#11 Outros Críticos [ano III - agosto de 2016]

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Ed. 1 # cenas musicais

Ed. 2 # o valor da música

Ed. 3 # paisagem sonora

Ed. 4 # artes integradas

Ed. 5 # o improviso como forma

Ed. 6 # estética e política

Ed. 7 # ruínas e cultura

Ed. 8 # corpo, gênero e descolcamentos

janeiro/2014

outubro/2014

março/2014

dezembro/2014

maio/2014

junho/2015

agosto/2014

agosto/2015

Ed. 9 # o artista veste máscaras outubro/2015

Ed. 10 # história, memória e esquecimentos dezembro/2015

Ed. 11 # tecnologias e sensibilidades agosto/2016

outroscriticos.com loja.outroscriticos.com


assim se fax

A quebra da dicotomia entre Digitais e polegares bilidade. construindo linguagens e est cas paridas batida, rimento,

o diálogo entre

O reverb da curiosidade da infância que monta, desmonta, conecta

tecnologia e sensiétido chão da terra. O bit, a a experiência, o expeos espaços.

isolamentos. lizante nos desacelera.

que abre caminhos, ruido s a m e n t e. O som desestabiO objeto sonoro, o tempo que

A escuta sensível, ciência, arte, rosada. A a l g a r a v i a, boca aberta,

arte. transe:

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máquinas pele

corpo em


COLABORADORES

Bernardo Oliveira

Crítico musical e editor do blog Matéria: música e adjacências.

Bruno Vitorino

Compositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

Fernando Athayde Músico e jornalista.

Gabriel Albuquerque

Estudante de Jornalismo e integrante do grupo de pesquisa LAMA (UFPE).

H. d. Mabuse

Designer, artista visual e músico

Rafael de Queiroz

EXPEDIENTE

Doutorando em Comunicação pela UFPE e repórter da MI (Música Independente).

Carlos Gomes Edição, mediação do debate e texto Fernanda Maia Projeto gráfico Marina Suassuna (DRT 5556/PE) Jornalista responsável e texto Karol Pacheco Texto Paulo Bruscky Artista convidado e foto de capa Camila van der Linden Fotografia

TECNOLOGIAS E SENSIBILIDADES EDIÇÃO 11 - ANO III - AGOSTO DE 2016 Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco). Impressão gráfica: CEPE (Companhia Editora de Pernambuco). ISSN: 2318-9177 Informações ou sugestões: contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com

o artista veste máscaras

história, memória e esquecimento

Ed. 9

Ed. 10

Adquira mais edições da revista em www.loja.outroscriticos.com

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5 artista

convidado Paulo Bruscky

6 artigo

12 artigo

Anotações sobre tecnologias e sensibilidade humana

polegar opositor ao (Y)

por H. d. Mabuse

por Karol Pacheco

Foto: João Tragtenberg/Divulgação

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entrevista por Karol Pacheco

ARTESANIA DIGITAL Foto: Camila van der Linden

Adriano Leão

CRÍTICA DE

BOTECO

28

Neilton Carvalho

Marina Silva

42

artigo 36

A sensibilidade pelo disco físico ainda reverbera

Ocupando Ruídos por Gabriel Albuquerque

por Marina Suassuna

opinião 48

ensaio 52

Ricardo Brazileiro Sofia Galvão Luciano Zanatta Adriano Belisário Leandro Oliván

58

vozes, canto, bocas, coletivos: ALGARAVIA Montagem por Carlos Gomes

Dom Angelo por Bruno Vitorino

60

Rodrigo Ogi

62

Leonardo Panço

64

Clima

por Rafael de Queiroz

Foto: Nino Andrés/Divulgação

por Fernando Athayde por Bernardo Oliveira

resenhas 3


artista

convidado

Paulo Bruscky “Paulo Bruxo!”, exclama Jomard Muniz de Britto, quando fica sabendo que o artista visual estará nas páginas da nova edição da revista Outros Críticos. Com sua arte postal, seu corpo performático sobre máquinas, sua reflexão provocadora sobre o lugar da arte, seus desvios, sua condição de eterna contestação. Sobre os artigos e ensaios dessa edição, a bruxaria de Bruscky fará diálogo entre os temas e suas construções, poemas processos, arte-xerox, xeroperformance e outras de suas criações que se apoiam na arte como a última esperança, dos anos 1960 aos tempos conturbados e instigantes que nos cercam atualmente. 4


fotografiavanderlinden@gmail.com facebook.com/camilavanderlindenfotografiia flickr.com/camilavanderlinden 5


ANOTAÇÕES SOBRE TECNOLOGIAS E SENSIBILIDADE HUMANA

por H. d. Mabuse

É uma prática saudável, ainda mais no momento que estamos passando, não cair na armadilha de pensar no tempo como uma escala evolutiva (sempre agarrada ao falacioso conceito de progresso), mas como uma disposição de relações complexas, onde o relógio da história marca horas diferentes em lugares diversos, no mesmo momento. Também não é uma questão de enxergar, através dos usos das tecnologias, utopias ou distopias, mas sim como se formam essas relações, quais seus atores, quais novos fatos esses usos trazem e em que implicam. Com esse objetivo o presente texto toma forma mais como um bloco de anotações do que de um artigo com pretensão de escrita definitiva do exercício da liberdade e atividade social.

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A HORA DAS COISAS Em meados de 2012, no Centro de Educação Municipal Paulo Freire, escola do município de Vitória da Conquista (BA), a prefeitura fez um experimento com a implantação de um sistema de chips de Rádio Frequência (RFID) nos uniformes de seus alunos. Se o estudante demorasse mais de 20 minutos além do horário de entrada na escola sem atravessar o portão, o sistema enviaria uma mensagem por SMS para o celular do responsável. O uso da nova tecnologia embutida no uniforme era compulsório, automático e, com o objetivo de garantir adesão completa, gratuito. Foi com grande surpresa que os responsáveis pelo projeto viram surgir discussões polêmicas tanto dos estudantes como de seus pais. Dos perigos da invasão de privacidade até questionamentos sobre uma queda da qualidade de comunicação entre pais e escola, agora mediada por um algoritmo, muitas foram as questões que emergiram. Mas o que leva a tanta discussão, quando estamos falando de uma iniciativa de fundo tecnológico com o objetivo claramente positivo de aumentar a assiduidade dos estudantes na escola? Podemos tentar entender dessa forma: quando nos anos anteriores se entregavam os uniformes para as famílias dos estudantes, esses eram artefatos que traziam questões estéticas (estilo, cores, modelagem, corte…) e de uso (tinha função de identificador do estudante como pertencente àquela escola) que eram explícitas e aparentes. No ano de 2012 uma outra camada de propriedades foi acrescentada. Agora o uniforme também era um mecanismo comunicacional, um acionador de um sistema, e, em determi7


nada medida, um substituto para uma decisão de comunicação com os pais, que passava anteriormente por um julgamento humano da administração da escola e agora era realizado por um algoritmo. O caso da Escola Paulo Freire é paradigmático, e tem sido bastante debatido pela academia. Ficou claro que essas polêmicas estão relacionadas a uma falta de entendimento das consequências das novas propriedades do produto. Então, como trazer para o processo de design uma prática que conte com essas características no projeto de artefatos, agora com capacidades informacionais, e que trate de seus impactos com, pelo menos, a mesma capacidade com a qual prevemos o desgaste de um material adotado ou o impacto na hora do descarte? Para esse entendimento é adequado adotarmos uma combinação dos métodos inspirados no filósofo Heidegger, e detalhado por Graham Harman. Como princípio, precisamos entender cada coisa no mundo como a combinação de quatro partes:

A

B

Objeto Real:

Qualidade Real:

Entendendo como o objeto no mundo das ideias.

Qualidades que formam esse objeto no mundo das ideias.

C

D

Objeto Sensível:

Qualidade Sensível:

O que é percebido pelos nossos sentidos.

Quais as qualidades do objeto que percebemos.

Tomemos como exemplo uma mesa. Quando pensamos em uma mesa ela é nosso Objeto Real (A), baseado nas nossas experiências com mesas ela irá apresentar uma forma específica, digamos que quatro pés e um tampo. Como qualidades (B) desse Objeto Real temos ainda baseado nas nossas experiências anteriores e nossa memória, o material da qual é feita, possivelmente madeira, e seus usos. Ao nos depararmos com o Objeto Sensível (C), ele é o que nos apresenta pelos nossos cinco sentidos e as qualidades são as que podemos perceber nesse processo. Cada objeto é a combinação dessas quatro partes. Nosso uso dos artefatos ao mesmo tempo que está relacionado ao fenômeno que apreendemos pelos nossos sentidos durante o uso, é guiado pelas informações que definem o que é aquele objeto, quais suas características e “para que serve”. O que nos interessa fortemente aqui é como se formam as relações entre essas quatro partes. Dentro dessa teoria, a relação entre Objeto Sensível e Qualidade Sensível já é tradicionalmente estudada pelo design, e pode ser definida por um termo: O Tempo. Ou seja, as mudanças das qualidades percebidas por nós nos objetos (Qualidade sensível), seja pelos arra8


nhões que surgem na madeira, ou a ferrugem em tipos específicos de metais, acontecem como fruto do passar do tempo. Daí vem as observações conhecidas no design de produtos sobre materiais que envelhecem bem (madeiras de boa qualidade) ou envelhecem mal (plásticos).

Tempo

Vamos agora pegar outra relação, a que existe entre Objeto Real e Qualidades do Objeto Real. Essa relação é o que define a Essência do objeto. Se pensarmos no objeto Xícara de Chá, baseado nas nossas experiências anteriores, também vem em mente determinadas qualidades para esse artefato: peso, material normalmente térmico, baixa porosidade. Mas, e se entre as novas qualidades a xícara também tiver uma interpretação de compostos químicos para controlar seu consumo de açúcar? E nesse caso, talvez essa xícara tenha um endereço IP. Quais os impactos para quem bebe dessa xícara? Como projetar, por exemplo, de um modo que haja a preocupação em deixar claro para o amante do chá que, mesmo tendo o endereço IP ele mantém a informação sobre localização do artefato apenas para seu dono? Num novo processo de design essa nova “dimensão” de qualidades deve ser tratada com o mesmo cuidado e atenção para seus impactos que o material escolhido para produção da xícara.

Essência

É possível que com essa abordagem na concepção das coisas, nesse momento sob o rótulo de Internet of Things (IoT), as implicações das características da camada informacional dos uniformes da escola em Vitória da Conquista, que claramente foi negligenciada, seria melhor pensada, podendo com ações inclusive muito simples ter, não só evitada toda polêmica, mas também se construído uma reflexão muito mais rica e consciente dos impactos para todos, inclusive em uma das mais críticas questões desse novo momento: a produção de dados. 9


A HORA DOS DADOS Quais as implicações dessa nova “camada informacional" que modifica a essência das coisas? A mais evidente é que, através do funcionamento dessa camada existe uma intensa produção de dados, produção essa que é independente da intencionalidade humana no momento do uso do objeto. Os entusiastas do IoT falam de possíveis 30 milhões de objetos conectados em 2020, dentro desses números estão dos eletrodomésticos das casas até as tomadas e lâmpadas. Para o tratamento de uma quantidade tão massiva de dados vem a calhar uma nova disciplina: Big Data. Entendendo que a análise desses dados não pode ser feita com as ferramentas estatísticas convencionais, essa nova disciplina busca novos algoritmos para transformar esses dados em informação. Com a meta de, em algum momento, construir conhecimento. Isso posto, é importante entender que existe já um mercado dentro dos modelos contemporâneos de produção e consumo, que faz uso comercial dos dados que são produzidos pelas pessoas. Esse grande mercado é alimentado por duas atividades que hoje permeiam o dia a dia de uma parcela representativa do mundo: os atos de buscar (Search) e de Compartilhar (Share). Das buscas do Google, passando pelas compras na Amazon, compartilhamentos no Facebook e Twitter, podendo ser expandido para todas atuais e futuras redes sociais. Em especial em relação a essas redes, alguns pesquisadores, como Luciano Floridi, já

falam de um humano-broadcaster, que não se preocupa com o diálogo na sua intervenção nas redes, mas sim na distribuição massiva e monológica de informação. Essa produção contínua de dados tem um valor para essas empresas. Para elas esse é o nosso valor, inicialmente como usuários e posteriormente como consumidores. Mas existe uma característica nesse processo que flerta com uma distopia, quando falamos da produção de dados no IoT, dissemos que essa produção é independente da intencionalidade humana no momento do seu uso. Isso é verdade, mas existe intencionalidade no momento da criação das “ferramentas" de produção desses dados. Em que isso implica? Estamos falando de um olhar na produção de dados sempre enviesado pela ideologia da circulação de mercadorias no modelo liberal do século XXI (a predominância da metáfora “consumidor" para representar o humano, a quase completa ausência da figura do cidadão). A previsibilidade dos resultados dessa equação, já que construída com um objetivo definido de mapear/criar mercado, acaba sendo um desperdício em relação ao seu potencial como ferramenta. Somos muito mais do que a soma do que buscamos e compartilhamos, como todo modelo é de um reducionismo que, ao se deparar com a complexidade do humano em seu contexto social, não passa do que o próprio Floridi chama de uma “profecia autorrealizável". 10


PASSOU DA HORA DE PÔR UM FIM NAS DICOTOMIAS Não é fácil mudar culturas. Algumas ideias tem um poder de persistir aos séculos, mas em vários momentos precisam ser revistas. A questão da dualidade corpo/alma remonta ao menos de Platão, que definiu a alma (Psykhé), como “o piloto do navio”, que deve guiar o corpo para seu próprio bem. Aristóteles veio então com seu conceito do corpo como o Órganon da alma, que serviria como ferramenta para seu aperfeiçoamento, em ambos conceitos a alma tem uma posição hierárquica superior em relação ao corpo. Tempos depois essas ideias caíram como uma luva para o recém-nascido cristianismo. De lá pra cá, Descartes reforça essas ideias que moldaram através de todas essas metáforas dicotômicas, como entendemos o mundo. Faz-se necessário perguntar: para que serve essa dicotomia? Espinosa, por volta de 1650, fala que essa separação não passa de um pretexto para julgar as paixões e o próprio corpo como coisas que fogem dos desígnios de Deus. Ou em outras palavras, tiram a natureza de seu curso natural, desequilibram a natureza. Pensando dessa forma, vamos refrasear nossa pergunta: A quem serve essa dicotomia? Vamos então tentar um desfecho

(que, espero, levantará mais questionamentos que respostas) para essas caóticas anotações: As relações entre Tecnologias & Sensibilidade humana estão, provavelmente, tão complexas quanto sempre estiveram, talvez pela falta de um distanciamento histórico não conseguimos ver que mais do que uma questão de qualidade nessa relação estamos enfrentando questões de quantidade. A produção e registro de uma quantidade imensa de dados em nosso nome está nas mãos de poucas grandes empresas. Esses dados cada vez mais representam uma persona que representa num novo espaço público, quem somos. Mas com uma visão enviesada onde somos consumidores, não cidadãos. Os impactos podem ser terríveis. Ao mesmo tempo uma longa tradição de codificação de software em plataformas abertas pode dar o acesso a essas tecnologias de uma forma mais democrática. É fundamental que reflexões, com suas imagens distópicas e utópicas sejam compartilhadas por todos. Arte e Ciência atuam no mesmo terreno. Nas palavras de Vilém Flusser: “Toda criação cientifica é obra de arte, toda criação artística é articulação de conhecimento". oc

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polegar opositor ao (Y)

por Karol Pacheco

Estado democrático e político precisa de despersonalização, imparcialidade. Contrariando as expectativas, é Cordial o sistema em que vivemos – apaixonado, emocional. Cordial mas passional. Não ecoam os gritos dos “desterrados em nossas terras” (Sergio Buarque de Holanda), mas sim os dos colonos; pois na escolástica deste País não se aprende nem se ensina que “o cigarro é uma invenção dos índios da América do Sul” (Caetano Veloso). Sempre é o “Velho Mundo” estuprando o “Novo Mundo” em 516 anos de prevaricação. 12


