capazes de administrar técnica e economicamente o processo produtivo, ao invés de ser apenas um lugar para se executar um programa preestabelecido pelos capitalistas. Em outras palavras, o trabalho fabril seria o locus de uma pedagogia ativa, de formação de intelectuais orgânicos, portadores de uma nova consciência, de uma nova concepção de mundo, de uma nova cultura. A produção associada se lhes apresentaria como a possibilidade de contrariar o sentido de suas vidas e de seu trabalho, de subverter a lógica que durante séculos o capital imprimiu às suas práticas trabalhistas. Os trabalhadores, que historicamente haviam sido relegados a tarefas manuais, agora se encontram frente a uma nova realidade: a possibilidade


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de pensar e criar o processo produtivo. Além de apropriar-se dos meios de produção, era preciso que os novos dirigentes também se apropriassem dos segredos da ciência da gestão. Os conhecimentos não deviam ser de propriedade do técnico ou do gerente, mas de todos os trabalhadores. Subvertendo a lógica da organização capitalista de trabalho, cada operário abandonaria seu posto de “apêndice da máquina”, articulando conhecimento prático e conhecimento científico, de modo a fazer da ciência e da técnica a expressão dos interesses dos setores populares da sociedade. Na perspectiva de Gramsci, a gestão da produção associada pressupunha a capacidade de cada trabalhador para administrar seu trabalho de acordo com os interesses coletivos. Participar do processo produtivo significaria ir mais além da participação por representação e também favorecer uma organização que permitiria a interferência coletiva e cotidiana no conteúdo e na forma de produção. Para o trabalhador associado, viver e administrar o processo de produção lhe permitiria a elaboração crítica da atividade intelectual existente em um determinado grau de desenvolvimento, em consonância com o trabalho manual; permitiria redimensionar sua práxis em função de uma nova concepção de mundo, fundamentada em um projeto de vida que busca a hegemonia do homem e de seu trabalho. Mas se, de um lado, a transformação da realidade faz-se pela práxis, de outro, também é necessária a consciência desta mesma práxis e a superação do sentido comum de que o prático se reduz ao produtivo. Como demonstra Kuenzer, referindo-se à pedagogia da fábrica, se o trabalhador é qualificado, conhece o processo em sua totalidade, conhece a máquina e os princípios que regem seu funcionamento, ou seja, se ele domina a ciência que a máquina incorpora, estabelece-se outro tipo de relação, que lhe permite dirigir o trabalho, e não ser dirigido por ele.


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[...] é pela não democratização do saber sobre o trabalho que se reforça a exploração dos que dominam a ciência (e o capital) pelos que não a dominam” (Kuenzer, 1986, p. 193 e 194)

Mas, quando os trabalhadores se encontram afastados dos bancos escolares ou, quando muito, freqüentam uma escola que não lhes garante uma educação de qualidade – no sentido de permitir-lhes compreender também os fundamentos políticos e econômicos do trabalho, seus pressupostos filosóficos, seus co-determinantes históricos – quais são as potencialidades da produção associada? Pensando os desafios da produção associada no contexto atual da crise estrutural do emprego, sabemos ser um dos limites impostos pela sociedade capitalista a não-permissão do acesso da grande maioria dos trabalhadores aos conhecimentos filosóficos e científico-tecnológicos a respeito do mundo da produção, da cultura e da vida em sociedade. Afastando-nos de uma concepção iluminista, pensamos que, mesmo atualmente vivendo na chamada “sociedade do conhecimento”, a educação não é e nunca foi a redentora da humanidade. O conhecimento, por si só, não é capaz de transformar a realidade e tampouco nos leva necessariamente a uma “sociedade opulenta”. Tampouco o acesso à escola é o que garante a possibilidade dos trabalhadores associados estruturarem uma nova forma de trabalho distante dos valores do capital. No entanto, não é possível deixar de considerar que a questão de cultura e da educação e, mais especificamente, da socialização do conhecimento, tem-se convertido no “calcanhar de Aquiles” dos empreendimentos gestionados pelos trabalhadores.


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O conhecimento como calcanhar de Aquiles A capacidade de trabalho, compreendida como o conjunto das condições físicas e mentais despendidas nas atividades de produção de valores de uso em geral, é uma condição sine qua non do processo de transformação da matéria em produto final. O caráter da qualificação varia historicamente, representando a síntese do grau médio de destreza dos trabalhadores, considerando a disponibilidade de recursos naturais, a quantidade e qualidade dos meios utilizados para produzir, a forma como é organizada socialmente a produção, o grau de desenvolvimento das ciências e a possibilidade de aplicação de seus resultados (Machado, 1992). Nesse sentido, o problema da formação de trabalhadores diz respeito à questão dos fundamentos filosóficos e científicotecnológicos e também à questão da cultura do trabalho. A educação dos trabalhadores dá-se na escola, no trabalho e nas demais instâncias das relações sociais. Para os trabalhadores que não gozam do direito de sentar-se nas carteiras ou não conseguem sobreviver frente às duras regras do jogo escolar, a qualificação fica restrita à qualificação no trabalho, ou seja, à mercê do “departamento de recursos humanos” da empresa capitalista. Quanto à “pedagogia da fábrica”, Kuenzer (1986) constata que o processo de produção, apropriação e expropriação do conhecimento é uma das mediações nas relações de produção capitalista, ficando a afirmação ou negação do saber do trabalhador determinada pelos interesses do capital. Não por casualidade, ao longo de um processo pedagógico escolar, um operário metalúrgico se deu conta de que quando o operário depende totalmente da empresa para aprender um ofício ou uma profissão, “ele se torna submisso aos patrões, não tem iniciativa própria. Quando o patrão domina o corpo, domina também a mente do trabalhador” (Tiriba, 1989, p. 46).


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A partir de um longo estudo sobre as relações pedagógicas no interior da fábrica, Kuenzer (ibid.) indica-nos que as políticas de recursos humanos têm como objetivo criar um corpo coletivamente qualificado na medida exata das necessidades do capital. Dada a necessidade de especialização, o capital tenta separar o que é inseparável – ação e reflexão –, tornando inviável a dimensão de totalidade dos processos produtivos. Se o saber sobre o trabalho não existe de forma autônoma, mas é produzido pelos homens na prática concreta dos processos produtivos (sob determinadas relações sociais), é a partir das relações concretas de produção que o trabalhador, além de aprender os conhecimentos técnicos, aprende os valores e comportamentos necessários para tornar-se um “bom trabalhador”. Por sua vez, as relações concretas de produção vão lhe ensinando a perceber sua condição de exploração e os modos de enfrentá-la. Assim, ele vai elaborando um saber que se caracteriza como um conjunto de explicações e de formas de ação que lhe permitem enfrentar ou escapar do controle do capital, com modos de disciplinamento que lhes são próprios; aprende a se organizar, a sabotar, a dissimular, a reivindicar e assim por diante. (Kuenzer, 1986, p. 183-184)

A própria autora adverte que se, de um lado, o homem produz conhecimento à medida que produz as condições de sua existência, de outro, o conhecimento produzido pelos trabalhadores não é equivalente ao saber historicamente produzido pela burguesia ao longo do capitalismo, dado que os primeiros não desfrutam do acesso aos instrumentos teóricometodológicos que lhes permita sistematizar seu saber. Para os trabalhadores, os processos produtivos são uma grande escola, onde aprendem e produzem novos conhecimentos, habilidades e valores; no entanto, sua capacidade de criar é sufocada, ficando seu grau de qualificação ou desqualificação determinado pela forma como se organiza e se divide o trabalho.


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Ora, as novas tecnologias – calcadas na automação flexível – exigem do capital novas estratégias de gestão da força de trabalho, as quais alteram o movimento de qualificação e desqualificação dos trabalhadores. A mudança de um trabalho rígido a um trabalho flexível acompanham estratégias de redução dos níveis de divisão e fragmentação do trabalho, diminuição dos níveis de hierarquia e de controle do supervisor, exigindo dos trabalhadores a aquisição de novos conhecimentos e habilidades para que realizem um leque mais amplo de tarefas. No entanto, a formação polivalente – como um elemento e condição do novo modelo de acumulação – não está isenta de reproduzir a alienação do trabalho, já que a ciência permanece como algo alheio e externo ao trabalhador. Se, por um lado, a polivalência permite ao operário o acesso a um ramo mais amplo de conhecimentos, por outro, a ciência mantém-se como propriedade inalienável do capital: A polivalência se apóia no uso cientificista da ciência, sujeitando o conhecimento à mera instrumentalização utilitarista e ao trabalhador a processo de adaptação definidos por regras prescritas com anterioridade. O saber vivo do trabalho é encampado pela lógica conceptual formalista, que o sintetiza, codifica e congela ao transformá-lo em “software”, a mais nova expressão do trabalho morto (Machado, 1992, p. 20).

A cientifização e simplificação dos processos produtivos vêm exigindo que, cada dia mais, os trabalhadores aprendam o conhecimento científico e tecnológico, não obstante a qualificação politécnica não se confunde com a qualificação polivalente, hoje requerida pelas mudanças na base técnica da produção fundada na microeletrônica. A politecnia não se confunde com a capacidade de operar com várias técnicas, mas representa a capacidade de compreender a ciência que a maquinaria incorpora. A qualificação polivalente re-


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presenta o novo em termos de formação técnica, requerendo do trabalhador que ele saiba manipular instrumentos básicos em um amplo leque de tarefas, transferindo e utilizando seus conhecimentos e experiências, de maneira versátil, em diferentes situações. Mas, embora o processo de produção exija um trabalho mais variado, isso não implica numa mudança qualitativa das tarefas. Se o trabalho polivalente pressupõe o acesso a uma maior quantidade de conhecimentos empíricos, a atividade do trabalhador tem de seguir as regras prescritas. Ao contrário de representar, necessariamente, uma intelectualização do trabalho, trata-se de uma racionalização formalista com fins instrumentais, permanecendo a ciência como algo que lhe é externo e alheio. Nos atuais processos toyotistas, o trabalho flexível tornou-se o princípio que orienta a gestão da força de trabalho para uma qualificação que, embora permita a ampliação dos espaços de participação e do nível de conhecimento dos trabalhadores para o exercício de várias tarefas, maximiza a exploração do trabalho. O nível de polivalência torna-se relevante não só se esta é favorecida por máquinas e equipamentos que têm por base a automação flexível, mas também se é acompanhada de formas de trabalho que garantam uma maior comunicação entre os trabalhadores – como ocorre, por exemplo, nos “círculos de qualidade”, que funcionam como mecanismos de valorização e também de cooptação do trabalhador. Sob a nova base técnica da produção, as políticas de gestão da força de trabalho buscam imprimir um novo entendimento acerca da cooperação através de programas de humanização do trabalho que estimulam a participação e a comunicação “solidária” entre os trabalhadores. O aumento da eficiência, a garantia de qualidade e de produtividade têm como pressuposto o compromisso do trabalhador – as-


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sumido, verificado e controlado – no transcurso de sua participação no ambiente de trabalho. De toda forma, é necessário não esquecer que, apesar de uma artimanha dos capitalistas, a gestão participativa significa uma conquista e uma arma dos trabalhadores que lhes permite confrontar sua autonomia relativa com a perspectiva de construção de sua autonomia real. Do mesmo modo que, na produção fordista, a rotatividade interna do operário lhe permitia apropriar-se de um saber cada vez mais extenso sobre o trabalho, ampliando assim, sua qualificação técnica (Kuenzer, 1986), não há dúvida de que as novas tecnologias representam um avanço em relação ao taylorismo e ao fordismo. Dada a necessidade de desenvolvimento de um maior poder de abstração que permita ao trabalhador não só operar equipamentos complexos, mas também saber utilizar e transferir conhecimentos e experiências, de forma versátil, em diferentes situações, não há dúvida de que há necessidade de seu acesso à educação básica. No entanto as transformações do mundo do trabalho não pressupõem revolucionar a escola (Machado, 1992). A revolução da escola passa também por uma revolução no mundo do trabalho e vice-versa. Sustentados pela materialidade das relações capitalistas de produção não tem sido na ótica da emancipação humana, mas na ótica utilitarista e imediatista do mercado, que, em geral, têm sido estruturados os processos de educação do trabalhador. Tendo como fundamento os novos paradigmas da produção, nos processos educativos – seja através da escola formal ou de cursos esporádicos de formação profissional – a lógica do capital é a qualificação e a requalificação dos trabalhadores, cujo objetivo é a aquisição


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de competências básicas15 dentro da lógica da competitividade empresarial e sob a regulação neoliberal. Em um contexto de desemprego estrutural, nos anos 80 e 90, ressurge a teoria do capital humano 16 no campo educativo, sob um novo discurso: a requalificação e reconversão profissional são os segredos para garantir a “empregabilidade” e o êxito da restruturação produtiva. Tendo como pressuposto a “qualidade total”, a formação para a competitividade exige uma formação flexível, abstrata e polivalente. Historicamente e agora na chamada “sociedade do conhecimento”, os meios de globalização de bens simbólicos propagam a idéia de que a educação é a grande “vilã”, a 15

Sobre diferentes concepções de educação de qualidade, destacamos a tese de doutorado de Sonia Rummert. Ao fazer um estudo comparativo entre os elementos essenciais componentes das matrizes discursivas dos representantes do capital e representantes do trabalho, a autora destaca que, para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a educação básica de qualidade é aquela que, objetivando a formação do trabalhador polivalente, desenvolve as seguintes competências básicas, compreendidas como capacidades de: crítica e reflexão; abstração; ser independente e ter iniciativa; organização do próprio trabalho; pensar estrategicamente, planejar e responder criativamente a novas situações de trabalhar cooperativamente em equipe e resolver problemas (Rummert, 1998, p. 337-342).

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Na perspectiva da teoria do capital humano, que influenciou as políticas educativas nas últimas décadas, a educação é entendida como um fator econômico, como investimento social para a promoção do desenvolvimento econômico, cujo resultado é uma melhor distribuição da renda, a eqüidade e o bem-estar social. Compreendendo haver um vínculo estreito, quase mecânico, entre nível de educação e nível de produtividade, o capital humano atribui à má qualificação dos trabalhadores a responsabilidade no que diz respeito ao atraso econômico, ao aumento do índice de desemprego e, portanto, de pobreza. Sobre a crítica à teoria do capital humano e as raízes do pensamento economista, cuja formulação se verifica em finais dos anos 50 e cuja sistematização e divulgação por T. Schultz lhe valeu o Prêmio Nobel de Economia em 1979, ver Frigotto (1984 e 1995).


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grande responsável pelo “atraso econômico” e, conseqüentemente, pelo estado de pobreza da grande maioria da população planetária. Tomando por base a avaliação do Plano Nacional de Formação Profissional (PLANFOR), elaborada pela Fundação UNITRABALHO (1999), é possível constatar serem as “demandas do mercado” (leia-se do FMI, do Banco Mundial, dos empresários...) aquelas que vêm dando a tônica aos programas de qualificação e requalificação profissional. Também é possível constatar que os cursos de pequeníssima duração (com conteúdos fragmentados e restritos aos conhecimentos imediatos para uma determinada ocupação) resultam numa formação restritiva quanto à possibilidade de os trabalhadores virem a compreender a complexidade das relações sociais de produção e a problemática maior da sociedade em que estão inseridos. Além disso, a desarticulação desses programas de qualificação profissional (via “educação informal”) com a rede pública de ensino contribui para denunciar que, na prática, a necessária compreensão do “mundo do trabalho” não vem fazendo parte da educação básica dos trabalhadores. Como Singer (1996a), entendemos não ser a maior qualificação dos trabalhadores, insistentemente reclamada pelos empresários, a solução para o desemprego. Tudo nos leva a crer que, com o fim do Estado do Bem-Estar Social, se esgotou a “promessa integradora” da escola (Gentili, 1999). Já não se trata de integração social, mas de integrar apenas os mais aptos – aqueles que poderão sobreviver na “sociedade de mercado” (darwinismo social)17. A novidade no ideário neoliberal é que o objetivo, como nos sinaliza Frigotto, 17

Não por casualidade, o quadro relativo aos projetos de qualificação profissional na área do comércio e serviços da região do ABC/Brasil (onde os desempregados constituem 16,2% da população economicamente ativa) indica-nos que, em 1998, dos 588 alunos que não estavam empregados na época do curso, apenas 103 deles foram absorvidos pelo mercado de trabalho após o término do mesmo (Educação Inclusiva, 1998, p. 46).


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não é integrar a todos, mas aqueles que adquirirem “habilidades básicas” que geram “competências” reconhecidas no mercado. Competências de empregabilidade, já não de garantia de um posto de trabalho e ascensão em uma determinada profissão. [...] O ideário das novas habilidades – de conhecimento, de valores e de gestão e, portanto, de novas competências para a empregabilidade – já não se fundamentam no horizonte de educação como um direito subjetivo de todos, mas de um serviço e de um bem a adquirir para a conquista do mercado produtivo. Trata-se de uma perspectiva educativa produtivista, mercadológica, pragmática e, portanto, desintegradora. (Frigotto, 1997b, p. 147)

Assim, a questão é: o que fazer com os demais, com aqueles que são considerados “supérfluos”? Apesar de que só alguns podem ser salvos deste “horror econômico” (Forrester, 1997), nos discursos oficiais, a educação é um direito de todos, um caminho para o progresso. Nos países centrais, a universalização da escola básica é uma conquista, pela qual a população recebe, ao menos, de oito a doze anos de escolaridade. Nos países periféricos, mesmo que a educação se apresente como um direito de todos, a universalização da escola ainda não se tornou uma realidade. O IBGE evidencia-nos que, em 1995, nas seis principais regiões metropolitanas brasileiras – Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, 47% da população ocupada não havia completado a educação básica. De acordo com a OIT, no início da década de 90, o tempo médio de escolaridade do trabalhador brasileiro era de apenas três anos e meio. Ao contrário dos países centrais, onde o elevado índice de estudantes que cursam o ensino médio em idade adequada (95% no Japão, 88% nos Estados Unidos, 80% na Inglaterra), nos países do Terceiro Mundo, as dificuldades de acesso e permanência na escola fazem com que poucos consigam prosseguir regularmente


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seus estudos (42% no México, 24% no Paraguai, 15% no Brasil, 12% no Senegal) 18. Se, de um lado, é precoce a entrada no mundo do trabalho, de outro é tardia a entrada na escola. Quando a estrutura econômica e política da sociedade capitalista exclui os trabalhadores da escola ou contribui para esterilizar as energias criativas dos trabalhadores (Lettieri, 1980), a produção associada pode tornar-se uma instância – a instância possível – de democratização do saber sobre o trabalho. Além da história “oficial” do capitalismo, em que a educação costuma ser concebida como “preparação” ou “aperfeiçoamento” para o mercado de trabalho, é importante registrar alguns capítulos da história da humanidade em que os próprios trabalhadores foram os atores-protagonistas da busca de outra lógica para a articulação entre o mundo da cultura e o mundo da produção. Como nos indicam os estudos que fizemos anteriormente sobre a produção associada (Tiriba, 1994 e 1996), a maioria dos trabalhadores, ao se fazer cargo dos meios de produção, não se encontra suficientemente “preparada” técnica e politicamente para enfrentar o novo lugar que passa a ocupar no processo produtivo. Como ilustra um operário madrilenho de Almacenes Quirós, durante a guerra civil espanhola19: 18

Os dados são provenientes de: “Educação, um problema econômico” (O Globo, Rio de Janeiro, 4/12/96); artigos da série “República da Ignorância”, publicados no Jornal Folha de São Paulo, durante setembro de 1991; “Modernização esbarra em baixa escolaridade e atraso profissional” (Folha de São Paulo, 29/10/97, São Paulo).

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Ao constituir-se como frente popular de luta contra o fascismo, a guerra civil espanhola (1936-1939) promoveu mudanças significativas na estrutura do Estado e nas diferentes instâncias da sociedade. Socializados os meios de produção, as coletividades operárias e camponesas ensaiaram os


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É evidente que nossa falta de conhecimentos gerais, ou o que é o mesmo, a incultura que o capitalismo havia imposto como um tormento a mais ao trabalhador, a classe privilegiada fez desta ignorância o seu mais firme pedestal de combate, porque assim vedado para o operário o terreno da cultura, eles se sentiam mais afiançados em seu “cetro” de casta superior eleita .[...] Nós temos de compreender bem que nossa Coletividade se consolidará cada dia mais, à medida que nossas inteligências se vão abrindo. Em nossas fábricas temos companheiras analfabetas e outros que quase o são também; isto é o que podem exibir como herança da classe explorada. (Tiriba, 1996, p. 70)

Convivendo com o analfabetismo, ao aprender e ensinar no coração da fábrica, os operários davam o primeiro passo em direção a uma formação técnico-humanista; no entanto o conhecimento prático imediato, por si só, não era suficiente para responder às necessidades da produção. Além de aprender a ler e a escrever, era necessário que o trabalhador desfrutasse de uma formação sólida, capaz de lhe favorecer os subsídios para a compreensão dos princípios técnico-políticos que regem o trabalho. Contrariando a lógica da organização capitalista de produção, a perspectiva de formação de “técnicos” não era restrita aos membros dos conselho operário, mas era um desafio para todos os operários da fábrica. A rearticulação do saber fragmentado e o acesso aos conhecimentos tecnológicos era uma condição necessária para a superação da diferenciação entre dirigentes e dirigidos, ou melhor, entre os que sabem e, portanto, mandam, e os que não sabem e, portanto, executam. primeiros passos em busca de outra lógica para a articulação entre o mundo da cultura e o mundo da produção, tendo em vista a construção de uma nova ordem social inspirada nos princípios do socialismo. Sobre a história da Associação Coletiva de Almacenes Quirós e as dimensões da relação trabalho-educação no interior das fábricas madrilenhas, ver Tiriba (1996). Quanto às confrontações ideológicas na luta pela unidade durante a guerra civil espanhola, ver Machado (1989).


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O projeto educativo era parte integrante do projeto de homem e de sociedade que a revolução popular começava a ensaiar. Para isso, desde já, cada um dos operários deveria deixar de ser um apêndice da máquina, transformando-se em operário-técnico. Dizia o jornal Producción, de 1937: É preciso acabar com o operário autômato, sem iniciativas nem curiosidade por sua profissão. É necessário que o operário conheça a fundo suas máquinas para que esta compenetração de braço e ferramenta ajude a criar o amor do trabalhador por sua obra; ajude a instaurar uma nova moral do trabalho com obrigação social e, por último, contribua a fazer desaparecer o odioso conceito de trabalho como castigo, que tanto influiu na desordem social que tivemos que suportar durante a era capitalista. (Tiriba, 1996, p. 70)

O trabalho é a arma fundamental na construção da sociedade socialista. Assim, era preciso aumentar e melhorar todas as formas de produção, mas isso, sob um novo suposto: o fim da dicotomia entre fazer e pensar o mundo fabril. A transformação social não seria o resultado imediato da passagem dos meios de produção das mãos do capital às mãos do trabalhador; também exigia uma mudança radical de sua mentalidade, ou seja, de sua relação com seu próprio trabalho. Era necessário superar a lógica capitalista de uma formação utilitarista (imediata para o mundo do trabalho) em detrimento da formação geral, ampla e integral, de maneira a permitir que os segredos do mundo do trabalho não permanecesse como monopólio dos técnicos, como privilégio de uma minoria que dirige e dá os rumos ao processo produtivo. O processo de formação dos novos dirigentes da produção teria de contemplar as diferentes instâncias do ato de conhecer: desde a máquina aos bancos escolares, passando pela vida artística e cultural.


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Nosso estudo sobre o processo autogestionário vivido pelos trabalhadores da indústria Remington (Tiriba, 1994) nos primeiros anos da década dos anos 90, no Brasil, também nos indica que um dos desafios era a recomposição/articulação das tarefas de forma criativa, o que, em última instância, pressupunha a capacidade dos trabalhadores para apreender a totalidade do processo produtivo. Como afirmou Jadiel, o presidente da fábrica de máquinas de escrever, O que me permite estar aqui, ser presidente, é o fato de haver passado por toda a fábrica. Nós precisamos preparar cada operário para que possa tornar-se presidente da Remington. (Tiriba, 1994, p. 86)

O fato de haver concluído o ensino médio e de haver exercido (na “época dos patrões”) a função de supervisor da linha de montagem, permitia que Jadiel tivesse um conhecimento mais amplo sobre a produção. Além disso, sua experiência associativa no movimento sindical lhe favorecia a compreensão dos determinantes sociais, econômicos e políticos das ações empreendidas na fábrica. No entanto, tratando-se de um processo de trabalho cujo horizonte era a autogestão operária, era necessário que não só o presidente mas também o conjunto dos operários se tornassem dirigentes da produção e de si mesmos, entendendo que a tecnologia, além de máquinas e técnicas, representa a materialização de determinadas relações sociais de produção. Na Remington, ainda com a presença de máquinas e equipamentos rígidos, o processo produtivo exigia a qualificação dos trabalhadores para um trabalho flexível – experiência que nos ensina não ser possível estabelecer uma relação mecânica entre automação flexível e polivalência. Ainda com uma base técnica predominantemente taylorista-fordista


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(ou seja, “atrasada”), a dinâmica da produção mudava o conteúdo do trabalho. Essa mudança não tinha como fonte de inspiração as máquinas e equipamentos sofisticados e tampouco a “modernidade” da administração capitalista, mas o desejo de buscar um novo padrão de racionalidade tecnológica, tentando superar ou, ao menos, diminuir, a dicotomia entre trabalho manual e intelectual. Indo mais além do tipo de polivalência que tem caracterizado a organização capitalista, na Remington a polivalência significava mais que o exercício de várias tarefas em determinado setor: extrapolava as fronteiras dos setores, dos departamentos, extrapolando os próprios muros da fábrica. Em outras palavras, a participação e a polivalência ganhavam um novo sentido, transcendendo o atual conteúdo das chamadas “novas tecnologias de produção e de gestão da força de trabalho”. Além de uma questão técnica, a polivalência era uma questão política: tornar-se um instrumento para o domínio da tecnologia – o que requeria, em última instância, uma qualificação politécnica. Como nos ensina a experiência espanhola e outras experiências em que os trabalhadores se tornaram protagonistas do processo de produção, a educação não pode ser concebida como uma formação meramente “técnica”, mas como uma formação técnico-política. Quer dizer, como uma educação cujo objetivo é aplicar e inventar novas técnicas que, além de aumentar a produtividade, podem dar um novo sentido ao trabalho. Em última instância, a pedagogia da produção associada requer a permanente articulação entre teoria e prática – tanto no dia-a-dia do trabalho e nas escolas improvisadas no interior da fábrica, como nas demais instâncias sociais. No entanto, apesar da necessidade de que todos os operários estejam capacitados para tornarem-se dirigentes, na prática, a rearticulação dos diferentes


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saberes sobre o trabalho tem sido muito limitada. Na Remington, a polivalência não permitia, por si mesma, a articulação das diversas tarefas e funções, impedindo a apreensão da totalidade do processo produtivo, além do fato de que quase a totalidade dos operários não tinha tido acesso à educação básica. O Departamento de Recursos Humanos, agora administrado pelos próprios trabalhadores, tampouco estava capacitado para atender à demanda dos conhecimentos necessários para administrar o empreendimento. Recorrendo a Frigotto, o fato é que, tendo ou não acesso à escola, os trabalhadores produzem e acumulam conhecimentos, em determinadas circunstâncias, em determinadas relações sociais: A realidade em sua dimensão social, cultural, estética, valorativa etc., historicamente situada, é o espaço onde os sujeitos humanos produzem seu conhecimento. Trata-se de uma realidade “singular e particular”. É a partir desta realidade concreta que se pode organicamente definir o “sujeito do conhecimento” e os métodos, as formas de seu desenvolvimento. Este, para ser democrático, deve atender à universalidade”. (Frigotto, 1996, p. 177)

Como um espaço singular de produção de conhecimentos, a produção associada ganha relevância à medida que os sujeitos, ao tentarem subverter a lógica do capital, em vez de controlar e dificultar o acesso do conjunto dos trabalhadores aos segredos do processo produtivo, promovem a articulação dos diferentes saberes dos trabalhadores. Uma de suas particularidades é que, diferentemente da escola, na produção associada não é necessário eleger o mundo do trabalho como princípio educativo; ele é princípio e, também, fim educativo, é fonte de produção de conhecimentos e de novas práticas sociais, é fonte de produção de


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bens materiais e espirituais. No entanto, esse espaço educativo não substitui o espaço educativo escolar. Entre tantos entraves (econômicos, jurídicos etc.), o não-acesso a um conhecimento mais amplo sobre o mundo do trabalho é um “calcanhar de Aquiles” da produção associada. Mas, além de denunciar o desacato do Estado quanto à educação pública, gratuita e de qualidade para todos, vale a pena refletir sobre o papel dos “técnicos” e “intelectuais”, como agentes da economia popular, nos processos educativos de formação dos trabalhadores que, hoje, frente à crise do emprego, vêm buscando opções de sobrevivência.

O técnico e o político na economia popular e na educação popular Quanto às atuais ações dos governos e dos empresários, tendo em vista o incremento da geração de trabalho e renda, Francisco Gutiérrez analisa que, sendo “uma resposta parcial (produtivista), não contém elementos suficientes para desenvolver a identidade comunitária e preparar para uma transição cultural”. Na verdade, “por tratar-se de uma multiplicidade de repostas localizadas e dispersas, de nenhum modo oferece uma saída para a crise por parte da entidade comunitária nacional”. Ainda que sejam consideradas como iniciativas para combater o desemprego ou promover a democratização da economia, o fato é que, quando não nascem dos próprios setores populares, mas são o resultado de interesses externos, representam “formas de apaziguamento político, de emprego a baixo custo, de ocupação de mão de obra ociosa em terras de baixa produtividade, de


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transferência de custos de infra-estrutura e manutenção, assim como a liberação de custos dos cargos sociais”. O objetivo é “manter a atual estrutura produtiva com uma roupagem modernizante, desconhecendo os objetivos e a natureza sociopolítica de todo o processo de desenvolvimento humano.” (Gutiérrez, 1993a, p. 25) Por sua vez, na busca incessante para “ganhar a vida”, os setores populares têm apreendido na “escola da vida” que não tem sido suficiente reclamar do Estado seus direitos mínimos de cidadania. O descaso por parte do Estado quanto à moradia, saúde, educação e cultura dos que vivem nos cinturões de pobreza dos grandes centros urbanos, contribuiu para a construção de uma “cidadania ativa”, que vai mais além do protesto e da reivindicação. Ainda questionando o caráter deste tipo de cidadania, e não percebendo este novo estilo de movimento popular como articulador do local com o global, acreditamos que entre as diversas modalidades de atividades que compõem a economia popular, têm sido os atores das organizações econômicas populares (OEPs, indicadas por Razeto) quem, de alguma maneira, tem conseguido avançar no que diz respeito à criação de novas relações de convivência. Assim como na fábrica capitalista, também nestas unidades econômicas o processo de trabalho se desenvolve como um ambiente de educação, ao mesmo tempo técnica e política. À medida que seus integrantes aprendem os conhecimentos específicos para produzir os bens materiais para sua sobrevivência, apreendem, também, os valores, os comportamentos necessários para o estabelecimento de determinadas relações de produção. Sob o pressuposto da “educação socialmente produtiva”: O grupo que associativamente trabalha e reflete, crítica e dialogicamente, sobre os problemas organizacionais de seu trabalho produtivo, necessariamente está vivendo um intenso pro-


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cesso educativo que, ainda que parta da realidade e se alimente dela (nível “micro”), está determinado e condicionado pelo contexto (nível “macro”) muitas vezes imanejável pelos próprios associados” (Gutiérrez, 1993b, p. 100)

Sem dúvida, o grupo que trabalha associativamente vive um intenso processo educativo, mas não necessariamente tal processo, pelo fato de que “venha do povo”, está descontaminado de aspectos deseducativos. Assim como nas organizações econômicas populares (OEPs), qualquer espaço onde os homens desenvolvem relações sociais apresenta-se como um espaço educativo que, ainda que singular, não está isolado do contexto maior em que se produz. Assim, compreendemos como “educativo” as práticas de trabalho, como também os aspectos do processo de socialização e produção de conhecimentos e valores que possam ser considerados “bons” para garantir a viabilidade econômica da unidade produtiva e/ou o fortalecimento da colaboração, cooperação, solidariedade, ou seja, do “fator C” (Razeto, 1993b). Sendo a realidade contraditória, do “educativo” também fazem parte as práticas que, na nossa concepção, são “deseducativas” – ou seja, fortalecem os processos em que os segredos da gestão ficam em mãos de poucos, estimulam o egoísmo individual ou o egoísmo coletivo. Mesmo que, em detrimento da cidadania tutelada, as energias criativas fortaleçam a constituição de uma cidadania ativa, pensamos ser importante considerar o caráter por ela assumido no próprio interior das organizações econômicas e nas relações com a comunidade local e com os demais trabalhadores da sociedade. Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire analisa que, dada a “aderência ao opressor”, não são poucos os camponeses que, depois de “promovidos” a capatazes, utilizam práticas ainda mais opressoras que aquelas utilizadas pelo próprio patrão. A “consciência


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hóspede da consciência opressora” resulta de um comportamento “prescrito”, baseado nas pautas que reproduzem as práticas e valores das classes dominantes: Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando na expulsão dessa sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio” deixado pela expulsão, com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. [...] A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. [...] Isto implica no reconhecimento crítico, na “razão” desta situação, para que, através de uma ação transformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibilite aquela busca de ser mais: (Freire, 1975, p. 35)

Para Freire, é necessário que os oprimidos sintam ânsia por libertar-se, sintam necessidade de superar sua condição de “ser menos”, gerada por uma totalidade desumanizada e desumanizante. No entanto é necessário combater o “imobilismo subjetivista” de espera paciente de que um dia a opressão desapareça por si mesma. Devido a não poder-se pensar em objetividade sem subjetividade, e encontrem-se ambas em uma relação dialética, acredita que a luta por “ser mais” não passa somente pelo reconhecimento de como se dá a opressão. Ir além da contradição opressor-oprimido só se pode verificar por meio da transformação objetiva da situação opressora, ou seja, através de uma práxis libertadora. Sendo a realidade social objetiva um produto da ação dos homens, a tarefa histórica dos homens é transformar a realidade opressora. Sem a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo, isto é, sem a práxis, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido. Dessa forma, também os trabalhadores associados, ao sentir uma “irresitível atração pelo opressor”, buscam, de alguma maneira, imitá-los, segui-los (ibid, p. 53). A “aderência ao opressor” pode tornar-se ainda mais forte quando


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a sociedade de mercado estimula o desenvolvimento de um homem econômico, em detrimento do homem multidimensional. Como não poderia ser diferente, devido a estarem imersos em uma realidade opressora mais ampla, os trabalhadores da OEPs também vivem em seu cotidiano a contradição opressor-oprimido, tentado superá-las, em maior ou menor grau, de acordo com sua maneira de perceber e de posicionar-se frente ao mundo objetivo. As experiências associativas podem representar a possibilidade de que o trabalhador possa liberar-se das amarras da organização capitalista do trabalho; entretanto as “práticas de liberdade” podem resultar somente da ânsia e necessidade de libertar-se individualmente e, talvez, poder ocupar a condição de “senhor”, ou seja, de opressor. “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática de dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (ibid, p. 81). Isto significa que a educação popular20 deve ter como fundamento o mundo real e concre20

É impossível falar de educação na América Latina sem ao menos nos referirmos aos movimentos de educação popular, que neste momento, se encontram ofuscados pelos efeitos das políticas educativas neoliberais. A educação popular surge, exatamente, como uma alternativa político-pedagógica aos projetos educativos estatais contrários aos interesses populares. Em distintos momentos, seus diversos marcos teóricos orientaram um grande número de ações: campanhas de alfabetização, defesa dos direitos humanos, experiências com comunidades de base e ainda de busca de uma economia de solidariedade. Quando nos referimos aqui à educação popular, afastamo-nos da concepção de ação compensatória, desenvolvida por pequenos grupos, que possam plasmar-se como algo alternativo à escola oficial. Acreditando que a escola e outras instâncias educativas devam ser – em si – populares, nossa perspectiva é de um projeto que possa englobar todos os espaços educativos formais e não formais em todas as instâncias da sociedade, o que pressupõe também a transformação da própria sociedade. Em Gadotti e Torres (1994), ver diversos artigos de autores representativos desta área de conhecimento, como Paulo Freire, Carlos R. Brandão, Oscar Jara e Francisco Gutiérrez.


