“Ninguém é perfeito e a vida é assim”: a música brega em Pernambuco (Edição 2, 2021)

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THIAGO SOARES

“NINGUÉM É PERFEITO E A VIDA É ASSIM”: A MÚSICA BREGA EM PERNAMBUCO

2ª Edição

Recife Carlos Gomes de Oliveira Filho 2021


Edição • Carlos Gomes Projeto gráfico e diagramação • Fernanda Maia | CASA10AB Ensaio fotográfico • Chico Ludermir Capa • Montagem de Fernanda Maia sobre fotografia de Chico Ludermir Incentivo • Funcultura | Governo do Estado de Pernambuco Realização • Outros Críticos Apoio • CASA10AB

Publicado em 03 de dezembro de 2021.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Soares, Thiago "Ninguém é perfeito e a vida é assim" [livro eletrônico] : a música brega em Pernambuco / Thiago Soares ; [ensaio fotográfico Chico Ludermir]. -2. ed. -- Recife : Carlos Gomes de Oliveira Filho, 2021. PDF Bibliografia ISBN 978-65-00-34319-9 1. Cultura popular 2. Gêneros musicais 3. Música Aspectos sociais 4. Música - Estética 5. Música popular (Canções etc.) - Pernambuco - História e crítica I. Ludermir, Chico. II. Título.

21-88999

CDD-780.981 Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Música brega pernambucana : Expressão popular : História e crítica 780.981 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

2021 • Outros Críticos contato@outroscriticos.com www.outroscriticos.com


Para meu pai, que me emocionou ao ouvir A Raposa e as Uvas.


NÃO DEIXE O BREGA MOR ACABAR / ESCREVAM LETRA POSSA CANTAR / UMA LETR DE AMOR / DE GRANDES C GENTE PASSOU / NÃO DÁ P ACONTECENDO / DESSE JE MORRENDO / NÃO FALO DA R BONITO / BREGA POP DO PA MAS SIM DESSAS GRAVAÇÕ TRANSANDO / ISSO É APELAÇÃ


RRER / DESSE JEITO PODE AS BONITAS / PRA QUE EU RA DE UM BREGA SE FALA COISAS DESSA VIDA QUE A PARA ACEITAR O QUE ESTÁ EITO NOSSO BREGA ACABA RENOVAÇÃO PORQUE ACHO ARÁ ASSIM COMO CALYPSO ÕES DE COMO QUEM TÁ / ÃO, VAMO ACABAR COM ISSO Banda Aparências


Prefácio A vida tem mais sabor quando é levada pelo nosso lado brega

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POR MICAEL HERSCHMANN

Referências

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Introdução

Afetos bregueiros 20 Capítulo 1

Incômodos e políticas da música brega 36

Música pernambucana de qualidade: para quem? 46 Disputas institucionais de valor musical 50 O problema do arquivo 55

O brega em eixos estéticos 61


Capítulo 2

Recife não é Belém: Brega não é Tecnobrega 70 A teatralização da subalternidade 78 Espacialidades bregueiras

82

Circuitos de lazer: das pagoderias às casas de brega

84

O deslizar do brega pela Avenida Conde da Boa Vista 88 Música brega e cultura da mobilidade 94

Capítulo 3

Economias Estéticas do Brega 102

Mediadores produtivos da cena brega 108

NP Produções e a Estética dos Teclados 110 Luan Produções e a Banda Calypso no Recife O brega universitário 117

112

Tensões em cena: brega, VIP e descolado 124 Quando ser brega é conveniente

128


Capítulo 4

Quando a piriguete encontra o cafuçu 138 Distinção na bebida alcoólica 144

148 Desejos deslizantes na festa brega 153 Clubes como ambiências das canções 158 Piriguetismos noturnos 161 A virilidade do cafuçu 163 A diva bregueira 166 O “gangsta” do brega 168

O corpo alcoolizado como performance

Capítulo 5

Bregueiros midiatizados 174 Máquina e poder 180

Compartilhamentos, redes sociais e versões 185

190 Vocação televisiva do brega 193 Blogue para bregueiros

Pedofilia midiatizada: o caso Denny Oliveira 199

204 Reencenações do pop em videoclipes 210 “Jacaré que dorme vira bolsa”


Capítulo 6

A Funkização do Brega 218

228 Ostentar ou não, eis a questão 231 Brega como cidadania cultural 236 Utopia e transformação 238

A “abertura” do brega ao funk

Capítulo 7

Bregafunk, racialização do brega 242

250 “Só Dá Tu”: a dança em rede 254 Jovialização e racismo

260 Disputas morais através do Bregafunk 266 Julgamentos e conhecimentos corporais 274 Dançarinas de Bregafunk: gênero, corpo, trabalho 278 Brega como música negra 284 Institucionalização (e exclusão) no brega 289 “Passinho dos malokas”, celebrização e estigma

297 Referências 301

Notas de fim

Ensaio Fotográfico

A dança que nos revela 312 POR CHICO LUDERMIR


prefácio

MICAEL HERSCHMANN


A vida tem mais sabor quando é levada pelo nosso lado brega



Em seu livro Gramática do tempo (2010), o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos critica a postura científica mais conservadora, ressaltando a importância do pesquisador em investir na polifonia e na enorme riqueza presente no socius de um determinado contexto, valorizando especialmente os aspectos que não são encarados com muita credibilidade pelos membros da crítica e Academia. A proposta de Thiago Soares caminha corajosamente neste sendeiro menos percorrido e, de certo modo, esta publicação se insere na corrente de estudos comunicacionais de Música, Som & Entretenimento (HERSCHMANN et al., 2014), que vem atuando em âmbito nacional, e a qual tem procurado, entre outras coisas, problematizar as previsíveis condenações das manifestações musicais populares, salientando a relevância e complexidade destas expressões coletivas na vida sociocultural do País das últimas décadas (AMARAL, 2006; PEREIRA DE SÁ, 2011; HERSCHMANN, 2000; JANOTTI JUNIOR, 2003; TROTTA, 2014). Em seu livro intitulado Ninguém é perfeito e a vida é assim: a música Brega em Pernambuco, este pesquisador, jornalista cultural e professor da UFPE, reúne vários instigantes ensaios – elaborados entre 2005 e 2016 –, nos quais analisa a complexidade das polêmicas entre os atores e a relevância sociocultural de um amplo universo musical que tem como referência não só o Brega Tradicional, de ídolos locais/regionais, tais como Reginaldo Rossi, Adilson Ramos e Augusto César (que tem como referência, por exemplo, o trabalho de Waldick Soriano, Odair José e Agnaldo Timóteo), mas também 13


o Brega Pop (mais dançante e que dialoga com ritmos caribenhos, forró e tecnobrega), o chamado Brega Universitário e até o Brega Funk. Entre outras coisas, Soares busca ao longo deste livro debater a noção de “qualidade musical” associada ao universo do brega na cidade do Recife, evidenciando o preconceito social por parte da crítica e da elite locais que entronizam certas expressões culturais como sendo de excelência (as quais ainda tomam como principal referência para o “padrão de bom gosto” a chamada música erudita). Além disso, o autor chama a atenção para um importante aspecto político desempenhado pelo brega nesta região: a capacidade deste universo cultural de promover “zonas de contato” (PRATT, 1992), ou seja, dinâmicas de encontros e trocas assimétricas entre diferentes segmentos sociais, o que tem gerado inúmeras articulações e tensões urbanas, detalhadamente analisadas ao longo desta publicação. Nesse sentido, o autor afirma: A música brega aciona uma dimensão política na medida em que “força” a classe média branca e parda de Recife a se deparar com o Outro. (...) Este Outro, primeiramente é exótico e estranho (...), é quase visto como selvagem. É a música que aciona um outro padrão estético musical, tensionando as normas clássicas de gravação, agindo no improviso, naquilo que não se reconhece como “de qualidade”. O brega, em suas levadas musicais, coloca-nos diante de outras corporeidades possíveis: aquela que é negra, sem ser folclórica. Uma negritude 14


que se constrói em diálogos com os padrões midiáticos, mas de forma viva e pulsante. Assim, poderia se afirmar que o mundo bregueiro, assim como o do funk, forró e do tecnobrega, colocam em cena (para desespero dos setores mais conservadores da sociedade) o Outro, isto é, oferece visibilidade aos atores oriundos das camadas menos privilegiadas da população, os quais ganham protagonismo e reivindicam espaço para suas demandas, códigos sociais, performatividades e referenciais estéticos. Portanto, Soares parte do pressuposto de que os artistas e consumidores da cena brega ressignificam em certo sentido o seu cotidiano, construindo significativas dinâmicas de agenciamentos de “territorialidades” na cidade do Recife, as quais colocam em pauta, isto é, no centro, expressões culturais populares que tradicionalmente ocupavam uma posição periférica. Nesse sentido, o autor salienta que: (...) o periférico em geral aparece sob a máscara do exótico da cultura popular-folclórica, como nas imagens publicitárias institucionais que os governos amam exibir. Mas qual o periférico que está nas margens hoje? A música da periferia do Recife não é apenas o maracatu iluminado e museificado, tampouco o caboclinho com um riso fácil ou o afoxé de um carnaval de tambores silenciosos. A música da periferia do Recife é, sobretudo, o brega romântico, rasgado, sensual e pernicioso. Ao mesmo tempo, Soares sublinha que na capital muitos 15


moradores, mesmo aqueles das áreas mais elitizadas da cidade, vêm aderindo às festas e bailes bregas (alguns desses considerados bastante “descolados” pelos atores). De certa maneira, o autor analisa parte do processo pelo qual o segmento social mais abastado da cidade, nos últimos anos, vem “(re)descobrindo o seu lado brega” (ainda que não o assuma de forma pública). Assim, analisa e dá destaque ao crescimento do número de casas noturnas – mesmo nos bairros chiques da cidade – que abrem espaço para a música brega na sua programação recorrente. Nesse sentido é que o autor afirma que emerge nesses espaços e no seu entorno uma “geografia do desejo” (Parker, 1999), ambientes de “paquera” e “pegação”, os quais afetam parcialmente o ritmo e a dinâmica do cotidiano noturno do Recife. Soares menciona a Avenida Conde da Boa Vista como um caso exemplar de como a música brega vem reconfigurando a “cartografia” da cidade, através da construção de “territorialidades sônicosmusicais” (HERSCHMANN e FERNANDES, 2014). Além disso, nos últimos anos, nesse processo de popularização do brega, o autor constata que a dança, performance e corporeidade desempenham um importante papel na mobilização do público, colaborando para colocar em evidência (inclusive nas mídias tradicionais e alternativas) uma cena cultural de grande efervescência, na qual se destacam não só os cafuçus, mas também as piriguetes, coroas, divas bregueiras e novinhas. Para finalizar, vale a pena ressaltar ainda que este livro de Soares é bastante atual e engenhoso, elaborado por 16


um autor que não só não teme enfrentar controvérsias, mas também que não teme salientar como preconceitos sociais e estéticos vem presidindo os debates em certos contextos. Portanto, recomenda-se o inovador Ninguém é perfeito e a vida é assim a todos os interessados em repensar de que maneira o brega vem se popularizando e conquistando lugares significativos no imaginário social da cidade do Recife. Afinal, como afirma com certa sabedoria e jocosidade o cantor e compositor Falcão: “a vida tem mais sabor quando é levada pelo nosso lado brega”.

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Referências


A AMARAL, Adriana. Visões Perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006. H HERSCHMANN, Micael. O funk e hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000. HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia S. Música nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Ed. Intercom, 2014. HERSCHMANN, Micael; PEREIRA DE SÁ, Simone; TROTTA, Felipe: JANOTTI JR, Jeder. Consolidação dos Estudos de Música, Som e Entretenimento no Brasil In: MORAES, Osvando (org.) Ciências da Comunicação em Processo. São Paulo: Ed. Intercom, 2014, v. 1, p. 404-426. J JANOTTI JUNIOR, Jeder. Aumenta que isso é Rock in Roll. Rio de Janeiro: E-Papers, 2003. P PARKER, Richard. Beneath the Equator: cultures of desire, male homosexuality, and the emerging gay communities in Brazil. New York: Routledge, 1999. PEREIRA DE SÁ, Simone. Funk Carioca: música eletrônica popular brasileira?! In: Revista E-COMPÓS. Brasília: COMPÓS, 2011. PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: travel and transculturalism. Londres: Routledge, 1992. S SOUSA SANTOS, Boaventura de. Gramática do tempo. São Paulo: Cortez, vol. 4, 2006. T TROTTA, Felipe. No Ceará não tem disso não. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2014.

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Introdução


Afetos bregueiros



O termo “música brega” é contraditório em qualquer contexto. Evoca divergências: quem chama a música de brega? Quem se diz ouvir música brega? Quem assume fazer música brega? Quem detrata a música brega? O termo “brega” e, portanto, “música brega” carrega, em si, contradições culturais. Aciona disputas de gosto, de classe, de gênero, de raça. Encena lugares, situações, corpos. Quase sempre corpos subalternos. Possivelmente abjetos. Corpos outros. Possíveis. Este livro é uma tentativa de pensar o brega produzido em Pernambuco, entre duas décadas, no final dos anos 1990 e parte dos anos 2000, como um conjunto de tensões, dissensos culturais, negociações e performances que formaram parte da cultura musical, sobretudo, da capital pernambucana. Sem receio algum em afirmar: a extensa produção de música brega é parte fundamental e significante para o entendimento dos atravessamentos pelos quais a cidade do Recife passou – e passa. Geograficamente, culturalmente, politicamente. Os textos que aqui estão reunidos foram produzidos de forma dispersa, entre os anos de 2005 e 2016, quando comecei a me interessar pela música brega, ocupando o cargo de editor dos suplementos culturais do jornal Folha de Pernambuco (um veículo jornalístico voltado, originalmente, para as camadas populares) e também durante a minha formação entre o mestrado em Letras (UFPE) e o doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Paralela a esta atividade, eu ministrava aulas nos cursos de Comunicação em diversas universidades da Região Metropolitana do Recife e, inevitavelmente, era interpelado pela música em conversas, 23


bares e ruas da cidade. A música brega, reparem, nunca esteve formalmente na minha partitura de pesquisas, no entanto, constantemente, eu era interpelado por questões que vinham deste gênero musical: seja no tocante à sexualização das letras, às disputas estéticas entre subgêneros musicais, à trajetória de artistas das periferias do Recife e, sobretudo, às referências sempre presentes de um imaginário pop na forma com que cantores e cantoras do brega comentavam sobre seus processos de criação e expressão. Vez ou outra, portanto, era instigado a escrever sobre a música brega do Recife na Folha de Pernambuco, entrevistar artistas, passar tardes fazendo ensaios fotográficos com eles, criar pautas. As pautas que, certamente, mais me instigavam eram aquelas em que transformávamos cantoras de brega em divas pop. Fizemos de Dany Miller, então vocalista da banda Lolyta, a “Beyoncé do Brega”. Dayane, vocalista da Frutos do Amor, a emancipada “Mariah Carey do Brega”. Michelle Melo, da banda Metade, a “Madonna do Brega”, expandiu-se e foi parar na Rede Globo, entrevistada por Regina Casé. O contato com estes artistas foi me fazendo perceber sistemas produtivos de música profundamente efêmeros, simples, caseiros, ao mesmo tempo, de uma singular potência comunicacional, de adesão e largo espectro de público. Percebi também um processo particular de celebrização que emergia nos contextos de periferia, passava pelos programas da televisão local e também pelos sites de redes sociais e me fazia enxergar a formação de ídolos nas periferias, em geral, de classes populares, que, rapidamente, eram alçados à esfera do 24


“star system” pernambucano. Neste contexto, era possível que um morador do bairro de Nova Descoberta, na periferia do Recife, se transformasse num ídolo, aparecesse na televisão, começasse a trilhar uma carreira artística como cantor de brega e que seus vizinhos se orgulhassem por morar naquele bairro, ao lado de um artista. Este imaginário povoou – e ainda povoa – as periferias recifenses e fez emergir uma certa noção de que a cultura seria uma forma de sujeitos aparecerem como celebridades num contexto periférico, narrativa que funcionou – e funciona – como base de políticas públicas e culturais nos mais diversos países (no Brasil, em países da América Latina, África, entre outros). O sistema produtivo da música brega em Pernambuco sempre me interessou porque, a partir dele, é possível discutir os agentes de produção, ambientes, estéticas, corporalidades e o consumo das classes populares – e seus atravessamentos – e posterior chegada em outros ambientes, notadamente, os bairros mais abastados da cidade e as boates e festas “descoladas” do Recife. Faço aqui um recorte: “música brega do Recife”. Essa ênfase na produção urbana é oriunda de uma disposição geográfica capaz de abarcar a Capital e sua Região Metropolitana como importantes eixos produtivos deste gênero musical e sua disseminação por todo o estado de Pernambuco. Sabemos que este recorte não abarca, por exemplo, a importante produção de música brega existente em cidades da Zona da Mata Norte de Pernambuco, onde os maiores expoentes são cantores como André Viana e Kelvis Duran, 25


e todo o seu sistema produtivo – no entanto, é sintomático reconhecer que o eixo de criação, gravação e disseminação da música brega se dá maciçamente no Recife – cabendo ao interior de Pernambuco funcionar como um importante circuito de shows e espetáculos. Este livro reúne, portanto, textos, rascunhos de pesquisa, anotações jornalísticas e minha própria memória em torno de fatos e seus desdobramentos. Vários destes textos foram publicados em versões mais curtas em congressos e revistas científicas da área de Comunicação e Música, quando, a partir da resposta que fui tendo de pesquisadores das inúmeras áreas (da Antropologia, passando pela História e a Sociologia, além, logicamente da Comunicação), fui amadurecendo questões, endossando certos pontos de vista, questionando outros. Pela própria trajetória dos textos, é possível perceber uma série de (re)enquadramentos, novas perspectivas. O primeiro artigo acadêmico que produzi sobre o brega foi redigido em 2012 e apresentado no X Congresso da Associação Internacional para Estudos da Música Popular (IASPM) – Rama Latino-Americana, em Córdoba (Argentina) e se chamou “Quando a ‘Piriguete’ encontra o ‘Cafuçu’: Divas e ‘Gangstas’ nas Encenações Performáticas no Tecnobrega do Recife”. Percebam que eu ainda chamava o Brega de Pernambuco de Tecnobrega – questão que amadureci quando visitei Belém do Pará, por duas vezes e, em contato com as festas de Aparelhagem e as pesquisas em torno de artistas como Gaby Amarantos e Gang do Eletro, fui percebendo duas tradições e histórias distintas. O Tecnobrega e seu contato com os ritmos

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caribenhos e com a estética das equipes de Aparelhagem e o Brega recifense com a música de seresta, o forró eletrônico, o próprio Tecnobrega paraense e matrizes do funk carioca. A partir das críticas e do debate gerado no evento, publiquei uma versão semelhante a este texto apresentado em Córdoba, agora sob o título “Conveniências Performáticas num Show de Música Brega: Espaços Sexualizados e Desejos Deslizantes de Piriguetes e Cafuçus” na revista Logos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, já reconhecendo o Brega como gênero musical e apontando para um debate em torno da sexualidade e das performances de flerte e pegação nas festas. Continuei a tentar entender os espaços das festas bregueiras, uma vez que, como indica Fernando Fontanella (2007), o brega é a música do corpo e do triunfo da dança. Reconhecia que minha experiência era muito diferente quando eu apenas ouvia a música brega e quando ia para os locais. Foi por isso que, em 2014, preparei o paper “O Corpo Alcoolizado como Performance: Andanças Cambaleantes numa Festa de Música Brega” para apresentar no XI Congresso da Associação Internacional para Estudos da Música Popular (IASPM) – Rama Latino-Americana, em Salvador (Bahia). Dessa vez, parti para tentar compreender mais detidamente as perspectivas performáticas dos frequentadores das festas, acionando a bebida alcóolica como agenciamento de corpos. Esses três artigos formam a base do Capítulo 4: “Quando a Piriguete encontra o Cafuçu”. Concomitantemente, fui percebendo mudanças substanciais no consumo da música brega a partir das redes sociais, blogues e da cultura da mobilidade, o que me levou a escrever o texto

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“Piriguetes e Cafuçus Digitais: Apropriações, Performances e Poéticas ‘Orkutizadas’ no Brega Recifense”, para debater no VI Simpósio Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), em Novo Hamburgo (Rio Grande do Sul), em 2012. Desenvolvi mais tópicos, ampliei o espectro das lógicas de midiatização, incluindo também a televisão e o videoclipe como importantes ambientes/produtos ligados à cultura brega e esta é a configuração do Capítulo 5, “Bregueiros Digitais”. Apareciam novas questões ligadas à música brega – digitalização, “orkutização”, diferença – mas também elitização, disputas periferia x centro, Zona Norte x Zona Sul. O brega chegava à classe média do Recife, que fruía destas expressões de forma carnavalizada, humorística, problemática. Mas, e se pensarmos que o humor e o Carnaval deixam vestígios no corpo e no cotidiano? Redigi, então, o artigo “As Conveniências do Brega” para integrar o livro Cenas Musicais, editado por Jeder Janotti e Simone Pereira de Sá. A partir da noção de “conveniência cultural” de George Yúdice, tentei pensar o brega como uma série de enlaces e disputas dentro das culturas, turvando lugares estanques sobre “quem se apropria”, “quem é apropriado”. A base desta reflexão está contida no Capítulo 3, “Economias Estéticas do Brega”. Quando eu achava que não escreveria mais sobre o brega, eis que recebo o convite de Carlos Gomes, editor da revista Outros Críticos, para redigir um texto que julguei ser provocativo sobre Política e Arte pensando um certo silenciamento da musicalidade bregueira pelas políticas culturais do Estado de

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Pernambuco e do Município. Daí surgiu a base do Capítulo 1, “Incômodos e políticas da música brega”, cuja versão reduzida discuti no V Congresso Internacional de Comunicação e Consumo (Comunicon), em São Paulo, em outubro de 2016. Por fim, o texto “Recife não é Belém: Brega não é Tecnobrega”, que resulta do Capítulo 2 deste livro, apresentei também uma versão reduzida no Congresso da Intercom – Região Nordeste, em Caruaru, em julho de 2016. Os textos carregam diferentes perspectivas metodológicas. Algumas eminentemente críticas e analíticas, a partir de teorias e conceitos debatidos em textos acadêmicos e “usadas” com a finalidade de iluminar questões em torno dos fenômenos da música brega; outras de cunho essencialmente pragmático, de campo, revisitando uma longa tradição das pesquisas em cenas musicais, em contextos comunicacionais específicos. Como os textos que fui escrevendo apresentam diferentes metodologias, quis respeitar a gênese deles e também me coloquei numa espécie de deriva metodológica, que pode resultar pouco uniforme, “racional”, mas admito ter uma inclinação pelos indicativos mais afetivos e processuais das análises comunicacionais. Do ponto de vista metodológico, acho que este livro apresenta uma espécie de homenagem ao professor Micael Herschmann e seu pioneiro estudo sobre o funk carioca nos anos 1990, quando, numa singular atividade autorreflexiva, Micael tanto apresentava seu objeto – os bailes funk que seduziam o olhar de um Brasil fascinado e horrorizado pelos arrastões – quanto, ao se colocar como dentro/fora deste objeto, explicitava os

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limites de sua leitura. Ainda lembro quando li, nos corredores do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, então estudante de Jornalismo, “O Funk e o Hip Hop Invadem a Cena” (2000), de Herschmann, um pouco surpreso, um pouco instigado, com a possibilidade de pluralizar as vozes na Academia. Confesso que o maior desafio nesta obra é dar unidade a textos que foram acadêmicos, mas também jornalísticos, tentando negociar com aspectos teóricos, mas não esquecendo a riqueza do empírico. Fui percebendo que meus textos sobre o brega que começaram leves, humorísticos até, foram se tornando mais políticos – frutos de reflexões de nosso tempo e também do meu próprio reconhecimento nas expressões do brega. Frequentemente recebo telefonemas de colegas jornalistas, estudantes, pesquisadores, para dar entrevistas sobre o brega pernambucano, novos fenômenos, novos artistas. Percebo que o gênero musical está enraizado na cultura local e também nos afetos e na memória dos pernambucanos. Não me proponho aqui a contar a história do brega, nem fazer perfis dos artistas (embora ache importantíssimo), mas tento pensar o brega como ponto de partida para uma série de questões de ordem político-cultural. O título do livro, o verso “Ninguém é perfeito e a vida é assim”, cantado pelo Conde do Brega, é um convite à reflexão em torno das imperfeições culturais, das assimetrias do bom gosto, daquilo que não é cartesiano. “Eu não gosto do bom gosto/ Eu não gosto do bom senso”. Elitismo me entedia. O brega me aproxima das gentes. Do cotidiano de riso e horror. Do centro e da periferia. O brega é o deslize. A dobra. “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”,

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me disse o cantor. E, perdoem, eu acreditei. Em Piedade, Jaboatão dos Guararapes.

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edição ampliada

outros críticos


Ensaio fotográfico

Chico Ludermir

A MÚSICA BREGA EM PERNAMBUCO THIAGO SOARES


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capítulo


Incômodos e políticas da música brega



Diante de um quadro que aciona disposições classistas, a música brega, no contexto de Pernambuco, naturalmente, foi fortemente marcada pela ideia de “música de pobre”. Nos anos 1980, eu ouvia o radialista Reinaldo Belo, por meio do rádio da empregada de minha casa, cantar faixas como “Cachorro Quente” e “Menina da Mala Grande”. O contexto era a cozinha da casa que eu morava, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. Voltava da escola no final da manhã, almoçava e entre fazer a tarefa à tarde e ouvir música junto às empregadas, óbvio, escolhia escutar canções. Dali surgiam, além de Reinaldo Belo, Odair José, Reginaldo Rossi, músicas evangélicas, paradas dos sucessos das rádios populares (Rádio Recife FM, Caetés, Maranata, entre outras). O cancioneiro brega, cujo maior expoente era Reginaldo Rossi, mas também Adilson Ramos, Augusto César, Bartô Galeno, Carlos Alexandre, Evaldo Freire, vinha atado a cantores populares hegemônicos: entre uma canção e outra deles, ouvia Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, artistas sertanejosromânticos como Leandro & Leonardo, Chitãozinho & Xororó, entre outros. Esta “formação musical” na cozinha da minha casa, vendo a empregada doméstica cozinhar macaxeira, inhame, batatadoce, para o jantar. A cozinha impregnada do cheiro da carne de charque fritando, o ovo sendo frito, o café coando, talvez, me fizeram nutrir certo afeto por aquelas vozes, narrativas dramáticas, ultrassofridas. Homens românticos, histórias de amor malsucedidas, mulheres sofredoras, tentando superar. Junto a esta cultura musical, uma outra, audiovisual, também 39


se apresentava. Na televisão preto-e-branco, no quarto da empregada, novelas da Rede Globo: “A Gata Comeu”, “Que Rei Sou Eu?”, “Cambalacho”. Em 1988, a telenovela “Vale Tudo”, de Gilberto Braga, trazia à tona personagens que marcariam certa estética do melodrama: a vilã Odete Roitman (vivida por Beatriz Segall), a também maléfica e contraditória Maria de Fátima (Glória Pires). A música brega, o cancioneiro romântico, o melodrama televisivo: instâncias que mais se uniam que se afastavam, formavam um continuum de expressões que pareciam dizer sobre o presente de sujeitos que compactuavam daqueles dramas. O trágico emergia como uma potência para observar fenômenos. Essa vivência cultural no espaço privado da minha casa – as duas casas – uma em que eu convivia com minha família, no primeiro andar, nas pequenas solenidades cotidianas (as refeições, ver televisão, estudar, ler); e uma outra casa, no térreo, nos fundos, na área de serviço, com as empregadas domésticas, em geral, mulheres negras, vindas do Interior ou de bairros periféricos do Recife, parece ser a metáfora da interpelação do melodrama no cotidiano. Deste encontro, sempre tensivo, emerge o afeto pelo popular – representado fortemente pela música brega. Talvez por falar tão direto de sentimentos, com linguagem acessível, povoada de clichês, o cancioneiro brega me ensinou a nomear as emoções. E neste sentido, o emocional é o artefato discursivo mais próximo do popular. O forte sabor emocional é o que demarcará definitivamente o melodrama, colocando-o do lado popular, pois a marca da educação burguesa se manifesta totalmente 40


oposta, no controle dos sentimentos que, divorciados da cena social, se ‘interiorizavam’ e configuravam a ‘vida privada’ (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 171).

Situo o melodrama como uma maneira de pensar os engendramentos do popular no massivo e vice-versa; uma espécie de vértice de uma memória narrativa, gestual e, por isso, cênica, de uma emergência massiva, na qual “o popular passa a ser objeto de uma operação, de um apagamento das fronteiras deslanchado com a constituição de um discurso em que tem-se uma espécie de imagem unificada do popular” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 171). Entre as canções bregas, as personagens das novelas, as tramas dos filmes hollywoodianos, aparecia uma espécie de estética do sofrimento e suas soluções, dramas, itinerários, pautados em afirmações morais, tomadas de decisão que envolviam a dessacralização do universo e, portanto, das relações familiares, dos parentescos, das estruturas das fidelidades primordiais e do excesso. Como situa Martín-Barbero, todo o peso do drama se apoia no fato de que se acha no segredo das fidelidades primordiais a origem dos sofrimentos. O que converte a existência humana numa luta contra as aparências em que viver consiste em decifrar índoles, mapear maldades, sublinhar atitudes. Os movimentos éticos da vida, encenados em produtos midiáticos populares no qual circunscrevo a música brega, constituem a ida do “desconhecimento” ao “reconhecimento” de uma certa identidade dos sujeitos, acionando opacidades e complexidades que revestem as relações sociais – sobretudo aquelas pautadas pelos “aprendizados” afetivos. Impõe-se o que podemos chamar de “economia moral”, ou a remissão 41


a decisões que envolvem agir no cotidiano, pautar condutas, assumir riscos diante de aspectos ligados às formas de sentir. Esta “economia moral” que eu ouvia nas canções de brega parecia nortear tramas que evidenciavam as experiências afetivas que observava nas telas de televisão e cinema e também no cotidiano das empregadas. Sem pudor, elas revelavam casos de amor, fins de relacionamentos, inícios avassaladores de paixões, traições, experiências sexuais. Os relatos vinham pontuados por canções, naturalmente. Lembro da voz de Reginaldo Rossi entoando “dizem que seu coração voa mais que avião, dizem que o seu amor, só tem gosto de fel, vai trair o marido, em plena lua de mel” e Djanira, que eu chamava de Nira, falando sobre não se prender a homens que insistiam em querer “coisa séria”. Uma vez, no entanto, acho que vi Nira chorando ao telefone e balbuciando coisas como “você deveria ficar comigo”, “ela não te ama como eu”, “você só está com ela porque é covarde”, “você não tem coragem de largar sua família para ficar comigo”, “o problema é a sua filha”. Nira era a contradição dos afetos: falava em liberdade, em não se prender, cantava Reginaldo Rossi nas alturas, fumando seu cigarro Derby Suave, no quintal da minha casa, mas reivindicava um relacionamento estável com este seu suposto namorado. Talvez tenha sido com Nira que eu tenha aprendido o sentido da palavra “amante” quando ela me disse, em segredo (sempre), que estava saindo com um policial casado (não lembro se era esse do telefonema, poderia ter sido) e colocou “Só Liguei Porque Te Amo”, de Adilson Ramos, versão local de “I Just Called to Say I Love You”, de

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Stevie Wonder, para tocar. Mas em Reginaldo Rossi e Adilson Ramos, por exemplo, residia um aparente paradoxo: eram músicas que meu pai também ouvia, um engenheiro, escolarizado, classe média, casado com minha mãe e que, portanto, tinha um gosto musical próximo ao da empregada doméstica. “Garçom”, de Reginaldo Rossi, era um dos “hinos” do carro do meu pai, juntamente, a todo cancioneiro de Luiz Gonzaga (“Asa Branca”, “Assum Preto”) nas longas viagens que fazíamos para a cidade de Arcoverde, no Sertão de Pernambuco, quando íamos visitar meus avós paternos em períodos festivos (São João, Natal ou feriados). No carro Del Rey azul, parecia haver tantos encontros musicais: uma vasta tradição do forró remetia à origem interiorana de meu pai (nascido em Jupi, um então distrito de Angelim, no Agreste pernambucano), se juntava a cantores do brega local e a artistas internacionais que também poderíamos chamar de românticos, entre os que lembro, Julio Iglesias, Pepino di Capri, Charles Aznavour, Jacques Brel. Destas viagens de carro tanto para o Interior quanto para João Pessoa, emergia o turvamento das fronteiras entre música brega, música romântica, música de pobre, música de rico, canções de brancos, canções de pretos, entre infinitas possibilidades de classificação. Tal indefinição de fronteiras nutriu em mim uma espécie de ausência de resistência diante das origens dos fenômenos estéticos, embaralhando o que autores do campo de estudos da música, notadamente aqueles inspirados pelos postulados de Adorno (2011), pareciam defender: a ideia de que músicas populares, como fenômenos das indústrias musicais, são 43


mercadorias padronizadas, superficiais, com consumidores passivos e meros agenciamentos do ouvinte no capitalismo. Nas músicas mais banais, do repertório brega, eu não conseguia enxergar esta “separação”. Só me vinham os encontros: do sentir do meu pai, escolarizado, e do sentir da empregada doméstica, analfabeta; de homens e mulheres, de pretos e brancos. Theodor Adorno menciona uma tal música autêntica, que expressaria o “real interesse” das pessoas, que poderia variar temporalmente; ser a música erudita, o jazz para Hall e Whannel (2004) ou a folclórica (Rosselson, 1979). A música brega, veja só, era onde eu percebia o “real interesse” de sujeitos próximos a mim e isto não deixava de me despertar noções políticas. Da micropolítica da casa, do espaço privado, do carro, passo para o reconhecimento não mais dos encontros. Na macropolítica das cidades e das políticas culturais, fui percebendo como o brega talvez evidenciasse a ideia de banalidade evocada pela perspectiva frankfurtiana, um incômodo1 mesmo. Como alguém que pensa que a cultura se faz na multiplicidade e, sobretudo, no dissenso, acho que uma boa forma de refletir sobre as articulações entre música e política no Recife e em Pernambuco é cartografar os incômodos da música brega neste contexto. Se tomarmos a noção de política como ocupação, como estratégia, inserção e partilhas nos espaços codificados, o brega é, pois, um itinerário curioso para debater o centro e as bordas do que se convencionou chamar de “música de Pernambuco”. Por meio de uma política cultural que se edificou, a partir da década de 2000, sob a égide de um certo

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“Pernambuco Nação Cultural”2, sempre observei uma tendência de jornalistas, críticos culturais e mediadores políticos em tratar a produção musical do Estado como um gênero. Acho que há um movimento análogo no cinema – com a retranca ampla chamada “cinema pernambucano”, que engloba estilos, diretores, gêneros e narrativas bem distintas entre si. No caso da “música pernambucana” (ou “Music from Pernambuco”, título inclusive de uma coletânea de artistas locais3) acontece movimento semelhante. A música chamada “de Pernambuco” é aquela circunscrita a tradições hegemônicas nas políticas públicas de incentivo à cultura e também “eleita” por conselhos e mediadores comunicacionais, uma certa música que atende a interesses de uma suposta intelectualidade que reconhece no folclórico e num certo tipo de cultura popular algo que pode formatar uma noção identitária. Quando peguei o box com uma dessas coletâneas “Music from Pernambuco”, que seria lançada numa feira internacional dedicada a “world music”, tomei um susto: onde estava o brega? A discussão se espraiou para a programação da Rádio Frei Caneca, em que, durante um debate numa reportagem do jornal Diario de Pernambuco, tive que responder a uma provocação em torno do que o programador/curador da rádio chamava de “música pernambucana de qualidade”. Cabe aqui circunscrever o que se chama de “qualidade”.

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Música pernambucana de qualidade: para quem? “Qualidade”, neste contexto, me provocou a pensar sobre cânones. Talvez estivessem chamando “música pernambucana de qualidade” de uma certa música canônica produzida em Pernambuco. Algo que o brega, definitivamente, nunca foi. Nem é. O termo “cânone” é usado, em geral, para agrupar o que é reconhecido como obras mais importantes dentro de uma certa tradição. Defensores da ideia de cânone e da “qualidade” das obras parecem reivindicar a existência de valores universais e, portanto, dados que poderiam variar temporalmente e espacialmente. No entanto, estariam dentro de um certo escopo que caracterizaria a ideia de “obra universal”. Músicas pernambucanas “de qualidade” seriam a melhor expressão da linguagem específica da música produzida no Estado, e pode ser tomada como uma espécie de metáfora da identidade de uma cultura, de uma “nação”. Mas quem elege os cânones?4 Se pensarmos em desenvolver o raciocínio de que expressões musicais se cristalizaram como cânones na música produzida em Pernambuco, é preciso entender o cânone dentro de uma tradição do julgamento, que está circunscrita no campo da estética. Como observa Antoine Compagnon (2010), “o tema do valor, ao lado da questão da subjetividade do julgamento, comporta a questão do cânone, ou dos clássicos, e da formação desse cânone, de sua autoridade, de sua contestação, de sua revisão” (COMPAGNON, 2010, p. 222).

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Importante destacar que a dimensão de autoridade da formação desse cânone se dá por quem o elege. Neste caso, é inevitável refletir sobre o papel da crítica na edificação do valor e das lógicas discursivas5. E também reconhecer que o processo de formação do cânone se dá necessariamente no dissenso. Todo cânone é contestado, debatido, revisado. Neste sentido, Harold Bloom (2013) enseja que o cânone abraça o (des)gosto. Artistas, obras, movimentos canônicos não, necessariamente, incitam o prazer, o belo, o consensual. Mas sim, causam desconfiança, podem ser desconfortáveis e, portanto, incompreendidos. O cânone tem que fazer refletir: uma época, atravessá-la, recontála. Segundo Bloom, há uma potência na desconfiança em torno do cânone. Quanto mais algo parece detestável, “desconfiável”, mais podemos formular ideias sobre. Estou aqui, desse modo, desconfiando do cânone da música pernambucana. Postula-se a formação desse processo como um agenciamento que se constrói socialmente a partir de ditames consensuais. Podemos pensar no cânone a partir do que Compagnon chama de uma retórica da institucionalização, reforçando com o termo “retórica”, o que se diz sobre algo, as formas de discursar sobre um fenômeno e as maneiras com as quais ele se institucionaliza. Processos de canonização, de acordo com o autor, perpassam ensejos institucionais: como algo se torna hegemônico e que instituições são responsáveis por tal lugar. Compagnon está tratando processos de canonização tanto de artistas (neste caso, escritores) quanto de obras. O termo “retórica da institucionalização” estaria próximo da noção de “instância de consagração” proposta por Pierre Bourdieu

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(1996) que evidencia instituições, sujeitos e práticas que circunscrevem fenômenos, agenciando-os dentro de um determinado campo de produção. A ênfase de Compagnon, digamos, é nos textos e discursos. Bourdieu parece se preocupar com as posições e papéis de sujeitos e instituições. Deste quadro, entendemos que O cânone não é fixo, mas também não é aleatório e, sobretudo, não se move constantemente. É uma classificação relativamente estável, há entradas e saídas, mas elas não são tão numerosas assim, nem completamente imprevisíveis (COMPAGNON, 2010, p. 249).

A triangulação conceitual sobre processos de canonização encontra reverberação nos escritos sobre valor de Simon Frith (1996), que ao circunscrever o debate sobre institucionalização na música, usa texturas da sociologia de Bourdieu e revisa o legado da Escola de Frankfurt para, com acento culturológico, falar do valor cultural como aquele notadamente político, que envolve raça, gênero, classe social, entre outros fatores circunscritos a determinadas culturas. Ao resgatar a tradição dos Estudos Culturais norte-americanos, Frith destaca o olhar econômico em torno da construção valorativa. Trata, por exemplo, do valor de mercado de produtos musicais, do apelo dentro de lógicas do mainstream e dá uma guinada no essencialismo que vê autonomia distante das lógicas do capital. Junto à perspectiva de Bourdieu, a suposta noção de universalidade abarcada pelo conceito de cânone vai ser duramente problematizada pelas críticas feminista e marxista e das avaliações da cultura pelo viés pós-estruturalista e também 48


pós-colonial. “Com a progressiva sensibilidade ao pluralismo cultural e às condições econômicas e políticas da produção artística, o cânone aparece menos como uma expressão de valores universais e mais como uma expressão das relações de poder” (EDGAR e SEDGWICK, 2003, p. 49). É nessa disposição de poder que adentram as perspectivas previstas numa abordagem estética dentro dos Estudos Culturais. O cânone parece excluir grupos subordinados em diversos níveis. Primeiro, obras canônicas seriam expressões de determinados grupos (aqueles que economicamente, culturalmente, hegemonicamente se impõem), a partir de retrancas mais específicas que envolvem branquitude, masculinidade e classes sociais abastadas, de acordo com estereótipos também culturalmente dominantes. Cânones, nesta proposta universalizante, excluiriam obras produzidas por não-brancos, por minorias, gays, pobres, entre outros, além de não reconhecer estéticas dissonantes das hegemônicas, com outras leituras de mundo e expressões possíveis dentro de um quadro mais amplo das culturas. A questão desse modelo, pensada em inúmeros setores da produção artística e midiática, ajuda a problematizar também instâncias sociais das formações dos gostos. Pensar, então, como os valores são construídos no terreno da música popular funciona como maneira de reconhecer o lugar que o brega e suas expressões (e as músicas periféricas ou ultrapopulares, por consequência) assumem o lugar de reiteração da diferença – inclusive (e destacamos aqui) diferença de classe.

