Buster Keaton - o mundo é um circo

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Em The Navigator, Keaton quer usar um pequeno e estranho canhão para defender o barco contra os indígenas. Ele chega até o convés, arrastando o canhão pelo pavio, como se fosse um brinquedo, e o carrega com cuidado, acendendo o pavio. Ao se afastar, o personagem prende o pé no pavio pelo qual há pouco ele puxava o canhão, que assim o persegue. Keaton percebe isso e se desespera, tentando se livrar desse “cãozinho” pesado e perigoso. Os indígenas aparecem atrás de Keaton no momento em que o tiro é disparado; Buster, abaixando-se, evita o projétil, que aterroriza os nativos e os leva a fugir. Mais uma vez, é uma questão da realização. É em função da boa posição dos elementos no quadro no momento exato que os eventos se revertem definitivamente em favor de Keaton. O pequeno canhão que parecia inofensivo e que se revelou perigoso para Keaton – em razão mesmo das proporções e do aspecto que o faziam parecer inofensivo – se mostra, em última análise, terrivelmente eficaz. Em College, Keaton, barman improvisado, pretende imitar o barman virtuoso que ele viu jogar um ovo num copo para preparar um coquetel com destreza profissional. Buster, do mesmo modo, joga um ovo num copo, mas erra. Ele tenta um novo arremesso com um segundo copo, mas erra novamente. Na segunda manipulação, porém, o ovo que não atingiu o segundo copo acaba caindo no primeiro, que Keaton havia colocado no lugar certo do balcão. Buster retoma então o primeiro copo e o serve ao cliente (tudo sem hesitação, com uma confiança prodigiosa, como se ele soubesse o que ia acontecer). Mais uma vez, a aparente falta de jeito de Keaton se resolve num plano superior e, além da imitação, permite que ele invente novas formas. A última gag de Battling Butler, já citada, também adota essa forma de reviravolta-ultrapassagem. Keaton, que se tornou um grande campeão aos olhos de sua amada, pode perder tudo se o verdadeiro boxeador lhe infligir uma correção (ou 218

talvez matá-lo). Mas Keaton, com toda sua vontade tensionada, ultrapassando os limites humanos por intermédio de sua energia, revira a situação a seu favor, buscando em seus próprios recursos os meios para fazê-lo. Se o feito de Keaton é evidente, o enriquecimento da própria situação aqui se deve precisamente ao ultrapassamento imposto por ele; nunca teríamos acreditado que tal energia pudesse existir no mundo, que tal ultrapassamento pudesse ocorrer, que tal reversão de uma situação pudesse se produzir em tais condições. Keaton enriquece a situação com uma intensidade de ultrapassamento sem ele inconcebível. Para terminar em grande estilo, e já que temos o hábito de concluir com ele, citemos mais uma vez a gag final de The General: Keaton pode finalmente beijar à vontade sua noiva, graças a seu heroísmo, mas se vê obrigado – em razão do próprio heroísmo – a bater continência aos soldados que passam. Ao beijar a moça ao mesmo tempo que responde à saudação dos soldados, Keaton resolve, por ultrapassamento, a contradição incluída nas circunstâncias. E essa síntese, na qual ele assume seu projeto num nível superior, é a marca de sua conquista, dentro de uma situação metamorfoseada e enriquecida. Mas essa estrutura “dialética” da gag pode ser estendida a toda a sequência – e mesmo, no limite, a todo o filme. Em The Navigator, a famosa “domesticação” da cozinha e de todo o navio assume essa forma, mas com uma espécie de corte temporal. Temos sucessivamente uma série de primeiras fases: todas as tentativas fracassadas de Keaton. Em seguida, mais tarde, uma série de segundas fases: ultrapassamento e conclusão. A gag, que traduz o modo de adaptação superior de Keaton aos eventos, surge aqui, nessa forma “dialética”, nas sequências e em quase todo o filme. Do mesmo modo, em College (como já vimos), essa estrutura encerra quase a totalidade do filme entre as duas fases de uma imensa gag de forma “dialética”. 219


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