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to dos setores populares: suas condições de vida, de trabalho, seus desejos e necessidades. Não existindo “uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa” (ibid), nas OEPs, o processo de trabalho é também instância de produção da consciência dos trabalhadores associados. No entanto, neste momento em que a crise do trabalho assalariado empurra as pessoas para a criação individual ou coletiva dos meios necessários para sua sobrevivência, os objetivos da educação popular necessitam – mais que nunca – ir mais além da “conscientização” – entendida de uma forma abstrata. Como Gutiérrez (1993a e b), pensamos que, se uma das premissas básicas da educação popular é partir da realidade para transformá-la, um de seus pressupostos pedagógicos deve ser seu desenvolvimento integrado ao trabalho produtivo. Sobre as potencialidades da “educação socialmente produtiva”, enfatiza que as questões relativas ao trabalho e a sobrevivência extrapolam o âmbito individual e familiar, transformando-se em um problema da comunidade, cujo espaço deve constituir-se como um novo paradigma de nossa atuação político-educativa. Entretanto, não se trata de educar para o trabalho, mas fazer disto uma aprendizagem estimuladora dos resultados materiais da produção e fazê-lo com o grupo são as dimensões sociais que encerram o trabalho cooperativo e solidário. Trata-se de fazer que o trabalho socialmente produtivo seja, ao mesmo tempo, educativo. (Gutiérrez, 1993b, p. 101)

Com o crescimento vertiginoso das unidades econômicas geridas pelos setores populares, o atual contexto socioeconômico também nos convida a resgatar e reafirmar o trabalho não apenas como princípio, mas também como fim educativo, no sentido de contribuir para tornar viável


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estes empreendimentos21. “Assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos para libertar-se, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação” (Freire, 1975, p. 217); no entanto ainda são poucos os estudos que vêm tentando, de forma profunda, articular educação popular, trabalho e educação, de maneira a compreender a sensação, o sentimento e a intuição dos setores populares como motores de sua prática laboral. Num horizonte transformador, a unidade entre trabalho e educação tem como objetivo a transformação tanto do trabalhador como da estrutura social na qual se situa, o que pressupõe a integração da vertente da economia popular com a da educação popular. Em outras palavras, o desafio é como articular os dois campos de conhecimento e de ação, por meio de um processo práxico que redimensione, ao mesmo tempo, a questão da racionalidade econômica e da racionalidade educativa. Como é possível redimensioná-las? Embora os materiais didáticos das ONGs não sejam objetos de nossa análise, eles nos ajudam a refletir sobre os dilemas da pedagogia da produção associada. Para os trabalhadores que, além de não terem acesso a uma educação básica de qualidade e, que historicamente, estiveram relegados a tarefas de execução, a viabilidade econômica é um tema que os preocupa sobremaneira, sendo hoje em dia um importante conteúdo programático nos “cursinhos de capacitação”. Reconhecendo a pouca familiaridade dos pe21

Para Coraggio, “a motivação dos adultos para se educarem, sobretudo em setores de pobreza extrema, estará mais ligada à resolução de penúrias materiais. Isto reforça a idéia de vincular a educação básica com o desenvolvimento da economia popular. Pois se se trata de entrar em um processo de dinamismo auto-sustentado, essa própria economia deve ser dinâmica e com crescente capacidade de se autosustentar e de reclamar do subsistema educativo mais e melhores serviços” (1995, p. 196-7).


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quenos empreendedores no tocante às práticas de administração e gestão e à incipiente maneira com que tratam as questões econômicas e financeiras, uma organização nãogovernamental do Rio de Janeiro propôs-se a sistematizar, por meio de uma publicação, alguns ensinamentos práticos que pudesse ajudá-los a tornar viável economicamente seus empreendimentos. A metodologia consiste no seguinte: A análise da viabilidade econômica se define em duas partes. Na primeira, formulamos, a nós mesmos, uma série de perguntas sobre o empreendimento que queremos montar. O que precisamos é saber eleger bem as perguntas. E, depois, buscar as respostas. Este procedimento nos força a conferir e, se for o caso, a aperfeiçoar nosso conhecimento sobre a atividade que queremos realizar. Em um segundo momento, faremos algumas contas (que não são nada complicadas), utilizando as respostas de algumas das perguntas que formulamos anteriormente. Ou seja, vamos ordenar e interpretar os números que encontramos na primeira parte. (CAPINA, 1998, p. 9)

De acordo com a racionalidade educativa dos técnicos que se propõem a contribuir para a melhoria do desempenho dos empreendimentos associativos, é necessário que os trabalhadores formulem as perguntas e busquem contestálas de maneira a “casar eficiência com processo democrático, participativo, transparente e solidário” (ibid, p. 5). Quanto à racionalidade econômica, se “o que nos interessa é buscar quem paga o melhor preço” (ibid, p. 35), já não podemos falar de uma economia dos setores populares a partir de um novo horizonte, mas de uma perspectiva ainda confusa e contraditória. Ou seja, ainda que o referido material didático tenha sido inspirado e elaborado tendo por base os problemas concretos enfrentados no dia-a-dia dos empreendimentos populares, percebe-se que, não só os trabalhadores associados, mas também nós (os “intelectuais”, os “técnicos”)


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seguimos com a dificuldade – e ao mesmo tempo desafio – de relacionar teoria/prática, de articular o técnico ao político, refletindo sobre uma nova cultura do trabalho que não paire nas nuvens, mas que possa paulatinamente, materializar-se no cotidiano de cada um dos grupos22. Uma primeira consideração é que, sendo ou não a primeira experiência associativa, as perguntas dos pequenos empreendedores não surgem do nada, não são anteriores à própria vida, mas surgem da práxis cotidiana. É ao longo do processo de trabalho e de outras instâncias de produção de sua existência que o grupo de trabalhadores elabora suas perguntas, busca as respostas, volta a reelaborar as perguntas, confrontando cotidianamente as condições objetivas e subjetivas do mundo vivido com o mundo sonhado. Nesse sentido, não podemos falar da importância de um estudo, mas da necessidade de aprender a fazer muitos estudos de viabilidade do empreendimento, em que as perguntas e respostas se apresentem permanentemente aos trabalhadores, em um processo em que a práxis produtiva se apresenta como princípio educativo. Uma segunda consideração, relacionada com a primeira, é não poderem as perguntas feitas a si mesmo pelos trabalhadores associados ser concebidas como se fossem uma questão cuja resposta se situa no campo técnico propriamente dito, pois o conteúdo e a forma como se pergunta nunca é neutra, mas pressupõem um determinado tipo e 22

As reflexões que aqui apresentamos têm como base um pequeno rascunho, por mim apresentado e discutido na reunião da equipe de capacitação do Fórum de Desenvolvimento do Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro, do qual participa a ONG citada. O objetivo era contribuir criticamente na elaboração de uma oficina para a formação dos grupos de trabalhadores associados que participam do referido fórum.


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grau de compromisso do sujeito com o objeto em questão. Ou seja, não se trata simplesmente de decidir sobre “isto ou aquilo”, mas de descobrir o que ainda está oculto no cotidiano, buscando soluções técnico-políticas que provisoriamente possam dar respostas ao que é difícil e contraditório. Em outras palavras, o esforço para tornar viável o empreendimento pressupõe um estudo sobre a possibilidade de que, tecnicamente, os trabalhadores possam tornar viável seu projeto político – projeto este movido por suas aspirações coletivas e individuais. A busca de uma práxis que contemple a unidade entre os objetivos econômicos e os objetivos sociais é, exatamente, a chave da pedagogia da produção associada, na qual a educação dos trabalhadores precisa ser compreendida como processo permanente e como resultado provisório de ação/reflexão/ação. Quando se pretende combinar eficiência com um processo democrático, participativo, transparente e solidário, há que se perguntar sobre qual democracia queremos, que entendemos a solidariedade, buscando as diferenças e similitudes das “ações cidadãs” estimuladas pelos diferentes agentes e atores da economia popular. Assim, mesmo que, as definições sobre “o que trabalhadores vão produzir”, por exemplo, dependam de um “estudo de mercado”, as perguntas centrais seriam: quem será beneficiado com o produto? Quais são as necessidades reais da comunidade local? Em que medida é possível atender “as necessidades da comunidade? De que maneira? A resposta “para quem vamos vender” e se “vale a pena produzir”, além de ter como referência o entendimento dos trabalhadores do que sejam necessidades humanas pressupõe a compreensão dos conceitos de valor de uso e valor de troca, até porque no capitalismo o segundo se sobrepõe ao primeiro, provocando a produção de desperdícios e a degradação do planeta.


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Diferentemente dos processos de “auto-ajuda” promovidos pelos governos, empresários e por outros pseudo-aliados dos excluídos do mercado formal de trabalho, o objetivo da educação popular não pode ser de contribuir para “aliviar a pobreza”, e tampouco de ajustar as “competências básicas” dos trabalhadores para que consigam competir no mercado, desconsiderando as necessidades reais e imediatas dos setores socialmente “desfavorecidos”. A educação popular, ao contrário da “educação bancária” (Freire,1975), tem como um de seus objetivos a constituição de uma pedagogia da produção associada que questione a atual lógica excludente do mercado e, ao mesmo tempo, crie alternativas para ela. Assim que, vinculada a estas e a outras perguntas, está também a descoberta (por um processo de ação-reflexão-ação) do que é o mercado e que, embora o mercado de intercâmbio seja hegemônico em nossa sociedade, existem outros mercados que se caracterizam por diferentes relações econômicas: relações de comensalidade, de cooperação e de reciprocidade (Razeto, 1994). Na perspectiva de constituição de um mercado solidário que se caracterize por estes tipos de relações econômicas, é preciso questionar: quem são os consumidores que os trabalhadores vão privilegiar: os do shopping center ou os da comunidade? É possível inserir-se tanto na esfera do mercado de intercâmbio como na esfera do mercado solidário? Com que critérios? Além disso, quais são as implicações políticas dos diferentes tipos de relação produtor-consumidor no processo de circulação de mercadorias? Indubitavelmente, responder a tais perguntas pressupõe não só uma aprendizagem técnica, mas também a definição e redefinição de um projeto político com respeito à possibilidade de, no próprio interior de uma sociedade de mercado, estabelecer relações sociais e econômicas de “novo tipo”.


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É obvio que os trabalhadores associados precisam dominar as operações básicas para fazer as contas, avaliar qual é o atual quadro econômico e projetar as metas de produção e comercialização que garantam a remuneração de seus integrantes e a manutenção da própria unidade econômica. Além de calcular matematicamente, também necessitam de formação política para definir quais os tipos de investimentos necessários para isso. Os investimentos serão oriundos de instituições beneficentes? Os investimentos são consideradas como contribuição de “capital” ou como contribuição de “força de trabalho? Se para os teóricos da economia popular parece ser óbvio que a eleição de um determinado tipo de investimento interfere e, ao mesmo tempo, condiciona as relações entre os atores econômicos, não necessariamente, a priori, está claro para os trabalhadores quais são as condições objetivas que materializam as contradições entre capital e trabalho. Na prática, tampouco está claro como o trabalho pode tornar-se o fator de produção que dá sentido e determina os demais fatores de produção (Razeto, 1991). Quanto aos investimentos necessários para se obter uma produção planejada, os trabalhadores necessitam escolher as máquinas e equipamentos, o que, por sua vez, exige conhecimentos mínimos sobre os meios de produção, sobre o desenvolvimento tecnológico e os significados da relação homem/instrumentos de trabalho. Neste processo educativo, tampouco é possível esquecer da divisão social e técnica do trabalho e sua relação com a socialização dos conhecimentos, nos perguntando: por que, de uma maneira general, a produção do saber, é concebida como algo que acontece depois do processo de trabalho (nas reuniões, assembléias, nos cursos de capacitação, etc.)? Na verdade, os dispositivos tecnológicos, a forma como se organiza a produção e se distribui o trabalho é o que vai permitir ou não a socialização


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do saber in locu. Obviamente, aqui também estão presentes as concepções de “produtividade” e “eficiência” que norteiam a práxis produtiva. Outro aspecto a considerar em um processo educativo redimensionador da racionalidade econômica é que, não sendo exploração do trabalho nenhuma novidade para os trabalhadores e tendo sido as técnicas de “participação” um dos instrumentos eficazes para atenuar os conflitos entre os empresários e os trabalhadores, como pensar em uma gestão cooperativa de maneira a garantir – horizontalmente – o exercício de falar, escutar, duvidar, criticar, sugerir e decidir? Como o estilo de participação pode diferenciar-se do estilo de participação capitalista? Como administrar um empreendimento associativo, organizando a produção de maneira que todos se tornem atores-protagonistas do processo de trabalho? Para que o coletivo de trabalhadores possa, de fato, dirigir e controlar “aqueles que transitoriamente os representam, quais seriam os conteúdos técnicos e políticos de uma educação permanente e “socialmente produtiva” (Gutierrez, 1993a)? No cotidiano da produção, é possível ir mais além do trabalho polivalente, promovendo um processo em que todos – e não somente alguns – sejam capazes de compreender os princípios fundamentais da gestão, tendo acesso aos conhecimentos necessários que lhes permitam também questionar, opinar, propor mudanças, enfim, decidir sobre qual é o tipo de gestão administrativa, financeira, jurídica que melhor coincide com os interesses coletivos? Além de compreender a pedagogia da fábrica, a pedagogia da produção associada é também um desafio para os educadores. Seria uma ingenuidade imaginar que os “mestres” e “técnicos”, por serem detentores de um “saber culto”, têm uma larga experiência sobre os dilemas e desafios da economia popular e, que portanto, estariam aptos para


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assessorar os trabalhadores nos rumos técnico-políticos de seus projetos de vida e de trabalho. Ora, o projeto de constituição, in locus, de novas relações sociais e econômicas é instância educativa para os trabalhadores associados, como também para todos aqueles que acompanham e apoiam as iniciativas econômicas populares. Assim, reafirmamos que a necessária articulação entre trabalho e educação se estende, necessariamente, aos processos educativos que se configuram no cotidiano da produção (inclusive àqueles que, frente à crise do emprego, são a expressão da excrescência do capital).

Cultura do trabalho e outros elementos da formação humana Dizíamos anteriormente que a escola é uma instância fundamental para a constituição do “intelectual de novo tipo” (Gramsci, 1982) e que o “novo” em matéria de educação não estaria só em garantir o acesso, mas também a permanência de todos na escola, em um processo que supere os horizontes do capital humano. Quando o horizonte dos trabalhadores é reapoderar-se do conhecimento que foi fragmentado e apropriado pelo capital, é condição sine que non a apreensão dos fundamentos filosóficos e científico-tecnológicos sobre o mundo do trabalho e da vida em sociedade. Parafraseando Gramsci, se, na educação técnica, o “trabalho industrial, ainda o mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual” (1982, p. 8), podemos inferir que, por mais degradante que seja a educação técnica promovida pela escola capitalista, ela é uma das mediações no processo de formação deste intelectual.


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Nem a universalização da educação, nem a escola unitária (de formação onmilateral, politécnica ou tecnológica) conseguiram se tornar uma realidade para o trabalhador. No entanto, Marx e Gramsci não propuseram uma nova relação trabalho e educação somente sob condições futuras e ideais, mas como uma condição objetiva e subjetiva, necessária ao processo de transformação social. Assim que, se os trabalhadores não vêm tendo acesso à escola ou não têm conseguido permanecer nela, é preciso pensar em espaços alternativos de educação que permitam ao trabalhador “dominar a máquina”, ao mesmo tempo que permitam recriar o processo de trabalho, dando-se conta de quantos e quem se beneficia da ciência, da tecnologia e da riqueza produzida. Se a práxis humana é uma atividade física e mental (o que requer simultaneamente ação e reflexão), é necessário criar novos espaços educativos que, propiciando aos trabalhadores ir mais além do conhecimento prático imediato, favoreçam as condições para a superação da práxis reiterativa e fragmentada. Dito de outra maneira, o processo de constituição do “intelectual de novo tipo” requer da produção associada levar às últimas conseqüências a unidade possível entre teoria e prática, criando novas instâncias educativas que favoreçam que o conjunto dos trabalhadores se tornem governantes de si mesmos e de seu trabalho. Para os trabalhadores associados, tornam-se indispensáveis os espaços educativos que privilegiem a socialização e a produção teórica, tendo o saber prático como ponto de partida e os novos saberes e as novas práticas sociais como ponto de chegada. Se os espaços de educação do trabalhador não se esgotam no processo produtivo e tampouco têm se estendido à instituição escolar, temos que redimensionar ou criar novos espaços de sistematização do saber e de ampliação da cultura. Sem dúvida, a escolarização faz muita falta mas, não por


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casualidade, inclusive sem freqüentar uma escola – na forma tradicionalmente concebida – muitos trabalhadores vêm conquistando, ainda que abstratamente, a possibilidade de se tornarem “governantes”. Algumas sugestões de Arroyo (1990), embora não se refiram ao caráter educativo da produção associada no capitalismo, ajudam-nos a refletir sobre a questão. Ao fazer um balanço das investigações sobre trabalho-educação, o autor adverte que os diagnósticos referentes ao mundo moderno e ao caráter deformador da produção capitalista levaram a um pensamento pessimista sobre o mundo do trabalho. Em tal sentido, para os educadores que concebiam o “trabalho como princípio educativo”, na prática, este princípio foi transformado em “resistência ao trabalho”, resistência aos processos de desqualificação e deformação do trabalhador. Assim, O controle do capital através da organização do trabalho e dos mecanismos de apropriação do seu saber apareciam como expressão político-pedagógica dos conflitos de classe. Em contrapartida cabia pensar num projeto político-pedagógico contra-hegemônico para fortalecer os trabalhadores pelo domínio do saber e da qualificação. A superação do ensino profissionalizante e a proposta de uma escola unitária, politécnica apareceram como um projeto político, como uma estratégia de classe. (Arroyo,1990, p. 13)

Arroyo acrescenta que nesta perspectiva, tudo levava a crer que, se não era possível transformar a fábrica por dentro, era necessário transformá-la de fora. Semelhante transformação não se daria pela escola capitalista reprodutora da divisão do trabalho, mas pela escola unitária que superaria esta divisão. Reafirmando ser o trabalho princípio educativo e tendo como horizonte a formação omnilateral, conclui sobre a necessidade de os educadores – ao invés de


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só proclamar o trabalho como princípio educativo e ter medo do caráter deformador do trabalho – buscarem os elementos materiais da formação humana, tentando captar em que medida as condições materiais de produção-reprodução da existência dos setores populares dentro e fora da fábrica vão adquirindo maior riqueza humana social, cultural e, conseqüentemente vão permitindo maior riqueza espiritual para esses setores populares se constituírem e se formarem como seres humanos. (ibid, p. 42-43)

Sem deixar de considerar o caráter degradante do trabalho no capitalismo, temos de concordar com Arroyo que caímos em um reducionismo se concebemos ser a fábrica desqualificadora porque se apodera do saber operário e a escola, qualificadora, porque pode informar sobre os fundamentos científicos da produção. É necessário não estabelecer um vínculo mecânico entre trabalho e educação, em que o mundo da produção representa o trabalho manual e o mundo da escola representa o trabalho intelectual. Mais além da educação para o trabalho ou educação no trabalho, o desafio está em buscar a unidade entre práxis produtiva e práxis educativa, fundada no processo dialético de açãoreflexão-ação, tendo em vista o desenvolvimento do homem e de sua expressão criadora. Não é novidade dizer que a articulação trabalho-educação não se esgota na escola, principalmente quando se trata de um processo educativo em que o mestre “prescreve” o saber acumulado e os alunos o assimilam (ou não). Da mesma maneira, por mais que o processo educativo – ao contrário da concepção “bancária” – favoreça o encontro e confronto entre os diferentes saberes, tampouco é suficiente um espaço formal de aprendizagem. Se a educação popular deve ser essencialmente presencial, na prática (Cabello, 1997),


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isso tem como pressuposto que os trabalhadores associados devem freqüentar uma escola para sistematizar seus conhecimentos, e buscar ali novos saberes que contribuam para dar sentido a seu trabalho e à vida em sociedade. No entanto o novo também estaria na presença dos educadores nas organizações econômicas populares (não exatamente como trabalhadores associados, mas como “trabalhadores intelectuais”) para que, coletivamente, e no chão da produção, também descubram uma nova maneira de fazer e conceber o mundo da produção, buscando as soluções técnico-políticas para a viabilidade de uma economia que possa fortalecer-se nos interstícios da sociedade capitalista. Obviamente, a teoria se produz em consonância com a prática; uma nova prática produz um novo conhecimento, em um processo em que “o próprio educador deve ser educado” (Marx, in Marx e Engels, 1987, p. 12). O problema está em como articular as diferentes redes de produção de conhecimentos e de novas práticas sociais: escola, universidade, ONG, sindicato, associação de moradores, partidos políticos, empreendimentos populares... Como construir organicamete esta relação? Ao refletir sobre os pressupostos metodológicos da educação popular, não é possível refutar que os processos educativos devam ser essencialmente presenciais. Pensando na possibilidade de que a economia popular se torne não apenas um conteúdo programático, mas um dos eixos da educação popular, é importante considerar que a articulação trabalho-educação não se esgota nos espaços formais de produção e socialização de conhecimentos. Se deixamos de olhar os processos produtivos geridos pelos próprios trabalhadores, se não nos debruçamos sobre as diferentes pedagogias da produção associada, estamos estreitando nosso campo de investigação quando, deixando de buscar – também neste espaço singular – os elementos materiais da formação


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humana. Se, na escola, o trabalho deve constituir-se como eixo do processo educativo, na produção associada os processos educativos têm o trabalho como princípio e como fim educativo, constituindo-se como a mediação necessária entre o homo faber e o homo sapiens. A construção de novos conhecimentos e valores que possam dar um novo sentido às relações sociais e econômicas têm como horizonte a instauração de uma nova cultura do trabalho – o que exige dos processos educativos uma ênfase nos aspectos filosóficos e políticos das formas de convivência humana. É preciso pensar um projeto educativo que contemple aqueles que não têm tido acesso à escola e/ou não vêm conseguindo nela permanecer. Para isso, partimos do pressuposto de que a centralidade do trabalho na vida social, além de ter como fundamento o caráter ontológico do trabalho, traz consigo as práticas sociais concretas e o conjunto de valores e representações que os trabalhadores interiorizam, em cada momento histórico, em sua atividade laboral e em outras redes23 de convivência social: escola, família, igreja, associações de vizinhos, partido, sindicato etc.., ademais da influência dos meios de comunicação. 23

Como Villasante (1994a e 1998) utilizamos o termo “rede” para fazer referência às relações internas que os sujeitos estabelecem em uma determinada prática social localizada e entre diversos grupos a partir de interesses identificáveis, gerando assim um determinado tecido social associativo – tecido este que carrega consigo os condicionantes da estrutura social e territorial. Dado que um território é um processo em permanente construção, um determinado espaço físico (ao mesmo tempo, abstrato) caracteriza-se por um conjunto de redes. Sobre as diversas redes que, sob enfoque macro e daquele mais cotidiano e local, contribuíram para criar alternativas ao Estado e à lógica do mercado, o autor destaca: as redes internacionais de pensamento/ação; as redes regionais de economias populares sustentáveis; as redes associativas do terceiro setor e do terceiro sistema, e as redes informais e condutas transversais.


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Se, ao longo da história, o trabalho recebe uma valorização que convenha aos grupos dominantes (para evitar o conflito social, beneficiar-se dos frutos do trabalho e manter o sistema estabelecido), o conceito de cultura do trabalho se obtém pela interseção dos conceitos de cultura e de trabalho, os quais sintetizam realidade, dinâmicas que se constroem e se modificam no processo histórico. Além de considerar as inter-relações entre cultura étnica e cultura de gênero e o tempo de permanência do indivíduo em um determinado processo de trabalho, Palenzuela 24 define o conceito de cultura do trabalho como: Conjunto de conhecimentos teórico-práticos, comportamentos, percepções, atitudes e valores que os indivíduos adquirem e constróem a partir de sua inserção nos processos de trabalho e/ ou da interiorização da ideologia sobre o trabalho, todo o qual modula sua interação social mais além de sua prática laboral concreta e orienta sua específica cosmovisão como membros de um coletivo determinado. (Palenzuela, 1995, p. 13)

24

De acordo com Palenzuela, seu conceito de cultura do trabalho foi construído a partir dos estudos de Isidora Moreno Navarro. Para Moreno, a análise social exige o seguinte pressuposto metodológico: “Contrariamente ao que muitos, explícita ou implicitamente, entendem, no mundo atual – em nossa “aldeia global” – não é o sistema de classes o único princípio estruturante a partir do qual são geradas todas as demais divisões, contradições e conflitos sociais. [...] De minha parte, considero que existem três princípios fundamentais que atuam sobre cada indivíduo tendendo a gerar nele, cada um deles autonomamente, uma identidade globalizadora. [São eles]: minha identidade étnica, minha identidade de gênero e minha identidade de classe e profissional” (apud Palenzuela, 1995, p. 13).


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Ora, as diferentes culturas do trabalho – mediadas pelos processos educativos – repercutem em diferentes significados do trabalho. Numa perspectiva histórica, a análise de uma determinada cultura do trabalho, em um determinado tempo e espaço histórico tem como requisito a capacidade de estabelecer relações e de compreender as mediações entre os aspectos objetivos e subjetivos da formação humana. Definimos como cultura um conjunto dinâmico de representações, símbolos, valores e comportamentos que compõem o corpo social de uma população, histórica e geograficamente definida. Se o trabalho – como mediação dialética entre o homem e a natureza – constitui uma especificidade do homem, também temos que incluí-lo como elemento que constitui a cultura e que por ela está também constituído. Se uma determinada cultura está definida pela identidade sócio-espacial (referida a um território particular) de classe, étnica e de gênero, não é possível afirmar que exista uma separação absoluta entre as diferentes formas de sentir, perceber e relacionar-se com o mundo. Se a cultura do trabalho resulta da dinâmica interna de um determinado sistema cultural, ela também é o resultado de suas inter-relações com os outros sistemas. Refletindo sobre os conflitos multiculturais da globalização e afirmando sobre a necessidade de que a definição sócio-espacial de identidade seja complementada pela definição sciocomunicativa, Canclini pergunta-se: “onde reside a identidade, com que meios ela é produzida e renovada no final do século XX?” (1995, p.141). Com os processos de abertura e de integração da economia de cada país aos mercados globais, a transnacionalização de tecnologias e a circulação globalizada de bens culturais reduziram o papel das culturas nacionais, diminuindo a importância daquilo que tradicionalmente era uma referência de uma identidade, de modo que “grande parte do


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que se produz e se vê nos países periféricos é projetada nas galerias de arte e nas cadeias de televisão, nos editoriais e nas agências de notícias dos Estados Unidos e Europa” (ibid.). Logo, seguem existindo as diferenças e o respeito aos hábitos e as preferências dos consumidores; no entanto, ainda que não necessariamente substitua as tradições, a maneira neoliberal de fazer a globalização constrói um multiculturalismo antidemocrático, pois “o modo pelo qual o mercado reorganiza a produção e o consumo para obter maiores lucros e concentrá-los converte estas diferenças em desigualdades” (ibid, p. 19) Assim que, se é importante reconhecer as diferenças e os contrastes entre culturas desenvolvidas separadamente, também é necessário perceber “as maneiras desiguais com que os grupos se apropriam de elementos de várias sociedades, combinando-os e transformando-os” (ibid, p. 142) Não podemos desconsiderar que falar da cultura do trabalho nas diversas regiões da Espanha não é o mesmo que falar das culturas do trabalho nas diversas regiões do Brasil, por exemplo, onde o mundo produtivo, de “marca americana”, “é um estranho e instável sincretismo do trabalho escravo com elementos de industrialismo moderno: duas essências históricas diferentes e contraditórias que formam uma espécie de “frankstein social” (Nosella, 1993, p. 172). No entanto, sob a lógica competitiva do mercado mundial, as identidades, baseadas em tradições locais foram reformuladas a partir de matrizes globais, sob critérios de “engenharia cultural”. Nesta perspectiva, os efeitos da globalização tecnológica e econômica sobre a reformulação da identidades no trabalho requerem o estudo do “modo como estão sendo produzidas as relações de continuidade, ruptura e hibridização entre sistemas locais e globais, tradicionais e ultramodernos”, sendo este “um dos maiores desafios para repensar a identidade e a cidadania” (Canclini, 1995, p. 151)


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Para Canclini, os processos de negociação constituemse em um recurso chave para buscar a definição de classe, de popular. No entanto, no processo de negociação das identidades das classes populares, “a pergunta é: por que as classes subalternas colaboram tão amiúde com quem as oprime, dando-lhes votos nas eleições e pactuando com ele na vida cotidiana e nos embates políticos?” (ibid, p. 230) Considera que embora nos faltem estudos sobre o problema de multi-etnicidade nos processos de globalização e integração, Quando a noção de modernidade se torna mais problemática, quando se torna evidente que os modelos metropolitanos de desenvolvimento não são mecanicamente aplicáveis à América Latina, a concepção de história que vê as tecnologias modernas como antagônicas às tradições ocidentais perde a força. Daí que se preste mais atenção ao papel às vezes positivo das diversidades culturais no crescimento econômico e nas estratégias populares de subsistência; aceita-se que a solidariedade étnica e religiosa possa contribuir para a coesão social, e que as técnicas de produção e hábitos de consumo tradicionais sirvam como base de formas alternativas de desenvolvimento. (ibid, p. 204-5)

Se consideramos também que “o ser dos homens é seu processo de vida” (Marx e Engels, 1987, p. 37), as análises sobre as culturas do trabalho podem menosprezar os processos de homogeneização requeridos pela globalização do mercado, que tentam mascarar a diversidade e o caráter plural da cultura. Ainda que subsistam os valores e comportamentos tradicionais, pensamos ser preciso compreender a cultura do trabalho em um cenário em que a distribuição global dos bens materiais e simbólicos não acompanham o exercício global e pleno da cidadania, transformando os cidadãos em consumidores (Canclini, 1995). Tampouco é possível subestimar que, sob os novos processos de constituição de identidade do trabalhador (sob os quais estão localizadas as ex-


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periências de produção que pretendemos analisar), a divisão social e técnica do trabalho é um elemento fundamental que engendra a divisão social do saber e da cultura – e que continua como uma marca do capitalismo. Quando o objetivo é a apreensão da cultura do trabalho em sua totalidade, a ciência pressupõe a delimitação da realidade, sem que o estudo das suas partes componentes signifique sua atomização, seu falseamento, mas são parte integrante de seu movimento. Assim, como parte da análise da cultura do trabalho, a análise das condições de trabalho requer que os trabalhadores, como sujeitos, sejam considerados como atores principais e definitivos nestes estudos. Mais que demonstrar com precisão os elementos que constituem as condições de trabalho 25, o desafio é como apreender a dialética entre objetividade e subjetividade, sublinhando a perspectiva relacional destas condições. Como “objetivador da subjetividade dos trabalhadores”, para o investigador, as “condições de trabalho são tudo aquilo que é e que gira em torno do trabalho desde o ponto de vista de sua incidência nos homens que trabalham.” (Castillo e Prieto, 1981, p. 91) Neste horizonte, e retomando algumas das proposições apresentadas anteriormente, perguntamo-nos sobre alguns dos aspectos subjetivos/objetivos da cultura do trabalho – aspectos estes vinculados aos horizontes técnico-políticos dos processos pedagógicos que se plasmam na produção associada: para o trabalhador que, historicamente, teve ape25

Tendo como objetivo apreender os movimentos contraditórios da cultura do trabalho, em nossa pesquisa elegemos quatro eixos de análise, os quais se subdividem em: a) educação, organização e gestão do trabalho; b) relações de mercado; c) redes de ação coletiva e d) motivações/expectativas dos trabalhadores. (Ver próximo capítulo).


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nas a posse de sua força de trabalho e que agora se torna “dono de uma empresa”, qual é o sentido de sua atividade laboral? A disciplina do trabalho é uma prática consciente e voluntária, como queria Gramsci (apud Cavalcanti e Piccone, s/d), ou é o resultado da função clássica do “supervisor” para manter a relação de submissão do trabalhador aos meios de produção? Além disso, frente à atual fase de desenvolvimento das forças produtivas e da necessidade de garantir a viabilidade técnica e financeira do empreendimento, seria possível a constituição de uma nova disciplina do trabalho, na qual o trabalhador estabelecesse uma relação mais prazerosa com seu trabalho? Seria o momento subjetivo do trabalho, também na produção associada, um “jogo” em que “o consentimento espontâneo se une à coação para gerar atividades produtivas” (Burawoy, 1989, p 11)? Também é necessário perguntar se, para o trabalhador que se apropria dos meios de produção representaria a produção associada a conquista do “direito à preguiça” (Lafargue, 1977) e/ou, a conquista do não-trabalho representaria um direito inerente ao direito burguês de propriedade? Ainda, se o ócio e o prazer mundano são as finalidades últimas da atividade laboriosa do homem, em que medida a “preguiça”, que também se manifesta na “cera”, transcenderia a dicotomia trabalho alienado e trabalho-criação, apresentando-se como elemento do gozo inerente ao próprio processo de trabalho? Até que ponto seria possível transformar o trabalho-fadiga em trabalhocriação? Ora, a cultura do trabalho na produção associada vai mais além dos limites das quatro paredes do processo produtivo. Como nos diz Villasante (1997), hoje convivemos com quatro tipos de exploração: capital-trabalho, homem-natureza, dominação-dependência (do homem sobre a mulher, do


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adulto sobre a criança, de uma cultura sobre outra, etc.) e a dos mortos-vivos26. Concebendo que a reprodução da vida se dá a partir de uma pluralidade das instâncias sociais de convivência e que os quatro tipos de exploração se apresentam em uma relação dialética, podemos afirmar que as condições objetivas do trabalho também anunciam as condições subjetivas em que o trabalhador se produz. Devido à existência de redes complexas que se superpõem e que condicionam as condutas e nossa forma de sentir, a construção de sujeitos e suas identificações são construções muito provisórias e versáteis [pois] tais identidades-sujeitos estão perfurados por fraturas de todo tipo: medos, culpas, condicionantes de classe, de ecossistema, de ideologias, etc. Daí que, mais que as próprias identidades dos sujeitos sociais ou dos movimentos, nos interessa suas relações internas, rizomáticas ou em múltiplas redes, fraturadas [...] que condicionam suas condutas, ideologias e estilos de fazer. (Villasante, 1994a, p. 37)

A subjetividade do trabalhador não é só o resultado das relações vividas no ambiente de trabalho, mas constrói-se e se reconstrói a partir das diferentes experiências vividas em diferentes microprocessos e redes complexas que se apresentam como expressão dos diversos planos de uma realidade histórico-social mais ampla. “É o processo concreto que empurra as relações e os sujeitos que se vêem nelas”. Assim, “não nos interessa o indivíduo, sua identidade ou sua 26

Sobre a “exploração dos mortos sobre os vivos”, Villasante refere-se à extensão do sentimento patriarcal, “aos textos e dogmas pretéritos pesando sobre a experiência e a práxis dos vivos [...] Os dogmas e seus livros (A Bíblia, O Corão, O Capital, etc.) podem ser usados para encontrar em suas páginas alguma verdade absoluta e, sem discussão, encontrar segurança e identidades não questionáveis, ou então podem ser re-interpretados a partir de novas experiências cotidianas e a partir das necessidades dos movimentos sociais que nos rodeiam” (Villasante, 1997, p. 43).


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mesmice, mas as relações concretas que em tal situação lhes estão construindo suas identificações, suas cargas subjetivas, seus discursos” (Villasante, 1996b, p. 4). De qualquer maneira, se nos interessa compreender as relações que os trabalhadores associados estabelecem entre si e com a sociedade, é necessário não esquecer que os “conjuntos de ação” (Villasante, 1994a) 27 do coletivo de trabalhadores de uma determinada unidade econômica manifestam e sintetizam a forma como cada um dos trabalhadores cria a si mesmo, coletivamente, de acordo com suas formas específicas de inserção na realidade. Enquanto sujeito-criador da história, cada trabalhador cria também suas representações sobre si, sobre seu trabalho, sobre o mundo que o rodeia. As relações que estabelecem no processo de trabalho são a síntese do encontro e confronto de diferentes concepções de vida e de mundo, de seus sonhos e desejos que têm por base as condições objetivas e subjetivas da produção de sua existência. Nesta perspectiva, além de perguntar sobre as relações que os trabalhadores estabelecem com os demais trabalhadores e com a sociedade, é necessário questionar: no processo de produzir sua existência, como os trabalhadores 27

Villasante (1994a) analisa o funcionamento, as conexões, assim como as linguagens e condutas dos membros das redes que compõe os movimentos populares a partir do conceito de “conjuntos de ação” para compreender as relações de um determinado grupo com o poder, com outros grupos e com as bases. Para identificar os conjuntos de ação como resultados da combinação da rede mais próxima do indivíduo com as redes de convivência, estabelece como suporte as imagens de poder, grupos formais, comunicadores e base informal. Embora existam muitos conjuntos de ação possíveis na evolução histórica de um conjunto a outro, acredita que são quatro os mais freqüentes, os quais caracterizam-se por: a) relação personalista ou populista; b) relação de gestão solidária ou gestionária; b) relação técnica isolada ou tecnicista; 3) relação popular de base ou cidadanista.


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se percebem a si próprios e a seu próprio trabalho? Considerando as mediações entre as condições objetivas e subjetivas do contexto global e do contexto local onde a produção associada se produz, que diferentes representações de mundo e de sociedade, que diferentes fantasias povoam os sonhos individuais e coletivos de gerir o próprio trabalho? Em resumo, que elementos materiais e imateriais de uma nova cultura do trabalho se produzem no interior das organizações econômicas gestionadas pelos próprios trabalhadores? Pensamos que a economia popular, como economia política dos trabalhadores, não pode existir como a soma de microprojetos (Coraggio, 1997) e que, tampouco, a transformação social será o resultado de um processo de universalização das “boas práticas” econômicas e educativas. A potencialidade da economia popular estaria em que, através de redes coletivas, essas experiências pudessem fortalecer-se e configurar-se em um “terceiro sistema comunitário” (Villasante, 1996a) ou como um “subsistema social que vai gerando e vai provando formas alternativas de sociabilidade” (Coraggio, 1991, p. 312). Mas, para não cair na armadilha de contribuir para o ajuste do novo modelo de acumulação, reforçando assim os desequilíbrios do atual sistema, teríamos que nos perguntar: as relações no interior das OEPs se constróem, de fato, com sinergias antagônicas às dos blocos dominantes? Em que medida a pedagogia da produção associada têm reproduzido, sob outros moldes, a constituição de cidadanias tuteladas, controladas por alguns poucos que detêm os “segredos” da gestão? Os atores e agentes da economia popular estão produzindo confrontações econômicas, culturais e ideológicas, ou estão criando um ambiente de colaboração horizontal? Em que medida as energias transformadoras dos setores populares são capazes de converter as ações individuais/isoladas em práticas sociais coletivas, gerando uma nova cultura do trabalho que possa impactar à sociedade?