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Disputas institucionais de valor musical Felipe Trotta (2007), ao debater as noções de qualidade musical na música popular, reconhece que há um forte apelo de classe (ligando o “bom gosto” às expressões da nobreza e do consumo das elites) que foi historicamente construído a partir da referência à música erudita. De acordo com o autor, a noção de qualidade na música viria atrelada à ideia de “inovação técnica”, acompanhada de preceitos como elaboração harmônico-melódica, condições de experiência (audição silenciosa), consumo elitizado (nobreza e classes abastadas) e personificação do criador (o “artista”) (TROTTA, 2007, p. 3). Essas categorias apresentadas por Trotta parecem evidenciar que a construção de valor na música popular estaria enraizada numa ideia em torno de erudição (e música erudita), marcadores de classe e destacamentos técnicos. Richard Shusterman (1992) examina a então clássica distinção da noção de “autonomia” da “alta arte” versus a “função” da “baixa arte”. Trata-se de um outro elemento a ser pensado na construção do valor na música popular, agora, debatendo um novo lugar de construção de “qualidade” e “autenticidade”: o rock. No desenho conceitual do autor, que faz uma leitura crítica do álbum Talkin’ All That Jazz (1988), da banda Stetasonic, uma estratégica da crítica de rock foi sempre tratar o álbum como “arte” – reforçando valores ligados à autonomização, razões artísticas e à forma, em oposição à ideia da baixa cultura que opera sob o princípio da “função” de uma expressão, ou seja,

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uma finalidade, seja ela comercial ou hedonista. O valor estaria não na sua forma, mas no seu uso. Argumento semelhante tem Simon Frith ao falar sobre diferentes perspectivas de fruição: “Audiências de produtos da alta cultura assumem que o valor de um objeto está contido no próprio objeto; enquanto audiências de produtos da baixa cultura postulam que o valor de um objeto está no que este objeto pode fazer por elas” (FRITH, 1996, p. 18). A música brega de Pernambuco em consonância com as expressões culturais periféricas de outras localidades teria “valor de uso”. Tanto Shusterman quanto Frith parecem estar fotografando uma problemática historicamente construída para propor uma outra via: o exame de qualidades estéticas imanentes em produtos que complexificam a noção de autonomia de criação. Sobretudo na argumentação de Shusterman, há uma clara indicação de que a contribuição da filosofia sobre a estética de produtos midiáticos estaria em propor outras chaves de compreensão e valoração destes produtos que não as oriundas da alta cultura. Esta argumentação está bem próxima do que Sianne N’Gai (2012) propõe também sobre a necessidade de criação de novas categorias para julgamento de fenômenos que não obedecem normas e padrões da chamada alta cultura. Observa-se, assim, uma aproximação da Estética de uma Sociologia do Gosto como aparatos conceituais para compreender fenômenos da música popular. Quando se faz uma abordagem geográfica de um gênero musical, no caso “música brega” (gênero musical) e geografia (Pernambuco), o interessante é justamente acionar tensões 51


existentes no contexto. O que sempre se fez, como política de Estado, em Pernambuco, foi operacionalizar o binômio cultura popular-folclórica e gêneros musicais hegemônicos, esquecendo que diversidade faz parte do reconhecimento da produção cultural que está na borda da tão almejada “qualidade”. A “music from Pernambuco” (que está nos boxes e nas coletâneas para venda em feiras internacionais) é uma embalagem higiênica e domesticada da pluralidade musical do Estado, feita quase sempre obedecendo padrões de diálogo com gêneros musicais hegemônicos nos circuitos de festivais e trazendo à tona uma identidade condicionada, erguida sob a égide do capital transnacional. O periférico aparece sob a máscara do exótico da cultura popular-folclórica, como nas imagens publicitárias institucionais que governos amam exibir. Mas qual o periférico que está nas margens destas propagandas institucionais? A música da periferia do Recife não é apenas o maracatu iluminado e museificado, tampouco o caboclinho com um riso fácil ou o afoxé de um carnaval de tambores silenciosos. A música da periferia do Recife é, sobretudo, o brega romântico, rasgado, sexual e pernicioso. É a música dos MCs, ídolos entre garotas, e das divas bregueiras, espelhamento de meninas, travestis, gays, drag queens. A música da periferia é a suingueira quase funkeada, o pagode radiofônico, o grito da cantora pop, o hiphop. A música da periferia não cabe na foto de políticas estatais, porque vaza ao controle de uma identidade higienizada. É, por si só, contaminada pela borda, pela sombra, por aquilo que governos não querem enxergar.

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Numa conversa com a fotógrafa Bárbara Wagner, na ocasião da sua exposição Brasília Teimosa, composta por imagens provocadoras, estranhas e potentes de personagens daquele bairro periférico do Recife, evocando um belo que atravessa matrizes hegemônicas do bom gosto, em que ela me dizia que tinha recebido críticas e sugestões para não expor aquelas fotos no exterior “porque aquilo não representava o Recife”. Neste tipo de crítica, pode-se observar aspectos éticos, higienizantes e normativos da política de reconhecimento de uma identidade por órgãos governamentais e também pelos habitantes. Percebo movimento análogo no que diz respeito à música. Na exclusão que se faz do brega nas políticas públicas de cultura, há algo de higienização identitária ou uma certa “cosmética” de um Estado. O brega, assim como os moradores de Brasília Teimosa das fotos de Bárbara Wagner, seriam escusos, “feios”, fora de um padrão já constituído. Falar do incômodo do brega na música pernambucana é debater os estranhamentos e os “usos” deste gênero musical – que não entra em programações “oficiais” do Carnaval, muito menos em editais de fomento à produção. Ao brega, cabe a função autogestora, fora do guarda-chuva do Estado. Longe dos gabinetes, perto das ruas. Ao brega, cabe ser usado como fantasia carnavalesca, como música “para suar”. Música que habita a área de serviço, a cozinha e também o quarto de jovens nos apartamentos de classe média do Recife. O brega é música das “periferias” do apartamento. Nunca da sala. Aí reside sua política. A música brega estimula uma dimensão política na medida em que “força” a classe média branca

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e parda do Recife a se deparar com o Outro. Este Outro, primeiramente exótico e estranho. Esse Outro quase selvagem. O brega faz com que sejamos espectadores e ouvintes da nossa própria alteridade enquanto pernambucanos. É a música que ativa outro padrão estético musical, tensionando normas clássicas de gravação, agindo no improviso, naquilo que não se reconhece como “de qualidade”. O brega, em suas levadas musicais, nos coloca diante de outras corporalidades possíveis: aquela que é negra sem ser folclórica. Uma negritude que se constrói em diálogos com padrões midiáticos, viva, pulsante. A negritude do brega constrasta com a branquitude da plateia de alguns shows que ocorrem em bairros nobres do Recife. E também com os usos carnavalizantes do gênero por bailes e festas “descoladas”. Cabe aqui pensar também o brega como gênero musical que se adequa às questões mercadológicas e se insere em contextos culturais hegemônicos. O político sobre a música brega é aquele em que tensões, valores e hegemonias são colocados em perspectiva. Lembro da fala reducionista de um gestor público que disse que “brega é música que denigre a mulher, incentiva o sexo”. Há, naturalmente, canções desta natureza. Mas, reduzir o brega a isto é forçar uma ótica moralista ao invés de problematizá-la. Talvez o incômodo do brega seja o incômodo da nossa identidade. Daquilo que aparece e some. Do que queremos destacar ou esconder; e questionar.

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O problema do arquivo Diante da ausência de políticas públicas em torno de músicas midiáticas periféricas, instaura-se um problema para se desenvolver pesquisas sobre gêneros musicais como o brega: os arquivos. Onde estão os acervos de canções? Que álbuns fonográficos podemos destacar? Quais as canções mais relevantes de uma determinada época? Perguntas simples como estas, que facilmente poderiam ser respondidas, em outros gêneros musicais, no brega, torna-se uma tarefa árdua. A questão dos acervos é possivelmente a mais problemática em se tratando de pesquisa acadêmica: as canções de brega parecem evanescer, aparecem, somem, muitas não estão retidas em suportes – analógicos ou digitais – ficando presentes apenas na memória dos ouvintes. Integra aquilo que Diana Taylor (2012) chama de “repertório” do comum, do ordinário, um conhecimento que está corporificado e, como tudo aquilo inscrito no corpo, fadado a desaparecer. A perspectiva da corporificação do conhecimento em torno da música brega provoca um debate ainda mais oportuno sobre a ausência de história das periferias, das classes subalternas, dos Outros. Ensejamos, continuamente e de maneira desatenta, a reiterar a metanarrativa histórica e performática dos hegemônicos, aquela contada pelas “histórias oficiais”, localizadas por falantes “do centro”, que olham com tom de desdém e “coitadismo” para os sujeitos das bordas. A ausência de arquivos do cancioneiro brega reitera o lugar de não-reconhecimento de uma estética, de uma forma cultural, a ponto de se ter, em pleno ano de 2017, um debate – a meu ver 55


– completamente obsoleto, sobre “se o brega é cultura ou não” durante o anúncio de atrações do Carnaval do Recife. Embora, com minha formação cultural e humanística, ache um acinte questionar se uma determinada manifestação dos sujeitos viventes é cultura – o que não seria cultura? –, devolvo a pergunta, invertendo o sujeito que pergunta e questionando o seu lugar de fala: o que leva alguém a questionar se a música brega não é cultura? Que rastros de exclusão, de soberba e de reconhecimento de um lugar outro, que não aquele experienciado pelos sujeitos subalternos, estão visíveis neste questionamento? Estas minhas indagações já foram melhor formuladas por Jacques Derrida, em seu texto “Mal de Arquivo” (2001), em que, segundo o autor, “não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento” (DERRIDA, 2001, p. 32). Derrida parece estar debatendo a possibilidade de esquecimento e suas muitas faces: o apagamento, a tentativa de borrar a história, a amnésia social ou política, esquecimento decretado, que, no fundo, é uma contradição nos seus próprios termos. Nossa cultura arquival e da memória é uma cultura onde fatos, coisas, acontecimentos culturais, se articulam em torno da chave de arquivos e de certas interpretações da nossa memória cultural. Ora, se não lembramos, não consideramos cultura, não temos lembrança ou afeto daquilo. Tal questionamento encena o modo de operação sobre o que se considera cultura que faz com que se naturalize, por exemplo, a ausência de arquivos sobre música brega no Estado de 56


Pernambuco. Somos levados, por exemplo, a outra pergunta: que álbuns fonográficos podem ser destacados como icônicos na música brega do Estado? O brega opera sob a lógica dos álbuns fonográficos? O que se observa na trajetória deste gênero musical são múltiplas formas de consumo e disposição de produtos musicais, impossibilitando uma narrativização histórica e tradicional, do cancioneiro do brega. Se tomarmos como exemplo um artista como Reginaldo Rossi, a delimitação do álbum fonográfico na construção de um aparato conceitual para o entendimento de sua dinâmica artística e discursiva, é possível. O Teu Melhor Amigo, disco lançado em 1987, e que abre com um dos maiores sucessos do cantor, “Garçom”, desponta, junto com A Raposa e as Uvas, de 1982, como uma espécie de epicentro da constituição de Rossi como cantor brega e ícone de um modo pernambucano de ler o cancioneiro romântico. Estão presentes no disco, faixas que visivelmente tentam emular Reginaldo Rossi como uma “versão local” dos ídolos da Jovem Guarda, do cancioneiro popular, juntamente a músicas que dialogam mais abertamente com uma estética da seresta e dos teclados – que discutiremos mais detidamente adiante. A própria configuração do mercado de música na década de 1980, impelia que artistas tivessem discos como formas de negociação no mercado musical. Neste sentido, Reginaldo Rossi nos coloca diante de um primeiro momento histórico deste gênero musical no contexto pernambucano: aquele em que estabelece uma relação com a produção musical romântica brasileira do final dos anos

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1970 e início dos anos 1980. Pensar a figura de Reginaldo Rossi numa espiral que conecta outros artistas populares contemporâneos, como Sidney Magal, Fábio Júnior, Wando, Ronnie Von, entre outros, ajuda a compreender as estratégias e disposições mercadológicas que posicionaram a música brega num constante acionamento entre o pop nacional e global e suas instâncias locais, desvelando questões que parecem dar conta das formas com que tanto periferias quanto sujeitos subalternos sempre estiveram atentos aos movimentos cosmopolitas. Quando, em 1980, Rossi grava, em seu álbum A Volta, a canção “Recife”, desenha-se um importante lugar de reconhecimento destas tensões entre o global e o local. A faixa é uma versão de “San Francisco”, famosa gravação do grupo The Mamas & The Papas, que fez enorme sucesso mundo afora e no Brasil, nos anos 1970 e 1980. Famoso por canções como “California Dremin’”, o The Mamas & The Papas institucionalizou uma espécie de Califórnia utópica, praiana, com pôr-dosol e gaivotas, um clichê também endossado por filmes hollywoodianos e pela narrativa midiática em torno da América “com sol o ano inteiro”. “Recife”, de Reginaldo Rossi, marca o início da tematização da capital pernambucana como uma espécie de utopia praiana, que viria a se consolidar com a gravação de “Recife Minha Cidade” (“hey, vem cá que eu quero te mostrar, a minha cidade, o meu lugar”), numa espécie de reiteração das raízes do artista que cantava as dores de amores e também se inscrevia no espaço geográfico afetivo da cidade. Rossi espraia a temática

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praiana e da utopia solar pernambucana ao também inserir a ilha de Itamaracá (na faixa “Itamaracá”) como um lugar paradisíaco, paraíso possível, com muitas mulheres, sexo e bebida. Se artistas como Reginaldo Rossi podem ser pensados a partir da relação com álbuns fonográficos, seus entornos contextuais e modos de consumo, outros representantes da música brega vão se “perdendo” na ausência de suportes tecnológicos, arquivos ou plataformas de compartilhamento digitais. A Banda Metade, de onde saiu a cantora Michelle Melo, é um exemplo de artista que não pode ser “sintetizado” através dos álbuns fonográficos e de seus arquivos formalmente dispostos, seja em instituições fonográficas, seja em plataformas digitais. Muitos de seus discos são compilações de canções gravadas ao vivo, em estúdios, reunidas, sem um título, sob a alcunha do nome da banda acrescido de um termo numérico. Por exemplo: Banda Metade – Volume 4. A ausência de título do álbum, a perspectiva numérica que aparece disposta, a noção de serialidade e a contingência de produção, são sintomas de uma maneira de fruir a música brega que prescinde o álbum fonográfico, porque este resulta pouco atrativo num sistema de distribuição e fruição fortemente pautado pela pirataria. A efemeridade dos sucessos de músicas de brega, produzidas na velocidade própria dos hits que contagiam multidões e em meses caem no esquecimento, são uma espécie de impasse dentro das lógicas de consumo do gênero musical. Inclusive, parte da própria dificuldade de mapear questões em torno das estéticas da música brega se dá justamente 59


em função da inconstância de artistas, fenômenos e da ideia de “sucesso” dentro do gênero. Bandas de brega são formadas, rompem, acabam, abrem outras bandas, artistas brigam, empresários demitem músicos com impressionante velocidade. Esta volatilidade de artistas da cena musical do brega em Pernambuco parece ser uma das características mais prementes. Um dos principais exemplos deste fenômeno reside na banda Sedutora, que, entre os anos de 2013 e 2016, teve 13 formações diferentes6. O grupo conheceu o sucesso no final de 2013, com os hits “Bateu a Química” e “No Dia do seu Casamento” – regravado em 2015 pela dupla sertaneja Maiara & Maraise. Na época, a banda contava com duas vocalistas: Tereza Cristina e Rhayza Fontes. Poucos meses depois, a dupla se transformou em trio, com a chegada de Valquíria Santana. Essa foi a primeira formação de destaque da banda, que inclusive, cristalizou as vozes no hit “No Dia do seu Casamento”. Em junho de 2014, inicia-se o processo de transformação da banda Sedutora em outras bandas – algumas resultado de desavenças entre empresários e artistas ou da necessidade de rentabilizar ainda mais os sucessos “estourados”. Valquíria Santana abandona o grupo para ingressar na Banda Kiamo e Tereza Cristina volta aos palcos, depois de uma licença maternidade, à frente do projeto solo “Bateu a Química” – título inclusive de um dos maiores hits da Sedutora, a versão local para “Wrecking Ball”, de Miley Cyrus. Em setembro de 2014, a Banda Sedutora subiu ao palco do Clube Português, no Recife (PE), para a gravação de seu primeiro DVD, com quatro

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vocalistas que não estavam na primeira formação. Reportagens da época dão conta que desentendimentos entre a cantora Jéssica Netely e o empresário da banda, Jozart, teriam sido o epicentro para ela deixar o grupo e fundar uma banda “rival”, Avassaladora. Pouco tempo depois, a cantora que ficou no seu lugar, também saiu e fundou a banda Efeito A. Da Sedutora, ainda apareceram as bandas Divas, Primeira Dama e Forrozão Chacal – todas com cantoras que passaram pela Sedutora. Em outubro de 2015, a banda grava seu segundo DVD, intitulado de Cabaré VIP da Sedutora, que ainda teve mais duas formações até estabilizar, em 2016, com um total de 13 formações diferentes.

O brega em eixos estéticos Diante da ausência de disposições arquivais sobre a música brega em Pernambuco e, consequentemente, de uma fortuna crítica sobre este cancioneiro popular, adentro aqui à possibilidade de traçar eixos estéticos que possam, de alguma forma, sintetizar momentos ou movimentos dentro deste gênero musical, ao longo de sua existência de mais de 50 anos, entre os anos de 1966 e 2017. A tentativa de normatizar estéticas é uma tarefa das mais ingratas, sobretudo porque incorre-se em generalizações, agrupamentos às vezes (quase sempre) arbitrários, associações não previstas. Pensei, num primeiro momento, em adotar uma perspectiva essencialmente histórica, a partir de fases e períodos históricos do brega. Achei pouco sedutor, na medida, em que a história do brega e 61


de qualquer fenômeno cultural, não é linear, nem com claras delimitações de início e fim – assim como de seus “pontos de virada”. Em seguida, parti para testar a perspectiva geracional, de tratar o brega, a partir da maneira com que as diferentes gerações de músicos pernambucanos se apropriaram e negociaram com o gênero. Havia, entretanto, uma assimetria que me incomodava. Da “primeira geração” do brega, cujo principal expoente era Reginaldo Rossi, para a “segunda geração”, marcada pela cantora Michelle Melo, se passariam praticamente 30 anos – tempo excessivamente diferente, por exemplo, se comparamos a simultaneidade entre a “segunda geração” (Michelle Melo) e a “terceira geração” (formada marcadamente pelos MCs, como MC Sheldon, MC Cego e Troinha). Esta assimetria temporal me fez abandonar a ideia de geração. Parti então para a delimitação de “eixos estéticos”, que conjugam temáticas, arranjos e dimensões performáticas, para tratar de uma categorização da música brega em Pernambuco. Toma-se aqui como marco inicial do brega no Estado, o álbum Reginaldo Rossi, de 1966, lançado pela gravadora Chantecler, com o sucesso “O Pão”. Apresentado como uma versão local dos ídolos da Jovem Guarda, Rossi compôs a faixa em parceria com Namyr Cury e Oracio Faustino, que trata de um amor não correspondido que fez “uma bolinha no seu coração e jogou no chão”. A presença de Reginaldo Rossi como figura emblemática do brega de Pernambuco se estende por todas as “fases” em que o cancioneiro chamado de brega se configura, formatando uma espécie de cânone no gênero musical. Um clássico.

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De início, o gênero musical que surge em Pernambuco está intimamente conectado com a estética musical da Jovem Guarda, inclusive, na temática das letras e também da ingenuidade da performance e dos arranjos musicais. Estereótipos de garotas ingênuas, homens sedutores e frisson de paquera e flerte integram a partitura performática deste primeiro momento do brega. Reginaldo Rossi torna-se, já nos anos 1980, uma espécie de modelo performático, que será amplamente reencenado por outros artistas – notadamente Reinaldo Belo, Nino (Banda Labaredas), Adilson Ramos, e por artistas nordestinos de brega, o potiguar Carlos Alexandre, o paraibano Bartô Galeno, entre outros. Nos anos 1990, Rossi passa a “apimentar” suas canções e performances, fazendo shows em que a figura do homem garanhão, sexualmente voraz e ligeiramente rude, aparece. Traições, bebedeiras, vida desregrada, mas a busca incessante por um grande amor, são as bases da narrativização do cantor. É sob a égide performática de Rossi que o brega se consolida como gênero musical em Pernambuco, desmembrando-se em subgêneros, formas classificatórias que “atenuam” o termo “brega” (sempre vulgar e problemático), e em artistas que vão aderindo e negociando com o legado de Rossi. Percebe-se, neste primeiro eixo estético, uma configuração performática centrada no homem, na voz masculina, heterossexual. Parte da oscilação destas performances se materializa entre a imagem do homem dócil das canções ou do sujeito sexualizado, numa ação de cortejar as mulheres, nas narrativas das canções.

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A perspectiva temporal e também de gênero ajuda a compreender a aparição de um segundo eixo estético no brega de Pernambuco. Como uma espécie de “resposta” aos cortejos masculinos; vozes femininas aparecem no contexto pernambucano, já negociando com o histórico de “galanteios” de homens nos espaços de sedução e flerte da cultura da noite. A mulher que questiona o homem, mas também cede a seus apelos, que sofre porque descobre a amante, mas que também é amante, encena matrizes do amor romântico que se materializam em artistas como Banda Metade, Banda Ovelha Negra, Brega.com, Musa do Calypso, Kitara, entre outras. Este segundo eixo aparece junto a um conjunto de fatores que serão debatidos mais detidamente adiante, mas que antecipamos: a mudança da banda Calypso para o Recife (os vocalistas Joelma e Chimbinha são originalmente do Pará) e o agendamento estético das bandas de forró com vocalistas mulheres, como Magníficos. Delimito como marco deste segundo eixo não um álbum fonográfico – até porque a ideia de disco passa a ser problematizada – mas sim uma canção. “Amor de Rapariga”, cantada pela Banda Ovelha Negra, que narra o debate entre uma esposa e uma amante pelo amor de um homem, pelo caráter inusitado do “palavrão” no título e também pela abertura à temática da infidelidade com tom essencialmente popular e chulo, fazem com que a canção alcance públicos mais amplos. “Amor de rapariga não vinga, não/ Não tem sentimento, não tem coração”, verso cantado pela diva bregueira Palas Pinho, ecoava pelas ruas do Centro do Recife, nos anos de 2001 e 2002. 64


O visual de Palas Pinho, uma mulher negra, de cabelos cacheados, batom vermelho e roupas, muitas vezes, preta, com lantejoulas, criava uma narrativa de enfrentamento do feminino diante da hegemonia de vozes masculinas. Ao contrário de bandas como Metade, centrada na figura de Michelle Melo, loira, cândida e sensual, e Brega.com, com a altivez e o distanciamento de Elisa, a banda Ovelha Negra parecia “partir para o ataque”. Isto construiu um lugar bastante singular para a banda e também para a canção na circulação do brega no Recife. A partir de 2003, a faixa “Amor de Rapariga” passou a integrar o repertório de bandas de forró como Calcinha Preta, Forró Saborear, Mulheres Perdidas, de axé music como Babado Novo e Cheiro de Amor e também de outras bandas de brega/ calypso, como a Mistura do Calypso. Durante a pesquisa em torno da canção, o termo “Amor de Rapariga”, um construto popular e coloquial, usado fartamente em xingamentos e como aporte de disputas de gênero, também virou outras canções homônimas, que integrou trajetórias de artistas de forró como Sirano e Sirino, Brucelose, entre outros. A adesão a “Amor de Rapariga” foi tamanha, que a canção ganhou uma “resposta”, a faixa “Rapariga é Você”, lançada pela banda Beijo Bhom (sim com “h” no “bom”). Este segundo eixo estético do brega pernambucano abre caminho para o diálogo com o romantismo e a sexualidade, sempre numa relação turva e fronteiriça, entre o quarto do marido ou do amante; a cama de casa ou do motel. Um terceiro eixo estético se delineia a partir dos acirramentos performáticos tensivos do feminino e também diante das

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contingências de popularização do brega e contaminação com outros gêneros musicais populares – no caso, notadamente o funk, como também aprofundaremos mais adiante. A performance do homem provocador, acintoso e sexualizado, que ordena, ostenta e disponibiliza seu corpo como mercadoria de prazer e observação coloca o brega em contato com um conjunto de dimensões performáticas que negociam com o imaginário de ídolos pop. MC Sheldon é emblemático neste terceiro eixo, juntamente com os MCs Leozinho, Boco, GG, Menor, Troinha, entre outros. O homem “galeroso”, moleque, jovem, que quer a “novinha”, dispõe de uma forma performática profundamente aderente e sedutora. Delimito a faixa “Novinha Tá querendo o Que?”, dos MCs Metal e Cego, como um epicentro discursivo deste eixo, na medida em que expõe os embates deste jogo de interesse, sedução e sexualidade, num quarto de motel. A seguir, sintetizamos os três eixos performáticos e estéticos do brega de Pernambuco a partir de categorias Temáticas, Sonoras, Performáticas e de Circulação.

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masculino-provocador

feminino-romântico

masculino-galanteador

Eixo

Temática

Sonoridade

Performance

Circulação

O homem que corteja a mulher em narrativas de ultra-amor romântico, insinuações sexuais e devires etílicos.

Ecos da Jovem Guarda e da seresta, do vasto uso dos teclados e dos vocais incisivos. Canções importantes: “Garçom”, “A Raposa e as Uvas”, “Garotinha Linda”, “A Vida é Assim”.

Reginaldo Rossi é o marco ao se inscrever como uma figura cujo espetáculo se dá na maneira com que ele conduz sua própria relação entre vida e obra.

Rádio populares e programas de televisão sobretudo “A Hora do Chau”, com Jorge Chau, “Programa Paulo Marques” e toda a linhagem de programas de auditório da TV pernambucana.

A mulher que responde ao homem, luta por amor, sofre com infidelidade e com questões do feminino.

Presença de teclados, bateria e da tradição dos programas de áudio que corrigem vozes e arranjos. Forte relação performática com gêneros musicais como o forró eletrônico e o calypso. Canções como “Amor de Rapariga”, “Baby Doll”, “Ânsia” são significativas.

Cantoras como Michelle Melo, Palas Pinho, Elisa são marcos fundadores deste gênero, que segue na tradição de bandas femininas como Musa do Calypso, Loira Marrenta, Sedutora, entre outras.

Ápice nos programas de auditório da TV pernambucana nos anos 2000, como Tribuna Show, Muito Mais, Tarde Legal, entre outros.

Homem que “atiça” e provoca a mulher, num embate que envolve flerte, sexualidade, jogos de sedução e poder. Imaginário do motel, da cultura digital, da ostentação integram as máximas performáticas.

Presença marcante do teclado que, ao contrário de suavizar, “ataca” o ouvinte, com sonoridade aguda e ritmo que negocia com matrizes da música latina dançante (timba, reggeatón), mas também com o funk carioca. Faixas como “Novinha tá Querendo o Que?”, “Estilo Panicat”, “Balança”, entre outras, sintetizam sonoramente.

Artistas como MC Sheldon, Metal e Cego, Troinha, entre outros, se configuram neste contexto.

Marcadamente digitais, ambientes como Palco MP3, redes sociais como Facebook e blogues como o Blog dos Bregueiros são o principal lugar de disseminação destes conteúdos. Redes no aplicativo Whatsapp e disposições mobile (Instagram e Snapchat) facilitam a distribuição.

SOARES, Thiago. Eixos Estéticos da Música Brega em Pernambuco.

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capítulo


Recife não é Belém: Brega não é Tecnobrega



Da janela do avião, vou avistando Belém. As pesadas nuvens do início da tarde anunciam: vai chover. E chove. O calor e a umidade lembram os dias quentes no Recife. E ao seguir para o hotel, no táxi, vamos tentando “pescar” onde podemos ir a uma Festa de Aparelhagem, o evento em que artistas do tecnobrega emergiram a partir do início dos anos 1990. Estou em Belém a turismo, primeira vez nesta metrópole nortista, abril de 2013. Na ida à capital do Pará, estão previstas visitas ao Mercado Ver-oPeso, à Estação das Docas, tomar sorvete de frutas exóticas na Cairu e, me parecia natural, ir a uma Festa de Aparelhagem. O disco Treme, de Gaby Amarantos, tinha sido lançado no final do ano anterior. A cantora paraense parecia ser a tradução de um certo senso utópico da cantora de periferia que tem a canção exibida na “novela da Globo”. Aconteceu com a faixa “Ex Mai Love”, composta por Veloso Dias, e tema de abertura da trama de “Cheias de Charme” enquanto Gaby Amarantos se apresentava sob a alcunha de “Beyoncé do Pará” (e depois negava a aproximação com a diva pop americana), reivindicando sua identidade brasileira e paraense. Ao assistir ao show de Gaby Amarantos no Festival Rec-Beat, que ocorre anualmente durante o Carnaval do Recife, em que a cantora, entre suas faixas, entoou “Hoje eu Tô Solteira”, versão tecnobrega de “Single Ladies”, de Beyoncé, e que, exatamente por isso, recebeu o codinome de “Beyoncé do Pará”, percebi conexões ainda mais evidentes entre a música tecnobrega paraense e o brega produzido em Pernambuco. Para além da presença da banda Calypso no Recife, que viria fixar residência e “montar negócio” na capital pernambucana

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(processo que discutiremos mais adiante), proponho aqui pensar o embaralhamento sobre as classificações envolvendo “tecnobrega” e “brega” e dos agenciamentos geográficos e estéticos entre Pará e Pernambuco (num primeiro momento), quando se cristaliza a estética centrada na cantora de brega (Joelma e Gaby Amarantos, no contexto paraense, e também Michelle Melo, Priscila Sena, Carlinha, Palas, Dany Miller, Elisa7, entre outras, no contexto do brega pernambucano)8. Meu interesse é pensar como o conceito de cena musical debatido por Straw (1997, 2006, 2013) e Janotti e Sá (2013) funciona como forma de aproximação e debate estéticos entre Pará e Pernambuco/Belém e Recife apontando, para além de circuitos culturais e de consumo, também formas de teatralização das cidades e das identidades, propondo olhares estéticos para os fenômenos fortemente amparados pela ideia de performance. Chego ao hotel em que me hospedo em Belém e vou perguntar onde posso encontrar uma Festa de Aparelhagem. Lembro que o taxista que pegamos no aeroporto nos advertiu a não ir para eventos desta natureza. “É perigoso”, disse, quase balbuciando. Não levamos muito em consideração (eu viajava junto com outros três amigos) e seguimos na tentativa de ir a uma festa para tentar encontrar as “novas cantoras” do tecnobrega paraense. No hotel, também nos alertaram para não irmos. Sabendo que Gaby Amarantos é original do bairro de Jurunas, nem titubeei e indaguei qual o local para festas que havia no bairro. Fui percebendo que não éramos encorajados a ir às Aparelhagens. Mais ainda, quando perguntávamos sobre estes eventos, quem nos dava a informação eram funcionários subalternos (no hotel, por exemplo, o recepcionista nos disse 74


que não sabia nos informar, mas chamou uma camareira que “entendia tudo” de Aparelhagem). Numa cervejaria nas Docas, um local bastante turístico de Belém, quem nos deu indicativos sobre as atrações do tecnobrega foi o garçom. Resultado: fomos à Festa de Aparelhagem à revelia dos “conselhos” para não ir. Assistimos ao Búfalo de Marajó no Clube Florentina, em Jurunas. O Búfalo de Marajó é uma Aparelhagem centrada numa certa estética do vaqueiro, ligeiramente country, com os DJs usando chapéu com abas largas, camisas quadriculadas, berrantes. Tocam músicas do tecnobrega, pontuadas pelo peculiar uso dos teclados e da vocalização acelerada, o palco é repleto de telões, algo que destaca-se do ponto de vista tecnológico. Passava da uma hora da madrugada quando explosões, chuva de papel picado, um berrante com luzes de néon aparentemente anunciam o ápice do espetáculo. Estou aqui descrevendo a Festa de Aparelhagem do tecnobrega paraense porque foi, em função desta vivência no evento, que comecei a perceber agenciamentos estéticos que, ora se aproximavam, ora se distanciavam, do contexto do brega em Pernambuco. A primeira questão que se delineou foi pensar sobre permissividades entre sujeitos e classes sociais nos contextos dos eventos nas cidades. Percebi, nesse enquadramento, que indo na condição de turista, há uma espécie de tentativa de reter o fluxo de figuras “alheias” ao contexto do tecnobrega e do brega – evocando, sobretudo, premissas ligadas ao perigo e à violência urbana. Esta clara separação entre turistas e fenômenos periféricos parece ser uma construção que se traduz

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num controle sobre as formas de fruição dos contextos urbanos. Neste sentido, Recife e Belém se aproximavam. Uma segunda questão que se desenhou foi a clareza em torno do que se chama de tecnobrega, no contexto do Pará, e de brega, em Pernambuco. O tecnobrega paraense se configura numa confluência do “tradicional brega que fez muito sucesso no Pará nos anos 1970 com o que se convencionou chamar de brega calypso, com batidas eletrônicas aceleradas e evocação a uma sonoridade que lembra a guitarrada” (MELO e CASTRO, 2011, p. 191). Já o brega de Pernambuco mantém ligações com a música brega/romântica dos anos 1970, de artistas como Waldick Soriano, Odair José, Agnaldo Timóteo, que se materializou na profusão de cantores no estado de Pernambuco que eram espécies de “versões locais” destes ídolos bregas, como Reginaldo Rossi, Adilson Ramos, Augusto César, entre outros. No entanto, no enredo nordestino, seria impossível não mencionar matrizes expressivas musicais do brega em Pernambuco que derivam do forró eletrônico e também das próprias bandas de tecnobrega do Pará. Fontanella (2005) problematiza as matrizes expressivas do brega produzido no Pará e este centrado no contexto de Pernambuco recorrendo à classificação de “Brega Pop”. Para o autor, o Brega Pop traria uma espécie de dupla vinculação (com a tradição de música romântica/ cafona, na linhagem descrita por Paulo César de Araújo (2002) que consagrou

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figuras como Reginaldo Rossi e Adilson Ramos e também com a musicalidade do calypso, presente nos artistas do tecnobrega paraense. Nas suas formas, o Brega Pop difere da música cafona tradicional de diversas maneiras. Em primeiro lugar está o papel da dança, essencialmente para ser executada por casais (…) Para criar o efeito desejado de uma música dançante e sensual, os músicos abusam em seus arranjos de formas provenientes dos ritmos caribenhos e do forró (FONTANELLA, 2005, p. 23).

Delineia-se aqui, portanto, que o brega produzido em Pernambuco apresenta encontros e afastamentos com o tecnobrega do Pará, a partir de lógicas de mercado e de interesses de empresários que integram a cadeia produtiva da música de gêneros ultrapopulares. Infere-se que a música produzida no estado encontra disposições estéticas que a afastam da hegemonia da cultura popular folclórica e tradicional ao mesmo tempo que negociam com um tipo de produção musical claramente mercadológica, porém produzida à revelia dos sistemas produtivos hegemônicos ligados, por exemplo, aos circuitos de festivais e que era produzida e “consumida” nos contextos periféricos especialmente do Recife.

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A teatralização da subalternidade Para adentrar nos meandros da cena brega, é preciso posicioná-la num quadro mais macro em que outros gêneros e experiências musicais – como o Manguebeat9, o circuito “indie rock”, por exemplo – foram/são hegemônicos na formatação da imagem do Recife como uma “cidade musical”. Pensando nas tensões acarretadas entre as perspectivas do senso comum e as legitimações por parte do jornalismo cultural, é possível o reconhecimento de uma cultura musical recifense que, hegemonicamente, se traduz por meio do Carnaval, dos festivais de música (com ênfase no rock e suas variáveis) e da cristalização do uso do Manguebeat como retranca de endereçamento, inclusive, de uma série de políticas culturais. Minha intenção não é identificar arestas entre a cena brega e outras manifestações musicais, suas disputas e busca por legitimação, mas sim, primeiramente, localizar a cultura musical do brega num quadro mais amplo e plural na cidade do Recife e, com isso, verticalizar a observação na cena em si. É dessa verticalização em tornos dos espaços e das lógicas de ocupação da música brega no contexto do Recife que faremos inferências sobre o que consideramos ser a partitura de conveniências em torno da fruição e dos usos deste gênero musical. A primeira questão que me aparece diz respeito às diferentes noções que uma certa estética da periferia adentra na cultura musical pernambucana. Se pensarmos que o brega que se 78


cristaliza como música comercial em Pernambuco nos anos 2000, podemos traçar relações com o Manguebeat nos anos 1990, especificamente a partir de matrizes estéticas da periferia. A princípio, mencionaremos ideias a respeito do periférico e do subalterno operacionalizadas de formas bastante distintas. A estética da periferia no Manguebeat apareceu na referência a uma geografia urbana que materializava conceitos em torno de uma imagética ligada à lama, à produção de música na periferia, ao pensamento conectado. No entanto, atrelando tais princípios a um gênero musical que, conforme já vimos, ocupa o lugar mais hegemônico dentro das partituras de autenticidade e valor no campo da música popular midiática: o rock. Figuras como Chico Science, que trazia traços biográficos de vivência periférica, abarcava a ideia de subalterno conectado, roqueiro/rapper, produzindo fusões sonoras “interessantes” (o rock com maracatu, rap com embolada) para uma série de mediadores culturais, notadamente jornalistas, que circunscreveram uma certa inteligência periférica que emergia naquele contexto. O álbum Afrociberdelia (1996), repleto de referências à cultura negra, matrizes africanas locais, texturas eletrônicas e orgânicas de sonoridades da cultura popular e da música pop, foi um importante artefato de materialização da ideia de que a estética da periferia do Recife “falava” (uso aqui o termo “falar” numa referência ao termo no texto “Pode o Subalterno Falar?”, de Spivak). O “falar” da musicalidade da periferia recifense vinha repleto de mediadores (jornalistas, radialistas, músicos) que construíam chancelas distintivas para a produção musical

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destes artistas. Os avanços políticos do Manguebeat, de agendar a cultura periférica na mídia de maneira mais ampla, no jornalismo cultural; e, sobretudo na cultura musical brasileira, colocando a capital pernambucana no mapa da produção musical no contexto da década de 1990, foram significativos para se falar em torno de “qualidade da música pernambucana”, de um mercado interno de festivais e eventos e também de políticas públicas e culturais que olhou para a periferia e tentou integrar tais estéticas periféricas a padrões de música e mercado vigentes no contexto da época. Como processo que deixa resíduos, vácuos e novos engendramentos, parece sintomático perceber como o Manguebeat pareceu traduzir a necessidade de legitimação da música periférica em função da filiação a gêneros musicais hegemônicos e a mediadores culturais que funcionavam como atestadores de valor da produção cultural. Haveria, portanto, artistas musicais que “bebiam” na fonte da cultura popular, das manifestações folclóricas, do que se convencionou chamar de manifestações musicais da periferia, no entanto, sem que eles mesmos, os sujeitos periféricos se afirmassem como agentes da cadeia de produção, circulação e consumo. Quando um artista da periferia recifense produzia músicas dentro do que chamamos de “brega” e não rock, rap ou, num sentido mais difuso “Manguebeat”, havia ali uma espécie de tomada de posição, que poderíamos ler como ideológica e emancipadora, no entanto, preferimos pensar no lugar de uma outra estética possível, que conecta claramente um mercado, ideias de “viver de música”, da junção de músicos sob a forte

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tutela empresarial e de uma música de consumo fácil, efêmero e que busca o hit comercial e, portanto, pop. No momento em que estou pensando num certo sujeito que toma decisões artísticas, estéticas, constrói ideias em torno do seu discurso, daquilo que lhe impele a seguir na carreira artística, parece propício pensar na noção de teatralização como debatida por Nestor García Canclini (2000). Dentro das disputas culturais, teatralizar fenômenos, colocá-los em cena, atribuir-lhe sentido e evocar disposições sensíveis, significa discutir ações estratégicas de representação de poder. Canclini nos lembra que para que tradições sirvam de legitimação para aqueles que a construíram ou se apropriaram delas, seria necessário “colocá-las em cena”. O patrimônio, segundo o autor, existe como força política na medida em que é teatralizado, em comemorações, monumentos, museus. Frequentemente somos interpelados por “palcos simbólicos” em que “grupos hegemônicos fazem com que a sociedade apresente para si mesma o espetáculo de sua origem” (CANCLINI, 2000, p. 162). Talvez caiba aqui a reflexão em torno de que “espetáculo de origem” da musicalidade periférica fomos apresentados? Seja via políticas culturais, dos instrumentais de Estado ou mesmo por curadores e festivais de música de Pernambuco. Ou em que medida o Manguebeat soa como importante forma de teatralização da subalternidade recifense, a partir de um conjunto de performances, gêneros musicais e espaços que atenderam a uma certa ideia de construção de uma tradição – já marcada desde por exemplo o Movimento Armorial. Meu 81


interesse, no entanto, é avançar e adentrar os espaços e a formação de uma cultura musical nas periferias do Recife.