Ao polegar opositor devemos grandes saltos na evolução da espécie. Desde os primórdios ele “permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos, o que, por sua vez, permite a manipulação de precisão” (Jorge Furtado). Combinado com a observação da natureza, propiciada pelo telencéfalo, o polegar opositor deu vida a pinturas e gravuras e aventuras rupestres - pelejas entre plantas, animais e pessoas ilustradas nas paredes das rochas e cavernas que datam de 40 mil a.C.. Nossos dedos ficam cada vez maiores. 13


Polegar é o novo chacra, de tanta energia friccionada nas telas de touchscreens de tablets e smartphones. Dessa maneira, temos cada vez menos contato com a matéria orgânica. Temos cada vez menos contato. A cultura popular, por sua tradição e ancestralidade, transmite através do corpo os impulsos naturais humanos. Do polegar opositor ao dedo indicador, o músico Siba procura transferir para a guitarra os acordes dos repentistas das violas nordestinas. “Fui percebendo que o caminho do virtuose, do cara que domina muito o instrumento, não era muito o meu”, registra no documentário Nos Balés da Tormenta (2012),

de Caio Jobim e Pablo Francischelli, “eu passei a usar somente dois dedos, como um violeiro, e é uma técnica muito comum também na guitarra africana, de se usar dois dedos somente”. Depois de tanta unha gasta, agora na paleta, Siba se apresentou no programa Cultura Livre, da TV Cultura, e indicou a audição do grupo congolês Kasai Allstars (Beware the fetish, 2014), que de acordo com o pernambucano é composto por músicos de várias etnias que se conciliaram musicalmente na bigband. “É muito fácil perceber a profunda conexão que essa música tem com a nossa música brasileira (...) porque realmente é muito fácil sintonizar com essa música. 14


Pra mim foi imediato perceber o quanto a gente tem disso na nossa história; ao mesmo tempo com perspectiva diferente, com distorção, com saturação, com recursos”, disse ele, sobre o disco africano com sonoridades classificadas como “mesmo psicodélicas - música de raiz” e “mistura surpreendente de primitivo e avant-garde” pela crítica especializada europeia. Quando não silenciados, os tambores ancestrais africanos, os sopros indígenas, vibram latentes junto aos corpos descendentes há milhões de anos. Desembocam indubitavelmente na criação, se estimulada: um certo ritmo rapidamente incorporado, uma dança, um outro timbre de voz de pronto assimilado. No ensaio futurista A Cidade do Homem Nu (1930), traçando paralelo com o manifesto antropofágico, o arquiteto Flávio de Carvalho defende a “ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentação sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem, como ele aparece na natureza, selvagem, com todos os seus desejos toda a sua curiosidade intacta e não reprimida”. Faz falta antropólogos de ascendência negra e indígena para assim revelar os depoimentos, até hoje vilipendiados, o que nos ajuda a compreender mais a nossa antropologia social. “É o próprio antropólogo indígena capaz de narrar a sua história, a sua luta e compreender as relações no mundo contemporâneo em que vive”, apresentou o doutor em antropologia social Tonico 15

Benites, indígena. No mesmo relatório do Fórum de Debates em Antropologia, a mestre em antropologia Leila Martins Ramos acrescentou que “as transformações ocorridas no interior das sociedades estudadas, são o resultado de um processo histórico natural a qualquer grupo e que condiz com a concepção antropológica de cultura, à medida que enfatiza as relações sociais, sendo necessário entendê-lo (o grupo) a partir do que representa para si mesmo”. A arte e suas tecnologias podem nos auxiliar nesta travessia civilizatória. As novas gerações vêm ao mundo rodeados de luzes, botões e processadores. Submeter-se a programação digital pode jamais deixar de lado a essência humana; deve evocá-la, porém. Quando as novas gerações bordam fitas de LED nas golas do maracatu rural (veja entrevista com o Batebit nesta edição) a compreensão do nosso tempo é afinada. Registra-se o termo “maracatu” antes mesmo da Lei Áurea; mas a manifestação popular não surgiu com esse nome, que resguarda também uma conotação pejorativa para as reuniões relacionadas às classes subalternas. No caso daquele relacionado às religiões de matriz africana, de baque virado, “maracatu nem tinha nome de maracatu. O nome era nação. Uma ‘nação’ mandava ofício para outro ‘estado’. Surgiu essa palavra pelos homens grandes... quando ouviram os baques chamaram ‘aquele maracatu!’” (Eudes K. Real). Convencionou-se como maracatu as reuniões de negros


“para dançar, cantar e possivelmente protestar contra sua situação de opressão, daí eles serem temidos e perseguidos.” (Roseana Borges de Medeiros). Já ao Maracatu Rural, de baque solto, a poesia, a música e a dança conferem um caráter de contestação que é perseguido social e politicamente até hoje - mais uma forma de abafar a identidade e resistência dos filhos desse solo. Nas palavras de um trabalhador rural, lemos no livro Maracatu Rural - lutas de classes ou espetáculo? (2003) um registro oral das origens e finalidades desta brincadeira de gente grande: “porque na época que começou os maracatus, eles faziam aquele samba na senzala em protesto de alguma coisa [...]. Eles achavam ruim, ele é feito o índio, quando tão dançando ali, é um protesto”. Convivemos a todo momento com dissensos políticos e culturais. No Portão do Gelo, comunidade da Xambá, em Olinda, o Grupo Bongar busca fazer da brincadeira do coco uma ferramenta para a melhoria local. “Somos assim, QUILOMBOLAS DE MARRA, porque buscamos muito mais a garantia da memória e ancestralidade que nos foi legada e destinada a mantermos elas tendo como caminho as novas gerações da Xambá”, lê-se em texto postado em sua fanpage. Em 2009, o grupo realizou o Encontro de Tambores: Mitologia, Memória, Música e Tecnologia (Saudação a Ogum), com o ponto de cultura paulistano Casa de Tainã. Foi realizado um intercâmbio entre os músicos do Bongar e a Orquestra de Tambores de Aço da Tainã, através de um trabalho dos mitos do Orixá Ogum, dono dos metais, ferramentas e tecnologia. Na comunidade, foram realizadas oficinas de tambores de aço, tambores da Xambá e de software livre. Corpos do Norte e Nordeste estão contraídos há centenas de anos, mas mulheres e (privilegiadamente) homens resistem com seu direito a celebrar, fazer seus rituais, despejar suas dores e alegrias: um Homem da Meia-Noite que seja, um Parintins, uma pipoca preta em Salvador. Por isso, as brincadeiras e festas populares sempre foram um instrumento de resistência, de expansividade e permanência. A música é em especial um instrumento de pertencimento físico, pois é direito de todos terem a experiência do transe coletivo, do corpo que reage por impulsos quiçá genéticos. Direito de palpitar em sincronia com o tambor dos peitos quando se “ouve um tambor ancestral tocar” (Beth de Oxum, OC #3). oc [+] Veja conteúdo extra no site: outroscriticos.com

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Foto: João Tragtenberg/Divulgação

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BateBit ARTESANIA DIGITAL

O BateBit Artesania Digital encontra nos consoles, controladores, sensores, aplicativos e outros aparatos uma maneira de trabalhar digitalmente a música. O próprio nome indica: bater o bit. Tocá-lo, quase como que entalhá-lo tal qual uma madeira a tomar forma. Com essa abordagem artesanal, João Tragtenberg e Filipe Calegario desenvolvem uma pesquisa em concepção e desenvolvimento de novos instrumentos musicais digitais que contou com a participação de diversos músicos pernambucanos, como Siba, Raphel Costa, Helder Vasconcelos, entre outros. O BateBit acredita no poder dos usuários finais, que passam a ter autonomia para programar o produto digital; o usuário final deixaria, então, de ser final para também participar ativamente do processo de construção da tecnologia. Tecnologia esta que pode ser encontrada tanto numa “fitinha de LED” quanto em cada lantejoula e miçanga bordadas na tradicional gola de um caboclo de um maracatu rural. por Karol Pacheco 19


Como foram as primeiras experiências de vocês, mesmo antes do BateBit, com a tecnologia musical?

Filipe: Jarbas Jácome fez doutorado de computação musical, o que abriu as portas pra muita gente na Universidade (Federal de Pernambuco). Fiz o meu trabalho de graduação em computação, de como eu gero melodias a partir de movimentos num console de nintendo Wii. Ainda assim, quando eu voltei da Alemanha, me envolvi num grupo chamado LaboCA - Laboratório de Computação e Arte. E aí a gente participou de festivais, e fez oficinas em vários lugares do Brasil, usando técnicas de computação, música e artes plásticas. E com Jerônimo Barbosa, conhecido como Jeraman, fizemos uma parceria que rendeu vários frutos, como o repentista virtual. Você escolhia e falava as palavras que eles queriam que fizesse uma música: iam no Twitter, pegava o que as pessoas estavam falando e começava a recitar. O resultado era meio estranho. Do nome Repentista Virtual, o povo esperava algo mais nordestino e vinha uma voz robótica meio estranha.

Como é que vocês veem a acessibilidade, a questão do ensino da programação, já que ainda é um ambiente muito restrito?

Filipe: Eu queria ser até mais ativista nessa causa porque eu acho que, num futuro próximo, a gente vai precisar de programação para poder se comunicar com as máquinas depois, sabe? Você, além de ser um consumidor de coisas que vêm de fora, você ter a possibilidade de modificar e construir suas próprias coisas. Acontece agora uma convergência internacional de várias coisas, por exemplo: o Cold é uma delas, ele é um site que ensina você a programar e você poder escolher a linguagem de programação e tal. Várias empresas estão se juntando para poder investir nesse Cold; paralelo a isso, tem um movimento chamado Maker Movement, no qual em vez de ser só consumidor de tecnologia – vemos as pessoas querendo fazer seus próprios artefatos, seus próprios projetos. Massivamente, na internet, agora, dá para se achar projetos compartilhados, há venda de sensores de forma mais barata e mais acessível. A gente se vale muito desse Maker Movement, através do qual a gente consegue ter acesso a esses sensores e placas que antes não tinha acesso e que era só restrito ao mundo da eletrônica, da engenharia eletrônica. João: Antes só a indústria tinha acesso àquele sensor. Hoje em dia, pra quem quer fazer as coisas, hobista; ou pra alguma solução que é no trabalho dele, mas não é a especialidade dele fazer aquilo, tem cada vez mais gente fazendo coisas com essa tecnologia. Filipe: Hoje são várias coisinhas que, quando combinam, emergem. Acho que foi primeiro a internet, com essa coisa de compartilhar de forma imediata; a questão dos sensores estarem mais baratos; e a questão de uma preocupação de transferir essa tecnologia para o usuário final, entendeu? Então tem tudo a ver com programação, pois é como se tudo estivesse convergindo. Então, muito próximo vai ser muito mais fazer do que só consumir. E isso tem tudo a ver com o que a gente faz, com o trabalho que a gente faz no BateBit, que a gente discute no MusTIC - que é um grupo de pesquisa lá da federal -, que é a principal questão: como a gente dá poder na mão do usuário final, da ponta, sabe?

Foto: João Tragtenberg/Divulgação

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Filipe: Esse projeto ele meio que foi fruto de uma convergência de três pessoas que estavam saindo de uma fase e entrando em outra. Eu estava terminando o mestrado, entrando num doutorado já, João estava no meio de um processo e Jefferson já estava acabando o seguro-desemprego. Bem como uma convergência de situações que nos levou ao projeto do Funcultura... E a gente se perguntava muito do por que desta música que está sendo produzida com essas novas tecnologias musicais estar sempre associada a uma estética europeia ou americana? Ora, porque lá estão esses centros de desenvolvimento, tecnologia e pesquisa e tal. Mas a gente aí no Recife também tem uma pesquisa interessante, mas parece que a conversa entre a academia e a comunidade de músicos fica completamente perdida no processo – por exemplo, o cara defende o mestrado e acabou. E a gente começou a refletir: será que não faz sentido usar essas tecnologias musicais, que a gente está desenvolvendo, no contexto da música popular de Pernambuco?

Foto: João Tragtenberg/Divulgação

Música popular vocês definiram como? A cultura popular mesmo? A música tradicional?

João: Então, música popular a gente definiu como: não sendo música erudita, nem música eletroacústica, nem música clássica. Música popular incluía tanto música tradicional quanto rock, samba, maracatu. Filipe: A gente passou um tempo discutindo como seria esse termo, e no projeto a gente especificou direitinho assim: é tudo aquilo que não é erudito, nem experimental. Mas assim, a gente ficou muito nesse meio entre... será que é tradicional? A gente vai trabalhar no tradicional ou vai se inspirar no tradicional, sabe? Então definimos esse contexto para ter como tomar algumas decisões, como por exemplo, na hora que for convidar um artista. João: Esse projeto, especificamente, não rolou nenhuma inspiração da cultura popular tradicional, mas engatilhou, por exemplo, o projeto do Caboclo Eletrônico, que estou fazendo agora. Foi quando eu vi: pô, não tem demanda para criar alguma coisa com música, maracatu, no cavalo marinho, coco de roda. Mas opa, eu vi um cara com um LED ali e eu quero me meter nisso aí e abriu pra esse projeto. Mas a Lutheria Digital ficou no universo dos músicos, luthiers, pesquisadores, da música que se faz no Recife hoje (música de rua, música de festival, música de show).

Foto: Alcione Ferreira/Divulgação

Me contem sobre esse projeto Diálogos entre a Lutheria Digital e a música popular pernambucana. Como ele se deu?

No site batebit.cc é possível encontrar informações e tutoriais sobre os instrumentos musicais criados pelo grupo, como o "Disque-Som" e o "Pandivá".

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Definido o público, os músicos que vocês iam alcançar, como é que foi esse trabalho. O que vocês procuraram? Como é que foi essa intervenção?

Filipe: Foi um processo meio cíclico e, ao mesmo tempo, muito caótico. E isso é muito importante: gerar novas ideias, ser um pouco caótico no meio do caminho, mas a gente entrevistou músicos que se aplicavam nesse contexto de música popular, extraiu dessas entrevistas algumas inspirações, a questão do DJ Dolores por exemplo. Tinha essa coisa de o público não saber o que estava rolando no set dele, ali na mesa - que ele fica na posição horizontal e as pessoas não veem o que ele está fazendo. Fica parecendo que ele está acessando e-mail, ou coisa assim. João: Porque a gente queria se inserir no contexto, saber os problemas do contexto e se colocar no imaginário desse contexto: que tipo de coisas, quais são os problemas, e como as pessoas se relacionam com as ferramentas.

Foto: João Tragtenberg/Divulgação

Filipe: O que me inspirou a fazer os instrumentos foram essas coisas do DJs; e conversando com Siba, que foi bem específica, a relação dele com instrumento: “tenho uma técnica e vou desenvolver uma técnica naquele instrumento”. E nas discussões da gente me levou a considerar pensar num instrumento que existe e expandir esse universo para o cara aproveitar do próprio gesto, que ele já faz, pra tocar um instrumento que não existe ainda. Foi aí que eu fiz o Pandivá que é um “pandeiro de vara”, um nome até que surgiu nas oficinas que a gente fez. Que um cara pode tocar com a pose do violão e controlar com a vara como se fosse de um trombone de vara. E aí foi massa, é inspirado no pandeiro e a vara do outro lado. E foi massa porque a gente testou com Helder Vasconcelos, Carlos Amarelo, Jam da Silva e Raphael Costa. Três percussionistas e um violonista. E o massa foi: “não vamos dizer como esse negócio foi usado”. Dá na mão da pessoa e a pessoa resolve como é que usa. O que a gente quer é realmente saber se o instrumento está se comunicando de alguma forma. E o massa foi ver que cada um tocou de um jeito... O Casulo é uma instalação interativa que consiste em uma roupa que ao ser vestida transforma os gestos em som e imagens projetadas. Foi feito para a inauguração do Armazém da Criatividade do Porto Digital em Caruaru pelo BateBit em parceria com Leandro Oliván, Fred Ferreira e o Arkade Estúdio.