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Como Max-Neef, não pretendemos “converter aos setores invisíveis nem às micro-organizações em absolutos portadores de uma transformação estrutural da sociedade, nem tampouco nos redentores da história contemporânea” (1993, p. 89). No entanto, cabe identificar nestas unidades econômicas, que são “catalisadoras de energias sociais” e, ao mesmo tempo se constituem como expressão extrema da crise, “o embrião de formas diferentes de organização social da produção e do trabalho que poderiam ser resgatados para novos estilos de desenvolvimento” (ibid, p. 99). Considerando que o desenvolvimento humano não se limita a eliminar a fome, mas que pressupõe a expansão da qualidade de vida, nosso propósito é tornar “visível” a cultura do trabalho de um setor da economia em que os trabalhadores nos têm ensinado ser possível fazer e compreender o econômico não somente em seu aspecto monetarista, mas também como instância de constituição de relações que privilegiam as diferentes dimensões da convivência humana. Daí nos parecer importante analisar os elementos contraditórios de gestação de novos parâmetros de relações econômicas e sociais, tendo em conta as condições objetivas – conjunturais e estruturais – em que se produzem as iniciativas populares.



A “PEDAGOGIA DA FÁBRICA” NA VERSÃO DOS TRABALHADORES “A utopia [...] está na autogestão, compreendida como o controle da produção por todos os homens, com o estabelecimento da hegemonia do trabalho sobre o capital. A este estágio de desenvolvimento das forças produtivas corresponde uma nova concepção de trabalho em que a unidade teoria/prática e o domínio do trabalho pelo trabalhador estejam presentes. A elaboração dessa concepção ao nível superestrutural só é possível a partir de modificações estruturais ao nível do trabalho e de sua organização; a elaboração teórica divorciada das mudanças concretas não ultrapassa o nível do mais ingênuo idealismo.” Acácia Kuenzer, A pedagogia da fábrica, 1986



A “Pedagogia da Fábrica” na Versão dos Trabalhadores

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Iniciamos este capítulo analisando cenário da região metropolitana do Rio de Janeiro (espaço que ilustra o caos dos grandes centros urbanos), apresentando as características de 61 organizações econômicas populares – OEPs ali localizadas: sua distribuição geográfica, número de trabalhadores, setores e tipos de atividades que desenvolvem, personalidade jurídica e seus vínculos com alguns parceiros que estimulam a constituição de redes de solidariedade. A seguir, nos aproximamos do cotidiano de cinco destas estratégias coletivas de geração de trabalho e renda. Como havíamos indicado, privilegiamos os grupos de trabalhadores cujos empreendimentos estão localizados nos cinturões de pobreza e aqueles que, embora situados nos bairros nobres da cidade, são compostos por trabalhadores de baixo nível de renda e de escolaridade. Analisamos a cultura do trabalho a partir de quatro eixos básicos: a) Educação, organização e gestão do trabalho: forma de organização; tipos de investimentos para dar início à atividade, divisão do trabalho; processos de decisão/ democracia interna; aquisição, produção e socialização do conhecimento; qualificação/grau de desenvolvimento tecnológico; formas de propriedade dos meios de produção; remuneração do trabalho/distribuição das riquezas; grau de viabilidade econômica; b) Relações de mercado: forma de inserção na economia; critérios para definição dos produtos e serviços; critérios para estabelecer os preços dos produtos e serviços; princípios e condições para competir no mercado; compromisso com a qualidade dos produtos/serviços; amplitude da relação produtor-consumidor; c) Redes de ação coletiva: origem do grupo/experiência associativa; relações com outras or-


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ganizações econômicas populares; relações com a comunidade local; relações com os movimentos populares e instituições de apoio; relações com os empresários e o governo, e d) Motivações/expectativas dos trabalhadores: objetivos do associativismo; concepção de autogestão; concepção de mundo e de vida. (Ver roteiro de pesquisa em anexo)

Economia popular urbana e reprodução ampliada da vida

Para Max-Neef, as relações sociais produzem-se num determinado espaço e tempo. O espaço, tal como é percebido, é o conjunto de relações abstratas que definem um objeto; assim, o vínculo que os seres humanos estabelecem com o espaço é um vínculo com uma realidade percebida subjetivamente. Em tal sentido, os conceitos espaciais exclusivamente métricos “só são úteis para medir, avaliar e classificar aquelas mudanças e distorções que afetam os espaços humanos subjetivos” (Max-Neef, 1986, p. 157-8), não correspondendo ao problema real que aproxima ou distancia as pessoas. Em relação ao tempo, além de nos referir a um tempo cronológico, também podemos falar de um tempo humano subjetivo, o qual se refere à sensação pessoal de intensidade e de duração que temos de um acontecimento determinado, e que se define como “o conjunto de relações abstratas que vinculam o ser com o acontecer” (ibid, p. 159).


A “Pedagogia da Fábrica” na Versão dos Trabalhadores

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Nos tempos de globalização, como é o espaço que ocupam os setores populares nos grandes centros urbanos? Do ponto de vista físico, o Rio de Janeiro, por exemplo, apresenta “encantos mil”. As imensas praias, montanhas, florestas e seu cenário em geral são monumentais. Na verdade, é uma “cidade maravilhosa”, como sugere a música carnavalesca que se tornou um dos símbolos da cidade. Mas, a medida em que passa o tempo, pouco a pouco, as florestas e outras áreas verdes – tradicionalmente públicas e abertas – vão desaparecendo à medida que vão-se convertendo em favelas, em condomínios de luxo ou em grandes shopping centers. A especulação imobiliária faz com que a cidade vá crescendo em direção às montanhas, impedindo que os moradores do outro lado da cidade respirem a brisa do mar. Apesar de tudo, o Rio de Janeiro é de uma indescritível beleza... Seu lado, cada vez mais feio, é a manifestação do aumento da pobreza e da desigualdade social. Do ponto de vista panorâmico, é do “alto do morro” onde melhor se pode apreciar a beleza do mar. Ao redor das montanhas e colinas, encontram-se a maior parte das grandes favelas do Rio – Rocinha, Jacarezinho, Vidigal, Santa Marta, Pavão e Pavãozinho, etc., cujos moradores podem desfrutar de uma paisagem monumental. Em sua grande maioria, entretanto, faltam nos lares das favelas os serviços públicos essenciais como água, luz e saneamento básico. Com os resíduos sólidos que ficam espalhados e com a falta de redes de esgoto, são péssimas as condições sanitárias de moradia. Frente ao desinteresse das autoridades municipais quanto à contaminação ambiental e às doenças infecciosas que ali se produzem, os moradores organizam-se para, coletivamente, limpar as valas construídas por eles mesmos, para o escoamento do esgoto.


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A Empresa Municipal de Informática e Planejamento (IPLANRIO) têm acompanhado o crescimento das favelas desde o final do século XIX, quando já existiam 24 favelas. Com o agravamento da crise econômica e com a continuação do êxodo rural, na década de 70 do século seguinte, surgem 74 novas favelas e, na década de 80, outras 105 mais. Em 1992, são catalogadas 573 favelas no município do Rio de Janeiro, localizadas na periferia e, também, nos chamados bairros nobres da cidade. O número da população favelada que, em 1980, era de 717.066 cresceu para 962.793 em 1991. Da totalidade do número de favelas, somente 14% delas tinham uma rede oficial de abastecimento de água, 7% possuíam rede oficial de esgoto, 5% usufruíam dos serviços de limpeza pública. Ainda que não estejam todas catalogadas, é possível constatar que, dia a dia, tem crescido o número de barracos construídos em lugares planos, nas encostas dos morros e mesmo debaixo dos viadutos. O censo de 1996 (IBGE) indicou que, enquanto a população do município cresceu 1,29% entre 1991 e 1996, a população de quatro grandes complexos de favelas (Complexo da Maré, Complexo Alemão, Rocinha e Jacarezinho) cresceu 40%. Ou seja, o Rio de Janeiro continua crescendo, fundamentalmente, tendo como base a constante atração de população favelada. A Federação das Associações de Favelas do Estado de Rio de Janeiro (FAFERJ) estima que, na capital, existem 660 favelas federadas, com uma população em torno a 2.500.000 de habitantes. Já a Secretaria de Habitação da Prefeitura do Rio de Janeiro estima que 2 milhões de pessoas vivem em favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais degradados 1 . 1

“Favelas do Rio crescem até 50 vezes mais que a cidade”, jornal O Globo, 15/3/98. Rio de Janeiro.


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Evidentemente, num espaço abandonado pelas autoridades públicas2, prevalece a “lei do mais forte”: dos traficantes de drogas ou da policia, os quais, através de ações de corrupção e violência, comprometem a vida de centenas de homens, mulheres e crianças que ali vivem. Na verdade, devido à ineficácia do Estado e à perda de confiança na organização policial legítima, o narcotráfico configurou-se como um “segundo poder”, um poder paralelo: além de ter o controle sobre quem mora, quem “desce” e “sobe” a favela, tenta assegurar este controle por meio de ações assistencialistas a favor dos moradores, como a promoção de festas, distribuição de alimentos, de brinquedos para as crianças, etc. (ver Misse, 1997 ). Entretanto, indo além do mundo das drogas e do crime e dos estereótipos que se constroem sobre a realidade, é necessário não se esquecer da outra cara da favela. Antes do nascer do sol, “desce do morro” uma legião de homens, mulheres e crianças na busca de trabalho. Como força de trabalho barata, dirigem-se ao que se costuma chamar “asfalto” com a esperança de conseguir um “bico” que possa saciar não só a fome como satisfazer outras necessidades elementares cotidianas. 2

Embora a temática extrapole nosso estudo, é preciso lembrar que o projeto “Favela Bairro” tem favorecido a melhoria de casas e alguns espaços coletivos de convivência. No entanto consideramos que as iniciativas governamentais de ordenação do território têm objetivado não tanto a mudança estrutural das condições de vida na favela, mas o embelezamento da cidade – parte integrante do projeto clientelista que tem como propósito a manutenção do poder das elites. Enquanto são feitas melhorias numa determinada favela, surgem outras tantas, não solucionando assim os problemas estruturais da cidade. O projeto foi iniciado em 1996 pela municipalidade do Rio de Janeiro; os fundos econômicos oriundos, principalmente, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (vinculado ao Banco Mundial) beneficiaram, até o final de junho de 1998, cerca de 75 favelas. Na sua segunda fase, o referido projeto pretende beneficiar mais 63 favelas.


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Para que tenhamos uma panorâmica do espaço físico e subjetivo do Rio de Janeiro, de acordo com os últimos dados estatísticos, realizados em 1996, a região metropolitana3 aloja uma população de 10,4 milhões de habitantes, concentrando 78% da população total do Estado de Rio de Janeiro (estimada 13,3 milhões de habitantes). Dessas cifras, 5,60 milhões de pessoas correspondem à cidade do Rio de Janeiro. Dada a distribuição desigual da riqueza, as áreas mais ricas da Região Metropolitana (zona sul da cidade do Rio de Janeiro e cidade de Niterói), que contêm 9% das famílias, concentram 31,2% dos rendimentos do Estado, enquanto que 52% das famílias mais pobres obtêm somente 29%. Além da precariedade das condições de trabalho (apenas 44% dos trabalhadores têm contrato de trabalho), 50% da população ocupada recebe menos de 2,3 salários mínimos. Em relação ao início dos anos 80, a renda da população ocupada caiu cerca de 25,8%. A região metropolitana também se caracteriza pela concentração da população com menores níveis de renda nos cinturões de pobreza e, em especial, na Baixada Fluminense, que concentra cerca de 2,7 milhões de habitantes – em torno da quarta parte da população da região metropolitana do Rio de Janeiro. Cerca de 67% de sua população recebem entre meio e dois salários mínimos4. Tanto para os adultos como para os menores trabalhadores, é quase inexistente a fronteira entre desemprego, subemprego ou subtrabalho. Uma pesquisa revelou que, em 3

A região metropolitana do Rio de Janeiro é formada pelos seguintes municípios: Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirin, Itaboraí, Itaguaí Japeri, Magé, Mangaratiba, Maricá, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Queimados, Rio de Janeiro, São Gonçalo e São João do Meriti. Esta região metropolitana é a segunda maior do país, depois de São Paulo.

4

Ver IPPUR/UFRJ: Como anda o Rio de Janeiro: análise da conjuntura social, UFRJ, Rio de Janeiro, 1995.


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1993, 70% das pessoas que dormiam nas ruas do Rio de Janeiro não pediam esmola e tampouco eram vagabundos, mas trabalhadores sem dinheiro para voltar para casa à noite5. Em 1999, a Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) entrevistou 3.500 pessoas que moram nas ruas. Constatou que quase a metade delas (45,61%) “carregam no bolso uma carteira de trabalho amarrotada e encardida e se definem como trabalhadores sem oportunidade”. Quando a eles se perguntou se têm casa fora da rua, 54,57% responderam afirmativamente e 36,64% disseram que não. Para sobreviver, realizam atividades como prostituição (33,90 %); prestação de serviços (17,60 %); coleta de latas (10,90 %), biscates (8,40 %) e tráfico de drogas, (3,10 %). Os restantes (24,60%) vivem de esmolas ou de ajudas de organizações filantrópicas. Um total de 32,50% dos entrevistados disseram que foram vítimas de violência da polícia ou da guarda municipal.6 A grande diversidade de territórios que convivem numa grande cidade é conseqüência da diversidade de classes sociais e de atividades que, necessariamente, se inter-relacionam, gerando uma grande complexidade, uma grande confusão física e psicológica, o que faz com que cada “cidadão” viva a cidade de forma diferente, dependendo de seu nível econômico, de sua cultura, de suas origens e das próprias possibilidades que ela lhe oferece, e lhe permite desfrutar. Seguindo essa mesma lógica, no Rio de Janeiro (como nos demais centros urbanos), funde-se riqueza com pobreza num suposto grande território igualitário e democrático. Na verdade, vigoram os códigos de exclusão social, de barreiras físicas, culturais, psicológicas e, fundamentalmente, econômicas que, no final de contas, geram verdadeiros guetos urbanos. 5

“Sopão alimenta trabalhador”, Jornal do Brasil, 25/6/93. Rio de Janeiro.

6

“O retrato da exclusão no Rio”, Jornal de Brasil, 4/8/99


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A própria vida tem tratado de ensinar que, embora a cidade grande possa apresentar alternativas favorecedoras do êxito individual, nela não houve espaço suficiente para a satisfação dos sonhos do grande contingente daqueles que, pejorativamente, são chamados de “paraíbas”. Não por casualidade o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) começa a sensibilizar as pessoas no sentido de que o problema dos sem-terra não é só dos camponeses, mas também daqueles que vivem na cidade. O MST tem indicado a necessidade dos primeiros de deixar a cidade, de regressar ao campo, a seus locais de origem, ou seja, que as pessoas voltem ao encontro de suas mulheres, maridos e filhos que, de longe, têm esperado ansiosos pela melhora de seus destinos. Mas, enquanto as autoridades públicas não realizam uma reforma agrária radical, os sem-terra e sem-teto não ocupem a parte que têm direito das riquezas deste imenso país, e o campo não disponha de um tipo de desenvolvimento local que mantenha a possibilidade de trabalho das pessoas em seu próprio território, estas seguirão apinhadas nas favelas e nos demais cantos de pobreza das megacidades. Sem dúvida, os sindicatos, os partidos políticos e outras entidades dos movimentos populares são importantes instâncias de luta contra a exclusão e a divisão social do território. Mas, acreditamos que é preciso redimensionar o “associativismo”, incluindo nessa categoria as ações coletivas, que mesmo não conseguindo fazer a mediação entre o global e o local (macro/micro), constituem-se em “redes de solidariedade”. Entre elas, citamos as estratégias associativas de sobrevivência que, segundo Razeto (1993), representam o pólo mais avançado da economia popular e que, conforme sinalizamos no segundo capítulo, começam a ser percebidas como parte integrante da cidade e de seus movimentos populares.


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Vejamos algumas características destas estratégias localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro: as 61 organizações econômicas populares estudadas abrangem um universo de 1741 trabalhadores associados, e embora os grupos se constituam, em média, de 28 trabalhadores por unidade econômica, é importante registrar que encontramos unidades que variam entre quatro e duzentos. Do total das unidades econômicas, 38% têm entre quatro e nove trabalhadores, correspondendo em geral àquelas que não formalizadas legalmente e autodenominadas “grupos de produção”; 43% têm entre vinte e 49 trabalhadores, concentrando-se, em geral, nas cooperativas juridicamente constituídas (aquelas que, atendendo à legislação em vigor, possuem, no mínimo 20 integrantes) Verificamos que 43% dessas organizações estudadas não apresentam personalidade jurídica 7. Para esses grupos de trabalhadores, a possibilidade de atuar no mercado formal tem como condição que outras unidades econômicas pertencentes às redes de solidariedade lhes favoreçam as condições legais para a compra de matéria prima e comercialização dos produtos. As demais, estando juridicamente constituídas, restringem suas atividades ao chamado setor formal, só se inserindo no setor informal da economia em função de sua própria conveniência. Relacionando a localização geográfica com a questão da legalidade, podemos concluir que é nas áreas de maior pobreza onde prevalecem 7

De acordo com a pesquisa nacional Economia informal urbana 1997, do IBGE, 66% dos empreendimentos deste setor não apresentam licença municipal ou estadual. Do total dos estabelecimentos, 28% estão instalados na residência dos próprios donos ou sócios; 27% nas casas dos clientes; 9% nas vias públicas, como nas ruas e praias. Apenas 23% possuem estabelecimento adequado à atividade. Ver Retratos da informalidade urbana, Jornal do Brasil, 9/6/99.


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as unidades que funcionam ilegalmente. Devido à dificuldade de enfrentar a burocracia e os altos custos da legalidade, os espaços para o funcionamento do empreendimento são os mais variados: em um salão da associação de moradores, em um centro cultural do bairro, no pátio da casa de um dos integrantes do grupo e, ainda, numa casa ocupada. Estas unidades econômicas apresentam-se sob várias denominações: cooperativa, centro comunitário, associação, grupos de produção, oficina, etc. Mas é importante registrar que, embora 51% sejam de “cooperativas”, a denominação vem sendo utilizada como indicativo da pretensão dos trabalhadores de estabelecer relações sociais calcadas na cooperação, o que não significa, necessariamente, estarem constituídas legalmente ou, na prática funcionarem como tal. Porém, não importa com que nome os trabalhadores batizam o empreendimento econômico, pois mais que a denominação, importa inventar algo que possa ser produzido e vendido no mercado, estabelecendo uma relação na qual não há “empregadores” e “empregados”. Observamos que 57% do total das unidades se dedicam a atividades do setor de produção; 36% ao setor de serviços e somente 7% combinam ambos os setores. As atividades do setor de produção que têm maior importância são vestuário e complementos têxteis, alimentação e artesanato. Seguem com menor importância: chinelos e outros produtos de borracha, artes gráficas e estamparia, construção de casas populares, vassouras e rodos, materiais de construção, reciclagem de papel e produção de parafusos. As atividades de serviço são as mais variadas, estando 25% delas dispersas em convênios e seguros médicos, educação escolar, transporte de viajantes, representação comercial, comercialização de produtos de outros grupos de produção, serviços nas áreas de informática e telefonia. Com menor


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importância, seguem: manutenção e instalações industriais (19%), recursos humanos em engenharia, energia e meio ambiente (13%), limpeza e reparações domésticas e industrias (13%). Mesmo sendo maior o número de unidades dedicadas ao setor de produção, o setor de serviços está absorvendo um maior número de trabalhadores. Enquanto aquele absorve 30% do total de trabalhadores associados, este absorve 49%. No entanto, se consideramos as organizações econômicas que se dedicam a ambos os setores de atividades, verificamos estarem ali concentrados 21% dos trabalhadores – o que produz um equilíbrio na balança de distribuição dos trabalhadores nos diferentes setores. Classificamos os objetivos das atividades das organizações econômicas em “geração de renda” e “desenvolvimento comunitário”. Quanto às primeiras, elas correspondem àquelas atividades cuja finalidade é obter os meios para a subsistência econômica de seus integrantes e familiares, ou para criar as condições para a satisfação das necessidades materiais da comunidade, como alimentação, moradia, etc. Também estão incluídas aquelas atividades cujo fim é obter fundos a serem destinados à promoção de atividades educativas e culturais. Por atividades de “desenvolvimento comunitário”, consideramos aquelas promovidas de maneira formal ou informal, isolada ou em conjunto com a igreja, associação de moradores e outras instâncias dos movimentos populares, cujo objetivo é a satisfação das necessidades imateriais de seus integrantes e da comunidade local. Assim, foi-nos possível constatar que 90% dos grupos analisados vêm promovendo algum tipo de atividade relativas à saúde, direitos humanos, educação infantil, alfabetização de adultos, cursinhos e outras dirigidas à capacitação profissional, etc., seja no âmbito da unidade produtiva, seja no âmbi-


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to da comunidade local. Em outras palavras, mesmo sabendo ser preciso conseguir uma remuneração que assegure, pelo menos, a sobrevivência biológica, os trabalhadores associados compreendem que “desenvolvimento humano” não é resultado de ganhos monetários, mas também diz respeito a necessidades humanas como, por exemplo, a socialização e ampliação do saber e da cultura. Para o empreendimento tornar-se viável, é fundamental a parceria com instituições que, hoje, vêm apoiando e estimulando as iniciativas de geração de trabalho e renda, tentando articulá-las política e economicamente. Nesse sentido, verificamos que 95% das unidades pesquisadas mantêm algum tipo de vínculo com o Fórum do Desenvolvimento do Cooperativismo Popular (31%), com Associação dos Grupos de Produção (AGP, 31%), com Movimento Ação da Cidadania (11%) e com Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares/COPPE-UFRJ (9%). Apesar do vínculo dessas unidades econômicas com as instituições acima, não podemos afirmar existir uma relação orgânica entre as partes. O vínculo com o Fórum de Desenvolvimento do Cooperativismo Popular, por exemplo, pode significar diferentes níveis de relação: desde participar de sua organização interna até participar de um debate ou reunião, sem que isto signifique, necessariamente, um compromisso com o futuro da rede associativa e o fortalecimento da, assim chamada, economia solidária. No entanto, é possível concluir que os trabalhadores associados estabelecem – de alguma maneira – algum tipo de vínculo com os movimentos populares/sociais, o que pode se concretizar em momentos distintos. Mesmo que estes empreendimentos não tenham surgido como o apoio de outras redes associativas, o vínculo termina por se estabelecer a posteriori, em maior ou menor grau, dependendo do poder dos trabalhadores para sensibilizar os possíveis parceiros quanto à importância socioeconômica e política de suas atividades.


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Vale lembrar que, com a divisão social do território, é exatamente nos espaços “feios” e degradados da megacidade que as autoridades governamentais se despreocupam, quase ou o totalmente, com as condições de vida dos habitantes. Não por casualidade, é exatamente aí, onde a maioria das organizações econômicas populares não se apresentam juridicamente estabelecidas. No entanto, mesmo sendo considerados ilegais frente ao status quo, não resta dúvida de que, diante a ausência de uma política eficaz de geração de trabalho e renda, são legítimas as iniciativas dos setores populares. Se, de um lado, não existe a preocupação por parte do Estado em manter nas favelas e bairros populares a “boa aparência da cidade maravilhosa” e, tampouco, criar as condições que favoreçam a re-inserção da população na vida econômica, de outro, a ausência deste mesmo Estado é o que permite aos setores populares desenvolver relações econômicas à margem da ordem estabelecida. Existindo um controle menor do Estado, é ali onde é mais fácil fugir da fiscalização, favorecendo-se, assim, a inserção dessas unidades econômicas no chamado mercado informal. Os dados levam-nos a confirmar que, se o fator “legalidade” ou “ilegalidade”, ou melhor dizendo, o maior ou menor controle do Estado sobre os pequenos empreendimentos é um critério para delimitar as fronteiras entre as economias “formal” e “informal”, esse não é um critério suficiente para a caracterizar a economia popular urbana, e nem as organizações econômicas populares. Também os dados sobre o número de integrantes dessas unidades produtivas, levam-nos a deduzir serem questionáveis as estatísticas que medem o chamado setor informal da economia, a partir de critérios que indicam como a ele pertencentes “todas as unidades econômicas de propriedade dos trabalhadores por conta própria e de empregadores com até 5 empregados”. Tais crité-


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rios não se sustentam, já que não é possível considerar a propriedade individual e a relação empregador-empregado (conseqüente da primeira) como a única relação possível entre aqueles que buscam alternativas de trabalho e renda 8. Devido a que nestas unidades não se trata de trabalho assalariado, mas de auto-exploração do trabalho, podemos concluir que o IBGE, ao mensurar o setor da “economia informal” não têm contemplado o caráter associativo das iniciativas populares. Além da origem popular de seus atores, os empreendimentos pertencentes ao setor da economia popular têm-se caracterizado, fundamentalmente, pela lógica da reprodução da vida, e não do capital. E mais, para os trabalhadores associados, a reprodução da vida, não é considerada apenas como satisfação imediata dos meios de sobrevivência biológica, mas também como satisfação daquelas necessidades que o Estado não lhes proporciona – necessidades relativas a outros aspectos das múltiplas dimensões humanas. Em outras palavras, é possível verificar que os objetivos da imensa maioria das unidades analisadas vão mais além da geração de renda. Ou seja, a intenção dos trabalhadores associados é garantir, também, a reprodução ampliada da vida, ainda que de forma limitada. Assim, esses dados confirmam-nos a afirmação de Razeto (1993) quanto à tendência das organizações econômicas populares de combinar atividades econômicas com outras de caráter social, educacional e cultural. 8

Com este mesmo critério, o IBGE listou no município do Rio de Janeiro, em outubro de 1994, o número de 444.420 empreendimentos informais, representando 15% do PIB e ocupando 560 mil pessoas (cerca de 30% da população economicamente ativa do município). Desses empreendimentos, 91% eram de trabalhadores por conta própria ( com um só proprietário); 57% pertenciam ao setor de serviços; 23% ao setor de comércio e 11% ao setor da construção. Do total de empreendimentos, 93% não tinham personalidade jurídica; 53% funcionavam há mais de cinco anos e 30%, há mais de 10 anos (in IBASE/SEBRAE, 1997).


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Compreendemos que um pequeno empreendimento não se caracteriza pela quantidade de seus trabalhadores, mas por dispor de escassos recursos materiais e financeiros. Sua capacidade para promover os meios necessários para a sobrevivência de seus integrantes depende de sua capacidade de se articular com a comunidade e com os demais setores da sociedade, no sentido de fortalecer redes de ação coletiva para o incremento da economia popular. Obviamente, as atividades das organizações econômicas populares estão longe de pertencer aos setores estratégicos da economia global; no entanto podemos afirmar que, ao contrário da lógica capitalista, os produtos e serviços constituem-se, fundamentalmente, mercadorias cujo valor de uso sobrepõe-se ao valor de troca. Dito de outra maneira, essas organizações não estão produzindo “quinquilharias da Xuxa”, ou outros bens supérfluos que contribuem para o consumismo e o desperdício, mas produtos cujo valor é a satisfação das necessidades elementares da população: casas populares, chinelos, vestuário, produtos alimentícios, de higiene, etc. Aproximamo-nos, agora, do cotidiano de algumas OEPs. Vejamos as maneiras pelas quais os trabalhadores associados conseguem os meios necessários para o início das atividades, as formas de propriedade, os critérios para estabelecer a remuneração do trabalho, as concepções de autogestão, relacionando-as com os objetivos do associativismo e o tipo de vínculo que estabelecem com os movimentos populares. Em segundo lugar, sistematizamos as formas de inserção das OEPs no mercado, buscando apreender quem são seus parceiros, a amplitude de redes de solidariedade e, principalmente, os graus de envolvimento e de compromisso estabelecidos com a comunidade local. Por último, tratamos da formação/qualificação destes trabalhadores, tentando apreender a relação entre educação, organização e divisão do trabalho. As cooperativas, associações e grupos de produção selecionados foram os seguintes:


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1. Cooperativa de Produção de Parafusos do Rio de Janeiro (COOPARJ, conta com o apoio da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional, FASE). Nosso interesse pelo grupo deu-se pelo fato de que os 44 cooperativados são trabalhadores pertencentes à categoria dos operários metalúrgicos. Produzindo diversos tipos de parafusos, a cooperativa foi criada como conseqüência de um processo em que os proprietários da antiga Fábrica de Parafusos Águia a abandonaram e começaram o fechamento do empreendimento, o que levou os trabalhadores a reivindicar as máquinas e equipamentos como indenização, instalando-as num galpão no município de Duque de Caxias (Baixada Fluminense) 2. Oficina de Costura – Comitê Freguesia (conta com o apoio do Centro de Ação Comunitária, CEDAC). A oficina é composta por vinte mulheres que vivem na Favela das Rosas (município do Rio de Janeiro) e produz artesanato e confecção industrial, em um espaço cedido por uma paróquia cristã. Nossa opção por este grupo deve-se ao fato de estar diretamente vinculado às iniciativas do “Movimento Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida”, que a partir de 1992, passou a estimular a organização de diversos comitês de geração de trabalho e renda em a nível nacional. 3. Cooperativa dos Trabalhadores do Bonde de Santa Teresa (COOPBONDE, conta com o apoio do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul, PACS). Nosso interesse pelo grupo, composto por 104 trabalhadores, dá-se pelo fato de ser esta experiência conseqüência direta da extinção da Companhia de Transportes Urbanos – resultado do processo de desmonte do Estado. Pensamos que a relevância da investigação estaria em ressaltar o contexto neoliberal como móvel imediato das iniciativas populares, as motivações iniciais dos trabalhadores quanto à


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criação de um cooperativa para administrar os antigos bondes de Santa Teresa (Rio de Janeiro) e às dificuldades que, ainda na condição de funcionários, enfrentam os trabalhadores no processo de estruturação de um empreendimento dessa natureza. 4. Associação dos Grupos de Produção (AGP, com o apoio do CEDAC). Nossa opção por esta OEP deve-se à mesma ser uma associação que congrega 22 grupos de diferentes ramos de produção, localizados, fundamentalmente, na região metropolitana do Rio de Janeiro e em outros municípios. Sem examinar, detalhadamente, as especificidades de cada um dos grupos a ela associados, mas registrando somente seus dados gerais, a relevância da investigação está na análise dos aspectos da formação e da articulação política e econômica entre os grupos associados. Sua direção, quando de nossa pesquisa, estava composta por mulheres, sendo elas a maioria dos integrantes dos grupos de produção. 5. Centro de Cooperação e Atividades Populares (CCAP, com o apoio da Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa, CAPINA). Nosso interesse por esta associação dá-se pelo fato desta experiência vir sendo considerada como uma das mais consolidadas da região, coordenando seis grupos de geração de trabalho e renda, além de seis outros grupos que atuam na área de educação, saúde, cultura e jurídica. As atividades são desenvolvidas em comunidades de quatro favelas do Rio, buscando construir um mercado solidário entre trabalhadores do campo e da cidade. Evidentemente, o espaço deste livro não permite que nos detenhamos na riqueza das experiências dos trabalhadores associados desta ou daquela organização 9 . Nesse senti9

Para uma descrição analítica dos cinco empreendimentos, ver Tiriba, 1999 (capítulo 6).


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do, realizamos uma análise transversal da cultura do trabalho em tais empreendimentos, tentando trazer à tona seus movimentos contraditórios – movimentos estes que manifestam as condições objetivas e subjetivas da sociedade onde estão inseridos.

Tornar-se “senhor” do trabalho: como? Para quê? Quando a saída é buscar coletivamente os meios para tentar satisfazer as necessidades básicas imediatas, como se organizam os trabalhadores? Em que medida as formas encontradas pelos cinco grupos (e seus subgrupos) contribuem para delinear velhas e novas relações de convivência? Além de ser uma estratégia de sobrevivência, que outros fatores impulsionam a ação coletiva? O que representa não ter um patrão? Para as mulheres, diferentemente dos homens, quais são os significados destes empreendimentos?

Ação coletiva: algumas regras do jogo

Oriundos do diversos movimentos (sindical, de associações de bairro, pastoral operária, Ação da Cidadania, lutas contra a privatização de empresas públicas), as ações coletivas para gerar os meios de sobrevivência sintetizam as próprias contradições do espaço físico e subjetivo dos grandes centros urbanos. Como surgem os empreendimentos associativos? Que tipos de investimentos são necessários para


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dar inicio às atividades? Quais são as formas de propriedade dos meios de produção? Quais são os critérios para estabelecer a remuneração do trabalho? Primeiramente, cabe ressaltar que os vínculos com os movimentos populares podem concretizar-se em dois momentos distintos: antes ou depois do início das atividades do grupo. Embora as iniciativas dos trabalhadores não sejam, necessariamente, conseqüência de experiências associativas anteriores, este vínculo se estabelece a posteriori, em maior ou menor grau, dependendo das necessidades, interesses e do poder dos trabalhadores para sensibilizar a população quanto a importância socioeconômica e política das atividades desenvolvidas em seus empreendimentos. Para compreender o tipo de vínculo que estabelecem, é preciso resgatar a origem, o caminho e as formas pelas quais a atividade coletiva consegue dar seus primeiros passos como um empreendimento econômico. Os investimentos para o início das atividades podem ser oriundos de diferentes fontes. A formação do grupo de trabalhadores pode ser o resultado da ação de outros grupos dos movimentos sociais, os quais, após organizar a infra-estrutura necessária, convidam aos moradores da comunidade a gestionar o empreendimento (Oficina de Costura). Pode ser, também, conseqüência do prolongamento de um processo educativo desenvolvido pela igreja local para estimular a “organização dos pobres contra as injustiças sociais” e a luta solidária em busca da sobrevivência (AGP). Quando a formação do grupo é resultado de experiências associativas anteriores, o empreendimento inicia-se a partir do próprio esforço de seus integrantes, os quais procuram obter o apoio de entidades do movimento popular, a assessoria de ONGs e a obtenção de recursos (doações/ empréstimos) de agências financiadoras públicas ou privadas (AGP; CCAP).


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Uma situação diferente é quando os integrantes das OEPs são procedentes do movimento sindical. Neste caso, a formação do grupo pode ser conseqüência de uma ação jurídica realizada pelos trabalhadores, os quais frente à falência de uma empresa de capitais, reivindicam o pagamento de suas indenizações em espécie e/ou ainda por meio da transferência de ações ou de máquinas e equipamentos utilizáveis no pequeno empreendimento (COOPARJ). Uma quinta situação ocorre quando a formação do grupo é conseqüência, em uma empresa privada, da demissão (ou da ameaça de demissão) de um grupo ou da totalidade dos trabalhadores que, com recursos próprios, organizam o empreendimento para prestar serviços a esta mesma empresa e outras, buscando, posteriormente o apoio dos movimentos populares e de outras instituições (COOPBONDE). Como é característico da chamada economia informal e também da economia popular, em geral, as organizações econômicas populares não dispõem de nenhum capital (ver capítulo 2). Assim, é necessário assegurar de alguma forma os meios para dar início às atividades produtivas. Sinteticamente, as formas de investimento podem ser resumidas a duas, se tomamos como referência quem são os agentes que se constituem como parceiros e, em última instância, como “cúmplices” das relações sociais a serem empreendidas. O primeiro resulta de um projeto de empreendimento que nasce “de baixo”. As iniciativas para concretizá-la plasmam-se na promoção de festas na comunidade, em sorteios para arrecadar fundos para a compra de matéria-prima, em campanhas de doações de móveis, utensílios de oficina, máquinas e equipamentos. Nesses casos, a mobilização dos trabalhadores para materializar as condições mínimas para o funcionamento da OEP tem como objetivo a mobilização da comunidade e está centrada na conquista de diferentes graus


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de compromisso dos moradores do lugar quanto ao futuro da unidade econômica. No entanto isto não impede a existência de ações oriundas “de fora” e, tampouco, que se possam buscar além dos muros da comunidade, diversos tipos de ajuda que envolvam outros agentes dos movimentos sociais: de ONGs, igrejas e mesmo do governo e de empresas. Uma segunda forma de investimento é aquela que se caracteriza por ações fundamentalmente oriundas “de fora”. No caso da Oficina de Costura, por exemplo, a mobilização para a organização do empreendimento foi da Ação da Cidadania, a qual, dada a diversidade de seus atores, não pode ser caracterizada no seu conjunto como um movimento filantrópico. De qualquer forma, a iniciativa não nasceu da ação conjunta de um determinado número de favelados para buscar os meios para sua sobrevivência. Se a comunidade local teve que se mobilizar, isso deveu-se a uma ação externa, não enraizada em movimentos populares existentes anteriormente na Favela das Rosas. Independentemente do tipo de vínculo com que começa o empreendimento popular, em geral, os meios de produção vão-se apresentar como propriedade coletiva dos trabalhadores, desaparecendo a precisa proporção do patrimônio que corresponderia aos aportes de cada pessoa e, inclusive, os aportes oriundos de doações da comunidade e/ou das instituições de apoio. Como nos disse Razeto (1994), os bens econômicos não se apresentam no mercado somente como um “imenso arsenal de mercadorias”, mas também como resultado de doações e contribuições Assim que, estando ou não a propriedade coletiva estabelecida juridicamente, ela pode conviver com máquinas e equipamentos que pertencem à instituição de apoio, devendo ser devolvidas no caso do encerramento das atividades (Oficina de Costura). No caso da Cooperativa de Parafusos (COOPARJ),


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trata-se de um tipo de propriedade pessoal associativa, na qual os cooperativados investiram diferentes quantias, considerando os valores das indenizações recebidas do antigo patrão. Embora todos possuam o mesmo número de quotas e os mesmos direitos e deveres, a idéia é ressarcir aqueles que investiram valores mais elevados para que a propriedade pessoal associada torne-se proporcionalmente eqüitativa. Em síntese, encontramos quatro formas de propriedade dos meios de produção, que não coincidem, necessariamente, com as definições de Razeto (1991). São elas: a) Propriedade coletiva, não estabelecida juridicamente: o patrimônio pertence aos integrantes da unidade econômica sem estabelecer partes designadas a cada pessoa; quando um dos integrantes se retira do empreendimento, a possibilidade de resgatar o investimento individual será deliberada coletivamente; b) Propriedade individual administrada associativamente: o patrimônio representa a base dos investimentos individuais, os quais permanecem vinculados aos sócios que os efetuam; com exceção de uma porcentagem destinada aos gastos gerais de administração, os excedentes são divididos entre os sócios; c) Propriedade externa: os meios de produção pertencem a uma empresa pública (ou privada) à qual os trabalhadores prestam serviço; os excedentes são distribuídos entre os sócios-trabalhadores, que usam e gestionam o capital externo de maneira relativamente autônoma; e d) Propriedade coletiva combinada com a propriedade externa de uma instituição de apoio: os meios de produção que não pertencem aos trabalhadores associados serão devolvidos à instituição quando do encerramento das atividades do grupo. Como diz Razeto (1991), o “excesso de ideologia e de carência teórica” tem-nos levado a equívocos com respeito ao conceito da “propriedade cooperativa”. Na verdade a


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forma de propriedade não pode ser analisada genérica e abstratamente, em nível de conceitos prévios, mas a partir da racionalidade econômica e das relações que os trabalhadores estabelecem. Mesmo assim, o trabalho de campo realizado reafirma-nos que não é possível abdicar da perspectiva da propriedade (seja coletiva ou seja pessoal individual administrada associativamente) pertencer aos trabalhadores. Conforme nos indica a experiência de COOPBONDE, cujos meios de produção são de propriedade externa (do Estado), os cooperativados são apenas “meros prestadores de serviços e não donos do bonde”. Ou seja, estão a “a mercê dos donos do bonde” (Claúdio). Ora, o conceito de propriedade pode ser definido como “o direito que adquire o sujeito (individual ou coletivo) de considerar um bem econômico como próprio e de dispor dele como queira, dentro dos marcos jurídicos estabelecidos pela legislação” (Razeto, 1991, p. 101). No entanto, estando ou não juridicamente legalizados, é preciso assegurar o direito político dos trabalhadores de decidir se seu empreendimento vai se constituir ou não em um instrumento para assegurar a terceirização da mão-de-obra (conveniente à restruturação produtiva de grandes empresas capitalistas e às políticas neoliberais de reduzir o papel do Estado quanto às conquistas trabalhistas). Dito de outra maneira, é a forma de propriedade que, em última instancia, vai determinar se os trabalhadores vão transformar ou não seus empreendimentos no que, hoje, popularmente se denomina “coopfraude” ou “coopgato”. A discussão sobre o tipo de propriedade que melhor convenha aos produtores associados também diz respeito ao problema dos critérios para a divisão dos frutos do trabalho. Existem basicamente dois critérios para estabelecer a remuneração dos trabalhadores: a) são estabelecidos níveis dife-


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renciados para as remunerações, de acordo com a função que o trabalhador exerce na produção, podendo ser divididos igualmente os possíveis excedentes ao final de cada mês e/ou ano; e b) o conjunto dos trabalhadores não recebe uma remuneração fixa. Independente da função que cada qual exerça na produção, os benefícios são divididos igualmente entre todos ao final de cada mês. Para Razeto (1991), alguém poderia argumentar que o procedimento de estabelecer a participação nos excedentes de acordo com os diferentes tipos e intensidade de trabalho contribui para produzir e aumentar a desigualdade entre os trabalhadores. A partir deste raciocínio, analisa que “o cooperativismo e a autogestão operam em sentido tendencialmente igualitários, mas reconhecem, com justiça, os investimentos diferenciados” (ibid, p. 130). Pensamos que, independentemente das relações de trabalho estarem asseguradas legalmente, o que também vai diferenciar a remuneração e, em conseqüência, a forma de propriedade dos meios de produção é a maneira como se “mede” ou como se concebe qual á a “efetiva participação” de cada um dos trabalhadores no processo produtivo. Sobre a remuneração mensal, a presidente da AGP explica que, mesmo que se estabelecendo uma remuneração mínima para cada um dos trabalhadores (em torno de dois salários mínimos), isso somente se materializa quando também se concretiza a meta de produção e comercialização. Mas, seja qual for a quantidade do excedente que será dividido, “ninguém ganha mais que ninguém. Não é porque uma corta e a outra cose que uma vá ganhar mais. Todo mundo ganha igual”. Na COOPARJ, embora se reconheça terem sido distintas as contribuições de cada trabalhador no ato da fundação do empreendimento econômico, a fórmula encontrada para evitar que o fato repercutisse em uma organização do trabalho hierarquizada, foi estabelecer apenas dois níveis salariais.