Espacialidades bregueiras Para debater melhor estas questões aqui elencadas, precisamos conhecer as espacialidades que foram centrais na constituição da cena brega do Recife, tomando o conceito de cena musical como discutido por Will Straw (2013), a partir da noção de que: trata-se de um ambiente local ou global, marcado pelo compartilhamento de referências estéticocomportamentais, que supõe o processamento de referência de um ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar origem a outros gêneros; apontando para fronteiras móveis, fluidas e metamórficas dos grupamentos juvenis e que supõem demarcações territoriais a partir de circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida da cidade e dos circuitos imateriais da cibercultura (apud PEREIRA DE SÁ, 2013, p. 157). Nesta direção, espaços codificados por gêneros musicais populares funcionam como articuladores da permissividade da ocupação da música brega nas lógicas de consumo no Recife. Historicizar os ambientes performáticos numa cena é uma atividade fundamental para compreender como espacialidades são agentes de interpretação de uma geografia humana que se atrela a gêneros musicais. Pensar a existência de uma cena brega do Recife, com a experiência estética de um gênero, as corporalidades dos sujeitos, os deslocamentos urbanos dos frequentadores, toda a economia da cultura resultante de empresários, casas de shows, espaços de circulação

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e consumo dos produtos (arquivos de MP3, CDs e DVDs piratas), significa perceber tal cenário como resultante de (re) organizações, combinações e ambientes de performatização de gêneros musicais populares. Em síntese, a cena brega do Recife deve ser pensada como constituída por vestígios de sonoridades de gêneros musicais populares, ambientes em que tais sonoridades foram performatizadas, engajamentos dos sujeitos nestas espacialidades e, sobretudo, enunciações que cristalizaram modos de fruir a musicalidade popular pernambucana. Na cena brega do Recife, trazer à tona uma perspectiva histórica sobre os espaços de lazer e entretenimento auxilia na compreensão dos encaixes e tensões relativos aos diálogos entre estéticas dos gêneros musicais populares. Dessa forma, não se pode pensar tal cena sem recorrer aos espaços ligados ao pagode romântico, à suingueira10 e ao samba como “brechas” da entrada dos artistas de brega na cultura do entretenimento. Na noite recifense nos anos 1990, assistíamos à presença maciça das pagoderias, casas dedicadas a grupos de pagode tanto locais quanto nacionais, que funcionavam como espaços de lazer tanto na periferia da cidade, quanto nas áreas centrais e nos bairros mais nobres da Zona Sul. A tentativa é entender como o brega foi ocupando as espacialidades, primeiramente da periferia, migrando, em seguida, para a Zona Sul do Recife, numa lógica de negociação com outro gênero musical popular, que vamos chamar aqui genericamente de “pagode”. Lançamos a questão: como

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artistas ligados ao universo bregueiro no Recife foram, gradativamente, deixando de ser “estranhos” em casas noturnas voltadas à classe média recifense e passando a ser “legítimos” nestes espaços?

Circuitos de lazer: das pagoderias às casas de brega As casas de entretenimento popular que traziam atrativos de pagode ainda nos anos 1990 podem ser pensadas a partir de endereçamentos geográficos: não exclusivamente o Recife, mas sobretudo a Região Metropolitana (que compreende, além da capital pernambucana, outros municípios como Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho, Olinda, Paulista, Camaragibe, Abreu e Lima). Formas de construção de vivências comuns foram fundamentais para a inserção do brega na partitura de fruição dos frequentadores destes espaços. A casas de pagode da Zona Sul (bairros de Boa Viagem, Pina, Piedade, Candeias, Imbiribeira) centravam seus atrativos em diálogos entre pagode e axé music, enquanto que, na Zona Norte (Casa Amarela, Ibura, Jardim São Paulo, entre outros), a negociação entre artistas de pagode e de brega sempre foram – digamos – mais abertas11. O Pagode da Adega, da Lulagem, Entre Amigos – O Bode eram points na Zona Sul, que tinham o foco de suas noitadas, a presença de “gente bonita” que se encontrava “depois da praia”. Entre os atrativos, grupos de pagode constituídos quase sempre por garotos de classe

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média, estudantes universitários, como Pagunça e Padang, e bandas com repertório de axé music12. Esta aproximação entre o pagode e a axé music tinha constituinte de viabilidade econômica: grande parte dos empresários, proprietários de pagoderias da Zona Sul do Recife, eram também “donos” de blocos de Carnaval que “saíam” no Recifolia – a micareta que acontecia no Recife entre os anos de 1993 e 2003. Esta deliberada aproximação entre gêneros musicais gerou uma certa blindagem a outros gêneros musicais como constituintes de atrativos nas pagoderias da Zona Sul. Em contrapartida, locais como o Pagode da Wanda, Espaço Aberto, Galpão 40 Graus, entre outros, que integravam o “circuito pagodeiro” da Zona Norte (envolvendo o que comumente se chama de periferia do Recife); a ausência de ligações entre empresários do entretenimento e as lógicas da axé music, gerou um ambiente de maior permissividade para os artistas do brega – sem falar, obviamente, de uma aproximação geográfica entre as residências dos próprios artistas e os locais de entretenimento. Numa escala menor, é possível inclusive, trazer à tona evidências de proprietários de pagoderias da Zona Norte que mudaram o negócio e adentraram na lógica de empresariar artistas do brega. Formatava-se, assim, um circuito de espacialidades de música popular na cidade do Recife. De maneira geral, na virada dos anos 1990 para 2000, a cultura de lazer e entretenimento popular da cidade estava dividida da seguinte forma: 1. As pagoderias seguiam atraindo grande parte da massa de

jovens, tanto com os grupos de pagode propriamente ditos, 85


quanto com artistas oriundos da axé music, do funk ou em dias temáticos com os chamados “banhos de espuma”13. Estabelecimentos como o Veleiro do Guaiamum e o Caldeirão, localizados em bairros nobres como Espinheiro e Casa Forte, ou pagoderias situadas em Boa Viagem, davam a tônica neste formato de festa. É curioso perceber que não havia uma segmentação dos espaços por classe social, pois grupos de pagode como Sassarico, Pagunça ou Padang tocavam tanto nas pagoderias da Zona Sul (usual reduto da classe média), quanto nas casas de pagode da Zona Norte; 2. Os clubes de bairro passavam a despertar interesse dos

jovens das periferias do Recife e atraíam grupos de pagode para suas programações culturais, outrora dedicada exclusivamente, por exemplo, à seresta, promovendo uma mescla de atrações de ordem mais “romântica” e “dor-decotovelo”, com o “alto astral” dos pagodeiros. Fazem parte deste segmento, locais como o Clube das Pás, em Campo Grande, o Atlético Clube de Amadores, em Afogados, o Treze do Vasco, em Vasco da Gama, o Intermunicipal de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes e o Jaboatonense, em Jaboatão Velho – grande parte desses clubes de bairro integram políticas públicas de descentralização do entretenimento popular; 3. As casas de serestas eram estabelecimentos em que se

concentravam atrações mais ligadas à música romântica, com shows de artistas como Daniel Bueno, Reginaldo Rossi, Nádia Maia e, inevitavelmente, atrativos relacionados à Jovem Guarda, como Renato e Seus Blue Caps, The Fevers e cantores “da fossa”, como Núbia Lafayette, Cauby Peixoto 86


e Waleska. Estes locais agregavam, substancialmente, pessoas “mais velhas”, muitas vezes, interessadas em relembrar grandes sucessos do cancioneiro popular, de preferência, com um “copo de uísque na mão”; 4. Os forrogodes eram espaços em que oscilavam atrações de

pagode e de forró, agregando de maneira mais evidente o público jovem, muitas vezes, universitário. Grande parte dos espaços de forrogode se localizavam perto de universidades particulares do Recife (Feitiço Tropical, Pappillon). Nestes locais, era possível entender a reverberação de que o forró rompia com a sazonalidade do período das festas juninas. Mais especificamente, o forró da chamada "oxente music", movimentação em torno de grupos como Magníficos, Mastruz com Leite e outros, oriundos, grande parte, do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, e que ganhavam divulgação através da rádio Som Zoom Sat, gerando público em todo o Nordeste. É da confluência do clima de “azaração” das pagoderias, em consonância com a lógica da “dor de cotovelo” dos clubes de seresta e das formas de engajamento, dança e flerte do forró da “oxente music” que os clubes de bairro se tornam locais propícios à gênese de uma cultura da música brega contemporânea. Obviamente que as espacialidades só agregam o brega porque há instituições no que se convencionou chamar de circuito de cultura (HERSCHMANN, 2007), ou seja, níveis de institucionalidade numa dinâmica híbrida, territorializada e protagonizada por atores sociais. Entender a cena brega do Recife diante deste quadro significa apontar para o

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reconhecimento destes atores sociais.

O deslizar do brega pela Avenida Conde da Boa Vista Estou no centro do Recife, na rua Sete de Setembro, esquina com a avenida Conde da Boa Vista. É a temporada do festival Janela Internacional de Cinema, que ocorre no Cinema São Luiz. Não costumo ir ao centro da Cidade e, quando vou, passo de carro, vidros fechados, ar-condicionado do automóvel ligado. Não ouço os sons da cidade. Ouço a música que disponho no meu carro – ambiente privado – enquanto circulo pelas ruas históricas do centro. Olhando para aquelas ruas, esquinas, dentro do automóvel, música alta, pareço estar diante de um videoclipe. “Quando você coloca um fone de ouvido e vai passear pela cidade, a vida vira um videoclipe”, escreveu Bianca Ramoneda. Esta percepção ao mesmo tempo que me isola da metrópole, também me conecta (DENORA, 2013), aciona questões em torno da realização de percursos e acionamentos muito pessoais – e possíveis – na relação entre música e cidade. Se estou ouvindo uma música de Rihanna, no meu carro, a paisagem se orienta, sob meu olhar, a partir da narrativa da cantora pop. O Recife vira um pouco Bridgetown, a capital de Barbados, terra nativa da cantora. O cotidiano encontra-se atravessado por sons que vão se intercalando, interpenetrando, agenciando, aparecendo, sumindo, criando enlaces possíveis entre ruídos, sons, músicas, vozes. Saio do carro, caminho pela avenida Conde da Boa Vista. Agora, 88


não me encontro mais sob a regência da sonoridade que quero ouvir. Sou um corpo interpelado pelas materialidades sonoras que me interrogam, me acionam, me tocam. Na caminhada pelas calçadas sujas da Conde da Boa Vista e ruas adjacentes, ouço maciçamente música brega. Esta avenida é, digamos, a artéria central do Recife, inicia-se na Ponte Duarte Coelho (que encena, por exemplo, a estátua do Galo da Madrugada, durante o período carnavalesco) e termina na Rua Dom Bosco – seu prolongamento passa a se chamar Avenida Carlos de Lima Cavalcanti, cortando os bairros da Boa Vista e Soledade. Por ela, todos os dias, cerca de 400 mil pessoas e 9.700 veículos circulam, segundo dados da Prefeitura do Recife e do Grande Recife Consórcio de Transporte. Ao ser inserido neste contexto musical através de uma localidade, estou adentrando também a um conceito proposto por Micael Herschmann e Cintia Fernandes (2012): uma territorialidade sônico-musical. Com esta noção, [...] busca-se valorizar a importância da música e das inúmeras sonoridades presentes no cotidiano das cidades para os processos de reterritorialização que serão realizados pelos atores pesquisados. Muitas vezes, a decisão da área que será ocupada pela música leva em conta não só a circulação dos atores, mas também o fluxo e a intensidade dos fluxos sônicos do local (HERSCHMANN e FERNANDES, 2014, p. 13).

Os autores propõem uma espécie de indicação metodológica em torno da escolha de locais a serem investigados, como partitura de questões que ligam os tecidos urbanos e as ocupações e deslizamentos sônico-musicais. “Estas territorialidades – mais ou menos temporárias –, pela sua 89


regularidade, geram uma série de benefícios locais diretos e indiretos para o território (permitindo até o incremento das atividades socioeconômicas locais)” (HERSCHMANN e FERNANDES, 2014, p. 13). Meu recorte em torno da Conde da Boa Vista se dá em função das problemáticas que esta via fornece do ponto de vista sônico-musical. Percebo a avenida como uma espécie de epicentro sonoro que adquire importância mercadológica em função do enorme fluxo de pessoas que por ali circulam – historicamente, a via se edificou como ambiente de comércio e negócios desde sua obra inicial em 1840 e, já em 1870, no trecho que compõe o espaço entre a Rua da Aurora e a Rua do Hospício, passou também a ser local de lazer e entretenimento. Percebe-se que a Conde da Boa Vista, em função deste duplo endereçamento (é uma via “comercial” e também de “lazer”), adquire uma centralidade em torno de sua relevância para a cidade. Se a música e os sons da avenida, historicamente, se construíram a partir dos bares, das lanchonetes e dos automóveis que por ali circulam, entre os anos de 2007 e 2008, com a implantação do Corredor Leste-Oeste, que ergueu um conjunto de paradas de ônibus ao longo da via, assistiu-se a uma dinâmica de circulação do ambiente que perpassou a espera pelo ônibus nas paradas, os agenciamentos ligados ao ócio e ao comércio de ambulantes culturais, que vendem produtos culturais, quase sempre pirateados, como DVDs e CDs, livros, óculos, roupas, entre outros. O hábito de esperar na Avenida Conde da Boa Vista instaura um agregar (de público, de comércio) que faz com que o local

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adquira status de ambiência de inúmeros agregamentos e atravessamentos, interessantes para o comércio e para a divulgação de ações e produtos populares. A Avenida Conde da Boa Vista é assim percebida por meio de sua vocação mercadológica e midiática, local, por exemplo, em que ocorrem as manifestações culturais e políticas da cidade, algumas já deslocadas para outros ambientes, como a Parada Gay, o desfile de 7 de setembro, passeatas e a passagem de blocos de Carnaval. Percebe-se também a importância política do local, uma vez que, realizar qualquer ato nela significa estancar o fluxo de transportes coletivos na cidade, causando transtornos no trânsito. É, portanto, na avenida Conde da Boa Vista que a música brega me interpela, enquanto agenciamento público. Mesmo que eu não ouça música brega, não conheça os artistas, não saiba do “último hit”, passear pela Conde da Boa Vista é uma espécie de indicativo de contato com a musicalidade bregueira que habita os vendedores ambulantes de CDs e DVDs piratas e também os aparelhos celulares dos sujeitos em trânsito no cotidiano. A Conde da Boa Vista reconfigura, de alguma maneira, os territórios do Recife, gerando novas cartografias e mapas sônicos-musicais da cidade. Se pensarmos a música brega como de matriz das periferias recifenses, através da presença destas sonoridades no espaço do centro da cidade, vivenciamos experiências estéticas que se sobrepõem: a circulação pelo centro da cidade, o acionamento musical periférico. A periferia está presente no centro e vice-versa. O deslocar centro-

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periferia se dá fisicamente com os deslizes entre canções que são produzidas em contextos periféricos, fruídas em centros, transformando o “espaço” num “lugar”. Pensamos aqui a cidade pela máxima de “artes do fazer” cotidiano, como postula De Certeau (1994), um espaço comunicacional-interacional vivido nas dinâmicas socioculturais e ambientais, nos modos de presença, no compartilhamento e dissensos sobre gostos e nas significações entre urbanidades e sujeitos. Nas entrâncias da avenida Conde da Boa Vista, podemos percebê-la como espaço democrático, de encontros e tensões no cotidiano. A música brega, de forte conteúdo erótico-sexual, encontra o cancioneiro evangélico (gospel) também de enorme apelo comercial, entre os comerciantes e ambulantes de produtos culturais pirateados. Estes encontros e tensões fazem parte da vivência urbana, em que o desafio de conviver e tolerar a diferença integra questões éticas da vida pública. Entende-se a vida pública como repleta de conflitos, situações inesperadas, conservadoras; no entanto, uma vez que tomamos o desafio de tolerar e conviver, a avenida Conde da Boa Vista é uma metáfora de atravessamentos de classes sociais, faixas etárias, raça, gênero, que talvez nos leve a discutir aquilo que Canclini (2011) chama de promoção de “ações cidadãs a partir de uma ética intercultural”. Uma vez que estou na Conde da Boa Vista e sou interpelado pela música brega, gospel, funk, entre outros gêneros musicais possíveis, coloco em prática uma série de confrontos, intercâmbios identitários e comunicacionais vivenciados em tempos de globalização. Numa leitura pertinente de Canclini para visualização destas práticas na

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música de rua no Rio de Janeiro, Herschmann e Fernandes apontam que: Essas práticas interculturais não se reduziriam em acordos econômicos nem apenas nas práticas multiculturalistas – que estiveram presentes no debate das últimas décadas do século XX – nas quais se admite a diversidade cultural a partir da diferença sublinhada por políticas de tolerância e respeito, mas que, por vezes, acabaram por reforçar segregação social (HERSCHMANN e FERNANDES, 2014, p. 30).

Caminhar pela “artéria” central do Recife significa ser interpelado pela diferença, colocar os sujeitos urbanos em contato com outras estéticas, outras ideias de centro da cidade, que remonta às periferias e às maneiras de se deslocar de forma democrática. O tecido urbano é este ambiente em que praticamos lógicas de cidadania cultural, sobretudo no tocante às músicas e suas estéticas dissonantes. Os encontros na Conde da Boa Vista estão longe de serem apenas interações em que se pratica o exercício da diferença. Naturalmente, a música que não estamos ouvindo porque queremos causa incômodo (TROTTA, 2016) de forma a que somos impelidos a pensar sobre o lugar do Outro na cidade. A presença da música brega no contexto do centro do Recife pode ser pensada na ordem do dissenso, daquilo que também afasta e propõe novas instâncias de segregação. Por isso, destacamos a associação que a música brega tem com o mercado informal e pirata. Neste sentido, podemos vislumbrar os embates entre o comércio informal dos grandes magazines do centro do Recife, lojas de departamento, shopping centers

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e os camelôs, os fiteiros e as “bancas” de DVDs e CDs piratas. A formalidade do comércio institucionalizado contra a informalidade dos camelôs é um debate de valor associativo da música brega. Ao brega, cabe a informalidade, o mercado paralelo, sem a chancela dos grandes conglomerados de comércio. Observo aqui o consumo que circunscreve o embate entre as Lojas Americanas (uma loja de departamentos que se notabilizou em comercializar CDs e DVDs originais, direto das grandes gravadoras, a preços populares) e os vendedores de DVDs e CDs piratas que, por vezes, armam seu comércio “na porta” das Americanas. A música brega, portanto, vem atrelada a valores ligados à pirataria, enfrentamento do sistema formal do capitalismo e desordem institucional.

Música brega e cultura da mobilidade O estudante Breno França, 17 anos de idade, está no ônibus da linha 071 – Candeias. Na parada de ônibus em frente à loja Riachuelo, na avenida Conde da Boa Vista, ele subiu no coletivo ouvindo, sem fones, uma música brega. Breno está com outros dois amigos, Melque e Tiago, os três conversam sobre novidades no universo dos videogames. Vou seguir Breno e tentar conversar com ele durante o percurso no ônibus. Minha forma de aproximação é, naturalmente, perguntando sobre a música. “É de Tróia”, responde, desconfiado. Silêncio entre os amigos enquanto a parada de ônibus é embalada pela canção que sai do celular de Breno: “novinha kika, kika vem kikando, kika daquele jeitinho que papai já tá gostando”. O verso faz 94


parte da música “Novinha Kika”, do MC Tróia, um dos artistas da cena brega recifense. Breno não sabe o nome da música, olha no celular para ver o título e me mostra na tela do aparelho: “novinhakika.mp3” é o arquivo. A música é uma referência ao ato sexual, “quicar”, movimentos pélvicos. O termo “kikar” (escrito com “k”) é bastante comum no universo musical do brega recifense e aparece recorrente nas canções de MCs como Tróia. Breno está desconfiado com minha curiosidade. Os amigos não interagem comigo. Percebo que há neles, talvez, o indicativo de que eu seja alguém que vá reclamar da música tocada em alto volume. O enfrentamento tácito entre cidadãos por causa de “problemas sonoros” é uma constante nos circuitos de transporte público no Recife. A jornalista Tânia Passos relata: Na semana passada, durante uma viagem na linha Sul do metrô, presenciei uma cena que me chamou atenção. Um som alto, que demorei a identificar de onde vinha, incomodava não apenas pelo péssimo gosto musical, mas, sobretudo, pelo volume nas alturas. Uma senhora sentada, próxima a um jovem, estava particularmente incomodada e vi, por fim, de onde vinha o barulho. Embora com um fone no ouvido, o rapaz o desconectou do celular e ‘dividiu’ com todos a música que lhe enchia os ouvidos. Foi quando resolvi abordar o jovem. Esse som é seu? Perguntei. Sim, respondeu ele. O senhor acha certo ouvir som alto em uma área que é pública? A única resposta dele foi: ‘Não vejo nenhuma placa dizendo que é proibido’ (PASSOS, 2012, p. 1).

Quero aqui pontuar a problemática relatada pela jornalista como dinâmicas dos atritos que envolvem direitos garantidos 95


de silêncio, noções ligadas ao bem-estar e à ordem pública. Trata-se de um consenso em torno do que se chama de “poluição sonora” como perturbação da ordem pública, dos dissensos causados pelo alto volume de músicas e também pela perspectiva festiva em torno dos fazeres musicais. Quero pontuar aqui dois termos usados no relato que talvez ilustrem a desconfiança com que Breno e os dois amigos tiveram em relação a mim – como interlocutor no ato de abordagem sobre a música que eles ouviam coletivamente, junto aos transeuntes na parada de ônibus da avenida Conde da Boa Vista. Os termos são “péssimo gosto musical” e “barulho”. Parece-me importante pensar em torno não só das disposições valorativas (bom, ruim, ótimo, péssimo), mas como estas construções são acionadas, performativizadas, podendo evocar lugares e disputas de classe, faixa etária, raça. Em seu relato, a jornalista Tânia Passos não menciona o gênero musical da música de “péssimo gosto musical” nem nomeia o que faz “barulho”. O exercício aqui não é especular sobre a natureza do gênero musical, mas pensar como estas classificações implicam em uma história do valor da música produzida na periferia e as disputas de classe reencenadas com aportes estéticos. Breno e seus amigos seguem ouvindo brega no ônibus, causando incômodo entre alguns passageiros, mas também ressignificando aquele espaço. A sisudez do “clima” de volta para casa, depois do expediente, rostos cansados, é “quebrada” com o verso: “ela é a primeira dama, a mulher do patrão, novinha sapequinha, ela gosta é de pressão”. Percebo rostos se contraindo negativamente. Olhares enviesados. Mas

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também reconheço pessoas sorrindo com aquela “greia”, com a escuta humorística que aquela canção de brega provoca. Instaura-se um clima de tensão tácita diante daquela música, possivelmente a “inquietude” ao qual Janice Caiafa (2002) menciona ao analisar os processos de comunicação, silêncios e corporalidades nos metrôs do Rio de Janeiro. Eles seguem ouvindo música sem fones e conversam, em alguns momentos, quase gritando entre eles. Reconheço que há ali uma dinâmica de exposição, performática, de tornar públicos assuntos privados. Talvez incomodar mesmo, mas um incômodo que também visa agregar. Aparentemente contraditório. No entanto, talvez na “chave” com humor, chamar atenção. Em algum momento, Tiago conta piadas. Breno parece ser o mais desconfiado, embora ele seja o que “está colocando música”. Melque ri muito. Com as músicas, com as piadas. Quando Breno e os amigos pedem descida no ônibus, eu os acompanho. Desço com eles. Me aproximo dos três e tento estabelecer uma conversa. Todos desconfiadíssimos. Percebo que Melque é o mais “aberto” e vou me dirigindo a ele, me apresento como pesquisador. Talvez eles achem que sou da polícia. Tiago diz para eles irem embora. Melque os encoraja a ficar. “Oxe, é nenhuma!”, diz Melque para Breno, “bora falar, a gente num deve nada a ninguém”. Os três estão com fardas de escolas públicas do Estado, estavam “dando um rolê” pelo centro. A minha hipótese sobre ouvir música sem fones como uma tentativa de instaurar um outro “clima” no ônibus se confirma. “Boto música alta pra não dormir porque senão chego em casa 97


e fico com insônia”, diz Breno. Noto que eles se animam ao falar das “viagens” de ônibus com “trilhas sonoras” de brega. Algumas marcam. “Tem coroa que fica cabulosa mermo”, ri Melque. Eles enumeram algumas reações das viagens de ônibus pela cidade. Dizem, inclusive, que têm horários e dias que o “breguinha” deles incomoda mais. “Fim de tarde e início de noite é pior, o povo tá estressado”, comenta Tiago. Nos finais de semana, segundo ele, o brega é liberado nos ônibus – embora esteja na Lei número 12.789, de 26 de abril de 2005, da Constituição do Estado de Pernambuco, no Art. 1°: “É proibido perturbar o sossego e o bem-estar público com ruídos, vibrações, sons excessivos ou incômodos de qualquer natureza, produzidos por qualquer meio ou forma que contrariem os níveis máximos de intensidade auditiva fixados por lei”. “Dia de jogo do Sport pode jogar música nas alturas que ninguém liga também”, lembra Breno. O que percebe-se neste debate entre música e perturbação da ordem pública é o que Simone Sá (2006) chama de “construção do espaço acústico” por meio dos aparelhos celulares, os desafios dos regimes de escuta na contemporaneidade e as disputas de poder em torno destas práticas. O público torna-se uma extensão do privado – com todas as potências e contradições que há nisso. A reformulação do espaço acústico privado também ocorre à medida que o isolamento, a intimidade e a privacidade já não são formas dominantes de comunicação com este meio: fala-se ao telefone em qualquer lugar, obrigando os vizinhos de transporte público ou da mesa do restaurante, por exemplo, a compartilharem conversas íntimas (PEREIRA DE SÁ, 2006, p. 124). 98


Estes agenciamentos do público no privado, ideias em torno de sujeitos civilizados e “arruaceiros” colocam a construção do espaço acústico numa lógica de poder. Como já mencionei aqui, a música brega, em função de seus circuitos e lógicas de consumo, pode ser vista através da premissa de “desordem pública” (os ambulantes que a comercializam, os indivíduos que escutam em alto volume), mas também esta aparente desordem é a sua potência, na medida em que se espraia, vaza, impõese “em alto e bom som”, apresenta-se diferente, periférica, adentrando nos meandros “civilizados” da urbe. No que se espraia, a música brega também agrega aqueles que nunca a ouviriam – senão através da lógica “invasiva” e permissiva do centro de uma metrópole como Recife. Ao tecer comentários sobre a relevância dos estudos sobre o que chama de “cultura da mobilidade”, André Lemos (2009) reconhece: “a mobilidade deve ser politizada. Ela não é neutra e revela formas de poder, controle, monitoramento e vigilância, devendo ser lida como potência e performance” (LEMOS, 2009, p. 29). Deslocarse, ocupar, entrar, sair são movimentos profundamente políticos. O encontro, o toque, aquilo que se apresenta, que se “ajunta”, que está onde não deveria – ou onde não era comumente seu lugar – significa deslocar eixos simbólicos e estéticos. Tensão que a música brega enseja no contexto da cidade do Recife.

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capítulo


Economias estéticas do brega



Compreender as lógicas econômicas que envolvem as cenas musicais é de fundamental importância no que diz respeito à investigação das dinâmicas dos gêneros musicais populares. E no brega constituído em Pernambuco não é diferente. Sem grandes vínculos às propostas – digamos – mais “artísticas”, o que se observa neste contexto de produção é uma busca pelo retorno financeiro como aparato de longevidade – seja de casas noturnas, bandas ou eventos. Cabe pensarmos em modelos de negócio da música popular periférica como formas de sustentação econômica à parte das disposições formais e, portanto, institucionais de comércio e renda. A música produzida em contextos periféricos coloca em questão uma série de pressupostos da indústria fonográfica e do mercado formal de música – direitos autorais estão no epicentro desta problemática, assim como a pirataria. O modelo de negócio da música brega no Recife está marcado pelo retorno financeiro ligado ao mercado de shows (apresentações ao vivo), ancorado numa rede de produtoras que pensa estratégias de venda de espetáculos, produção de videoclipes e gravação de canções para circulação. Tais espetáculos acontecem em casas de shows com agendas fixas ou em eventos específicos. O comércio de CDs e DVDs, além do pagamento para áudio em streaming, são práticas pouco usuais entre fruidores e fãs de música brega, uma vez que arquivos de áudio

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com canções são disponibilizados em blogues ou sites de compartilhamento de música de forma gratuita – como explicitaremos mais adiante as perspectivas de consumo digital da música brega. Amparados pelo retorno econômico em shows, os artistas do brega do Recife precisam “estourar” para serem convidados a se apresentar nas casas noturnas. Para isso, valem-se da pirataria como uma eficiente forma de circulação musical, além da recomendação de DJs e blogueiros que organizam coletâneas musicais com hits potenciais que podem ser comercializadas por ambulantes ou simplesmente baixadas em blogues. A pirataria no contexto do brega no Recife assume texturas semelhantes ao tecnobrega de Belém do Pará. Conforme atestam Olívia Bandeira de Melo e Oona Castro (2011), o conceito de pirataria designa produção de cópia sem autorização [...] e sem pagamento do direito autoral aos detentores desse direito pelo uso da obra. No entanto, cabe destacar que, o uso da obra por terceiros, no contexto do tecnobrega paraense, era tacitamente autorizado pelos autores, que consentiam a difusão e venda da obra por terceiros (MELO e CASTRO, 2011, p. 192).

O sistema de gravação e produção dessas obras, em geral disposto em estúdios caseiros, consiste no registro de faixas isoladas que podem circular por blogues, vendedores ambulantes, rádios, na tentativa de “virar hit”. As canções

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são extremamente simples, os arranjos pré-programados, existe a busca pela “linguagem que pegue”, uma espécie de jargão, de frase de efeito que será incorporada e viralizada. A poética da canção de brega opera sob o invólucro que rege a música pop. A “facilidade” do refrão, o privilégio da emoção e o acionamento à corporalidade são premissas que circunscrevem a criação do cancioneiro bregueiro. A semelhança entre os artistas é fruto de uma intensa disputa por legitimidade e trajetória. É importante que “a melodia seja assoviada, como se já tivesse sido ouvida antes, mesmo que pela primeira vez” (MARTEL, 2012, p. 131). Na música pop, aposta-se no “groove” (sulco, ritmo), conforme define Martel, no “hook”, na pegada musical e no “leitmotiv catchy” (que pega) e “prende” no ouvido. Frases como #meucorpotámexendosozinho ou #cadaumcomseupoder do MC Sheldon passam a habitar textos e fotos em redes sociais, criando uma circulação de sentidos que promovem reencenações das canções de brega em outros contextos. Pensar em estéticas na disposição profundamente econômica do mercado do brega significa reconhecer que o capital age sobre as formatações destas materialidades sonoras e visuais dentro de contextos periféricos. Como nos gêneros musicais ligados à cultura pop, a figura do produtor, da produtora musical e de shows, além dos “donos” das bandas são mediadores da estética do brega. Pensar em

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sonoridades, figurinos, coreografias, canções, hits, shows, traz à tona, necessariamente, a reflexão sobre esses mediadores.

Mediadores produtivos da cena brega Numa história da estética do brega de Pernambuco, proponho um olhar mais detido sobre as produtoras dos artistas, como forma de compreensão dos aparatos produtivos que geram o mercado. Essas produtoras são locais de planejamento de carreira de artistas e também de comercialização de espetáculos e produtos associados. Antes de adentrar a uma trajetória das produtoras do gênero no estado, elencarei algumas especificidades em torno do sistema de produção da música brega, com base em leituras exploratórias, que tanto aproximam como afastam as dinâmicas bregueiras da música pop. No mercado formal de música, o produtor musical designa a pessoa responsável por conduzir o processo de gravação para que a faixa ou o álbum estejam prontos para o lançamento. Controle das sessões de gravação, treinamento e gerenciamento dos músicos e cantores, além de supervisão do processo de mixagem são tarefas do produtor musical, que também é responsável por concepções artísticas e estéticas dos dispositivos musicais (SHUKER,

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1999, p. 76). No contexto do brega, a figura do produtor musical se confunde com a do produtor executivo, esse último bastante comum no campo do cinema, funcionando como uma espécie de guia financeiro e de captação de verba dos projetos. O nome atribuído no contexto do brega é bastante coloquial e vários artistas se referem ao “dono” da banda. O termo evoca uma relação de trabalho em que um produtor é proprietário da marca da banda e os artistas são funcionários. Esta relação singular é bastante problemática acarretando numa série de rompimentos e “finais” de bandas, em função de desgastes de relações atribuídas às supostas explorações de artistas por produtores. Grupos frequentemente trocam de nome, mudam integrantes, não relatam motivos para tais alterações, porém, sabe-se, à boca miúda, que grande parte destes problemas se dá por questões financeiras. Pontuo, portanto, que a figura das produtoras ligadas a artistas do brega funciona como um interessante aporte de investigação na medida em que traduzem os movimentos de oscilação econômica em torno dos fenômenos musicais.

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NP Produções e a Estética dos Teclados A NP Produções, liderada pelo empresário Nino, e responsável pela gestão de carreira da banda Labaredas, em 1995, era a principal produtora de brega do Recife naquele período. Com vinculação ao Clube das Pás – um estabelecimento de bairro (Campo Grande) que assumia também festas com serestas e cancioneiros românticos –, a NP Produções articulava a venda de shows da Labaredas, conjunto que foi um contraponto ao “excesso” de grupos de pagode que “apareciam” nas casas noturnas locais para fazer espetáculos, geralmente com coreografias padronizadas e cabelos descoloridos – seguindo a tendência legada pelo pagodeiro Belo e por grupos como Katinguelê, Os Morenos, Karametade (de âmbito nacional) e Ourisamba, 171 e Ginga e Malícia (no contexto local). A Labaredas trazia uma configuração musical em que se sobressaíam os arranjos à base de teclados. Canções como “Garotinha Linda” ou “Kelly” passaram a integrar praticamente todas as “vitrolas de ficha” de bares da periferia do Recife, disputando a atenção dos ouvintes do pagode. Utopias românticas (“Vou fazer promessa pra ficar contigo/ Vem, garotinha linda!”) ou evocações a paixão por musas (“Kelly, oh, Kelly! Você é assim, um pedaço de mim”) predominavam nas letras, que remetiam à inocência dos

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relacionamentos amorosos, com forte acento musical que evocava a Jovem Guarda. Enquanto passava a integrar o circuito de entretenimento noturno recifense e, gradativamente, suas músicas circulavam no mercado das rádios populares, a Labaredas viu aparecer um cantor que também se angariava nos arranjos musicais à base de teclados. O cearense Lairton começou a ter faixas executadas pela rádio Som Zoom Sat, com sede em Fortaleza, no Ceará, e de alcance regional. No Recife, os arranjos românticos e “cheios de teclados” de Lairton pareciam estar em consonância com a estética sonora semelhante pautada pela banda Labaredas14. Dessa forma, Lairton e Seus Teclados (este era o nome artístico da banda) se integrou ao circuito de brega recifense, sobretudo diante do sucesso da música “Morango do Nordeste”15. Lairton e Seus Teclados foi logo apelidado de “o moranguinho”, em função da sua canção, que “estourou” nas rádios da Região Metropolitana do Recife. O cantor “abriu terreno” nacional para esta faixa romântica de arranjos e letras simples, sendo executado em rádios voltadas para nordestinos residentes no Rio de Janeiro e em São Paulo. No Recife, entretanto, artistas como Labaredas e Lairton e Seus Teclados estavam circunscritos a circuitos da periferia da cidade, tocando ainda em casas de serestas e clubes de bairro, embora passassem a ter projeção nacional em programas de TV populares como Ratinho e Domingo Legal.

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A estética dos arranjos musicais à base de teclados, que viria cristalizar o que se chamou de “brega romântico”, tem como epicentro este momento, em que artistas ganharam visibilidade no cenário local. Parte do legado estético advinha de uma tradição do brega romântico de artistas como Reginaldo Rossi, Adilson Ramos, Augusto César, Rodrigo, entre outros. Parece evidente que a NP Produções, que agenciou a carreira da banda Labaredas, foi uma das responsáveis pela continuidade de uma linhagem da música brega de Pernambuco que tinha como Reginaldo Rossi um cânone.

Luan Produções e a Banda Calypso no Recife Foi com a criação da Luan Produções e a chegada da banda Calypso, vinda do Pará, fixando residência em Pernambuco, que se criam as bases para a legitimação do brega e seu processo de consolidação como gênero musical periférico hegemônico no Recife, apontando para a transformação que viria a consolidar o “Brega Pop” (FONTANELLA, 2007). Parece oportuno pensar o brega do Recife como uma confluência de sonoridades e estéticas que dialogam tanto com artistas da cena musical local (Reginaldo Rossi, Reinaldo Belo, Labaredas, entre outros e uma estética dos teclados), quanto do Pará (a partir de referências como a calypso e o tecnobrega) e também do Ceará (forró eletrônico).

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Ainda diante de questões acionadas pelos atores sociais no contexto de produção, importante destacar a gênese de uma estética que se ancora na presença da vocalista feminina, a “diva bregueira”, como eco de referências ligadas ao universo da música pop, a partir da chegada da banda Calypso, vinda de Belém do Pará, com o intuito de fixar residência na capital de Pernambuco. O motivo para a escolha do Recife: o posicionamento estratégico da cidade no “centro” do Nordeste (estando perto de grandes centros urbanos como Fortaleza e Salvador) e também em função da logística em torno da produtora que assumiria a gestão de carreira da banda Calypso, a Luan Produções – cuja parte de proprietários eram donos da maior casa de shows do Recife, o Chevrolet Hall. Levanta-se a hipótese também de um esgotamento do mercado paraense, com alta concorrência entre artistas e barateamento de cachês naquele contexto. Destaca-se o potencial do interior do Nordeste como mercado propício a receber a estética do calypso, tanto a partir de uma vivência com as bandas de forró eletrônico quanto pela dimensão rítmica e performática do gênero. Desenha-se uma geografia de mercado, com a banda Calypso construindo bases mercadológicas para adentrar ao interior dos estados da Paraíba e Pernambuco e rivalizar com artistas do forró no Ceará e Rio Grande do Norte, além de “enfrentar” nomes do arrocha e da axé music no contexto da Bahia.

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Fig. 1 Cartaz da “Festa do Beijo”, Atlético Clube de Amadores, em Afogados.

Fig. 2 Cartaz do “Brega Chic”, boate Iguana, em Boa Viagem.



Pensar a chegada da banda Calypso ao contexto recifense significa compreender o agendamento que o grupo trouxe a outros artistas locais e também a legitimação que os vocalistas Joelma e Chimbinha tiveram ao serem agenciados pela Luan Produções – que tinha em seu casting para divulgação no Nordeste, no início de carreira, por exemplo, artistas como Luan Santana e a banda de forró Garota Safada, do vocalista Wesley Safadão. A Calypso trazia a alcunha de “tecnobrega” do Pará, no entanto, chegava ao contexto pernambucano sob a chancela de uma produtora de “grandes espetáculos” – o que a tornava notável e distintiva num ambiente originalmente periférico do cancioneiro brega do Recife. O destaque dado à banda Calypso no circuito de shows da Região Metropolitana do Recife foi o pontapé para que se desse início a um processo de criação em série de bandas de brega com vocalistas femininas. É relevante destacarmos o fato de que, nos grupos de forró da chamada “oxente music”, a figura feminina já era destaque: da cantora Eliane, a “Rainha do Forró”, passando pela Magníficos, que trouxe na figura de sua vocalista, Walkíria, o principal “trunfo” no tocante à cativar o público masculino em seus shows, além naturalmente da estrela Solange Almeida, a “Solanja”, do Aviões do Forró, tudo parecia conspirar para que a configuração das bandas de brega recifenses fossem angariadas por mulheres destemidas e empoderadas.

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Podemos identificar procedimentos enunciativos na formatação deste momento da gênese da estética feminina do brega no Recife: os arranjos à base de teclados, gravados em poucos canais e com limitadas texturas sonoras, a presença da mulher, dos figurinos “berrantes” e dos bailarinos como “corpo de baile” e, sobretudo, nos vocais femininos, apelos ao sussurro, gemido, erotização no cantar16. Está na referência à banda Calypso, por exemplo, a matriz estética que propiciou a aparição de “fenômenos” do brega no Recife, ao final da década de 2000, artistas como Musa do Calypso, da vocalista Priscila Sena, e a banda Kitara, que detém configuração idêntica à Calypso (a vocalista Karlinha e o músico Rodrigo Mell como “líderes”).

O brega universitário A movimentação em torno das polaridades centro/periferia, Zona Norte/Zona Sul, classe média/classe baixa passou a ser ainda mais problematizada com a aparição, em meados dos anos 2000, de artistas como Victor Camarote & Banda Arquibancada, Faringes da Paixão, Tanga de Sereia, entre outros; grupos formados por indivíduos de classe média que se apropriam da estética do brega de forma lúdica e passam a integrar o circuito de shows nas boates da Zona Sul do Recife. Jornalistas de cultura rotulam tais artistas de “brega universitário”, numa referência ao próprio rótulo de forró universitário que foi gerado junto, por exemplo, a

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grupos como Falamansa – igualmente integrantes da classe média performatizando o “forró pé-de-serra” no mercado de música. Não cabe aqui destituir tais experiências musicais de legitimidade nem entrar no mérito da fidelidade ou do “purismo” (essencialismo) em torno das expressões musicais. Quero destacar que há um debate sobre o tipo de apropriação que artistas do “brega universitário” fazem da estética brega, sobretudo, no que diz respeito a uma atitude possivelmente jocosa e risível a partir do material encenado. Meu interesse é apontar uma tensão existente em tais experiências do ponto de vista dos jogos de valores de quem consome música brega no Recife: é possível mapear fruidores que dizem, por exemplo, preferir “brega de raiz”, feito na periferia, em detrimento do “brega da Zona Sul”, “universitário”. Esta tomada de posição é um indicativo das disputas dentro das culturas, gerando conflitos, embates e assimetrias nas formas de consumo e fruição das experiências estéticas. Quero encaminhar esta reflexão para o reconhecimento de como, ao mesmo tempo que “se apropriaram” da estética do brega, artistas do “brega universitário” também funcionaram como abertura e permissividade para que artistas oriundos das periferias do Recife circulassem por ambientes restritos ou fechados a eles.