João: Helder tocou aqui em cima; Jam da Silva colocou no colo; e o Raphael Costa pegou que nem o Helder, no fim, como violão.

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São instrumentos novos e tem isso de cada um fazer uma leitura nova disso, o que é diferente dos instrumentos que já estão aí e todo mundo, mesmo que não saiba tocar - quem pega numa flauta sabe como vai segurar, quem pega numa sanfona, violão etc. Mas depois de feito, existe mesmo essa liberdade, ou foi só essa experimentação para que as pessoas pegassem como bem entendessem? Existe um manual de instruções, vocês determinam isso para que eles sejam melhores aproveitados?

Foto: Barbara Lasserre/Divulgação

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João: Nenhum deles está em estágio de produto, onde a gente já consegue colocar “Ó, isso aqui custa tanto e toma aí o manual de instruções.” Não vem essa questão se tem um manual de instrução ou não, mas há uma vontade de... Filipe: Eu acredito muito nessa coisa emergente de a pessoa que está usando ressignificar o objeto. Então eu acho que, no caso da gente foi um experimento, mas se o cara quer tocar nas costas, se ele curte tocar nas costas, isso é o que abre fronteiras. No caso desses instrumentos, foi muito interessante descobrir que uma guitarra que o cara passa a língua nas cordas, ou então que toca a guitarra no colo. Ele está expandindo as técnicas de tocar aqueles instrumentos. Para esses instrumentos, no caso do Pandivá, especificamente, eu acho que foi muito interessante ver que o modelo mental do cara que estava usando levou o cara pra um lugar que eu não tinha pensado. Acho que isso é muito rico, entendeu? João: Isso aconteceu muito no desenvolvimento da guitarra elétrica, por exemplo. O inventor da guitarra tinha contato direto com músicos que usavam de formas diferentes e entendia: “opa! Dá pra usar desse jeito, então fica melhor se eu colocar a alça mais pra esse lado aqui; depois, talvez outra pessoa use daquele jeito que nem numsei-quem usou, então deixa eu preparar esse adaptador aqui”. Então, a gente acredita muito nesse design centrado no usuário, que parta do usuário, do músico com necessidades criativas, para onde o instrumento vai andar. A gente está caminhando junto, está tateando junto como esse instrumento vai ser. É bem esse bate-bola: vai e volta e vai e volta. A gente modifica, leva, acho que isso é bem interessante.


Filipe: Sobre qual é a relação dessa tecnologia com a tradição. A gente foi lá apresentar um trabalho do BateBit lá na Louisiana, nos Estados Unidos, e foi massa, pois justamente uma pessoa perguntou. Sim, qual é a relação da cultura popular? E tá aqui no Doutorado, mas uma coisa massa foi ver o feedback do povo em dizer que a tradição, (ali na Louisiana, do Mardi Gras, uma tradição afro-americana). Talvez a beleza da tradição, justamente, resida nesse mantenimento durante o tempo. Mas eu acho que é muito invasivo a gente querer impor algum tipo de nova tecnologia para aquele determinado tipo de tradição, mas a gente pode fazer, por exemplo... Posso até usar um pouco da palavra mashup, pra pegar um pouco da tradição... Que é pegar um monte de diferente e juntar numa só.

Eu queria colocar as aptidões diferentes, do que é mais técnico e do que é mais criativo. Como essas aptidões se unem numa pessoa, ou num coletivo, pra poder dar vez a um novo produto, um novo instrumento, ou para refazer o que já existe etc. Sobre essa dinâmica arte + tecnologia, mesmo conversando entre si, como é que é?

João: Antes de entrar nisso, pra concluir a história do maracatu, eu tinha visto esse caboclo saindo com LED. Eu achei foda, eu achei bonito, e vi. Tá... Dá pra ficar melhor, mas eles provavelmente não sabem. Depois eu fui saber que eles ligaram num esquema que queimou o LED depois de muito tempo. Não tinha conhecimento técnico como eles têm de bordar uma miçanga, de bordar uma lantejoula melhor que qualquer um, mas não tem esse conhecimento do material novo. O projeto veio justo pra instrumentalizar eles, pra usar LED. Eu dei oficina lá pro pessoal do Piaba de Ouro, a gente fez vídeos, eu vou publicar vídeos com o passo-a-passo pros outros maracatuzeiros entrarem no YouTube e ver como é que faz. Mais do que tudo, é um estudo, uma pesquisa junto com eles de como isso pode ser feito. Exemplo: a fita pode ser em linha reta, ao invés de um pedaço. Isso aqui não é um processo de um ano, o Funcultura foi uma parte dessa pesquisa. É uma coisa que eu vou levar adiante, porque é uma coisa que me interessa, Me interessa muito esse artesanato, me interessa muito brincar no maracatu rural, me interessa muito sair de caboclo em um maracatu. É uma coisa que eu gosto de fazer, que eu me envolvo. Não sei o quanto em qualquer maracatu de abertura eu tenho de fazer algo com LED..., mas no Piaba de Ouro sim, é natural, tanto por eles já terem feito, como o papel que eles têm no maracatu rural. De juntar coisas inéditas, lançar materiais novos para serem usados. Segundo eles, introduziram na tradição o arroz (umas peças de plástico branca ou amarelada) pra contornar os desenhos que antes não se usavam; lantejoulas holográficas que refletem não só a cor delas, mas refletem várias coisas; cortar o tecido pra fazer o chapéu. Todas essas tecnologias dos materiais que vão aparecendo eles têm um papel de inovação no maracatu. oc

Foto: Barbara Lasserre/Divulgação

Tem também aquele som que faz tuntuntun - aquele chocalho de sinos, faz tudo parte daquilo. Que também está dentro dessa tecnologia. Mas, nesse sentido bem sutil, do que se entende por tradição, de se manter algo como é, como foi para o Maracatu Piaba de Ouro receber essa tecnologia LED?

O Piso Interativo é uma instalação/ instrumento musical gigante em que a pisada no chão produz luz, sons e projeções de motivos do Dingbat Cobogó, do designer Guilherme Luigi, baseado na pesquisa Cobogó de Pernambuco do fotógrafo e pesquisador Josivan Rodrigues.

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Foto: João Tragtenberg/Divulgação

“''eu acho que e muito invasivo a gente querer impor algum tipo de nova tecnologia para aquele determinado tipo de tradicao.''" Filipe Calegario

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A seção Crítica de Boteco promove a cada encontro um debate sobre temas abordados na revista. Com o tema “Tecnologias e sensibilidades”, esta edição foi fotografada por Camila van der Linden e gravada no estúdic Casa do Kaos, no centro do Recife, com a participação dos músicos e pesquisadores da Altovolts, Neilton Carvalho e Adriano Leão, e da musicista Marina Silva, integrante da banda Team.Radio. A mediação do debate foi feita por Carlos Gomes, editor da revista Outros Críticos.

Foto: Camila van der Linden

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A descoberta do som Carlos: Quando foi que vocês começaram a serem sensíveis à música como um espaço artístico (para a criação) e a perceber como a tecnologia também fazia parte dessa sensibilidade, na trajetória de vocês? Adriano: O start pra mim é... Tem a eletrônica... Eu tinha vizinhos que trabalhavam com som, ainda muito moleque, uns tios que eram músicos... E tem a parte de mecânica, que meu avô e meu pai mexem com isso. Eu comecei na curiosidade de montar e desmontar coisas – pra música, nessa coisa ligada com som. Um vizinho tinha uma oficina de eletrônica e eu ficava xeretando, achava massa, bonita as máquinas. Eu ficava lá e de vez em quando o cara me dava uns aparelhos velhos. Eu peguei um gravador de mesa Philips, do caramba. Eu ficava na curiosidade de gravar fitas, fazer beat. Já com fita cassete ou de ficar gravando base com um 3 em 1 em casa. Grava um canal depois outro por cima, várias guitarras por cima. Lembro de, com um delay bem fuleiro, ficar criando uns loops bem toscos pra virar uma batida, e depois fazer riffs de guitarra em cima. Aí montei uma banda punk, mas acho que não usei nada disso. Mais na frente toquei na Irmandade, aí voltei a mexer com tecnologia. Acho que aquilo era pós-punk...

nar do meu jeito, ver os pedais. Aí Neilton começou a me ensinar uns negócios, já tocava no Devotos. Eu também pegando guitarra tosca e montando do jeito que eu achava que era. E era massa que o som do Irmandade era isso, as afinações doidas que a gente fazia. Mas a música saía do jeito que a gente queria. Esse foi meu início: estar em oficina de fundo de quintal, depois entrar em banda, mais experimental com o lance de tecnologia, desmontar aparelho... Carlos: E com você, Marina, acho que é mais ligado a gravar em casa, a difundir na internet... Marina: Desde criança eu sou fascinada por música... Minha irmã estudava piano e o primeiro instrumento que eu aprendi – porque eu a invejava muito – foi o piano. E desde os 9 anos de idade, em todas as oportunidades que eu tive, não foi uma experiência muito tecnológica. Foi superanalógica. O que eu gosto é de fazer música ao vivo. Fazer parte de um grupo, construir aquele som ao vivo. A minha primeira experiência coletiva foi com banda marcial. Comecei tocando prato e depois tarol. E montei minha primeira banda com 13 anos de idade, mas sempre fugia da tecnologia, como eu fujo hoje (risos). Eu cantava e qualquer coisa com tecnologia era um bicho que eu não conseguia entender. Nessa época eu comecei a gostar mais de artistas...

Neilton: Com uma intenção eletrônica. Adriano: É... industrial. Era tecnopobre (risos). A gente não tinha pretensão de ser eletrônico, mas ao mesmo tempo o vocalista Marco era ligado a essa coisa do industrial, ele tinha um selo, era especialista em vender esse tipo de gênero musical. Neilton: Existe o underground. Ele estav abaixo do underground. Adriano: E tem uma galera do interior daqui que curte esse tipo de coisa. Eu tocava baixo e fui tocar guitarra no Irmandade, nunca tinha tocado, mas foi massa. Aí comecei a experimentar. Afi29


Não necessariamente folks... Mas que fosse uma coisa mais crua. Eu ouvia muito Nick Drake, Elliott Smith. O que me chamava muito a atenção era como eles sozinhos conseguiam ser tão completos só com a voz e o violão. Isso me afastou ainda mais (da tecnologia) e eu apostei mais na performance. Quanto mais simples melhor... Carlos: A sua geração é mais recente e nela está presente a gravação lo-fi, caseira, de maneira mais forte... Marina: Inclusive, saber que os artistas... Eles mesmos faziam tudo... Elliott pegava um four-track e fazia o disco. O primeiro dele foi basicamente ele gravando assim. Só que eu não sabia nada disso na época. Eu não fazia ideia de como as pessoas registravam a música. E não tinha nem muita ideia de como fazer de forma amadora. Eu não conhecia ninguém que mexia com isso. Quando a gente tinha 13 anos de idade só queria parecer o que tinha no mainstream. Até que eu percebi que ao meu redor não existia muitas pessoas com quem eu me identificasse musicalmente, mas na internet era muito mais fácil encontrar essas pessoas. Eu fui entrar no Myspace e vi as pessoas fazendo música com o que tinham na mão. A primeira coisa que eu gravei foi com aquele microfonezinho branco, aquele clone. Eu só ligava na placa on-board no computador e gravava a composição que eu fazia no violão. Eu sou muito presa a isso ainda. De terminar a estrutura da canção e executá-la inteira. E só registrar a performance. Sem trabalhar muito a estética, com a tecnologia que eu tinha disponível. Eu gravava e colocava no Myspace, a partir daí as pessoas viam o que eu fazia e comecei a entender como as outras pessoas trabalhavam com isso. Vim a conhecer os programas... Carlos: O salto para fazer faculdade (Produção Fonográfica) veio dessa dificuldade de mexer sozinha? Marina: Tem, com certeza. Mas até o curso, levou um pouco de tempo. Esse contato com as pessoas da internet foi muito importante pro meu repertório e para minha vida de musicista na cida-

de. Porque as pessoas que eu conheço hoje foram por conta do Myspace. Antes de entrar na Team.Radio, eu os ouvia no Myspace, e quando conheci Thiago Gadelha na internet, que ele me ouviu cantando em algum lugar... Ele me chamou pra participar de uma banda em que ia estar um cara da Team.Radio, que era Roberto Kramer. E eu enlouqueci, porque ia estar tocando com uma banda que eu gostava muito. E que eu não fazia ideia de onde poderia encontrá-lo pela cidade pra falar de música. Nesse período ele me chamou pra entrar na banda e depois fui cursar Produção Fonográfica, mas não foi só a questão tecnológica que me fez estudar, porque eu já tinha uns dois anos de banda, e me interessava muito também a parte de produção executiva, de como poderíamos fazer a banda andar. E os meus estudos, até agora, focam mais nisso, de escoamento da produção e história da música. Neilton: No meu caso... Eu sou caçula de quatro irmãos. Meu pai ele era boêmio. E levava muitos vinis pra casa. Elvis, trilha sonora de novela, samba enredo; e ele tinha muita moral na cidade, trabalhava há muito tempo no Centro, e os caras liberavam o disco pra ele levar pra casa. “Se tu gostar tu fica e paga e devolve o resto”. Eu tinha acesso a muita coisa. Lembro quando chegou a primeira vez com uma coletânea de Elvis, botou na vitrola, eu disse: “O que é que é isso?!”. Porque até então era só umas coisinhas meio bregas, e quando chegou com guitarra, meio rockabilly... Quando criança, a gente fazia tambor de lata, de brincadeira. E comecei a pensar a fazer violão... Carlos: Com quantos anos? Neilton: Acho que uns 8 anos... Isso está atrelado não só a parte musical, mas a visual. Porque a gente gostava muito de Hanna-Barbera. Eu não tinha televisão em casa. A gente via no vizinho e voltava pra casa desenhando no papel de pão. E queria fazer banda. Era minha irmã tocando os tambores e cantando e eu e meu irmão improvisando o violão com a parte de trás do 30


armário de mãe. (risos) Se você conversar com meus irmãos eles não vão nem lembrar porque marcou mais a mim. A gente chegou a fazer uma música, “A mulher gigante”, que minha irmã escreveu. Só que a gente não tem ninguém na família que tem uma vertente artística. E nenhum dos meus irmãos seguiu. Eu segui por tabela, fui atropelando. Quando vê caí no Devotos. O meu contato com música foi de criança que não tinha brinquedo. A tecnologia, a parte de gravação... Meu irmão doidinho, que é o mais velho... O meu pai comprava aqueles gravadores mono... De Jornalista, de fita cassete... E aí enlouqueceu... Quando o pai apertou o rec-play, botou pra gravar... Primeiro a gente começou a rir da gente mesmo. Escutando a voz da minha mãe, da minha vó, que são do interior, de Timbaúba. Não sei a descendência, mas elas tinham traços indígenas. E meu pai urbano. Vê o choque. O meu pai mostrando a cidade e mãe relutante... Era quase aquela coisa de índio vendo o espelho. E eu e meu irmão começamos a inventar coisas. Não chegamos a gravar o que estávamos fazendo. Não atinamos pra isso. Ficava vendo como a fita funcionava, aí quebrava. Altos choques elétricos. Desmontando rádio pra ver como funcionava. O contato foi tão lúdico, a parte sensível da música e da tecnologia não teve nenhuma intenção de querer aprender como funcionava isso.

Imagina, um cara que não sabia tocar violão, compra a primeira guitarra, e o que ele faz? Desmonta a guitarra. Eu queria saber como ela funcionava. A minha ligação com a parte funcional das coisas era muito maior do que saber pôr um acorde. Meu pai me viu e perguntou: “O que é que tu fez?”. Eu estava com a guitarra toda desmontada. Aí depois montei. Esse foi meu aprendizado. Tinha uma revista chamada Nova Eletrônica, que era editada pelo Claudio César Dias Baptista. Eu tenho a número 1. Hoje com a internet você é amigo do cara no Facebook. (risos) Mas naquela época ter uma revista que tinha eletrônica e ele mostrando como funcionava um PA... Em 1984.