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Mesmo que a igualdade entre os trabalhadores se apresente como uma tendência das OEPs, também é necessário não deixar de considerar as condições objetivas do processo de socialização do saber, não só no interior dessas organizações econômicas, mas nas experiências que tiveram cada um dos trabalhadores em sua trajetória de vida. Além de suas trajetórias ocupacionais (que os permitiram desenvolver, no mercado formal ou informal do trabalho, um maior ou menor grau as habilidades e conhecimentos necessários para a atividade em questão), temos que considerar suas trajetórias no sistema formal de ensino. Caso contrário, corremos o risco de considerar que, sendo poder, o saber se converte em patrimônio, ou seja, em elemento que assegura e justifica a propriedade como um direito de uma minoria da população. Na verdade, temos que nos perguntar sobre as reais possibilidades de acesso dos trabalhadores aos fundamentos científicos e tecnológicos, que lhes viabiliza não apenas aumentar sua produtividade e controlar sua atividade, como encontrar um novo sentido para seu trabalho. Para a grande maioria dos trabalhadores que não tiveram o direito à escola (ou a uma escola de qualidade), até que ponto é possível se apropriar da tecnologia de produção e de gestão de trabalho, cujo acesso está apenas garantido para uma pequena parcela da população planetária? Considerando a necessidade de romper com a clássica dicotomia trabalho-escola, entre o conhecimento prático adquirido e produzido no processo de trabalho e o conhecimento teórico, quem determina quem são os trabalhadores “qualificados” e “não qualificados”? Um técnico em eletrotécnica, por exemplo, é capaz de desenvolver o “trabalho simples” do trabalhador “nãoqualificado”? De qualquer forma, mesmo um operário (de acordo com as regras impostas por a atual sociedade) sendo classificado como “semiqualificado” ou “desqualificado”, a


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questão é: por que a grande maioria dos trabalhadores não teve acesso ao conhecimento socialmente produzido? Sem dúvida, estas são questões que interferem nos critérios para estabelecer a remuneração do trabalho e a forma de propriedade dos meios de produção. Faz-se necessário, então, encontrar o caminho de como resolver qual será o critério para equiparar as remunerações, pois “se equiparamos por baixo, as pessoas que hoje ganham mais não vão querer trabalhar” (Cláudio/COOPBONDE). Embora não determinem as relações sociais e econômicas que os trabalhadores vão empreender, as formas de propriedade, a maneira como buscam os meios para dar inicio à atividade produtiva, os critérios para remuneração do trabalho explicitam, de alguma maneira, o caráter político do empreendimento e o modo como se vêem a si mesmos como trabalhadores e como pessoas. Também a experiência associativa anterior de seus integrantes é um elemento fundamental que, de alguma maneira, vai contribuir para a possibilidade de tornar real uma cultura do trabalho em que, extrapolando os limites do empreendimento, seus integrantes vão estabelecer relações não só econômicas, mas também de caráter educativo e cultural. Como poderemos constatar mais adiante, quando um grupo inicia suas atividades com o apoio e/ou cumplicidade da comunidade local, isso é um fator que, embora não o determine, propicia ampliar os interesses dos trabalhadores para além dos interesses individuais.

Os objetivos do associ@tivismo

Os critérios para a divisão dos frutos do trabalho e os tipos de vínculo com a comunidade local e com os movimentos populares também vão contribuir para definir se relações


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de trabalho vão se configurar sob a lógica de solidariedade ou sob a lógica de dependência. Estas e outras questões conduzem-nos à análise das motivações e expectativas dos trabalhadores associados quanto aos objetivos do associativismo. Por que associar-se a uma organização econômica popular? Uma trabalhadora, de idade avançada declarou que sua participação no grupo de costura não era por uma questão de “necessidade”, mas apenas uma maneira “para refrescar a cabeça” e para “se ver livre da confusão dos netos” (Dina/ Oficina de Costura). Embora as pessoas tenham outros tipos de necessidades (entre elas, “dar um tempo” dos problemas domésticos), o fato é que, em última instância, o desemprego, o subemprego e a pobreza são os motivos imediatos que levam os setores populares a buscar de uma alternativa de sobrevivência. Mesmo para quem já exerce algum outro tipo de atividade, “o objetivo é melhorar a vida” (Jorge/COOPARJ). Mais que um complemento do salário ou da aposentaria, o trabalho nas OEPs representa, em geral, a única ou a principal fonte de renda. Se para os jovens não é fácil conseguir alguma ocupação no mercado, isso se torna ainda mais difícil para aqueles que, devido à idade, já não são considerados “produtivos” para o sistema. Em um país onde a esperança de vida é de 63 anos, “o mercado de trabalho não nos aceita devido a nossa idade avançada” (Paulo/COOPARJ), ou seja, nega-se a capacidade e o acúmulo daqueles que tem mais de 35 ou quarenta anos de idade. Além da dificuldade de reingressar no mercado formal de trabalho, um dos argumentos é que “se conseguisse outro (emprego), até fazer amizade, demora. Aqui todo mundo se conhece” (Manuel/COOPARJ). O fato de os trabalhadores já se conhecerem e haverem estabelecido um nível significativo de companheirismo entre eles


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é um fator importante que pode facilitar as futuras relações de trabalho que o grupo pretende estabelecer. Assim, quando a demissão de uma empresa resulta na obtenção de máquinas e equipamentos (como forma de indenização) ou quando os trabalhadores têm a possibilidade de prestar serviços aos antigos patrões, o “espírito aventureiro de ganhar a vida associativamente” já se manifesta antes mesmo que os trabalhadores sejam, de fato, jogados individualmente no “olho da rua”. Como falou Elpídio, operador de máquinas da COOPARJ, “nós estávamos desamparados. Para nós, seria mais fácil criar alguma coisa que fosse nossa, já que tínhamos as máquinas. Além de possuir alguns instrumentos de trabalho, a outra vantagem era que não lhes eram estranhos àqueles companheiros que iriam tentar colocar os meios de produção a serviço do projeto associativo. Nesse caso, a ação coletiva é o resultado de um projeto que já existia idealmente (Marx, 1980) – projeto este que tem como referência as condições objetivas em que até então se encontravam como trabalhadores assalariados em uma empresa de capital. Mas, além de uma alternativa ao desemprego, o associativismo pode ter como objetivo a criação de novas relações sociais que pretendem ser alternativas ao capital, o que vai depender da maturidade do grupo e das próprias condições objetivas que lhes impõe a realidade. Ora, qualquer projeto necessita de um tempo mínimo para ser amadurecido. Em comparação com outras experiências de produção associada, não resta dúvida de que, como disse um trabalhador da COOPBONDE, “no caso do bonde de Santa Teresa, estamos sendo privilegiados: ainda não fomos demitidos e desde já, já estamos preparando a cooperativa” (Cláudio). Mesmo assim, diferentemente da Cooperativa de Parafusos, na Cooperativa do Bonde os trabalhadores foram


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pegos de surpresa. Embora tendo como perspectiva passar “de uma forma de trabalho para outra, de forma suave” (Cláudio, COOPBONDE), o que ocorreu é que frente à necessidade de uma resposta imediata quanto à possibilidade de se tornarem prestadores de serviços ao Estado, os trabalhadores não tiveram tempo suficiente para discutir amplamente os significados da ação coletiva e, a partir daí, elaborar seu projeto de cooperativismo. Ao contrário do que aconteceu na COOPARJ, a ação não foi acompanhada pari passu de um processo paulatino de reflexão sobre os princípios, dificuldades e desafios do associativismo. Assim que, embora a nova forma de “ganhar o pão de cada dia” pudesse ser para ambos os grupos de trabalhadores uma alternativa ao desemprego, não é por mera casualidade que tenha sido exatamente na fábrica de parafusos que os trabalhadores tenham conseguido estabelecer novas relações sociais – mesmo sem ou pouco acesso a seus pressupostos teórico-filosóficos (conforme veremos posteriormente). É preciso destacar que embora estejamos tratando das motivações e expectativas dos trabalhadores quanto ao associativismo, estamos nos referindo a homens e mulheres (ou seja, ao conjunto de trabalhadores e trabalhadoras) Mas, em especial, é preciso tentar compreender quais são os significados destes empreendimentos para as mulheres. Dada a necessidade de fazer um corte epistemológico, nossa investigação não teve como perspectiva analisar a questão de gênero 10, entretanto foi possível perceber alguns aspectos 10

Não podemos esquecer da problemática do trabalho feminino, o que nos exigiria analisar a questão do gênero em todas as suas esferas, inclusive a do trabalho doméstico. Concordamos com Blass que, sendo uma categoria relativa, o gênero “pressupõe a construção histórica e cultural de subjetividades em constante interação. Por isso, requer uma abordagem multidisciplinar através da qual podem ser contempladas as múltiplas dimensões da vida em sociedade. Selecionar somente uma para um estudo detalhado é uma meta quase impossível de alcançar” (1995, p. 67)


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quanto a “quem” faz determinadas tarefas. Devido a uma cultura, historicamente enraizada, que determina os tipos de tarefas que devem ser atribuídas ao sexo feminino, as OEPs também reproduzem, em certa medida, a divisão sexual do trabalho, mesmo que isto se verifique apenas em alguns aspectos da cultura do trabalho. Na AGP, onde existem 69% de mulheres em seus 22 grupos associados, nada mais “justo” que o cargo de presidente seja exercido por uma mulher, que no caso, Neuza. Isso não necessariamente poderia ser considerado “natural”, mesmo considerando que a grande maioria dos grupos vinculados a esta Associação se dedique a tarefas consideradas “femininas” (coser, bordar, cozinhar...). Afinal, em uma sociedade patriarcal, serão as mulheres aquelas que ocupam os “altos cargos” na Du Loren ou na De Millus? Se seguimos a atual lógica da divisão sexual do trabalho, como explicar que na produção de parafusos também as mulheres ocupam cargos de direção? Ora, dos 44 trabalhadores e trabalhadoras da COOPARJ, 42 homens são os responsáveis pela operação de máquinas – máquinas estas que exigem um trabalho “pesado”. Em contrapartida (e reproduzindo a divisão sexual do trabalho), as duas únicas mulheres que participam da unidade econômica têm como tarefa àqueles ofícios considerados “leves” (empacotamento manual, telefonia e outras tarefas delicadas da oficina.). Mas, além daquelas tarefas consideradas femininas, às duas únicas mulheres correspondem os trabalhos relativos aos cargos de diretoria administrativa e diretoria financeira. (Será que isso se deve ao fato de que, ultimamente, os homens descobriram que “a mulher é a melhor pessoa para arrumar a casa”?) Apesar de variarem em cada grupo investigado as condições de trabalho e a posição que as mulheres ocupam na estrutura da produção, é interessante observar que o exercí-


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cio dos cargos de direção não costumam ser de competência apenas dos homens, e em nenhum deles se verifica diferenças de remuneração entre homens e mulheres que exercem a mesma função. Ou seja, a velha e justa reivindicação de “salários iguais para trabalhos iguais” já não é mais uma reivindicação das trabalhadoras das OEPs. Se, de um lado, existem as diferenças de sexo na distribuição das tarefas, de outro, não é a dominação patriarcal o que define os salários e os papéis masculinos e femininos. Como veremos adiante, quando a tendência é a socialização dos conhecimentos e a divisão eqüitativa dos frutos do trabalho, independentemente da tarefa que se execute, diluem-se os espaços e tempos de discriminação do gênero feminino. A inserção das mulheres dos setores populares no mercado de trabalho (como também em qualquer organização econômica popular) faz com que se torne difícil equilibrar as responsabilidades domésticas com as atividades econômicas, sem que isso represente una sobrecarga descomunal de sobretrabalho. Não por casualidade, temos protestado contra a dupla ou tripla jornada de trabalho. Mas, quando a unidade econômica, ao menos, acolhe os filhos das trabalhadoras, esta sobrecarga – se não se torna leve – pelo menos diminui, principalmente em nível psicológico. Quando, isso se dá em relação ao “filho pequeno”, já não é necessário que as mães/mulheres/trabalhadoras tenham de buscar, desesperadamente, uma vaga nas poucas creches públicas e/ ou comunitárias existentes. Embora, de um modo geral, a unidade produtiva não ofereça um espaço com infra-estrutura adequada para acolher os filhos, o fato é que essas mães já não precisam deixá-los sob os cuidados dos filhos maiores, evitando assim os possíveis acidentes domésticos. Tampouco, frente à ameaça ou um ato arbitrário de demissão (por parte do patrão),


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essas mães/ mulheres/ esposas/ trabalhadores se vêm obrigadas a abandonar (sozinhas em casas) essas “pobres crianças”. Na condição de trabalhadoras associadas, essas mulheres descobriram que podem transformar o local de trabalho em uma “creche”, pois, assim “o filho não tem só uma mãe, tem muitas” (Neuza/AGP). Para aqueles que estão acostumados e/ou incorporaram o espírito das relações no mercado formal de trabalho, é difícil imaginar uma criança correndo entre as máquinas, chorando, ou seja, perturbando a dinâmica da produção e podendo, inclusive, sofrer “acidentes de trabalho”. Na perspectiva da cultura hegemônica/capitalista do trabalho, esta situação seria considerada um verdadeiro caos: manter uma criança no próprio local de trabalho significa atrapalhar o serviço, diminuindo assim a produtividade. Isso não seria considerado como uma situação ideal para uma mãe-trabalhadora nem para os demais trabalhadores e, tampouco, para a própria criança. No entanto, para as trabalhadoras associadas, uma criança não é motivo de estranhamento. Mesmo quando não existe creche, “isso é uma coisa normal das pessoas que estão aqui trabalhando”, uma vez que tão importante quanto “dar atenção ao trabalho”, é dar atenção “aos filhos, acompanhar o marido no médico, ir à reunião da escola...” (Neuza/AGP). Além de seus filhos as acompanharem na vida produtiva, também é um privilégio poder trabalhar perto de casa. Ao invés de gastarem dinheiro com transporte, de viajarem como “sardinhas em lata” e de se irritarem com o engarrafamentos, estas mulheres podem caminhar devagar do lar à oficina. Além do mais, “a gente pode sair e ir almoçar em casa. Em outro lugar mais longe, a gente teria que levar a marmita” (Dina/Oficina de Costura). Devido ao empreendi-


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mento, geralmente, situar-se no interior mesmo das comunidades onde vivem as trabalhadoras e a jornada de trabalho não ser rígida, é possível, até mesmo fazer como Joana (Oficina de Costura): “deixo a panela no fogo, marco a hora, vou ali e apago”. E, se a produção estiver adiantada, molhar as plantas e aproveitar para ver quanto está a conta no armazém da esquina. No CCAP, a promoção de cursos e encontros tem como um de seus objetivos despertar nas mulheres da favela “a necessidade de se organizar-se para poder levantar com firmeza a bandeira do direito à igualdade” (Boletim Informativo, n. 11, 1996, p. 4). No programa educacional são contempladas setenta crianças, de três a seis anos, no Centro Educacional da Tia Zilda; outras crianças e adolescentes também têm acesso à educação por meio de oficinas de desenho, pintura, teatro, música, vídeo, etc. Neste caso, não apenas as integrantes dos grupos de produção mas, também, outras mulheres da comunidade têm mais tempo para si e para o trabalho É interessante registrar que, ao discutir sobre os objetivos e vantagens do associativismo, em poucos momentos os homens manifestaram suas preocupações a respeito do cuidado com as crianças e com as tarefas domésticas. Para os homens parece que o lar continua a ser “um problema das mulheres”. Para elas, ao contrário: embora os rendimentos obtidos correspondam ao mínimo que é necessário para “seguir vivendo”, o empreendimento econômico, além de ser uma alternativa ao desemprego, é também uma possibilidade que se apresenta para aliviar a contradição com que ainda se deparam frente à situação de serem mulheres, mães e trabalhadoras. De um lado, o ingresso em uma atividade produtiva representa a possibilidade da mulher não ficar restrita ao trabalho doméstico e sair “daquela coisinha de dona


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de casa, cozinhar, lavar roupas, e não ver o outro lado” (Francisca/AGP). De outro, significa o atendimento à necessidade de sobrevivência, elemento fundamental que faz avançar a sua “emancipação” pela conquista do espaço de trabalho e, ao mesmo tempo de convivência. Para Neuza, é bastante significativa a sua participação em um grupo de produção da AGP: “o que mudou eu não sei explicar. Aprendi a questão da cidadania, de saber meus direitos, meus deveres... Aprendi muito”. Quando o companheiro está desempregado e/ou quando o salário dos demais membros do núcleo familiar não é suficiente para a manutenção do lar, as mulheres começam a perceber que necessitam criar as condições para sustentar-se, pois sabem que muitas vezes vão depender unicamente da remuneração da OEP. Na AGP, “hoje as pessoas dos grupos vêem que o trabalho não é só um complemento do marido [...] Hoje as pessoas já têm a consciência de que precisam se auto-sustentar, pois tem gente que depende totalmente do que ganha aqui (Neuza). O objetivo é aprender a fazer “qualquer coisa”, é “aprender cada vez mais. Hoje estamos fazendo colchas, amanhã estaremos fazendo até roupa para vender” (Dina/Oficina de Costura), tendo como perspectiva garantir a estabilidade do grupo, a remuneração de seus integrantes e, também, a manutenção da família. Na busca de encontrar os meios para a satisfação, ao menos, de suas necessidades imediatas, mulheres e homens consideram que existem outros fatores que contribuem para a opção pelo associativismo. Um desses é que “a união faz a força”, ou seja, é por meio da cooperação e da ajuda mútua que a unidade econômica e cada um de seus integrantes têm a possibilidade de “vencer na vida”. A própria vida têm ensinado aos setores populares que suas necessidades ime-


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diatas de sobrevivência não se satisfazem através de uma ação individual, isolada. Mas é possível observar que a máxima de que “uma andorinha não faz verão” vem acompanhada de diferentes níveis de interesses e de compromisso com o outro. Para os homens, em geral, um dos objetivos do associativismo é que eles possam cumprir aquilo que a sociedade, historicamente, vêm deles exigindo. Como diz Adalton (COOPARJ), o objetivo é “dar una vida melhor para minha família”. Dessa perspectiva, o espaço subjetivo do que é considerado “comunitário” pode restringir-se à mulher, aos filhos e os agregados do lar. Quando a intenção “não é só ganhar dinheiro”, o compromisso com a reprodução dos setores populares vá mais além dos seres humanos que pertencem à própria família. Em outras palavras, o espaço do comunitário pode ampliar-se para todos os membros das famílias do conjunto dos integrantes da OEP, de maneira que “toda a comunidade esteja implicada neste tipo de trabalho. Se nós paramos, nossos filhos continuam” (Evaldas/ COOPARJ). Embora seja necessário confrontar as intenções dos trabalhadores com as práticas do cotidiano, chama a atenção em todas as OEPs é que a quase totalidade de seus integrantes indicam que uma de suas motivações é a satisfação de “não ter patrão”. É claro que, para aqueles que nunca viveram sob a “pedagogia da fábrica” (Kuenzer, 1986), a experiência de tentar criar novas relações de trabalho não parece ser tão significativa, à medida que não dispõem de parâmetros para compará-los. Para uma jovem trabalhadora, como Rosemar (CCAP/Transportadora), por exemplo, é difícil constatar se a forma de participação dos trabalhadores associados é diferente da que se verifica em uma empresa capitalista. Já, para dona Maria (uma senhora, também de CCAP),


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o objetivo do associativismo na padaria popular é “trabalhar sem patrão. Nosso patrão somos nós mesmos”. Para aquelas que são procedentes do mercado formal de trabalho e/ou viveram a experiência de trabalhar como empregadas domésticas (“donas de casa de um lar alheio”), uma das expectativas é “sair da condição de trabalhar como subcontratadas, sair do trabalho de exploração”. Assim, se as condições objetivas da sociedade fazem com que as pessoas tenham de “trabalhar muito e ganhar pouco”, a esperança estaria “em controlar uma coisa nossa, de não dar satisfação ao patrão” (Francisca/AGP). Diferentemente de uma empresa de capitais, na qual “para o patrão o ser humano não tem valor” (Paulo/ COOPARJ), em geral, o espírito do processo de trabalho é que “aqui todo mundo é a mesma coisa, ninguém é mais que ninguém” (Sidnei/COOPARJ); é que os trabalhadores dêem valor a si mesmos, como favelados, como negros, como pessoas. Já que agora são os trabalhadores, e não os patrões, que dirigem a produção, “´é uma questão de honra [...]. hoje quebramos a cabeça [...] mas juntos” (Sidnei/ COOPARJ). Considerando que os patrões têm de “aprender a não serem egoístas” e que eles não podem seguir “sugando o sangue”, alguns “juram” que não vão abdicar da produção associada: “Podem me pagar milhões para trabalhar com um patrão que eu não aceito” (Elpidio/COOPARJ). Quando o patrão torna-se um personagem indesejável na vida dos trabalhadores, é necessário buscar as raízes, ou seja, quais são as outras motivações, manifestas ou latentes (Ortí, 1994), que levam os trabalhadores a organizar seus próprios empreendimentos. Isso porque, ante a lógica de “não ver sua cara” e “não ter de dar explicações”, a expectativa de tornar-se “senhor do trabalho” não representa, necessariamente, uma opção por uma “sociedade dos produ-


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tores livres associados”, como vislumbrava Marx (1995). É verdade que em nenhuma das OEPs é necessário “tocar a sirene [para] todo mundo começar a trabalhar. Quando é a hora do almoço? Cada um resolve, cada um faz seu horário” (Evaldo/COOPARJ). Como nos disse Gramsci (1976a), uma disciplina voluntária e autônoma exige do trabalhador uma sólida disciplina; no entanto a autonomia pode ser confundida com liberdade de satisfazer o que é meramente individual, em detrimento do que é coletivo. O que ocorre é que, sendo o trabalhador um dos proprietários do empreendimento e tendo o privilégio de não ter de dar satisfação de seu desempenho ao patrão, crê que tampouco é necessário dar satisfação a ninguém. Embora busquem a liberdade individual, contraditoriamente, sentem-se pressionados quando têm de opinar e decidir sem a ajuda de um “pai” ou uma “mãe”, ou seja, sem que nestes momentos se estabeleça uma relação de dominação entre “quem sabe” (e, portanto, decide), e quem “não sabe” (e, portanto, executa). Esta mesma relação também pode-se estabelecer por ainda entender-se que, mesmo aqueles que ainda não sabem – mas que se propõem a aprender – devem decidir em nome daqueles que não têm a mesma atitude e, portanto, devem acatar e executar as ordens dos “superiores”. De acordo com a declaração de uma das coordenadoras da Oficina de Costura: “durante muito tempo a Ação da Cidadania era vista como empregador, tanto que elas [trabalhadoras] fogem muito da questão da administração do dinheiro [...] Às vezes a gente fica como se fosse um professor em sala de aula, como aquele que dirige mais ou menos o trabalho” (Nina). Na verdade, muitos trabalhadores e trabalhadoras seguem culturalmente impregnados pela lógica de ter alguém que decida, que seja responsável para dizer que é o que os outros têm de fazer, como


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devem comportar-se, etc. A isso e às formas de participação e divisão do trabalho que interferem nas relações pessoais/de trabalho, voltaremos posteriormente. Se de um lado a(s) pedagogia(s) da produção associada pode(m) evidenciar elementos de uma nova cultura do trabalho, de outro, a nova disciplina do trabalho e a nova ordem fabril vão construindo-se em meio à ideologia liberal. No cotidiano do processo de trabalho, muitas vezes prevalece a liberdade individual em detrimento dos interesses do coletivo de trabalhadores, transformando a propriedade coletiva (ou propriedade pessoal associada) em propriedade privada. O sentimento de posse parece retirar do trabalhador a disciplina do trabalho, instaurando o não-trabalho e o “direito à preguiça” (Lafargue, 1977) como sua prerrogativa, como direito inerente ao direito de propriedade. Daí que Nina (Oficina de Costura) se queixe de que “quando as máquinas ficam paradas por falta de matéria-prima, em vez de não fazer nada, [suas companheiras] deveriam buscar outra tarefa para fazer”. Assim, quando o trabalhador diz que uma das vantagens da produção associada é “não ter de dar satisfação ao patrão”, é necessário duvidar e questionar seu discurso, buscando o que pode estar oculto ou latente em suas práticas cotidianas (Ortí, 1994). As pessoas costumam dizer que a “liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro”; no entanto, na prática, o “outro” não é concebido como parte integrante de “nós”, mas como um sujeito isolado, cuja individualidade deve ser preservada e respeitada. Se a ausência da figura do patrão pode representar a “autonomia no trabalho”, esta autonomia pode significar que o trabalhador, por não estar submetido ao controle do outro, não necessita prestar contas de sua atividade. Se, na perspectiva da heterogestão, os trabalhadores perdem o controle sobre seu trabalho, a perspectiva de autogestão pode ter como pano de fundo uma autonomia centrada no indivíduo e não no coletivo.


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Para os grupos e para cada um dos trabalhadores associados, isoladamente, são distintos os significados de um processo autogestionário, sendo predominante a primeira de suas três versões: a) autogestão significa gerir o empreendimento de maneira a torná-lo economicamente viável, garantindo as remunerações por meio do próprio esforço dos trabalhadores; b) além de satisfazer às necessidades econômicas dos trabalhadores, o processo de autogestão deve garantir a autonomia e o desenvolvimento integral das capacidades de seus componentes; e c) além de satisfazer às necessidades materiais e espirituais de seus integrantes, a autogestão tem como pressuposto a autonomia plena dos trabalhadores, conquistada no âmbito de toda a sociedade. Diferentemente de ser uma forma de expressão de autonomia e autogoverno dos produtores associados, para muitos trabalhadores a autogestão é compreendida como uma particularidade desta ou daquela unidade econômica. Ela pressupõe quase que somente gerir um capital produtivo para que os frutos do trabalho sejam distribuídos de maneira mais eqüitativa: “o objetivo é a autogestão [...] é obter renda e com esta renda autogestionar-se: produzir e com o que se produz, pagar também a matéria, e ter a condição de comprar e fazer, fazer e comprar [...] garanti[ndo] a sobrevivência. Assim você não está a mercê de alguém que te dê” (Nina/Oficina de Costura). Para outros, a autogestão é uma forma de luta pela qual os trabalhadores podem descobrir que são capazes de organizar e gerir a produção, de maneira a criar novas relações sociais. No CCAP, a concepção da diretoria é de que “o mercado deve estar dirigido para a vida, que deve ter uma nítida característica de solidariedade. Assim, a economia dever ser transparente e participativa para ser de fato, autogestão” (Leonídio). No entanto a autogestão não tem a ver somente com um pro-


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blema econômico ou com algo que pode ser resolvido no interior dos empreendimentos populares, mas exige a socialização da educação, transporte, moradia, cultura, saúde etc. Em última instância, a autogestão é o objetivo em ao mesmo tempo, o empreendimento associativo. A partir de diferentes perspectivas políticas e ideológicas, para alguns, o cooperativismo é “a melhor solução para o Brasil” (Milton/COOPBONDE). Outros dizem que o objetivo do associativismo “é a transformação, é que as pessoas passem a acreditar no seu trabalho, acreditar que isto vai dar certo” (Neuza/AGP). Para Adelaide (CCAP), “se outros grupos se organizam, quem sabe daqui a 20 ou 30 anos, a gente vai ter uma sociedade mais justa? [...] Eu vejo isso como uma forma de vida”. Mesmo assim, é preciso não esquecer que nem todos os trabalhadores vêm tendo acesso aos fundamentos do associativismo, ou deles não estão convencidos. Como constata Jairo, da COOPARJ, “muitos trabalhadores são induzidos a ser um cooperativista, sem compreender seu significado”. É necessário reconhecer as dificuldades que os trabalhadores associados vêm tendo para diminuir os custos operacionais, para garantir a remuneração mensal a seus sócios, enfim, para se estabelecerem em um mercado que ameaça constantemente a continuidade da atividade e da própria organização econômica. Assim que, não necessariamente de expectativas de ordem política e ideológica vivem os trabalhadores associados. Ao responder a um questionário elaborado pela diretoria da COOPARJ, um trabalhador diz que não repetiria a experiência associativa: “porque não tenho outra fonte de renda, e a cooperativa está demorando muito para se concretizar”. Outro, também diz que não, porque não está tendo condições de manter a sua família. Ora, como afirmou Neuza (AGP), “ninguém está aqui para


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enriquecer, mas para ter estabilidade”. No entanto “quando alguém precisa de dinheiro, precisa para hoje e não para amanhã” (Nina/Oficina de Costura), o que contribui para que alguns abandonem o grupo em busca de outra atividade. Para tornar-se “senhor do trabalho”, também é preciso que o empreendimento torne-se economicamente viável. Diferentemente do trabalho assalariado, onde o dinheiro aparece no final do mês, nas OEPs, “se a pessoa não tem solidariedade, se não entende o problema, não vai querer esperar” (Francisca/AGP). Embora a solidariedade seja uma condição política para tal, na verdade, não se trata apenas de ser ou não ser “solidário”. Quando é preciso garantir, de imediato, ao menos a conservação da vida biológica, a fome não pode esperar. E aí é preferível voltar à condição de trabalhador assalariado, abdicando da flexibilidade da jornada de trabalho, da perspectiva de autogestão, enfim, da possibilidade de “melhorar a qualidade de vida, mas com uma ideologia que a gente acredita” (Adelaide/CCAP). Conforme afirmou Cláudio (COOPBONDE), “é muito difícil dizer o que é melhor [...] Vivemos num mundo em que é melhor um pássaro na mão do que dois voando”. Assim, já que os frutos do trabalho “não são suficientes para viver”, algumas pessoas como Carlinda (Oficina de Costura), preferem “o patrão”, uma vez que desta maneira pode-se, ou imagina-se poder, no final do mês, “contar com o dinheiro”. Não por casualidade, para os trabalhadores da Cooperativa do Bonde de Santa Teresa é difícil optar entre serem funcionários públicos ou serem cooperativistas, pois se o empreendimento permanece instável, se continua “da maneira que está”, o mais importante não á a ideologia e tampouco a realização do sonho distante de um mundo melhor, mas “continuar empregado” (trabalhador não identificado). Ou,


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como disse Frigotto (1996), em uma conjuntura de fome e miséria, os trabalhadores não têm outra alternativa senão lutar para tornarem-se mercadoria, mesmo reconhecendo que “ser um empregado é igual a estar como um animal preso” (Manuel/COOPARJ). Em última instância, o que vai determinar que o trabalhador opte por permanecer associado ou não é o grau de viabilidade econômica do empreendimento popular, ou seja, a sua capacidade de favorecer, de forma estável, os meios para a satisfação das necessidades básicas de seus integrantes. Os graus de viabilidade oscilam (avançam ou retrocedem) ao longo do tempo, dependendo das condições objetivas e subjetivas com que os grupos se deparam. A partir dos aportes de Ortiz (1993), estes graus podem ser caracterizados como: a) Sobrevivência – quando os rendimentos são, muitas vezes, menores que os custos, não sendo suficientes para a satisfação das necessidades imediatas dos trabalhadores. Vivendo em situação de instabilidade quanto à viabilidade econômica do empreendimento, seus integrantes não se dedicam exclusivamente a ele ou abandonam seus postos para buscar outras alternativas de trabalho, gerando assim uma constante rotatividade no grupo; b) Subsistência – quando os rendimentos são iguais ou um pouco superiores aos custos, ou indicam a possibilidade de tal a curto ou médio prazo. Existindo a esperança de que o empreendimento torne-se estável, os trabalhadores consideram sua atividade como uma alternativa econômica viável – embora recebam apenas o mínimo para sua sobrevivência e/ou para o complemento do orçamento doméstico; e c) Desenvolvimento – quando os rendimentos cobrem os custos do empreendimento, possibilitando a formação de um pequeno capital de giro. Em geral, a atividade passa a ser considerada pelos trabalhadores como uma atividade econômica permanente, na qual pretendem seguir investindo ao longo de suas vidas.


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Mas, na verdade, “não se pode mudar as coisas de um dia para o outro” (Evaldas/COOPARJ). Os trabalhadores associados têm apostado toda a sua energia física e espiritual para tornar viáveis seus empreendimentos econômicos. No entanto, as condições objetivas e subjetivas da realidade em que vivem, faz com que seja necessário remar contra a corrente. Apesar de todas as dificuldades, querem demostrar que mesmo “sem estudo” e com o “privilégio de não terem patrão”, são capazes de “vencer”, controlando eles mesmos o ritmo da produção e o leme do barco. Os trabalhadores reclamam que é comum ouvir “das pessoas com formação, que nós não temos competência para organizar uma cooperativa. Para a gente, isso dói. Queremos mostrar que nem sempre os estudos melhoram o homem e fazem ele chegar aos objetivos que ele deseja” (Alcântara/ COOPARJ). Ou seja, além de alternativa ao desemprego, a organização econômica se apresenta como um prolongamento de um tipo de vida que alguns já sonhavam, inclusive o sonho de serem reconhecidos como produtores de conhecimento e de cultura, além de produtores de bens materiais. Seguiremos indicando as motivações dos trabalhadores para organizar seus próprios empreendimentos, mas em síntese, podemos considerar que, no âmbito daqueles trabalhadores sobre os quais nos voltamos neste estudo, são os seguintes os objetivos do associativismo: a) sendo uma alternativa ao desemprego, o associativismo tem como objetivo a satisfação das necessidades imediatas dos trabalhadores, dentre elas, o cuidado com os filhos; b) além de ser uma alternativa de sobrevivência, o objetivo do associativismo é a criação de novas formas de convivência no interior do grupo, baseadas em relações que contrariam a lógica da divisão capitalista do trabalho; e c) o objetivo do associativismo extrapola o bem-estar do próprio grupo, cujos integrantes têm como


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perspectiva a criação de um mercado solidário junto às comunidades locais, envolvendo outros grupos de trabalhadores associados da cidade e/ou pequenos produtores do campo;

Relações de mercado, de amizade e de solidariedade Se ao trabalhar o homem estabelece relações com outros homens, a cultura do trabalho precisa ser compreendida no seu sentido mais amplo, o que leva-nos a questionar: qual é o objetivo da produção? Para que e para quem se produz? Que tipo de riqueza se produz? Quem desfruta das riquezas produzidas? O mercado se restringe ao que, convencionalmente, se define como um espaço de intercâmbio de mercadorias ou, indo além do econômico propriamente dito, também se configura como uma instância para a constituição de relações de solidariedade e de intercâmbio social, político, educativo e cultural da comunidade? Partimos do pressuposto de que, em qualquer sociedade, as relações de intercâmbio são parte integrante das relações sociais, inserindo-se no processo de transformação/conservação da estrutura social; mas, considerando o contexto maior onde está situada, seria um equívoco imaginar uma organização econômica popular que pudesse prescindir das relações capitalistas de produção e circulação de mercadorias. Tendo também em conta os limites da produção associada em uma sociedade de mercado, pensamos que se os critérios para definir o que e para quem produzir desconsideram as condições reais de vida e as necessidades das comunidades locais, as OEPs correm o risco de reprodu-


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zir e adotar o critério do modo capitalista de produção, distribuição e consumo. Nesse horizonte, consideramos os seguintes aspectos para a análise de como se estruturam as relações de mercado e de solidariedade: a forma de organização e inserção das OEPs nos denominados setores formal e informal da economia, os diferentes graus de associatividade com outras organizações econômicas populares e as relações que estabelecem com o governo, empresários e com a comunidade local. Para inferir sobre o nível de articulação e de compromisso com os moradores da comunidade local e outras comunidades, consideramos os critérios definidos pelas OEPs, sejam os utilizados para definir quais são os bens que serão produzidos, sejam aqueles que se utiliza para estabelecer os preços das mercadorias; os critérios de qualidade dos produtos e serviços; os princípios e condições para competir no mercado; e qual é a amplitude da relação entre produtor e consumidor.