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Artistas como Victor Camarote & Banda Arquibancada e Faringes da Paixão foram responsáveis pelo arrefecimento das fronteiras entre periferia e Zona Sul, na medida em que passaram a produzir shows em noites em boates do bairro de Boa Viagem reunindo suas próprias bandas e artistas vindos da periferia (como Vício Louco, Michelle Melo e Banda Metade e Sheldon, Boco, GG, entre outros). A casa de espetáculos Dona Carolina, localizada numa área nobre de Boa Viagem, passou a ter a Quinta do Brega, evento que promovia encontros musicais e onde abria-se a possibilidade de vazar fluxos e tensionamentos entre frequentadores de classe média e das periferias do Recife. Há obviamente uma dupla zona de interesses: dos artistas de brega chegarem às boates da Zona Sul (com cachês mais aviltantes, por exemplo) e também dos “bregas universitários” em se legitimarem com a presença de grupos “vindos da periferia” em suas noitadas. O fluxo de artistas de diferentes origens e constituintes raciais pelos mercados do entretenimento do Recife pode ser lido através da perspectiva do consumo “crossover”, como uma das principais formas de engendramento do sucesso da gravadora Motown, na década de 1960. Música “de negro” para “plateias brancas”. Música “de pobre” para “plateias ricas” fundam um dos sistemas mercadológicos “conciliadores” de diferenças e que alçou, por exemplo, o produtor Barry Gordy, da Motown, ao status de um dos

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Fig. 3 Cartaz do “Brega Naite”, Clube Internacional, na Madalena.



fundadores do que se chama de música pop. Atenuar certas texturas excessivamente eróticas das letras, “embalar” melhor os artistas através de figurinos mais elaborados, “domesticar” a “selvageria” das mulheres eram operações propostas na formação de um sistema produtivo da música pop e que é reencenado em diversos contextos da música periférica. Apesar de soar um tanto quando “fora de moda” falar em categorias estanques de estratificação da sociedade, como classe social e faixa etária, observa-se ainda o frequente uso destas molduras “enquadrantes” como forma de circunscrever fenômenos nas cenas musicais contemporâneas. Em particular, no contexto da música brega do Recife, há uma constante convocação da noção de classe social para reconhecer as dinâmicas de endereçamento das festas e bailes. Observa-se também que ainda se faz uso constante da dicotomia periferia/Zona Sul como atributos de localização geográfica dos eventos, assim como retrancas valorativas dentro de uma política de ocupação dos espaços de entretenimento. Por isso, expressões ditas, muitas vezes, em tom pejorativo, como “festa de música brega para playboy” ou “patricinhas da Zona Sul vão à periferia para clubes de brega” servem como aparatos de mapeamento de tensões envolvendo fruidores e ambientes desta cena musical recifense. Partimos aqui da observação de uma

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tensão: as apropriações da música brega contemporânea feitas por produtores culturais em eventos voltados para a classe média e que acontecem em boates ou espaços “descolados” da Zona Sul do Recife. Questões sobre autenticidade, legitimidade e formas “corretas” de engajamento de uma estética que emerge da periferia são acionadas. O debate que trazemos visa discutir este tensionamento a partir de dinâmicas performáticas que se fazem nos deslocamentos na cidade e privilegiam os engajamentos efêmeros, estratégicos e táticos. A ideia aqui é pensar como esses eventos que acontecem na Zona Sul traduzem lógicas de ocupação do espaço urbano que precisam ser pensadas como instâncias de performatização. O acionamento de determinadas performances nos jogos de flerte da cultura da noite é sintoma de uma ocupação lúdica a partir de retrancas que são postas em circulação a partir das ingerências dos espaços sexualizados. Fazer “pegação”, flertar, namorar são motivos para se ir a uma festa brega17 – para além da própria música. Performatizar é, naturalmente, negociar. E pensamos numa negociação que se dá na ordem das conveniências culturais, de uma política de ocupação do espaço da cidade que se faz de forma assumidamente frívola e precária. A questão que permeia esta investigação diz respeito às maneiras com as quais o brega foi se tornando conveniente (para

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quem? para quê?) no contexto da cultura do entretenimento no Recife. Nosso olhar é permeado pela identificação de micropolíticas, jogos de poder e legitimação acionados, muitas vezes, por retrancas econômicas que agem sobre a disposição estética.

Tensões em cena: brega, VIP e descolado Essa cartografia de artistas da música brega parece nos ser útil para refletir sobre as tensões da fruição do gênero musical nos contextos da Zona Sul do Recife. Na tentativa de materializar questões acerca dos jogos de valores presentes nesses embates, trago à tona os cartazes que anunciam as festas de brega como um interessante aporte para a presentificação de uma lógica de entrada do brega nas casas noturnas de classe média do Recife. O interesse aqui é evidenciar rascunhos discursivos que sirvam como suporte da compreensão de uma dinâmica dos deslocamentos na cidade. Primeiro, destaco o cartaz de uma festa de brega que ocorria num clube de bairro, o Atlético Clube de Amadores, em Afogados. O cartaz da “Festa do Beijo” (Fig. 1) apresenta configuração de ordem cromática que apela para cores de longo alcance perceptivo – amarelo e vermelho – com os artistas elencados com fotografias e a presença de ícones

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de beijos em toda extensão do anúncio. Há uma perspectiva de design de artefatos populares, com excessivo recurso de cores e formas, além de uma síntese digamos “naïve” (ingênua) nesta configuração. Cartazes como este da “Festa do Beijo” são popularmente chamados no Recife de “lambe-lambes”, pois são colados nos muros das principais avenidas da cidade com uma espécie de “cola” que “lambe” a parede. A presença dos “lambe-lambes” e seu “descascar” expostos ao sol e à chuva formam um cenário bastante peculiar nas ruas da cidade, sobretudo no centro do Recife, junto aos terminais de ônibus e pontos de intensa movimentação do comércio popular. Fica notório no cartaz da “Festa do Beijo” a centralidade de um apelo: beijar, flertar, fazer “pegação” ao som dos artistas elencados. Não há qualquer referência ao termo “brega” enquanto rótulo de gênero musical, no cartaz, exceto em função do nome de uma das bandas se chamar Pank Brega. Quando partimos para a investigação em torno dos cartazes das festas de brega que acontecem em boates da Zona Sul, reconhecemos o endereçamento de gênero musical como uma instância enunciativa: há um destacamento do nome do bairro em que ocorre a festa (Boa Viagem) no topo do anúncio e a própria titulação do evento traz à tona a presença do gênero. A festa se chama “Brega Chic” (Fig. 2). Essa aparente contradição entre brega e chique pontua

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uma forma de acesso dos artistas do brega aos locais da Zona Sul do Recife, neste caso, em específico, à boate Iguana. Entre os artistas escalados para tocar na festa, também, um destacamento: há desde aqueles que o jornalismo cultural rotula como “brega universitário”, como Victor Camarote e Faringes da Paixão, mas também os “bregas da periferia” ou “de raiz”, como Kelvis Duran e Banda Torpedo. Importante perceber a estética do cartaz que opta por uma ordenação cromática de cores frias, o lilás, o marrom e a reprodução de uma parede com ênfase no formato da festa “open bar” (tradução de “bar aberto”), ou seja, bebida alcoólica liberada – neste caso do evento, “para elas”. Este clima “elegante” e “cool” presente no cartaz do “Brega Chic” parece ser sintoma de uma proposta que se faz “na defensiva” ou na contradição: é brega, mas é elegante, “pode entrar”. Um tom, no discurso imagético, que se faz na sobriedade. Outras festas da cidade, como “Brega de Elite”, também acionam formatação discursiva semelhante. Num entrelugar discursivo, optando por uma estética kitsch e um tom humorístico, há a festa “Brega Naite” (Fig. 3) (que, na própria formatação do nome, traduz uma caracterização lúdica: o “night” é propositalmente escrito como “naite”). O cartaz de divulgação da edição do evento que contou com a presença da cantora Preta Gil evoca uma iconografia que se assume kitsch: além da tipografia assemelhando-se a rabiscos, há um flamingo e uma ordenação cromática colorida, visivelmente ornamentada, que acaba sendo uma chave semiótica para o público frequentador do evento: pessoas “descoladas”,

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formadores de opinião, publicitários, jornalistas e “gente que gosta de brega, mas prefere curtir junto de pessoas de seu ciclo de amizades”, como me disse um frequentador. Apesar de compor as edições com shows de artistas do “brega de raiz”, o destacamento da “Brega Naite”, na verdade, se dá em função dos DJs Ladie Khekhe e Original DJ Copy – que mesclam o set de canções bregas com o funk carioca e outros subgêneros das músicas populares periféricas. Há, na festa, uma premissa de “jogação” e “pegação”, como podemos observar também na convocação da “Festa do Beijo”, no clube de bairro do Recife, mas verifica-se um espírito de negociação com as lógicas distintivas, na medida em que o cartaz divulga a existência de uma “lage VIP”, titulação lúdica para a área VIP ou camarote, como se costuma dividir os espaços nas casas noturnas e shows. O “Brega Naite” convoca um engajamento metarreferente que se faz na performatização de uma fruição que se dá sempre em relação a uma premissa previamente estabelecida. Há uma perspectiva lúdica – que pode ser encarada como irônica ou jocosa também – de ressignificar o brega diante de uma clara associação com o Carnaval, a permissividade e a conveniência performática, ou seja, a deliberada pressuposição de assumir papéis sociais efêmeros, lúdicos, precários, de forma estratégica e apontando para uma tática de performatização.

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Quando ser brega é conveniente Ao longo do capítulo, tentamos arregimentar, a partir da verificação empírica de instituições, cenários e atores sociais da cena brega do Recife, questões que nos levem a entender nuances sobre o conceito de conveniência cultural em deslocamento para a compreensão de uma cena musical. Neste caso, precisamos nos voltar à gênese da ideia de “conveniência”18 como proposta por George Yúdice, em seu livro As Conveniências da Cultura (2006). O autor menciona a conveniência sob a retranca do uso da cultura por instituições – notadamente da ordem do Estado – a partir da materialização em diferentes setores da vida contemporânea, a saber, o uso da alta cultura (museus, centros culturais, entre outros) para objetivos do desenvolvimento urbano; a promoção de culturas nativas e patrimônios nacionais através da lógica do turismo; a “transformação” de espaços históricos em “parques temáticos do tipo Disney” (YÚDICE, 2006, p. 46); a criação de indústrias de cultura transnacional para “suporte” e integração de premissas como a União Europeia ou o Mercosul. Apesar de textualmente não querer soar “nostálgico ou reacionário pela restauração de um pedestal para a cultura”, percebe-se no tom da retórica de George Yúdice, ecos de uma crítica aos usos da cultura por instituições públicas e privadas, reverberando o que se convencionou chamar de uma crítica à estética da mercadoria (HAUG, 1997) ou a mercantilização da vida cotidiana – como previam os autores da Escola

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de Frankfurt. A certa altura, Yúdice se vê diante de uma encruzilhada: [...] a conveniência da cultura é uma característica óbvia da vida contemporânea. Ao invés de nos atrelarmos à censura, pode ser mais efetivo para os propósitos do pensamento estratégico estabelecer uma genealogia da transformação da cultura em recurso. O que ela nos assinala a respeito do nosso período histórico? (YÚDICE, 2006, p. 47).

A expressão-chave para entender as atribuições da conveniência, para o autor, parece ser a “transformação da cultura em recurso”, ou seja, a cultura como commodity ou artefato de negociação com pressupostos estratégicos institucionais. Proponho circunscrever esta lógica de reconhecimento da “cultura como recurso” para o entendimento das estratégicas expressivas, espaciais e experienciais dos gêneros musicais. Pensar um gênero musical como um recurso significa compreender seu uso institucional, suas formas de apropriação em circuitos de produção e reconhecimento e ainda a institucionalização de suas espacialidades e estéticas. Os gêneros musicais são importantes agenciadores culturais na medida em que traduzem uma certa espontaneidade das experiências musicais, dos fruidores e das sociabilidades, levantando o debate em torno dos seus usos por aparatos institucionais – sobretudo o Estado. A visibilidade, por exemplo, que o Governo de Pernambuco dá para o Manguebeat (e não vou aqui debater sua ontologia, se o Manguebeat é ou não um gênero musical, faço uso desta retranca classificatória como uma estratégia de endereçamento estético e mercadológico)

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a partir do apoio a artistas, eventos e a ocupação de uma série de cargos por “filiados ao Mangue” e, por outro lado, a invisibilidade em que se circunscreve o brega para fins de política cultural, pode ser sintoma de indicativos dos gêneros musicais como recursos de uma cultura. O que está em jogo, neste caso, é uma permanente tensão entre cultura, política, economia e imagens institucionais que traduzem “modos de cognição, de organização social e até mesmo tentativas de emancipação social que parecem retroalimentar o sistema a que resistem ou se opõem”. (YÚDICE, 2006, p. 49). George Yúdice se encaminha para a problematização de uma episteme19 da conveniência da cultura e, neste ponto, nossas questões se imbricam. O autor propõe a noção de performatividade – “o modo, além da instrumentalidade, pelo qual o social é cada vez mais praticado” – para mapeamento de uma espécie de materialidade das estratégias dos discursos que emergem das transformações da cultura em recurso. Nas palavras de Yúdice, “a conveniência da cultura sustenta a performatividade como lógica fundamental da vida social”, ou seja, o autor trata a performatividade como um constante estado de alerta, uma enunciação que se faz continuamente e aciona as relações entre Estado, cultura e instituições públicas e privadas para compreensão dos jogos de aproximação, distanciamento e usos de bens culturais. Acho particularmente pertinente enquadrar a noção de conveniência da cultura dentro de quadros mais amplos que convocam, por exemplo, expressões como adequação e pertinência – tais palavras soam como formas de agenciar

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e compreender, por exemplo, usos e expressividades de gêneros musicais em contextos específicos. Ao tratar de performatividade, por exemplo, o que adentra a esfera do visível, as expressões, aquilo que é posto, sua materialidade, constante lógica de performance das instituições, dos sujeitos, dos usos, Yúdice convoca Judith Butler para pensar princípios de inclusão e exclusão, disputas, controles e – mais uma vez – usos de aparatos da cultura. “Dentro” ou “fora”, incluído ou excluído, segundo Butler, fazem parte de uma inteligibilidade simbólica através da qual é possível reconhecer performatividades, hegemonias e contra-hegemonias. É neste sentido que operacionalizamos com o conceito de conveniência de George Yúdice: na forma de enxergar o fenômeno, as brechas, as operações de entrada e saída, jogos de visibilidade e invisibilidade, em constante performatização. Quero finalizar esta argumentação trazendo à tona alguns pontos que julgo necessários para o debate em torno dos engajamentos, performances e ocupações espaciais nas cenas musicais. Neste sentido, destaco aqui três postulações que ajudam a compreender como faço uso da noção de conveniência (reenquadrando a perspectiva de Yúdice) na observação da cena musical brega do Recife: 1. A conveniência é uma brecha através do qual fenômenos,

processos, expressões e experiências se acomodam em suas dinâmicas de institucionalização na tessitura da cena musical. Penso, neste texto, especificamente, a cena brega do Recife, por isso, estou diante de uma cena marcada por um gênero musical. Neste caso, observa-se

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as conveniências em torno dos usos estratégicos de um gênero musical: sua ocupação dos espaços, legitimação de sonoridades e experiências e seus usos institucionais. Destaco aqui o termo “acomodação” como profícuo para pensar movimentos de hegemonia e contra-hegemonia de valores e gostos nas cenas musicais, além de reconhecer que pensar como os fenômenos “se acomodam” de forma “conveniente”, nos interpela mapear, por exemplo, que instituições (públicas ou privadas) agem sobre esse processo. Nesta minha observação sobre a cena brega, tive a intenção de cartografar, através da verificação de uma retórica dos espaços, casas noturnas e lógicas de fruição de gêneros musicais populares, no Recife e Região Metropolitana, como o brega foi se acomodando na cidade, se legitimando, ocupando as brechas dos cenários de outros gêneros musicais, notadamente o pagode e o forró – e passando, hoje, a “conviver” com estes gêneros em espaços de disputa e constante reorganização. Reconheço que a institucionalização do brega no Recife traz indicativos de fortes enlaces econômicos, sobretudo através de empresários e casas de espetáculos populares em busca de atrativos para movimentação de suas agendas, em consonância com uma sonoridade e uma estética que se cristalizam diante da circulação de bens de consumo e sua midiatização. 2. Ressalto aqui a perspectiva de pensar a conveniência no

âmbito performático, como um jogo de engajamentos precários, efêmeros, que é acionado diante de contextos específicos. Tomar a conveniência como uma performance 132


enseja refletir sobre a cultura como uma complexa cadeia de tensões e interesses, visibilidades e invisibilidades. A noção de conveniência nos é útil porque a palavra traz, em si, a visualização de brechas, enlaces discursivos que podem – ou não – serem acionados. Performatizar de acordo com uma conveniência significa reconhecer a cultura como um ambiente tático, estratégico, como um vetor de visibilidades políticas, estéticas e afetivas. É nesta direção que reconhecemos que a cena brega do Recife é um profícuo ambiente para se pensar as conveniências performáticas: os garotos de classe média que se fantasiam de bregueiros para curtir uma noite; as jovens que vivem as “piriguetes” numa noite estratégica de flerte e sedução ao som das batidas musicais bregueiras. Uma geografia humana que se forma e se dissipa em função de circunstâncias não previstas. Aparição e apagamento. Luz e sombra. Visualidade e invisibilidade. 3. A ideia é pensar aspectos ligados à efemeridade

dos engajamentos ou o que Edgar Morin chama de “apropriações precárias” nos agrupamentos. Neste sentido, começamos o texto falando num certo tom classificatório de classe social e faixa etária, no entanto, a perspectiva é desconstruir essa fala comum e acionar a ideia de conveniência performática para tentar escapar de uma certa ambivalência marxista. A nossa direção é a de reconhecer a efemeridade como uma forma legítima de engajamento, inclusive, pensando uma política que se faz na frivolidade das fruições. Reiteramos, portanto, a performance como um lugar privilegiado para tratar das encenações no 133


brega do Recife e, de maneira mais ampla, das cenas musicais. Pensar performance nas cenas musicais significa entender formas de atuar, papéis sociais, lugares de fala, de encenação que se formam diante de gêneros musicais, contextos econômicos, políticos e estéticos.

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capítulo


Quando a piriguete encontra o cafuçu



Sexta-feira, 22 horas, calçada defronte ao Atlético Clube de Amadores, no bairro de Afogados, cidade do Recife. Cartazes afixados nas paredes externas convocam: “A Noite das Novinhas”. Trata-se de um show com atrações do brega do Recife. Os nomes em destaque nos cartazes são dos cantores MC Sheldon e Michelle Melo. O encontro dos dois, no mesmo palco, sintetiza mais um “plus” na festa. MC Sheldon e Michelle Melo não são apenas os chamarizes de grande parte dos cartazes de shows do gênero do Recife. Eles são os expoentes de uma cena musical que tem artistas reconhecidos localmente, casas de shows específicas, produtores de músicos e bandas, produtoras de videoclipes, ambientes virtuais de compartilhamento de músicas e fóruns de debates também virtuais para fãs. MC Sheldon e Michelle Melo subirão ao palco do Atlético Clube de Amadores para, juntos, cantarem “Se Me Trair, Vou Te Trair Também”, faixa cujo videoclipe já ultrapassava mais de dois milhões de visualizações na plataforma de compartilhamento de vídeos digitais Youtube, na ocasião. Estamos na calçada, em frente ao Atlético Clube de Amadores. E a calçada é reconhecida como o espaço do “esquenta” para a noitada regada a brega. Na calçada, estão dispostos carrinhos de cachorro-quente e de espetinho – todos oferecendo cerveja barata a R$ 1,50 o latão (de 473 mililitros). A fumaça dos espetinhos e o forte odor de carne/frango sendo assados emoldura a chegada dos frequentadores. Ali, na entrada

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do clube, já se dispõem as pessoas. Homens e mulheres com idades entre 16 (embora menores sejam “oficialmente” proibidos) e 35 anos – alguns homens aparentando os 40/50 anos são vistos. Mulheres com mais de 40 anos (as “coroas”) são minoria. A calçada como este ambiente de “aquecimento” para a noite, é, sobretudo, local de paquera, flerte. Homens estacionam suas motos, carregam capacete. Alguns, menos “abastados”, param a bicicleta escondida. Outros fazem questão de expor o carro. Estacionam o veículo próximo às mesas e cadeiras de plástico dos carrinhos de cachorro-quente e espetinho. Um deles abre a porta do automóvel e liga o rádio. Ouvem-se canções de brega – aquelas que, daqui a cerca de uma hora, eles ouvirão, ao vivo, dentro do clube. Notamos uma relação de esconder/revelar a situação econômica dos homens observando onde eles estacionam os meios de transporte: bicicletas (que denotam homens mais pobres) são quase que “escondidas” na rua lateral ao clube; motos ficam paradas defronte à entrada do clube e os carros estão localizados exatamente na rua principal, bem próximos dos “focos” de grupos femininos. Esta calçada de frente ao Atlético Clube de Amadores, nos dias de shows de brega, se configura num espaço de sociabilidade extensivo ao próprio clube. Alguns frequentadores chegam a atestar que ficam somente ali, “aquecendo”, e nem entram no evento. É o que eles dizem em tom popular:

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“tomar uma na frente” e ir para casa. Muitas vezes, a compensação do valor do ingresso de um show (R$ 20) é convertida informalmente, pelo público, em cerveja. “Dá para tomar seis Skol (cerveja) latão e ainda sobra”, calcula um deles. “E aqui, você ainda vê as novinhas cheirosinhas e arrumadinhas”, pondera outro. As novinhas são como o MC Sheldon e o MC Boco, autores da música “Nós Gosta é de Novinha” chamam as mulheres jovens dos seus shows, que têm “franjinha de lado” e são “gostosinhas”. A disseminação do termo novinha no brega recifense reverbera o imaginário de sexualidade e performance de gêneros (masculino e feminino) que habita canções e encenações performáticas nos shows e casas noturnas dedicadas a este segmento musical. A novinha é o eco da ninfeta, da lolita, a menina jovem e sedutora, sexualmente voraz e apta a convocar o homem para a noite de sexo20. O termo é extremamente problemático na medida em que aciona um imaginário que constitui indicativos de pedofilia, encontros entre homens mais velhos e mulheres mais novas – algo que, veremos mais adiante, de fato, se materializou na cena brega do Recife, a partir de assédio a menores em programas de televisão em Pernambuco. Utopia da conquista masculina, a novinha aparece como encenação da dicotomia da menina/mulher que parece ser o “troféu” de uma noite que começa no flerte com mulheres e novinhas nas calçadas. A impressão que se tem é que,

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quando um homem “pega” uma novinha, na noite, e a leva para o “espelhado” (que, na verdade, é o “quarto espelhado”, metáfora para o motel), ele adquire status em seu grupo de amigos. Coroas seriam mulheres mais “fáceis” porque estão, segundo entrevistados, “carentes e fogosas”. Novinhas, em contrapartida, são mais “difíceis” porque se configuram em “presas” muito assediadas. A oferta de parceiros para as novinhas é maior, portanto, elas podem escolher. Já as coroas...

Distinção na bebida alcoólica “Você vai querer a lata ou o balde?”, me pergunta o ambulante, em frente ao Atlético Clube de Amadores. “A lata” é apenas a latinha da cerveja. “O balde” é um balde, desses de plástico que se usa para lavar a casa, com cinco latas de cervejas. Faço a negativa com a cabeça. Nem um, nem outro. Não bebo cerveja. Mas provo do espetinho dele: frango com bacon. “Com farofa?”, sim. Molho de alho? Pimenta? Joyce Coelho, 22 anos, está ao meu lado, esperando o espetinho dela também: carne com frango. Puxo assunto sobre a qualidade dos espetinhos, sobre paquera, sobre o preço das bebidas. Três outras amigas de Joyce entram no papo, “tás sozinho?”, uma delas estranha. Joyce parece ser a líder das meninas. Convenceu, inclusive, Diana Silva, 19, a vir para a festa – mesmo Diana sendo evangélica: “A mãe dela num sabe que ela tá aqui”, diz Joyce.

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Depois de umas latinhas de cerveja de Joyce e eu tomando minha Ice, emerge na conversa o assunto dos “caras que se acham”. Começo a usar gírias tipo “bofe”, “cafuçu”, as meninas riem, tiramos onda e aquilo que eu observei, sobre o jogo performático dos meios de transporte (os homens que chegam de carro ou moto se exibem, já os que vêm de bicicleta, discretamente, a escondem na rua ao lado) também ganha escopo no tocante às bebidas alcoólicas consumidas na festa. Não só as bebidas, mas também, como se bebe. Estamos diante das dimensões performáticas do ato de sair para beber. Joyce me diz que eu não tenho cara de quem bebe cerveja. “A gente sabe logo”, deduz. “Você é fino, chique, só bebe uísque. Ice é porque tu tás aqui”, diz, com uma dose de ironia. O consumo de bebida alcoólica como ferramenta distintiva é uma prática dentro dos jogos de sedução e flerte nas festas e bailes populares. Teóricos sociais como Thorstein Vebler (1987) e George Simmel (1987, 1998a, 1998b) estão entre os articuladores das ideias entre consumo e existência urbana. Foi Vebler, inclusive, quem instituiu o “consumo notável” da então nova classe burguesa em que a identidade de classe poderia residir não na ocupação, na sua categorização a partir da força do trabalho, mas em padrões de consumo que serviam para construir estilos de vida distintivos e expressar status. Neste sentido, observa-se, para além de disposições de status, também marcações de gênero den-

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tro do consumo de bebidas alcoólicas nos bailes. A bebida empodera o homem, atribui certas noções econômicas, balizas de virilidade. Quem me explica, utilizando o próprio tom popular e ligeiramente jocoso, é a própria Joyce. Segundo ela, a cachaça é a bebida alcoólica que menos se expõe publicamente. “Já viu alguém numa festa como esta exibindo o copinho da cachaça?”, ironiza. De fato. Joyce liga a cachaça ao consumo “de boteco”, “de pinguço”, sem glamour e, portanto, longe dos “holofotes” das festas. “Sem falar que a tal da cachaça... Ô cheiro triste que deixa!”, revira os olhos. A cerveja é a principal bebida dentro das lógicas distintivas. A marca, naturalmente, cria outros aparatos discursivos de valor. No ano de 2014, as cervejas existentes nos arredores e na festa eram Skol, Brahma, Kaiser, Antarctica e Schin – maciçamente. Já animada, Joyce diz que eu tenho cara de tomar “aquela cerveja verdinha”. Heineken? Stella Artois? Rimos. Percebo um intenso comércio de copos coloridos com a inscrição de nomes de artistas neles. Todos com cores gritantes, acesas. Num rosa pink, está estampado o nome “Garota Safada” (banda original do cantor Wesley Safadão); num outro verde-limão, está “Aviões” (na verdade “Aviões do Forró”); num amarelo, tem-se “Luan Santana”. Cada copo é vendido por R$ 5 e trata-se também – percebo – de uma estratégia para “esconder” possíveis bebidas que não geram status. Vou reconhecendo, pelas falas dos frequentadores, que embora a cerveja não seja em si um sintoma de status,

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ostentar um balde de cerveja funciona como importante artefato de diferenciação. Curioso que o “balde de cervejas” é utilizado tanto por homens para cercar-se de mulheres, mas também de gays e travestis para se rodear de homens também. Numa escala de status na festa, eu estaria – digamos – numa “classe média”, pois minha bebida era a Ice (abreviação da Smirnoff Ice, bebida misto de vodca e limão), em geral, taxada como “bebida de mulher” – pelo sabor ligeiramente doce, pelo caráter de não ser “forte”. A Ice, além de ser mais cara que a cerveja, goza de certo poder por ser à base de vodca – uma bebida que, em tese, não “empacha” como a cerveja. Na época da pesquisa, ainda não havia sido lançada no mercado a cerveja Skol Beats Senses, que lembra em sabor a “família” das Ice e tem alto teor alcoólico. O ponto mais alto do status de bebida recai sobre o uísque (marcas como Johnny Walker, Jack Daniel’s são citadas, inclusive, em canções, como parte do universo das festas que reúnem MCs e novinhas). Esta lógica das bebidas alcoólicas como atribuidoras de status nas festas populares é pensada aqui sob a alcunha do mapeamento de estilos de vida marcadamente agenciados por marcas, padrões de beleza e poder encenados midiaticamente. A partir de uma sociologia da cultura jovem, desenha-se a noção de estilo de vida para abarcar os padrões de consumo e uso (de bens materiais e simbólicos) associados a diferentes grupos e classes so-

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ciais. Dentro dos Estudos Culturais, os estilos de vida foram pensados como importantes maneiras de reconhecer identidades de grupo e singularidades dos sujeitos, valendo-se de ideias como expressão e escolha de itens e padrões de comportamento como codificações sociais. Estilos de vida perpassam biografias dos sujeitos, enlaces afetivos, geográficos, culturais, históricos e nos interpelam num constante diálogo entre autonomia e incorporação; ordens individuais e de grupo.

O corpo alcoolizado como performance Eu e o grupo de amigas de Joyce seguimos bebendo e conversando amenidades na frente do Atlético Clube de Amadores. Diante do mapeamento de um certo “capital social” das bebidas alcoólicas, a partir das falas dos próprios frequentadores, vou reconhecendo que, inclusive, é possível falar da bebida alcoólica como um mobilizador, um agregador dos sujeitos, promovendo enlaces que turvam as relações entre flerte, coleguismo, amizade e sexualidades. Pensar a bebida alcoólica como este agenciador de proximidades, de formação “em torno” dos sujeitos e dos grupos, talvez nos ajude a entender os jogos e disposições corporais que se encenam nas formas de estar em ambientes festivos. Começo a perceber que a ideia de estar bêbado ou bêbada, aparece atrelada à noções como disponibilidade e permissividade.

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Os jogos performáticos entre pessoas sob o efeito de bebidas alcoólicas comportam saídas e desfechos improváveis. A inevitabilidade, o acaso, o imprevisto, funcionam como importantes engrenagens no acionamento da bebida, na continuidade dos jogos e dos fazeres noturnos. Joyce me diz que detesta homem bêbado, que homem bêbado é “inconveniente e chato”. No entanto, quando problematizo a fala dela, e elenco um bêbado, “não esse inconveniente, mas um bêbado ‘de leve’, que fica mais ‘safado’”, Joyce ri e concorda: “esse eu adoro”. Rimos. Percebo que estamos falando de zonas limítrofes da performance, de uma área bastante singular, específica, cultural e circunscrita a efemeridades que norteiam um valor em torno de uma performance entre “inconveniente” e “sedutora”. A música brega e os ambientes festivos em que tais canções são encenadas comportam uma série de possibilidades performáticas – algumas delas acionadas pela presença da bebida alcoólica. Como se trata de um estado efêmero, o efeito do álcool sobre o corpo aponta para a necessidade de pensar também a própria ideia de efemeridade, de fluxo e inconstância dos corpos ao longo do período em que se desenvolvem as festas. Uma festa é, portanto, composta por um conjunto de forças que agem sobre os sujeitos, em busca de lazer, diversão, exposição, flerte e indicativos sexuais, evidenciando um quadro em que a música embala as ações, serve como espécie de ritmo para os corpos, possibilita a

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reencenação de problemáticas performáticas das próprias canções e disponibiliza micropolíticas de gêneros nas disputas afetivo-sexuais na cultura da noite. Os corpos alcoolizados numa festa de brega deslizam disponíveis em suas andanças cambaleantes. Parecem acionar a disponibilidade e interpelação. Os espaços das festas são importantes contextos de enunciações que proporcionam pensar os corpos a partir daquilo que eles revelam em suas efemeridades. Entende-se aqui a performance como uma disposição acionada pela espaço, pelo estar, “o momento de uma exposição, um corpo se expõe e, ao se expor, cria uma situação na qual se expõe, não sem, ao mesmo tempo, criar-se a si mesmo” (BRASIL, 2014). A perspectiva de pensar a performance como uma exposição é, para André Brasil, uma forma de reconhecer um ato que se faz, que há um “durante”, ou seja, um momento de se fazer. Esta perspectiva nos parece útil para pensar as estratégias dos corpos alcoolizados nas festas de brega na medida em que é possível falar em usos e estratégias dos corpos sob efeito do álcool como uma maneira de refletir sobre como os espaços agem sobre os corpos, impelindo certos traquejos performáticos como convenientes ou oportunos dentro de determinadas balizas sociais. Quero aqui também apontar um debate em torno da performance do corpo alcoolizado como uma espécie de ge-

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radora de capital erótico/sexual no contexto da cultura da noite. Pensando que os espaços das festas são marcados por disputas em torno de sujeitos que se dirigem ao ato de conquistar o outro, flertar, paquerar, convencer, seduzir, é preciso levar em consideração aquilo que chamamos aqui de capital erótico/sexual. No contexto sociológico, a ideia de capital está atrelada a ter dinheiro, propriedades ou perspectivas de ação. No vocábulo dos sociólogos, o capital social designa aquilo que chamamos de relações sociais ou a capacidade de mobilização em torno de ações. “Ter relações”, capital social, significa uma espécie de destreza de formação de redes de amigos, conhecidos, sujeitos que nos remetem às redes de relações – públicas ou particulares – que as pessoas mantêm. Pierre Bourdieu (1979, 1989, 1996, 1997, 2001) faz uso da noção de capital para descrever os recursos de que dispõe um indivíduo a fim de adquirir uma posição na sociedade. Distingue, por exemplo, o capital econômico (recursos financeiros), capital cultural (diploma, domínio cultural) e o capital social (redes de relações pessoais e familiares). Fazendo uma leitura econômica e bastante neoliberal das teorias de Bourdieu, a socióloga Catherine Hakim (2012) desenvolve o conceito de “capital erótico”, no qual, beleza, sex appeal, carisma, elegância, entre outros, seriam importantes chaves para as condutas e valores agregados numa cultura. O capital erótico, portanto, estaria marcadamente centrado no cor-

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po e na performance, aquilo que se exibe como aparência e gesto, maneira de se apresentar e posicionar. Como socióloga e economista, a leitura que Hakim faz do capital erótico está bastante inclinada a pensar o universo corporativo, inclusive, as relações de gênero dentro deste contexto. Proponho deslocar o olhar para as festas periféricas e pensar o capital erótico dentro de uma perspectiva das disputas de corpos e performances em ambientes festivos, destrezas e pedagogias da sedução e do flerte. Saber “chegar”, se fazer “disponível”, de “difícil”, conduzir a narrativa da paquera, seus acionamentos e entraves, parecem estar na partitura possível para pensar o capital erótico. A bebida alcoólica, os corpos, as roupas, os gestos constroem, juntos, uma situação comunicacional em que estados emocionais deslocados acionam ideias como acaso, descontrole, selvageria. A vulnerabilidade dos corpos alcoolizados precisa também ser pensada na ordem da violência, daquilo que impele a oportunidade também para “se aproveitar” de corpos em instabilidade. Diante desse contexto, os espaços das festas são pontuados por performances e corpos alcoolizados que se encenam disponíveis e acessíveis ao “esbarrar”, ao toque, àquilo que parece inusitado, pernicioso e, também, erótico. Espaços como a calçada (o “aquecimento”, o início da festa, a exposição das marcas de cerveja, de Ice ou uísque), a pis-

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ta de dança (dedicada ao ato de dançar, suar, se exibir para o outro, mas também reconhecer que estar suado/suada significa também perda de capital erótico, segundo me diz Joyce), os corredores (em seu esbarrar, tocar, pedir licença, olhar mais perto) e também os banheiros (nos jogos tanto de se embelezar, se olhar no espelho, quanto da verificação de corpos fora do jogo performático externo).

Desejos deslizantes na festa brega O Atlético Clube de Amadores, sua calçada e ambientes internos, são locais de performatização de jogos de sedução e flerte. É nesta perspectiva que nossa observação se delineia. Temos ali o que Richard Parker (1999) classifica como uma “geografia do desejo” do clube noturno, espaços que são ressignificados diante de uma lógica de performance de flerte e “pegação”, ambientes que existem para serem etapas nas fases de paquera, abordagem e “pegada”. Este ambiente banhado por pouca luz, muitos becos e ambientes apertados é o lugar ideal para “se esbarrar”, roçar os corpos, tocar no outro. Tocar este, que pode se reverter, num beijo, numa “pegada” no quadril ou mesmo num dispor os corpos juntos, quase como em um passo de tango ou de forró. Aproximação intensa e excessiva. Esses ambientes sexualizados são uma instância enunciativa das canções e da imagética do brega. A cena brega da cidade do Recife apresenta uma curiosa dicotomia: de um

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lado, observa-se a profusão de bandas com vocais femininos sussurrados exaltando o poder feminino; do outro, a aparição de MCs (mestres de cerimônias, assim como no funk carioca) que discorrem nas suas letras sobre o caráter sedutor da figura masculina. Bandas como Metade, Lapada, Musa do Calypso, Swing do Pará, Toda Boa, Sedutora, Bateu a Química, entre outras, são a própria performatização das mulheres sedutoras. Letras sobre traição (que popularmente se chama de “gaia”), superação, “dar o troco” num homem traidor, entre outras abordagens, fazem parte da dinâmica das canções de brega. As cantoras do brega são fortemente inspiradas pelas cantoras pop, ou divas pop, como Madonna, Lady Gaga, Shakira, Laura Pausini, Ivete Sangalo, entre outras, agenciando um estar no mundo pautado pela ideia de feminilidade empoderada, consciência corporal, diversão, entretenimento e aspectos políticos ligados a mulheres e homossexuais. O debate em torno das questões de gênero faz parte da partitura de questões de Judith Butler em seus estudos sobre gênero e sexualidade. Numa primeira leitura, podemos pensar as abordagens de gênero como grandes campos de embates em torno de masculinidades e feminilidades, opressões e subjugamentos, quem manda e quem obedece. No entanto, essa chave de interpretação cairia na mesma falácia que os próprios estudiosos sobre gênero tanto criticam – o binarismo – e

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apontariam, portanto, soluções ancoradas em torno de um claro embate (para usar a metáfora bélica: um “inimigo”). Talvez o desafiador é reconhecer que uma abordagem de gênero conectada à ideia de “recusa ou adesão” estaria centrada numa observação do fenômeno que excluiria suas contradições, seus embates “internos” e múltiplos agenciamentos. Portanto, a tentativa aqui é perceber que o debate em torno das premissas de gênero deve ser pensado na ordem das efemeridades, dos acontecimentos em situações, de uma certa ordem enunciativa que se faz e se desfaz constantemente, afirmando e negando na mesma proporção, na mesma intensidade, provocando anulações, deslocamentos, inclinações, desníveis. Pensar gênero significa reconhecer os jogos de poder, sem dúvidas, mas, sobretudo, como estes jogos são jogados, durante, aquilo que se constrói diante dos olhos, fazendo aparecer algo. Por isso, a discussão sobre gênero acopla outra premissa: a da performance. Como corpos encenam gêneros, em que contexto, diante de que agenciamentos. Se pensarmos que até o sexo é uma categoria gerada pela biologia e pela medicina, “politicamente investida em sua integralidade”, não existiria uma verdade (ontologia) em torno dos acionamentos entre sexo e gênero. Parafraseando Simone de Beauvoir – e contestando-a – Butler atesta: “Não se nasce uma mulher, torna-se uma; mas, além disso, não se nasce feminina, torna-se feminina;

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ainda mais radical, é possível caso faça tal opção, não se tornar nem masculino nem feminino, nem homem nem mulher” (BUTLER, 2015, p. 33). O debate recai em torno da ideia de que gênero não é a expressão do sexo biológico, mas algo performativamente construído na cultura. Dessa maneira, [...] gênero é a estetização repetida do corpo, uma série de atos que se repetem dentro de um enquadramento regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do tempo para produzir a aparência de algo sólido, um tipo natural de ser (BUTLER, 2015, p. 43-44).