Foto: Camila van der Linden

Quando o tempo foi passando e o envolvimento com banda. A minha primeira banda foi cantando. Pense na desgraceira. E a segunda foi tocando guitarra sem saber tocar. No mesmo esquema de Adriano. E era uma banda querendo fazer trash metal, vê só, com um guitarrista que não sabia tocar. (risos). Chamava Túmulo. A gente ainda conseguiu fazes uns shows. Mas como a gente não sabia tocar, o baterista tentando aprender... Virou uma banda de trash core. Ele não sabia usar o bumbo. Imagina. E o vocalista que não sabia tocar. Essa banda foi meu ponto de partida com a guitarra. Quando eu comprei a minha primeira guitarra... 31


Foto: Camila van der Linden

Mudanças tecnológicas Carlos: Como vocês viveram essas mudanças tecnológicas mais recentes? Se foi de forma mais gradual, com os novos equipamentos para gravação, a proliferação de estúdios caseiros e a presença da internet para a música. A não dependência de estúdios ou gravadoras, o lo-fi como uma estética...

valor em si que você buscava? Marina: Era um valor... Carlos: Ou pensava o lo-fi como um outro valor? Marina: Eu pensava também, mas existia também a boa qualidade dentro do lo-fi, e eu buscava aquilo. É muito mais do que isso. Eu era muita ingênua. Achava que ter onde gravar e o microfone – que era muito bom – mas exigia um estudo mais aprofundado. Eu não sabia nada de mixagem e aí vim descobrir depois que precisava entender. Porque as coisas simplesmente não soavam certas. Eu mandava pras pessoas e elas diziam que gostavam, mas falavam: “Eu não entendo porque você me mandou em 8-bits”. (risos). Eu não entendia nada.

Marina: Eu comecei já nisso, não houve transição. A internet foi muito responsável pela formação do meu repertório. E de amigos na internet, que faziam gravações e me mandavam pelo Messenger. Mas depois que coloquei as primeiras músicas no Myspace é que comecei a falar com músicos que estavam se aprofundando nesses estúdios mesmo. Todo mundo querendo colocar o melhor equipamento no home studio. Porque em 2008 ele já era uma realidade. Tinha gente com equipamentos razoáveis. E falando com esse pessoal e procurando saber o que eu tinha que fazer para o meu som soar mais profissional. Eu não tinha condições financeiras pra isso. Mas eu tinha um tio que queria me dar uma bateria e quando me viu tentando entrar mais nesse terreno tecnológico ele montou um estúdio pra mim. Compramos um microfone condensador, uma placa de áudio. Aí dentro de casa eu já conseguia fazer um som muito mais próximo da qualidade profissional.

Carlos: Você se sentia num contraponto em relação aos outros músicos? Marina: Sim. Porque sentia muita dificuldade em lidar com a tecnologia, que sinto até hoje. Eu queria um registro da voz e do violão, mas não consegui ultrapassar isso e usufruir de todo o resto. Eu não tinha noção de MIDI. As minhas produções ficavam muito limitadas por conta disso. Carlos: E o momento de fazer parte de bandas? Tem a ver com essas limitações?

Carlos: Essa qualidade profissional é um

Marina: Na verdade, ser chamada para 32


Neilton: Lee era o cara que antes de mim, Adriano e Gilson, da Altovolts, ele poderia ser a referência do que a Altovolts é hoje, porque ele começou fazendo um estúdio, e era ousado nesse sentido. Ele não entendia de acústica, de eletrônica. Ele simplesmente fazia. O estúdio que Adriano está falando não tinha amplificador para guitarra nem pra baixo. Era uma mesa de som e a gente achava que era assim. E ele tratou a sala, colocou os caixas embutidos no teto. E fez uma micro-sala onde estava tudo ligado. Só que o mais doido que isso possa ser, e o mais tosco que possa soar, era do caralho. Era barato e... Um monte de gente tomando vinho, tocando violão e no estúdio de Lee.

uma banda foi uma surpresa e um choque. Primeiro, porque eu estava tentando me aperfeiçoar em violão e voz, em fazer shows acústicos. Não conseguia pensar muito além disso. E Roberto Kramer me chamou para a Team.Radio, que tinha influências que não eram as minhas. Eu fui tocar sintetizador. Eu nem tinha mais um teclado. E é uma banda que trabalha tecnologia bem fortemente. Desde sempre. As principais influências eram shoegaze e dream pop, eu nunca tinha ouvido boa parte daquelas coisas. E foi um choque porque era um teclado, mas não como eu costumava tocar. O que eu tocava era simulando um piano, simulando um orgânico mesmo. E na banda eu tive que tentar entender um pouco mais dos sintetizadores, como aquilo funcionava. Lembro que cinco meses depois a gente tinha que gravar um EP, e eu tinha tão pouco domínio daquilo tudo que eu nem conseguia fazer muitos arranjos no sintetizador. Os meninos tinham que me ajudar porque realmente eu não conhecia. Talvez perceber o quanto eu não conhecia nesse período, que o curso da AESO, a parte técnica também tenha me interessado tanto. Para suprir essa necessidade. E que foi muito bom nesse sentido. Apesar de ainda ter dificuldade com tecnologia. Porque eu me sinto velha. Eu não tenho paciência de sentar na frente do computador e botar o teclado MIDI porque eu quero pegar o instrumento e poder ter um contato íntimo com o instrumento. Mas eu estou superando isso.

Adriano: Para a cidade toda foi importante o estúdio. Todas as bandas de rock passaram por lá, independente se era zona sul. De todo lugar ia pra lá. Bandas de metal, de rock, punk. Lá era onde todo mundo se encontrava. Eu lembro que Decomposed God, a banda de metal mais importante daqui de Pernambuco, os caras começaram lá. Eu ainda participei da primeira formação dos caras. Neilton: Lee começou a projetar o “Ego 2” – “Ego” era o nome do estúdio. O 2 era a coisa mais louca do mundo. Eu que terminei até dizendo pra ele: “Não faz, não faz”. (risos) Porque ele fez o estúdio todo em pedra. A casa dele era atrás da casa da mãe dele, no Alto José do Pinho, e tinha um morro caindo por cima da casa. E ele que fez o muro de arrimo, do jeito dele. Ele aproveitou as pedras do muro de arrimo e fez “a caverna”. Que era literalmente uma caverna. Ele fez primeiro um estúdio sobre o piso e depois foi dormir e acordou querendo fazer um subterrâneo. E começou a criar máquinas pra cavar o chão. Coisas de Júlio Verne. Ele cavou a ponto de encontrar água e ter que tampar a nascente. Ele disse: “Neilton, eu peguei a pilastra principal da casa por baixo”. Eu disse: “Faça não, meu irmão, você vai morrer”. Mas depois ele acabou se afastando. Essas iniciativas da gente, Adriano, Gilson, eu... Lee era pra ser o mentor da gente. Eu fui paralelo a ele. Naturalmente ele era uma escola, mas como era mais arisco a turma acabava vindo mais a mim.

Carlos: E para vocês, como foi viver essa transição? Adriano: Pra gente foi complicado. Porque a gente fazia parte da cena punk. Esse negócio de estúdio massa ou gravadora era outra realidade e ao mesmo tempo não interessava. A estética da história era mais registrar de qualquer jeito, ao vivo... Carlos: Mas vocês queriam montar o próprio estúdio? Adriano: Isso tinha. Porque a gente queria um lugar pra ensaiar e pra registrar. Mas não tinha a corrida por uma tecnologia, de um gravador foda. O estúdio de Lee, que foi o precursor de tudo isso... 33


Foto: Camila van der Linden

Construtores, inventores Carlos: Quando vocês começaram a produzir os próprios equipamentos com a Altovolts e também quando outros músicos quiseram também ter as coisas que vocês produziam?

mercado e comprava latinha de sardinha com pão, aí abria a sardinha e fica olhando pra latinha: “Pô, ali daria um pedal dentro, né?” (risos). Sem falsa modéstia, os primeiros a fazer essa loucura de colocar um circuito elétrico dentro da lata de sardinha foi a gente.

Neilton: A gente fazia coisas em paralelo e Gilson estava se enturmando com a gente. Eu fazia pedais, mexia nos amps com meu irmão. Como qualquer adolescente que está vendo tecnologia, em que o primeiro acesso já é com computador, a gente não tinha acesso. Mas tivemos acesso aos primórdios da gravação. Os gravadores de fita cassette.

Adriano: A gente ia pro mercado e ficava olhando as latas. (risos) Lembro que a gente comprou uma de doce... Doce ruim da porra... Neilton: Lembro que isso estava no set do que a gente tocava. A gente foi tocar no Sesc Pompeia. Era Devotos e convidados. Tava Pitty, Thunderbird, um monte de gente. E o meu pedal de distorção era o de sardinha. Thunderbird chegou, olhou e começou a rir. “Uma lata de sardinha?!”. Eu viajava com um amplificador que a gente tinha modificado. Era um “thundersauro” e um “tremendão” que Gilson achou no ferro velho. Ele comprou por oitenta reais os dois. A gente levou pra oficina e desmontou. E eu fiz um pra mim. Até então não existia Altovolts.

Marina: A minha geração, é incrível como é difícil de compreender as questões analógicas. Todos os equipamentos que vieram antes. Isso que vocês fazem de resgate é o que ajuda pra gente, de ter acesso a esse tipo de informação. Porque todo mundo acha que é só o computador mesmo. Neilton: A função maior do Altovolts era essa. O subtítulo da gente é “grupo de pesquisa”. Adriano: A gente se juntou pra pesquisar sobre tecnologia.

Adriano: Não tinha. A gente se encontrava pra pesquisar.

Neilton: Quando a gente se juntou pra pensar em design, porque a gente sempre foi desleixado. A gente ia ao super-

Neilton: Eu comprei uma webcam bem tosqueira que batia foto e comecei a re34


gistrar o processo. Incluindo que o gabinete eu tinha tirado da porta do meu armário. Tinha três portas no armário... “Pra que três portas?”. Eu fui e tirei uma (risos). Fiz todo o processo. Quando os caras foram ver já estava funcionando. Aí foi o ponto de partida da Altovolts, de 2005 pra 2006. Com esse amplificador eu saí viajando o Brasil inteiro. Só que as pessoas vinham e não tinha nome ainda. E perguntavam: “Que porra é isso?”. Mas não tinha nome. Daí a gente pensou que era possível fazer produtos também. Aí começaram a sair os amplificadores e pedais só pra gente, que levava pro palco. Até que um dia Carlos Vila Nova, de uma banda cover dos Beatles, a Revolution, ouviu falar que tinha uns loucos em Casa Amarela fazendo amplificadores. E ele que tinha comprado uma porrada de amplificadores e guitarras pelo mundo, caríssimas, foi ver quem eram esses doidos. Chegou lá, estava a gente, três maloqueiros no chão batido, nem tinha piso. Ele chegou e falou: “Vocês fazem um amplificador pra mim?”. “Sim”. Ele passou o primeiro cheque pra gente. A primeira venda, foi quando nasceu o Altovolts. O amplificador Pure V. A princípio, a gente tinha essa coisa de fazer a leitura, o painel, em inglês. “Pure” de puro e “V” de Vila, de válvula também. Fizemos o acabamento todo bonitinho. Foi o primeiro ano a sair alguma venda. Aí começou a cair a ficha. Com altas discussões entre a gente. Por que em inglês? Por que não ser em português? Daí pensamos: “Dane-se o inglês”. A gente fala em português. Queremos pôr os pitocos ali o que a gente saiba ler. A informação é massa

vinda de fora, mas porque não colocar de acordo com o projeto? A parte de design é muito forte da gente. Todo o projeto, a leitura visual dele, é tão igual quanto o som que ele é gerado. Não tem como desmembrar a parte visual do som dele. Vê que loucura. Um amplificador como o “maltrapilho”, o nome já diz: é tosqueira. Os nomes... No lugar de ser “ganho”, de distorção, ou “distortion”, a gente botou “tosco”, pra deixar mais ou menos tosco. O grave, no lugar de ser “grave”, a gente colocou “gordo”. O médio, que é um cabra indeciso, a gente deixou com um xiszinho. O agudo é “magro”, mais ou menos magro. O volume é “barulho”. Mais ou menos barulho. É uma linguagem nossa. Um músico amigo, já falecido, Lito Viana, chegou pra gente, isso pré-Altovolts, e disse: “Vocês fazem parte de um meio tão rico e tão verdadeiro e autoral que como músico, você pode criar uma escala, uma harmonia que ao desenvolvê-la, a gente diga: “Isso é Alto José do Pinho!”. Essa linguagem visual e sonora dos amps tem tudo a ver com isso. Uma filosofia interna que é o berço dessa pesquisa do Altovolts. Marina: Não pra fazer parte do mercado, né? Adriano: Não. Totalmente ao contrário. Neilton: Nós recebemos muitas críticas por conta disso. Um amigo chegou pra gente puto: “Porra, o que esses caras querem? Fazer amplificador pros amigos?”. Porque a gente não tinha uma demanda e nem queria entrar no mercado. Aí eu olhei assim e disse que queria eu ter um amigo que fizesse um amplificador como esse. São poucos que tem isso. As pessoas não querem ter as coisas, elas querem ter as coisas que as pessoas têm. A gente, não. Queremos fazer as coisas que a gente se identifica. Se vai ser pra um amigo ou não... A gente atende a músicos profissionais como Siba ou Fred Andrade. São músicos que já experimentaram uma porrada de amplificadores e optam em ter o da gente. E o cara já sabe que é o seu amp quando dá um acorde. Pela característica sonora. Isso já é massa demais. Ao mesmo tempo, deixa a gente preso a ser uma fábrica de amplificadores. Isso não é legal pra gente. oc 35


por Gabriel Albuquerque “Estamos nos aproximando cada vez mais de um som-ruído”, escrevia Luigi Russolo, ainda em 1913, em seu manifesto “The Art Of Noises”. Para o pintor e compositor futurista, as máquinas da revolução industrial trouxeram com elas o ruído para o espaço sonoro: “Não somente na atmosfera estrondosa das grandes cidades, mas também no campo, que até ontem era normalmente silencioso, as máquinas hoje criaram tanta variedade e concorrência de ruídos, que o som puro, na sua exiguidade e monotonia, não suscita mais emoção. (...) A arte musical procurou e conseguiu primeiro a pureza, a limpeza e a doçura do som, para depois unir sons diversos, preocupada porém em acariciar o ouvido com suaves harmonias. Hoje, a arte musical tornando-se cada vez mais complexa, pesquisa as combinações de sons mais dissonantes, mais estranhas e mais ásperas ao ouvido. Esta evolução da música é paralela à multiplicação das máquinas". A concepção de Russolo certamente é problemática (pureza? Ruído não-natural? Silêncio original?), mas representa um momento de virada na música, com o ruído e a materialidade do som assumindo o centro das reflexões estéticas da música do século XX. Mais tarde, em 1937, John Cage captou a sintomatologia da época no texto “O Futuro da Música – Credo”: “Enquanto no passado o ponto de discórdia estava entre a dissonância e a consonância, no futuro próximo ele estará entre o ruído e os assim chamados sons musicais”. Desde então, o ruído foi ganhando pesos mais fixos ou mesmo institucionalizados em gêneros musicais. Surgiram tags inúmeras: noise, harsh noise, noise rock, japanoise, digital noise, power violence, power electronics, dark ambient etc. Amarras críticas que cedo ou tarde acabam caindo por terra. O que essas classificações não dão conta é jus36


tamente a pluralidade movente, o deslizante, a potência questionadora que o ruído instiga. O que está posto é a disputa política sensível daquilo se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo (Rancière). O ruído como uma arma, canalizada/domesticada/(moralizada?)/ritualizada em música. Matéria escura. Jacques Attali: “Com o ruído nasce a desordem e o seu oposto: o mundo. Com a música, nasce o poder e seu oposto: subversão”. O “noise” oferece, enfim, um ataque às formas estabelecidas de comunicação, mas trazendo algo novo. Uma intervenção, um desafio que recria ainda um novo sistema. Análogo às ideias de Deleuze e Guattarri, uma desterritorialização, consistindo em se reterritorializar de outra forma, em mudar de território. O músico e artista sonoro pernambucano Yuri Brusky, fundador do selo Estranhas Ocupações, foi um dos curadores da edição 2015 do Festival Internacional de Música Experimental (FIME), em São Paulo, que tinha o ruído como tema. A sua visão reflete bem os enfrentamentos políticos e culturais que permeiam a noção de ruído, para além da ideia musical. “Você tem determinados regimes de sensibilidade e regimes ou sistemas de escuta que conseguem se estabelecer, mas a relação de hegemonia não é um negócio epifenômeno ou supra-histórico: é parte de uma disputa pra significar, de como é que performaticamente a gente vai experenciar o mundo da vida, a linguagem, uma experiência concreta de vida ou a construção de determinado modo de escuta das coisas”, contextualiza. “O ruído é interessante nesse sentido. Nem sou fã de Deleuze, mas nesse ponto eu acho interessante a discussão dele sobre desterritorialização. Acho que o ruído entra meio nesse sentido. Não é que nada se encaixe em coisa alguma, mas é essa a relação de dialética de inflexões críticas em determinados sistemas de significação. E isso eu acho que dá uma beleza meio cruel pro ruído. É sempre... não desestabilizador, mas sempre esse empurrão”, completa Yuri Brusky. Um dos últimos lançamentos do Estranhas Ocupações, o disco-livro-objeto Breviário, do músico e filósofo carioca J.-P. Caron, é um cruzamento entre esses limites e limitações conceituais do silêncio e ruído, aqui sob um tom mais lírico e confessional. Caron afirma que a intenção de “Noisecomposition” (no disco registrada apenas como 11), por exemplo, é “de alguma forma encenar a passagem de uma totalidade vibratória que chamamos ruído para uma outra totalidade vibratória a que chamamos silêncio. E mostrar, 37