Enfrentando os abutres do mercado: de pequenos grupos a um “grupaço”

O aspecto da legalidade ou não-legalidade é um dos fatores que condicionam e limitam o tipo de inserção das OEPs no mercado. Como referimos no Capítulo 2, a burocracia e o alto custo da legalidade são um empecilho para a constituição jurídica deste tipo de organização econômica. O próprio trabalho de campo reafirmou que, devido à realidade dos denominados setores formais e informais da economia estar determinada por um processo de interdependência, não é possível estabelecer uma relação mecânica entre “informalidade” e “mercado informal” e tampouco entre “formalidade” e “mercado formal”.


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Em síntese, podemos afirmar que encontramos três formas de organização e de inserção das OEPs na economia: a) cooperativas, centros comunitários, associações e grupos de produção comunitária, não constituídos juridicamente como tal, e que desenvolvem suas atividades, prioritariamente, junto ao chamado setor informal da economia. A possibilidade de se inserirem no mercado formal tem como condição a possibilidade de outras organizações econômicas, juridicamente estabelecidas, virem de favorecê-los quanto às condições legais para a comercialização; b) cooperativas e associações, juridicamente estabelecidas, as quais restringem suas atividades ao chamado setor formal da economia; c) cooperativas e associações, juridicamente estabelecidas e que, de acordo com a necessidade do empreendimento, desenvolvem suas atividades no setor formal ou informal da economia. Embora a “informalidade” esteja marcada por relações relativamente livres do controle do Estado, os trabalhadores associados não descartam o desejo de que o empreendimento se apresente à sociedade através de um “estatuto legal”. Tendo ou não sofrido as conseqüências da fiscalização governamental, sabem que a ilegalidade limita as relações comerciais com as empresas oficialmente estabelecidas, não só no que diz respeito à possibilidade de tornarem-se consumidoras de seus produtos e serviços, como também vendedoras ou, mesmo, fornecedoras de matérias-primas por um custo mais baixo. Sem descartar a possibilidade de explorarem ao máximo a informalidade, sabem quando conseguem enfrentar as condições impostas pelo poder público. Os grupos podem ampliar suas relações de mercado, conquistando maior estabilidade e crescimento econômico. Para a CCAP, por exemplo, um dos desafios é encontrar formas de legalizar juridicamente os empreendimentos populares – formas estas que, ao contrário de lhes “colocar uma camisa de força”,


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respeitem e correspondam exatamente ao processo de organização de cada unidade econômica. Como disse Leonídio, a questão é de como tornar visível a atividade econômica, é de como “atuar, atendendo às exigências do mercado, às exigências do Estado e, fundamentalmente, as nossas próprias exigências de trabalho, participativo, transparente, de autogestão auto-sustentável”. Se de um lado o fator ilegalidade limita a inserção no mercado em geral, de outro não se constitui como um impedimento para que se estabeleçam relações comerciais, sociais e políticas com outros grupos de produtores associados. Quando isso não acontece, podemos observar três tipos de articulação: a) de uma unidade econômica com outros grupos, visando à comercialização conjunta de seus diferentes produtos e serviços; b) a criação de uma organização econômica que congrega duas ou mais unidades, articuladas ou não a outros grupos, para a comercialização de seus produtos e serviços; e c) a criação de uma entidade representativa de várias unidades, tendo como objetivo a articulação e a capacitação técnica e política de seus integrantes para o fortalecimento dos processos de produção e comercialização dos diferentes produtos e serviços dos grupos associados. Um dos aspectos que caracteriza uma determinada OEP é, exatamente, a amplitude de suas redes associativas. As redes de solidariedade podem restringir-se à associação de seus integrantes no interior mesmo da unidade produtiva ou resultar na interação da OEP, em diferentes níveis, com os demais grupos de trabalhadores associados. Quanto aos enlaces entre organizações para o intercâmbio de mercadorias, informações, conhecimentos, destacam-se a AGP e a CCAP, as quais vêm buscando construir formas interpenetradas de mercado, o que não pode ser caracterizado como uma “divisão empresarial do trabalho” (como na perspectiva capitalis-


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ta), mas como uma rede de produtores associados que tentam articular-se frente à lógica perversa do mercado. Ora, os empresários – “sem que deixem de ser empresários e sem que o capital empresarial deixe de funcionar com uma lógica capitalista” (Nuñez, 1995, p. 162) – tiveram de passar de empresários individuais a empresários associados, a fim de assegurar maiores níveis de acumulação. Da mesma maneira, os trabalhadores também começam a descobrir a importância de ampliarem e fortalecerem suas redes associativas, enfrentando coletivamente as duras regras e as armadilhas dos “abutres do mercado”, pois “o abutre não necessita, nós é que necessitamos sobreviver” (Alcântara/ COOPARJ). Os níveis de associatividade podem ampliar-se ou retroceder em distintos momentos, de acordo com o contexto econômico e político de cada grupo, porém o que pode ser diverso é o maior ou menor nível de organização e de capacidade dos trabalhadores para valorizarem a associatividade como um instrumento para fortalecer a solidariedade e proteger o mercado da economia popular. Conforme falamos na primeira parte deste capítulo, a forma como os trabalhadores começam a ação empreendedora, as experiências associativas anteriores e as motivações de seus integrantes são fatores que condicionam a possibilidade de estabelecer relações de mercado e de solidariedade que extrapolem o empreendimento e a comunidade local. Mas, no processo de tornar viável a atividade econômica, não é possível esquecer a articulação que é necessária com os empresários, os governos e as instituições que os apóiam. Quanto aos primeiros, podemos observar que: a) a articulação do grupo se pode dar de forma isolada; com os empresários conseguem manter uma relação meramente comercial; burocrática e/ou reivindicatória com os governos municipais, estatais e fede-


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ral; b) Além de comercial, a relação com os empresários tem como objetivo a obtenção de doações de sobras de matériaprima e de outros instrumentos de trabalho que podem ser úteis para o grupo. Quanto à relação com os governos – o que se dá geralmente a partir da intermediação de alguma instituição de apoio (ONG, igreja) – o objetivo é a solicitação de concessão de crédito popular e/ou a resolução de problemas de ordem jurídica, legislativa ou tributária; O êxito dos empreendimentos econômicos geridos pelos próprios trabalhadores depende do poder público assumir os efeitos da crise do trabalho assalariado e reconhecer os empreendimentos populares como alternativas legítimas de geração de trabalho. Apesar dos discursos dos empresários e dos representantes do poder público, o fato é que, como nos diz Singer (1997) e como o reconhecem os trabalhadores associados, a falta de investimentos e de outros tipos de apoio aos excluídos do mercado de trabalho formal faz com que os trabalhadores fiquem relegados ao desemprego, ou se vejam, constantemente, sob o risco de seus empreendimentos tornarem-se inviáveis, pois, como constata Adelaide (CCAP), “para o banco só é gente quem tem muito dinheiro no banco”. Como analisamos no capítulo 2, de parte dos governos conservadores, as formas de atender às reivindicações dos atores da economia popular pode resultar em ações de caráter assistencialista e clientelista, quando não, de desinteresse ou repressão. É certo que “as unidades do setor solidário estão em condições de aproveitar recursos que, por sua menor produtividade em termos físicos ou de valor, são desprezados pelas unidades do setor de intercâmbios (Razeto, 1994, p. 165). Mas é preciso considerar que, também de parte dos trabalhadores, a postura frente aos empresários e ao poder público tanto pode assumir um caráter assistencialista, no sentido de garantir os interesses corporativistas específicos de uma


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ou mais organizações econômicas, como pode assumir uma postura que, além de reivindicatória, tem como objetivo o fortalecimento da economia popular no seu conjunto e/ou o confronto de seus interesses com os do capital. Ora, a economia popular não pode ser abortada pela eterna penúria. Nesse sentido, não podemos menosprezar as relações dos trabalhadores associados com os governos e os empresários, mas compreendê-la tendo em conta a complexa realidade na qual se dão. Frente ao desespero e ao medo de retornarem, mais uma vez, para a “rua”, é preciso que os trabalhadores consigam, pelo menos, um pequeno capital de giro – uma questão crucial das OEPS. Assim, sabem que, além da auto-exploração do trabalho, é necessário buscar outros meios para tornar viável o empreendimento, o que pressupõe um determinado nível de organização dos trabalhadores – nível este que se materializa no reconhecimento e na luta pelo direito de disputar os fundos públicos. Os trabalhadores que compartem a concepção da necessidade de transformações sociais em nível “macro” compreendem que a disputa política pelo poder em uma prefeitura, por exemplo, pode repercutir na geração de fundos públicos para um destino democrático, podendo representar um salto de qualidade para a economia popular11. 11

Vale a pena ressaltar que uma postura distinta da do Rio de Janeiro verifica-se na cidade de Porto Alegre, onde o governo local tem promovido diversas ações de caráter participativo visando ao fortalecimento dos movimentos populares. No que diz respeito à economia popular, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT) criou, em 1996, a instituição de crédito “PortoSol”, considerado importante instrumento para a viabilidade econômica dos pequenos empreendimentos. Seu objetivo é “facilitar a criação, crescimento e consolidação de empresas de pequeno porte, tanto formais como informais, a partir do fomento e desenvolvimento socioeconômico equilibrado do município” (Cooperativa de Crédito PortoSol, Porto Alegre, 1996, mimeo).


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Sem desconsiderar que as ONGs, com seus diferentes estilos de apoio aos setores populares, têm jogado um papel contraditório no processo de globalização, não é possível negar que elas – colaborando crítica ou acriticamente na implementação dos projetos de cooperação internacional – constituem-se como os principais agentes no processo de estruturação das OEPs. Quanto àquelas que acompanham as organizações econômicas que estudamos, as relações se estabelecem quando uma de suas frentes de trabalho se materializa através de um “programa de geração de trabalho e renda”. Esses programas têm sido criados, desde o início dos anos 80, para estimular a associação das pessoas que, frente ao desemprego, não têm outra alternativa senão a pequena produção de bens e serviços que podem ser vendidos no mercado. Não sendo nosso propósito o da análise específica das propostas e práticas destas organizações não-governamentais, vale destacar que, da parte dos trabalhadores associados, estas relações vão construindo-se de diferentes formas: a) assumem um caráter imediatista, restringindo-se à busca de apoio político, subsídios econômicos e/ou de conhecimentos nos momentos críticos e emergenciais do empreendimento; a possibilidade de uma relação sistemática depende de que a ONG consiga recursos oriundos de uma agência que financie o desenvolvimento de atividades conjuntas; b) as relações se dão de forma sistemática, mas estão predeterminadas e restritas a um projeto de doação de recursos conseguidos pela ONG, visando à melhoria das instalações do empreendimento e/ou para a promoção de cursos de qualificação dos trabalhadores; geralmente, caracterizam-se por relações que tendem a diluir-se ao término do projeto; e c) existindo um projeto conjunto, as relações entre as partes se dão de maneira formal e informal, caracterizando-se por


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sua intensidade no cotidiano tanto da produção associada quanto das instalações da ONG; geralmente, caracterizam-se por relações horizontais, através da promoção de ações conjuntas. Em última instância, os tipos de relação que os trabalhadores estabelecem com as organizações não-governamentais vão depender da possibilidade de financiamento e do caráter mesmo de cada um dos projetos elaborados conjuntamente e aprovados. No caso da Associação dos Grupos de Produção (AGP), por exemplo, os níveis de associação com os parceiros vão desde créditos e doações obtidos por intermédio de instituições de apoio que, especificamente, dedicam-se a isso, até uma relação intensa com o CEDAC, o qual a acompanha de forma sistemática nas relações de trabalho cotidianas de vários grupos de produção. Em COOPBONDE, os trabalhadores só conseguiram elaborar e aprovar, por intermédio de PACS, um pequeno projeto com a finalidade de financiar a legalização da cooperativa. Ou seja, as ações das ONGs resultam das demandas concretas das OEPs e, indubitavelmente, a possibilidade de ampliar o leque de instituições de apoio depende, fundamentalmente, da capacidade de articulação e de organização dos trabalhadores para determinada tarefa. Sobre o caráter que podem assumir os tipos de apoio, é necessário enfatizar que a lógica de que os trabalhadores obtenham doações por intermédio das ONGs, não representa necessariamente uma prática baseada em valores assistencialistas. Quando os trabalhadores não conseguem ter acesso aos sistemas de crédito ou quando as condições econômicas dos empreendimentos são tão graves que não permitem, ao menos, a criação de um fundo rotativo, a doação é compreendida como uma forma de potencializar a economia popular. Não obstante, é preciso considerar que do “mercado das doações” (Razeto, 1994) participam os representantes das três correntes de pensamento a respeito


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do desenvolvimento da economia informal, identificadas por Coraggio (1995) como neoliberal, empresarial-modernizante e solidária. Ou seja, deste mercado, participam tanto os agentes que buscam escamotear as desigualdades sociais, concedendo um “alivio para os pobres”, os que pretendem “modernizar” os pequenos empreendimentos para sua competição no mercado, como também os que concebem que – através de doações – uma OEP fracassada economicamente pode obter êxito através de um processo educativo que contribua para que os trabalhadores compreendam a necessidade de criarem novas formas para enfrentar e buscar soluções para seus problemas. Entre os últimos, encontram-se não só os solidaristas, mas também aqueles que, como Corragio (ibid), representariam uma quarta corrente, cujos agentes crêem que, através da interfase entre Estado e sociedade, a economia popular pode articular-se em torno de um projeto comum capaz de fazer frente aos outros setores econômicos. Seja como for, são as OEPs (como CCAP e AGP) que conseguiram uma rede significativa de parceiros, que – relativamente – apresentam maior estabilidade econômica e construíram um maior grau de organização interna. A lógica é que “os grupos [de produção] não podem viver por si mesmo”, assim, com a ampliação das redes associativas, existe a possibilidade de que os pequenos grupos transformem-se em um “grupaço” (Francisca/AGP)

Entre o homem econômico e o comunitário

Além da relação com os empresários, governos e instituições de apoio, o tipo de vínculo real com a comunidade local é um elemento a mais para a análise do nível de


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associatividade e do caráter das relações sociais e econômicas. Para isso, os critérios para definir quais os produtos/ serviços que serão oferecidos, os critérios para estabelecer os preços, o compromisso com a qualidade e os princípios para competir no mercado são alguns dos indicadores. Pudemos observar que, praticamente, são três os critérios para a definição dos produtos e serviços, a saber: a) os produtos/serviços são definidos considerando as possibilidades de atenderem às demandas do mercado em geral; ao estabelecer critérios que valorizam os resultados econômicos, o processo de produção tem como objetivo final a comercialização, independentemente de os produtos/serviços contemplarem ou não as necessidades dos setores populares que vivem na comunidade onde se situa o empreendimento; b) a partir de critérios explicitamente econômicos, a definição dos produtos/serviços tem como pressuposto que os mesmos venham a atender às demandas dos moradores da comunidade local, independentemente dos consumidores pertencerem ou não aos setores populares; e c) o empreendimento dá prioridade a produtos/serviços que atendam à demanda dos consumidores dos setores populares da comunidade local e de outras comunidades; a comercialização junto aos setores sociais de maior poder aquisitivo tem como objetivo a geração de renda para tornar viável o empreendimento e/ou para o investimento em atividades de caráter cultural e educativo junto à comunidade local Além de econômicos, os critérios para definição dos produtos e serviços são de ordem ética, política e social. Mesmo tendo em conta que no mercado capitalista são os setores favorecidos da sociedade aqueles que, como “cidadãos-consumidores” (Clanclini, 1995), desfrutam das riquezas produzidas, não podemos esquecer que também as classes populares se constituem como um mercado fundamental


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para garantir a acumulação do capital. Além do desafio de poder consumir os produtos e serviços básicos para sua manutenção (alimentação, limpeza etc.) tais setores também vivem o “sonho de consumo” de uma grande quantidade de quinquilharias que o sistema lhes oferece. Se, como disse Orlando Nuñez, “o primeiro mercado que uma economia popular tem que controlar e disputar na economia capitalista é precisamente o mercado da força de trabalho” (1995, p. 119), podemos considerar que um dos desafios das OEPs é relativizar sua forma de inserção e de competição no mercado, atraindo os consumidores de baixa renda. Mas se a lógica é resistir e não subsistir diante das investidas dos “abutres do mercado”, é preciso aprender a competir, sem que, necessariamente, a natureza das mercadorias produzidas sigam o mesmo jogo da lógica do consumismo e do desperdício. Diferentemente de definir o “útil” e a “utilidade” somente a partir da possibilidade de ser vendido (Mészáros, 1996), é interessante observar que nenhum dos cinco grupos investigados e tampouco as 61 organizações econômicas analisadas produzem o que poderia ser chamado de “bens supérfluos”. Conforme vimos anteriormente, embora não esteja presente nos discursos dos trabalhadores a preocupação quanto à importância de preservar a natureza e, tampouco, a crítica aos critérios utilizados pelos empresários na definição dos produtos, na prática, essas OEPs – com ou sem a perspectiva de atender aos consumidores dos setores populares – têm-se dedicado à produção daqueles produtos e serviços que, sem dúvida, constituem-se como “satisfatores” das necessidades reais da população: vestuário, casas, produtos alimentícios e de limpeza, transporte. A julgar pelo o que nos indicou Max Neef (1993) – o que está culturalmente determinado não são as necessidades humanas, mas os


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“satisfatores” destas necessidades —, podemos inferir que, quanto à definição de produtos e serviços, a cultura do trabalho nas OEPs anuncia relações econômicas e sociais sob outros parâmetros de convivência humana e o desafio é como contribuir para mudar a cultura dos moradores das comunidades locais quanto à importância de abandonar os “satisfatores” tradicionais, trocando-os por outros novos. Mesmo quando se privilegia como consumidores os integrantes da população que vive nos cinturões de pobreza, é preciso considerar que os meios de comunicação interferem nos valores das pessoas da comunidade que, em geral, envergonham-se de sua condição de classe e do local onde vivem. Para eles “roupa de retalhos é coisa de pobre (...) que o pobre só compra quando vê que está na loja, quando vê as pessoas da classe “alta” utilizar” (Neuza/AGP). Mesmo ganhando pouco, os setores populares “querem coisas de marca, e aí, até mesmo os [que vivem] dentro da favela, preferem comprar fora [da favela] (Nina/Oficina de Costura) Não tendo condições econômicas para adquirir as marcas famosas, são capazes de comprar produtos falsificados, desde que tenham a etiqueta da fábrica ou a grife da loja. Como “o pessoal [valoriza] a questão da marca [...] Muitas vezes a pessoa compra a camisa [no grupo de produção] e manda tirar a etiqueta” (Neuza/AGP); Evidentemente, é necessário enfrentar a lógica do mercado e, com ela, a própria cultura da comunidade que valoriza os produtos de “marca”, em detrimento daqueles oferecidos pela pequena produção comunitária. As formas de enfrentá-las tanto pode restringir-se à tentativa de convencer o consumidor da qualidade e do preço mais favorável, como também pode configurar-se por meio de um projeto cultural contra-hegemônico. No CCAP, por exemplo, os trabalhadores crêem que a venda de seus produtos, em si, não é suficiente nem satisfaz os objetivos do empreendimento. Nesse sentido, é parte in-


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tegrante do “programa de comercialização solidária” a promoção de atividades que desenvolvam nas comunidades locais uma nova cultura alimentar. Por exemplo “a comunidade não tinha o hábito de comer palmito; os [pequenos] produtores [agrícolas] tinham um bom palmito a um preço adequado. Tivemos que fazer um trabalho de divulgação para começar a comercializar” (Adelaide). Sendo lenta a mudança dos hábitos alimentares, consideram que é necessário diversificar os produtos, estimulando aqueles que ainda são desconhecidos e desvalorizados: farinha de arroz, de amendoim, folha de mandioca, etc. Até porque, geralmente, os que são mais valorizados são aqueles produtos que, sendo de baixa qualidade nutritiva, são envolvidos em embalagens atrativas e vendidos nos mercados tradicionais. Já na Oficina de Costura, embora os trabalhadores constatem que seus moradores favelados valorizem sobremaneira as mercadorias das vitrines dos shopping centers, ainda não encontraram outras formas para enfrentar o problema, restringindo-se a criticar as pessoas do lugar e a lamentar o fato de que ainda não tenham conseguido conquistar o “mercado da favela”. No caso de COOPARJ, especificamente, não são – e não podem ser – os moradores da comunidade os principais consumidores de parafusos, o que não significa que não possam eleger os pequenos comerciantes, inclusive aqueles que vivem nos arredores, como público consumidor preferencial. Na AGP, os grupos fazem estudos de mercado e discutem sobre o que vão produzir, porém, como reconhece a presidente da associação: “não sei se o que vai determinar [ o que se vai produzir] é a necessidade do mercado ou se é nossa necessidade de poder fazer alguma coisa que se possa vender” (Neuza). Referindo-se à confecção de uniformes, a trabalhadora explica: “a gente sabe que as escolas sempre tiveram uniforme, ou seja, essa necessidade sem-


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pre existiu. Isso quer dizer que o uniforme não é uma necessidade; é uma necessidade nossa de produzir. E os grupos estão produzindo e estão se saindo bem”. Antes, então, de tentar disputar um espaço no grande mercado, é necessário ter em consideração algumas questões como: o que é que os trabalhadores sabem produzir? Quais são suas habilidades e conhecimentos? Mesmo reconhecendo que há um mercado potencial para a venda do produto, a pergunta é se o custo da produção permite sua comercialização. Diferentemente do CCAP, em geral, os demais grupos não privilegiam nenhum público específico; o mercado de consumidores é muito variado, dependendo de “quem está precisando, dependendo do que a gente faz” (Neuza/AGP). A demanda pode proceder de uma fábrica, de um shopping, de uma igreja, de um sindicato de trabalhadores ou de qualquer entidade dos movimentos populares. Para Dina (Oficina de Costura), “depende do que vão pagar. Se o shopping paga melhor, a gente vai pegar o trabalho do shopping”. O fato é que, em última instância, o que vai determinar a definição dos produtos não é a necessidade da comunidade e, sim, a necessidade dos trabalhadores de garantir sua sobrevivência, considerando a capacidade produtiva do grupo e um preço que seja rentável no mercado. Em outras palavras, “se o grupo tivesse que viver das necessidades da comunidade, não sobreviveria, já que não atende às necessidades da comunidade” (Neuza/AGP). Ou seja, na definição dos produtos e serviços nem sempre são contempladas as necessidades reais dos setores populares e/ou a perspectiva de mudança dos “satisfatores”, mas a necessidade real da OEP para inserir-se em um determinado mercado – mercado este que, devido às dificuldades impostas pela sociedade, fica geralmente restrito à população de baixa renda.


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Contraditoriamente, este mercado, onde as pessoas possuem baixo poder aquisitivo, não é suficiente para que se garanta o êxito do empreendimento. Os critérios para estabelecer os preços dos produtos também vão variar, de acordo com as próprias condições objetivas impostas por uma sociedade de mercado, mediados pelos níveis de compromisso com a comunidade local: a) priorizando a necessidade de cobrir os custos e obter excedentes, os preços são estabelecidos tendo como referência aqueles que estão vigentes no mercado regional ou local; b) tendo em conta a importância de cobrir os custos e obter excedentes, os preços são estabelecidos tendo como referência os preços do mercado regional ou local, no entanto, há uma certa flexibilidade em relação ao tipo de consumidor que se pretende alcançar; de toda forma, o consumidor que se privilegia é aquele que melhor pode pagar; c) sem desconsiderar os preços no mercado em geral e a necessidade de cobrir os custos e obter excedentes, os preços têm como referência o poder aquisitivo das camadas populares que vivem nas comunidades onde está localizado o grupo; e d) com o objetivo de apenas cobrir os custos do empreendimento, busca-se o “preço justo”, levando em consideração a viabilidade econômica do empreendimento e o poder aquisitivo das comunidades locais. Os possíveis excedentes são revertidos em atividades que têm como objetivo o desenvolvimento das relações do grupo com a comunidade local. A luta pela diminuição dos custos é uma finalidade das empresas capitalistas e também das organizações econômicas populares. Cobrir os custos é, evidentemente, uma condição sine qua non para que os trabalhadores possam prosseguir com o empreendimento, mas a questão é como “competir” ou “sobreviver” no mercado, de maneira que isso não signifique a exploração do trabalho e, tampouco, a explora-


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ção do consumidor. Algumas OEPs, ao não terem como público-alvo os consumidores da população de baixa renda, definem os preços a partir da análise de um mercado, em geral, abstrato. Outras, têm como objetivo a construção de um mercado solidário, que favoreça o “preço justo” nas relações de intercâmbio com as comunidades locais. Não obstante, como enfatizou um trabalhador do CCAP, o “preço justo” não é necessariamente “justo”, mas é o “preço possível” – possível no sentido de não permitir a quebra da organização econômica. Muitas vezes é preciso divulgar na embalagem de arroz e feijão do “Produto Livre”, que “comprando este produto você está contribuindo para a melhoria de qualidade de vida das famílias dos pequenos agricultores”. Como constata Dina (Oficina de Costura), alguns consumidores, sabendo que estão comprando em “um espaço comunitário, querem comprar por um preço menor, desvalorizando o trabalho da gente”. Para os produtores associados do CCAP, é justo que o empreendimento não sucumba frente à perversa lógica do mercado, mas também é justo que a comunidade local possa ter acesso aos produtos essenciais para sua sobrevivência. Devido a que não se pode “confundir uma experiência de geração de trabalho com filantropia e caridade” (Leonídio), é necessário calcular um valor que, ao menos, cubra os custos, consiga competir com os comerciantes locais e que seja acessível à população que vive nas favelas. Os cursos de formação sobre viabilidade econômica contribuem para que se reconheça a necessidade de buscar um método para estabelecer os preços das mercadorias. Tratando-se de um processo de trabalho baseado em relações solidárias, tal método não pode reproduzir a lógica capitalista em que o lucro é resultante do trabalho excedente, não pago – questão que representa um processo de descoberta


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para os trabalhadores. Como afirmou Neuza/AGP, “nós já descobrimos por que as empresas conseguem vender barato: porque quanto maior quantidade, mais barato”. Para os 23 grupos associados à AGP, se antes o preço era o resultado do valor da matéria-prima multiplicado por dois, agora ele é determinado pelo custo da matéria-prima, da manutenção das máquinas e equipamentos, adicionado do valor da força de trabalho (Como vimos anteriormente, o valor da força de trabalho é calculado em função da remuneração mínima que se deseja alcançar – valor este que só se confirma depois da comercialização da mercadoria). Embora o preço estabelecido permita que os moradores da comunidade possam consumir os produtos e serviços, o nível de consumo não é suficiente para garantir a estabilidade do empreendimento. Assim, mesmo quando existe um mercado solidário interno, quase natural, entre alguns grupos produtores, a lógica é que, nas relações entre produtores e consumidores-não-produtores, de uma maneira geral, ainda predomina a lógica de valorizar “quem pode pagar” (que, certamente, não é a população que vive nos cinturões da pobreza). Como constata Neuza, da AGP, não há como os grupos de produção sobreviverem se as pessoas passam a privilegiar a comunidade local como público consumidor, pois, como ela diz, “trabalhar para pobre é pedir esmola duas vezes”. Se as pessoas das comunidades onde estão situados os empreendimentos “cumprem” com seu papel de consumidores, não é necessariamente porque os preços são “justos” ou acessíveis, mas porque – em comparação com o mercado em geral – são os “preços possíveis” para adquirir os produtos/serviços. Para uma população que, quando muito, recebe entre um e dois salários mínimos, a saída é buscar no mercado os produtos mais baratos que, não necessariamente, são acessíveis.


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É preciso que o empreendimento econômico obtenha resultados positivos. Para isso é preciso garantir a viabilidade econômica do empreendimento, estabelecendo critérios para competir no mercado – os quais podem ser classificados em quatro tipos, não excludentes: a) aceitar um “contrato” de terceirização, embora isso represente submeter-se à exploração; b) garantir a qualidade dos produtos; c) aumentar a jornada e a intensidade do trabalho, sem que isso represente abdicar da qualidade de vida no trabalho; e d) não competir no mercado interno das favelas e/ou dos bairros populares. Considera-se que a qualidade dos produtos e serviços tem seus limites, já que a possibilidade de adquirir ou não boas matérias-primas interfere no custo final da produção. “Se baixamos os preços, vamos criar sérios problemas financeiros para a cooperativa” (Alcântara/COOPARJ). De qualquer forma, a honestidade é um valor fundamental que orienta a relação com o consumidor. Assim, quando não é possível competir no preço, é preciso competir com a qualidade dos produtos, pois, se “for ordinário, [a pessoa] vai comprar em qualquer lugar” (Nina/Oficina de Costura). Além disso, como disse outra trabalhadora, “se queremos competir no mercado, não podemos também competir na exploração” (Neuza/AGP). Se o excedente tampouco pode resultar da exploração da força de trabalho, terá de ser o resultado de um intenso processo de trabalho que favoreça uma comercialização com preços satisfatórios tanto para os produtores como para os consumidores. Em outras palavras, “trata-se de buscar eliminar não só a exploração do trabalhador, através da supressão da mais-valia, mas também do consumidor, através dos preços extorsivos” (Arruda, 1996, p. 43), sem que isso represente uma relação assistencialista com a comunidade e, muito menos, o descompromisso com a qualidade do produto.


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Evidentemente, dependendo de qual seja a fatia do mercado que os trabalhadores desejam conquistar, isto é, dependendo de quem sejam os consumidores que os trabalhadores associados vão privilegiar, a qualidade do produto – propriamente dita – pode concretizar-se a partir de dois critérios: a) levando em conta a necessidade de preservar o mercado em geral, só se abre mão da qualidade dos produtos/serviços quando os consumidores diretos ou atravessadores, em busca do baixo preço, assumem a responsabilidade quanto à encomenda de mercadorias produzidas com matéria-prima de baixa qualidade; e b) não se abre mão da qualidade tendo em vista não só a necessidade de preservar o mercado, mas também a honestidade na relação produtor-consumidor e, fundamentalmente, o direito político dos consumidores pertencentes aos setores populares de adquirir bons produtos. É preciso considerar que o conceito de qualidade, como todos os conceitos, é um construtor gerado pelas relações sociais que se configuram em determinado contexto histórico. Hoje, o chamado “controle de qualidade” foi substituído pela “qualidade total”, entendida como um conjunto de métodos de produção, um conjunto de características da matéria-prima e do processo de comercialização capazes de garantir a satisfação do consumidor. Para o empresariado, um determinado produto apresenta “qualidade” quando o tempo socialmente necessário para a produção, o tempo necessário para o consumo e, conseqüentemente, o tempo de retorno do capital investido for o menor possível. “Qualidade total” é, assim, definida pelo capital, na perspectiva do mercado e do retorno do mercado, e não das necessidades dos seres humanos. É comum as pessoas comentarem que a pequena produção e, em especial, a produção comunitária, não apresenta qualidade. No entanto, por parte dos trabalhadores, há


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uma constante preocupação quanto ao assunto: “a prioridade é a qualidade [...] Não somos grandes, então em nossas vendas, a responsável será a qualidade” (Nina/Oficina de Costura). Se a possibilidade de comercialização tem como condição a qualidade dos produtos e serviços oferecidos, é preciso lembrar que, “mesmo sendo um mercado de favela, é um mercado exigente. O vizinho da favela, com poucos meios econômicos, quer um preço acessível em um produto de qualidade. Não quer comprar qualquer coisa. É pouco [o que vai comprar], mas pouco com qualidade” (Cláudio/CCAP, in Capina, 1996). Para manter-se no mercado é necessário não comprometer a marca do produto; embora não consigam sistematizar uma metodologia e as forças produtivas não sejam suficientes para garanti-lo, acreditam que um produto de qualidade contenha características de um produto que não seja descartável, que seja durável e que tenha um bom preço, em comparação com o mercado. Poderíamos argumentar que este é também o discurso de todos os empresários, os quais ocultam que a taxa de utilização decrescente da mercadoria é o que provoca o incremento do consumo (Mészáros, 1996). No entanto, temos de reconhecer que a qualidade, para os trabalhadores associados é definida sob outros critérios – embora não explícitos. Embora duvidem da lógica que move os empresários, os quais oferecem mercadoria “cada vez mais defeituosas e descartáveis”, o fato é que os trabalhadores associados adquiriram conhecimentos adquiridos via “pedagogia da fábrica”, que lhes possibilitam “registr[ar] todos os tipos de defeitos que podem aparecer [...] No dia-adia, isto já está no nosso sangue” (Alcântara/COOPARJ). Como nas empresas capitalistas, também nas OEPs alguns trabalhadores advertem que “qualidade não se controla, se faz”. Ou seja, a qualidade não está sob a responsa-


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bilidade de um técnico, mas do conjunto dos trabalhadores; a diferença é que “agora não temos hierarquia. Aqui todo mundo é responsável pelo que faz” (Gilberto). Como constatou outro trabalhador da COOPARJ, na empresa capitalista “tem muito controle e por causa da pressão, fugia a qualidade. Era um corre-corre. Agora... devagarinho, a gente o faz perfeito [...] todo mundo se fiscaliza mutualmente, como uma maniera de ajudar para que saia uma produção de primeira” (Antônio). Dito de outra maneira, a qualidade do produto tem como requisito o controle do trabalho pelos trabalhadores, como critério de qualidade do processo de produção que, em última instância, é parte constitutiva da qualidade de vida mesma no interior da unidade econômica. Como disse Nina (Oficina de Costura), “às vezes a questão da quantidade cega a vista, e isso é trabalho escravo (...) Se são feitas quatrocentas peças por dia, ao término de um ano, essa pessoa está acabada”. Um dos aspectos que contribuem para analisar como os trabalhadores concebem a qualidade e em que medida tentam garanti-la é a observação do tipo e a amplitude da relação que estabelecem entre si os produtores e consumidores, a qual podemos assim sintetizar: a) a relação produtorconsumidor restringe-se a um “bom atendimento” no ato da comercialização das mercadorias, independentemente de que os consumidores pertençam ou não à comunidade local; b) o “bom atendimento” extrapola a comercialização, a relação produtor-consumidor se mantém, de maneira informal, no cotidiano da comunidade local; c) além de um “bom atendimento” no ato da comercialização, a relação produtor-consumidor materializa-se informalmente no cotidiano da comunidade local e/ou por meio das atividades de cunho associativo, educacional ou cultural, desenvolvidas pelo grupo junto aos moradores; d) a relação produtor-consumidor é


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estabelecida por meio de redes de comercialização, capacitação e de outras instâncias de solidariedade entre diferentes grupos de produtores e consumidores pertencentes aos setores populares urbanos de diferentes comunidades; e, e) as redes de comercialização extrapolam a área urbana, criando diferentes tipos de relação de solidariedade entre produtores e consumidores pertencentes aos setores populares do campo e da cidade. Mesmo que os trabalhadores não vivam nos arredores do empreendimento, em maior ou menor grau, eles se tornam parte integrante do espaço físico e subjetivo da comunidade. Ora, embora os excedentes se expressem em termos monetários, não necessariamente representam benefícios econômicos significativos para os integrantes das OEPs. Para os trabalhadores, o fato de serem moradores da comunidade pode representar a economia com gastos de transportes e, ainda, permitir que os mesmos possam ter um horário flexível, conciliando o trabalho doméstico com a atividade produtiva. De parte da população consumidora, os benefícios podem expressar-se pelo incremento quantitativo e qualitativo do consumo por meio de um serviço constante que lhe permita o acesso a produtos de baixo custo e de melhor qualidade, etc. Podemos observar que a relação com o consumidor pode esgotar-se ao final do processo de comercialização, o que pressupõe o risco de os trabalhadores confirmarem a má qualidade do produto só no caso de uma posterior reclamação por parte do consumidor (ou porque ele não volta para comprar). Se, de um lado, estas práticas não significam, necessariamente, um descompromisso em favorecer ao consumidor a realização de seu direito político de obter um produto de qualidade, de outro, embora a intenção da honestidade permaneça, as práticas meramente comerciais provo-


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cam uma relação superficial com a comunidade. Mas, quando a relação entre produtor e consumidor não termina depois da comercialização, tanto o primeiro como o segundo recuperam as outras dimensões da convivência humana: à preocupação com respeito à qualidade do produto e do “bom atendimento” soma-se uma preocupação com o outro, com o homem mesmo, com a comunidade. Referindo-se às tendências contraditórias de solidariedade e individualismo, Orlando Nuñez constata que, na Nicarágua, “as famílias campesinas são mais solidárias no interior da comunidade que frente ao mundo externo” (1995, p. 131). No caso das OEPs, pudemos constatar que, quando os trabalhadores associados vivem no lugar onde está localizado o empreendimento, a relação entre produtor e consumidor pode se tornar a extensão da relação morador-morador, onde ambos compartem o mesmo espaço físico e subjetivo da comunidade (Max-Neef, 1986). Em outras palavras, a relação produtor-consumidor converte-se em uma relação homem-homem, a partir de outras dimensões e horizontes. E na perspectiva da formação de um mercado solidário, as relações de convivência podem ultrapassar os limites geográficos da comunidade, pela constituição de redes mais amplas de solidariedade e pelo fortalecimento da economia popular, envolvendo novos trabalhadores e moradores de outras comunidades próximas ou distantes. Na COOPBONDE, por exemplo, além de serem indicadas a limpeza e a assiduidade como critérios de qualidade, outro critério é a qualidade da convivência humana entre os trabalhadores e os moradores do bairro de Santa Teresa, que utilizam o bonde. Acreditam que a “qualidade total” somente pode estar garantida se ela for controlada pela população, se conseguirem organizar um conselho comunitário composto por moradores e cooperativados, com a


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finalidade de estabelecer os objetivos do empreendimento, as prioridades e o controle dos gastos. É, como disse Cláudio: “em Santa Teresa, não somos considerados só como trabalhadores, mas também como moradores”. Ou seja, algumas vezes, os critérios de qualidade das OEPs vão além dos critérios de “qualidade dos produtos”, abarcando também as práticas e os valores que, no horizonte de uma melhor qualidade de vida, possam dar novo sentido ao trabalho. Para os trabalhadores associados, qual é o significado da comunidade nas relações de mercado? A realidade é que não necessariamente existe um vínculo entre OEPs e a comunidade no sentido de que o consumidor dos setores populares possa recuperar, frente aos trabalhadores, sua dimensão de cidadão. Em síntese, pudemos observar variados níveis de inserção dessas unidades econômicas na comunidade, quais sejam: a) aquele que se caracteriza pela não-existência de nenhum tipo de interação com a comunidade local. Nem mesmo seus integrantes vivem no local onde se situa o empreendimento. A opção pelo lugar se dá em função das condições objetivas que são tidas como favoráveis para o início da atividade econômica; b) um tipo de inserção no qual os integrantes do grupo não são, necessariamente, moradores da comunidade onde está localizado o empreendimento. Devido à especificidade das atividades, os trabalhadores associados interagem informalmente com a população local no dia-a-dia do processo de produção, buscando criar canais de comunicação e participação que fortaleçam a relação com a comunidade que consome os produtos e os serviços oferecidos pela organização econômica; c) uma inserção na qual a relação com a comunidade local se restringe à lógica de privilegiar as pessoas que vivem no bairro para participarem como integrantes do empreendimento, tendo como propósito a geração de renda para uma parte da co-


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munidade. A interação com os demais moradores se resume a uma relação produtor-consumidor, de caráter comercial; d) uma inserção de outro tipo que, além de contribuir para gerar renda para uma parte da população que trabalha no empreendimento, assenta-se numa interação com a comunidade local que vai além de uma relação meramente comercial. A comunidade também se apropria, indiretamente, das riquezas produzidas, seja através da formação de um mercado solidário, seja através de sua participação em atividades educativas e culturais, promovidas pelo grupo ou em conjunto com outras organizações dos movimentos populares; e d) um tipo de interação com a população que extrapola o espaço físico da comunidade onde está localizado o empreendimento, estabelecendo relações socais e econômicas entre os diferentes grupos de pequenos produtores do campo e da cidade. Pensamos que é preciso compreender a “comunidade” não só como um espaço físico mas, fundamentalmente, como um lugar de convivência entre diferentes grupos sociais que, de alguma maneira, identificam-se em função de algumas características comuns a respeito da cultura, dos costumes e do modo pelo qual buscam satisfazer suas necessidades econômicas. Assim é necessário analisar em que medida a produção associada é, de fato, “produção comunitária”, não esquecendo que “por mais que nós queiramos a transformação, temos que nos lembrar que estamos em um mercado capitalista, e isso tem que ser considerado” (Neuza/ AGP).