Ideias sobre gêneros consistem na acumulação do que está do lado de fora (na cultura) fazendo crer que trata-se de uma expressão de dentro (da natureza). Feminilidade e masculinidade, portanto, seriam mais do que simples expressões, “desempenhos culturais” em que a ideia de naturalidade seria constituída por meio de atos performativos limitados pelo discurso criando um efeito de “natural”, inevitável21. Quero aqui acrescentar a dimensão ficcional nas performances de gênero retomando a ideia de performatividade. Se pensarmos que a atividade da performance é sua teatralidade, a performatividade estaria na ordem de um processo contínuo de reiteração daquilo que forma a eficácia da performance – o arsenal cultural que nos move por outros corpos, outros gestos, fantasmagorias, por aquilo que julgamos ser uma forma bem-sucedida de performatizar. Butler sustenta que atributos de gênero não são expressões de identi-

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dades de gênero, mas performatividades. A recusa pela ideia de “expressão” estaria na relação cartesiana – e binária – que o termo poderia evocar – nos remetendo, por exemplo, aos postulados que ligam conteúdo-e-expressão. Expressão (gênero) como manifestação de um conteúdo (sexo) anularia o processo de significação cultural dos corpos. “Não haveria nem verdadeiro, nem falso; nem atos de gênero reais ou distorcidos – a postulação de uma identidade de gênero ‘verdadeira’ se revelaria uma ficção regulatória”. (BUTLER, 2015, p. 180) Duas faixas da música brega presentificam instâncias de enunciação de gênero. Neste caso, o papel encenado pela mulher no contexto ficcional das canções: “Meu Novo Namorado”, que fez sucesso através da banda Mistura do Calypso22 e “Primeira Vez no Carro”, da banda Toda Boa. A primeira é uma canção sobre superação, volta por cima. Depois de ser abandonada pelo namorado, a personagem da música atesta: “Pintei o meu cabelo, me valorizei/ Entrei na academia, eu malhei, malhei/ Dei a volta por cima e hoje te mostrei meu novo namorado”. Sobre uma camada de teclados e a pontuação da guitarra típica do brega, o refrão da faixa traz a voz da cantora em tom de revanche: “Pensou que eu ia chorar por você?/ Que eu ia sofrer de amor?/ Que eu ia pedir pra voltar?”. O vocal da cantora Priscylla Malta, da banda Mistura do Calypso, parece acentuar um certo padrão de feminilidade evocado por artistas de bandas de forró e

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calypso, como Aviões do Forró e banda Calypso. Já a canção “Primeira Vez no Carro”, sucesso da banda Toda Boa, trata do “jogo de forças” entre um namorado afoito e uma garota, de certa forma, precavida. Os personagens da canção estão prestes a entrar “naquela fase do namoro” em que o sexo se faz presente. Ele quer fazer amor com a namorada no carro, com o vidro “embaçado”, mas ela retruca cantando: “A nossa primeira vez não vai ser no carro/ Não pode ser em qualquer esquina, qualquer beco/ Tem que ser algo especial/ Fora do normal/ Algo sem igual”. Desejo e utopia entram em embate numa melodia que lembra em andamento a canção “Touch My Body”, da diva pop americana Mariah Carey.

Clubes como ambiências das canções Os clubes em que acontecem as festas de brega são, portanto, palcos de performatizações das canções. A menina chega, circula, mostra o “novo namorado”, exibe o corpo malhado. Seja na calçada, dentro do clube, há um jogo de acionar as feminilidades e as instâncias de poder feminino. Perfumes de aromas doces, batom vermelho, olhos marcados por delineadores. Cara de desdém. Unhas pintadas. Os carros estacionados nas imediações do clube podem funcionar como extensão do flerte. Se os dois estiverem muito bêbados e não conseguirem ir a um motel, é no carro que pode “acontecer”. Daí a questão evocada pela canção “Pri-

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meira Vez no Carro”: a primeira vez não deve ser ali, tem que ser algo “especial”. Mas, numa noitada de loucuras, quem sabe se a novinha não termina a noite mesmo “embaçando” o vidro de um carro? A geografia do desejo, como proposta por Richard Parker, parece nos despertar uma questão: diante de um espaço sexualizado, em que os desejos são deslizantes e móveis, as identidades também acompanham este percurso, são identidades-passagens, acionadas naquele momento, diante da conveniência do flerte. Ou seja, na geografia do desejo, os habitantes dos espaços se amalgamam, eles mesmos, com o ambiente, fazendo emergir, por exemplo, facetas e encenações performáticas que estão articuladas às linguagens em fluxo naquele ambiente. Por isso, parece ser sintomático pensar, por exemplo, que uma certa estética do sussurro na fala feminina, diante da abordagem masculina, está intimamente articulada à performance de cantoras do brega. Os corpos se deslocam com movimentos que soam ser análogos aos passos coreografados pelas bandas. É diante deste quadro enunciativo que mulheres acionam seu lado piriguete – e eu me refiro a “acionar”, pois a ideia de piriguete é um tanto quanto pejorativa e as mulheres simplesmente – e deliberadamente – acionam a identidade a seu “bel prazer”, no momento que lhes é conveniente.

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A questão de “acionar” uma identidade de forma estratégica, dentro de uma determinada situação, de forma deliberadamente efêmera, autônoma e, de algum forma, política, nos remete à problemática debatida pela teórica Judith Butler, que em 1990 publicou o seu Problemas de Gênero (Gender Trouble), no qual busca uma desconstrução das configurações de identidade de gênero e propõe um pensamento que se desloca da análise recorrente da questão relacionada a homem e mulher e inclui na questão os indivíduos inadequados ao ideal normativo. O objetivo de Butler é indicar uma incapacidade de coerência da identidade de gênero, que, se pensada em uma estrutura binária e linear, pressupõe uma necessidade de ajuste à norma por parte daqueles que não se enquadram em tais estruturas. Butler aponta que essa configuração do modelo comportamental exigido pela sociedade deixa de lado particularidades anatômicas ou psicológicas que escapam à classificação de normalidade, e exclui a sexualidade como uma multiplicidade de combinações que não surgem a partir da imposição psicossocial23. Com a ideia da performatividade, Judith Butler redireciona os indivíduos excluídos pela norma ao mesmo patamar dos gêneros dominantes, ou seja, o ideal normativo não pode ser determinante na classificação de identidades sexuais enquanto “normais”. O corpo não acata completamente às normas que impõem sua materialização. Nesse sentido, o corpo resiste tanto às intenções do

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sujeito quanto às normas sociais. O que Butler busca é dar visibilidade à importância das discussões de sexo, gênero e sexualidade, para chamar a atenção para a necessidade de legitimar existências que o ideal normativo relegou ao status de “abjetas”.

Piriguetismos noturnos É neste sentido que queremos trabalhar a noção de piriguete como um deslocamento de um certo eixo normativo sobre a constituição do feminino e da mulher. A piriguete, em sua acepção de mulher fatal, sedutora e sexualmente ativa, se constitui numa espécie de deslize da normatização social da mulher inscrita nas retrancas de uma premissa patriarcal, masculina e heteronormativa. Obviamente, como expressão nascida na fala popular, não se sabe a origem do termo piriguete. Há quem suponha que o termo tenha sua gênese na etimologia de “pretty girl” (“garota bonita”, numa tradução), convertida em piriguete pela pronúncia “diferente” dos falantes. Também é possível que o termo piriguete esteja relacionado à palavra “perigo”, ou seja, uma mulher “no perigo” de atacar homens, expor seu desejo. O que parece consensual é de que piriguete é uma classificação de mulheres conhecidas por estarem na balada, geralmente solteiras, que escolhem com quem e quando querem “ficar”, autossuficientes e que não se importam com a opi-

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nião alheia24. A piriguete não costuma ser bem vista pelo público feminino e muitas vezes nem mesmo com o masculino. Tachada de vulgar, ocupa um espaço de identidade invisível, uma vez que reforça um deslocamento de um certo caráter moral e de um habitus socialmente inscrito. Trata-se de uma expressão bastante usada de forma cômica, em tom de brincadeira. Foi por meio da cantora Ivete Sangalo que a expressão piriguete acabou sendo disseminada midiaticamente quando ela própria se intitulou “Veveta Piriguete” ou “Piriguete Sangalo” na apresentação no Festival de Verão de Salvador, no ano de 200625. Deslizante, móvel: uma identidade “na penumbra”, assim podemos pensar na piriguete. A ideia de uma identidade na penumbra nos aciona espaços de claro e escuro para a performatização de gêneros. A piriguete estaria se deslocando constantemente do escuro para o claro, num jogo de revelar e esconder que se materializa nos embates entre a sombra do status quo patriarcal e masculino e uma maneira premente de acionar o desejo e a sexualização dos discursos e prazeres do feminino. A ida ao clube noturno, no show de brega, aciona um descortinamento da noção de piriguete. Ali, este fluxo identitário não só se aciona, como ganha destacamento valorativo, passa a ser uma moeda de troca diante das possibilidades de encontros e tensões sexuais. Ou seja, ser piriguete num show de brega não é só bem-vindo como também aparece como uma extensão da mulher cantora de música brega.

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A virilidade do cafuçu Talvez, a ideia de definição do que seria o cafuçu seja ainda mais complexa que a da piriguete. De maneira simplista, poderíamos definir cafuçus como homens de camadas populares que acentuam a masculinidade com cabelos curtos, roupas justas evidenciando braços e peitorais definidos e também performatização do poder através do desdém em relação às piriguetes. Ao contrário da ideia da piriguete, que já foi legitimada, por exemplo, por uma artista como Ivete Sangalo, o cafuçu ainda segue obscuro em sua dinâmica de inserção nas formas de encenação social. Sobretudo porque um homem que seja cafuçu dificilmente se assume cafuçu. Há um saber-implícito e uma permissividade para que ele seja “chamado de”. Em outras palavras, chama-se alguém de cafuçu, mas este alguém dificilmente se intitula cafuçu – exceto em situações mais cômicas ou extremas de questionamento sobre sexualidade (não à toa, no Carnaval, há dois blocos carnavalescos que levam o nome de cafuçu: um em João Pessoa (PB) chamado de “Cafuçu” e um em Recife (PE) de nome “I Love Cafusú”). Há, naturalmente, uma lógica de banalização do termo cafuçu, mas reconhecemos que tal uso excessivo soa evidenciar aquilo que a teórica e ensaísta Susan Sontag (1987) já havia mencionado em seu texto “Notas Sobre o Camp”: possivelmente, cafuçu é mais uma sensibilidade, um estar, algo de fato intangível que passa pela noção de masculinidade e é acionado sempre que possível, sem poder, claramente, localizar simplesmente que o cafuçu faz parte de grupo social, uma faixa etária, uma classe social. 163


O termo cafuçu pode, etimologicamente, estar próximo da denominação étnica “cafuzo”, embora também saibamos que não se trata de algo estritamente étnico, nos usos contemporâneos do termo. O “cafuzo” é a designação dada no Brasil aos indivíduos resultantes da miscigenação entre índios e negros africanos ou seus descendentes. Em regiões do Brasil, são também conhecidos como “taioca”, “cafuçu” ou “cariboca”, como no Maranhão, na Bahia e em algumas áreas do Pará e do Amapá. Se lembrarmos, por exemplo, de toda premissa sexualizada que havia entre os escravos e as “sinhás”, os embates sociológicos já traduzidos por Gilberto Freyre em seu Casa Grande & Senzala (1933), não é difícil constituirmos a formatação do imaginário em torno da figura sexualizada do cafuçu. Trata-se de uma construção histórica e sociológica. É, portanto, a perspectiva sexual que está em jogo ao se usar o termo cafuçu. Nos usos contemporâneos, chama-se cafuçu também aquele homem com grande disposição e competência sexual. Eles podem ser rígidos com palavras, mas são doces como amantes – não costumam deixar mulheres “carentes”. Adentrando na esfera do clichê, marcas de masculinidade, de uma certa aura rude, podem fazer com que o termo cafuçu também seja empregado: homens que exacerbam a “testosterona” em jogos de futebol, em lutas livres, que xingam, falam alto, coçam a genitália, cospem. Figuras masculinas de barba por fazer, ligeiramente descuidados, avessos a vaidades etc. De aspecto físico, cabelo com algum efeito de gosto duvidoso, corpo trabalhado nas academias de ginástica também podem evocar uma busca por exacerbar o masculino. Embora, a barriga saliente de chope, o pé “rachado”, os pelos no corpo, o gostar de comidas pesadas 164


também possam ser registros de “cafucice”. O termo cafuçu pode também estar atrelado a profissões. Algumas são a própria performatização deles: motoboys, jogadores de futebol, entregadores de pizza, garçons, caixas de supermercados, policiais, bombeiros, instrutores de autoescola etc. Podemos nos remeter ao cafuçu como o trabalhador braçal, que sabe trocar uma lâmpada, um botijão de gás, pintar uma parede – uma espécie de utopia de modelo de masculino almejado dentro da cultura gay e dos fetiches em torno do masculino. “Cafuçu é aquele sujeito que não tem muito requinte intelectual nem disposição financeira. Tampouco liga para moda. Mas que te leva no brega e te faz sentir mulher”, diz uma amiga. Estamos diante de uma questão que parece ser a de evidenciar uma hiper-masculinidade, talvez, um contraponto à premissa metrossexual e de “homem sensível” tão disseminada midiaticamente. Na cultura noturna do brega, a identidade cafuçu também é acionada pelos homens frequentadores. Muito embora, assim como a questão da piriguete, o cafuçu também não seja algo deliberadamente evidenciado. Trata-se de uma conveniência acionada em momentos específicos, sobretudo nos jogos de poder do flerte. Na verdade, há uma micropolítica na paquera: estamos diante de um embate de forças, de convencimento e de conquista. “Ficar” com alguém na noite significa, antes de tudo, convencer alguém. E um dos “argumentos” para esta conquista é o poder. No caso do homem frequentador do brega, um dos sintomas do poder é o meio de transporte e a presentificação dele diante do automóvel ou moto. A questão econômica parece ser uma de165


terminante na lógica de poder e distinção do homem. Por isso, a questão da masculinidade exacerbada e da premissa cafuçu funcionam articuladas a lógicas de poder. Ao contrário da piriguete que precisa atuar sorrateiramente, quase que na surdina, o cafuçu adota a performatização da “greia” como ethos de seu discurso. Ele pode falar alto, “chegar junto”, usar do humor, da “malandragem” para conquistar. Explicitar seus gostos por “cafucices” e também trazer à tona indícios de que é sexualmente interessante.

A diva bregueira Acionar a piriguete na balada tem como cúmplice as próprias cantoras que performatizam este personagem. Aqui, falarei mais detidamente de Michelle Melo, que se intitula como “a primeira que gemeu na cena bregueira” do Recife ao simular sussurros e gemidos na canção “Lua de Mel”, no ano de 2002. Os gemidos e sussurros de Michelle Melo criaram uma espécie de padrão vocal na cena do brega recifense, inclusive funcionando como um fator de diferenciação da dinâmica vocal de artistas femininas do forró eletrônico e da axé music – mais “gritados”, digamos. O tom mais “baixo” encenado por Michelle Melo reporta a um tipo de performatização da piriguete: mais sorrateira, silenciosa, agindo de maneira escusa – como supõe a letra do funk “Piriguete” (que atesta que a mulher-piriguete gosta de homem casado, seria uma “destruidora de lares”). O sussurro de Michelle Melo é uma espécie de forma de agir da piriguete em cena, na balada, na cultura da noite. Podemos pensar, por exemplo, no sussurro como uma performance: um 166


corpo deslizante, que convoca a sua visibilidade de forma específica, que se aproxima de forma também suave, quase sem ser percebido. Corpo este que fala ao pé-do-ouvido, que balbucia palavras em tom mais baixo, como parte integrante do jogo de sedução. Esta forma de agir e performatizar o sussurro e o gemido por Michelle Melo também evidencia reverberações da imagética das cantoras da música pop internacional, como Mariah Carey, Whitney Houston, Beyoncé, Shakira, Madonna e Britney Spears, entre outras. O que se delineia é uma apropriação pela cantora de brega de formas consagradas midiaticamente de encenação/performatização da mulher: neste caso, a ideia da diva pop. Percebemos, enquanto encenação performática, o encontro entre a ideia da diva pop internacional e a piriguete de periferia presentificado na figura de Michelle Melo, que é chamada também de “Madonna do brega”, em função de uma postura assumidamente sexualizada nos seus shows. A cantora performatiza, na periferia do Recife, a imagética sexualizada e extremamente feminina das divas internacionais, evocando, inclusive, em seus shows, referências a Madonna, Britney Spears, Shakira e Janet Jackson. Num dos seus espetáculos, assim como já fizeram Janet Jackson e Britney Spears, ela chamava um homem da plateia para amarrá-lo numa cadeira e cantar dançando em sua frente e ainda tocando no seu corpo. A presença de bailarinos musculosos e sem camisa, em cena, também dialoga com premissas da cultura gay bastante frequentes em shows de divas pop internacionais. “Eu adoro ficar vendo DVDs de shows de cantoras internacionais para me inspirar nos figurinos. Não faço cópia, é

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inspiração, admiração pelo trabalho delas”, diz Michelle Melo. A performatização de Michelle Melo que reverbera nas encenações no Atlético Clube de Amadores, com as mulheres (novinhas ou coroas) assumindo a sua dinâmica piriguete, tem um sentido: seduzir o cafuçu, este homem másculo, ligeiramente rude, possivelmente musculoso, que habita também as calçadas e áreas internas dos clubes que tocam brega, no Recife. Mais uma vez, é preciso compreender como essas identidades amorfas são convocadas no jogo de encenação da noite.

O “gangsta” do brega O artista MC Sheldon se notabilizou no Recife por disseminar em suas canções o termo “novinha” (referindo-se às adolescentes presentes nos seus shows) e a perspectiva de “dar pressão” (fazer sexo voraz) com elas. Trata-se de um cantor (MC de “mestre de cerimônia”, análogo ao funk carioca) que apareceu na cena brega do Recife entre os anos de 2008 e 2009, ficando mais famoso em 2010, quando foi acusado pela Justiça de Pernambuco como “incitador da pedofilia”, em função do conteúdo que disseminaria o interesse sexual por meninas menores de idade. A partir deste episódio, MC Sheldon ocupou páginas policiais de jornais locais e compôs canções como “Vem Novinha Tomar Toddynho”, cujos versos dizem: “Mas se eu mato, eu vou preso/ Se eu roubo, eu vou preso/ Se é pra pegar novinha/ Eu vou preso e satisfeito”. Neste sentido, é possível reconhecer que MC Sheldon cristaliza o discurso do “bad boy”, tão comum na música pop. Sua postura está próxima das experiências consagradas pelo “gangsta 168


rap”, subgênero do rap, que tem por característica a descrição do dia a dia violento dos jovens urbanos26. A palavra “gangsta” deriva de “gângster”, soletrando-a na pronúncia do inglês com acento negro. As suas letras são violentas e normalmente tendem a criticar a sociedade e revelar a dura realidade das ruas. Geralmente, os autores tinham problemas com a lei ou já tiveram envolvimento com gangues. Ice-T, Tupac Shakur, Notorious BIG, Snoop Dogg, entre outros, passaram pelos tribunais por atividades relacionadas com o tráfico de drogas, porte de armas, assassinatos etc. O “gangsta rap” também é conhecido pelas acusações, de promover crimes como assassinatos e tráfico de drogas; além da promoção do machismo, promiscuidade, preconceito, vandalismo e desrespeito às autoridades. A questão não é assumir um tom moralista nem reconhecer que MC Sheldon “imita” os integrantes do “gangsta rap”, mas desvelar nuances de construções de discursos e performances midiáticas que são próximas, compondo um quadro em que é extremamente problemático não olhar o “entre” as duas expressões. O que queremos apontar nesta aproximação entre uma certa estética da masculinidade e do “cafuçu” do brega recifense com a lógica do “gangsta rap” é que se observa contornos particulares nos atos performáticos em análise. Se já apontamos anteriormente aqui a imagética consagrada pela cultura midiática das mulheres fortes, cheias de atitude, mas que fraquejam em alguns momentos (a questão da diva do pop incorporada na lógica do brega); há também o embate com o homem másculo, rude, marginal e que é difícil de “se apaixonar” (como esse que é performatizado também na cultura de

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periferia do Recife). É desta zona de atritos que observamos as movimentações e embates das identidades. Trazemos à tona também contornos de que “ser fora da lei”, “outsider” e “bad boy” pode funcionar, de alguma forma, como um valor dentro da construção de uma masculinidade atrelada ao mercado de música. E, no caso específico do MC Sheldon, que é um dos expoentes da cena de brega do Recife, esta dinâmica identitária perpassa por uma imagética cristalizada do “gangsta rap” e da cultura do hip-hop que foi incorporada pelo funk carioca e reprocessado no tecnobrega recifense. A própria imagem do MC Sheldon já nos dá indícios de suas filiações associadas ao “rapper” norte-americano: casaco, correntes de ouro, a faixa na cabeça ligada a uma marca fashion-esportiva (neste caso, a marca Nike) e a configuração da cultura Black. Nossa tentativa é compreender o brega do Recife a partir de três eixos de investigação: 1. Os discursos encenados pelos artistas da cena em suas

canções, shows, atos performáticos e DVDs largamente difundidos através da pirataria, como aportes que dialogam com formas consagradas de midiatização de matrizes identitárias do feminino (a figura da diva pop) e do masculino (a imagética do “gangsta rap”); 2. Os ambientes nos quais esses atos performáticos

acontecem, suas geografias, performatizações e encenações de gênero através do jogo de sedução e, consequentemente, a presentificação do universo das letras

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das músicas em espaços codificados; 3. E no acionar das identidades de piriguete e cafuçu dos

frequentadores dos bailes de brega do Recife como uma maneira de desenvolver os embates de identidades marcadamente angariadas no desdém e no “ar de superioridade” e “atitude” quase como uma performatização do universo cantado por artistas como Michelle Melo e MC Sheldon e as materializações de poder encenadas através da posse de celulares, câmeras fotográficas e distinção em ambientes como shopping centers, praias e clubes noturnos.

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capítulo


Bregueiros midiatizados



Se, outrora, a melhor forma de se atualizar sobre os lançamentos da música brega no Recife era recorrer às famosas “carroças de CD pirata”27 que circulavam por locais de intensa movimentação (a praia de Boa Viagem, o Centro e saídas de supermercados em bairros populares), desde 2005 é com as possibilidades da internet e no compartilhamento de produtos (canções, vídeos, toques de celulares, wallpapers etc) que se dá a estreita relação de consumo da música brega. Sites, blogues, aplicativos e redes sociais funcionam como ambientes para download de arquivos, compartilhamento de músicas e vídeos. Celulares passam a ser sintoma de distinção, operadoras de telefonia são citadas em letras, o Iphone se “orkutiza” (gíria que virou sinônimo para “popularização”) e, desde 2010, que o brega da cidade do Recife passa a ser atravessado pela questão da tecnologia. Este capítulo que aqui apresentamos resulta numa observação da cena de brega da capital pernambucana e no registro de zonas de tensão resultantes das apropriações tecnológicas e da lógica de popularização da tecnologia junto a artistas, fruidores e fãs de brega. As festas bregueiras funcionam como ambientes que presentificam os jogos de disputa, poder e performatização que acionam questões ligadas também à tecnologia. Demonstração de poder é, portanto, um requisito para o embate entre mulheres e homens no brega, e o celular é um objeto capaz de evocar noções distintivas. A cantora

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Michelle Melo, que tem sua performance fortemente marcada pela sensualização, é usuária de redes sociais como Instagram, Snapchat e Facebook, e atesta: “Nosso ‘lucro’, com a internet, é o fato de não gastarmos com divulgação. Tenho também um contato direto com os fãs”, observa. Segundo a cantora, as redes sociais não apenas contribuem – e muito – com a difusão do que é produzido pelos grupos de brega, mas estabelecem um elo com o público – que pode também resultar em vigilância. Um aspecto que chama atenção nas apropriações e ressignificações de marcas pelos artistas do brega diz respeito a como Michelle Melo se relaciona com a marca Apple. Famosa pelo símbolo de uma maçã, a tal “Apple”, para a cantora (que tem na sensualidade de suas performances um dos trunfos) acaba sendo sinônimo de sensualidade. “É o celular da maçãzinha... E ela já vem mordida”, diz Michelle, sorrindo, e comentando sobre a configuração da marca da Apple: “tem tudo a ver comigo”. Marcas são mediadores de status e de legitimações culturais dentro da cena brega. Aparelhos de celular também. Artistas exibem seus aparelhos que denotam poder (Michelle Melo comenta sobre o Iphone) e fama (na canção “Estraladinha”, Sheldon fala sobre o “estralar” da câmera fotográfica do celular das “novinhas” quando ele chega ao shopping center) e, neste sentido, tem-se a disposição da apropriação tecnológica como aparato

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da compreensão dos jogos performáticos (captação de imagem, exibição em redes sociais, postagem de fotos etc). No entanto, entre os frequentadores da “festa bregueira”, há uma ressignificação das questões apontadas pelos artistas. Se Michelle Melo exibe seu Iphone e Sheldon canta sobre as máquinas fotográficas de celular, quem vive o dia a dia da cultura de periferia aponta para um outro critério, menos hegemônico, ligado às marcas e disposições tecnológicas de celulares. Ao invés de exaltarem, reproduzindo uma forma consagrada de status através das marcas, artefatos da Apple, Samsung, Nokia, entre outros, evidencia-se como critério de diferenciação e opção por celular o fato do aparelho ter a possibilidade de dispor vários chips. “Eu escolho o meu celular porque ele tem espaço para três chips”, atesta a estudante Nailana Souza, de 22 anos, que é do fã-clube de Michelle Melo e estava na “festa bregueira” do Clube Atlético de Amadores. Sobre as marcas, encontramos uma atitude um tanto quanto irônica em relação a uma certa normatização, por exemplo, da consagração de aparelhos da Apple (Iphone) ou Samsung (Galaxy). Grande parte dos entrevistados na festa bregueira atestavam ter um celular “xing-ling” (que eles não definiam) e riam ao falar que não sabiam qual era a marca. O termo “xing-ling” trata, de forma geral, de celulares “piratas”, que não têm marcas e são comercializados em grandes

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aglomerados comerciais do centro da cidade. São, em geral, bem mais baratos que os aparelhos “originais”. Obviamente que aparelhos hegemônicos como Iphone, Samsung, Motorola, entre outros, aparecem nas festas e acentuam características distintivas entre os sujeitos.

Máquina e poder O celular, mais uma vez, funciona como uma metáfora para as experiências ligadas a uma estética ou a uma lógica de empoderamento: na sexualização do discurso sobre o homem másculo e cafuçu, o aparelho de celular dá espaço para a questão da operadora de telefonia na premissa para “pegar geral”. Até uma canção foi produzida sobre este aspecto: “Tá Querendo o Quê, Novinha?”, dos MCs Metal e Cego. Ao questionar sobre o que a “novinha” (a menina adolescente que “circunda” a banda) quer, os MCs enumeram: “Tô de Nextel ligado/ Vou ligar no Metal/ Avisa pras novinhas que hoje eu vou ‘pegar geral’”. A ideia de “bem-vindo ao clube”, como acionada pela operadora Nextel, é ressignificada pelos artistas do universo do brega recifense. O “clube” aqui ganha o sentido do “pegar geral” e da “orgia no espelhado”. Trata-se da noção de “clube” da Nextel acentuando disposições sexuais. Uma das principais características, inclusive, da operadora de telefonia está presente na própria canção. O som do “toque” da Nextel (que, na verdade, opera com frequência de rádio) aparece disposto na canção “Tá Querendo o Quê, Novinha?”. Tem-se, portanto, a apropriação do conceito de uma marca de telefonia para reforço 180


dos fluxos identitários ligados ao universo sexualizado do brega. Quero pontuar a forte presença do celular na poética das canções do brega, como artefato gerador de status, de disputas e legitimações entre marcas, mas também como uma “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2004), que produz o humano, integra certa dinâmica que encena a humanidade. Trazendo à tona o conceito de máquina antropológica, Giorgio Agamben nos conduz a refletir sobre a máquina como dispositivo, sendo a própria máquina “um dos sentidos do dispositivo”. O autor chama dispositivo “à capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2004, p. 21). Essa perspectiva foucaultiana de pensamento situa a reflexão de Agamben num quadro em que se propõe debater biopolíticas, formas de controle e acionamentos da vida, da natureza performativa dos indivíduos e daquilo que cerca os sujeitos – e que é de ordem maquínica. Animalidade e humanidade, razão e emoção fazem parte dos pressupostos maquínicos dos dispositivos – no sentido de Agamben. Isto parece significar que está se debatendo os deslizes entre polos de produção de sentido nos usos dos aparelhos maquínicos antropológicos. Reiterando ainda mais Foucault, Agamben destaca que os dispositivos são o “meio através do qual se realiza a pura atividade do governo”, governabilidade esta da vida e também do olhar. Dispositivos teriam, segundo o filósofo, a capacidade de 181


capturar os viventes, dando lugar, por meio desta captura, a processos de subjetivação e dessubjetificação. “Não seria errado definir a fase extrema do desenvolvimento capitalista que estamos vivendo como uma gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos” (AGAMBEN, 2007, p. 23). A respeito deste processo, também segundo o autor, não se trata nem de suprimir os dispositivos, nem de imaginar-se ingenuamente um “bom uso” (para quê? Para quem?), mas de “profaná-los”. Celulares, portanto, são máquinas antropológicas que regem as vidas, governam olhares e nos fazem agir para o outro estabelecendo sempre relações entre o que se mostra, para quem se mostra, evidenciando aspectos de governabilidade que passam por instâncias como regulação, vigilância, crítica, observação. A biopolítica, ou seja, a regência da vida atrelada ao Estado, ganha agentes reguladores no cotidiano, em outras instâncias, inúmeras delas, capazes de “dizer sobre” ações – incentivar, conter, corroborar, negar. Pensar o celular como máquina antropológica talvez nos ajude a compreender seus usos nas canções, no universo poético e das sociabilidades das músicas populares e também periféricas. No caso da música brega em Pernambuco, é possível reconhecer relações de poder nas referências a aparelhos e marcas de telefonia móvel, mas também, uma espécie de regência do celular nas dinâmicas afetivas e sexuais. A faixa “Podem até nos Separar”, cantada por Priscila Sena, na banda Musa do Calypso, enseja o celular – a portanto, a máquina – como um artefato “frio”, cuja relação de ligar-e-desligar serve

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como metáfora para questões afetivas. “Se eu pudesse apertar um botão/ E te arrancar de vez do coração/ Se fosse só eu te mandar embora/ E te arrancar da minha memória” apresenta a problemática do apagamento da memória numa chave afetiva. Aperta-se o botão das máquinas e temos, então, o “poder” de esquecer. Se pensarmos numa cultura da interface, da lógica da tecla “delete”, que se apaga na medida em que também se escreve (“mas eu não sou nenhum computador/ que com um clique deleta o amor”), esse movimento parece ser sintomático de uma poética da canção popular brega. Num outro momento da canção, a artista se coloca no lugar da máquina: “Mas eu não sou nenhum celular/ Pra te excluir só basta apertar”. A questão das referências tecnológicas no universo do brega soa também como uma forma de acionamento de ideais de modernidade, posicionando artistas e bandas dentro de um espectro da tecnologia. Numa inclinação dos jogos de sensualização e flerte, a banda Kitara lançou, em 2013, a faixa “De Biquini no Facebook”, em que a vocalista Carlinha, entoava: “já me arrumei, me maquiei, já dei chapinha no cabelo/ Vou tirar uma foto na frente do espelho”. A clara perspectiva de evidenciar a pose e o ato de “tirar selfie” na frente no espelho como uma prática da atividade de sair à noite ganha tessituras ainda mais sensuais em função da atividade de exibição do corpo em redes sociais. A canção vai encenando as etapas do processo de exibição na internet: “De relacionamento sério/ Eu troquei para solteira”. Enquanto a personagem se coloca “brincando” no jogo das relações afetivas possíveis no Facebook. Até que, no refrão,

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com acentuada textura alegre, Carlinha celebra: “Tô de biquini no Facebook/ Me olha, me curte e me cutuque”. “Cutucar” no Facebook é uma ação de demonstrar interesse afetivo-sexual por um usuário da rede social. Percebe-se como as disposições tecnológicas engendram corporalidades e encenações que governam corpos, criam regras e atestados de valor diante das performances dos sujeitos. Postar uma foto de biquíni na rede social Facebook é uma forma de provocação, encenação de uma lógica de poder de uma mulher sobre o seu (ex) parceiro. Esta canção nos ajuda a pensar também a autoconsciência de jogo e de performance que há nos usos dos dispositivos. Faz-se uma ação com uma clara intenção – ou também provocando uma possibilidade de efeitos, de retornos. As dinâmicas afetivas estão mediadas por aparelhos celulares, redes sociais, filtros, fotografias, vídeos. Questões ligadas às classes sociais, exibição de dinheiro e de status, povoam tanto as práticas quanto as letras das canções de brega. Uma das faixas de sucesso do gênero, “Ligação a Cobrar”, da banda Companhia do Calypso, estabelece uma ligação entre receber uma ligação a cobrar e ausência de prova de amor. Quando a cantora Raylla Lima atesta “não me ligue a cobrar no celular/ Se quer me conquistar/ Se quer me namorar”, há um pacto condicionante entre uma certa conduta com a prática do aparelho de telefonia móvel e o estabelecimento de elos mais consistentes em relações afetivas. A questão da classe social do homem, do brega como um gênero que promove atravessamentos de classes, deslocamentos, acomodações, encontra ressonância na 184


canção da banda Companhia do Calypso. “Esse garoto é metido a playboy/ Tem jeito de bacana, que tem grana/ Chega no seu carro/ No meio da multidão/ E liga o som”. Conforme já evidenciamos, a prática de exibição de posses em festas e clubes adentra também ao universo poético das canções colocando em destaque aquilo que liga beleza a poder econômico. A letra da canção vai descrevendo o modelo de homem que ligou a cobrar para a personagem: “Pedaço de Brad Pitt/ Pedaço de Gianecchini”, duas referências a padrões de beleza midiáticos, seja no cinema de Hollywood ou na Rede Globo de Televisão. “Ele é pura sedução/ As meninas já estão passando mal”, canta. A decepção, na canção, aparece quando desvela-se a verdadeira face do então conquistador: ele, supostamente, seria pobre. “Pediu meu telefone/ E disse que eu era linda/ E disse mais ainda/ Que queria o meu amor/ Celular danou-se a tocar/ Chamada a cobrar”. É com este recuo da personagem que se faz a “virada” da canção, na disposição das narrativas do melodrama. O personagem que parecia ser “o príncipe”, na verdade, era “o sapo” – mas esta denominação é feita em função da condição socioeconômica do sujeito.

Compartilhamentos, redes sociais e versões É na internet que circulam novas demandas do público, que antes só tinha acesso às músicas de brega executadas nas rádios ou nas ruas. E dois ambientes funcionam como potencializadores desse “encontro” entre cantores de brega 185


e público: os blogues de música brega e os ambientes de compartilhamento de músicas. Marcar presença no Facebook, no Instagram e no Snapchat é importante para as bandas de brega, mas o que se tornou fundamental mesmo foi ter um perfil no site Palco MP3 (www.palcomp3.com). A página funciona como uma grande teia de compartilhamento musical voltada para artistas independentes – em 2015 já eram mais de 250 mil cadastrados. Com uma interface semelhante a da rede social Orkut, o site disponibiliza vídeos, imagens, música, agenda de shows e todas as informações de contato necessárias. O Palco MP3 acaba sendo uma espécie de homepage prática e gratuita – assemelhando-se ao que foi o MySpace para artistas de rock e de gêneros musicais análogos. O Palco MP3 opera como plataforma de compartilhamento de músicas e informações sobre artistas de gêneros musicais populares, como o forró, o funk e o sertanejo. Para se ter uma ideia, o site disponibiliza os perfis mais acessados, diariamente. Em 2013, os perfis mais acessados eram: Garota Safada (forró), Aviões do Forró (forró), Edson e Roberta (sertanejo), Marcello Henrique e Frederico (sertanejo) e MC Chocolate (funk). Entre as canções mais baixadas, se configuravam “Só Sei te Amar” (Garota Safada com participação de Bruno e Marrone), “Naviozinho”, “Vem com Peito” e “Vou te Pegar” (Aviões do Forró) e “As Mina Pira” (Garota Safada com Cacio e Marcos). No site Palco MP3 é possível fazer uma filtragem de artistas musicais por estados brasileiros. No ano de 2015 havia quase três mil artistas de Pernambuco. Curiosamente, na página inicial do Estado de Pernambuco não aparecem artistas de brega entre

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as chamadas “editoriais” do site, apesar da artista de brega Musa do Calypso estar em quarto lugar entre os perfis mais acessados do Palco MP3. Este sintoma materializado no Palco MP3 encontra reverberação no cotidiano dos artistas de brega: preconceito diante de gêneros musicais legitimados e a própria perspectiva de ser algo “estranho” dentro de um contexto musical independente e hegemônico – como é o contexto de Pernambuco. O brega, neste enquadramento, é um gênero musical – efetivamente – contra-hegemônico, que apesar da intensa circulação de seus produtos e artistas, fica à margem de um certo status quo musical de Pernambuco. Outra importante ferramenta de divulgação para os artistas do brega recifense, sobretudo a partir de 2010, foi o site de compartilhamento de arquivos 4shared (www.4shared.com). Nele, faz-se inscrição gratuita e os músicos de brega costumam publicar telefone de contato para shows. A cantora Palas Pinho, da Banda Ovelha Negra, conta com duas pessoas do seu staff para cuidar de toda sua vida na internet, entre contas do Youtube, Twitter e 4shared. No Facebook, a conta de Palas, em 2015, “estourou” o limite máximo de cinco mil amigos e passou a funcionar como fanpage, contando com 1,4 mil assinantes. A artista contemporiza, no entanto, o oba-oba em torno do conceito de que a internet é um território livre. “Música pela internet tem um lado chato, porque às vezes acontece de descobrirem nossa página e bloquearem”, disse a vocalista, referindo-se ao fato de que muitas bandas de brega fazem “versões” de canções consagradas, alterando a letra e traduzindo expressões, sem qualquer questão de direito autoral.

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Quando são “descobertos” por gravadoras ou integrantes de órgãos de arrecadação de direitos autorais, os artistas do brega têm suas páginas “bloqueadas” – como se refere a cantora Palas Pinho. A prática de se apropriar deliberadamente de canções da música pop passou a ser usada com mais cautela em função da internet e da probabilidade de agentes e integrantes de gravadoras e responsáveis por direitos autorais acionarem empresários e artistas locais. No entanto, em 2014, o compositor Marcibrom vendeu para a banda Sedutora a canção “Bateu a Química”, versão para “Wrecking Ball”, hit da cantora Miley Cyrus. A introdução da faixa – “Me olhou, te olhei/ Paquerou, paquerei/ Aí então, bateu a química” – era cantada sobre uma “camada” de teclados que em muito se assemelhava ao arranjo original cantado pela estrela pop Miley Cyrus. No entanto, ainda na primeira estrofe, já entrava a guitarra típica do brega local, com um arranjo de teclados também bastante peculiar do gênero musical popular. “Estou sofrendo por amor” foi a tradução/releitura para “I came it like a wrecking ball” (“Eu fui como uma bola demolidora”, na canção pop há uma metáfora entre bola demolidora e a violência de se apaixonar). O padrão de canto do brega tenta se aproximar do virtuosismo do canto das divas pop, encenando ideias como esforço, entrega, paixão. O sucesso da banda Sedutora com faixas como “Bateu a Química” e “No Dia do Seu Casamento” foi tamanho que o grupo se separou e gerou uma outra banda, cujo nome foi Bateu a Química. O empresário de artistas de brega, Paulinho Alves, explica o 188


procedimento de versões de canções pop pelo brega. “Se está dando certo, tem uma música muito estourada, a gente mexe e usa”, diz, para reportagem do Diario de Pernambuco. A Bateu a Química foi criada em 2014 após a saída da vocalista Tereza Cristina da Sedutora e teve como um dos grandes sucessos, a faixa “Nada Sou”, cantada por Tereza ao lado do vocalista Ronny Verssalyesh. Trata-se de uma versão para o sucesso de “Let it go”, da trilha sonora de Frozen, vencedora do Oscar de Melhor Animação em 2014. “Distorções temáticas à parte, os versos de dor de cotovelo para a comemoração de liberdade da Rainha Elza reforçam uma tendência em alta no brega recifense, desafiando as leis de direito autoral e conquistando o público”, atesta a jornalista Luiza Maia, no texto do Diario de Pernambuco. Um dos “hitmakers” do brega recifense atende pelo nome de Elvis Pires, responsável por “Não me Faça Chorar”, cantada pela da banda Musa, com a melodia de “When I Was Your Man”, faixa cantada por Bruno Mars, e “Eu Nunca te Traí”, gravada pelo grupo A Favorita e inspirada em “We Can’t Stop”, também de Miley Cyrus. “Quando uma música faz sucesso sem o povo nem entender, imagino com uma letra boa, em português”, defende. Elvis Pires foi compositor de vários grupos, como Loira Marrenta, Boa Toda, Lapada, Vício Louco e Espartilho, e diz que prefere não conhecer o enredo original da canção, nem traduzir, para não se influenciar. O procedimento é o de construir uma letra a partir da melodia. O procedimento de ir para shows de bandas de forró para também coletar material tanto para canções originais quanto

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para versões é destacado por Rodrigo Mel, compositor de mais de 700 canções populares, e um dos fundadores da banda Kitara. “Louca”, faixa da mexicana Thalia, e “Mentes tão Bem” do grupo Sin Bandeira são a contribuição do brega com o cancioneiro latino. A dupla de MCs Meninos da Net, formada por Felipe e Elton Santos, chamou o hit de reggeatón “Gasolina”, de Daddy Yankee, de “Dá uma Empinadinha” e “All About the Bass”, de Meghan Trainor, se transformou em “Ela Desce”.

Blogue para bregueiros Outra ferramenta bastante utilizada pelos artistas da cena brega é o blogue, páginas que podem tanto ter perfil informativo quanto de compartilhamento de dados. O mais famoso é o “Blog dos Bregueiros” (www.blogdosbregueiros. net), criado em 2012 pelo estudante Diego, também conhecido como Don Diego. O que era passatempo passou a ser fonte de renda. “As bandas procuram o blog para anunciar e colocar as músicas para o pessoal baixar”, conta. Para contratar o anúncio por dois meses, com direito a banner personalizado para os links de download, o custo é fixo. O “Blog dos Bregueiros” conta com áreas específicas para áudio e vídeo. Tem também calendário com shows e endereços de casas noturnas que fazem festas bregueiras. É, desde 2013 até 2017, o ambiente virtual com maior apelo e status dentro do meio do brega recifense.