“vários tipos de material podem se tornar ‘ruído’ ao se articularem de maneira menos habitual". Henrique Iwao talvez um pouco ‘cageamente', que este silêncio não é muito silencioso, mas se comporta como ainda outra modalidade de ruído, caos ou ordem. No fim temos diferentes variantes de ruídos povoando o disco, mas que chamamos normalmente por nomes diversos: barulho, silêncio, som, música, palavra, imagem”. E mesmo sobre sua abordagem do ruído, ele esclarece: “O interesse para mim não está no uso ou não de ‘ruído’, no sentido normalmente alocado para essa palavra pelo noise. O mais importante é a disposição particular das coisas que pode ocasionar aberturas para ainda novas disposições naquele que ouve. Isso pode ocorrer com vários tipos de material, assim como vários tipos de material podem se tornar ‘ruído’ ao se articularem de maneira menos habitual”. Esses rearranjos e reordenações catalizadas (por aquilo que chamamos) ruído implicam um tensionamento também na própria ideia de música. As ações de Henrique Iwao (fundador e curador da Seminal Records, junto com Caron) são indicações. “Trabalho com música experimental e afins”, ele ressalta. Parte desse afins inclui “fazer coisas menos óbvias”, como fazer fogueiras e chamar pessoas para queimar coisas (duo #09: potlatch!) ou então desidratar melancias (duo #05: desidratar uma melancia). Ele inclusive se refere ao termo “não música”, que diz utilizar como tags. “Quando eu uso antimusical, eu quero dizer ‘estou tentando ir contra características que eu considero musical’. E assim, obviamente, fazendo música. Nem sempre é fácil explicitar quais são essas características, mas às vezes esse esforço gera coisas interessantes, e depois de um tempo começo a achar elas bacanas, bonitas, não tão truncadas (vão virando ‘música’)”, comenta. No disco e na performance de O Brasil Não Chega às Oitavas, Iwao trabalha a partir da prática não musical do panelaço sob um tempo estipulado como duração do jogo do Brasil (as três faixas do álbum são “Primeiro Tempo e Acréscimos”, “Intervalo”, “Segundo Tempo” e “Acréscimos”). “A tentativa fracassada era ‘como eu posso reter essa não musicalidade específica dentro de um formato que transforma a coisa em música’”, explica. 38


As obras irmãs Éter (CD), Éter 2 (CD), 13 Horas de Nada (vídeo) e §6.4311 (proposição) são formas de retrabalhar o silêncio. Éter é apenas uma faixa de 74 minutos. O mostrador de tempo do aparelho indica quanto tempo se passou de música. “E você poderia acompanhar isso como uma não ação (não tem som), como uma ação (tem ‘não som') ou então como falta de algo (não posso colocar outro CD porque só tenho um tocador e este já está ocupado)”, analisa Iwao. “A coisa que eu não gostaria é de despertar uma escuta mais atenta, ou que faz você ouvir os sons do mundo como música. Não é pra ser isso. Por isso tem os textos (do encarte), pra tentar conduzir os espectadores a não serem escutadores melhores”. Já Éter 2 tem 36 faixas que progridem a partir do 1 milisegundo e crescem de acordo com a série, 2, 3, 5, 8, 13 milisegundos etc). “E se pensarmos em termos de mascaramento: não estariam os sons mascarando um silêncio subjacente? Um negativo de substância, vazios e nadas permeando. Ou então: soterrados. Tal qual a noção de espaço, quando lhe tiramos todos os objetos” (Iwao). 39


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O ruído torna-se uma marca da condição humana na tecnologia – até quando tentamos remover o ruído, a impossibilidade iminente do silêncio é revelada. Éter (assim como 4’33’’ e outras tantas) explicita isso. Iwao: “Tem presença humana demais. Você vai num lugar e está marcado em tudo: ‘humano’, ‘humano’, ‘humano’. Se o ser humano se preocupasse mais em produzir silêncio humano, isso já melhoria um pouco, porque o tipo de presença gerado com silêncio se desfaz. Quando todo mundo está acostumado a agir, parar é uma ação mais difícil de fazer”. A condição – ou presença – humana. Interessante notar como isso se manifesta de forma crua e quase primitiva nas peças vocais mínimas de Lílian Campesato. A mais representativa talvez seja o solo Fedra, que recria por meio de sons fisiológicos, sons da respiração, sons guturais, um espaço íntimo e agonizante em referência às lamentações praticadas em ritos funerários e as personagens femininas da tragédia grega, particularmente a imagem de Fedra. Neste caso, o ruído não reside apenas nas qualidades acústicas da voz, mas ao sentimento de dor, perda e desamparo ao qual ela remete. Relaciona-se também com o trabalho de pesquisadora da própria Campesato, que traz uma abordagem psicológica acerca do ruído – caso do artigo “Limite na música-ruído: musicalidade, dor e experimentalismo”. Há também os afetos entrelugares. Alan Moore, autoproclamado mágico, diz que “a arte, como a magia, é a ciência de manipular símbolos, palavras ou imagens, para operar mudanças de consciência”. Cantar Sobre Os Ossos, primeiro disco da carioca Bella, empilha e satura em tape loop 23 músicas de vozes femininas (Mica Levi, Mulheres Cantadoras da

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Alma do Nordeste Brasileiro, Meira Asher, Junko, Ute Wassermann etc). Habitando limiares, fronteira entre aquilo que é e o que pode deixar de ser. (Dissolução do Eu?) Bella propõe: “os sons são e não são criados. Trabalhar com os sentidos de uma forma ampla é também trabalhar com uma mediação, no sentido de que é o caminho do meio”. Enquanto performance, ela escreve: “Bella é uma entidade fantasma e atua desde os tempos sem nome. Bella se faz presente a cada aparição. Há muitos níveis de visão. Só vê quem acredita. O limite é irreconhecível. Bella é canal. Se situa entre coisas e por isso deixa de ser coisa. Bella passa a ser coisa quando deixa de existir”. Nesse sentido, o trabalho da curitibana Aline Vieira (do Excria Reverbera, Cama Desfeita, Corpo Código Aberto, entre outros projetos, além de fundadora do selo Meia-Vida e curadora do festival Pertube) dialoga transversalmente com Bella. Flores Feias, seu último álbum, são riffs de rock em tom simples e sombrio que caminham ao hipnótico; deixar o corpo, rumo a um fora: – fora, fora, fora, corta, corta, corta, fura, fura, fura, tira, tira, tira. A postura anarco-punk-lo-fi que tange as ações de Aline é ânsia pelo movimento – sintetizado em “Mover ou Morrer”, poema gráfico incluído no encarte do álbum A Necessidade de Produzir Sempre Foi o Antagonista do Desejo de Criar, do Concreto Morto. O desejo na potência de se recriar, deixar o corpo e tornar-se Outro. Externalizar-se, execrar-se, expelirse, experienciar-se. No ruído de Fora, do Cama Desfeita: “Ruído é a via acidental, desviada, que resolvemos remar com, contra, através”. Nos resta ocupar as contrainvenções do ruído. E desatar os nós. oc


A SENSIBILIDADE AINDA Se um dia a música pôde ser reproduzida e distribuída em grande escala foi graças às tecnologias que permitiram a sua materialização em fonograma e posteriormente em disco. Fruto da conjunção entre a produção dos artistas e as possibilidades de tecnologias, o disco transformou a circulação da música no mundo e a maneira como ela chegava ao público. Ao longo do século 20, seus parâmetros foram sendo determinados e transformados conforme a tecnologia de gravação foi se desenvolvendo, começando pelos primeiros registros fonográficos em cilindros e chapas gravadas, passando pela era dos long-plays, seguida das fitas cassetes até chegar na era digital dos CDs e do advento da internet, com suas plataformas digitais e serviços de streaming. O LP foi o suporte privilegiado da música popular, chegando ao mercado por volta dos anos 1950. Em comparação aos cilindros, os long-plays saíram na frente em termos de padrão de execução de alta fidelidade para a época, tanto na reprodução como na gravação do som, além de possibilitar que a música fosse executada por mais tempo que nos cilindros. Mesmo com todas essas vantagens, o LP ainda dividiu as atenções com a presença maciça de compactos que traziam músicas soltas, os singles, que dominaram o mercado por muito tempo. 42


PELO DISCO FÍSICO REVERBERA por

Como alternativa ao peso e aos altos custos dos LPs, surgiram, na metade da década de 1970, as fitas cassetes, mais baratas, de fácil reprodução e cabíveis no bolso. Além disso, as fitas acomodavam uma quantidade de músicas um pouco maior do que os LPs. Segundo David Byrne, no livro Como funciona a música, gêneros inteiros de música floresceram como resultado das fitas cassetes. “Bandas de punk que não conseguiam fechar acordos com uma gravadora recorreram à produção de cópias de fitas caseiras que eram vendidas em shows ou por correio. Essas cópias de cópias perdiam algo da qualidade - suas frequências mais altas inevitavelmente eram reduzidas, e algumas nuances e dinâmicas também desapareciam, mas ninguém parecia se importar muito. Essa tecnologia favoreceu um estilo de música que poderia ser descrito como etéreo, ambiente ou barulhento. Foi uma era de música suja. A qualidade estava escorregando ladeira abaixo, mas a liberdade e o poder oferecidos por aquela tecnologia compensavam tudo”. Em consequência de uma pesquisa voltada para a telefonia, surgiram as tecnologias digitais de áudio que rapidamente foram implantadas pelos estúdios de gravações, tornando a 43

Marina Suassuna


“Hoje em dia há essa suposição de que quanto menos palpável, melhor." Graxa gravação digital e o consumo da música em CD uma realidade viável. Em termos de produção, o diferencial do CD era a liberdade na manipulação dos sons, principalmente na altura e na velocidade, e o arquivamento a partir de mensagens codificadas em fragmentos matemáticos. Para os consumidores, os CDs conseguiam armazenar 700 MB de dados e permitiam mudar as faixas rapidamente. Além disso, tinham maior vida útil que as fitas magnéticas, que eram facilmente corrompidas pelas altas temperaturas. De acordo com o historiador Cleber Sberni, “é possível conferir aos diferentes suportes utilizados uma importante marca sobre o seu tempo, e um vigor das possibilidades de criação para o artista em um período, numa dialética entre as possibilidades de seu autor e o limite da tecnologia”. Com a revolução no consumo da música promovida pela popularização da internet nos anos 1990 e 2000, não foram poucos os artistas, jornalistas especializados e representantes da indústria que anunciaram a morte do disco em seu formato físico. O livre compartilhamento das músicas na internet, decorrente de seu potencial democrático, alterou a perspectiva de venda do produto físico e consequentemente a necessidade de adquiri-lo. No entanto, os músicos têm mostrado que abdicar do suporte físico em nome da divulgação única e exclusivamente na internet não supre as suas necessi-

dades. A sensibilidade pelo registro materializado ainda fala mais alto. Seria uma maneira de legitimar a obra? Dá uma ideia mais palpável de durabilidade? O registro em determinado formato cumpre uma necessidade estética? “Hoje em dia há essa suposição de que quanto menos palpável, melhor; mas, nesse meio, sempre vão ter poucos que vão querer nosso trabalho nesses formatos físicos. Desde sempre, nós, que fazemos música, temos que oferecer bens materiais pra aumentar a nossa possibilidade de executar nossa mão de obra, que é fazendo shows. Por isso é importante, além do streaming, ter a fita, o vinil, mídias em geral. Quanto mais possibilidades, melhor”, acredita o músico Graxa, que tem dois discos disponibilizados virtualmente, Molho e Aquele disco massa, também lançados em vinil e fita cassete, respectivamente. Para o paulista Romulo Fróes, o diferencial do suporte físico está na audição: “O conceito de um disco só existe por causa de sua forma física. Na escuta contemporânea, é muito improvável que se escute um disco na ordem concebida por seu autor. Por isso é importante, ainda, o disco físico. Ele orienta a audição do modo que o artista a concebeu. No meio virtual é impossível determinar o modo como as pessoas irão ouvir sua música”. Já a cantora Isaar, que tem três álbuns lançados, encara o disco físico como uma maneira de agre-

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gar valor à experiência do show: “Se as pessoas gostam do seu show, elas querem saber de mais informações, querem levar uma lembrança da experiência que foi te ver e te ouvir, que é geralmente comprando um disco. Ao contrário da digitalização da música, que promove um encontro com o público que te consome sem nunca ter visto seu show. Se o artista tiver um vinil, tem um público que vai querer ter o vinil. Mas pra fazer alguém comprar algo, tem que criar necessidade. Isso na música significa promover uma sensibilidade para o seu produto”. Grande parte da sensibilidade que um disco físico proporciona tem a ver com o impacto visual causado pela tecnologia dos encartes e das capas. Se antes a complexidade de um álbum se resumia à criação das músicas, a sua posterior gravação e a escolha de repertório, hoje a feitura da capa e do projeto gráfico também fazem a diferença no resultado final da obra. “O trabalho do designer, da direção de arte, do fotógrafo, comunica e soma ao som, dando um acabamento essencial ao CD. Algo que curto muito acompanhar é a história daquela obra através dos créditos e informações técnicas do disco: quem compôs, quem interpretou, produziu, onde foi gravado, os instrumentos utilizados. A mesma arte pode ser reutilizada e recriada na construção do site, cartazes de shows. Ter esses artistas agregando ao som, só tende a crescer o que você quer expressar”, acredita o músico Jam da Silva, que teve o seu último disco, Nord, projetado graficamente por um estúdio de design com pintura e fotografia assinada por Nina Gaul. Sendo assim, privilegiar as capas, contracapas e encartes para informar ao ouvinte sobre o conteúdo do disco fez do álbum físico um produto que transcende a simples divulgação de um artista, obtendo prestígio enquanto artefato carregado de simbolismo. “Agora o disco está mais próximo do colecionismo, por isso acho importante investir em edições físicas com mais capricho. As pessoas, hoje, compram mais o objeto do que a própria música”, atesta Romulo Fróes.