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Os trabalhadores e a “nova” base técnica da produção Sobre as OEPs que estudamos, cabe lembrar que optamos pela análise daquelas cujos atores pertencem às camadas mais empobrecidas dos setores populares. Na sua grande maioria, são trabalhadores que, por não terem conseguido dar uma forma “culta” a seus diferentes saberes sobre o mundo, desempenham atividades que em nossa sociedade são consideradas de “baixo nível de qualificação”. As experiências estudadas indicam-nos que a grande maioria dos trabalhadores associados conseguiram freqüentar a escola somente até completar a primeira fase do ensino fundamental, o que permite-nos trazer à superfície a problemática do binômio trabalho-educação, tendo como referência uma realidade que, embora particular, ilustra a situação dos trabalhadores que habitam nos principais centros urbanos brasileiros (na verdade, de uma imensa quantidade da população que tem apenas quatro anos de escolaridade). Embora no processo de organização do empreendimento levem em conta determinada habilidade e as capacidades de trabalho desenvolvidas anteriormente por seus integrantes, é no cotidiano da produção onde os trabalhadores têm desfrutado do direito de ampliar e articular os diferentes saberes que a divisão capitalista de trabalho fragmentou. Nosso estudo também ilustra uma realidade: mesmo que a escolaridade da maioria dos atores da economia popular seja de “nível inferior” (Francisca/AGP), o próprio processo de trabalho – como a principal instância de aprendizagem de novos conhecimentos e habilidades – faz com que as pessoas possam passar “pela faculdade, sem nunca terem ido lá” (Neuza/AGP).


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O que significa esta “faculdade”? Quais são seus conteúdos?

Quando a máquina começa a trabalhar melhor

Para os trabalhadores que não conseguiram permanecer na escola e que, devido à divisão social do trabalho, não desempenham em nossa sociedade a “função de intelectuais” (Gramsci, 1982), a relação trabalho-educação se configura a partir de duas instâncias distintas e complementares: os convencionalmente denominados processos educativos informais e formais12. A primeira instância corresponde àqueles momentos que se plasmam ao longo do cotidiano de trabalho, nas relações que os trabalhadores estabelecem entre si ao longo do processo de transformação da matériaprima em produto final. Tratando-se de uma atividade humana, claro que nesses momentos estão presentes tanto os aspectos intelectuais como manuais do trabalho. Para dominar a máquina, é preciso desenvolver o sistema muscularnervoso de maneira a adaptar o esforço físico ao ritmo e intensidade da produção. Dominar a máquina também requer ação e, às vezes, decisão, exigindo um determinado grau de reflexão sobre o que fazer, sobre como resolver os imprevistos, como prosseguir... Como enfatiza Jairo (COOPARJ), “todos os dias estamos aprendendo uma coisa 12

Depois de argumentar que os conceitos de economia formal e informal não dão conta de explicar a diversidade das atividades e das relações sociais (Capítulo 2), parece-nos contraditório referirmo-nos a processos educativos “formais e informais”. Embora concebamos a educação como um processo mediador da formação humana, faltam-nos adjetivos para denominar as diversas instâncias das relações sociais onde ela se plasma.


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nova, pois uma pessoa nunca sabe de tudo. Temos que estar sempre crescendo, no dia-a-dia, com a máquina. A própria máquina te ensina, vai te aperfeiçoando. Não páras de aprender e crescer”. Sem dúvida “é necessário ter vontade de vencer”, mas não basta “só aprender a manejar a máquina” (Nina/ Oficina de Costura). Embora seu manejo exija momentos inseparáveis de ação e reflexão, também é necessário aprender com outras instâncias da vida: nas assembléias, nas relações com os moradores, com as instituições de apoio, com os movimentos populares e com a sociedade em geral. Por certo, da atividade laboriosa fazem parte as relações que os trabalhadores estabelecem entre si e com outros homens, as quais contribuem para ampliar seus saberes e para confrontar seus valores em relação à política, à economia e outras questões relativas às relações sociais de convivência. Daí que alguns trabalhadores começam a perceber que o trabalho ultrapassa a própria produção de bens materiais. Até mesmo conversar com os pesquisadores é trabalho pois, “embora as máquinas estejam paradas, é trabalho, uma vez que tem como objetivo melhorar a cooperativa” (Evaldas/ COOPARJ). Seja na “boca da máquina”, seja na “boca do mundo”, o trabalho é princípio educativo, impulsionando a produção de novos conhecimentos e valores, não só na busca de formas mais eficazes de produzirem, mas também de se relacionarem com o mundo. A segunda instância educativa corresponde aos processos de produção e socialização de conhecimentos, cujos espaços favorecem a ênfase e a preponderância da atividade intelectual em detrimento do esforço muscular-nervoso. Já não se trata de uma atividade intelectual qualquer, mas de um esforço intelectual, premeditado, cujo objetivo é sistematizar e “formalizar” os antigos e novos saberes. Uma vez


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que a práxis pressupõe um vínculo dialético entre ação e reflexão, a pedagogia da produção associada abre caminhos, em diversos níveis, para que os trabalhadores transformem os novos conhecimentos em novas práticas de trabalho e em novas práticas sociais. Ou seja, embora o objetivo seja o construir uma nova ação, a atividade intelectual configurase como uma reflexão sobre a ação. Talvez seja por isso mesmo que Alcântara reconheça que, na COOPARJ, “as pessoas que têm cursos técnicos são totalmente diferentes das outras (...) no modo de pensar e agir.” Isso também se verifica ao término dos cursos de capacitação promovidos pelos parceiros, seja pelas organizações não-governamentais e outras instituições de apoio, seja pela AGP, a qual que também se propõe a promover a formação dos trabalhadores associados. Também nestes momento, a prática produtiva cotidiana é fonte de inspiração. Para sobreviver, é preciso aprender o mais rapidamente possível. Assim, na pedagogia da produção associada, o trabalho é princípio e também fim educativo. A ação e reflexão – como atividades inseparáveis – representam o próprio ser dos homens e, portanto, são intrínsecas ao trabalho humano. Pelo fato de a atividade humana também manifestar-se por meio da produção de conhecimentos (formulação de hipóteses, conceitos...), pode-se afirmar que a distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual resulta de determinadas relações sociais que se verificam durante o processo de trabalho. Sobre a fábrica capitalista, Kuenzer enfatiza que, se o operário se restringe ao processo pedagógico em seu interior, “dificilmente terá acesso aos instrumentos teórico-metodológicos e ao saber socialmente construído que lhe permita compreender as relações sociais das quais faz parte e superar sua situação de classe” (1986, p. 189). Confirmando o que diz a autora, Edgar


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(COOPBONDE) constata que “antes, quando não existia a cooperativa, o chefe tinha seus conhecimentos técnicos mas não dividia com a gente”. Quanto aos objetivos da formação profissional promovida pelos antigos proprietários dos meios de produção, hoje pertencentes aos trabalhadores da COOPARJ, Alcântara também constata que, ao invés de “ter cursos para beneficiar as pessoas [...], o objetivo deles era dar um curso para fortalecer a fábrica”. Não há como negar que os saberes técnicos adquiridos/produzidos na fábrica capitalista e no setor formal do trabalho, em geral, são um dos fatores que permitem dominar as técnicas de trabalho e potencializar a capacidade empreendedora dos atores da economia popular. No caso da COOPARJ, em que a totalidade de seus integrantes são exempregados de uma antiga fábrica de parafusos, mesmo que nela o trabalho seja “ainda o mais primitivo e degradado” (Gramsci, 1978, p. 8), é fonte de saber. Isso explica por que, apesar das limitações impostas por uma estrutura de sociedade que não lhe permitiu permanecer na escola o tempo necessário para completar sua educação básica, o trabalhador seja capaz de “pegar” uma empresa fechada e abri-la novamente: “porque é ele quem trabalha. Não é o dono, [o empresário] quem faz com que a empresa trabalhe” (Jairo). As experiências anteriormente vividas contribuem sobretudo, para que os trabalhadores possam, em maior ou menor grau, criar as condições para que se tornem “senhores de seu trabalho”. A bagagem de conhecimentos e habilidades por eles adquiridas é um dos elementos que tem impulsionado a sua organização e os ensinamentos políticos também têm sido muitos, uma vez que propiciam uma visão mais clara do tipo de relação que pretendem estabelecer. A experiência da COOPARJ indica-nos que por terem vivido in locus um processo produtivo sob a exploração do traba-


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lho, os trabalhadores adquiriram não só os conhecimentos básicos para reproduzir a qualidade dos parafusos Águia (a “falecida”, como dizem eles), mas também para discernir o que é um processo produtivo que contribui para a exploração e fragmentação do trabalhador. Não por falta de motivos, com certeza, chegaram à conclusão de que não deveriam aceitar a proposta feita por um empresário, de tornarem-se sócios da cooperativa. Afinal, não valia a pena “substituir um patrão por outro” (Alcântara). Nas OEPs, o trabalho tem-se desenvolvido sob determinadas relações que, embora representem um avanço com respeito ao processo capitalista, não são autônomas e, tampouco, podem estar à margem das relações sociais mais amplas que tentam separar o que é inseparável: ação e reflexão. Mas quando, ao longo de suas vidas, as pessoas foram “educadas para serem empregadas” (Neuza/AGP), pode-se indagar: qual é a potencialidade desses empreendimentos populares no sentido de promoverem processos educativos que superem a “pedagogia da fábrica”, de maneira que todos possam tornar-se protagonistas do mundo do trabalho e da vida em sociedade? Parece-nos acertado considerar que, para responder tal a questão, levemos em conta o tipo de tecnologia que utilizam, como se relacionam com a maquinaria, como se relacionam com os companheiros de trabalho e com os moradores da comunidade, sem deixar de considerar que os canais de participação e a forma mesma como está estruturada a divisão do trabalho interferem nos processos de socialização e produção de conhecimentos. Obviamente, é necessário que o trabalhador possua um conjunto de condições físicas e mentais para o desenvolvimento de determinadas atividades inerentes ao processo de trabalho. Variando historicamente, sua capacidade de tra-


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balho altera-se de acordo com a quantidade e qualidade dos meios utilizados para produzir e com a forma como se organiza técnica e socialmente a produção. No Programa de Comercialização Solidária, por exemplo, as pessoas acreditam que é “a simplicidade operacional que permite que todos os membros do grupo possam atender, acompanhar, opinar e fiscalizar toda a operação realizada” (folheto CCAP) – o que nos leva a reafirmar que a qualificação dos trabalhadores deve ser compreendida tendo em conta os diferentes níveis de desenvolvimento tecnológico das unidades produtivas. À primeira vista, esses processos tecnológicos podem ser classificados como de “baixo nível”, se tivermos como referência a atual tecnologia de ponta, baseada na automação flexível. De maneira sintética, podemos observar que a qualificação dos trabalhadores associados corresponde ao grau de desenvolvimento tecnológico das OEPs, o qual pode apresentar as seguintes características: a) os instrumentos de trabalho, de acordo com os objetivos da produção, permitem somente o desenvolvimento de trabalhos manuais/artesanais. A ampliação da escala de produção não depende da melhoria da qualificação dos trabalhadores, mas da demanda do próprio mercado; b) não acompanhando a atual fase de desenvolvimento tecnológico, as máquinas e equipamentos não permitem a flexibilidade da produção, mas são compatíveis com os objetivos do grupo. A possibilidade de ampliação da escala de produção tem como pré-requisito a reorganização da linha de produção, do layout do empreendimento e/ou de uma melhor qualificação dos trabalhadores; e c) as máquinas e equipamentos não acompanham a atual fase de desenvolvimento tecnológico e, estando aquém dos objetivos do grupo, não permitem a flexibilidade da produção e o desenvolvimento das potencialidades dos trabalhadores para ampliar a capacidade produtiva do empreendimento.


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Como referimo-nos anteriormente, a tecnologia não se reduz às máquinas e equipamentos, mas também diz respeito à forma como os trabalhadores se organizam na produção, considerando os diversos tipos de qualificação que são exigidos para o desenvolvimento das diversas etapas do processo. Tanto nas OEPs como em qualquer outro processo produtivo, a tecnologia adquirida representa a síntese do nível de sofisticação dos meios de produção, em sua relação intrínseca com o grau de qualificação dos trabalhadores em um determinado contexto da divisão do trabalho. Mas é evidente o fato de que as máquinas e os equipamentos sofisticados não estejam presentes no ambiente de trabalho das OEPs. Se conseguissem um maior grau de desenvolvimento, aumentariam a escala de produção e a possibilidade de competição no mercado, mas a verdade é que as condições objetivas não permitem que façam grandes investimentos nos meios de produção, o que exigiria também investimentos em processos de requalificação profissional. Teríamos de considerar que – mesmo com a introdução de inovações tecnológicas – a possibilidade do aumento do nível de produtividade estaria condicionada a critérios (por eles estabelecidos) quanto à competição no mercado. Um desses critérios seria o de não abrir mão da qualidade de vida no próprio processo de trabalho. Como já havia falado Nina (Oficina de Costura), “às vezes a questão da quantidade cega a vista, e isso é trabalho escravo [...] É ganhar uma grande quantidade de dinheiro, mas trabalhando muito a um ritmo alucinante. Se faz 400 peças por dia, ao cabo de um ano essa pessoa está arrasada”. De qualquer maneira, podemos inferir que, embora os trabalhadores associados utilizem instrumentos rudimentares de trabalho (o que não significa necessariamente uma opção, mas uma condição imposta pela própria realidade), o


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relevante é que estes instrumentos parecem estar, em geral, em sintonia com os objetivos das atividades produtivas que eles pretendem desenvolver. Independente do tipo de maquinaria que utilizem, o importante é o desenvolvimento de relações sociais que garantam a apropriação coletiva dos frutos do trabalho. Daí que Elpidio (COOPARJ) não tenha problema em ser um trabalhador polivalente: “eu trabalhava com sete máquinas, aqui eu posso trabalhar em quatorze, mas o lucro é nosso.” Significa dizer que, com a utilização ou não de maquinaria sofisticada, o que determina o movimento de qualificação e desqualificação do trabalhador não é a máquina em si, mas a forma como se organiza socialmente a produção e, com ela, as relações em que o trabalhador se produz. Por isso, talvez, Nina insista em perguntar às trabalhadoras da Oficina de Costura: “Será que você está fazendo do seu trabalho um meio de vida ou de morte?” Enquanto não conseguem ter acesso aos processos informatizados, os trabalhadores associados seguem construindo e reconstruindo – à sua maneira – um processo produtivo, cuja dinâmica de trabalho tenta quebrar a rigidez da maquinaria. Mesmo não vivendo da automação flexível, esta própria dinâmica tem propiciado o movimento de qualificação (e não de desqualificação) do trabalhador. Mesmo com uma base técnica “atrasada”, as formas de organização da produção têm impulsionado mudanças relativamente significativas para a superação da dicotomia trabalho manual-trabalho intelectual. Há, na verdade, uma organização e divisão do trabalho em que a diminuição dos níveis de hierarquia tem como pressuposto a não-diferenciação entre trabalhadores diretos e indiretos: embora cada um tenha a sua função, “até mesmo quando vai comprar o alumínio para fazer o parafuso, todo mundo interfere” (Alcântara/ COOPARJ)


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Nas organizações econômicas populares, a “nova base técnica” não tem a automação flexível e, tampouco, a “modernidade” da administração capitalista como fontes de inspiração. Mesmo utilizando-se de meios “rudimentares”, a base técnica torna-se “nova”, à medida que os trabalhadores ensaiam uma maneira de produzir suas necessidades materiais e espirituais a partir de novos parâmetros de convivência. O novo está, exatamente, na qualidade das relações sociais de produção que são estabelecidas. Talvez por isso seja praticamente unânime, entre os integrantes dos empreendimentos, que o trabalho assuma um novo significado. Além de não ter de “dar satisfação ao patrão” (Francisca/ AGP), o trabalhador traça um novo jeito de trabalhar que seu novo significado enraíza na possibilidade de dominar a máquina, em vez de ser dominado por ela (Kuenzer, 1986). Como disse Paulo (operador de máquinas da COOPARJ), diferentemente do que ocorria na fábrica anterior, agora “temos liberdade no trabalho [...] trabalhamos com a cabeça fria [...] Adoro o que faço. A máquina comigo está trabalhando melhor”.

Socialização do trabalho e de outras instâncias de produção do saber

É interessante observar como é contraditório o processo (e o produto) da formação dos trabalhadores. Na COOPARJ, por exemplo, não é preciso fazer discursos em defesa da solidariedade, parecendo não haver grandes preocupações quanto às questões econômicas e políticas do país ou do mundo globalizado. Estando os trabalhadores mais preocupados com os problemas internos do empreendimento, conseguem, na prática, relações horizontais, de maneira que:


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“aqui, todo mundo é a mesma coisa; ninguém é mais do que ninguém. Todo mundo é responsável pelo que faz, todo mundo controla a qualidade, todo mundo ajuda o outro (Sidnei). Evaldas acrescenta que se um tiver que varrer, varre... Se o setor de finanças tem que empacotar, empacota. Não tem nenhum problema!”. Embora reconheçam que, na pedagogia da produção associada, “a educação fique relegada a segundo plano”, as práticas cotidianas revelam uma estrutura de divisão de trabalho baseada em novos parâmetros de relações sociais. O mais significativo é que a participação do conjunto dos trabalhadores no processo de produção e socialização dos conhecimentos independe da criação de comissões ou de outras instâncias formais de comunicação e de educação, mas é garantida, informalmente, no cotidiano de trabalho. É certo que pregar a bondade, a solidariedade e a união de todos não é suficiente para que uma nova realidade se materialize. Na Oficina de Costura, percebe-se que o grupo ainda não conseguiu que a solidariedade se torne um valor orientador das relações de trabalho. Se, de um lado, o objetivo é que as pessoas possam desenvolver relações de convivência nas quais “o ser humano possa liberar o que tem de melhor”, na prática “há muita gente que vem aqui fundamentalmente por causa da ‘cestinha’ [cesta básica distribuída pela Ação da Cidadania]” (Nina). Ao que parece, quando os grupos começam seus empreendimentos a partir de uma solidariedade que se plasma por uma doação “de cima para baixo”, a tendência é a preservação da expectativa de mais doações, do espirito de conformismo e espera. Quando a solidariedade é uma proposta vinda “de fora”, em geral, “não existe o espírito comum de aprendizagem.” A divisão do trabalho, tendo como critério as habilidades específicas, parece também manifestar a divisão entre os


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trabalhadores “de cima” (oficina industrial) e os “de baixo” (oficina artesanal). A disputa talvez se explica porque “elas não gostam de nos ajudar e nós não gostamos de ajudar elas” (Mônica/Oficina de Costura). Certamente, no caso desse grupo, é preciso levar em conta que o empreendimento teve início a partir de uma ação benevolente, e talvez seja esse um dos motivos que faz com que a coordenação ainda tenha de seguir pregando a solidariedade nas relações interpessoais e de trabalho e fique “como se fosse um professor na sala de aula, como aquele que dirige mais ou menos o trabalho” (Nina). Quanto a isso, uma evidência significativa é a de que são exatamente os grupos vinculados ao setor progressista da Igreja Católica (teologia da liberação), aqueles cujos seus integrantes vêm tentando organizar-se de maneira que os princípios da solidariedade se plasmem na organização e divisão do trabalho. Ainda que não seja nosso propósito reconstituir a história de vida dos trabalhadores associados, é evidente que, no caso da AGP, onde uma grande parte dos grupos é oriunda do Clube de Mães, as trabalhadoras levaram para o interior do empreendimento os valores do ensino social da igreja. Estes ensinamentos diziam respeito à necessidade da divisão do pão, dos frutos do trabalho, a divisão de deveres e direitos dos seres humanos, o que requer lutar pelo direito de “organização dos pobres”. Ora, quando falamos em estrutura da divisão do trabalho, temos de considerar as possibilidades que os trabalhadores têm de participar das instâncias do processo de aquisição, produção e socialização dos conhecimentos; e, a partir daí, analisar as formas como cada um deles interioriza o valor da solidariedade e em que medida o materializam no seu cotidiano de trabalho. Nesse sentido, pudemos verificar três estilos de divisão do trabalho: a) os trabalhadores não


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têm tarefas fixas, todos fazem um pouco de tudo; não existe hierarquia, confundindo-se as atividades de concepção e de execução; b) os trabalhadores têm tarefas fixas; mesmo existindo uma tênue hierarquia, é clara a diferenciação entre atividades de concepção e execução; c) os trabalhadores têm tarefas fixas, não rígidas, existindo a possibilidade de rotação de funções; existindo uma tênue hierarquia, a dinâmica do processo de trabalho permite a alternação do desempenho de atividades de concepção e de execução. As dinâmicas de produção não se dão de forma homogênea e, para que sejam distintas das formas capitalistas, não basta “não ter patrão”. Conforme Lettieri apregoa (1980), não há como analisar o problema das qualificações sem deixar de considerar a estrutura e o caráter mesmo da divisão do trabalho, em sua relação com os diferentes níveis de aquisição, produção e socialização do conhecimento. Tais níveis variam de grupo para grupo, de trabalhador para trabalhador: a) o saber do trabalhador restringe-se ao conhecimento prático, específico de uma determinada tarefa, adquirido e produzido no processo de trabalho; a ampliação de seu saber sobre as demais atividades do empreendimento tem como condição sua participação em reuniões de avaliação e planejamento, assembléias e cursos de capacitação; b) o saber do trabalhador, embora restringido ao seu “que-fazer”, amplia-se já que a flexibilidade do processo de trabalho e a rotação de tarefas lhe permite ter acesso aos conhecimentos adquiridos e produzidos pelos demais trabalhadores. Além disso, a ampliação de seu conhecimento sobre as diferentes etapas do processo produtivo se dá através de sua participação em reuniões de avaliação e planejamento, seminários etc.; c) o saber do trabalhador vai além do conhecimento prático adquirido e produzido no processo de trabalho, pelo acesso às novas técnicas e aos fundamentos teóri-


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cos de sua atividade específica, por meio de cursos de capacitação; d) devido à flexibilidade do processo de trabalho e à rotação de tarefas, a qualificação do trabalhador extrapola o conhecimento da sua atividade específica, em função do acesso aos demais conhecimentos relativos à administração e gestão do empreendimento, conquistada pela participação em reuniões, assembléias, cursos de capacitação; e e) a qualificação do trabalhador extrapola os conhecimentos teóricos e práticos relativos à atividade da unidade econômica, abarcando conteúdos relativos ao mundo de trabalho e às diferentes relações políticas, sociais e econômicas que os homens estabelecem na sociedade. Isso tem origem nos cursos de capacitação e, não necessariamente na flexibilidade do processo de trabalho e no rodízio das tarefas. Sobre como a estrutura da divisão do trabalho interfere na apreensão do conhecimento da totalidade da produção, vale a pena resgatar a forma como a direção da AGP orienta os trabalhadores dos 22 grupos de produção a ela associados. Disse-nos Neuza que “além de saber manipular a máquina, o trabalhador tem que saber de tudo”. Quando cada trabalhador “é o empregado e o patrão de si mesmo”, além de decidir o que vai produzir e de transformar a matériaprima em um produto final, ele precisa saber controlar toda a produção, desde a compra da matéria-prima até a venda no mercado. Mas devido a que, como nas demais OEPs estudadas, os grupos não dispõem de tecnologia de produção que permita ao trabalhador executar diversas tarefas de uma vez, sem que isso represente a diminuição da produtividade, chegaram à conclusão de que quando o trabalhador fazia um pouco de tudo, o empreendimento “não crescia”. No entanto esta conclusão não os levou a adotar os mecanismos talyloristas-fordistas, assentados no paradigma de que o aumento da produção requer o desenvolvimento das habili-


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dades baseadas na repetição e que, portanto, todo trabalho intelectual deve ser de responsabilidade exclusiva da gerência, ou seja, deve ser banido da oficina (Braverman, 1981). Mesmo que “uma pessoa não esteja trabalhando na venda, tem que saber do assunto, para entender quem está na venda (Francisca/AGP). Assim, a solução para o crescimento da unidade econômica não se podia fazer pela tentativa de criar “especialistas” que só dominassem um determinado aspecto do processo de produção. É bem verdade que não havia como negar que as habilidades adquiridas ao longo da história de vida e de trabalho de cada um dos integrantes dos empreendimentos fossem fundamentais para que uma determinada tarefa fosse executada com êxito. No entanto o processo de “fazer crescer o empreendimento” tinha de ter como pressuposto a necessidade de que, além do exercício de uma tarefa específica, o conjunto dos trabalhadores tivesse a oportunidade de compreender, mesmo que de forma limitada, o processo de trabalho em sua complexidade. Nesse sentido, a rotação das tarefas só seria possível se contemplasse a qualidade dos saberes específicos sobre o trabalho Para ter acesso ao conhecimento relativo às tarefas dos outros companheiros, era preciso que cada um dos trabalhadores participasse de outras instâncias de socialização dos diferentes saberes sobre a produção. Além disso, era necessário distribuir as tarefas de maneira a garantir o interesse, a satisfação e a realização de cada qual no trabalho. Afinal de contas, “aquilo que a cada um gosta, faz melhor” (Neuza/AGP). Em outras palavras, a divisão do trabalho deve permitir não só o crescimento do empreendimento econômico como também o crescimento de seus integrantes – como trabalhadores e, principalmente, como pessoas. Sobre isso, Neuza tem o orgulho de dizer que “não foi preciso que alguém viesse de fora para nos dizer isso. Foi uma conclusão, uma descoberta nossa”.


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É necessário relativizar a afirmação de que “não faz nenhuma falta” que venha algum técnico da instituição de apoio para orientar e/ou dizer “o que é melhor” para os trabalhadores. Como nos foi possível verificar, diferentemente das empresas de capital, as organizações econômicas populares não possuem um “departamento de recursos humanos” e, tampouco, uma metodologia de formação profissional. Uma vez que o Estado não garantiu-lhes o direito à educação pública nem as condições econômicas lhes permitem matricularem-se em cursos promovidos pelas redes privadas de ensino, são os seminários, encontros e cursos de capacitação promovidos pelas ONGs uma instância fundamental para a sistematização e ampliação, tanto dos saberes específicos sobre o trabalho como dos saberes sobre a vida em sociedade. Diante disso, podemos inferir até mesmo que as instituições de apoio funcionam como “cúmplices” da estrutura e da dinâmica do processo de trabalho que vão sendo criadas.. Conforme disse Leonídio, da CCAP, o que ocorre é que “comprometer alguém para dar um curso ou fazer uma assessoria em uma favela é complicadíssimo. As pessoas têm medo de perder a vida”. Não obstante as dificuldades não são só externas ao empreendimento, mas também oriundas da vida cotidiana dos trabalhadores que têm de buscar a vida além dos muros da organização econômica. Além da disponibilidade subjetiva, é preciso encontrar disponibilidade de tempo para elaborar projetos, buscar assessoria e outros tipos de apoio das ONGs, concretizar os horários dos cursos, etc. Nesse novo tempo de trabalho, em que “a produção não pode parar”, é preciso conquistar espaços e momentos educativos que contemplem o amplo leque de conhecimentos que são necessários, tanto para a produção em si, como para fortalecer as relações de convivência, de


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forma coerente com os objetivos do associativismo. Mas devido ao corre-corre do cotidiano da produção, parece “natural” que, muitas vezes, a “educação formal” fique relegada a um segundo plano, pois “ainda não sobrou tempo para ela” (Alcântara/COOPARJ). De uma maneira geral, a formação sistemática que acontece além da “boca da máquina”, depende da aprovação de um projeto conjunto, elaborado por um determinado grupo junto a uma instituição de apoio. Os cursos e encontros também ocorrem quando, a partir da associação de algumas ONGs, os trabalhadores de diversos grupos são chamados para fazer intercâmbio e sistematizar suas experiências. Seus objetivos são de tentar suprir as necessidades imediatas inerentes ao processo produtivo, por meio da criação e do fortalecimento de redes de informação facilitadoras da solução de problemas quanto à produção e comercialização, e favorecer a mobilização dos integrantes do grupo para a disputa de espaços e fundos públicos. À medida que um determinado grupo assume uma relação mais estreita com uma instituição de apoio, pode favorecer a oportunidade de um ou mais trabalhadores do grupo ampliarem seus espaços de convivência além da cidade: conhecerem outros empreendimentos populares no norte do país, participarem de encontros e seminários sobre economia popular promovidos no sul e (quem sabe?) viajarem ao exterior para prestar contas à agencia de cooperação internacional que financiou o projeto, aproveitando o tempo não só para relaxarem, como também para buscarem novos parceiros no “primeiro mundo”. Quanto às demais pessoas da comunidade, vale indagar: o que elas aprendem? Vimos que a relação com as comunidades locais pode ter distintos significados. Quando a relação não é meramente comercial ou quando o vínculo


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com a comunidade não se caracteriza pela lógica de os integrantes das OEPs viverem no lugar onde está localizado o empreendimento, os moradores também participam do processo de construção de saberes e valores que podem redimensionar a vida comunitária. No caso da CCAP, não são só os integrantes do empreendimento os que se beneficiam dos processos educativos formais que buscam fortalecer o espírito da “cidadania ativa”. Um dos cursos oferecidos à comunidade local tem como objetivo esclarecer aos favelados que, para se defender legalmente o direito à moradia, é preciso “entender que uma notificação judicial não é a mesma coisa que uma ordem de despejo”. Para que possam organizar-se, além de saberem quais são os direitos de cidadania, conquistados ou a conquistar, é necessário saber argumentar e também aprender a “como dizer melhor” o que pensam e o que querem as pessoas do lugar. Dessa maneira, o CCAP acredita que contribui para a valorização do ser humano, fazendo crescer a auto-estima dos favelados e, em especial, das mulheres que, “além de mulheres, são trabalhadoras e negras”. Evidentemente, os distintos níveis de relação que o grupo estabelece com a sociedade em geral, e também a forma de participação política que cada qual assume isoladamente, são também instâncias importantes da educação dos trabalhadores. Na pedagogia da produção associada, os momentos de articulação com as comunidades locais, as mobilizações para ampliar as redes de solidariedade e participação política conjunta, são elementos que favorecem o crescimento profissional, contribuindo para mudar suas concepções de vida e de mundo. Além de redimensionar a postura política dos setores populares frente aos problemas do país, estas experiências contribuem, em maior ou menor escala, para mudar também a relação com o marido, com os


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filhos, propiciando que cada qual possa ir descobrindo-se a si mesmo como sujeito, portador de saber e de cultura. Daí Francisca (AGP) descobrir que, antes, ela era “como um guarda-roupa desordenado, que quando [o] abria, tudo caía por cima de[la].” Agora, diz ela, “o guarda-roupa não está totalmente ordenado, mas um dia vai estar”. Se a(s) pedagogia(s) da produção associada não têm sido suficiente para o pleno desenvolvimento das potencialidades dos trabalhadores, o cotidiano desses processos favorece, em maior ou menor grau, a articulação e a ampliação do saber e da cultura. É interessante observar que, em nosso trabalho de campo, somente um trabalhador menosprezou o acesso ao saber promovido pela escola, questionando, inclusive, a importância de saber ler e escrever, argumentando que a força de vontade, “o valor pessoal vale muito mais que tudo” (Jairo/COOPARJ). Para os demais, a escola e os cursos de capacitação foram indicados, de alguma maneira, como uma instância de mediação necessária, não só entre o conhecimento teórico e o conhecimento prático adquirido e produzido no chão-da-produção, como também para compreender a vida em sociedade. Na verdade, mesmo que a necessidade de sobrevivência não se satisfaça na escola, ela é um instrumento para que as pessoas consigam compreender o mundo da produção e busquem alternativas viáveis para enfrentar a lógica da sociedade de mercado. A escola é um lugar onde os trabalhadores podem sistematizar os conhecimentos históricos e socialmente produzidos, inclusive aqueles que eles mesmos produziram na “boca da máquina”. Não foi nosso propósito indagar sobre qual é o tipo de escola que interessa aos trabalhadores associados. No entanto, a demonstração de alegria de Rosemar (CCAP) por haver


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passado no vestibular para estudar Serviço Social confirmanos a necessidade de uma “escola desinteressada” (Gramsci, 1982), em que as práticas pedagógicas consigam articular o saber popular com o saber acadêmico. Para essa jovem trabalhadora, “estas instituições [dos movimentos populares] que temos aqui, têm muita prática, mas pouca teoria. Então eu quero ir aí fora para estudar as técnicas, as teorias e trazê-las para aqui”. Diferentemente dos alunos de classe média, crê que para ela será mais fácil: “porque eu estou na favela [...] Então vou unir a visão daqui, do que aprendi, com a visão de lá [da universidade]”. Para refletirmos sobre a potencialidade dos empreendimentos populares, como uma escola de formação de trabalhadores (ou como uma “faculdade”, como disse Neuza/ AGP), temos de reconhecer que é certo que “a própria máquina te ensina, vai te aperfeiçoando; não pára de aprender e de crescer” (Jairo/COOPARJ). Também é verdade que quando “uma pessoa tem uma boa relação, tem o interesse de aprender e ajudar ao outro” (Francisca/AGP), ou seja, quando as relações interpessoais se desenvolvem de modo a fortalecer a solidariedade, isso é um dos fatores determinantes do êxito político do processo produtivo. Mas cabe perguntar: porque uma pequena minoria exerce funções técnico-políticas no interior da unidade econômica, ocupando os cargos de coordenação? Em que medida o cotidiano de trabalho permite, de fato, a participação de todos os trabalhadores nos rumos da produção? Ora, também para os trabalhadores associados, a participação é “a alma do negócio”. Assim, não é suficiente falar de participação. Antes de tudo, é preciso indagar: qual participação? A tentativa de responder a tal questão levou-nos a produzir esta síntese quanto aos processos de decisão/ democracia interna. Duas situações podem ser observadas:


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a) os canais de participação estão predeterminados por normas internas, oficializadas ou não; os dirigentes fazem consultas ao conjunto de trabalhadores sobre os rumos da unidade econômica, nas reuniões e assembléias, tentando envolvê-los em alguma comissão de trabalho, temporária ou permanente; os processos de decisão têm como referência as práticas da democracia representativa; e b) devido à flexibilidade da organização do trabalho, além da participação em reuniões e assembléias, os trabalhadores interferem no cotidiano do processo de produção; embora exista uma clara divisão de tarefas, a dinâmica interna favorece a democracia participativa, permitindo que o conjunto de trabalhadores – indo além da democracia representativa – assuma novas responsabilidades e se capacite para tornar-se dirigente. Tudo indica que, quanto maior é o número de trabalhadores por unidade econômica, maior é a dificuldade de assegurar a participação do conjunto de trabalhadores. Encontrar a maneira de garantir, na COOPBONDE, a efetiva participação de 104 pessoas requereria, sem dúvida, muita experiência de gestão. Se não há instâncias que garantam a socialização dos diferentes valores e conhecimentos, o grupo de produtores associados “não cresce [...] ele incha” (Neuza/ AGP). Na AGP, onde em cada um dos 22 grupos associados existe uma média de oito trabalhadores, considera-se que “se o grupo cresce 12 vezes mais, não dá para garantir a participação e o controle de todos sobre o processo, isso porque é preciso pensa[r] no crescimento do empreendimento, mas pensando no crescimento da gente” (Neuza). Mas é oportuno indagar: por que nos grupos que têm construído significativos processos internos de participação, somente alguns trabalhadores se propõem a ser os representantes políticos nos diversos fóruns de discussão e articulação da unidade econômica, junto aos demais grupos de produto-


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res associados, às instituições de apoio e aos governos locais? Não estão os demais trabalhadores capacitados, mesmo que abstratamente? Ou não estão motivados para tal? Para os trabalhadores que não conseguiram ter acesso à escola, a(s) pedagogias da produção associada materializadas na estrutura e na dinâmica do processo de trabalho podem propiciar, em maior ou menor grau, a construção e socialização de novos saberes. Mas, desafortunadamente, são poucas as pessoas que conseguem “tornar-se dirigentes”, no sentido gramsciniano de “especialista mais político” (Gramsci, 1982, p. 8). Os quadros parecem não se renovar, sendo quase sempre os mesmos trabalhadores que, assumindo (transitoriamente ou não), a função de “educadores-governantes”, estão presentes nos diferentes fóruns de discussão sobre a economia popular. São pessoas que, depois de um longo processo de “formação de formadores” – promovido pelas instituições de apoio – se propõem a seguir a dura tarefa de criar, no chão da produção, novas instâncias de socialização do saber. À medida que os demais trabalhadores não se sentem capacitados e/ou não se propõem a assumir a responsabilidade de tornarem-se dirigentes, os antigos vêem-se obrigados a, além de ocuparem seus postos de trabalho na organização econômica, seguir ocupando os postos de articulação política nos fóruns dos movimentos populares. Essas inquietações quanto ao caráter e à amplitude dos processos de participação e socialização do conhecimento nos conduziriam ao desafio de começar uma nova investigação que considerasse, ao menos, um número representativo dos complexos fatores que interferem no processo da formação humana. No entanto este não foi nosso propósito. Não pretendíamos fazer um estudo das trajetórias ocupacionais e, tampouco, das trajetórias de vida desses atores da economia popular. Para isso teríamos de considerar as ou-


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tras formas de exploração indicadas por Villasante (1997), entre elas, as de dominação-dependência do homem em relação à mulher, do adulto em relação à criança, e de uma cultura em relação a outra (além da dos mortos em relação aos vivos). Temos de reconhecer a necessidade de continuar investigando as condições objetivas e subjetivas da pedagogia da produção associada, como também o “universo social inteiro” que possam estar favorecendo a somente alguns poucos trabalhadores associados conquistarem, mesmo que abstratamente, a condição de “governantes” (Gramsci, 1982), ao menos em relação ao seu trabalho no interior das organizações econômicas populares. Além de constatar e reafirmar a falta que faz a escola, podemos ir delineando algumas constatações acerca dos elementos da cultura do trabalho nestes empreendimentos, entre os quais podemos destacar: a estrutura da organização e a divisão do trabalho; os canais de participação; além do caráter mesmo que assumem os processos educativos promovidos pelas instituições de apoio. Quando a pedagogia da produção associada também depende (e é a expressão) da ação dos “técnicos” da universidade, de organizações nãogovernamentais e de outras instituições de apoio, mais que nunca é preciso repensar e refazer as próprias práticas dos educadores, redimensionando o que é considerado técnico e o que é considerado político. Conforme indica o nosso estudo, as práticas educativas no interior das organizações econômicas populares, mesmo como uma “faculdade”, também podem configurar-se como “deseducativas”, quando reproduzem ou não conseguem superar as práticas capitalistas que contribuem para a fragmentação do saber e para a dominação de uns sobre outros.