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Uma das formas de apelo para que o “Blog dos Bregueiros” continue sendo acessado é a oferta de material exclusivo de artistas ou em primeira mão. Material primário, leia-se: arquivos de músicas para download retirados diretamente dos estúdios onde as bandas de brega gravam suas canções ou videoclipes que acabaram de ser postados no Youtube (em muitos casos, a música é compartilhada em sites mesmo sem imagem, o que reforça que o Youtube não é um suporte apenas para imagem, mas também aúdio). O “Blog dos Bregueiros” tem parceria com artistas “estourados”, que dá direito a ter o acesso ao estúdio dos grupos para disseminar MP3s recém-acabadas. Outra questão que é ressignificada dentro da cultura do brega é a noção de “pirataria”. Naturalmente, como não integram a lógica das gravadoras, os artistas lucram com shows. Portanto, a música tem menos o apelo de produto e passa a ocupar um fluxo cujo fim é o show ao vivo. “Piratear” shows, capturando o áudio da mesa de som das apresentações, passou a ser uma prática comum no universo da música brega do Recife. Um dos principais “produtores” que captam esses áudios responde pelo nome de Thiago Gravações, alcunha do técnico de informática Thiago Matos, que registra apresentações de MCs e bandas nacionais e locais, desde palcos da periferia de Jabotação dos Guararapes a megaeventos como o Olinda Beer. Thiago entra nos

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backstages com o consentimento dos produtores dos shows e, ele próprio, grava, edita e lança o áudio completo do show em suas redes. Em contrapartida, fornece o material a empresários para que eles veiculem em rádios ou outros suportes. Thiago Gravações comenta sobre as novas formas de circulação e consumo de seus registros. “Antes eu vendia CD virgem e, a partir de 2005, passei a gravar os shows. E os ‘pirateiros’ copiavam os CDs que eu fazia e botavam no Orkut. Isso estourou, então passei a colocar na internet. Hoje as pessoas baixam”, conta ele, que também é produtor de videoclipes de brega. A internet, no entanto, funciona a partir de uma lógica de agendamento com a televisão. José Leonel de Nascimento, o MC Leozinho do Recife, diz que a rede mundial não substituiu as mídias convencionais. “Você bota no Facebook, cinco mil pessoas já acessam de uma vez, já baixam, compartilham e vai virando febre”, diz Leozinho. Segundo ele, sua música “Troca de Novinha” já teve mais de 400 mil downloads no 4shared, em 2013. Além de acessar pessoalmente sua conta no Twitter, o MC possui seu próprio site pago. “Também pago uma pessoa para cuidar do meu WhatsApp, Facebook e Orkut. Tenho dois ‘Facebook’ lotados”, observa.

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Vocação televisiva do brega Se a música brega adentrou a cultura digital e, fundamentalmente se espraiou por redes sociais, compartilhamentos e downloads, é porque, em sua essência, o gênero musical é popular e midiático. E foi na televisão local, das emissoras do Recife, que o brega constituiu sua mais evidente relação afetiva com os espectadores. A música brega foi consagrada dentro de um gênero televisivo que, desde a origem da televisão pernambucana, se faz presente: o programa de auditório. Se nas décadas de 1960 e 1970, o auditório de Fernando Castelão no programa “Você Faz o Show”, na TV Jornal do Commercio, contava com mulheres de longo e homens até de smoking, no final dos anos 1990 e início do 2000, foram as camadas populares que passaram a habitar atrativos diários, como Muito Mais (TV Jornal), Tribuna Show (TV Tribuna), Clube Show (TV Clube), Tarde Legal (TVU). A retórica do programa de auditório parecia ideal para a emergência das corporalidades e dos artistas do brega. Como atesta Fernando Fontanella, “nos programas de auditório, tenta-se reproduzir as apresentações ao vivo das bandas, inclusive pelo recurso de se manter uma plateia ativa” (FONTANELLA, 2007, p. 27). A questão da faixa de horário dos programas, sempre entre o final da manhã e o início da tarde, trazia à tona

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duas questões: uma primeira, de ordem do fluxo das grades de programação das emissoras de rede, que abria “janelas locais” neste horário específico. Uma segunda, quase consequência desta primeira, era uma audiência marcadamente jovem, que, ou chegava da escola ou estava de partida para o estudo no turno da tarde, o que provocou um forte agenciamento etário e geracional entre os consumidores de brega. Foi a presença constante do brega na televisão local que fez com que mais um canal de permissividade se instaurasse nas dinâmicas do Recife. A presença praticamente diária dos artistas do brega nos programas de TV parecia convocar o olhar para aquele Outro que se apresentava no palco e sobretudo turvar as certezas estéticas em torno do bom gosto e do apelo afetivo por canções. A recorrência dos artistas nos programas trazia à tona familiaridades, afetos de inúmeras ordens, questionando os afastamentos por classes sociais. Os programas de auditório da TV pernambucana eram verdadeiras arenas de disputa para ocupação das bandas – em busca de minutos de fama e de retorno financeiro com shows, divulgados por meio de letterings com o telefone do produtor exposto na tela. Neste sentido, apresentadores como Denny Oliveira, Flávio Barra, Beto Café, Pedro Paulo, entre outros, para além de apenas serem os protagonistas destes atrativos, eram também empresários

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de artistas de brega e funcionavam como importantes mediadores entre artistas e o público. A televisão, em seu caráter essencialmente popular, marcou importante processo de celebrização dentro do brega, funcionando como engrenagem de fama e notoriedade para artistas, empresários e artistas. Importante destacar que o brega parecia atender a uma característica do entretenimento da televisão popular, que poderia remeter, inclusive a aspectos circenses e ligados a uma cultura marcada pela oralidade e a dimensão corporal. É por isso que postulamos que o brega funcionou como importante artefato para consagração de um gênero televisivo – o programa de auditório – dentro da programação televisiva do Recife e Região Metropolitana. Cantores e cantoras, dançarinos e dançarinas, eram verdadeiros protagonistas dentro das narrativas dos programas, reservando-lhes o status de condutores da importância destes programas. Parece oportuno, portanto, pensar que a música brega “deu corpo” à televisão local – no sentido de encenar nos corpos dos bregueiros (artistas e fãs) – uma série de possibilidades performáticas, discursivas, estéticas e morais. O brega, nos afirma Fontanella (2007), “é um espetáculo do corpo” e esta afirmação não nos é [...] estranha para aqueles familiarizados com os

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programas de auditório das redes de televisão do Nordeste do Brasil, com os shows das bandas de brega ou com o comércio de CDs piratas nos camelôs. Todas as suas formas culturais encontram-se diretamente ligadas aos usos do corpo em um esforço comunicativo para afirmá-lo como último valor naquilo que ele tem de mais material (FONTANELLA, 2007, p. 56).

A dimensão corporal do brega parece levar, para a televisão local, aquilo que Fontanella classifica como uma lógica dionisíaca – com todas as implicações éticas e estéticas presentes neste processo. De repente, ao chegar em casa de uma manhã de afazeres ou de trabalho, somos interpelados por corpos de homens e, sobretudo, mulheres das periferias do Recife, artistas, trajando roupas com fendas, decotes, sensualizando na forma de cantar e se deslocar. Uma dança de corpos e sentidos que nos acionam pensar a erotização de um espaço midiático e as formas com que, justamente através desta erotização, temos a consagração do programa de auditório como gênero televisivo hegemônico neste contexto da televisão local. Esta sexualização vinha também fortemente marcada pelo humor e pela diferença. Dois aspectos do ponto de vista de organização de grade televisiva parecem singulares na forma de reconhecimento e engendramento do brega na cultura popular midiática do recifense. Os programas de auditório como Muito Mais e Tribuna Show, por exemplo, se localizavam, em geral, entre

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atrativos de ordens bastante distintas nas organizações de programação. Com poucas variações, era possível fazer uma leitura sincrônica das grades de programação para aproximar gêneros televisivos como “programas de auditório” de dois outros: o programa de humor e o programa policial. Por isso que a fruição dos atrativos diários em que as bandas de brega se apresentavam deve ser pensada também de forma relacional. Ou seja, o agenciamento da cultura do brega no Recife veio atrelada a uma premissa também humorística, em que destaca-se a personagem Cinderela, com larga passagem pela TV Jornal, em seus programas “Oxe Mainha” e “Papeiro da Cinderela”. Criada pelo ator Jeison Wallace, através de uma peça de teatro de extremo sucesso na década de 1990 no Recife, Cinderela, A História que Sua Mãe Não Contou; a presença de Cinderela na televisão parecia promover um certo olhar humorístico para a subalternidade e para a periferia local, na medida em que, a personagem, uma empregada doméstica que utiliza gírias das comunidades do Recife, em tom celebratório e jocoso, leve e irônico, ocupava espaço junto aos programas de auditório nas manhãs/tardes das emissoras. Cinderela mencionava bairros longínquos e violentos do Recife fazendo menções – “Pêi! Pêi! Pêi! – como se fossem tiros gerados nas comunidades, em tom de alegria, numa insinuação em torno da convivência entre violência, felicidade, alegria e medo.

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Cinderela também compunha seu programa com artistas da noite do Recife, notadamente da cena gay da cidade, como a transformista Salário Mínimo, que na televisão, vivia a personagem Chola, uma cadela meio atabalhoada que não entendia bem as situações em que estava. Este diálogo com diversas formas de subalternidade em uma premissa humorística posiciona Cinderela como uma importante mediadora – com todas as contradições e processos de estereotipação possíveis – de uma cultura da periferia em agenciamentos midiáticos, provocando refletir sobre lugares possíveis do subalterno dentro de um quadro cultural mais amplo de disputas simbólicas. Portanto, a música brega presente nos programas de auditório era também fruída sob a égide do humor, no continuum que a programação televisiva provoca do ponto de vista de acionamentos estéticos. Não menos importante, para pensar outro agenciamento da música brega pela televisão local, eram os programas policiais, que exibiam um compilado dos crimes, delitos e contravenções sob a premissa performática de homens másculos e impositivos que gritam palavras de ordem e de justiça em plena hora do almoço no Recife. A mais importante figura deste gênero televisivo no contexto de Pernambuco, Cardinot, oriundo do rádio e detentor de alto carisma na televisão pernambucana, parece funcionar como uma “voz justiceira” neste contexto. Havia, quase sempre

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nas grades televisivas, uma triangulação temática – humor – brega – policial – que compunha o quadro de fruição daquele conjunto de práticas da espectatorialidade no Recife. Os atrativos de brega, portanto, eram fruídos, ao mesmo tempo, sob a égide do riso e do medo, da proximidade e da distância. O humor de Cinderela parecia fazer aproximar, atar nossa espectatorialidade de uma subalternidade (também) risível, ao mesmo tempo que pontuava o desejo e a erotização com os corpos bregueiros, ao assistirmos aos programas de auditório. Ao fim do dionisíaco que havia entre rir e desejar, nos deparávamos com o terror das periferias, as mortes, os crimes bárbaros. Na chave de toda esta premissa, está o prazer. Prazer visual. Seja aquilo que nos atrai ou aquilo que nos causa repulsa.

Pedofilia midiatizada pelo brega: o Caso Denny Oliveira Esta combinação de atrativos e dinâmicas, da centralidade dos apresentadores de televisão, que eram verdadeiras celebridades no contexto do início dos anos 2000, em Pernambuco, sendo responsáveis não só por programas de TV, mas também por agenciamentos de shows, produtos e das “caravanas” (palavra que invoca inclusive

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o apresentador Sílvio Santos, através das “caravanas” do auditório), pode ser pensada sob a premissa das ambiguidades e do embaralhamento entre poder e contravenção. No ano de 2005, um escândalo envolvendo o maior apresentador de televisão do brega local, Denny Oliveira, colocou ainda mais tintas no debate em torno da sexualização do gênero musical, das inclinações em torno da erotização nas corporalidades presentes nos programas de auditório, provocando um intenso debate sobre moral dentro das organizações midiáticas. O chamado “Caso Denny Oliveira”28 refere-se a uma série de acusações de crimes contra a dignidade sexual movidas pela Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente e pelo Ministério Público de Pernambuco contra o radialista Denny Oliveira e outros integrantes do programa de auditório Muito Mais, da TV Jornal Recife. Denny Oliveira, cujo verdadeiro nome é Denisson Oliveira Lima, era diretor e apresentador do programa Muito Mais quando respondeu pelas acusações de estupro contra uma adolescente, e atentado violento ao pudor contra outras três jovens. Na consulta do termo de declaração do Ministério Público consta que durante a realização de um concurso para a escolha de uma “nova” Kelly Key, o apresentador teria ficado sozinho numa mesma sala e “apalpado nas pernas” de uma jovem, configurando abuso sexual. Denny também é mencionado por oferecer bebida alcoólica a adolescentes

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com finalidades ambíguas. Outros integrantes dos atrativos televisivos também foram indiciados. O assistente de palco de Denny Oliveira, o maestro Cristiano (Cristiano dos Santos Costa) foi acusado de atentado violento ao pudor e estupro presumido a duas jovens de 13 anos de idade durante o concurso da Banda Calypso. Constam relatos também de que num concurso para escolha de covers da banda RBD, sucesso da novela Rebelde, exibida pelo SBT (o SBT era a “emissora de rede” da TV Jornal), crianças do sexo masculino e feminino teriam sofrido constrangimento também em forma de indícios de abusos sexuais. O Ministério Público moveu processos judiciais contra o Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, onde era transmitido o programa de televisão Muito Mais. A emissora foi processada por permitir em seu recinto a entrada de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis legais, a partir dos 15 anos de idade, desde que tivessem sido trazidos sob a responsabilidade de Associação de Moradores ou da instituição de ensino, sem a autorização judicial cabível na forma de alvará ou portaria. O escândalo envolvendo Denny Oliveira, seu principal assistente de palco, o Maestro Cristiano e a própria instituição, a TV Jornal, pontuou um momento de moralização em torno do brega e um debate sobre os

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limites e permissividades na TV pernambucana. Como no próprio ordenamento dos fluxos televisivos previstos pelas emissoras de TV, os apresentadores de programa de auditório tinham suas condutas questionadas, ao mesmo tempo que apareciam nomeados não mais pela chave do riso ou da sensualidade, mas no julgamento dos programas policiais. O apresentador de televisão Denny Oliveira foi condenado a 15 anos de prisão pelos crimes de estupro contra duas meninas e atentado violento ao pudor contra outras três. A sentença, proferida no dia 16 de outubro de 2010, pelo juiz José Renato Bizerra, atendeu a denúncia do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). De acordo com documentos do MPPE, as promotoras de Justiça Cristiane de Gusmão Medeiros e Cristiane Caetano da Silva com atuação na Vara de Crimes Contra Criança e Adolescente, alegaram a fragilidade da defesa que tentou desqualificar as vítimas e vitimizar o réu, mostrando-o como se tivesse sido envolvido em algum tipo de golpe. “Como se fosse crível aceitar que um cidadão da faixa etária, condição social e evidência na mídia, pudesse ter alguma justificativa para se envolver (ou ser envolvido?) por crianças e adolescentes de nível social inferior ao seu, sob a alegativa de que as vítimas pretendiam aplicar-lhe algum golpe”, explicaram as promotoras no texto do documento das alegações finais.

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As promotoras de Justiça também chamaram atenção para os depoimentos das vítimas e testemunhas, que seriam uniformes, mesmo as vítimas não sendo conhecidas ou amigas, frequentassem as residências ou qualquer outro local, a não ser a participação em programas de auditório comandados pelo apresentador. “A subversão dos papéis de vítima e réu traduz jogo perverso que, no afã de desqualificar as vítimas, termina por colocar em maior evidência o perfil criminoso e repulsivo do réu que não poupa criança e adolescente, para satisfazer a sua lascívia”, mostraram as promotoras. Outro ponto do qual as promotoras utilizaram para desfazer a tese da defesa, foi o fato de que o apresentador comandava concursos entre adolescentes, e que por isso, tinha a obrigação de saber a faixa etária das concorrentes. Desse modo, a argumentação de que Denny Oliveira teria se confundido com a aparência de mulher de uma das adolescentes é desacreditada. Além disso, todas as testemunhas de defesa limitaram-se apenas a atestar o alegado bom caráter do réu, sem dar nenhuma prova concreta de sua inocência. O escândalo envolvendo Denny Oliveira parece ter “fechado um ciclo” de relevância do brega dentro dos sistemas televisivos e midiáticos. No entanto, o gênero musical vai reaparecer midiaticamente nos canais audiovisuais, notadamente o YouTube, quando videoclipes de artistas brega ultrapassaram as dois milhões

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de visualizações e instauraram novos processos de celebrização agora pelas redes digitais.

“Jacaré que dorme vira bolsa”: clipes bregueiros Videoclipes são impulsionadores de hits dentro da cultura musical do brega. Pode-se falar num conjunto de produtoras de vídeo que dominam as gramáticas audiovisuais da prática dos clipes e utilizam do YouTube como ambiente de circulação destes produtos. Uma das estratégias mais bem sucedidas de videoclipe como impulsionador de uma canção brega se deu com a faixa “Mainha Painho”, da banda Companhia da Lapada, lançada em 2012. Com imagem de Jurandi Lapenda e edição de Naldinho Monteiro, ambos da Idea Studio, e contando com produção de Kléber Lapada e Leonardo Aguiar, “Mainha Painho” apresenta tanto tematicamente quando esteticamente as diretrizes de um relacionamento cujo marcador sexual se faz presente. Repleta de palavrões e evocando uma certa espontaneidade e coloquialidade na fala, a faixa cantada pelo trio Kléber Lapada, Alice Laser e Duda Belo abre com a citação ao nome da banda (uma prática entre grupos de brega e forró, possivelmente como estratégia de definir sonoramente a autoria na canção, sobretudo em função da alta volatilidade de circulação e apropriação das músicas por outras bandas

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e artistas) e, em tom incisivo, afirma: “eita, ‘caraio’ mas né foda mesmo”. A espontaneidade da fala transformando-se em canto aliada ao ataque de teclados funciona como eficiente convocação para a narrativa da canção. “Tava sarrando na escola com meu novo amor/ Minha prima com inveja me cabuetou/ Sai pra lá sua arrombada/ Vá se fuder/ Se mainha empacar, eu dô-lhe em você”. O tom do canto de Alice Laser é de ameaça e resignação. Há verbos, presentes da canção, que acionam todo o coloquialismo presente na língua e no sotaque do falar português em Pernambuco. “Sarrando” tem a ver com um namoro mais acintoso, com intensa fricção de corpos, potencial “aquecimento” para o sexo. Uma suposta prima invejosa “cabueta”, ou seja, entrega o ato para a mãe da personagem que canta a canção. É com o xingamento “sai pra lá sua arrombada” e depois “vá se fuder”, que a canção se projeta mais violentamente para a adesão do público. Esta tensão causada pelo medo em torno dos atos de um namoro sexualmente provocador e acintoso impulsionam a personagem da canção a “assumir” o ato sexual. “Mainha, painho, eu gosto dele/ Ele já me comeu, eu vou morar com ele”. O desvelar da consumação do ato sexual parece ser premissa para uma aceitação familiar condicionada pela ideia de “casamento” ou de “união” – cabendo aos personagens “remediarem” o ato sexual acontecido com um suposto “eu vou morar com ele”

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– parece que há uma determinação entre as duas situações. “Mainha Painho” ganhou notoriedade, para além da potência sonora e popular da canção, em função de seu videoclipe. Gravado em locações bastante usuais em bairros periféricos do Recife, “Mainha Painho” traz à tona a literal problemática presente na canção, posta em cena com os três integrantes da banda atuando. Alice Laser vive a protagonista que reivindica o amor pelo suposto namorado a partir de um ato sexual consumado. O que fica evidente no videoclipe é um profundo engendramento da narrativa do vídeo com a cultura audiovisual amadora impulsionada pela presença dos aparelhos de celular com câmeras no cotidiano dos sujeitos contemporâneos. Tudo no clipe é simples, sem efeitos visuais, com atuações marcadas por uma espécie de forma hegemônica de narrar e atuar, supostamente reencenada em outros videoclipes, telenovelas, seriados – apropriados em contextos bastante distintos daqueles em que foram gerados. Pensa-se aqui o videoclipe como um lugar que fornece subsídios imagéticos e simbólicos para ritualizações do cotidiano, processos de sublimação e artificialização de atos corpóreos, como se a “vida fosse um videoclipe” (RAMONEDA, 1997, p. 7) e a potência mimética dos clichês nos videoclipes como importantes aparatos narrativos para a incorporação de um senso performático atado a corpos midiáticos forjados pela indústria da música e do entretenimento.

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“Mainha Painho” parece também ter sido possível diante da profusão de videoclipes e produtoras de clipes que apareceram no mercado musical do Recife a partir de 2010, sobretudo em bairros periféricos da cidade. Os vídeos caseiros, os fanclipes, as práticas de registro do cotidiano de forma midiática e musical soam ser eficientes pontos de partida para se pensar a forte adesão de “Mainha Painho” entre fruidores de música brega no Recife. Isto porque o vídeo musical caseiro é um ambiente de reverberação e compreensão de lógicas performáticas que emulam corpos midiáticos e são, em si, materialidades do devir-habitar daqueles artistas que se presentificam em atos, gestos, olhares, mimetizando um estar midiático agora fortemente proporcionado pela disseminação via internet e redes sociais. Não à toa, “Mainha Painho”, o videoclipe, teve uma série de sátiras, releituras, reapropriações. No entanto, não deve se compreender a produção de videoclipes de canções brega apenas sob a retranca de uma suposta estética do vídeo amador. A produtora Pro Rec, uma das pioneiras no mercado de vídeos para artistas do brega em Pernambuco, até 2016, já teria produzido mais de 400 videoclipes e também “uma centena de DVDs”, desde o início das atividades, no ano de 2006, é um dos exemplos de uma eficiente gestão de imagem para artistas do universo brega.

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Primeiramente, porque a então produtora de vídeos se coloca como “gravadora” em seu perfil no Facebook. Somente entre janeiro e julho de 2016, 22 videoclipes tinham sido lançados sob a chancela. O termo “gravadora” encena uma outra dinâmica no sistema de produção da música. No contexto do brega recifense, é uma produtora de vídeos que gerencia desde a gravação da faixa até a divulgação desta canção em redes sociais. Quando assume o lugar de “gravadora”, a Pro Rec se coloca no lugar de produção dentro do sistema musical para além do registro audiovisual. A parceria da Pro Rec com Thiago Gravações e com o “Blog dos Bregueiros” triangula um sistema produtivo em que agenciamento de carreira (Pro Rec), registro de imagem (Thiago Gravações) e circulação de conteúdos (“Blog dos Bregueiros”) pontua uma rearticulação nas dinâmicas de produção e consumo de música entre sujeitos das periferias e também em seus atravessamentos geográficos. Estamos pensando em outros sistemas de produção musical, para além do tradicional, com agentes e produtores que reencenam as lógicas midiáticas do consumo musical, a partir de agentes que dominam a prática do fazer audiovisual. Ao observar os videoclipes produzidos pela Pro Rec e por inúmeras outras produtoras de vídeos para artistas do brega percebe-se um profundo conhecimento visual, de estéticas, maneirismos e gramáticas por criadores

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e gestores de imagem destes locais. Reconfigura-se, portanto, uma certa ideia de “saber” e conhecimento engendrada pelo YouTube e pelos usos das redes sociais. Estamos debatendo o que Henry Jenkins (2012) chama de “letramento midiático”, ou seja, a letramento não apenas a partir da escrita, do material impresso, mas, sobretudo, o letramento através das mídias. Para o autor, as culturas se constroem em torno de lutas sobre e pelo letramento, em que, seria possível, se separar “nobres” e “bárbaros”. Ainda segundo o autor, “historicamente, restrições ao letramento advêm das tentativas de se controlar diversos segmentos da população – algumas sociedades adotaram o letramento universal, outras restringiram o letramento a classes sociais específicas, além das restrições por questões de raça ou sexo” (JENKINS, 2012, p. 237). A leitura de Jenkins sobre a ideia de letramento aciona disposições políticas, sobre quem tem o poder do saber e das narrativas que se constroem, na medida em que o letramento, num sentido amplo, nos inclina a refletir sobre quem tem direito a participar de nossa cultura e sob quais condições. Neste sentido, a disseminação de vídeos tutoriais no YouTube, seja de culinária, dança ou música parece acionar a perspectiva de inclusão de formas de saber.

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Pensar o YouTube como ambiência na qual agentes aprendem, compartilham, reencenam e se apropriam de conteúdos globais, é uma questão pertinente nas cenas musicais periféricas mundiais. Como já expôs Simone Pereira de Sá (2014), a dança do passinho, no contexto do funk carioca, incorpora uma série de movimentos corporais de danças das mais diversas partes do mundo, em função da espectatorialidade proporcionada pelo YouTube. Cenas musicais no contexto do Caribe (reggeatón, dembow), da África (kuduro) e na América Latina (funk, cumbia) parecem operar de forma bastante semelhante ao recorrer ao YouTube como forma de engendramento de zonas de contato com o pop transnacional e também com um retorno para expressões idiossincráticas dos contextos em que emergem.

Reencenações do pop em videoclipes Ao falar sobre processos de enculturação, Jesús MartínBarbero (2003) coloca uma questão anterior a esta mencionada por Jenkins (de exclusão dos não-letrados e da aparição de outras formas de letramento) sob a perspectiva marxista. “A ideia de cultura vai permitir à burguesia cindir a história e as práticas sociais – moderno/atrasado, nobre/vulgar” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 146). Numa leitura de Hobsbawn esmiuçando ainda mais a luta de classes, Martín-Barbero questiona a razão instrumental e excludente que há em negar matrizes culturais não dominantes. A partir de então, questões como “beleza”, “feiura”, “estranhamento” são acionadas como formas de afastamento 210


de expressões culturais de um certo cânone. Em seu Exercícios do Ver (2001), Martín-Barbero é ainda mais incisivo em pensar estéticas hegemônicas no campo do audiovisual e o caráter elitista e excludente que constroem certas ideias em torno da fuga da norma. Confundindo iletrado com inculto, as elites ilustradas, desde o século XVIII, ao tempo que afirmavam o povo na política, o negavam na cultura, fazendo da incultura o traço intrínseco que configurava a identidade dos setores populares e o insulto com que tapavam sua interessada incapacidade de aceitar que, nesses setores, pudesse haver experiências e matrizes de outra cultura (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 24) .

É, portanto, na luta por se fazer e se posicionar perto do cânone da cultura do audiovisual, notadamente, a do videoclipe pop e transnacional, que produtoras como o Pro Rec elaboram vídeos em que reencenam clichês presentes em clipes hegemônicos da cultura pop. No ano de 2012, a produtora Jozart Produções alardeou nas redes sociais e na mídia pernambucana que estaria realizando “o primeiro videoclipe do brega com helicópteros”, para a banda Lapada. O vídeo em questão, “Mulher de um Homem Só”, foi gravado no Rio de Janeiro, com locações no Pão de Açúcar, no Corcovado e na praia de Copacabana e temos, de fato, a vocalista da banda Lapada, Mary Campbell, tomando um helicóptero no Pão de Açúcar, famoso ponto turístico carioca, e indo até a praia de Copacabana, lamentar que é “mulher de um homem só”. A cantora caminha pela Avenida Atlântica, para em frente ao hotel Copacabana Palace e segue seu martírio de lamento,

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porém, com glamour. A ideia de glamour estaria na chave de compreensão das disputas estéticas que parecem permear o universo da música brega. Na negação ao princípio de “boa música”, de ideias em torno da qualidade, o brega tenta emular estéticas hegemônicas e consagradas midiaticamente como tentativa de legitimação e reconfiguração de seu lugar nas práticas culturais. Colocar um helicóptero num videoclipe significa negociar de alguma forma com o padrão de clipes internacionais, de artistas da música pop, em que sofrimento e glamour operam em lógicas de proximidade. “Mulher de um Homem Só” estabeleceria, portanto, dinâmicas de proximidade com o clipe “Love Don’t Cost a Thing”, da cantora Jennifer Lopez, na medida em que trata de uma poética da autoconsciência em contextos de opressão feminina diante do casamento. Percebemos também um conjunto de disposições conservadoras no clipe “Mulher de um Homem Só”: a personagem de Mary Campbell reivindica que quer provar para o seu cônjuge que é de “um único homem”. Possivelmente se afastando de um conjunto de acusações de que a música brega é sexualizada e que incita, por exemplo, a pedofilia (a partir da larga disseminação do termo “novinha”), é possível postular que, dentro das disputas simbólicas entre artistas de brega, também aparecem disposições diametralmente opostas àquelas expostas, por exemplo, pelos MCs e bregueiros populares. “Mulher de um Homem Só”, portanto, tenta “resgatar a moral” do brega, sobretudo, como música romântica e popular.

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Se reconhecemos que a sexualização do discurso de grande parte das canções do brega opera nas dinâmicas de disputas entre homens e mulheres em contextos de festa e que, portanto, o acionamento temporário, efêmero e precário da performance da piriguete e do cafuçu parecem ser insurgências contextuais, é possível reconhecermos que neste jogo performático desenvolve-se também em torno de performatividades de papéis bastante canônicos nas lógicas sociais. A mulher casada e recatada aparece no brega sob a alcunha de uma Mary Campbell que vai até uma igreja ao final do clipe “Mulher de um Homem Só” endossar o seu amor e se colocar num outro lugar que não aquele tradicionalmente disposto para a mulher na música brega. O mesmo MC Sheldon que aparece como “pegador” e hiperssexualidado em clipes como “Fio Dental” e “Estilo Panicat”, também sofre por amor e encena as dores do amor perdido em “O Que Deus Uniu Ninguém Separa”, videoclipe produzido pela Pro Rec, que conta com câmera em drone e fogo cênico nos trilhos de uma rua de paralelepípedo do Recife Antigo para situar a dor do cantor diante da quebra de um laço amoroso. O clipe de “O Que Deus Uniu Ninguém Separa” também apresenta legendagem, o que, pode nos impelir a pensar que trata-se da busca pela evidência da letra da canção – numa suposta problematização em torno do argumento de que clipes de músicas do brega são centrados no corpo e na dança. Estamos diante de fenômenos estéticos complexos e contraditórios, que acionam efemeridades, formas de engajamento que apontam para o global, mas também para o local, num conjunto de disputas que encenam ideias de 213


modernidade e cosmopolitismo. Tentamos aqui radiografar as apropriações da tecnologia pelos artistas e fruidores da cena brega do Recife. Neste sentido, observa-se o telefone celular como um dispositivo de status e poder dentro deste contexto, no entanto, reconfigurando um forte apelo de consagração pelas marcas (no caso mais específico Apple e Samsung) e se direcionando para a noção de usabilidade (os celulares “preferidos” são aqueles não de marcas famosas, mas sim os chamados informalmente de “xing-ling”, mas que conseguem dispor de vários chips). Artistas de brega passam a gerar noções distintivas a partir também de seus aparelhos: o ato de ser piriguete, na noite, ganha um escopo de poder quando a cantora Michelle Melo aparece exibindo seu Iphone; os cafuçus usam da noção de “clube” da operadora de telefonia Nextel para se referir a orgias e noitadas em “espelhados” (motéis). O circuito da internet aponta para uma espécie de “orkutização” dos ambientes em que os artistas do brega transitam. Se outrora, o MySpace funcionava como plataforma legitimada de artistas do rock e do pop, no caso do brega, todos convergem para o Palco MP3 e também para o 4Shared. O YouTube passa a ser, fundamentalmente, usado como rádio e para a exibição de clipes e trechos ao vivo de shows. Gravações de áudio de shows funcionam como “material exclusivo” a ser disponibilizado em blogues e gerar um mercado à parte de consumo que envolve a subversão da ideia clássica de pirataria e de “burlar” um sistema que lucra sobre a canção e as performatizações. A perspectiva aqui é a de reconhecer um lugar de ressignificação dos aportes

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da tecnologia em contextos periféricos e também apontar para usos e sintomas de valor e poder que estão imbuídos destas lógicas.

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capítulo


A Funkização do Brega



Manhã de 13 de dezembro de 2013. A apresentadora Fátima Bernardes, no seu programa Encontro, na Rede Globo de Televisão, apresenta um dos temas que será debatido naquele dia. “Vocês vão conhecer um fenômeno no Nordeste chamado Brega Funk. A galera domina tudo, desde a produção dos CDs e DVDs até os shows”, anuncia. Em seguida, tem-se a imagem do MC Sheldon, num de seus espetáculos, cantando “Tá Lelé, Tá Maluco”. Reyson Santos, o ator que interpreta a drag queen Jurema Fox (também cantora de brega), define: “você pega a batida do funk e coloca toda aquela pegada do brega e dá esta mistura eletrizante que todo mundo curte”. Reyson explica que a sua drag queen Jurema Fox ficou famosa no contexto da música brega funk a partir de um videoclipe que gravou com a cantora Michelle Melo, “Amiga Fura Olho”, em que faz uma homenagem às disputas de divas da música pop, no melhor estilo “The Boy is Mine”, de Brandy e Monica. A cantora Michelle Melo também integra o programa e atesta que, para ela, é um prazer ser “referência” para artistas do brega funk (no entanto, quando da aparição dos primeiros artistas do gênero, nos idos de 2005, havia muitas contradições entre os artistas de “bandas” de brega, que se diziam “românticos” e “MCs”, que eram taxados de “sexualizados”). No programa da Rede Globo, somos apresentados ao sistema de divulgação dos artistas do brega funk, através das carrocinhas de CDs e DVDs

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pirateados e, posteriormente, ida para o YouTube ou para os blogues e redes sociais, para conhecer as canções, os clipes e compartilhar as faixas. “A gente é tudo amigo da galera que tem os carrinhos de CDs e DVDs”, endossa Sheldon. Para logo em seguida, ele ser mostrado distribuindo seus CDs e DVDs para serem vendidos, exibidos, num carrinho que circula pelo bairro de Boa Viagem – a principal praia da capital de Pernambuco. Ainda segundo Sheldon, o videoclipe é uma peça-chave no universo do brega funk. “A gente lança tudo junto, a música e o videoclipe, não dá para separar”, explica. Michelle Melo complementa: “Eu fiz uma música sobre traição [Se Me Trair, Eu vou Trair Também] e pensei: quem pode cantar comigo? Sheldon! Daí pensamos o roteiro do clipe juntos”, observa. Joelma Fox atesta: “O brega funk está conquistando as elites e esta conquista é porque é uma música que fala de nós, da nossa realidade”. Ao final da reportagem, tem-se Michelle Melo, Sheldon e Jurema Fox, os três, cercados de pessoas na praia de Boa Viagem. Corta para o estúdio. Fátima Bernardes pergunta: “E aí, Naldo? Conhece o movimento brega funk?”. Naldo é o cantor Naldo Benny, um dos expoentes do funk carioca próximo da música pop, no qual figuras como Anitta e Ludmilla também fazem parte. Naldo cita semelhanças entre o alcance do brega funk de Pernambuco e a sua música “Amor de Chocolate” na internet, dando números

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de milhões de visualizações que o aproxima dos clipes dos artistas do brega. No estúdio, Fátima Bernardes tem como convidada a produtora e DJ Allana Marques, da produtora Golarrolê, que produz o Brega Naite, festa em que se toca especificamente o brega. Allana, olhando para Naldo, endossa: “é uma festa que toca muito brega mas também muito funk, muito pancadão”. Naldo sorri. Enquanto Allana Marques tece seus comentários, na tela aparece o twitter de um espectador que diz: “Eu amo Brega e misturado com o Funk fica melhor ainda ADORO #encontro”. Na mesma época em que Fátima Bernardes “agendou” o brega funk em seu programa, o gênero musical foi também debatido no dominical Fantástico. Sob a alcunha do “veja as variações do funk” que estão levando o ritmo carioca para as outras partes do Brasil; a reportagem do Fantástico apresenta o “Eletro Funk”, que seria oriundo do Paraná, e o “Brega Funk”, de Pernambuco. Ambos, segundo o texto da reportagem, “têm origem no funk carioca”. “No Brega Funk, as gravações são feitas em estúdios caseiros e todo mundo em casa ajuda a embalar os CDs”, diz a narração da repórter Malu Mazza, enquanto são apresentados Sheldon e Boco, que seriam dois “fenômenos” do Brega Funk. A passagem da repórter se dá diante de um conjunto de carros com enormes caixas de som enquanto mulheres se exibem dançando sobre as tais caixas. “O barulho dessas caixas pode ser ensurdecedor, mas ninguém liga pra isso,

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todos querem se divertir”, afirma a repórter. Em seguida, vemos a estética do som automotivo: carros com enormes caixas de som que se reúnem numa espécie de “rave” de Eletro Funk, em Marechal Rondon, a cerca de 650 quilômetros de distância de Curitiba, capital do Paraná, cujas principais estrelas são MC Mayara e DZ MC. Quando vai enumerar as semelhanças entre Eletro Funk e Funk carioca, a repórter pergunta para a artista DZ MC, que logo explica: “o funk carioca tem muito palavrão, denigre a imagem da mulher, aqui no Eletro Funk não, o máximo que você vê é duplo sentido”. O empresário Alexandre Alves, que integra a cena de Eletro Funk, reconhece: “fazemos clipes mas tem que ser tosco mesmo, se for muito arrumadinho não tem graça”. A ostentação também é pauta da reportagem. “É uísque, é mulher, é roupa de marca”, enumera MC Metal, dupla com MC Cego, do Brega Funk. Esta descrição sobre dois programas importantes da Rede Globo e o agendamento do Brega Funk em suas pautas é o ponto de partida para pensarmos as controvérsias existentes em torno do que se pode chamar de “funkização do brega”, ou o momento em que artistas do brega do Recife passam a se aproximar esteticamente das matrizes do funk carioca como nova dinâmica dentro do gênero musical. Neste sentido, é oportuno pensar nas dinâmicas dos gêneros musicais como formas também de contaminação, resíduos culturais, sonoros e imagéticos das músicas populares e periféricas. Portanto, tomamos aqui a aproximação do brega ao funk a partir de um conjunto de pressupostos:

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1. Diante de um quadro de saturação de uma forma estética

hegemônica, como aquela centrada no brega romântico, no qual grupos de artistas como Banda Metade, Brega.com, Só Brega, entre outros, passam a esgotar tematicamente as possibilidades musicais. Aliado a esse princípio, destaque para o barateamento que as estruturas dos MCs e do funk trazem. Se os grupos de brega romântico precisam de banda, com muitos músicos, baixistas, guitarristas, bateristas, tecladistas, backing vocals etc, no Brega Funk, a produção, muitas vezes, é feita apenas através da figura do produtor, que num programa de mixagem de som baixado na internet, escolhe as batidas, grava a voz do cantor e entrega a canção em forma de arquivo para seu “cliente”. Este barateamento no sistema produtivo de gravação se reverte num menor custo para shows. Bandas de brega famosas cobravam, em 2013, em média de R$ 5 mil a R$ 10 mil por um show; com a chegada dos “concorrentes” MCs, este valor teve que cair. MCs do Brega, como Sheldon, Boco, Elloco, Leozinho, Shevcenko, entre outros, no início de carreira, cobravam entre R$ 1 mil e R$ 3 mil por uma apresentação de uma hora. 2. Da necessidade de agenciamento do brega sob a alcunha

de uma música “brasileira” e não apenas pernambucana. Neste sentido cabe pensar nos processos de tentativa de corroborar com aquilo que Motti Regev chama de “cosmopolitismo estético”, ou seja, um conjunto de processos que envolvem teorizações sobre globalização cultural e formas de entrada e saída do que se considera ser moderno. “Hibridismo, creolização, complexidade, mistura, 225


fusão e desterritorialização são conceitos-chaves para entender as aproximações e distanciamentos que encenam fluxos culturais multidirecionais e globais” (REGEV, 2013, p. 7). À vista disso, quando pensamos nas inúmeras conexões possíveis entre o brega e a música pop global, anglófila, seja a partir das versões das canções cantadas pelos artistas locais, seja pela corporalidade presente nestes artistas (o gangsta rap que está presente na primeira fase do MC Sheldon, quando ele ainda se apresentava como “contraventor” e “bad boy”; ou a diva pop que habita o corpo de Michelle Melo, entre inúmeras outras cantoras), precisamos mostrar fluxos também difusos que envolvem não só o brega em conexão com o pop global, mas também o brega com os gêneros populares e periféricos do contexto brasileiro, neste caso, o funk, prioritariamente, e a música sertaneja. A forma tradicional e moderna de perceber o mundo como composta por distintos e unidades culturais separadas (por exemplo, o nacional, o étnico, o local) passa a ser recolocada diante do reconhecimento de que a cultura mundial é composta por inúmeras sub-unidades que interagem entre elas de uma forma complexa (REGEV, 2013, p. 7).

Aquilo que outrora era reivindicação de singularidade cultural passa a ser colocado sob o espectro da abertura para novos mercados, novas estéticas, apontando para o deslocamento do que poderíamos chamar de um “nacionalismo metodológico” para um “cosmopolitismo metodológico”. Neste sentido, cabe pensar o funk sob a alcunha da hegemonia da música popular periférica brasileira e das zonas de contato e tensão entre o 226


funk e seus rearranjos em outros contextos fora do Rio de Janeiro. Posicionar o funk historicamente como a música popular periférica hegemônica brasileira na mesma medida em que debater que implicações existem nesta hegemonia parecem fazer parte de um conjunto de questionamentos. Cabe retomar o percurso que Simone Sá (2007) desenvolveu ao propor pensar o funk como música eletrônica popular brasileira. Aposto na possibilidade de inserir o funk dentro da diversidade de entonações da(s) cena(s) de música eletrônica no Brasil. Ciente do quê de provocação da afirmação, busco alinhavar alguns argumentos que justificam pensar o funk como expressão de uma possível linhagem de música eletrônica popular brasileira (PEREIRA DE SÁ, 2007, p. 4).