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LP e K7:

RESGATE e RESSIGNIFICAÇÃO Ainda que não tenha despertado a atenção do mainstream brasileiro, a crescente aproximação dos artistas com formatos físicos analógicos como o vinil e a fita cassete tem uma força conceitual que vai além de fetiche e saudosismo. São muitos os aspectos que têm motivado artistas independentes a lançar seus trabalhos nesses formatos específicos em meio à febre da circulação virtual. Segundo Romulo Fróes, o vinil impõe uma dinâmica própria à obra no sentido de “resgatar um modo de audição mais atenta, que exige do ouvinte um contato mais direto com seu disco”. Ele, que começou sua carreira fonográfica na derrocada do vinil e no começo do advento do CD, tem dois dos seus discos solos lançados em LP, Calado e Barulho Feio, além do Passo Elétrico, lançado pelo seu grupo Passo Torto. Romulo lançou recentemente em vinil outros dois discos de sua banda, Passo Torto e Thiago França, em parceria com o selo Assustado Discos, do Recife. “A experiência com vinil exige uma ação do ouvinte no meio de sua audição que é trocar o lado do LP, muito diferente da atenção dispensada aos serviços de streaming que disputam as infinitas janelas abertas do seu computador”. Para Catarina Dee Jah, que pretende remasterizar seu disco Mulher Cromaqui e prensá-lo em vinil, este formato tem peso de obra de arte, não só de suporte de registro. “Coleciono vinis

desde os 12 anos, então ter um trabalho meu perpetuado neste formato é como deixar uma obra física de qualidade e valor. Prensou no bolachão vira obra de arte palpável e perpétua”, defende a cantora pernambucana. A mesma ideia é compartilhada pelo cantor soteropolitano Russo Passapusso, para quem o vinil equivale a uma experiência sensorial singular. Ele planeja lançar no formato o disco Duas Cidades, de sua banda Baiana System. “Depois de todas as aberturas virtuais que o mundo teve, percebemos que os Spotifys da vida não satisfazem. Acho o serviço maravilhoso, inclusive escuto no meu celular. Mas a música é fé. Quando você segura o vinil e sente o cuidado e a energia depositados ali na capa, no texto, você sente que é um documento musical. Isso te ajuda a respeitar mais a religião que é a música. O vinil representa um altar dentro da religião da música. Ele é esse patuá, esse símbolo”, aponta. Na metade dos anos 1970, a popularização da fita cassete levou as gravadoras a lançarem o seguinte slogan: “A gravação caseira está matando a indústria musical”. O receio era que as pessoas deixassem de comprar vinis, já que os aparelhos que tocavam as fitas também permitiam a gravação de músicas das rádios, gerando várias cópias caseiras. “Em vez de emprestar LPs preciosos, frágeis e grandes, era mais fácil trocar fitas cassete com nossas músicas favoritas, cada 46


uma delas focada em um certo gênero, tema, artista ou clima. As fitas eram como baús de tesouro que cabiam no bolso. Descobri vários artistas e novos estilos por meio de cassetes que eu pegava com amigos”, conta David Byrne no livro Como funciona a música. Somadas a estas facilidades estavam, como já citado no início deste texto, o fato da fita cassete ser um método alternativo e mais barato de consumir música na época. O músico Graxa relembra alguns rituais que fazia parte do uso da cassete: “Uma situação recorrente era ficar esperando, na rádio, o momento exato para que tocasse uma música em especial para gravá-la na fita e depois poder ouvi-la quando se quisesse. Também era descolado demais ter um Walkman, ouvindo fitas K7, que ficavam dentro da bolsa escolar, além de rodar na caneta pra rebobinar”, conta ele, cujo segundo álbum, Aquele disco massa, ganhou edição neste formato. Segundo Graxa, além do significado afetivo que envolve a fita cassete, a sua escolha foi pautada pelo desejo de remeter, de forma simbólica, ao sentido de acessibilidade ao consumo musical, semelhante ao mp3. Ao contrário do senso comum que considera a cassete um formato ultrapassado e de baixa qualidade sonora, os artistas têm mostrado o contrário. A recente adesão ao formato em cassete, inclusive com uma grande lista de espera de artistas e bandas para gravarem no formato, justifica o aparecimento da FlapC4, nova fábrica de fitas no bairro do Bixiga, em São Paulo, que vai oferecer um formato de masterização especifico para o formato. Um dos sócios, Fernando Lauletta, enxerga o mercado com muitas possibilidades, já que o custo de um LP ainda é muito alto para aqueles que querem obter um item exclusivo e de qualidade de seu artista favorito. Recentemente no Brasil, edições em cassete foram lançadas pela banda Boogarins e pela dupla Tape e Scandurra. No exterior, a cantora Nelly Furtado lançou uma canção em parceria com Dev Hynes apenas em cassete, como forma de combater a pirataria e o vazamento de músicas na internet. Nomes como Snoop Dogg, Metallica, Dave Grohl e o duo She & Him também aderiram recentemente ao formato. Ainda que as motivações sejam várias, a escolha por esse formato específico parece apontar, numa perspectiva geral, para a necessidade de renovação de um mercado saturado, mesmo que essa renovação aconteça por meio do resgate e da ressignificação de formatos já caídos em desuso. oc

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? próximo engano em mediações entre máquiO fato é, oferec s em busca de oportunissoa nas, objetos e pe inar os próximos modos de rm te de ncial e a arte dades para torna-se emerge m gadgets e ad id tiv ia cr A . ia co viver ividade necessár abastece a subjet tio entre o utilitário e o simbóra que atuam num lavras, reduzem as expressões lico. Em outras pa ero tecnofetichismo4 e promom simbólicas a um capaz de gerar força de trabaa vem uma retóric de projetar um devir-artista fim a vo iti gn co es contextos. lho aptado a diferent mais potente e adsafio central para escapar Por fim, qual o de s objetos do amanhã nascem O dessa fronteira? 5 capazes de interpretar nossos as an br em m iderar o tema com . Precisamos cons hábitos e devires extrema disputa. A humanidacomo um sítio de nderá dessas capacidades. pe de fatalmente de

P.Weibel (eds.) lic, in Latour, B. and Media Karlsruhe and make things pub gpolitik or how to Cambridge, MA:Centre for Art and din to litik lpo lsruhe and 2005. From rea 1 of Democracy. Kar LATOUR, Bruno. don: Reaktion. lic. Atmospheres thews (trans.). Lon of the Institute of British Making Things Pub of Design, A. Ma ns phy loso ngs: A Phi Forms. Transactio MIT Press. Thi ic of bol pe Sym Sha of The 2 FLUSSER, V. 1999. and the Production MIT Press. Capitalism, Cities, London. Leonardo, anese life (pp. 3 SCOTT, A.J. 2001. Jap endipity at the ICA 26: 1123. art: cybernetic ser le, pedestrian: Mobile phones in dia me of a Geographers NS mm al, portab 3. The dile 4 USSELMANN, R. 200 (Eds.2006), Person & MATSUDA, M. 5 ITO, M., OKABE, D., : MIT Press. MA ge, brid Cam 165–182).

do tratamos enganamos quan ia? Não em qu a e e qu O olog entre arte e tecn sobre as relações observarmos esse relaciose adianta esquivar, o da "caça", veremos um çã namento pela no ões que, na verdade, busaç conjunto de inov briar as coisas1. Assim como di cam formas de lu ca é de simular uma força an av al da ão realidade a funç a do algoritmo de desproporcional, ir e distorcer as formas intelitra aumentada é de usa a linguagem como técnica. gíveis. O conceito sua essência2. Por isso, faz-se O truque está em eender a dicotomia entre o pr necessário com o artístico como um projeto e co ífi nt cie s. Não foi à ramo produzir engano articulado para e a cultura foram excluídas do a toa que a estétic nvolvimento econômico para potencial de dese ão em massa3. Uma estratégia uç dar força à prod nder um presente e um futuro re al. Qual o desenhada para aquecimento glob e ão aç eg gr de se

MSc em computação com foco em mídia, interação e cultura. Pesquisador de arte, tecnologia e inovação.

RICARDO BRAZILEIRO


Nesta seção contamos com textos de pesquisadores e artistas construídos a partir de algumas indagações que lançamos para eles sobre o tema geral da revista, como: "Arte e tecnologia são indissociáveis? É possível pensar ou fazer arte sem interferência das técnicas, ou melhor, tecnologias usadas no processo criativo? O conteúdo depende da forma ou a técnica é neutra, está a serviço da arte?".

SOFIA GALVAO

Pesquisadora das artes e das

tecnologias.

bólicos ais que criam campos sim Vejo as técnicas como can vel ssí po ser vel expressar-se. Creio através dos quais é possí ulso imp o o das tecnologias, pois vej pensar na arte para além a nic téc a um processo para o qual criativo como o início de so ces e pro expulsão. Mas talvez ess surge como uma via de aneidade. ult sim a um ue oq inv que aconteça tão rapidamente s de criação negar que existem forma Apesar disso, não vou ação. Então ia, usando-a como inspir que partem da tecnolog a cíclico, como ou buscando explicar sej talvez o processo que est galinha – nunca primeiro foi o ovo ou a responder se quem veio ensional, ou pelo nos não neste plano dim saberemos, ou pelo me da resposta. menos eu não faço ideia um conem que neutralidade é Por outro lado, todos sab exissua talvez eu não acredite em ceito que não existe, ou somos e s mo Fato é que nós contamina tência – mais provável. carga de os nad mente, estamos impreg prócontaminados constante ssa no na vitacional, que interfere m cultural, além da força gra Ne a? utr o poderia a arte ser ne u uso pria existência. Então, com ele e qu er pelo menos se pode diz de Matisse foi neutro, pois po o com r ve seja mesmo entende muitas cores. Talvez a cha artística. Isso por si só uma linguagem a “arte e tecnologia” ser humana, unir a elo perdido da evolução seria como encontrar o r que deus é na ica ou mesmo descobri relatividade à física quânt tra em colapso. ste ponto o universo en verdade uma deusa – ne s... prefiro a arte. Então deixa, caos por cao

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LUCIANO ZANATTA Músico, professor do Departamento de Música

da UFRGS.

, não me parece genericamente possível Se consideradas o mais e a suporta. Pegana arte da tecnologia qu um r ara sep o com er hav com a qual mais sica, área de expressão mú da rtir pa a nto po o do ada à arte em vejo a tecnologia mistur me sinto familiarizado, construção de de uma sala, no modo de toda parte: na acústica eletrônicos, dades dos equipamentos instrumentos, nas capaci de modo tão circulação. Isso acontece nos meios de difusão e o de condiite que se ignore a relaçã evidente que não perm ia e o procesdades entre a tecnolog cionamento de possibili so de criação. natuquando se considera a A coisa muda de figura ma de o das tecnologias na for ralização ou normalizaçã to tex con o ad min num deter ferramentas disponíveis e qu vel ssí po é , los aos exemp específico. Retornando nse música de câmara não pe alguém que componha erfira int tro tea um de o struçã que a tecnologia da con ha posição (embora eu já ten no seu processo de com a um celar a apresentação de visto um compositor can fas acústicas do ambiente obra porque as condiçõe ente “não fosse adequadam riam com que a música m fila da plateia”) ou algué ouvida além da terceira s preocupe com questõe que use sampler não se nto flutuante, embora como taxa de bits ou po nológicas sejam deessas características tec de que se obtém do terminantes da sonorida equipamento. dicionamento de As tecnologias (e o con r sem ser perssa pa possibilidades) podem as nas molduras cebidas quando embutid . das práticas musicais

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ADRIANO BELISARIO

Pesquisador de tecnologias livres.

cotidiano, na natureza. e o fazer tecnológico no te, Distribuir o fazer artístico ividade. Do ser excluden Abdicar de toda exclus . Tudo cie spé ere int a A democracia cósmica. aci a rede. A diplom e ta flo A res . etc ker forma-e-conhumano, artista, hac r a imaginação do molde era os. Lib Ka o. ub ad a ou oposições. cria, apodrece e vir ia sem hierarquizações log no e e tec Art . iva ect . Nem a arte teúdo. Outra persp rte a outra. Sem manuais pa r a ina um ord sub m o individuação Fazê-las dançar. Se viço da arte. Ambas com ser nic a a téc a m ne a, depende da técnic os, os códigos. A biomi. Um jogo, a capoeira. Abert O constante. Seres, coisas e. Já sabiam os sabiás. nica, nem técnica sem art em as ad ect con as mética. Nem arte sem téc eir das erv erência, o mito. A ciência ues espectro livre. A interf or de partículas. Ciborg ad ace ler á, rac ma e. O red a é ta planos 3g. A flores lógico cotidiano. A contrio fazer artístico e tecno ar de chinelo. A gambiarra, risos. A devoração. Seme os os erros, de todos os e eis ág s, ica fág ito buição milionária de tod smo. Dig nomagia. O tecnoxamani s ista ctiv pe ers erp cib a baixa tecnologia. A tec As é o laboratório. rua is. A nta me eri exp e ilógicas. Práticos estão chegando.

LEANDRO OLIVAN

Artista tecnológico.

A tecnologia tem moldado o nosso ambiente , nossa cultura e nossa subjetividade. Eu acho que não tem forma de pens amento contemporâneo, que não esteja atravessado pelas máquinas e os dispo sitivos que nos cercam. No entanto, cada vez menos entendemos seu funcionam ento e viramos meros consumidores de um serviço para o qual temos que nos adaptar. Assim, os novos padrões culturais herdam valores éticos, políticos e sociais dos produtores desses dispositivos. O olhar da arte é importante para refle tir sobre essa influência, e reapropriar-se dos usos e encontrar novos modos de produção. Já no começo do século XX a máquina marcou o pensamento dos impr essionistas, construtivistas, futuristas, as produções de Duchamp e as mont agens de Vertov. Deu passo a novas linguagens como a fotografia e o cinema. As novas tecnologias têm a possibilidade de abrir outros espaços de pensamento. O conteúdo e a forma estão juntos. O conceito está dentro da obra e por isso é impo rtante conhecer as possibilidades e as impossibilidades dos processos e as ferra mentas que dão forma a nossa realidade. Para citar um exemplo, no meu traba lho com performers, é usual utilizar a câmara Kinect que reconhece a posição do corpo de pessoas. No entanto, foi pensada para jogos de video game onde os movimentos são padronizados por instruções. Trabalhar com pessoas que estudam ampliar as possibilidades de movimento torna-se um desafio subverter os usos padronizados das máquinas.