Pedagogia(s) da Produção Associada: para Onde Caminha a Economia Popular? “Só o fato de estar onde estou me altera e altera tudo mais. O descobrir não é ver o que “há” (isto é impossível em qualquer nível), mas projetar-se em uma realidade em contínua criação. Já não sou o que era, mas o que hei de ser, como conseqüência de que tudo mais deixa de ser o que era para tornar-se o que será, em uma síntese dialética constantemente renovada.” Manfred Max-Neef, Economia descalça, 1986.



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Fomos surpreendidos por uma espécie de vazio teórico, por incertezas que se encontram imersas em uma dupla perplexidade: a síndrome do “fim das utopias” e os interrogantes quanto aos paradigmas e categorias que nos permitem compreender e transformar a complexidade do atual tecido social. Neste mesmo contexto, começam a emergir alguns estudos sobre a economia popular e, especialmente, sobre a economia solidária e/ou socioeconomia solidária. Sendo poucos os estudos sobre o que move os atores e agentes das estratégias coletivas de sobrevivência, o drama é como construir uma análise da economia popular e, particularmente, da cultura do trabalho nas organizações econômicas populares a partir de categorias que, embora representem abstrações, são produtos das condições históricas e que, portanto, só são válidas como instrumento de conhecimento, se as mesmas adquirem concretude no próprio processo de análise dos movimentos contraditórios de uma determinada época. Em nossa pesquisa sobre a Remington, indústria autogestionária (Tiriba, 1994), era comum que nos corredores da universidade e ainda nas mesas dos bares, as pessoas perguntassem: “E a história da Remington? a autogestão tem tido êxito?”. Da mesma maneira, as pessoas se perguntam sobre o futuro destes trabalhadores-aventureiros e de seus pequenos empreendimentos que subsistem com tantas dificuldades no mercado: “E as OEPs têm dado certo?” Depende... Têm dado certo, em que sentido? Do ponto de vista do trabalho ou do capital? Estão dando certo para quem? Assim, talvez, as melhores perguntas fossem (ou devessem ser): para os trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho, vale a pena buscar, associativamente, os meios


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para sua sobrevivência? Considerando o trabalho como princípio educativo, o que os trabalhadores apreendem no processo de produção? Que elementos de uma nova cultura do trabalho se produzem no interior dessas organizações? Para onde caminha a economia popular? Tendo sido realizado no plano do debate teórico e no plano dos descobrimentos empíricos historicamente circunscritos, nosso estudo não admite conclusões enfáticas, mas conclusões provisórias. Pensamos ser do capítulo anterior, onde melhor conseguimos extraí-las, pois foi ali que tentamos uma articulação teoria e prática, em que o concreto pensado, ao contrário de distanciar-se da vida, traz consigo as emoções dos trabalhadores associados. No entanto é neste capítulo o momento não só para retomar alguns aspectos que estiveram presentes ao longo deste livro, como também para indicar as questões que vale a pena ser aprofundadas em novos estudos que contemplem a relação trabalho-educação, como elemento da formação humana. Depois de tratar sobre a complexidade da economia popular, ressaltaremos alguns elementos indicativos da cultura do trabalho nas organizações econômico-populares, destacando os aspectos contraditórios da(s) pedagogia(s) da produção associada, entre os quais a armadilha do “homem econômico”, os limites da solidariedade e os impasses da relação trabalho-educação. Em seguida, sintetizaremos alguns pressupostos que acreditamos devem estar presentes na elaboração de propostas de formação dos trabalhadores que vêm sendo expulsos tanto da escola como do mercado formal de trabalho. Finalmente, teceremos considerações sobre as potencialidades da economia popular, bem como sobre a problemática do trabalho no limiar do novo século.


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“Trabalhadores livres associados” e produção associada na era do desemprego Ao longo da história do século XX, a capacidade imensa e voraz do capital de produzir e gerar lucro tem-nos levado a uma crise do processo de civilização, repercutindo na degradação do planeta e na deterioração das condições de vida de grande parte dos seres humanos. Como resultado da mudança das formas de regulação do capital, materializadas pela restruturação produtiva e pelas políticas neoliberais, os excluídos do mercado formal de trabalho tornaram-se um fenômeno que tem refletido no crescimento quantitativo e qualitativo de novas e velhas formas de trabalho, entre elas a pequena produção associada, até então menosprezada por muitos economistas. Na perspectiva da economia crítica, a economia popular é um conceito que, embora não tenha conseguido acompanhar a velocidade da proliferação das iniciativas de sobrevivência, tem ganhado força no atual contexto do processo de exclusão social, cujas mais visíveis manifestações são a crise do trabalho assalariado e o aumento da pobreza. Primeiramente, vale reafirmar que a complexidade da economia popular não está dada somente pela diversidade das atividades com que se apresenta, mas também pela complexidade do emaranhado de interesses que orientam cada um de seus agentes externos. Sendo gerida no interior mesmo de uma sociedade em conflito, que tem-se movido sob a hegemonia da lógica excludente do mercado, a economia popular tem convivido com os diferentes interesses daqueles que visam a “combater o desemprego e a pobreza”. Para fortalecer os laços clientelistas, por meio de ações assisten-


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cialistas, de um lado, estão aqueles agentes cujos interesses relacionam-se com a necessidade de um ajuste estrutural dos países “em desenvolvimento”. Para alguns, o objetivo é assegurar as condições para a restruturação produtiva e para a flexibilização das relações entre o capital e o trabalho, além de estimular a competitividade no mercado, subordinando a chamada “economia informal” à regulamentação estatal. De outro lado, estão os interesses dos agentes que compreendem a necessidade de garantir a sobrevivência imediata dos setores populares, criando, também, formas de subsistência mais estáveis e duradouras. Entre estes últimos, estão também aqueles que acreditam ser, além de assegurar o direito à vida, necessário estimular e fomentar novas relações de convivência, ao menos no interior dos empreendimentos populares. Como vimos em Coraggio (1997) e como indicou nosso estudo sobre as organizações econômicas populares, a lógica da “reprodução ampliada da vida” é o principal elemento que diferencia a economia popular de outros setores econômicos e que por sua vez, define sua identidade. No entanto, acreditamos que, no contexto da economia global, o referido setor da economia traz consigo outros elementos que dizem respeito a qual ou a quais projetos de sociedade orientam sua dinâmica cotidiana. A opção – muito clara – dos organismos internacionais, governos e empresários de investir na “reconversão profissional” e “requalificação” dos desempregados, como também no aporte de capital inicial para que os excluídos possam buscar, por conta própria, seus meios de sobrevivência, tem como tela de fundo o interesse do grande capital no crescimento da pequena produção como compradora de seus produtos e serviços (terceirização do trabalho) e, ao mesmo tempo, como instrumento


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de contenção dos conflitos sociais. Contraditoriamente, se a associação dos trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho é uma das formas de reintegrá-los na economia, os investimentos do Estado têm sido menores que a demanda real. A falta de instituições que favoreçam o apoio e o incremento da economia popular tem feito com que a grande maioria dos trabalhadores com vontade de criar seu próprio empreendimento fique relegada ao desemprego (Singer, 1996), ou seja, tenha de ficar na rua para ganhar a vida, seja através do comércio ambulante, do tráfico de drogas ou da prostituição de adultos, jovens e crianças (tanto feminina como masculina). Podemos inferir que esse setor da economia, embora “popular”, não tem conseguido fazer a síntese de suas diferentes identidades – condição básica para poder manifestarse como um projeto hegemônico dos setores populares. Devido a uma correlação de forças favorável aos agentes conservadores que a estimulam e a impulsam, sua existência no emaranhado sócioeconômico em que se desenvolve tem sido possível uma vez que, de alguma maneira, são úteis aos mecanismos de regulamentação do capital. Mesmo faltando-nos uma historiografia dos pequenos empreendimentos populares e de como vai evoluindo esse “velho”, e agora “novo” setor da economia, é importante não esquecer dois aspectos deste processo: o primeiro é que, se de um lado, tudo o que não é incorporado no mercado formal vai se constituindo como “setor informal” ou como “pequena produção”, de outro, o elemento do “fim do fordismo”, também vem provocando o aparecimento da pequena produção. No entanto, como nos indicou Nuñez (1995), a economia popular não pode ser confundida com “capitalismo popular”, como o universo de empresários individuais ou de microempresários que contratam alguma força de trabalho. Outro aspecto,


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relacionado com o primeiro, é, dado seu vínculo em maior ou menor grau com as empresas de capitais, a pequena produção não é necessariamente produção mercantil (no sentido de que as mercadorias se produzam em nível doméstico e com o objetivo de satisfazer às necessidades básicas de consumo) e, tampouco, é necessariamente popular (no sentido de ser criado somente pelos os setores populares e que sirva a seus interesses). Não por acaso, o SEBRAE tem investido tanto na formação de “pequenos empreendedores”. Não por acaso, o FAT têm incluído as “habilidades de gestão” nos programas de qualificação profissional. Assim sendo, não podemos nos referir-nos a uma pedagogia da produção associada, mas a muitas pedagogias que, em última instância, manifestam os projetos socioeconômicos e políticos de seus diferentes agentes e atores. A pesquisa realizada leva-nos a compartilhar com Razeto (1990) a idéia de que as OEPs representam o pólo mais avançado da economia popular. Mas, se partimos da hipótese de que ali está germinando uma nova cultura do trabalho, poderíamos contra-argumentar que também o capital, por meio das atuais tecnologias de produção e de gestão da força do trabalho, está produzindo uma “nova” cultura do trabalho. No entanto, apesar das mudanças na organização e divisão do trabalho, oriundas da nova base técnica e dos câmbios das formas de relação entre capital e trabalho, não podemos dizer que eles são significativos no sentido de reverter o significado da atividade produtiva quanto à relação entre os homens e entre esses e a natureza – o que representaria a autodestruição do próprio modo de produção capitalista. Ao contrário. Historicamente, o desenvolvimento das forças produtivas tem acentuado uma cultura do trabalho em que, cada vez mais, o trabalhador e a própria natureza se encontram submetidos ao imperativo do capital.


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Concebemos a cultura do trabalho como um conjunto de práticas, valores e conhecimentos que se materializam no processo de trabalho propriamente dito, conjunto esse que se plasma não só nas relações de mercado, como também nas relações de convivência internas e externas ao empreendimento. Do ponto de vista político e ideológico, os pressupostos que nos sinalizam os marcos fundamentais de uma cultura do trabalho de novo tipo seriam relações de produção caracterizadas pela perspectiva de valor de uso e não de troca, pelas quais o trabalhador recupera o sentimento de produtor e sujeito-criador de si mesmo e da história e nas quais tendem a ser diluídas a propriedade individual dos meios de produção e a hierarquia assegurada pelos que “sabem”. Uma nova cultura teria como requisitos a desmercantilização da força de trabalho e um processo de desalienação do trabalhador quanto ao produto, ao processo e a si mesmo como trabalhador. Mas, como dissemos anteriormente, a mudança da cultura do trabalho não resulta de uma mudança apenas no espaço da produção, mas também nos diversos espaços/ redes que constituem o sujeito. Em última instância, uma cultura do trabalho de novo tipo pressupõe também uma sociedade de novo tipo. A qualidade e a ampliação de novas práticas sociais e econômicas em nível de toda a sociedade têm como pressuposto a transformação do caráter do Estado e, com isso, a superação da lógica de mercado, à qual têm sido submetidos os setores populares. No entanto não é suficiente tomar ou conquistar o poder do Estado e instaurar uma “sociedade dos produtores livres associados” para que uma cultura do trabalho de novo tipo se materialize. A cultura do trabalho se constrói na práxis, no dia-a-dia do processo de trabalho e de


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vida. Mesmo assim, é preciso não subestimar a necessidade, imprescindível, da ação das organizações do movimento popular e dos partidos políticos para a materialização da hegemonia do trabalho sobre o capital, não em nível do “micro”, mas, fundamentalmente, como uma conquista da sociedade. Nesse processo, é necessário considerar as formas democrático-participativas que se apresentam como novas formas de poderes cotidianos (Villasante, 1994a). Na verdade, um dos desafios é avançar no espaço da interface entre a esfera “da mudança a partir do estado” e a esfera “da mudança a partir da sociedade”. Ou seja, é necessário avançar na vinculação entre práticas econômicas e construção do poder alternativo, pois “a possibilidade de que do campo popular surja um projeto alternativo de desenvolvimento ou transformação social depende da possibilidade de que ganhe autonomia relativa em sua reprodução material e cultural” (Coraggio, 1994, p. 31). No atual momento histórico, seria impossível encontrar, no interior da sociedade capitalista, uma organização econômica que, mesmo gerida pelos próprios trabalhadores, pudesse caracterizar-se, em seu conjunto, como “cultura de novo tipo”. Para que uma nova realidade histórico-social se apresente no cotidiano de trabalho de pequenas e médias unidades de produção, exige-nos – como nos diz Sánchez Vázquez (1987) – uma ação política em níveis infra e superestrutural. Mas, refletir sobre a possibilidade de constituição de uma cultura do trabalho de novo tipo pode tornar-se uma mero exercício intelectual, se não temos como referência a realidade concreta das iniciativas dos trabalhadores que, frente à crise do emprego, vêm buscando novas formas de sobrevivência e de reprodução ampliada da vida.


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Diferentemente das experiências de produção associada e, em especial, dos conselhos operários nas primeiras décadas do século XX, o fenômeno dos empreendimentos geridos pelos trabalhadores não tem a “sociedade dos produtores livres associados” como ponto de referencia ou horizonte, mas é o resultado da própria excrescência dos processos de exclusão social – processos estes mais agudizados nos países do chamado terceiro mundo. Assim, não podemos pensar nos pressupostos de una nova cultura do trabalho como se estivéssemos vivendo, atualmente, num processo revolucionário. Temos de analisar os elementos embrionários de um novo sentido do trabalho a partir das condições concretas do espaço e tempo atual em que vivemos, buscando apreender suas mediações. Além disso, considerar que esses elementos não são, necessariamente, novos; são, talvez, elementos que persistam, apresentando-se como um indício de que, historicamente, o modo de produção capitalista não foi capaz de submeter a totalidade dos trabalhadores e de processos produtivos à lógica do capital (questão essa que nos exigiria outra pesquisa) Se está germinando uma nova cultura do trabalho nas OEPs, ela se constrói de forma diferenciada em cada um dos grupos de trabalhadores associados – forma esta não deduzida a partir de um modelo predeterminado ou de um princípio escolástico. Ou seja, não buscamos o grupo ideal que poderia assemelhar-se ao que está definido a priori. A idéia da produção como valor de uso e não como valor de troca, por exemplo, pode-se constituir como um parâmetro para que, a partir daí, deduza-se o tipo de cultura que se está gerando nas OEPs; mas se nosso propósito não é encaixá-lo neste parâmetro, temos de inferi-lo de uma forma tanto dedutiva como indutiva. Para isso, buscamos no próprio chão-daprodução as maneiras contraditórias como vão surgindo (ou


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tornam-se mais evidentes) os elementos que são conflitivos com a forma dominante e hegemônica de produção capitalista.

Economia solidária a quê?

Como não poderia ser diferente, a cultura do trabalho nas OEPs é uma cultura fragmentada, que contém o velho, como a competição, o individualismo... Não se pode afirmar que a formação de grupos de trabalhadores associados é, em si mesma, indício de um futuro processo de contrahegemonia e que seus objetivos são antagônicos aos de uma sociedade estruturada em classes sociais. Não há, necessariamente, a intenção do partido político ou do intelectual coletivo de lutar contra os antagonismos estruturais do modo de produção capitalista. Devido à experiência associativa anterior (eclesial, sindical, de vizinhança etc.), alguns grupos já surgem com a intenção de um projeto embrionário; outros vão acontecendo ao longo do caminho e, pouco a pouco, seus atores dão-se conta de que não querem voltar à forma anterior de trabalho, de que não querem voltar a ter um patrão, de que é melhor trabalhar perto de casa – o que parece ser algo positivo, mas não suficiente para caracterizar uma cultura do trabalho de novo tipo. Correspondendo a diferentes graus de desenvolvimento social e econômico, percebemos que estas organizações econômicas podem ser caracterizadas como estratégias de sobrevivência, de subsistência ou de vida, dependendo do tempo de maturidade do grupo para enfrentar as adversidades internas e externas que condicionam a produção. Diferentemente de Razeto (1991), pensamos que as relações


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que os trabalhadores estabelecem entre si, com seu trabalho e com a sociedade devem ser consideradas em sua temporalidade, não sendo apenas condicionadas pela realidade externa, mas também pelas diferentes motivações que orientam a ação coletiva. Por não compreendermos o coletivo como a soma de trabalhadores e, tampouco, como um bloco compacto e monolítico, mas como a síntese das relações que os trabalhadores estabelecem entre si e com a sociedade, é possível perceber a existência de diferentes níveis de interação, de expectativa e de compreensão quanto ao significado do empreendimento. Tanto para os homens como para as mulheres trabalhadoras, é a conquista de um grau mínimo de viabilidade econômica do empreendimento o que, em última instância, irá determinar a opção de permanecer naquele espaço produtivo, não voltando a procurar um posto no mercado formal de trabalho. No entanto a perspectiva de se constituir em “estratégia de vida” deve ser compreendida em sua complexidade, considerando a diversidade de significados econômicos, políticos e ideológicos que tem o empreendimento para cada um dos trabalhadores. O que para um pode representar uma “estratégia de vida”, compreendida como uma alternativa para a satisfação de suas necessidades econômicas – e ainda para se manter vivo -, para outro, além disso, pode significar uma alternativa de construção de relações sociais com vínculos estreitos com a comunidade, contrapondo-se à ordem vigente na sociedade. Em primeiro lugar, o que os move é a necessidade e depois a esperança de organizar o empreendimento de maneira a torná-lo economicamente viável. Para os trabalhadores, os diferentes significados da produção associada não são, obrigatoriamente, excludentes: “melhorar a vida”, provar que, inclusive sem estudo, são capazes de gerir um empreendimento, pode re-


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presentar o privilégio de trabalhar perto de casa – o que permite anular o custo e o tempo perdido em deslocamentos e, além disso, que o trabalhador possa conciliar a atividade produtiva com a vida doméstica. Principalmente para as mulheres, engajar-se num empreendimento gerido pelos próprios trabalhadores pode vir a representar a possibilidade de proteger os filhos pequenos, acolhendo-os no interior mesmo do processo de produção ou nas creches improvisadas. Por essas mulheres serem oriundas e viverem nas favelas e outros bairros populares, há um elemento importante que, talvez, possa contribuir para sua valorização e autovalorização no processo produtivo: ter aprendido, que para sobreviver, proteger sua família e o meio onde cria seus filhos, é preciso estar à frente nas mobilizações e gestões coletivas do bairro. Conforme nos indicou Cecília Cariola (1992), é no seio do lar e de outras redes “familiares” (no sentido subjetivo), onde os setores populares conseguem obter os ganhos “extra-econômicos” necessários para sua sobrevivência. Isso porque a reprodução social exige a ativação dos mecanismos de solidariedade por meio de redes informais que resultam em ações coletivas. Nas ações espontâneas de solidariedade entre familiares, amigos e vizinhos (e em outras práticas informais organizadas), destacase a mulher que, na sua condição de “dona de casa”, potencializa sua tendência à liderança. Mesmo reconhecendo que, devido à sua discriminação e marginalização no trabalho e na sociedade, as mulheres tendem a internalizar “de tal maneira as imagens socialmente elaboradas sobre o trabalho feminino que admitem como natural e inevitável sua condição de ‘trabalhadoras de segunda classe’ (Blass, 1995:57), podemos observar que nas OEPs, existe a propensão da mulher em se tornar líder do cotidiano” (Cariola, 1992, p. 210).


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Um dos elementos indicativos da cultura do trabalho nesses empreendimentos é que, embora o sistema imperante venha tentando convencer os setores populares de que, na busca da satisfação de suas necessidades, cada um segue sua própria natureza, mirando a si mesmo e não aos outro, é possível verificar, em todos os grupos, que as pessoas seguem trocando bens materiais e imateriais através de relações de doação, cooperação e reciprocidade – características apontadas como uma especificidade do setor solidário da economia. Por certo, a solidariedade é um elemento fundamental que acompanha a convivência cotidiana dos setores populares. Ela é uma das condições para preservar e melhorar a qualidade de vida e, ao mesmo tempo, é um dos elementos constitutivos das relações econômicas. No entanto a ação coletiva não resulta só das necessidades objetivas, cuja solução depende, necessariamente, da ajuda de um morador para concretizar algo necessariamente material. Além de trocar afetividade e associar-se para organizar bailes e festas populares, as pessoas também se associam para cuidar das crianças (em sua própria casa ou criando creches comunitárias); associam-se para arrumar as telhas dos barracos, para limpar o valão, para protestar contra a violência da polícia na favela, para organizar um “mercado solidário” com produtos de baixo custo, enfim, para tentar garantir as condições materiais e não-materiais mínimas para seguir vivendo. Por certo, quando o grupo surge com um vínculo estreito com os movimentos populares (ou, pelo menos, com a comunidade local), quando os trabalhadores viveram experiências anteriores ou o associativismo é algo que, embora novo, é intensamente refletido pelos seus integrantes, maior é a possibilidade de construção de um processo de trabalho calcado em relação mais amplas de solidariedade. Embora a


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forma de propriedade seja um fator não determinante, são as maneiras pelas quais os trabalhadores associados conseguem obter as condições mínimas necessárias para o início das atividades, o que, em última instância, contribui para delinear as relações internas e externas ao empreendimento. Em outras palavras, detendo ou não a propriedade, é a forma de posse dos meios de produção um indicativo do tipo de relação que os trabalhadores estabelecem entre si, com os parceiros, com a comunidade local e com a sociedade. Pela própria origem do empreendimento, é possível inferir sobre determinadas dificuldades que venham a surgir: quando o associativismo “pega os trabalhadores de surpresa”, quando a primeira experiência associativa começa, exatamente, com uma estratégia coletiva de sobrevivência ou o grupo inicia suas atividades sob a tutela de uma instituição de apoio, aumenta a possibilidade de que os trabalhadores deparem sérios conflitos, principalmente no que diz respeito às relações interpessoais e de trabalho, ocultando-se o “egoísmo individual” nas chamadas “relações de solidariedade”. Evidentemente, o fato de que as pessoas pertençam à comunidade ou venham do povo não garante ao empreendimento econômico o certificado de “qualidade total em solidariedade”. Para que se estabeleça algum tipo de cumplicidade entre os trabalhadores e as pessoas da comunidade, é preciso haver algum tipo de identificação que promova a confiança entre uns e os outros, estabelecendo um pacto entre as pessoas, ainda que de maneira implícita. Porém, além dos objetivos manifestos, não podemos esquecer aqueles que, mesmo latentes ou ocultos, mobilizam as pessoas para engrossar uma determinada ação coletiva. Neste processo, o que é significativo é o fato de que os sentimentos se misturam e se confundem, manifestando-se seja como expressão da necessidade de defender os direitos fundamen-


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tais do homem (articulando-se, para isso, com os partidos políticos, sindicatos e demais organizações populares), seja como expressão da necessidade imediata de preservar a vida de cada um e do outro que lhe é mais próximo. Independentemente de como a denominemos (“solidariedade de classe” ou “solidariedade humana”), pareceu-nos relevante identificar a solidariedade também como um sentimento que pode transformar o “egoísmo individual” em “egoísmo coletivo”. Se, de um lado, o “egoísmo coletivo” parece ser um avanço em relação ao “egoísmo individual”, de outro, o egoísmo não deixa de ser egoísmo. Na verdade, uma vez que continuamos arraigados à ideologia liberal, estimuladora do individual em detrimento do coletivo, as relações sociais empreendidas nessas organizações, não estando à margem da sociedade, não têm plena autonomia para se constituírem como sinergias antagônicas às do poder dominante. Não podemos idealizar a economia popular e, tampouco, o que se chama de economia solidária. As relações internas entre os sujeitos econômicos, integrantes das OEPs, podem manifestar distintos graus de solidariedade em termos do processo de trabalho e da distribuição dos frutos do trabalho entre aqueles que são sócios do empreendimento. As condutas, as normas e regras de convivência que os atores-protagonistas da OEP estabelecem no cotidiano de trabalho são um indicativo de uma economia popular de solidariedade; no entanto as novas relações sociais de convivência podem ficar restritas às “quatro paredes” do empreendimento. Existindo diferentes níveis de vínculo entre a organização econômica e a comunidade local, a definição do que vai produzir não tem, necessariamente, como referência as necessidades mais sentidas da comunidade local. Nem sempre são os moradores do lugar aqueles que são conside-


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rados como os consumidores que os trabalhadores associados irão privilegiar; nem sempre a relação produtor-consumidor extrapola o caráter meramente comercial. Além de um determinado espaço físico, a comunidade representa um espaço, datado e situado, no qual as pessoas convivem, compartindo diferentes formas de identificação: hábitos, costumes, condição econômica, política, social, cultural etc. Nesse sentido, concluímos que é a comunidade mesma, onde está localizada a unidade econômica, o espelho do que é compreendido como “comunitário”. Isso porque é ali onde se materializam as relações sociais que os trabalhadores associados estabelecem com seus pares – o que, em última instância, vai determinar os objetivos reais da organização econômica e o estilo mesmo da “ética comunitária”. Se, de um lado, os trabalhadores não podem submeter seu trabalho às leis do mercado, desgarrando-o do resto da vida (Polanyi, 1989), de outro, tampouco a população local pode ser considerada mera consumidora do “arsenal de mercadorias” produzidas pela organização econômica. Em outras palavras, o mercado solidário (agora na moda entre os intelectuais) não pode resumir-se à comercialização de mercadorias de baixo custo para os setores populares, mas deve ser um espaço onde se resgate o que ali está presente: o político, o cultural, o educativo... Acreditamos que a relação dos trabalhadores associados com a comunidade e com a sociedade um “termômetro” que nos ajuda a inferir até que ponto a atividade dos trabalhadores, ainda que em nível local, apresenta-se como algo solidário, no sentido de ser alternativo à lógica do capital. Consideramos relevante analisar os vínculos do empreendimento com a comunidade local, não por acreditar que residem ali a reciprocidade, a cooperação e a solidariedade em suas formas mais puras e belas. Como Max-Neef (1986),


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pensamos que nenhuma nova ordem internacional poderá ser significativa, se não está estruturada em consonância com a densa rede de novas ordens locais. Isso não significa que, do local, do pequeno, podemos semear as “boas virtudes” e estendê-las, paulatinamente ao global, redimindo assim, os “homens de negócios” e o próprio capitalismo. O vínculo com a comunidade, tornou-se um dos eixos de nosso estudo, à medida que o próprio campo nos reafirmava ser no pequeno, na comunidade, onde estão localizados os empreendimentos populares, onde se manifestam práticas e se plasmam as motivações mais profundas dos trabalhadores associados. Em última instância, tal constatação serve-nos como indício da potencialidade do produção associada no sentido de criar, ainda que de forma contraditória, novas formas de convivência humana. Apesar da ação coletiva, tendo por base a solidariedade, constituir-se em chave para satisfação das necessidades imediatas dos setores populares (e para a reprodução ampliada da vida), o fato é que esta solidariedade tem seus limites nos próprios limites que lhe impõe a sociedade. Como dizia Mandeville (1982), no capitalismo, os prazeres não podem existir para todas as pessoas, daí que, para que os trabalhadores possam gerar benefícios para a sociedade, os vícios privados devem ser direitamente manejados por um hábil político. Uma vez que o sistema capitalista contemporâneo necessita promover e dirigir ativamente o consumo, os meios de comunicação vêm tentando “ativar”, também nos pobres, o espírito do egoísmo e da avareza. De qualquer maneira, quando a necessidade imediata é saciar a fome e garantir as condições mínimas para a sobrevivência, talvez já não possamos falar de um homo economicus, mas de homo faminto. Como costumam dizer alguns trabalhadores, a “consciência é a consciência da barriga”, pois, assim como nos


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demais animais, o primeiro instinto do ser humano é tentar sobreviver, manter-se a si mesmo e a seus filhos, perpetuando-se como espécie. Assim, se não é possível falar de uma “solidariedade de classe” nas organizações econômicas populares, podemos falar de “solidariedade humana”, no sentido de ser solidário, ao menos, com a preservação da própria vida.

Viva o velho artesão? Que outros elementos da cultura do trabalho é possível observar ? Ora, não estamos falando de uma nova técnica de trabalho, mas de uma nova prática que, em menor ou maior grau, redimensiona a relação entre mundo produtivo e convivência humana; uma nova prática que mesmo não tendo o poder de pôr fim à alienação do trabalho, indica-nos novos parâmetros de relações sociais: já não são o patrão, o técnico industrial ou a máquina quem dominam e ditam o ritmo e a intensidade do trabalho, mas o trabalhador mesmo. Referimo-nos a uma cultura cuja marca é a satisfação de trabalhar “sem patrão”1, já que, como sinalizou um trabalhador associado, “ser um empregado é estar como um animal preso”. Referimo-nos a uma cultura que, em suma, nega a figura do patrão como proprietário dos meios de produção e como proprietário dos frutos do trabalho. O trabalhador coletivo já não é “coletivo” só em função de interesses alheios, mas em função dos interesses de si mesmo, 1

É interessante observar que segundo, a última pesquisa do IBGE, anteriormente citada, uma das razões que levam o trabalhador para a economia informal é o desejo de não ter mais patrão (25%).