Diante do quadro que se desenha desde 2010, quando os artistas do funk carioca se cristalizam como músicos de um tipo de “pop brasileiro” (de Claudinho e Buchecha, passando por Perlla, Naldo Benny, Anitta e Ludmilla), pode-se pensar o funk também como uma das matrizes da própria música pop brasileira, operando sob a esfera de comparação, negociação, destacamento. As aproximações em torno dos gêneros musicais envolve, então, um debate como posto por Jeder Janotti (2003) de que os gêneros musicais supõem: 1. Regras econômicas: envolvem as relações de consumo (e os

endereçamentos presentes neste circuito) nos processos de produção, difusão e audição do produto musical;

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2. Regras semióticas: abarcam as estratégias de produção

de sentido e as expressões comunicacionais do texto musical, além da conformação de valores ligados ao que é considerado autêntico em detrimento da música “cooptada”, ao modo como as expressões musicais se referem às outras músicas e como diferentes gêneros trabalham questões ligadas aos modos de enunciação, às temáticas e às letras; 3. Regras técnicas e formais: como convenções de execução,

habilidades que cada gênero pressupõe dos músicos, quais instrumentos são necessários ou tolerados, ritmos, alturas sonoras nas relações entre voz e instrumentos, entre palavra e música. Estas regras funcionam como importantes aparatos para pensar as dimensões estratégicas, estéticas e musicais que aproximam o brega ao funk, como forma de reconhecimento de um reposicionamento no mercado musical.

A “abertura” do brega ao funk Que implicações há em pensar em como um gênero musical “se abre” para outros? Motti Regev desenvolve a ideia de “abertura” como guia para reflexão em torno dos fluxos culturais e, portanto, estéticos do que significa “se abrir”. Para o autor, abertura consiste não somente no fluxo direto de bens culturais “importados”, inclui também a explícita absorção, indigenização, domesticação de elementos estilísticos exógenos, práticas criativas, técnicas de expressão e outros componentes na produção do local, étnico e cultural. A abertura de um gênero

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musical a outro é uma dinâmica que envolve a própria lógica dos gêneros musicais, da incorporação, das disputas estéticas e mercadológicas da música popular massiva em suas premissas de produção e consumo. Para Regev, a noção de abertura é uma das chaves de entendimento de um processo mais amplo que o autor chama de “cosmopolitismo estético”, ou seja: [...] a institucionalização de certas formas de arte ou de certas tecnologias de expressão como significantes de uma modernidade universal, como manifestação de uma maneira de criação, expressão e reivindicação de singularidades culturais na modernidade tardia (REGEV, 2013, p. 9).

Na lógica do próprio mercado musical do Recife, uma primeira dinâmica de abertura do brega em direção ao funk parece ser a busca por um mercado ainda mais jovem. Parecia haver uma jovialidade, humor e irreverência na performance dos funkeiros que passa a ser incorporada pelo brega. A banda Vício Louco, com o vocalista Dedesso, é uma das que primeiro negocia mais deliberadamente com o funk. Seja na própria corporalidade de Dedesso, no cabelo pintado, descolorido, nas roupas largas ou na poética de faixas como “Pica-pau Maluco”; havia também um certo canto falado, que possivelmente o posicionava como partitura de aproximações com a estética do funk carioca. Com a aparição dos MCs, ou mestres de cerimônia, papel largamente difundido nos bailes funk cariocas, no contexto do brega, emerge a figura do cantor que rege a multidão, conversa nos shows, “tira onda”. MCs Sheldon (que depois retirou o “MC” e passou a se chamar Sheldon Férrer) e Boco, MCs Metal e Cego, MC Elloco, MC Leozinho, entre inúmeros outros, 229


passaram a ocupar os espaços dos programas de televisão, não sem causar tensão entre os artistas já longamente famosos no contexto do brega. Embora artistas não se pronunciassem fazendo acusações em torno das origens e os percursos que muitas vezes passavam pelas delegacias de polícia e pela contravenção; empresários e produtores de festas e eventos no Recife frequentemente faziam distinção entre artistas do brega romântico e do Brega Funk. Nos bastidores do mercado de eventos, os MCs eram chamados de “trombadinhas”, que só falavam de sexo, mulheres e bebedeira. Bandas de brega hegemônicas no mercado “perdiam” shows para os MCs – cuja estrutura de espetáculo muito mais enxuta proporcionava retorno financeiro para empresários e contratantes. Essa tensão fez com que a abertura do brega ao funk viesse incorporando uma série de estigmas e preconceitos peculiares ao gênero musical. Assim, observou-se que a aparição dos MCs no contexto do brega recifense trouxe à tona controvérsias que eram de ordens mercadológicas (disputas de mercado), estéticas (a virilidade masculina, “bad boy”) e sonoras (as batidas do funk em diálogo com os teclados e as guitarras do brega), mas também uma necessidade de oxigenação da cena brega com “novidades” e “modernidades” que podem estabelecer parâmetros de circularidade para além do contexto recifense. Um dos momentos de acomodação da tensão da presença do funk no brega se deu com o encontro de duas das maiores bandas de brega do Recife, Musa do Calypso e Kitara, no ano de 230


2012, na ocasião da gravação do DVD da Musa. A faixa “Loira ou Morena” traz uma disputa entre mulheres no melhor estilo “eu sou melhor que você” no tocante à loirice ou à morenice. A canção tem início com uma forte batida funkeada, enquanto Carlinha, vocalista da Kitara, entra em cena junto a um conjunto de dançarinas que se movimentam como numa coreografia de funk carioca – inclusive na caracterização de roupa, com calça “da Gang”, rebaixada. Trata-se de um momento em que uma grande banda de brega, com direito a vocalistas, dançarinas, amplo conjunto de músicos, incorpora aquilo que era “jocoso” e excessivamente sexualizado quando da aparição desta estética junto aos MCs.

Ostentar ou não, eis a questão Dia 2 de outubro de 2012. Programa de televisão Ronda Geral, apresentado pelo jornalista Eduardo Moura. O horário do final da manhã e o início da tarde é ocupado por inúmeros programas policiais nas emissoras de TV do Recife e Região Metropolitana. Na abertura do atrativo, Eduardo Moura é incisivo: “Pela segunda vez, o cantor MC Sheldon passa a ser notícia nas páginas policiais. Ele e um amigo foram levados para uma delegacia depois que PMs sentiram cheiro de maconha no carro em que eles estavam”. O apresentador reforça: “é a segunda vez que as palavras Sheldon e maconha são apresentadas juntas”. O tom da reportagem é o de demarcação criminal. Há uma música de suspense ao fundo enquanto assistimos a uma mulher loira chegando na delegacia 231


e encobrindo o rosto de um homem – que deduzimos ser MC Sheldon, uma vez que o repórter Matheus Sukar explica que o cantor não quis dar entrevistas. Sabemos, através da reportagem, que junto com MC Sheldon e seu amigo havia uma arma e um “galho” de maconha. As polêmicas em torno do MC Sheldon foram recorrentes no ano de 2012, quando o cantor foi duas vezes detido e abordado por porte de drogas. Se pensarmos nas trajetórias performáticas de reencenação das corporalidades, cantores de rap nos Estados Unidos, de funk no Rio de Janeiro e de brega no Recife, parecem apresentar “restaurações performáticas”, ou seja, a reiteração de ações que os colocam dentro de um espaço um tanto quando previsível de lugar no contexto de um mercado. A passagem de MC Sheldon pelas “páginas policiais” ocorre diante de um quadro mais amplo de posicionamento que também pode ser pensado como princípio de destacamento e autenticidade – embora a ideia de autenticidade aqui seja eticamente problemática. No entanto, performatizar a imagem do “bad boy” cria aura de destacamento e singularidade para MC Sheldon no contexto do brega funk do Recife. MC Sheldon vai também encontrar uma série de artistas com os quais precisa negociar e disputar por espaço e mercado. Um desses é o MC Vertinho, que se autointitula como “o primeiro MC a ultrapassar a marca do um milhão de acessos em clipe divulgado no Youtube (‘Mulher do Patrão’, em parceria com MC Dinho, em 2016 com mais de dois milhões de visualizações)”. O MC Vertinho é a alcunha de Everton da Silva Lima e entre seus principais hits estão “Som Paredão” (999 mil visualizações) e

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“Caidinha das Novinhas” (331 mil visualizações). Assim como MC Sheldon, Vertinho também teve passagem pela polícia. Foi detido em 2015, acusado de estupro de vulnerável (caso que veio a público via um vídeo postado na internet que mostrava performance erótica do artista, durante show no Recife, com pré-adolescente de 12 anos). Tanto MC Sheldon quanto Vertinho foram publicamente pedir desculpas. Sheldon chegou, inclusive, a mencionar procurar uma clínica de reabilitação contra as drogas – também reencenando uma narrativa bastante hegemônica de astros da música ou do cinema de Hollywood que se “regeneram” após passagens por clínicas de reabilitação das drogas. MC Vertinho, em entrevista ao Diario de Pernambuco29, justificou que passaria a produzir brega funk com “letras mais conscientes”, aderindo à estética da ostentação. “Corrente de ouro, camisa Dudalina de botão, estilo New York. Isso dá reconhecimento, ajuda a Zona Sul a nos respeitar”, diz o cantor à reportagem. É curiosa a justificativa de “respeito” vir atrelada a roupa, visual e portanto, ostentação. Ou seja, da natureza “contraventora” de acusação de estupro, é possível buscar “respeito” indo em direção a um visual composto por marcas famosas. Vertinho situa também certo ressentimento em relação a ser aceito pelas elites do Recife. Ele vende letras para artistas como Wesley Safadão e Gabriel Diniz. “São minhas letras que tocam lá [nas casas de festa da Zona Sul], mas eles não querem dizer que também vêm aqui [na periferia] me ouvir”, atesta em entrevista para a jornalista Larissa Lins.

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Embora repleto de problemas de ordem ética e moral, cabe tentarmos entender os lugares em que as questões da vida dos sujeitos periféricos estão fazendo sentido e entram em conflito com outros. As categorias de contradição e conflito são o núcleo da maneira de entendimento do mundo que passa pelo reconhecimento de hegemonias e contra-hegemonias, iguais e diferentes. É importante não somente mapear a contradição, mas também perceber a sua dinâmica, suas utopias de mudança e justiça, reordenamento das visões de mundo. Ecoando uma questão de Canclini: “sob que condições (reais) o real pode deixar de ser a repetição da desigualdade e da discriminação, para converter-se em palco de reconhecimento dos outros?” (CANCLINI, 2005, p. 24). A questão da ostentação, portanto, num primeiro momento passa a ser uma espécie de necessidade temática para sair da dicotomia em torno da contravenção e da sexualização. Os MCs negociam com a estética da ostentação, que também opera sob a abertura a gêneros musicais racializados e periféricos. Cantores de hip-hop negros ostentando carrões, mulheres e mansões passam a permear também o universo do cancioneiro das periferias do mundo. MC Vertinho traz clipes extravagantes, com carros importados e roupas de grife, relógio de pulso e as correntes de ouro. O cantor evidencia que quanto mais ostenta, mais tem retorno de shows e de respeito. Os MCs Elloco e Shevchenko também adotam o “estilo” da ostentação. Reverenciam o funk ao fazerem coreografias que são chamadas por eles de “passinhos”, numa menção às “batalhas de passinhos” do

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funk carioca nas quais saíram figuras do pop brasileiro como Ludmilla. Juntos, Elloco e Shevchenko criaram marca de roupas e acessórios própria, a 24 por 48, que ambos definem, em reportagem no Diario de Pernambuco, como “uma mistura de ostentação e estilo de jogador”. Um dos movimentos de atenuação e fuga do discurso em torno da contravenção e do crime passa pela domesticação das estéticas, termo utilizado por Motti Regev, para falar dos processos de incorporação de linguagens que visam “abrir” e atenuar os feixes discursivos “problemáticos” de alguns gêneros musicais. Uma das grandes celeumas dos MCs no contexto do brega diz respeito à disseminação do termo “novinha”, que já discutimos anteriormente nas dinâmicas performáticas. No entanto, o largo uso do termo integra uma problemática ética em torno da sexualização infantil e incitação a pedofilia. O MC Cego, um dos disseminadores do termo no contexto pernambucano, junto ao MC Metal, diz que evita o termo “novinha” – popularizado em parceria com MC Metal em 2011, com o hit “Tá querendo o que?” (mais de um milhão de visualizações no YouTube). As estratégias passam por “romancear” as letras. Os MCs Metal e Cego comandam a produtora própria, chamada “Tudo Nosso”, e agenciam novos talentos do brega e funk locais. Novos artistas, inclusive da produtora dos MCs, seguem deliberadamente usando o termo “novinha” em suas músicas. Um dos maiores sucessos da produtora, a faixa “Que Brabinha Boy”, lançado em 2015, traz os MCs Danilo Cometa, Léo da Lagoa e Matheus numa narrativa

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em torno de uma suposta orgia em que o namorado da personagem liga para ela enquanto todos eles estão no motel. Para afrontar, o personagem da canção diz que manda a própria voz no “zap” (WhatsApp) em resposta para o namorado traído. No início do clipe, é uma menina negra quem canta o “que brabinha boy”, com voz infantil.

Brega como cidadania cultural De que forma consumir produtos culturais aciona disposições ligadas à cidadania? De que cidadania se está tratando? Apostamos na ideia de que cidadania e consumo sempre estiveram articulados, sobretudo em contextos culturais e históricos como os da América Latina, em que a própria noção de cidadania é turva. As mudanças da forma de consumo alteraram significativamente as possibilidades e as formas de exercer a cidadania. Por cidadania, sempre se instituiu o exercício de bases legais através de direitos intangíveis, ligados a culturas e contextos erguidos sob bases políticas. O consumo e sua capacidade de tangibilidade pareceram um interessante contrafluxo de compensação de diferenças de acesso a bens culturais. A maneira de usar os bens, ostentálos, escondê-los, é uma eficiente resposta às compensações pelas desigualdades em direitos abstratos. É sintomático que o consumo seja a forma liberal, efêmera e volátil de abstrair a morosidade em torno da efetividade de políticas públicas, funcionando como alternativa a ideais políticos intangíveis como “o voto”, “a representação”. É na degradação da política 236


e na descrença em suas instituições que outros modos de representação se fortalecem. Muitas das perguntas próprias dos cidadãos – a que lugar pertenço e que direitos isto me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação do que pelas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos (CANCLINI, 2005, p. 29).

É neste caminho que percebe-se o fortalecimento da ideia de representação das camadas populares mais atrelada à programas televisivos, ao jornalismo, às igrejas, que aos próprios políticos. Na ausência do Estado e de políticas públicas efetivas, emergem outros atores sociais, menos burocráticos, mais “ágeis”. O consumo, a ostentação de bens culturais, emergem como uma potência de engajamento e de ressarcimento de assimetrias sociais. Se tomamos uma fala recorrente entre inúmeros artistas do brega de que a maneira de se vestir, de se comportar e de exibir determinados acessórios os posiciona num quadro mais amplo de “aceitação” e bem estar, podemos pensar numa espécie de visão pragmática e aprazível da vida social regida pelos indicativos da sociedade capitalista. Ser cidadão, nos diz Canclini, não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelo Estado e seus aparelhos governamentais para os que nasceram naquele território, mas tem a ver, também com a forma de consumo de produtos. Em uma interessante leitura, Toby Miller (2011) alerta para que as doutrinas de cidadania cultural possam ser efetivas para

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conseguir um mundo mais igualitário, uma vez que rejeitem o tecnicismo, o utopismo, o liberalismo, o nacionalismo e o neoliberalismo. Trata-se de um conceito de cidadania cultural “de sempre”, que, sob a ótica da diversidade e do multiculturalismo, oculta um conjunto de dinâmicas de silenciamentos culturais.

Utopia e transformação Foi com a gravação de vídeos caseiros em que aparece dançando coreografias de brega funk que Neguim do Charme, um dos dançarinos do MC Tróia, ganhou notoriedade na cena brega. À frente do grupo Movimento Dance, dançava desde os 12 anos de idade, sobretudo swingueira, no bairro do Totó, na Zona Oeste do Recife. Percebe-se, também, os usos da visibilidade gerada pelos vídeos caseiros no YouTube também como forma de celebrização e busca por melhores condições de vida. “Hoje, contratado com exclusividade como bailarino do MC Tróia, faz mais de quatro shows por semana, o que lhe garante cerca de três salários mínimos por mês” (WAGNER, 2016, p. 1). Em janeiro de 2016, Neguim do Charme apareceu no videoclipe “Tô Nem Aí”, a partir da canção lançada pelos Mcs Tróia, Lipinho Dantas, Elvis e PP. No Alto do Pereirinha, no Arruda, MC Shevchenko atesta, em entrevista ao Diario de Pernambuco, que um dos seus clipes mais famosos, “Sou Favela”, foi gravado no campinho de futebol da comunidade. “Os meninos pequenos olham o nosso trabalho e pensam: se eles conseguem, por que eu não consigo? E isso é massa!”, reflete MC Elloco. Embora tenha

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uma série de problemas típicos do contexto da juventude das periferias do Recife, os MCs do Brega Funk trazem à tona uma série de questões do ponto de vista de representação e utopias. Fama, celebrização e disposição artística e musical fazem parte do conjunto de questões pautadas por eles também nos contextos de onde emergem. Para situar quem fala, de onde o faz, volta a ser necessário explicitar o lugar geopolítico da emancipação. São significativas, portanto, as convergências e divergências ao conceber a multiculturalidade. “Uma questão debatida a propósito da reivindicação de atores periféricos ou excluídos é a relação entre a criatividade gnosiológica e os poderes sociais ou geopolíticos”, adverte Canclini. Ao pensarmos, aqui, uma outra narrativa possível, em torno das utopias da subalternidade, de sujeitos periféricos que almejam, que na contradição de suas vidas, cercadas, muitas vezes, pela sedução da contravenção, pela segurança do chamado “de uma igreja”, optam pela trajetória artística, talvez estejamos propondo uma “etapa de descoberta, para gerar hipóteses ou contra-hipóteses que desafiem os saberes constituídos, para tornar visíveis campos do real negligenciados pelo conhecimento hegemônico” (CANCLINI, 2009, p. 207). Convém, portanto, tomar os sujeitos do brega como vivendo em interseções, nas zonas em que as narrativas do vivido e do justificado se interpõe, opondo-se, cruzando-se, em cenários tensos e conflitivos. A partir deste conjunto de textos e de narrativas aqui expostos, não me proponho a “representar a voz dos silenciados”, como descreve, ironicamente, Nestor García Canclini, a pretensão de

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alguns pesquisadores. Tenta-se entender e nomear sujeitos e ações cujas demandas entram em conflito muitas vezes com os ideais de representação largamente difundidos através de políticas públicas e das elites pernambucanas. As contradições e os conflitos estão no meu modo de perceber a cultura e a música brega em Pernambuco. A ideia aqui é enxergar o mundo como um lugar repleto de contradições, tentando dar conta de suas estruturas atuais e dinâmicas possíveis. Neste sentido, a partir da perspectiva dos Estudos Culturais, as utopias de mudança e de justiça podem se articular a projetos acadêmicos e de investigação – não como prescrição de mundo e do modo como dados e entrevistas devem ser selecionados e organizados, mas como estímulo de indagação sob quais condições o real pode ser uma repetição de desigualdades e de descriminação, para converter-se num cenário de reconhecimento de Outros. Não caberia aqui eu assumir o lugar do sujeito periférico – isto é impossível – mas, sob a égide de aparatos éticos, me coloco no lugar da interseção. Reconheço o lugar do sujeito privilegiado que sou. No entanto, contra o essencialismo, enxergo a potência na tentativa de recolocar as questões dos silenciamentos em torno de algumas matrizes culturais e estéticas. O contato com o brega e os sujeitos periféricos me transformou, me colocou nos lugares em que eu falava e ouvia, atuava e era espectador, transformava

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e era transformado. A cada contato com o campo e a vasta bibliografia que fui lendo a respeito do brega e das estéticas da periferia, ia convertendo condicionamentos em oportunidades para exercer a cidadania. Compreendendo a beleza do limite e a potência do desejo em escrever uma outra história. Uma história outra.

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capítulo


Bregafunk, a racialização do brega



Enquanto o Recife suava no escaldante verão précarnavalesco de 2018, a cantora pop Anitta postava stories na rede social Instagram de suas férias numa gélida estação de esqui, quando, quase como num susto, aparece reencenando (e “carregando” no sotaque “nordestino”) o prólogo do videoclipe “Envolvimento”, de MC Loma e as Gêmeas Lacração. “Ô, minha irmã, eu tô aqui esperando um úbi (uber), tô desesperada, num tenho dois real no bolso”, diz Anitta em vídeo. “Oxi, eu num sei o que fazer”, ênfase no “oxi”. Corta. “Você não me dá uma carona até ali embaixo não?”, diz Anitta, que usa um capacete de esqui e traja um pesado casaco de neve. “Eu dou um beijinho”, neste momento, vemos Anitta conversar com alguém que está fora do quadro da imagem. Corta para a cantora carioca dublando os primeiros versos da canção que seria o “hit do Carnaval” daquele ano: “Envolvimento diferente eu ensino a vocês...”. No dia seguinte, 1 de fevereiro de 2018, veículos de mídia, portais de celebridades, perfis de fofocas que cobrem a música brega estampam a façanha: “Anitta grava stories imitando MC pernambucana”. A MC pernambucana em questão era Paloma Roberta Silva Santos, a MC Loma, que junto a duas primas gêmeas seriam o grupo MC Loma e As Gêmeas Lacração. A exposição de MC Loma e

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as Gêmeas Lacração para os (na ocasião) 30 milhões de seguidores do Instagram de Anitta dá início a um processo de ultravisibilidade para a jovem artista pernambucana, mas sobretudo para o conjunto de artistas agrupados sob o rótulo do Bregafunk, gerando um processo de nacionalização da música brega de Pernambuco (SOARES e BENTO, 2020) que ocorre em meio à intensificação das trocas materiais, estéticas e simbólicas através das redes sociais digitais. Dois processos comunicacionais são fundamentais para o entendimento das dinâmicas envolvendo a consagração de MC Loma e as Gêmeas Lacração através do videoclipe “Envolvimento” e centrais no espraiamento e popularização do Bregafunk no Brasil: os sistemas de recomendação das redes sociais digitais e a formação de redes sócio-técnicas envolvendo atores sociais humanos e não-humanos em contextos digitais. Antes da cantora Anitta imitar e, portanto, apresentar MC Loma e as Gêmeas Lacração para seus seguidores, as meninas já tinham sido recomendadas pelo youtuber Felipe Neto semanas antes: “Achei o hit do Carnaval”, bradava o influenciador digital ao se referir e “reagir” à precariedade estética presente no videoclipe da canção “Envolvimento”. O episódio que catapulta MC Loma e as Gêmeas Lacração ao estrelato é um típico fenômeno de viralização em rede social acoplado a partir de lógicas de recomendação

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de influenciadores e figuras “notáveis” na internet. Os ecossistemas de mídia se alteraram, fazendo com que formas mais consagradas e longevas de mídias como a televisão e o rádio passassem a disputar espaço com a ampla oferta de conteúdos da internet. Com um detalhe: grande parte dos conteúdos digitais dispostos nas plataformas de vídeo e em redes sociais digitais (o videoclipe “Envolvimento” e a “reação” de Felipe Neto dispostos no Youtube e os stories de Anitta no Instagram) é produzido fora de sistemas formais de mídia. Improviso, coloquialidade e inusitado passam a ser importantes valores destes conteúdos em ampla circulação em rede. “Envolvimento” não só foi o hit do Carnaval do ano de 2018 como apresentou ao mercado brasileiro as batidas metálicas do Bregafunk. Naquele ano, a partir do sucesso da canção “Envolvimento”, as atenções do mercado e de produtoras de músicas pop periféricas (PEREIRA DE SÁ, 2019) se voltaram para Pernambuco. Uma semana depois da exposição maciça em redes digitais, MC Loma e as Gêmeas Lacração assinam contrato com a Start Music, produtora e gerenciadora de carreiras artísticas com sede em São Paulo. Em poucos dias, gravam uma versão “turbinada” do videoclipe “Envolvimento” com a produtora Kondzilla, detentora, na ocasião, do terceiro maior canal de todo Youtube, com mais de 60 milhões de inscritos. O status de gravar um videoclipe para a Kondzilla e de “assinar”

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com a gravadora Start Music, ambos notáveis por investir maciçamente em artistas de funk, sitou o Bregafunk como parte integrante da narrativa do funk, ou seja, sua entrada no mainstream brasileiro foi atravessada por uma série de comparações com o principal gênero musical “nascido” nas periferias do País. Principalmente nos grandes veículos de mídia, MC Loma era constantemente chamada de “funkeira”30, evidenciando zonas classificatórias que apagam a terminologia “brega” ao vincular a cantora a um gênero musical. O trânsito de ocupação de playlists em plataformas de áudio (como o Spotify) também evidenciou uma zona turva em que se localizou o Bregafunk na ocasião de sua nacionalização. Quando a faixa “Envolvimento” ocupou a primeira posição das “As 50 mais virais” do Spotify, em fevereiro de 2018, ela se encontrava em playlists de Funk. Só uma semana depois, a principal plataforma de consumo de música em streaming no Brasil criou uma playlist específica intitulada Bregafunk – e que trazia a imagem de MC Loma e as Gêmeas Lacração ilustrando a capa da referida playlist. Mais do que apontar equívocos ou evidenciar “erros”, o interesse aqui é perceber como estes mal-entendidos sobre os percursos das primeiras canções de Bregafunk reiteram tanto a hegemonia do funk como cancioneiro pop periférico brasileiro, quanto mostram uma série de marcações e apagamentos de outras expressões que circundam o gênero musical. Sobretudo aquelas vindas, por exemplo, de regiões fora do Sudeste, como o Nordeste do Brasil – que era o caso do Bregafunk. Em fevereiro de 2018, outro famoso personagem já amplamente 248


conhecido no contexto de Recife emerge em destaque nacional. Alef Pereira, o Dadá Boladão, ganha reportagem no portal Kondzilla como aquele que vai “apresentar” o Bregafunk para públicos mais amplos, sendo apontado como “o cara que está construindo uma ponte sólida entre o som de Recife e São Paulo, sem deixar de perder o seu estilo próprio”31. Aquele ano foi inteiramente dedicado às negociações, contratações, tensões e deslocamentos de artistas do Bregafunk de Pernambuco para São Paulo. Como aponta Bento (2018), a intensidade de intercâmbios entre produtoras paulistas e artistas pernambucanos fez emergir uma série de “novidades” mercadológicas derivadas do Bregafunk, criando ora acentos mais românticos (como no “batidão romântico”), ora criando conexões mais evidentes com a cultura pop e a música eletrônica (como no “brega rave”). O que o processo de consagração do Bregafunk revela é a aparição de dois processos sobre a produção e o consumo de música brega em Pernambuco. De um lado, a jovialização do cancioneiro bregueiro, a partir da conexão estética e sonora com o funk; de outro, a emergência de uma dinâmica que chamaremos de racialização da música brega, ou seja, o reconhecimento do protagonismo de artistas negros e negras e também sobre processos de silenciamento racial que integrou parte da história da música brega em Pernambuco.

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Jovialização e racismo O Bregafunk resulta da necessidade de agenciamento do brega sob a alcunha de uma música brasileira e não apenas pernambucana, na tentativa de ampliação de mercado e de um processo de jovialização do gênero musical. Antes de serem categorizações musicais homogeneizantes, os gêneros musicais permitem que músicos e audiência estabeleçam balizas para as disputas de gosto, ao mesmo tempo em que permitem a construção de assinaturas específicas, a marca distintiva do artista. Este processo ocorre a partir de uma ampla rede de articulações que envolve sonoridade, audiovisual, processos de recomendação, agrupamento de produções, afirmações de gosto, letras, biografias, críticas culturais, entrevistas, etc. (JANOTTI; PEREIRA DE SÁ, p. 4, 2018).

O processo de celebrização de MC Loma e as Gêmeas Lacração mobiliza uma rede de fãs, admiradores e fruidores do Bregafunk que vai aderir a uma série de disposições estéticas do próprio gênero musical e jovializá-lo. Importante observar neste processo de jovialização do brega que, para se conectar com circuitos musicais, de festas e de eventos ligados a jovens, ao mesmo tempo evidenciar uma “oxigenação” da própria música brega em direção a lógicas mais globais, produtores e empresários colocam em cena protagonistas (cantores e cantoras) bastante jovens (MC Loma tinha, na ocasião de sua consagração nacional, 15 anos); ao mesmo tempo percebe-se uma maior intensidade de trocas simbólicas entre diferentes estratos de classes sociais no tecido urbano do Recife, 250


evidenciando que o processo de jovialização de um gênero musical implica também em sua mobilidade tanto pelos circuitos culturais e urbanos quanto digitais. O Bregafunk passa a ocupar tanto festas que já apresentavam um viés mais descolado (como o Brega Naite e o Bregalize, por exemplo) além de festivais de música com “pegada” mais independente (No Ar Coquetel Molotov e RecBeat) mas também adentra o circuito de eventos ligados a produtores de rave e música eletrônica (como o selo de festas Carvalheira e Deluxe, consideradas “grifes” de eventos em Pernambuco e mobilizadoras de públicos de classes sociais mais altas e amplamente brancas). A capilaridade do Bregafunk nos atravessamentos das classes sociais em Recife se dá não sem, antes, gerar tensões. Foram frequentes as acusações de preconceito e racismo no tratamento de MCs e produtores durante festas, gerando acalorados debates nas redes sociais digitais, aumentando a temperatura nestes ambientes, ao mesmo tempo, mobilizando fãs e admiradores em torno de pautas sobre racismo e preconceito de classe social e gênero. Importante destacar que além de jovens, grande parte dos artistas de Bregafunk também são negros ou pardos, muitos deles vindos das periferias da Região Metropolitana do Recife. Estes marcadores sociais são os principais acionadores de diferença quando o Bregafunk passa a ocupar festas da “alta sociedade” do Recife, casamentos em casas de festas abastadas além de eventos corporativos de empresas. Artistas de Bregafunk são chamados de “maloqueiros” por produtores32 e impedidos de subir ao palco de eventos em praças públicas

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porque sua música “incitaria violência”33 - exemplos do sectarismo de classe social e do racismo que permeiam o cotidiano dos artistas de periferia e de grande parte de indivíduos negras e negros pobres do País. Importante demarcar que a presença corporal de artistas e produtores negros em festas “abastadas” da sociedade pernambucana criaram tensões raciais (ora silenciosas, ora nem tanto), mas também oportunizaram que artistas brancos (sobretudo DJs) incorporassem Bregafunk em seus sets e playlists, fazendo com que produtores de eventos eventualmente deixassem de contratar artistas da periferia em troca de mediadores culturais (DJs brancos e socialmente alinhados ao perfil de classe social das festas) que “apaziguassem” os possíveis tensionamentos raciais. Este efeito de substituição, exclusão e apagamento de pessoas negras do tecido urbano integra uma lógica que apresenta lastro histórico no Brasil desde a abolição da escravatura em 1888 (SCHWARCZ, 2012), quando contingentes de exescravos passaram a “ser vistos” nas cidades brasileiras fora das atividades de trabalho na lavoura, muitos deles então “libertos” ocupavam lugar de destaque em atividades artísticas ligadas à produção musical, ao teatro e à dança (ABREU, 2017). Esta visibilidade de artistas negras e negros geraram, desde o século XIX, tanto o fascínio das classes altas sobre as práticas artísticas desenvolvidas e apresentadas por negras e negros, mas também o reforço do racismo em situações de ampla visibilidade destes sujeitos34. A historiadora Martha Abreu reúne as práticas musicais 252


e artísticas que aconteciam nas senzalas e que foram “apresentadas” ao mundo gerando tanto fascínio quanto repulsa em sua obra “Da Senzala ao Palco” (ABREU, 2017), em que nomeia expressões como batuques, lundus, jongos e maxixes, no caso do Brasil, e coon songs, cakewalks, rags, spirituals, no caso dos Estados Unidos como “gêneros musicais ou danças muito variadas, mas que se relacionavam com o passado da escravidão e com memórias do cativeiro e, desta forma, ganhavam expressão nos títulos das canções, nos versos, nas formas de representar e dançar, na caracterização dos músicos” (ABREU, 2017, p. 6). Ao fazer este recuo histórico, a tentativa aqui é de perceber como os processos de jovialização da música brega, que implica em incorporar jovens negras e negros à paisagem humana do gênero musical, realça a mobilidade de sujeitos e também os estigmas que esta ampla circulação proporciona. Traduzindo: as músicas e danças produzidas por negros podem circular, desde que seus agentes produtores (os próprios corpos negros) não circulem. Abreu vai chamar este apelo às expressões artísticas oriundas das senzalas e que geravam fascínio das classes sociais altas e brancas brasileiras e estadunidenses pós-aboliação da escravatura de “negrofilia” – ou seja, ao lado do interesse e da “celebração”, especialmente em relação às novidades que a música negra trazia, percebe-se o reforço de visões racistas que estigmatizavam a população negra e naturalizavam suas habilidades no campo musical. Segundo Abreu, o livro “Brasil Sonoro”, de Mariza Lira, escrito em 1938, ajuda a entender como a escrita sobre a música negra não explicitava esse paradoxo e silenciava sobre o racismo: “O lundu não se deixou 253


ficar nas senzalas, os moços brancos seduzidos pela letra desabusada e pela música desenvolta… trouxeram-no para a alegria das serenatas”. O argumento de Lira é de que o lundu teria chegado às serenatas “apenas” a partir do interesse e do papel dos “moços brancos”, atraídos pela letra “desabusada” e posteriormente pelas danças tidas como sensuais e modernas. A autora não menciona que esta incorporação do lundu na serenata, na verdade, era também uma forma de tirar de circulação os corpos negros das festas abastadas da sociedade pós-escravidão. O parêntesis histórico é importante para que se observem que as práticas musicais e artísticas realizadas por sujeitos negras e negros no Brasil encontra um lastro de fascínio e exclusão, em que a emergência do Bregafunk se insere.

“Só Dá Tu”: a dança em rede Para além de um roteiro histórico mais amplo, é possível pensar sobre a formação performática dos artistas do Bregafunk, muitos desvinculados da dimensão estética da música brega romântica e mais próximos narrativa e corporalmente do universo dos bailes funk. A música brega conviveu, desde o final da década de 1990, com uma pulsante cena de funk no contexto de Pernambuco (ALBUQUERQUE, 2018) com a presença de festas em

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clubes de bairro e equipes de som comandada por DJs que se inspiravam em ídolos do funk carioca como MC Galo e DJ Malboro (da produtora Furacão 2000). Esta cena de festas de funk em clubes de bairro do Recife funcionou como uma espécie de formação performática de artistas que viriam se consagrar no cenário do Bregafunk posteriormente, como MC Leozinho e MC Elloco. É no contexto midiático de crescimento das redes sociais digitais e na consolidação do YouTube como plataforma de compartilhamento de vídeos que se destaca a abertura performática da música brega pernambucana ao funk. A multimodalidade das redes sócio-técnicas que permitiram o processo de consagração e jovialização do bregafunk trouxe à tona, além do Youtube, outro importante ator social não-humano, que seria fundamental na retroalimentação e longevidade do gênero musical na cultura digital: o Instagram. Uma vez nas redes sociais digitais, o Bregafunk passa a ser disputado por novos artistas como parte central das disputas em redes sociais digitais: anônimos viram protagonistas, criando redes em torno de sua presença e de suas recomendações, capitalizando indicações, formando parcerias e engendrando sistemas comunicacionais complexos que fazem como que anônimos sejam catapultados ao sucesso nas redes a partir de um traço performático característico: a dança. Para entender o amplo sentido que a dança teria no

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Bregafunk, é preciso voltar ao ano de 2017, quando, um ano antes da viralização do videoclipe “Envolvimento”, de MC Loma e as Gêmeas Lacração, um outro fenômeno viral, agora de “dança em rede social” tomou conta das redes sociais digitais, conectando vídeos postados no Youtube com ações em vídeos virais no Instagram: o “Desafio Só Dá Tu”35 (SANTOS, LOPES e SOARES, 2018). “Só Dá Tu”, cantada pela banda A Favorita, é a versão em brega da música “I Got You”, da cantora estadunidense Bebe Rexha e integra uma prática usual no contexto da música brega de Pernambuco: a realização de versões de hits da música pop com acento bregueiro. O que diferencia “Só Dá Tu” de outras versões reside naquilo que viria consagrar outras canções de brega romântico e de Bregafunk no contexto das redes digitais: o seu apelo para dança. O “Desafio Só Dá Tu” consistiu num processo de viralização espontâneo de práticas coreográficas em vídeos amadores primeiramente no Youtube, depois em redes sociais digitais como o Instagram e em aplicativos de mensagens diretas como WhatsApp, em que jovens realizam passos de dança bastante simples como levantar os braços e baixálos, associado ao ato de agachar “arrebitar” o quadril no momento em que a cantora Raphaela Santos, vocalista da banda A Favorita, canta o refrão da canção enquanto estende vocalmente o “tu” do verso “Só dá tu”. Aliás, esta simplicidade do verso presente no refrão e a singularidade

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do canto de Raphaela Santos, com tom bastante agudo e notável extensão vocal, fazem com que a canção congregue características sonoras já notadamente “viralizáveis”. A criação de canções “viralizáveis” é uma prática comum nas músicas populares e periféricas, seja no brega, no funk, no forró, como parte integrante de um “capital de viralização” capaz de catapultar artistas e mobilizar atenção em rede. Consiste em trazer à tona expressões populares, gírias ou termos que potencialmente podem se tornar memes digitais e agregarem atenção, mobilizando atenção através do humor, da sagacidade e do interesse em algo corriqueiro. Ao contrário de um processo longo de escolhas no processo de composição, o compositor da versão de “I Got You” para o brega, Elvis Pires, disse, em entrevista ao JC Online, que a criação da faixa durou “cinco minutos”. “Conheci a música da Bebe Rexha através da Raphaela (vocalista d’A Favorita). De cara eu gostei e pedi para fazer a base brega em cima da versão original”, explica o compositor. A expressão “Só Dá Tu” veio graças à sonoridade com que a cantora norte-americana pronuncia a frase “I Got You”, também estendendo o “you” em torno de todo o refrão, evidenciando um caráter de tactilidade com que compositores populares adaptam linguisticamente e constroem suas versões. Longe de um processo de “fidelidade” ao original, o processo de composição parece

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privilegiar outros valores sonoros e musicais, um deles é a capacidade de “captação” de atenção, do inusitado de algum trecho ou expressão contida na canção e também diante de uma dimensão que acione algum traço humorístico. Inicialmente lançada como áudio no Youtube, a versão brega de “I Got You” (a faixa original foi nada mais do que um sucesso moderado nas paradas pop brasileiras), mobilizou práticas coreográficas que foram “memetizando” outras coreografias, compondo um quadro em que a ideia de competição e, portanto, de “desafio” se instaurasse. Um dos primeiros vídeos que evidenciaram a potência viral de “Só Dá Tu” veio de alunos da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco, em que, aparentemente no horário do intervalo, um grupo de nove jovens realiza a simples coreografia (só que de mãos dadas), enquanto, ao chegar no compasso do refrão “só”, “dá”, “tu”, eles soltam as mãos e “arrebitam” o quadril ao final. Parecia haver o acionamento de uma dimensão inusitada na canção composta por Elvis Pires (a extensão do “u” no verso “só dá tu”) que se espraiava também para a prática coreográfica. A viralização do “Desafio Só Dá Tu” se deu a partir da competição sobre como a coreografia do refrão da canção iria aparecer. Em tese, a narrativa do vídeo coreográfico consistia em exibir alguém realizando uma atividade corriqueira ao som da canção e, quando emergia o

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verso de “Só Dá Tu”, a pessoa fazia a coreografia de erguer os braços e “arrebitar” o quadril. O caráter inusitado fez com que aparecessem vídeos em que as pessoas saíam do guarda-roupa e até da geladeira na ocasião do refrão da canção, fazendo com que tais vídeos gerassem engajamento, curtidas e compartilhamentos em diversas redes sociais. Um dos vídeos mais compartilhados foi o do dançarino Beto Júnior, que, na ocasião, morava na China e realizou a coreografia do “Desafio Só Dá Tu” em plena Muralha da China, evidenciando o caráter global das redes sociais digitais e mostrando o “alcance” do sucesso da coreografia. É o vídeo viral da coreografia de “Só Dá Tu” na Muralha da China que engaja a própria banda A Favorita na narrativa viral. Segundo depoimento de Beto Júnior para o site G1, que havia dançado e coreografado profissionalmente para a banda, ele enviou o vídeo dançando no monumento chinês apenas para a vocalista Raphaela Santos, que prontamente dispôs nas redes sociais da banda A Favorita. Depois da espontaneidade do processo viral, a banda passou a gerenciar o “Desafio Só Dá Tu”, incentivando que fãs e anônimos fizessem a coreografia e marcassem 25 perfis para que eles também realizassem a coreografia. Artistas como Preta Gil e Valesca Popozuda gravaram vídeos dançando “Só Dá Tu” e o auge do compartilhamento desse conteúdo pôde ser observado quando a cantora

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da faixa original “I Got You”, a estadunidense Bebe Rexha compartilhou em seu perfil no microblog Twitter a frase “Só Dá Tu” e um vídeo onde entoava o famoso trecho da versão de brega. A viralização da coreografia de “Só Dá Tu”, em setembro de 2017, leva a canção ao topo das faixas mais ouvidas na playlist “Viral Brasil” da plataforma Spotify naquele mês e evidencia aquilo que seria uma das marcas tanto do Bregafunk quanto da jovialização do brega romântico em plataformas de compartilhamento de vídeos e aplicativos como o Tik Tok: as práticas coreográficas em rede sociais digitais que colocariam em cena novos atores sociais nesta ampla conexão do Bregafunk, o “passinho dos malokas”.