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ensaio

vozes, canto, bocas, coletivos: ALGARAVIA Montagem por Carlos Gomes*

1. preparação não seria possível isolar um pretenso texto que partiria da obra sonora delivered in voices – exposta e vivida como residência artística por diversos músicos e artistas durante a última edição do festival novas frequências, no rio de janeiro, em dezembro de 2015 – do fato de seu criador, o artista visual tunga, ter falecido enquanto a estrutura deste texto ainda não estava totalmente erguida. a preparação se dava no contato mais direto com aquela obra, no que era possível fazer na distância entre a cidade onde ela estava localizada e a recife de quem aqui escreve. o contato com a equipe de tunga via e-mail, com publicações produzidas sobre a obra, com os músicos presentes na residência, além das fotografias e vídeos produzidos no festival se insurgiram como vestígios de uma presença. mas com a morte do artista e a proliferação de outros textos, imagens, vozes, narrativas, biografias e demais escritas em sites, jornais e redes sociais, o personagem tunga: artista, poeta, corpo, performer, múltiplo, se expandia para além de minhas palavras, como uma outra presença. diante dessa multidão de vozes, decidi pôr minha voz narrativa em equilíbrio com as demais, na tentativa de expandir as sensibilidades de outrem para este lugar. portanto, o que você lerá são vozes. uma montagem sobre corpos presentes e ausentes. 52


2. delivered in voices três estruturas de ferro, que chamamos de tripé, circundam uma quarta estrutura de semelhante forma. para cada uma dessas três estruturas, temos três diferentes artefatos protagonistas. um meteoro, um cristal de rocha, e uma “espada de são jorge” (sansevieria trifasciata). para cada tripé, existem alto falantes virados na direção destes diferentes protagonistas. em um deles, a espada de são jorge “ouve” gravações de sessões de exorcismo. em um outro tripé; o meteoro “ouve” a gravação de dylan thomas recitando poemas. no terceiro tripé periférico, o áudio de uma matilha de lobos, uivando em seu habitat selvagem está direcionado através de seus alto falantes, para o cristal de rocha ‘ouvir”. nos resta o tripé central, composto de um sino de cerâmica pendurado, grande o bastante para que um adulto se acomode, de pé, confortavelmente; de maneira que sua cabeça e parte de seu torso desapareça. dentro do vaso de cerâmica existem três microfones, cada um capta a voz e joga para o seu tripé periférico correspondente, que propaga o som, criando desta forma, um clima de algaravia na instauração. 53


3. novas frequências, diálogos festival que está muito mais aproximado da arte contemporânea, da arte sonora, do que da música como entretenimento. é a primeira vez que tunga cria uma obra sonora e que inaugura uma residência artística para que artistas explorem realmente a obra dele. ao longo de uma semana a gente realizou no galpão do tunga (laboratório agnut) uma espécie de festival dentro do festival. onde a cada dia artistas sonoros e músicos diferentes tiveram o desafio de interagir, de tocar, de dialogar com a delivered in voices.

5. canto de amor me lanço na enigmática escultura floresta, terreiro, de índio, de preto, de homens e lobos, de seres humanos, bichos, cristais, plantas e sons, de tunga, o artista da pangeia, que fura em nossas mentes espaços para serem habitados por imagens e sensações que nos confrontam com nossa própria fortaleza. me interesso pelo instante de conexão que se opera na experiência terreiro, onde a obra é toda a dimensão espacial, sonora, visual e espiritual que nos engole, como um portal que nos transcende. eu na voz e na condução performática e eduardo manso na guitarra e synths, nos entregamos ao nosso fluxo imaginativo, ao nosso mergulho profundo. manso, que é um músico muito sofisticado, sutil, e violento também, cria com seus instrumentos sons que nos habitam e que estão em perfeita transa com os sons da escultura sonora de tunga, e leva nossa alma a navegar e descarregar os ruídos que vem da calma e do silêncio. somos parte da experiência mágica que ali se processa. há uma conexão ligada às forças espirituais presentes e uma grande conexão das pessoas que habitam esse espaço magnetizado, e parecem suspensas na atmosfera. nos movemos lentamente, instalamos um rito de cura. bato cabeça para o primeiro orixá-escultura com cantos de descarregos e espadas de são jorge. qual é o canto pra me curar óh rei? canto eu indagando o santo. tomada pelo transe viro onça, vamos agora percorrer a floresta, há lobos que uivam e suas vozes se confundem com as das índias que cantam cantos que já foram esquecidos, que se queimaram na história. é o centro e a margem de uma aldeia, o devir e o inconsciente dialogando com uma obra que nos faz ligar imagens, ideias, memórias, conhecimentos, silêncios e lacunas. colar fragmentos como setores mapeados de nossa imaginação para reunir a pangeia dentro de nós e habitar o universo da invenção que habita o da ancestralidade. nos lançamos no abismo da invenção em fluxo de improviso, protegidos pelos orixás e encarnando os espíritos que nos trazem as músicas, em um processo de invenção também ligado à existência e ao inexplicável. todos 54


4. bate-boca foi uma experiência inédita para mim, nunca havia feito nada parecido. essa obra do tunga já tem várias bocas falando ao mesmo tempo, podemos dizer assim. então, eu procurei adicionar sons que consoassem bem com elas e em alguns momentos pudessem se sobrepor a elas como se um novo discurso quisesse se sobrepor numa discussão.

estão sintonizados na dinâmica de conexão em rede. como em um ritual indígena, os cantos se multiplicam, mantras e cantos ecoam, mulheres se reúnem no centro para cantar e dançar, como se filosofassem sobre a infinitude que é o cantar. tudo confirma cada instante em um instante. há uma convicção e um empoderamento de nossas forças, há a percepção de nossos canais que são eletrificados pela escultura total do tunga. ele é pura poesia e imaginação, surrealismo, delírio, experiência, sonho, fome, violência. é inclusive muito glauberiano e pasoliniano, sendo unicamente tunga, essa unidade pangeia. se você salta nesse intenso mar, te resta nadar. da batalha contra as ondas e sua própria capacidade de construir ao embalo de outros movimentos surge a via da criação, da expressão e de tantas explosões. assim esse grande improviso espiritual e ritualístico se transforma também em escultura, parte dela, confrontando-a e abraçando-a mas também arrancando dela qualquer sentido único, abrindo as dobras. então somos todos envolvidos pela magnitude do campo energético que expressamos nessa sessão performática. há a palavra do poeta, o som do bicho e o espírito da natureza. a força das plantas e das pedras. é um jogo de construção e desconstrução, composição e decomposição inspirada na fé de cura a partir do desejo e da imaginação, e sobretudo do forte sentimento que fazem de nós uma expansão escultórica de consciência e inconsciência nesse canto que é em suma um canto de amor para tunga, orixá criador cujo corpo e pensamento, gestos, palavras, traços e sussurros é escultura, é invenção, filosofia e alquimia, surrealidade e realidade, é poesia e é política. me empodero de uma crença, uma fé capaz de transbordar o meu forte amor e desejo, na certeza incerta mas verdadeira, de que o canto tem poder de cura. 55


6. coletivos, outras vozes manejar, manipular, experenciar sons e tecnologias em face de uma presença que se constitui como performance e improviso. com tais preceitos a obra sonora de tunga perpetua-se em movimento contínuo; em outra linha de reflexão que se orienta também pelo espaço do diálogo entre a presença, o caráter performático e o improviso, mas na utilização (ou reutilização) de “baixas tecnologias de ponta”, a “oficina gambiarra”, do músico e pesquisador marcelo campello, se orienta como “estratégia micropolítica de ‘diversificação’ (co)existencial, cultural e ambiental”. tendo estreado no v continuum - festival de arte e tecnologia, no recife, em 2014. campello contou com a colaboração de henrique vaz, do coletivo experimental poruu e dos mais de vinte participantes da oficina. como resultado, “realizaram uma dinâmica de improvisação tocando instrumentos feitos coletivamente, com materiais reaproveitados, e usando recursos improvisatórios com notação gráfica e condução ‘expandida’.” a partir dessa estreia, a oficina passou a fazer parte das frequentes atividades culturais, artísticas e pedagógicas realizadas pelo movimento ocupe estelita. por esses espaços diferentes de atuação, entre um festival de “arte e tecnologia” e posteriormente numa “ocupação”, campello considera que a “estrutura social (aberta, nômade etc.) possibilita operar em ‘territórios artísticos temporários’, acessíveis, integrando-se localmente pessoas interessadas em fazer música. essa estratégia possibilita, por exemplo, reunir aglomerações de musicistas que seriam pouco viáveis em circuitos oficiais, por aspectos mercadológicos como custos, disponibilidade etc. torna-se possível, assim, reunir grandes grupos ‘filarmônicos’, fazer, por exemplo, música instrumental acústica de massas sonoras, textural, de saturação etc.” com isso, têm sido convidado “a participar de diversos atos populares, como o dia de lutas e conquistas dos moradores do coque pelo direito à moradia no coque, o ato criativo ‘vivência em gaza’ a favor do povo palestino, o grande ato pelo teatro do parque (teatro do parque (re)existe!), o acampamento permanente pela defesa da democracia (frente brasil popular) e o ocupa minc pe (frente brasil popular), entre outros.”

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7. gambiarra “gambiarra”, como conceito ligado à “acessibilização criativa”, ao uso sistemático das chamadas “baixas tecnologias de ponta”, ao reaproveitamento de materiais disponíveis localmente, à abordagem de condições historicamente restritivas como referenciais compositivos, ao “improviso” em vários sentidos, entre outros aspectos, reflete a ideia de buscar favorecer, micropoliticamente, um “empoderamento” em relação aos mecanismos de convenção poética, estética e ética, no sentido de uma “antimassificação”. reflete um modo político de articular poderes e quereres em favor de uma “diversificação” e de uma “homeostasia”. a oficina gambiarra vem atuando como uma sociedade musical aberta, horizontal, cooperativa, compartilhadora e nômade, em “territórios artísticos temporários”, públicos, utilizando instrumentos de baixo custo, fácil confecção e alta tocabilidade, desenvolvendo e aplicando técnicas e estilos voltados ao amadorismo (ou seja, que não exigem dedicação exclusiva, sendo comunicáveis gestual e oralmente), notações gráficas facilmente assimiláveis, modos “expandidos” de condução (como “rotativa” e soundpainting), performances improvisatórias (estruturalmente indeterminadas) etc. numa perspectiva ecomusicológica, abordagens acessibilizantes em relação às ferramentas compositivas podem favorecer uma maior participação popular na construção dos repertórios musicais, das paisagens sonoras, dos territórios artísticos, das convenções poéticas, estéticas e éticas, dos meios de produção, circulação, valorização e legitimação, das maneiras de conviver. vêm a atuar, portanto, no sentido de uma ampla “diversificação” e de uma “homeostasia” cultural, ambiental e convivencial.

8. à guisa de conclusão a escrita como montagem desestabiliza a autoria. a obra sonora aberta é sensível às máquinas, ao gesto, ao canto, ao corpo performatizado. a voz como algaravia faz do som incompreensível sua própria comunicação. coletivos, ocupações, ruas, resistências, canções, ruídos, gritaria, artesanatos, tecnologias, micropolíticas: evóe, jovem artista, meta um grelo na geopolítica. oc

* 1. preparação: por carlos gomes; 2. delivered in voices: por equipe tunga; 3. novas frequências, diálogos: por chico dub; 4. bate-boca: por lucas santtana; 5. canto de amor: por ava rocha; 6. coletivos, outras vozes: por carlos gomes e marcelo campello; 7. gambiarra: por marcelo campello; 8. à guisa de conclusão: por carlos gomes (sample: chico buarque e negro leo).

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A Narrativa de uma Jornada

Foto: Catarina Thomaz/Divulgação

resenha

por Bruno Vitorino Kitsch. Clement Greenberg preconizava que esta pequena palavra imbuída de significados desastrosos para a sensibilidade humana se alastraria pela Cultura com o aprofundamento da sociedade de consumo de massa. De fato. O domínio do tacanho com aparência de sublime, do eterno deslocamento ante a autenticidade e o conteúdo, alimentado pela sistemática industrial da produção em série de objetos padronizados, amparado pela democratização consumista do prazer estético e potencializado pela explosão do mundo em infinitas constelações de apreensão do real, contaminou a lógica da criação artística.

Assim, a obra de arte enquanto a objetivação do universo interior do artista em busca de comunicação no território imaterial da experiência estética tornou-se ultrapassada, demodê. Em seu lugar, surge uma arte domesticada, em perfeita sintonia com os valores de seu microcosmo sociocultural, que, mais do que promover epifanias, referenda tão somente estilos de vida e padrões de consumo. Neste sentido, a produção artística se apresenta como uma espécie de broche ou insígnia de distinção social qualquer que insere o indivíduo contemporâneo, destradicionalizado e paradoxalmente perdido no deserto de sua individua58


lidade, numa diminuta comunidade na qual ele se reconheça membro. Via de regra, o que se conhece hoje por jazz no coração do establishment cultural vem reiterando toda essa perspectiva. No entanto, existem ainda os que se valem dos anacrônicos preceitos da Arte para apresentar sua visão de mundo, como atesta o segundo trabalho do guitarrista e compositor pernambucano Dom Angelo Mongiovi intitulado Porto (2015). Desdobramento natural de sua tese de doutoramento em performance jazzística na Universidade de Aveiro, o álbum traz sete composições do instrumentista escritas quando de sua temporada em Portugal e documenta o amadurecimento estético do jovem Mongiovi na sua jornada pelo desabrochar de sua artisticidade. Neste trabalho, é possível identificar a caminhada que levou o menino que se aventurava timidamente pela alternância de modos de “My Favorite Things” nas terças de jazz do falecido Café Porteño no longínquo ano de 2006 ao músico que vivenciou o estilo não como pano de fundo sonoro para ambientes pequeno-burgueses, mas, isto sim, enquanto linguagem viva e fértil terreno para mentes imaginativas. Por isso, suas composições vão além da tradicional forma chorus, na qual os músicos apresentam a melodia principal, alternam-se na improvisação girando sobre o encadeamento harmônico estabelecido, fazem “chamada e resposta” com a bateria e finalizam reexpondo o material temático. Buscando por um estilo próprio, Angelo ultrapassa as contingências da tradição jazzística agregando elementos de sua raiz cultural e um pouco do rigor formalista da música erudita, para a cada composição contar uma história, escrever uma crônica que se vale da improvisação individual e coletiva para dar profundidade emocional às narrativas. Por conseguin-

te, o resultado é um álbum coeso que foge às conveniências do artificial, atacando o modus operandi da estética kitsch no âmago em sua exigência por uma “reação controlada”, que “já contém as reações do leitor ou espectador, dispensando maiores esforços perceptivos e interpretativos.” 1 Destaque para “Porto”, balada que abre e dá nome ao disco enaltecendo os espaços para criar uma ambiência suspensa, flutuante, como se um Angelo contemplativo diante do novo submergisse no encantamento que nasce das infinitas possibilidades do desconhecido; a emblemática construção narrativa de “Baião D’Aveiro”, a qual expõe um baião estilizado para desconstruí-lo numa sessão de improvisação livre e o recompor purificado sob a égide da liberdade criativa, uma clara alegoria ao entendimento do compositor sobre a música e si mesmo após o tempo em Portugal; o straight ahead de “Awareness” que além das reminiscências da escola guitarrística de Grant Green evidencia a firme base que os instrumentistas angariaram no hard bop; os voicings de Angelo e sua inclinação aos acordes híbridos; o belo trabalho do saxofonista João Mortágua nas improvisações; o vibrafone reativo de Marcel Pascual Royo. Recomendado. oc

Todas as composições por Dom Angelo Mongiovi. Gravado em 2014 por Fernando Rocha no Aura Studio, Paços de Brandão - Portugal. Foto de capa: Biga Pessoa. Disponível em: <domangelo. bandcamp.com>.

1 MERQUIOR, José Guilherme; Formalismo e Tradição Moderna: O Problema da Arte na Crise da Cultura, É Realizações Editora, 2ª edição ampliada, São Paulo, 2015, págs. 49-50.