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de seus companheiros, podendo estendê-los aos moradores da comunidade local e a outras redes associativas. Se a alienação do trabalho só pode ser compreendida como um processo que sobrepassa o conjunto das relações sociais capitalistas, é esta categoria a que nos permite ver novos elementos materiais efetivos que anunciam a gestação de uma nova cultura do trabalho nestes pequenos empreendimentos. Como uma instância educativa, tem sido contraditória a interação do trabalhador no cotidiano da produção associada. Refletindo a própria contradição capital-trabalho, esta interação apresenta-se sob uma dupla perspectiva: anuncia a possibilidade da dicotomia entre “dirigentes” e “dirigidos”, anuncia a solidariedade e a igualdade no processo produtivo e, ao mesmo tempo, manifesta o desejo do trabalhador de conquistar a autoridade e o poder sobre os demais. Alguns de seus integrantes, tendo vivido experiências anteriores, são aqueles que, em geral, tornam-se os principais dirigentes das OEPs. E quanto aos trabalhadores considerados como “trabalhadores de base? Sejam quais forem as motivações que os movem, achamos que a autogestão, como princípio inspirador da produção associada, traz consigo o pressuposto da construção da autonomia – compreendida como um processo em que cada trabalhador torna-se sujeito-inventor do trabalho, construtor-criador da vida. Alguns grupos vêm caminhado neste sentido, criando espaços de solidariedade, de co-responsabilidade, tendo como perspectiva a apropriação, pelo conjunto dos trabalhadores, dos frutos do trabalho e também do processo de produção. Outros, embora não calcados numa estrutura hierárquica preestabelecida, ainda não se liberaram das velhas relações de submissão, moldadas no cotidiano pela pouca participação e interferência no processo de trabalho. Assim, há que verificar se foram criadas instâncias efetivas de participação


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(reuniões, assembléias, comissões de trabalho etc.) e em que medida elas permitem a interação humana. Há que perceber-se quais são seus significados para os trabalhadores, pois se as pessoas não participam é porque, talvez, o estilo de participação não as convença. É certo que, como ressalta Villasante (1994b), porque a as pessoas estão fartas das promessas e das práticas ocas de participação que vivenciaram ao longo de suas vidas, a práxis do cotidiano é que pode devolver a confiança aos trabalhadores associados. Sendo eles os “patrões” de si mesmos, o processo de trabalho pode dar um salto de qualidade. Ao contrário de uma racionalidade que, na busca do lucro máximo, desumaniza ao trabalhador, a “qualidade total” nas OEPs tem como tendência procurar garantir a qualidade do produto (em si) e da vida mesma do trabalhador, e, além disso, repensar o conteúdo do trabalho, como também a própria organização do tempo a ele dedicado. Neste novo tempo, além das atividades práticas para “fazer funcionar” o empreendimento, estão presentes, ainda, os momentos de reflexão, de socialização do saber, da criação de novos conhecimentos e valores, de articulação com a comunidade e com os demais movimentos associativos. A “qualidade total” também consiste em criar as condições objetivas que possibilitem um processo, não só capaz de satisfazer àqueles que desfrutam de seus produtos, como também de satisfazer a seus produtores, por meio de um trabalho prazeroso e socialmente produtivo. Havíamos partido do suposto de que, na sociedade capitalista, a cultura do não-trabalho, que se manifesta através da “cera”, têm sido uma das maneiras de resistir e de sublimar o trabalho alienado. No entanto, a pesquisa realizada leva-nos a reforçar a idéia de que, dada a complexidade humana, essa é uma explicação limitada e reducionista. Isso


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porque é possível perceber que, mesmo quando os trabalhadores tornam-se proprietários dos meios de produção e a grande maioria deles manifesta satisfação no trabalho, o fato é que, todavia, persiste a “meia máquina”. Ao referir-nos às organizações econômicas populares, seria uma heresia afirmar, categoricamente, que a falta de interesse é manifestação de uma luta de resistência a um processo de produção que oculta ou escamoteia a opressão e exploração do trabalho. Mesmo considerando que o cotidiano dos empreendimentos populares resulte de movimentos contraditórios de reprodução/transformação das práticas capitalistas, temos de seguir questionando qual é o significado do trabalho na existência humana, indagando em que medida o “direito à preguiça”, apregoado por Lafargue (1977), é parte constitutiva dos instintos de homem. Na verdade, são poucas as vezes em que o não-trabalho significa “cera”, em vez da impossibilidade de seguir produzindo, seja pelo alto custo da matéria-prima, seja porque a máquina quebrou, porque não existe encomenda, porque a fiscalização interrompeu as atividades, ou por outros tipos de adversidade enfrentadas, constantemente, pelos trabalhadores associados. Quer dizer, em vez de “trabalho forçado”, os trabalhadores se deparam com o “tempo livre forçado”. É necessário enfatizar, ainda, que o tempo de trabalho para produzir os meios necessários para a sobrevivência costuma exceder a jornada estabelecida, não obstante não se configure como trabalho excedente, já que nessas organizações seus integrantes não se apresentam no mercado como vendedores de sua força de trabalho. Ou seja, o tempo socialmente necessário para a produção da mercadoria (e para produzir-se a si mesmo como trabalhador) prolonga-se muito mais que o tempo socialmente necessário encontrado nas empresas de capitais. No entanto, não se con-


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figura como trabalho não-pago. Ao contrário, quanto mais se trabalha, maior é a possibilidade de aumentar a remuneração do conjunto dos trabalhadores. Diferentemente das empresas de capitais, o “prêmio de produção” representa o aumento, geralmente igualitário, da partes que cabem a cada um na distribuição de excedentes. É preciso intensificar o ritmo e estender a jornada de trabalho, sacrificando o tempo livre. Porém, a vantagem é que a produção associada não se caracteriza pela mercantilização da força de trabalho, mas pela sua “autoexploração” intensiva e pela satisfação das necessidades básicas como principal critério para estabelecer o quantum de trabalho e, portanto, quando será necessário trabalhar mais ou trabalhar menos para conseguir a remuneração pretendida ou a que é possível obter. Quando o mercado lhes “abre as portas”, se a tecnologia é constante e o número de trabalhadores não aumenta, há que produzir-se uma quantidade maior de produtos e, obviamente, isso só se pode obter de duas maneiras: pela intensificação do ritmo de trabalho e a redução dos tempos mortos (e, portanto, pela diminuição da “cera” no curso da produção), ou pelo aumento da jornada de trabalho (e, portanto, pela diminuição do tempo livre) Entendemos que os processos pedagógicos (como práxis educativa) também se constituem em um dos elementos da cultura do trabalho, mediando as condições objetivas e subjetivas do processo produtivo. Tratando-se de uma empresa capitalista ou de uma organização econômica popular, a dinâmica da produção – propriamente dita – é fonte de saberes práticos, adquiridos e produzidos no processo de trabalho. Mas a dura e crua realidade é que os trabalhadores não detêm a posse nem de tecnologias de ponta, que lhes permitam aumentar seu tempo livre, nem dos fundamentos teórico-metodológicos que lhes facultem articular teoria e prá-


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tica, de modo a encontrar uma forma mais racional e, ao mesmo tempo, mais humanizada para colocar os meios de produção a seu serviço. Mesmo quando os trabalhadores são os proprietários dos meios de produção, é exatamente o monopólio desses dois instrumentos um dos elementos pelos quais a classe dominante assegura sua condição de dominação. Dizemos que o saber não existe de uma forma autônoma e pode ser sufocado pela divisão do trabalho. O fato é que, em nome de não reproduzir a lógica capitalista, na prática, a concepção predominante de todos deverem “fazer um pouco de tudo” resulta em que o “trabalho polivalente” costuma ser utilizado como um instrumento de possível acesso de todos à apreensão da totalidade do processo de produção. Ora, sabemos que a compreensão da totalidade não se obtém da soma das partes do processo de trabalho, mas resulta da possibilidade de que, como nos diz Gramsci (1982, p. 8), os trabalhadores poderem elevarem a técnica à “ciência-técnica e à concepção humanista da história, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não se chega a ser ‘dirigente’ (especialista mais político).” Neste sentido, a experiência das organizações econômicas populares aponta-nos alguns ensinamentos com respeito ao fato de se de um lado o saber pode ser sufocado pela rigidez da divisão do trabalho, de outro a flexibilidade ilimitada no rodízio de tarefas também pode sufocar a possibilidade dos conhecimentos dos trabalhadores associados ganharem maior consistência. E se a polivalência representa um avanço em comparação com os métodos tayloristas-fordistas, ela é insuficiente para a formação integral dos trabalhadores. Tratando-se de uma empresa capitalista ou de uma OEP, a dinâmica da produção é fonte de saberes práticos, apreendidos e produzidos no processo de trabalho. Quando


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a maioria dos trabalhadores não teve direito de completar sua educação básica, a estrutura da divisão do trabalho é o que lhes permite ou não ampliar seus conhecimentos mais além daqueles que lhes correspondem numa tarefa específica. Como dizem os próprios trabalhadores associados, não é possível gerir os empreendimentos “na base do eu acho”, ou restringir-se à possibilidade de que uma instituição de apoio lhes ofereça uma vaga em um cursinho de capacitação. Também nas OEPs isso não é suficiente para que no processo cotidiano de ação/reflexão/ação o trabalhador possa ir além do imediatismo do empírico e captar as diferentes dimensões da totalidade da produção. Mesmo idealizando um excelente nível de participação e educação no cotidiano de trabalho, vale lembrar que, além de produção de bens espirituais, a fábrica é instância de produção de bens materiais. Assim, como é possível imaginar que um ser humano possa estar na “boca da máquina” e, ao mesmo tempo, apreender os fundamentos que dão sentido ao seu trabalho, sem que isso repercuta em baixa produtividade ou produza acidentes? Pensamos que os processos produtivos e, especialmente, as experiências de produção associada constituem-se em uma “escola” de formação de trabalhadores; no entanto a natureza das atividades ali desenvolvidas não permite, por si mesma, a “reprodução ampliada do saber”. Como dizia Gramsci (Nosella, 1992), quando a escola funciona com seriedade, ela não deixa tempo para a oficina e, ao inverso, quem trabalha seriamente somente mediante enorme esforço pode instruir-se. Certamente, os trabalhadores associados têm como um de seus desafios redefinir os conceitos de produtividade e eficiência, dando uma nova dimensão ao tempo de trabalho e ao tempo livre, de maneira que os momentos de ação/ reflexão/ação não se restrinjam à “boca da máquina”.


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Se é impossível pensar a fábrica e a escola de maneira desarticulada, é necessário considerar que a fábrica é fábrica e a escola é escola. Se para os filhos das “classes-que-vivemdo-trabalho” a escola – por processos pedagógicos duais – tem exercido também a função de reproduzir uma força de trabalho “qualificada”, técnica e politicamente submissa e disciplinada, afortunadamente, essa mesma escola não se constitui somente como em “fábrica de trabalhadores”. A escola é um local onde os trabalhadores tentam – ainda que a duras penas – sistematizar e articular o saber científico ao saber adquirido no processo produtivo (e, felizmente, ela não tem conseguido reproduzir a “qualidade total” apregoada pelos “homens de negócios”). Quanto à democratização e produção do saber, é necessário considerar que nenhuma escolarização – ainda a mais “deseducativa” – substitui a educação na fábrica, assim como a educação na fábrica – ainda a mais “deseducativa” – não substitui a função clássica da escola de distribuir o conhecimentos socialmente produzido ao longo da história da humanidade. Quando a educação vai mais além dos conteúdos específicos relativos ao trabalho, propicia a formação de sujeitos que compreendem o mundo a seu redor e a co-relação das forças sociais num determinado momento histórico. Sem dúvida, “abandonar os limites da individualidade e desenvolver a capacidade de espécie humana” (Marx, 1980) em todas as suas dimensões não é uma questão simples e pura de vontade, tampouco uma questão de obter treinamento exterior, por mais significativo que sejam. Com certeza, o trabalho cooperativo contribui para isso, mas, se verificarmos a história daqueles que hoje assumem o papel de líderes, perceberemos que eles tiveram, em algum momento, uma “escola” de larga duração. Além de haver tido a oportunidade de teorizar determinadas questões, isso implicou um


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processo de rupturas: com o patrão, com a “autoridade pública” e, até mesmo, com a igreja, com a dominação da família etc. Assim, não é possível reduzir a capacitação a um problema que deve ser resolvido “de fora para dentro”, mas considerar que as próprias histórias de vida, baseadas em relação de exploração e dominação, dificultam a possibilidade dos trabalhadores associados conseguirem tornar-se dirigentes de si mesmo e de seu trabalho. Devido às OEPs não virem conseguindo ampliar o número de pessoas que se proponham a exercer, transitoriamente, a função de “gover-nantes”, a questão é como a capacitação consegue sensibilizar o conjunto dos trabalhadores a repensar sua própria vida, a redimensionar as relações que estabelece com o outro e consigo mesmo. Em termos gramsciano, o desafio estaria em buscar, de forma perseverante, os caminhos que nos conduzam à constituição de intelectuais de novo tipo. Acreditamos que, como parte integrante de um projeto que contribua para tornar orgânica a economia popular, também nos caberia formular propostas de projetos educativos, articulados com a escola e resgatando os pressupostos da educação popular, sejam capazes de contemplar os trabalhadores que não tiveram acesso ou não conseguiram permanecer nos bancos escolares e que, frente à crise do emprego, vêm organizando seus próprios empreendimentos. Para os educadores que ao mesmo tempo assumem a postura de investigadores, o desafio é ultrapassar os limites da “pedagogia da fábrica”, popularizando o saber acadêmico, sistematizando o saber popular e construindo com os trabalhadores uma nova pedagogia do trabalho. Obviamente, não se trata de “ensinar os pescadores a pescar”, substituindo o saber popular por um saber “superior”, nem tampouco, de transferir para os empreendimentos popula-


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res a responsabilidade da escola com respeito à socialização e sistematização do conhecimento. Ao contrário. Trata-se de repensar a escolar e de ampliar os espaços educativos que promovam novos saberes e novas práticas sociais. Para isso, um dos pontos de partida é compreender a produção associada como instância educativa, aprendendo com os trabalhadores as formas pelas quais eles vêm tentado gestionar seus empreendimentos. Referimo-nos a uma perspectiva de qualificação profissional que vai mais além de “adequar os jovens e adultos às necessidades do mercado” – mercado este excludente – e que, sem desconsiderar as relações econômicas de intercâmbio (hoje hegemônicas na sociedade capitalista), abra caminhos para desvendar outros mercados, outras relações sociais, cuja racionalidade não está calcada na “reprodução ampliada do capital”, mas na “reprodução ampliada da vida” (Coraggio, 1995). Acreditamos que, frente ao problema do desemprego e do aumento da pobreza, os programas de formação profissional não devem deixar de considerar a “vocação econômica” de região, no entanto, é preciso questionar em que medida essa “vocação” (em última instância determinada pela atual “lógica de mercado”), vem ocultando e, ao mesmo tempo, sufocando outras “vocações”, em especial aquelas dos setores populares. Isso implicaria um processo de qualificação profissional que: a) intimamente articulado com a rede pública de ensino, contribua para a formação ampla dos trabalhadores; b) em sintonia com a comissão municipal de emprego, trabalho de renda, tenha os movimentos populares como eixo norteador de sua ação; c) fortaleça, no interior do mercado global, o mercado específico dos empreendimentos populares associativos (cooperativas, associações, grupos de produção, etc.); d) contribua para criação de redes de conhecimentos, informação, produção e


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comercialização entre os pequenos produtores de bens materiais e de serviços que tentam subsistir à perversidade da atual lógica de mercado. Evidentemente, o trabalho é o principio educativo. O trabalho é, também, o fim educativo, no entanto não pode ser qualquer trabalho. O fim educativo é a busca, pela práxis, de um novo trabalho, de um novo sentido para o trabalho e para a convivência humana. Como Razeto (1991), achamos que nenhuma economia se torna solidária porque as pessoas são boas e generosas, mas, quando o trabalho e a comunidade tornam-se os fatores que determinantes de todos os demais fatores da produção. A solidariedade só pode tornar-se um valor real, à medida que se plasma na própria organização do trabalho e em outras instâncias das relações de convivência. Assim, o objetivo da educação no interior das OEPS não é que os trabalhadores somente assimilem, de forma abstrata, os pressupostos filosóficos e políticos de uma economia solidária. Não basta idealizar uma economia popular fundada no trabalho participativo e solidário. Além disso, num momento em que o capitalismo tem agudizado ainda mais suas contradições, mais que nunca é preciso aprender a fazê-la, a materializá-la no cotidiano da produção. Nessa perspectiva, reafirmamos a necessidade de articular economia popular, trabalho-educação e educação popular, ou seja, vincular áreas de conhecimento que, até então, têm-se apresentado como “linhas de pesquisa” distintas. Pensamos que a busca permanente de uma práxis educativa que contemple “formação geral” e “formação específica” (de maneira a articular objetivos econômicos-objetivos educativos e sociais) é um dos elementos-chave da educação dos trabalhadores que, frente à crise do emprego, vêm tentando organizar seus empreendimentos econômicos via associativismo. Se no processo de conhecer a realidade o


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conhecimento vai-se produzindo coletivamente, ele é o resultado do encontro/confronto do saber popular dos trabalhadores associados com o saber sistematizado nas academias (adquirido e produzido à luz de teorias que, em última instância, resultam da sistematização/abstração de conhecimentos, valores e práticas vividas e construídas também no cotidiano de vida e trabalho). Mesmo não sendo inéditos, os conhecimentos são “novos” para quem os cria ou os recria, indo além do saber instituído, quando são capazes de transformar-se permanentemente para dar respostas (não-permanentes) à dinâmica da vida real. O novo é novo, o moderno é moderno, não exatamente por sua originalidade, mas por sua atualidade, por sua capacidade de trazer novos elementos que transformem a ação em uma nova ação transformadora. Repetindo a citação de Gramsci: “criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobrimentos ‘originais’; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’, por assim dizer; transformá-las, portanto, em base de ações vitais” (Gramsci, 1978, p. 13).

Da economia popular de solidariedade a uma nova economia do trabalho Inquestionavelmente, a cultura do trabalho nas OEPs também tem sido marcada pela alienação do trabalho e pelo não-acesso dos trabalhadores aos fundamentos científicos com respeito ao mundo da produção. Não obstante, a potencialidade da economia popular não estaria nos efeitos corretores das disfunções do Estado. Sem dúvida, entre o Estado e o mercado está a sociedade civil; entre a economia


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global e o livre mercado estão, também, os excluídos que gestionam os “mercados solidários”, como conseqüência do descaso do Estado quanto às condições de vida das população. As organizações econômicas populares anunciam-nos que sua fragilidade não está, exatamente, nas relações sociais que inauguram no interior do empreendimento e com a comunidade local, mas em sua fragilidade econômica e política. É visível a penúria em que se encontram os trabalhadores associados, cuja remuneração, muitas vezes, não é suficiente para a satisfação das necessidades básicas. Como Coraggio (1991), pensamos que a reprodução ampliada da vida não significa consumismo, mas uma expansão sem limites da qualidade de vida, incluídas as relações comunitárias e sociais. Isso porque um novo tipo de desenvolvimento humano não pode limitar-se ao acesso aos meios para a manutenção da vida biológica (ainda que isso seja totalmente necessário em seu começo). Para que não se aborte a constituição de um projeto comum que possa apresentar-se aos outros setores econômicos como a economia política dos trabalhadores, o mínimo de que necessitamos é seguir disputando o fundo público, sem descartar a possibilidade de uma moeda própria e, ainda, de um banco popular, que favoreçam o incremento das redes de produção e de comercialização, tirando os pequenos empreendimentos da penúria, fortalecendo e protegendo a economia popular contra os “abutres do mercado”. No entanto isso seria apenas um paliativo, dado que não é suficiente para interferir na economia global. Há também outro ingrediente fundamental: uma das características das pequenas produções tende a ser a utilização de tecnologias impeditivas de uma produção de escala, apresentando uma baixa produtividade do trabalho. Se, de um lado, o alto custo da legalização e a fragilidade da articu-


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lação política com outras redes associativas não lhes permitem superar as travas jurídicas e competir num mercado mais amplo, de outro, tampouco o número de mercadorias produzidas tem sido suficiente para suprir, de maneira contínua, as demandas da comunidade local. Além disso, como é possível pensar numa “globalização solidária” só a partir da pequena produção de bens e serviços como biscoitos, roupas, escovas, bolsos, colchas, reciclagem de papel, empadinhas, bijuterias, serviços de cabelereiro e serviços domésticos? Embora as condições tecnológicas “rudimentares” possibilitem, de alguma maneira, o alcance dos objetivos imediatos dos empreendimentos, não é possível negar que uma de suas travas é o baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas. Se olhamos esses empreendimentos desde outros parâmetros de eficiência e produtividade, não podemos considerá-los “atrasados” ou “retrógrados”, mas relativamente avançados em comparação aos processos produtivos tradicionais, em que o trabalhador é apenas um “apêndice da máquina”. Quando o que se reivindica não é a volta do “velho artesão”, mas o resgate do trabalho-criação, não é possível deixar de reclamar que também os trabalhadores associados possam exercer o direito de ter acesso às facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias, sem que isso represente reproduzir o estilo das relações sociais capitalistas de produção. É preciso a constituição de um modelo de desenvolvimento em que cada grupo humano construa os meios para sua prosperidade e felicidade de acordo com seu marco cultural e ecológico, de maneira autônoma e independente. A dinâmica e a vitalidade de uma “globalização solidária” não estará na tendência uniformizante, porém na diversidade de


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culturas de vida e de trabalho. Em tal sentido, uma das questões cruciais de enfatizar a positividade dos meios “rudimentares” de trabalho é não conseguir vislumbrar os limites do “velho artesão” num mundo marcado pela lógica da competitividade. Romantizar a cultura do trabalho nas OEPs e nas demais unidades econômicas pertencentes à chamada economia solidária seria menosprezar os processos de distribuição global dos bens materiais e simbólicos requeridos pela globalização, que mascaram a diversidade e o caráter plural da cultura. Assim, um dos desafios da pequena produção radica-se em como lograr um ambiente de trabalho que, com a introdução de novas tecnologias de produção e de gestão da força de trabalho, possa, além de garantir sua maior inserção no mercado, facilitar o processo de desalienação das relações de produção. Não queremos iludir-nos de que o fortalecimento do setor da economia popular pode levar-nos a um confronto com o mercado da economia global. Mas, tampouco, podemos argumentar que a questão do poder do Estado não está “na ordem do dia” porque a globalização da economia diminui sua influência na vida dos cidadãos. Isso significaria achar possível criar uma nova ordem mundial sem enfrentar os mecanismos do capital e das políticas neoliberais. Sabemos ser possível atenuar o nível de degradação do planeta e de exploração do homem, aumentando um pouco mais a pequena parte da torta que cabe aos dois terços de excluídos e semi-excluídos. Entretanto reverter a lógica da lei do mais forte significa reverter a lógica do próprio capitalismo, o que pressupõe a constituição de um novo modo de produzir a existência humana. Para refletir sobre a possibilidade de que os trabalhadores associados possam interferir, significativamente, no processo de transformação da realidade social, uma vez mais


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voltamos a Gramsci. Ao retomar a idéia de Marx, de que nenhuma formação social pode ser substituída antes que, no próprio seio da velha sociedade, desenvolvam-se as condições materiais de existência da nova sociedade, Gramsci adverte sobre a necessidade de analisar um determinado momento histórico considerando também os diferentes momentos de consciência política. O primeiro momento é o econômico-corporativo, no qual os trabalhadores sentem que devem ser solidários com outros trabalhadores, mas a unidade entre eles se reduz ao grupo profissional, não se constituindo, ainda, como a unidade de um grupo social mais amplo. O segundo momento de consciência política é aquele em que os trabalhadores adquirem a consciência de solidariedade do grupo social, no entanto a solidariedade reduzse ao campo meramente econômico: “Neste momento já se coloca a questão do Estado, mas apenas visando a alcançar uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes: reivindica-se o direito de participar da legislação e da administração e, talvez, mudá-las, reformá-las, mas nos quadros fundamentais já existentes” (Gramsci, 1976b, p. 49-50)

O terceiro e mais complexo momento caracteriza-se pela perspectiva da irradiação, em toda a área social, da unicidade dos fins econômicos e políticos, pela aliança com outros grupos e forças sociais e, ainda, pela consciência de ir mais além dos próprios interesses e propor a luta conjunta de todos os grupos subordinados em um plano universal. Esse momento, em que se estruturam as condições para elaboração e construção de um projeto contra-hegemônico, “é a fase mais abertamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas” (ibid, p. 50). Não obstante, esses três momentos de consciência política não estão separados, mas confun-


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dem-se e combinam-se, alternadamente, de acordo com a história real dos homens, de maneira que a “passagem do momento puramente econômico (ou egoísta passional) ao momento ético-político, [...] a passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da necessidade à liberdade” (idem, 1978, p. 58) – momento da “catarse”, a qual passa por um complexo processo.2 Frente à complexidade do mundo atual, as formas de geração de trabalho e renda são antes de tudo, a manifestação dos mecanismos de ajuste estrutural e do agravamento das contradições sociais. Para superá-lo, se já não é possível achar que a vanguarda do proletariado, a partir de seu partido único, vai promover uma grande transformação social, o tema é: onde está o elo? Sem dúvida, isso estaria numa disputa não só pelo fundo público, mas também pelo poder do Estado; mas a questão é quem são os sujeitos históricos que poderiam contribuir para dar um salto de qualidade – sujeitos que, hoje, a esquerda perdeu, deixando-nos sem visibilidade ou capacidade para sair desta encruzilhada. Talvez o argumento histórico (e a esperança) seja que o capital primitivo se formou nos interstícios das relações escravistas e servis, durante séculos, até que se configurou como forma

2

Sintetizando a concepção gramsciana sobre os processos que resultam na mudança ou na manutenção de uma determinada ordem hegemônica, Rummert assinala que “a dinâmica que dá vida a esse processo é, precisamente, a disputa pela hegemonia, é o confronto entre modos de conceber a realidade e agir sobre ela. Para Gramsci, são os projetos de hegemonia que conferem expressão e significado a uma força social. E o pleno desenvolvimento de uma força social corresponde ao pleno desenvolvimento de um projeto que transcenda os limites de classe e assuma os contornos de um projeto nacional que se pretende hegemônico. Na história concreta de uma nação, as lutas sociais têm seu fulcro na questão da hegemonia” (Rummert, 1998, p. 25).


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dominante de sociedade. Ou seja, no interior de toda formação social gestam-se as formas embrionárias de um novo modo de produção, que só se torna dominante quando o conjunto das relações correspondentes à nova base real e material se torna hegemônico em nível de toda a sociedade. Mas o fato de que a forma capitalista de produção se gestou durante três séculos no interior do feudalismo não necessariamente significa que a economia popular possa tornarse o embrião de um novo modo de produção. Tentando perseguir o elo perdido, de acordo com o Manifesto de 1848, de Marx e Engels, o socialismo virá da organização dos trabalhadores. Apesar da chamada crise de partidos, dos sindicatos e dos movimentos sociais em geral, existem indícios de um movimento contraditório, que os investigadores sociais, muitas vezes, não têm conseguido perceber. Se um novo sentido para o trabalho não pode instituir-se espontaneamente a partir da boa vontade dos excluídos do mercado formal de trabalho ou da imaginação dos intelectuais, mais que nunca é necessário o fortalecimento dos movimentos populares (partidos políticos, sindicatos, associações de moradores...). A verdade é que as atuais respostas da esquerda para reinserir os excluídos têm sido apenas um paliativo frente a uma conjuntura desfavorável para os trabalhadores. A respeito à crise do emprego, sua resposta tem sido pregar o direito à diminuição da jornada de trabalho, ou seja, socializar o direito do trabalhador de tornar-se mercadoria e, quando muito, defender o direito do trabalhador de buscar outras formas de trabalho socialmente produtivas que ocultem a contradição capital-trabalho. Voltando ao velho, mas sempre atual Marx, “a existência de idéias revolucionárias em uma determinada época já pressupõe a existência de uma classe revolucionária”. É certo que, como constata Gorz (1997), ao longo dos tempos, os


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homens têm tentado lograr o máximo desenvolvimento econômico com um mínimo de trabalho; no entanto, isso não significa dizer que a liberação humana estaria mais na liberação do trabalho e menos ainda na liberação no trabalho. Com o aperfeiçoamento da divisão social e técnica do trabalho no modo de produção capitalista, a atividade produtiva desenvolvida na sociedade industrial representa a culminação da dicotomia entre “reino da liberdade” e o “reino da necessidade”, afetando, sobretudo, o modo de ser dos homens. É verdade que, sob as condições impostas pela atual fase de desenvolvimento do capitalismo, embora os trabalhadores conquistem alguns poderes que lhes permitam a autodeterminação, estes poderes “não lhes darão domínio do destino e do sentido de seu trabalho. Este trabalho pode ser – ou tornar-se – agradável e estimulante, jamais garantirá o “desenvolvimento integral dos indivíduos” por sua cooperação social” (Gorz, 1997, p. 81). Mas, se, a partir desses argumentos, passamos a achar que o “humanismo do trabalho” se constitui em uma grande utopia dos movimentos sociais e sindicais e que jamais poderá engendrar um nova cultura do trabalho, podemos cair na tentação da ideologia do fim da história, do fim das utopias e do fim da própria luta de classes. A partir desse raciocínio, só nos resta seguir lutando, como nos indicava Lafargue (1977), pela diminuição da jornada das “máquinas de carne e osso” para três horas de trabalho por dia, desconsiderando e esquecendo as relações sociais onde o trabalho se produz. Depois dessa tortuosa trajetória histórica, resta-nos um pessimismo brutal. É mais fácil achar que o fim da historia será marcado pelo fim do mundo por meio de um “basta” da natureza (por uma explosão ecológica ou uma bomba atômica) – do que por um basta dos seres humanos. À sua vez, a


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pequenez de cada um dos cantinhos do mundo enche-nos de esperança. O que percebemos nesta pesquisa é só um grão de areia imerso na complexidade do tecido das relações sociais e, portanto, com graus diferenciados do que se poderia chamar de embrião de uma nova cultura: uma divisão menos rígida do trabalho e de hierarquias, sem os mecanismos de exploração do trabalho, da apropriação e expropriação do saber. No contexto contraditório em que se produzem nas OEPS, as pessoas dão-se conta da existência de outra forma de produzir: menos violenta, menos hierárquica, mais humanizada. Isso é o embrião de uma nova cultura do trabalho. Quando já não há um elemento tipicamente da cultura dos trabalhadores, quando já não há um “ethos operário”, há um novo ethos – que talvez pudéssemos chamar de “ethos dos excluídos”. Frente à crise do emprego, os excluídos do mercado formal de trabalho lutam para tornar-se assalariados e, ao mesmo tempo, para superar a condição de mercadoria; contudo, temos de considerar a própria complexidade humana, assim como sua tendência de “aderir ao opressor” e de se deixar seduzir pela proposta capitalista de trocar o “sentido de ser” pelo “sentido de ter”. De qualquer maneira, não é possível seguir aceitando a idéia, incorporada pela ideologia capitalista, de que o desejo do lucro é um elemento constitutivo da natureza humana, mas que é um valor produzido em uma sociedade cujo eixo é o mercado. Apesar de não ocupar os setores estratégicos da economia global (Luxemburgo, 1976), de ter pouco poder de articulação para sair de uma “economia dos pobres” e apresentar-se ante o Estado e ante a sociedade como uma economia política dos trabalhadores e como um subsetor que leva consigo um projeto comum de desenvolvimento, a potencialidade da economia popular radica-se no fato de que ela pode consti-


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tuir-se em um amplo processo práxico-educativo, em uma escola que deve ser vivida, não apenas para atenuar os problemas do desemprego, senão também para que os trabalhadores e a sociedade descubram ser possível uma nova maneira de fazer e conceber as relações econômicas e sociais tanto no âmbito do lugar de trabalho, quanto no âmbito de toda a sociedade. Sabemos que muitas têm sido as pesquisas a constatar que, frente ao projeto neoliberal, a tendência crescente do trabalho por conta própria (seja individual ou coletivo), em detrimento do trabalho assalariado, vem coroar a deteriorização das relações de trabalho. Sem sombra de dúvidas, o emprego temporário e a perda paulatina dos direitos sociais são fatos que nos confirmam esta afirmativa. Também não têm sido poucos os estudos sobre os efeitos perversos das novas tecnologias de produção e de gestão da força de trabalho; perversos não só no que se refere à diminuição dos postos de trabalho, mas não também no que se refere à saúde e a outras questões derivadas da vida mesma do trabalhador. As investigações sobre trabalho-educação também nos têm indicado o contínuo processo de implementação das novas formas de controle e apropriação do saber do trabalhador, contribuindo para desmistificar a qualidade das “competências básicas”, exigidas pelo trabalho polivalente. Sem dúvida, o capitalismo tem sido capaz de criar as condições para a deterioração das relações de trabalho em todos os sentidos. Se está sob condições de subcontratação, o trabalho nos empreendimentos populares não pode ser considerado autônomo, mas de dependência e subordinação, pois, devido à necessidade de efetuar ritmos intensos e continuados de trabalho para obter uma remuneração minimamente compensatória, a autonomia do trabalhador pode ficar reduzida à distribuição do tempo de trabalho. No en-


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tanto, mesmo admitindo a submissão da grande maioria da pequena produção às empresas de capitais e ainda admitindo que não, necessariamente, o povo organize seus empreendimentos tendo como perspectiva contrariar a lógica capitalista, pensamos ser imprescindível relativizar a questão no que se refere à economia popular e em especial, às organizações econômicas populares. Ou seja, vale a pena seguir investigando os aspectos contraditórios desta deteriorização e também questionar se no que se refere ao aspecto de “processo de trabalho” e “apropriação dos frutos do trabalho”, o trabalho asociativo empreendido pelos setores populares representa, indiscutivelmente, uma faceta a mais desta deteriorização. Pensamos que as histórias nas quais os trabalhadores se tornam os proprietários dos meios de produção são parte integrante e inseparável da história da práxis humana em seu permanente processo de conhecer e transformar a realidade histórico-social. A constituição do sujeito-trabalhador, em sua relação com um bem econômico, com os demais trabalhadores, com a natureza e com a sociedade, é a síntese dialética do seu processo de reflexão e inserção na vida real. Frente à crise do emprego, além da alternativa ao desemprego, a produção associada é instância de produção de novas concepções de trabalho, de vida e de mundo. Se, de um lado, isoladamente, os trabalhadores associados não conseguem mudar o mundo, de outro, como parte integrante dos movimentos populares, os processos produtivos cuja lógica é a hegemonia do trabalho sobre o capital podem permitir a mudança de postura de seus integrantes frente ao mundo. Neste processo, também corresponde ao intelectual o papel de tentar “pôr ordem nas idéias”, vinculando-se, visceralmente, com a práxis cotidiana e redescobrindo que, como imensa maioria, podemos transformar nossa vida e nossa sociedade.



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Anexo



395

Referências Bibliográficas

Roteiro de Pesquisa 1. Identificação 1.1. Nome do grupo/Razão Social: 1.2. Endereço/telefone/fax: Comunidade: 1.3. Início das atividades do grupo: 1.4. Breve histórico da natureza do grupo (motivações; preocupações econômicas e sociais; relação com o movimento popular): 1.5.Natureza do grupo: a) setor da economia:

( ) formal

( ) informal

b) forma de organização: ( ) associação

( ) micro-empresa

( ) cooperativa

( ) grupo de produção

( ) empresa ltda

( ) outros

c) setor(es) da produção: ( ) primário ( ) secundário ( ) terciário 1.6. Identificação dos grupos associados: 1.7 Número de trabalhadores na OEP: Total : ................ Permanentes: ......... homens ......... mulheres, entre ....... e ........ anos ......... adolescentes Outros trabalhadores envolvidos: ............. População beneficiada (nº de famílias): ...............


396

Economia Popular e Cultura do Trabalho

1.8. Distribuição dos trabalhadores por atividade: 1.9. Bens materiais e serviços produzidos: 1.10 Meios de Produção: a) Instalação: ( ) Própria ( ) Alugada ( ) Cedida ( ) Comodato ( ) Ocupação b) Máquinas e Equipamentos: ( )Própria ( ) Alugada ( ) Cedida ( )Comodato Quantidades/tipo: 1.11. Mantém relações: (

) com outros produtores associados. Quais?

(

) com o movimento associativo cooperativista. Quais?

(

) com os sindicatos. Quais?

(

) com outros setores da sociedade. Quais?

1.12 Os parceiros do empreendimento e o papel que desempenham (apoio financeiro, assessoria, etc:

2. Organização, Gestão e Relações de Trabalho 2.1. Principais objetivos do grupo: 2.2. Composição da diretoria/organização: 2.3. Principais frentes de trabalho/planos de ação: 2.4. Relação da diretoria com os grupos associados: 2.5. Princípios quanto à organização e relações de trabalho: 2.6. Processo de tomada de decisão a respeito de planejamento econômico, da produção, comercialização,... 2.7. Equipes/oficinas de trabalho. Responsáveis por cada uma delas: 2.8. Os trabalhadores têm funções fixas ou existe rodízio de tarefas? Exemplifique.


Referências Bibliográficas

397

2.9. Processo de decisão no dia-a-dia de trabalho: 2.10. Como se dá a coordenação geral no dia-a-dia de trabalho e relações entre as equipes ? 2.11. Além de suas tarefas específicas, os trabalhadores participam/ interferem em outras atividades/etapas do processo de trabalho, socializando suas experiências e conhecimentos? 2.12. Organização do tempo de trabalho quanto a horários e atividades: 2.13. Responsabilidade e compromisso dos trabalhadores (cumprimento dos horários/necessidade de cobrança):

3. Formação de trabalhadores/educação comunitária 3.1. Nível de escolaridade dos integrantes da OEP: 3.2. Habilidades e conhecimentos necessários para o trabalho: 3.3. Níveis de interesse dos trabalhadores em aperfeiçoar seu trabalho: 3.4. Níveis de socialização de conhecimentos no dia-a-dia do processo de produção: 3.5. Espaços para a reflexão coletiva sobre o trabalho/ temáticas discutidas: 3.6. Outros conhecimentos considerados importantes para a vida dos trabalhadores: 3.7 Atividades desenvolvidas visando o crescimento profissional e a formação integral dos trabalhadores (educacionais, sociais, culturais): 3.8. Atividades desenvolvidas com a comunidade (educacionais, sociais, culturais): 3.9. O que a experiência vem ensinando para a vida dos trabalhadores:


398

Economia Popular e Cultura do Trabalho

4. Direitos/Benefícios 4.1. Fontes de renda da diretoria: 4.1. Benefícios/ direitos trabalhistas dos integrantes da OEP: ( ) Férias ( ) 13º ( ) FGTS

( ) Outros ....................................

4.2. Variação das remunerações: A maior remuneração é de................

(...... salários mínimos)

A menor remuneração é de................

(...... salários mínimos)

4.3. Critérios para se estabelecer o valor da remuneração: 4.4. No orçamento doméstico, para a maioria dos trabalhadores, este trabalho representa: ( ) a única fonte de renda ( ) uma segunda fonte de renda ( ) a principal fonte de renda ( ) uma fonte de renda complementar 4.5 Benefícios à comunidade 4.6 Critérios de distribuição de riquezas produzidas/excedentes: 5. Quanto ao produto e as relações de mercado 5.1. Número de mercadorias produzidas: .........../dia Meta:................

......../mês

Capacidade atual:.......... Capacidade potencial:.........

5.2. A mercadoria é produzida: ( ) sob encomenda

( ) para estoque

5.3. Existe a diversificação da produção? Fatores determinantes: 5.4. Fatores determinantes para análise das necessidades do mercado: 5.5.Critérios de qualidade do produto/serviço:


Referências Bibliográficas

399

5.6. Critérios para estabelecer o preço dos produtos e serviços/relação com o mercado: 5.7. Regiões onde os produtos e serviços são comercializados 5.8. Comercialização dos produtos/serviços ( ) Direta ao consumidor ( ) Indireta..... 5.9. Perfil do público consumidor que se privilegia: 5.10. Tipo de relação que se mantém com os consumidores: 5.11. Principais concorrentes no mercado: 5.12. Relações comerciais com outras OPEPs 5.13. Princípios e condições para se competir no mercado: 5.14. Principais condições para viabilidade econômica do grupo: 5.15. Principais características de um mercado solidário: 5.16. Benefícios de um mercado solidário à comunidade: 5.17. Condições para viabilidade de um mercado solidário: 5.18. Relação de um mercado solidário com outros setores da economia, com o governo, empresários, etc.:

6. Dificuldades, avanços e desafios 6.1. Principais dificuldades encontradas: 6.2. Avanços: 6.3. Principais desafios: 6.4. Informações complementares:

7. Instituição a que está vinculada a OEP 7.1. Nome: 7.2. Endereço/telefone/fax/e-mail:


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Economia Popular e Cultura do Trabalho

7.3. Representante(s) que acompanha(m) a experiência: 7.4. Outras instituições envolvidas/papel que desempenham: 7.5. Objetivos gerais do programa de geração de trabalho e renda: 7.6. Objetivos em relação a OEP: 7.7. Atividades desenvolvidas junto a OEP: 7.8. Início das atividades: 7.9. Principais avanços da OEP: 7.10. Principais dificuldades: 7.11. Informações complementares:


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