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resenha Foto: Autumn Sonnichsen/Divulgação

( Rá – Ogi ) Crônicas que viraram canções por RAFAEL DE QUEIROZ

Quatro anos depois de Crônicas da Cidade Cinza (2011), o rapper Rodrigo Ogi lança seu segundo álbum, RÁ! (2015) que vem para consagrá-lo como um dos grandes do rap nacional. As temáticas e os elementos estéticos que já o identificavam anteriormente continuam e parecem cada vez mais maduros, ajudando a solidificar sua atual posição. Nas primeiras, ainda estão presentes as constantes referências ao universo da cultura pop, como videogame, quadrinhos e cinema; e as “histórias das quebradas do mundaréu” e o povão, “da gente que sempre pega a pior, que come da banda podre”, como nas palavras de Plínio Marcos, sampleadas no disco anterior. Nos segundos, ótimos beats e samplers continuam embalando seu flow singular e, arrisco dizer, superiores às rimas. Aqui, porém, nota-se um quê de sofisticação em relação ao álbum de 2011: por um lado há o trabalho de produção de um dos melhores beatmakers nacionais, Nave, e, por ou-

tro, a participação de músicos fora do contexto do rap, como Carlos Café, Mao (ex-Garotos Podres) e a tríade do Metá Metá, ajudando na construção de uma sonoridade mais plural. Acredito ser a narrativa um elemento chave para se destrinchar o universo de Ogi e ele se utiliza disso como ninguém. Anteriormente, um cronista de São Paulo e agora um cronista do eu e todos os seus medos, desejos e angústias. Ele começa o disco sugerindo uma ida a uma sessão de psicanálise e essa conversa com o outro sobre si entrecorta todo o álbum. “Fale mais sobre isso”, pede o interlocutor. Há realidade, sonho, pesadelo, assim como as memórias de infância. Claro que em RÁ! ainda existe São Paulo, como em Crônicas existiam letras autobiográficas, mas há uma clara diferenciação na escolha dos protagonistas. Então, com essa maestria na construção de uma história mais ou menos fechada, com início, meio e fim, mesmo que possa soar esquizofrênica 60


em alguns momentos – fazendo todo sentido, já que o jogo se passa na batalha do consciente e inconsciente –, Ogi joga muito bem com o conceito de “álbum”, um dos cânones da crítica cultural na música popular. E essa percepção por parte dos rappers de levar a ideia de álbum ao seu extremo, mostra como esse gênero tem até um potencial maior que o rock no seu uso. Digo isso pelo rap ser mais dinâmico em todos os sentidos: na linguagem, referências e na sua própria constituição sonora-histórica de uso de batidas, melodias, vozes e sons de outros meios (discos, filmes, discursos etc.). Isso permite uma facilidade técnica e estética para criar um plot que associado ao ápice da “canção”, ou seja, melodia e letra passando a mesma mensagem, e a um bom flow, criam um caldeirão de possibilidades para a exploração desses conceitos. No fim parece que estamos num filme de Tarantino, com todas as suas referências à música black e a filmes de porrada, com um tom onírico e angustiante de Lynch. Em “Estação da Luz”, fala sobre o medo que habita o inconsciente das classes mais altas quando deparados com ‘o outro’, aquele que vivendo à margem, está exposto a todos os tipos de situação de risco. Aqui, esse cidadão de bem foge do viciado em crack, quanto mais longe melhor para evitar a reflexão, evitar a verdade. Já em “Hahaha”, pensei, na primeira escuta, que estaria diante de mais uma letra machista de rap, coisa bem comum, infelizmente, no gênero. Mas aqui ele descreve um sonho em que era um garanhão, mas ao longo da narrativa vemos que se trata de um pesadelo. Ogi usa a ironia para fazer uma crítica à posição do rapper macho alfa, que ainda é uma posição hegemônica no estilo. Na sequência temos uma grande música, com participação de Juçara Marçal. “Correspondente de Guerra” narra o terror que foi a desocupação

de Pinheirinhos em São Paulo. Aqui ele usa Gil Scott Heron, para dizer que a revolução não será televisionada, através de seu testemunho, memória e devaneio. Aqui começa “Trindade” uma canção que é dividida em três partes. Em cada uma ele faz uma voz diferente, representando diferentes personagens em uma história de estilo fantástica. Seu potencial como contador de histórias e criador de personagens, que mistura memória, sonho e realidade, chega ao ápice com essa sacada. “Virou Canção” pode não ter essa sacada estética da predecessora, mas é uma das mais belas músicas que o rap nacional já produziu. Ogi remonta à sua infância, à inocência, aos amigos que teve e que já não estão mais nesse plano, pois foram perdidos para o crime. Longe de ser uma canção piegas, a sinceridade e verdade que o rapper passa conseguiu transformá-la em uma das melhores músicas de 2015. Ainda há outras músicas que fazem o disco todo valer a pena, colocando esse artista em destaque na cena do rap nacional e da música brasileira como um todo. Ogi tem um talento pro crossover assim como Emicida e Criolo já mostraram, podendo expandir e agregar, assim como divulgar para um número maior de ouvintes o que se vem produzindo de melhor neste gênero. oc

Todas as letras por Rodrigo Ogi. Composição e arranjos por Nave Beatz. Arte por Oga Mendonça. Foto e letreiro por Sosek. Produção por Nave Beatz. Mixagem por Luiz Café e Masterização por CESRV.

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resenha

Foto: Mauro Pimentel/Divulgação

Da irrelevância, a criação por fernando athayde

Superfícies (2016), híbrido de livro de contos/fotografia e disco, lançado pelo carioca Leonardo Panço, é uma obra que se destaca pelo formato inusitado e pela chance de abrir portas para que o leitor/ouvinte conheça o funcionamento da mente do artista. Há quem possa categorizá-la como multimídia, mas acredito que a ‘mídia’ aqui seja só o plano onde se revela uma reflexão situada originalmente na psiquê do próprio Panço. Seja isso bom ou ruim. Composto por vinte e um temas instrumentais, que dificilmente ultrapassam os dois minutos de duração,

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o lado musical de Superfícies está entrelaçado com as várias fotografias e contos, que, por sinal, quase nunca vão além de um único e solitário parágrafo. Assim, embora esteja pluralizada em várias linguagens, a obra assinada por Panço possui uma dinâmica veloz e é capaz de ser assimilada pelo ouvinte/leitor após alguns minutos de imersão. Ainda sobre isso, acredito que seja possível interpretar Superfícies como um fluxo de pensamentos desordenados, trazidos à face da linguagem à medida que vieram à cabeça do autor. Cada novo conto ou música acaba


funcionando como uma conversa com Panço, como se ao final do disco/livro fosse possível conhecê-lo um pouco melhor. Talvez Superfícies seja uma grande mesa de bar, onde a cerveja gelada é o combustível para desvendar a sensibilidade com que o músico/escritor enxerga a vida. Inclusive, quando diz em determinado momento do livro: “Escrevi um disco com muitas faixas. Elas parecem todas iguais. Como o barulho da chuva no telhado ou do trem que passa bem pertinho daqui fazendo sempre o mesmo som”, talvez Panço não esteja falando somente das músicas, que realmente soam bastante semelhantes, ou dos contos, sempre erguidos sob um mesmo estilo narrativo. A meu ver, essa é uma reflexão sobre o próprio fluxo do cotidiano, composto por raros rompantes de genialidade suprimidos pela monotonia das horas sendo superadas pelas próprias horas. Dito isso, o título Superfícies imediatamente parece ser uma alusão às inúmeras superfícies de Panço que residem sob aquela conhecida pelo mundo. E, honestamente, essa é uma saída criativa fácil, mas, como se diz aquela famosa frase do escritor norte -americano Kurt Vonnegut, “cuidado com o que você finge ser, pois você é aquilo que finge ser”. Assim, ao longo da obra, descobrimos não o trabalho de um músico ou de um escritor, mas desvendamos a forma como um autor pensa o mundo à sua volta - E como ele se projeta nesse mundo. E, se é que podemos chamar isso de desapontante, a obra nos instiga uma tensão nunca eliminada, como se estivéssemos sempre diante de algo que nunca se conclui. A própria estrutura da obra, montada a partir de fragmentos mentais e sonoros, contribui para isso. A verdade é que o livro/disco não soa como um recorte dos instantes de êxtase criativo de Panço, mas sim dos momentos de tédio e desolação, cuja identificação com a vida de qualquer pessoa é imediata.

Intencionalmente curtas, as narrativas musicais, fotográficas e literárias são o reflexo daquilo que estava ali o tempo inteiro, foi visto por todo mundo, mas percebido por quase ninguém. No conto “Meu Efeito Borboleta”, Panço gera uma trama (ou um relato, vai saber…) sobre horas preso num aeroporto, algo que, extraído de sua diegese, pode ser encarado como uma alusão ao próprio tédio. “Faltavam seis horas para viajar mesmo tendo ido até a rua comer um pastel de goiabada” é uma frase cuja capacidade de evocação do marasmo é capaz de dissolver até o tecido da realidade. Assim, o livro/disco, livro musical, ou chame como preferir, do músico carioca Leonardo Panço é, sobretudo, uma viagem microscópica aos momentos perdidos entre a passagem das horas. Um reflexo da monotonia, da sensação de congelamento e do íntimo desejo de querer sair do lugar em que se está. E, embora tudo isso soe muito mal numa era cujo grande deleite é a efemeridade das redes sociais e o compartilhamento da felicidade oca e gratuita, o trabalho de Panço se faz relevante por desprezar essa balbúrdia do contentamento e se concentrar nas pequenas chateações que, embora não estejam expostas à luz do público, acontecem todos os dias e continuarão acontecendo para sempre. oc

Nos anos 1990 foi guitarrista da banda Soutien Xiita. Criou o selo Tamborete Entertainment, lançando discos do Gangrena Gasosa, Wry e Zumbi do Mato. É autor dos livros Jason 2001: uma odisseia na Europa, Caras dessa idade não leem manuais e Esporro.

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resenha

Chama incerta de um minuto por bernardo oliveira

Foto: Nino Andrés/Divulgação

“Chama eterna de um minuto”: paráfrase do amor “infinito enquanto dure”, imagem expressiva do estado de permanência e movimento que caracteriza algumas “incertas” que, volta e meia, acometem a música brasileira. Como em toda incer-

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ta, chega sem aviso; eterna enquanto dura, a incerta desconcerta pela ausência de uma filiação evidente ou de uma temporalidade referencial que permita sua inserção imediata na continuidade histórica da música popular. A “linha evolutiva”


enunciada por Caetano Veloso nos anos 1960 sustentava-se sobre uma temporalidade linear, mas a quantas anda a temporalidade linear na música hoje? (Em outras palavras, como lidar com trabalhos tão alienígenas quanto representativos do momento atual como Anganga de Juçara Marçal e Cadu Tenório, Niños Heroes de Negro Leo e Conversas com Toshiro de Rodrigo Campos?) Assegurando a continuidade histórica linear, a tradição cancional brasileira alimenta-se em parte desta matéria candente que é a marca atemporal do amor infinito: um sentimento evocativo, um ideal romântico de origem ibérica que perpassa a expressão cancional. Em uma atitude contrastante, porém solidária com essa tradição, Monumento ao soldado desconhecido (2016), primeiro disco de Clima (o artista plástico paulistano Eduardo Climachauska) soma-se a esse conjunto de canções “incertas”, canções elaboradas a partir de procedimentos que violentam a fluidez do romantismo atávico, valendo-se de uma poética singular e da espontaneidade do improviso. No texto de apresentação, uma primeira pista: letrista gravado por Elza Soares, Gal Costa, entre outros artistas, desta vez Clima preferiu focar nos aspectos musicais e sonoros. Segundo Romulo Fróes, produtor e diretor artístico, o briefing que Clima propôs aos músicos era algo abstrato: tomar como referência o álbum Mora na filosofia dos sambas de Monsueto, gravado em 1962 pelo compositor carioca e composto basicamente por percussão, trombone e coro de pastoras. Com exceção das pastoras, substituídas pela guitarra de Rodrigo Campos, foi a instrumentação deste disco que serviu de ponto de partida. Em um primeiro momento, Campos desenvolveu as linhas de guitarra durante os ensaios. Depois, Clima propôs a Sergio Machado que tomasse como referência o modo como os bateristas do jazz

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exploram o ritmo para além da regularidade, desenvolvendo texturas e detalhes em diálogo com outros instrumentos. Com essa base pronta, executada por Clima, Campos e Machado, o trombonista Allan Abbadia foi convocado para um processo arriscado: ouvindo-as pela primeira vez, gravou cerca de oito faixas em uma hora e meia. O objetivo era manter o máximo de espontaneidade possível em referência ao disco de Monsueto. Os contrapontos entre o trombone e a guitarra constituem uma das características sonoras decisivas do disco. Como em “Eu não sei cantar”, na qual Campos e Abbadia repetem a melodia enquanto a bateria se mantém solta, jazzística: “Procurei nos cós/apertei nos mós/e gozei em nós/inteirinhos.” Efeito semelhante ocorre na sequência, com o afoxé “Dedo Duro” e eclode em “Teta”, que se desenvolve em crescendo, atingindo um momento de tensão máxima entre os instrumentos, especialmente na relação entre bateria e trombone: “Tem o lance de outra teta/leite escuro e antihorário/teta preta/teta triste”. “Alguém responde para mim” é um frevo de linha melódica ora ascendente, ora descendente, entoada de forma festiva: “Quem que fez a grana/quem perdeu a grana/quem comeu a grana toda feito capim” — no final da faixa, nota-se Clima brincando com a escala descendente, desta vez fora do andamento. As frases melódicas de “Coxa Branca” remetem às modulações características das composições de Hermeto Pascoal, efeito interrompido no refrão, quando a faixa adquire uma coloração bossanovística: “peixe peixe peixe, planta” (o “thing-fish” de Frank Zappa?). “Bahiuco” parece inaugurar um segundo momento do disco. Cantada ao violão, contém um dos grandes versos do disco: “Árvore seca cresce na minha cara/Quero você/Embaixo


de quem/Me dera.” Redistribuindo os versos sobre uma harmonia flutuante, “É uma árvore” retoma a ideia da chama fugaz e passageira: “Eu fiquei feito um silêncio/Meu poema a areia apaga e lê”, enquanto Rodrigo Campos repete acordes que se tornam mais e mais agressivos conforme Clima contrapõe o som orgânico da performance ao vivo aos timbres artificiais dos softwares de computador. Outros destaques do disco: “Mamãe Papai”, é um samba de roda, daqueles de pedir licença em terreiro grande: “Mamãe,Papai/Dá licença de tentar/Eu cantar, mal não faz/É bom/Foi mal”; e “Monumento ao Soldado Desconhecido/Dentro das Rosas”, marchinha de carnaval portadora de um lirismo fraturado, interrompido por um ataque de prato, que desemboca nos seguintes versos: “Quando o sol deposto for expulso do olho/Terei meu rosto novo escrito dentro das rosas.” A primeira faixa do disco chamase “Fica onde está”, uma canção sobre presença e ausência: “o dia cansa de passar/criança que não crescerá”. A guitarra repete duas notas, os ruídos eletrônicos dialogam com os detalhes percussivos da bateria. Compostas com um de seus parceiros habituais, Nuno Ramos (responsável pela “chama eterna” que se acende na capa), as canções de Clima trazem a marca do movimento e da disrupção: mover para cortar; interromper para recomeçar. Um jogo de palavras pode ressaltar uma contradição, um curto-circuito semântico ou suscitar uma sorte de articulação que descarta a banalidade da representação lírica e aposta no poder do tropeço, da gagueira. O cantor no corner da música, incorporado pela “anti-musa”, reveste-se de uma força cortante capaz de retalhar as disposições líricas que cerceiam a tradição do samba e da MPB, abrindo caminho para uma racionalidade poética disruptiva. Independente do alcance e do reconhecimento, torna-se eviden-

te a cada lançamento que essa dupla de compositores (na realidade um trio, com a participação de Romulo Fróes) inscreve, de forma deliberada, uma sintaxe particular no mapa da canção brasileira. Um amor profundo pela canção brasileira que se traduz em procedimentos que violentam essa mesma canção: a autenticidade do procedimento corresponde ao quantum de violência que incide sobre a forma final. Assim, entrevê-se as influências de Caetano Veloso, Milton Nascimento e João Bosco converterem-se em apropriações desconstrutivas da dicção desses autores, assimiladas pela instrumentação a meio caminho dos arroubos característicos do free jazz (principalmente através da bateria extraordinária de Machado) e de uma pegada minimalista impressa pelo diálogo da guitarra de Rodrigo Campos e do trombone de Allan Abbadia. É neste entremeio que podemos situar o Monumento ao Soldado Desconhecido: já não se pensa mais em termos de uma polarização solidária entre tradição e modernidade, entre continuidade e ruptura, mas uma comunhão catártica entre o sentimento evocativo e o movimento disruptivo da morte e da vida de tudo. oc

Todas as composições de autoria de Clima e Nuno Ramos. Direção artística por Romulo Fróes. Produzido por Romulo Fróes e Clima. Gravado, mixado e masterizado por Carlos “Cacá” Lima nos estúdios YB. Edição de som por Daniel Bozzio.

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