“Passinho dos malokas”, celebrização e estigma No final de 2015, emerge nas periferias da Região Metropolitana do Recife uma dança que mesclava passos do funk, da swingueira e do street dance: o “passinho dos malokas36. Os malokas (gíria para “maloqueiro”, “meninos da periferia”, “galeroso”) realizavam coreografias em que movimentam os braços e a região da virilha, simulando movimentos sexuais e mesclando conotação erótica com irreverência. Sarrada, puxada, laço e ombrinho são alguns dos nomes atribuídos aos principais movimentos

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coreográficos que iriam habitar vídeos dispostos em redes sociais e instaurar novos movimentos de intensificação dos processos de celebrização de anônimos no contexto da música brega de Pernambuco. A dança, mais uma vez, se consagra como um elemento intensificador da presença em rede social e das disputas de valores que surgem dentro do gênero musical. O termo passinho se populariza nacionalmente no ano de 201337, com o processo de viralização do vídeo “Passinho do Volante”, de MC Federado e os Leleks, quando quatro jovens e seus vizinhos em diferentes locações na Vila Leôncio, no Rio de Janeiro, executam coreografias a partir da gíria “lelek” (corruptela de “moleque”), repetida à exaustão (PEREIRA DE SÁ e EVANGELISTA, 2014). Em setembro daquele ano, durante a apresentação no festival Rock in Rio, no Rio de Janeiro, a cantora pop Beyoncé, para mostrar afinidade e conexão com o público brasileiro, também dança a coreografia do “passinho do volante”38. Na época, os jovens já faziam sucesso com a coreografia do “passinho” durante bailes funk em diferentes pontos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. As batalhas de passinho do Rio de Janeiro, que consistiam nas disputas entre dançarinos de funk, revelaram tanto dançarinos quanto artistas e passaram a retroalimentar as redes sociotécnicas das periferias brasileiras com evidências coreográficas virtuosas que passaram a ser

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disputadas também em redes sociais digitais. É na conexão do Youtube com a rede social Instagram que se notarizaram passos acrobáticos dos dançarinos de passinho, seja no cruzamento das pernas, do agachamento e dos movimentos dos “quadradinhos” e que viriam a ser importantes mediadores de valores coreográficos tanto no funk quando em outros gêneros musicais. Importante perceber como a ideia de vigor e “entrega” são consagrados nas batalhas de passinho e novamente acionados em outros contextos como no Bregafunk. Sem camisa, corrente no pescoço, uma ajeitada na bermuda para mostrar mais as coxas e aumentar o volume entre as pernas, leve flexionada dos joelhos, cara sensual e assim os dançarinos de passinho vão recebendo curtidas. Os vasos comunicantes das redes sócio-técnicas fazem surgir novos atores sociais na cena Bregafunk, como os dançarinos de passinho dos malokas. Grupos como Magnatas do Passinho S.A, ou dançarinos como San do Passinho e Clarinha do Passinho são reconhecidos através de seus números de seguidores e de curtidas como exímios “quebradores”. Videoclipes como “Gera Bactéria”, da dupla Shevchenko e Elloco, localizam que “esse passinho é louco e nasceu na favela” como reivindicação de uma autenticidade que se conecta a uma narrativa já encenada pelos artistas do funk carioca ainda na década de 1990. Aliás, foi o videoclipe “Gera Bactéria” um dos principais

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catalisadores de vídeos que celebrizaram dançarinos de passinho. Um deles foi San do Passinho, que após compartilhar vídeos “quebrando” em suas redes sociais, criando coreografias com amigos do bairro de Água Fria, na periferia do Recife, formou o grupo Os Lokos e foi contratado pelos MCs Shevchenko e Elloco para se apresentar no “corpo de baile” da dupla. O passinho dos malokas se conecta ao Bregafunk mas cria dinâmicas autônomas a partir da consagração de dançarinos e não necessariamente cantores. Algumas das figuras célebres do passinho dos malokas lançam a carreira como dançarinos ou influenciadores digitais, recomendando marcas ou recebendo cachês para divulgar produtos e parcerias. Youtubers de dança figuram em vídeos dispostos em canais como FitDance, acionando um novo ecossistema na plataforma de vídeos, mais conectada à realização de desafios coreográficos e à dança popular. Dançarinos como o sul-matogrossense Dynho Alves têm coreografias autorais consagradas e passam a elaborar passinhos em videoclipes de ampla circulação, como “Sentadão”, parceria de Pedro Sampaio com Felipe Original e JS o Mão de Ouro. A presença do DJ carioca Pedro Sampaio, que se consagra com a faixa de Bregafunk “Sentadão”, em 2020, incide numa disputa pela origem e reafirmação do Bregafunk como “pernambucano”. Ao mesmo tempo que se nacionalizava e despertava interesse de artistas conectados

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à cena do funk e da música pop, o Bregafunk era “trazido” de volta a Pernambuco, por artistas que demarcavam a autenticidade e origem do gênero musical nas periferias da Região Metropolitana do Recife. A ostentação da bandeira do Estado de Pernambuco como marcação de origem no videoclipe “Ninguém Fica Parado”, de Shevchenko e Elloco e Maneirinho do Recife apresenta este traço performático e “diferencial” do cancioneiro de Bregafunk que era feito “aqui” em contraponto àquele feito “de fora”. Em um vídeo produzido pela produtora KondZilla e com claro endereçamento nacional, os MCs cantam e dançam enquanto seguram a bandeira de Pernambuco39. Enquanto as coreografias do passinho dos malokas tomavam nas redes sociais digitais e faziam com que os artistas das periferias inclusive se conectassem com símbolos identitários pernambucanos, mobilizando curtidas e elevando ao status de celebridades uma série de jovens das periferias do Recife, no tecido urbano da capital pernambucana, uma série de tensões emergiam, colocando em evidência estigmas e marcadores sociais e raciais. Dançarinos e dançarinas de passinho dos malokas anunciam nas suas redes sociais que vão dançar em locais públicos e convocam fãs para encontrá-los. De forma semelhante aos episódios conhecidos como “rolezinhos” (no contexto paulista), quando jovens negros das periferias de cidades de São Paulo eram hostilizados

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ao se reunirem para se encontrarem e darem um “rolê” pelos shopping centers, os encontros regados a dança e coreografias de passinho dos malokas ganhavam um componente ainda mais perverso no contexto do Recife: os jovens eram hostilizados (e expulsos) não em espaços privados como em shopping centers, mas em locais públicos, de ampla circulação de pessoas, sobretudo quando estes lugares estavam localizados em bairros abastados da capital pernambucana40. Pedidos para que grupos de jovens dançando passinho “se retirassem” de parques públicos e praças por “ameaça à ordem pública” foram amplamente compartilhados em redes sociais e noticiados na mídia. Episódios de hostilidade de grupos de policiais com dançarinos e dançarinas de passinho evidenciam traços de desigualdade, do racismo e da exclusão social que permeiam a sociedade brasileira. Bairros nobres do Recife quando “invadidos” por jovens negros oriundos das periferias, mesmo que apenas dançando e se divertindo, fazem emergir tensões nas redes de comunicação das cidades. Diante de um contexto de polarização política desde a emergência de grupos de extrema-direita nas redes sociais digitais a partir de 2016 e a mobilização de uma pauta moral em torno de costumes, o Bregafunk passa a ser disputado também do ponto de vista político, como acentuador de uma pedagogia do corpo, de uma

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erótica da dança popular e dos dispositivos flutuantes das performances de gênero. Frequentemente “acusado” de “perverter” mentes e “sexualizar” crianças, o gênero musical passa a integrar uma agenda moral fortemente ligada a grupos conservadores.

Disputas morais através do Bregafunk Ligo a seta do carro para pegar a rua Arão Lins de Andrade, que liga os bairros de Piedade e Prazeres, ambos na cidade de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. É um domingo à tarde e, à medida que vou adentrando às áreas mais residenciais e populosas do bairro de Prazeres, uma paisagem humana se desvela: crianças e jovens dançam passinho dos malokas nas calçadas enquanto a música alta vaza entre casas e estabelecimentos comerciais fechados. Num cruzamento pouco movimentado, grupos de amigos “fecham” a rua com barras improvisadas de madeira enquanto jogam futebol. Há também cadeiras nas calçadas com senhoras que assistem despreocupadas aos embates coreográficos e esportivos. As batidas metálicas do Bregafunk não só embalam passos organizados de jovens em duplas, trios e quartetos que parecem competir entre si, informalmente, pela atenção dos transeuntes. Alguns, mais despreocupados, seguem o ritmo

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da música, ignorando competições, disputas. O Bregafunk também embala o jogo de futebol. Entre um drible e outro, uma “kikada”, sobretudo depois de um gol ou de um lance polêmico. Os diferentes tons de pele dos jovens são realçados pela ausência de camisa, pelas bermudas largas e por alguns cabelos “descoloridos”, em cortes “raspadinhos” e com “risquinhos” na sobrancelha. Ao final desta rua “fechada” pela partida de futebol está uma igreja evangélica, com muro pintado de branco e uma arte gráfica vermelha dizendo “Deus é Amor”. À medida que a tarde vai caindo e chega à noite, as batidas do Bregafunk vão esmaecendo, tornando-se fugidias, quase inaudíveis. A barra do gol é retirada, os jogadores estão com sede, vão beber água ou cerveja, batidas nos ombros dos amigos, a “resenha” com um grupo de adolescentes que passa. A tarde cai embalada pelo baixar o volume das batidas do Bregafunk e pelo aumentar o volume dos louvores da música gospel. É quase a passagem de som de um DJ imaginário que vai recuando de uma faixa sonora para a aparição de outra, uma transição lenta e gradual, que também vai alterando a paisagem, os corpos e os ritmos daqueles que vão se recolhendo em suas casas ou saindo para a rua. Numa casa de portão metálico, muro alto e repleta de grades brancas, um grupo que eu deduzo ser uma família (homem e mulher adultos e duas jovens), todos de cabelos

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molhados e roupas claras, mulheres de cabelos longos e lisos, o único homem vestindo uma camisa abotoada e formal, sai em direção à igreja no fim desta mesma rua. Eles caminham na mesma calçada em que, horas antes, grupos de jovens dançavam passinho. Mais alguns passos adiante, acho que a mulher adulta do grupo leva uma Bíblia, passam a caminhar pela rua – aquela que estava fechada para o jogo de futebol improvisado. Na calçada, restos de cimento de uma obra inacabada, peças de porcelanato aguardando serem dispostas num muro em construção. Enquanto esta família caminha pelos espaços que, mais cedo, estavam ocupados pelo jogo, pela música e pela dança, começo a perceber que a questão do Bregafunk nas periferias da Região Metropolitana do Recife diz respeito sobretudo a disputas morais que se encenam no cotidiano, nas relações familiares, interpessoais, de vizinhança e comunitárias. A questão da moral é bastante ampla nos estudos sociológicos, antropológicos e comunicacionais porque se refere, de forma bastante abrangente, à dimensão prática da vida humana, à esfera da ação e a orientações por princípios que dividem as coisas entre bem e mal, bom e ruim, certo e errado, justo e injusto. Desse modo, é possível perceber que a moral é algo indissociável da vida coletiva, independentemente de como seja definida, fundamentada ou explicada. Afinal, os princípios morais orientam a vida dos indivíduos e impactam a vivência em grupo. Diferentes

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configurações sociais criam ou validam diferentes princípios morais com consequências sobre a vida dos indivíduos. Em sentido amplo, a moral é sempre disputada em contextos diversos e se edifica a partir de consensos e dissensos que vão se formando a partir das tessituras da vida cotidiana. Refletir sobre como se constroem as disputas morais a partir do Bregafunk apresenta implicações que me deslocam para o contexto desta rua descrita no bairro de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, porque é a partir das paisagens humanas e social que emergem quadros cotidianos em que as tensões aparecem sem serem discursivizadas, relatadas, apresentadas com clareza. Trata-se de uma esfera sensível que habita os espaços e lugares nas periferias, em que as coreografias dos gestos cotidianos, as aberturas e fechamentos de janelas, de portas, o aumentar ou baixar o volume das músicas, os corpos que se apresentam mais ou menos vestidos, os cortes de cabelo, os olhares de soslaio, as retiradas das cadeiras das calçadas, são indicativos de disputas morais presentificadas a partir do Bregafunk. A hipótese das disputas morais a partir da música brega já apareceram nas entrevistas da pesquisa de campo para a realização deste livro, na ocasião das festas bregueiras em que jovens evangélicas, embora concedessem entrevistas, preferiam não revelar os nomes e atestavam que ocultavam em suas famílias (em geral formada por pais e mães evangélicos) a ida àqueles eventos. Este silenciamento

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voluntário de jovens sobre suas práticas de lazer e diversão seculares (não religiosas) ligadas à música brega parecia ser o sintoma de um conjunto de práticas regulatórias morais existentes nos ambientes familiares. Em muitos relatos, a ideia de que a “ida a uma festa de brega” aparecia conectada a ideais de que você seria uma pessoa “devassa”, imoral ou ligada a valores “deturpados” era recorrente. Este indicativo se acentuava quando se fazia um recorte de gênero: mulheres eram mais cobradas a não irem aos eventos como as festas de brega para que não “servissem de mau exemplo” para outras. Esta configuração avaliativa moral no cotidiano se conecta à capilaridade que as igrejas evangélicas tiveram nas periferias brasileiras deste a década de 1980 (CUNHA, 2019), quando se desenham as ações pentecostais marcadas pela presença junto às populações empobrecidas e periféricas das cidades na América Latina. A prática das igrejas pentecostais “tornou possível o enraizamento nas culturas populares, com lugar garantido para a emoção e expressões corporais e musicais, ainda que marcada por um puritanismo de restrições morais e culturais” (CUNHA, 2019, p. 25). As restrições à circulação, aos usos de determinadas roupas, às práticas chamadas “hedonistas” são vistas frequentemente como valores amplamente consagrados a partir de ideais de moralidade cristãos e amparados por

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discursos religiosos. Estudiosos da religião localizam que, entre as décadas de 1990 e 2000, as ações pentecostais representadas sobretudo pela Assembleia de Deus se intensificam e ramificam para o que se convencionou chamar de neopentecostalismo – vinculando igrejas como Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, entre outras. O crescimento do contingente evangélico no Brasil se reverte em ocupação política (através de bancadas em câmaras municipais, estaduais e federais), visibilidade midiática (amplo espaço para a música cristã gospel, festivais e megaeventos, além de novelas com temáticas religiosas e bíblicas) e consagração de valores conservadores como a “defesa da família” e a rivalização com pautas identitárias sobretudo de representantes LGBTQIA+ e dos movimentos sociais feministas. As disputas morais a partir do Bregafunk nas periferias da Região Metropolitana do Recife são acionadas a partir das zonas de fricção entre ações de parte da juventude e seus enquadramentos dentro de padrões de ruptura daquilo que se constrói consensualmente em contextos específicos como “normalidade”. Neste sentido, ouvir, dançar ou ir a festas de brega romântico e de Bregafunk acompanha, em contextos periféricos na Região Metropolitana do Recife, um conjunto de pré-julgamentos sobre aspectos morais e éticos de indivíduos, tendo em vista a formação moral e

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religiosa pentecostal e neopentecostal que se enraíza nas periferias brasileiras, pelo menos, desde a década de 1980. Este debate incorre na valorização de uma juventude cristã, religiosa e moralmente “consciente” em oposição a grupos de jovens hedonistas, de “fora da igreja” e “perdidos”. Tratase, antes de tudo, de um debate binário que reproduz a lógica de conversão e de conquista de fiéis que pautou as práticas missionárias das igrejas evangélicas no contexto brasileiro. O binarismo moral entre bom e mau, certo e errado, “consciente” e “perdido”, referindo-se a parte da juventude nas periferias brasileiras, obviamente, é insuficiente para tratar das nuances, negociações e rearranjos nos cotidianos. Dançarinos e dançarinas de passinho que se tornam evangélicos, fiéis que longe dos olhares dos pastores frequentam festas de brega, cantores de Bregafunk que aderem a discursos religiosos e motivacionais integram um conjunto complexo de rasuras performáticas e experienciais que habitam as relações humanas nos tecidos urbanos e sociais das periferias. A tematização sobre a interpenetração da juventude pobre e periférica do Brasil a partir de vínculos com a música esteve presente na produção da artista Bárbara Wagner nas obras “À Procura do Quinto Elemento” e “Terremoto Santo” na exposição “Corpo a Corpo: a disputa das imagens, da fotografia à transmissão ao vivo”, com curadoria de Thyago

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Nogueira, que passou pelo Instituto Moreira Sales, do Rio de Janeiro e São Paulo, entre os anos de 2017 e 2018. “À Procura do Quinto Elemento” é uma obra composta de 52 fotografias e um vídeo com as apresentações de MCs em um reality show para a escolha de um “novo artista” para uma importante produtora de funk paulista. Retrata, como atesta o curador Thyago Nogueira, “uma geração acostumada às selfies e às redes sociais, que sabe usar a pose e a performance de palco para tratar de seus anseios, disputar um lugar ao sol e ascender socialmente”. Grande parte dos concorrentes a MCs no reality show são jovens pobres e negros das periferias que encontram no funk (e na música) uma forma de visibilidade e ascensão social. O embate moral, ético e performático da obra de Bárbara Wagner se apresenta quando a artista dispõe, ao lado de “À Procura do Quinto Elemento”, o filme “Terremoto Santo”, feito em colaboração com o artista Benjamin de Burca, um documentário musical com jovens da Zona da Mata pernambucana que sonham em gravar um videoclipe gospel. “A expressão musical é parte importante da liturgia evangélica da região, o que permite que os jovens usem a imagem e a voz para buscar uma nova forma de trabalho. A performance diante da câmera também revela aspectos sociais, econômicos e estéticos da prática pentecostal”, afirma o curador Thyago Nogueira. O que a descrição dos cotidianos das periferias brasileiras e

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as obras de Bárbara Wagner nos sugerem é que as disputas morais a que estamos nos referindo é atravessada pela questão da imagem e do som (da música), por um conjunto de ambiguidades e interditos que constituem as práticas performáticas dos sujeitos em seus contextos sociais. Compreender as construções de consensos morais em torno de corpos que circulam pelas periferias da Região Metropolitana do Recife e também em diversos contextos brasileiros, devem auxiliar para leituras menos binárias e moralistas da realidade, colocando em evidência as vivências sociais e humanas como partes integrantes de projetos inacabados de sujeitos, sempre em construção e em diálogo com instituições e normatizações.

Julgamentos e conhecimentos corporais No dia 28 de agosto de 2019, a integrante da bancada evangélica da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), deputada Clarissa Tércio (PSC), apresentou o PL 494/ 2019, que dispunha “sobre a proibição de exposição de crianças e adolescentes no âmbito escolar, a danças que aludam a sexualização precoce e inclusão de medidas de conscientização, prevenção e combate à erotização infantil nas escolas do estado de Pernambuco”41. Sem mencionar diretamente o passinho dos malokas, o PL indiretamente se constituía a partir das práticas de danças sobretudo ligadas

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ao Bregafunk em contextos escolares. O debate foi pautado por disposições morais: “uma criança dançando na escola, balançando o bumbum, não é cultura”, afirmou, na ocasião, a deputada em suas redes sociais. Conforme radiografou Mariama Correia42, no site Marco Zero, ao menos, cinco projetos de leis em contextos que passaram por São Paulo, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Paraíba e Pernambuco apresentavam tentativas de censura a dança em ambientes escolares. Valores compartilhados por admiradores do passinho dos malokas em comentários nas redes sociais dos artistas destacam que o virtuosismo da dança está articulado à violência da “kikada” (gesto em que pode ser compreendido como a “sentada” num gesto bastante semelhante ao do funk) ou pela “bingada” (em que o dançarino projeta a pélvis simulando um coito). A sexualização dos gestos de danças do passinho traz à tona um conjunto de controvérsias morais em torno deste tipo de prática. Na esteira das danças populares, o passinho dos malokas encena uma articulação da relação do corpo, com a pélvis e as nádegas, algo bastante presente em formas de danças como o samba ou o forró. O capital social mobilizador da dança em redes sociais digitais a partir do passinho dos malokas integra valores que são vistos como “deturpadores” da moral para jovens. O enquadramento moral sobre os gestos do passinho

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não leva em consideração um conjunto de disposições que dizem respeito a práticas corporais amplamente presentes nas culturas populares. O corpo e o prazer da dança, em grande medida, vinculam-se a leituras sexuais de gestos coreográficos realçando a necessidade de impor disposições regulatórias que impeçam jovens a dançarem. Além do prazer da dança, é na chave da relação corporal, das descobertas dos movimentos e do entendimento de seus próprios corpos que jovens utilizam-se da dança como estratégia de visibilidade. O investimento nos corpos que dançam (ou que podem e devem dançar) estabelece modos de subjetivação complexos, sutis, sedutores. Transformações que não se restringem ao uso dos novos aparatos tecnológicos. Enquanto baila-se com e na mídia, vai-se constituindo certos tipos de sujeitos. Nestas danças e nestes jeitos de dançar, vão se “colando” sentidos culturais, instruções, orientações de condutas e comportamentos. E neste movimento, aprender dança vai se tornando uma importante tarefa cultural (TOMAZZONI, 2015, p. 80)

Para além do discurso moralizante que se constrói sobre o passinho dos malokas, é importante evidenciar a dimensão pedagógica e de conhecimento do próprio corpo que a dança proporciona. Como aponta Tomazzoni, a dança se configura no espaço midiático como um discurso privilegiado mais intenso do que o discurso verbal. Dessa

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forma, mover-se dançando, tocaria numa espécie de regime de verdade para além da configuração discursiva da fala, como sugere o autor ao citar verso da canção “Hips don’t lie” (“Quadris não mentem”), da cantora colombiana Shakira: “Então seja sábio e continue/A ler os sinais do meu corpo/ Eu estou aqui nesta noite/Você sabe, meus quadris não mentem”. O corpo sexualizado que dança no ritmo do passinho dos malokas faz aparecer também um corpo espontâneo, que se entrega ao ritmo, prazer e deleite de ocupar o espaço público, seja nas redes sociais digitais, seja nas dinâmicas urbanas ou nos pátios das escolas. Os dançarinos de passinho dos malokas também coreografam o gênero na medida em que seus movimentos conectam performatividades (masculinidades e feminilidades) ao dançarem em rede. A dimensão pélvica dos movimentos, o acionamento da bunda, as marcações coreográficas que ressaltam órgãos genitais apresentam formas de inscrições dos corpos em enquadramentos culturais. Dançar significa generificar corpos, atribuir-lhes sentidos e sensibilidades, reconhecendo movimentos, dramaticidades e teatralidades que se dão nos campos de disputa das culturas. A questão não é apenas perceber como noções de masculino e feminino são engendradas no passinho dos malokas, mas sobretudo, pensar sobre os movimentos coreográficos que permitem o gênero aparecer e

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se estabilizar – embora sempre passível de novas instabilidades. É sobre o argumento coreográfico do gênero que Susan Foster (1998) se conecta às ideias de Tomazzoni (2015) para apresentar possibilidades de leituras de gênero em danças nas mídias. As coreografias de gênero implicam em perceber “movimentos de existência” dos sujeitos que dançam permitindo perceber resíduos culturais mediados nos corpos.

Dançarinas de Bregafunk: gênero, corpo, trabalho Adentrando ainda mais nas disputas morais em torno do Bregafunk é inevitável o reconhecimento das desigualdades de gênero no tocante à presença de homens e mulheres em lugares de destaque no panteão artístico do gênero musical. Durante os anos de 2017 e 2020, homens ainda eram amplamente reconhecidos como MCs e protagonistas no Bregafunk enquanto às mulheres cabia, em geral, o lugar de dançarinas e de “coadjuvantes” neste processo. Levantamento realizado pelos jornalistas Maira Stephane e Pedro Oliveira43, elencou que, no ano de 2018, dos 17 dos MCs mais populares de Bregafunk todos eram homens – levando em consideração engajamento e popularidade em redes sociais. Os “corpos de baile” destes artistas reuniam 34 pessoas, na ocasião, sendo 20 homens e 14 mulheres.

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As desigualdades de gênero integram parte significativa daquilo que mais amplamente chamamos de “políticas de gênero” (SOARES e LINS, 2017) ou seja as ações institucionais organizadas em torno do debate sobre igualdade de gênero, relações e hierarquias entre gêneros e suas transformações políticas, sociais e econômicas. Mesmo que as conjunturas de poder e interesse estejam em constante transformação, são justamente as estruturas hierarquizantes entre os gêneros as que permanecem profundamente enraizadas nas instituições e organizações da sociedade. Simultaneamente, a continuidade das assimetrias de poder entre os sexos tornou-se frágil. Elas são diferentes entre os sexos e dentro de cada grupo de gênero (STIFTUNG, 2007, p. 14). A política de gênero é um debate tão relevante quanto necessário na medida em que precisa se reconhecer as ações institucionais em espaços não tradicionais, como o mercado de música, amplificando a esfera do debate e circunscrevendo a busca pela revisão da presença essencialmente masculina nas instâncias de produção, gestão e consagração da indústria fonográfica e do mercado de música – fato que é amplamente debatido por Mello (2007), Citron (2001) e Cusick (2001) na relação entre hierarquias de gênero e musicologia. As hierarquias de gênero, portanto, seriam instâncias a serem questionadas pelas políticas de gênero em instituições do mercado

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musical como forma de apresentar relações menos assimétricas entre sujeitos nestes contextos. Neste contexto de desigualdade de gênero no Bregafunk, importante observar importantes atrizes sociais que evidenciam tais assimetrias de poder: as dançarinas. Ao mesmo tempo que atendem a expectativas do olhar objetificante e masculino sobre seus corpos, as dançarinas de Bregafunk auxiliam a pensar o papel da mulher e de suas estratégias e táticas de sobrevivência e de enfrentamento das diferenças de gênero em perspectiva interseccional: a partir das questões raciais e também de classe. No projeto “Corpo de Baile”, Stephane e Oliveira (2018) elencam desafios das vivências de jovens para se tornarem dançarinas de Bregafunk. A pesquisa constata as negociações necessárias para o ingresso nas estruturas dos grupos dos artistas a partir de relações tácitas de poder que envolvem a perspectiva do afeto pela dança e a profissionalização quando da vinculação ao universo do Bregafunk. Há uma espécie de “roteiro performático” nos depoimentos das dançarinas (o projeto entrevistou Vitória Kelly, Vanessa Santos e Anny Miranda), que envolve a descoberta por algum “olheiro”, o vínculo financeiro que se converte na ideia de que elas podem “viver” da dança, a acomodação na estrutura do espetáculo, as dificuldades de lidar com assédio e o impasse sobre o futuro e sobre as relações formais de emprego e renda.

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A questão do trabalho parece ser central sobre o autorreconhecimento como dançarinas profissionais e também no afastamento da ideia de uma “vida doméstica”. Elas lembram do “primeiro salário”, do que fizeram “quando receberam o cachê” e relatam aquilo que seria a maneira com que “entraram” no ambiente do Bregafunk. Descoberta por um famoso MC ou numa escola de dança comunitária, o processo de “se tornar” dançarina integra uma prática de autonomia da mulher em práticas interseccionais de raça e classe social (DAVIS, 2016) a partir do reconhecimento da força de trabalho do seu corpo. A dimensão material do corpo da mulher na leitura marxista de Davis nos convida a pensar para além da dimensão moral que recai sobre as mulheres dançarinas, trabalhadoras da noite e do mercado de entretenimento. As condições de vulnerabilidade social e racial a que jovens das periferias estão submetidas incidem sobre o reconhecimento do corpo como um instrumental de trabalho – para além dos ideais patriarcais do corpo feminino em trabalho doméstico. A consagração como dançarina de Bregafunk vem acompanhada do processo de celebrização, fama e também assédio masculino. Há, nos depoimentos das dançarinas, o tácito reconhecimento de que a beleza e o “gingado” com a dança, que são condições primordiais para que elas acessem o espaço dos corpos de baile dos MCs, carrega consigo a ambiguidade de estar naquele posto. Homens

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que se sentem aptos a tocarem nelas, filmarem suas áreas genitais e agarrarem em saídas de shows evidenciam traços do que as próprias dançarinas chamam de “ações corriqueiras” – elas também relatam que são protegidas por seguranças e, em alguma medida, por sua própria recusa. Há dançarinas que dizem se incomodar muito quando o assédio ultrapassa o limite e chega ao toque, outras relatam que deliberadamente não ligam e que “até gostam” de provocar e de “se sentir desejada”. O que parece haver neste interstício entre o prazer de causar o desejo e o medo do avanço excessivo do homem é a própria dimensão performática que envolve suas vidas dentro e fora do palco: provocar é parte integrante do jogo de sedução no palco, mas uma vez que o “jogo cênico” termina, o “pacto simbólico” do ato de dançar e atiçar o imaginário alheio também deve esmaecer. É nesta zona limítrofe entre o prazer do trabalho de dançar e as ingerências decorrentes das desigualdades de gênero e do machismo que o trabalho se desenvolve e parece ser o “desgaste” da atividade das dançarinas de Bregafunk. Falar sobre as mulheres dançarinas implica em reconhecer também a existência dos dançarinos homens de Bregafunk que, a partir do compartilhamento de ações de dança e da presença em redes sociais digitais, computam altos números de curtidas, engajamentos e recomendações envolvendo uma série de capitais simbólicos: desde aqueles envolvendo a performatividade da dança até o capital erótico como beleza e sensualidade. O caráter erótico da dança masculina no Bregafunk, com gestos que se localizam enfaticamente na pélvis, favorece a consagração de dançarinos a partir da erotização do corpo do homem negro, tornado objeto de desejo 282


quando para finalidades exclusivamente sexuais. É comum que dançarinos de passinho realizem vídeos dançando sem camisa e com shorts frouxos e sem cueca, para enfatizar o caráter sensual da dança. Os “reis da brecadeira” são exímios em simular coreografias do coito, através de passos como “pentada” ou “bengada”, oscilações entre violência do gesto, sutileza da rebolada, numa espécie de encenação do ato sexual com voracidade. A corporalidade dos dançarinos de passinho dos malokas operam num limiar entre a dimensão sexual do gesto e a ironia e comicidade da “brincadeira”, criando zonas especulativas sobre os corpos dançantes. Dançarinas de passinho enfatizam movimentos com a bunda, através da rebolada ou da “sentada”, também consagrando gestuais já amplamente disseminados pelo funk. Antes de propriamente classificar as danças ligadas ao Bregafunk como algo “hipersexualizado” ou trazer à tona um olhar excessivamente moral para esse tipo de prática, é importante pensar que as danças populares têm a ver com a construção do corpo ligado a lógicas dionisíacas. Embora esteja amplamente ligado ao funk, a “quebradeira” masculina do Bregafunk está conectado às práticas performáticas da swingueira e do pagode baiano – consagrando a figura do homem extremamente viril, mas que rebola, constituindo elos entre figuras midiáticas como Jacaré (do grupo É o Tchan), Xanddy (do Harmonia do Samba) e Léo Santana.

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Brega como música negra A consagração do Bregafunk leva a música brega a uma consagração midiática e nacional. Volta-se também para o entendimento e uma releitura do brega romântico, abrindo-se para um processo de racialização da música brega, ou seja, a identificação do processo de construção social de raças na esfera musical. O conceito de racialização rompe com os padrões estabelecidos e legitimados que concebem raça como sendo uma simples característica determinada pela biologia dos corpos ao mesmo tempo em que rompe com a visão de que raça teria alguma essência (GILROY, 2001), enfatizando o caráter histórico, político, cultural, econômico e social na construção de sujeitos racializados. “Portanto, o conceito de racialização declara que raça não é determinada pela biologia, apesar de se apoiar nela para justificar as relações de poder estabelecidas neste processo, intentando com isso camuflar todo o seu conteúdo político”. (SOUZA, 2017, p. 6). Racializar a música brega significa reconhecer as dimensões históricas e políticas existentes no gênero musical, vividas e experienciadas por sujeitos negros, que pareciam silenciadas ou ocultadas. As controvérsias por que passam os artistas e fruidores de Bregafunk permitem abrir caixas pretas na história da música brega em sentido mais amplo e racialmente localizados. Cabe observar o apagamento dos acionamentos de raça na música brega, principalmente nos registros historiográficos deste gênero musical. A história da música brega no Brasil sempre esteve conectada a um forte marcador de classe social, 284


como evidencia Araújo (2010), que relaciona este cancioneiro aos contingentes de migrantes no Sudeste brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. O autor ressalta a marcação de classe social tanto no consumo quanto na dinâmica produtiva das canções, ao mesmo tempo em que reconhece a potência poética e política da música brega (cafona) no tocante à censura no período da Ditadura Militar. Araújo ressalta a existência de uma “linguagem de frestas” no cancioneiro brega, linguagem esta que despista a censura e impõe a sagacidade e criatividade em um contexto restritivo de liberdade de expressão no Brasil. Concomitante à aparição dos cantores cafonas no Sudeste do Brasil (grande parte deles migrantes vindos das regiões Centro-Oeste – caso de Odair José e Amado Batista, de Goiás – e Nordeste – Waldick Soriano, saído do interior da Bahia), a música brega emerge em diferentes contextos brasileiros na década de 1970 com texturas e acentos particulares. No Pará, ganha sonoridades, timbres e poéticas de um conjunto de práticas musicais caribenhas, a partir do calipso (AZEVEDO, JÁCOME e PRADO, 2019) e das sonoridades latinas (AMARAL, 2009 e MELO e CASTRO, 2011). Em Pernambuco, e mais amplamente no interior dos Estados do Nordeste, conecta-se às matrizes estéticas do forró, valendose também dos fluxos migratórios entre as regiões Norte e Nordeste do Brasil para a criação de matrizes híbridas. A despeito do reconhecimento da emergência destes itinerários sobre a música brega no Brasil, tais abordagens ressaltam a perspectiva de classe social como marcadora do consumo, ora a partir do mito de origem destes fenômenos nas periferias das

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grandes cidades, ora reconhecendo as assimetrias de gênero e a poética das letras que ressaltam enquadramentos sobre o papel da mulher e do homem nas encenações melodramáticas das canções, ora a partir das ambiências e circulações do consumo musical. O destaque dado à classe social como central no entendimento da produção e do consumo da música brega no Brasil abre vácuos acerca da presença de artistas negros e negras na música brega, bem como sobre o reconhecimento das marcas do racismo nas classes populares brasileiras. O preconceito à música brega – sobretudo no argumento empreendido por Araújo (2010) – esteve fortemente atrelado à condição financeira dos artistas e do público presentes nos shows e festas, e não – na leitura do autor - ao racismo e às formas interseccionais de poder existentes nas observações sobre consumo e política. Importante voltar um pouco mais no tempo e observar como o apagamento da negritude na música brega e romântica brasileira também pode estar atrelado à reiteração das dinâmicas de miscigenação e mestiçagem no contexto do Brasil e suas formas apaziguadas de dizer o corpo negro. Ao mostrar a maneira com que a cantora Ângela Maria era vista mais como uma “representante do povo”, uma operária que tinha “vencido na vida” e virado artista na década de 1950 ao invés de uma mulher negra cantando música romântica, Liv Sovik (2009) desvela como a atenuação sobre os aspectos raciais da cantora revela sobre os impasses de se colocar como negro no mercado musical brasileiro.

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Apelidada de “Sapoti” pelo presidente Getúlio Vargas em função da cantora ter uma “voz aveludada e pele da cor de sapoti”, Sovik atesta que “Ângela Maria e sua música existiam no limiar entre ser negro ou ‘sapoti’ e a suspensão desta identidade – indicando ao mesmo tempo negritude e ausência de cor, identidade e piada” (SOVIK, 2009, p. 121). Segundo a autora, somente em 1956, quando a cantora fez cirurgia plástica, afinou o nariz, clareou a pele e tingiu o cabelo para aparecer fantasiada de baiana na capa do disco “Isto é Ângela Maria” é que o aspecto racial foi debatido na imprensa. Ou seja, Ângela Maria foi identificada como negra por subtração. Assegura Sovik: “mais discutido do que sua cor, na cobertura da imprensa no auge de sua carreira, era seu estatuto de mulher na promoção da imagem da esposa e mãe”. (SOVIK, 2009, p. 122) Outro recuo no tempo permite observar a emergência da questão racial no consumo musical no Brasil. A partir do aumento da capacidade de consumo na década de 1970, negras e negros brasileiros passaram a ser localizados no radar mercadológico das indústrias fonográficas, ocupando espaços de lazer e diversão musical nos bailes black do Sudeste brasileiro, conforme afirma Luciana Xavier (2018), não sem antes evidenciar tensões neste fenômeno: os diálogos com o universo da música black estadunidense promovem rasuras sobre as marcas da negritude brasileira e a sua relação com o samba; os constantes ataques às expressões da cultura black carioca, consideradas como “alienadas” ou “de direita” no contexto da ditadura militar, e a presença destas festas, em grande medida, nas narrativas das páginas policiais da imprensa da época. 287


Se observarmos os não-ditos presentes na observação de Sovik sobre a negritude de Ângela Maria, assim como o conjunto de postulações que resultam no estudo de Xavier sobre consumo, lazer e diversão das populações negras nas periferias brasileiras, observa-se a ausência de um debate de raça interseccionado, ou seja, como um fator de acentuação das diferenças tanto nas dimensões de enquadramento performático de artistas quanto nas formas de consumir música urbana. Neste sentido, cabe reconhecer a contribuição do Bregafunk para uma autorreflexão racial da música brega, fazendo ressaltar as formas de perceber os não-ditos de um cancioneiro repleto de marcações de raça. Através desta perspectiva, é possível compreender a ausência de marcações ou afirmações raciais na fala de importantes artistas do brega como Reginaldo Rossi. Episódios de racismo vividos por artistas como Troinha, Sheldon e Shevchenko e Elloco, fazem com que uma espécie de “orgulho negro” se evidencie na música brega. Cantoras como Dany Myller e Eliza Mell passam a se autodeclararem direta ou indiretamente como negras, seja discursivamente, ou através de metáforas e empréstimos biográficos de divas negras da música pop. Dany Myller é intitulada – e incorpora – a “Beyoncé do Brega” e Eliza Mell, que a partir do episódio midiático “Tem Gogó, Querida?” (ALVES, 2020), passa a ser comparada à cantora negra

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Whitney Houston. O cantor Sheldon ostenta o codinome de “Diamante Negro”.

Institucionalização (e exclusão) no brega Meu celular toca, número desconhecido. Desconfio ser mais um daqueles atendentes de telemarketing ou robôs de cobrança. Atendo. Do outro lado da linha, era o deputado Edilson Silva (PSOL) convidando para uma audiência pública da Comissão de Cidadania da Assembleia Legislativa de Pernambuco para o debate sobre políticas públicas em torno da integração do brega às festividades promovidas pelo Estado de Pernambuco. “Queria que você falasse sobre a importância cultural do brega e também sobre os impactos econômicos para a economia”, disse o deputado. A primeira edição do livro Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco tinha sido lançada no mês de agosto de 2017 depois de um amplo debate sobre a proibição da presença de artistas de brega no Carnaval de Pernambuco daquele ano. Artistas de gêneros musicais como brega, forró eletrônico, swingueira, arrocha, funk, sertanejo e pagode não puderam se inscrever na convocatória do Governo de Pernambuco para o Carnaval de 2017. A determinação era parte das medidas da Secretaria

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de Cultura, através da Fundarpe e da Empetur, de padronizar a divisão de orçamento para atrações do Carnaval através da clivagem dos gêneros musicais. Os anos de pesquisa e de redação do livro (entre 2012 e 2017) foram também aqueles em que a música brega foi se capilarizando pela cidade do Recife sobretudo a partir de diferentes fluxos midiáticos (do rádio e da televisão para as redes sociais digitais) e, a cada anúncio da programação carnavalesca gratuita pelo poder público para seus eventos, tornava-se mais incontornável o argumento sobre a nãoinclusão de artistas de brega nos palcos. Até porque, embora não estivessem na programação oficial, o brega e o Bregafunk estavam “bombando” nas ruas, nas caixinhas de som e nos usos cotidianos da música durante os festejos carnavalescos. Informalmente, os argumentos para a nãoinclusão do gênero musical nas festas públicas partia de um debate generalista sobre “possibilidade de arrastões”, “sexualização das letras” e “o brega não precisa do dinheiro público”. A série de polêmicas que se arrastou nos Carnavais de 2015 a 2017 inseriu o brega dentro das disputas na política partidária em Pernambuco. No dia 14 de fevereiro de 2017, o projeto de lei nº 8 1176/2017, proposto pelo deputado Edilson Silva (PSOL)44, deu origem à defesa da música brega como “expressão cultural pernambucana”, tendo sido aprovado em maio de 2017. Em 19 de agosto de 2017, a lei nº

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16.044/2017 é publicada no Diário Oficial do Estado, tendo sido aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa de Pernambuco. O que, em linhas gerais, a lei permite é que o brega possa disputar verba pública para ocupar espaços em eventos financiados pelo Estado, ao lado de artistas de outras expressões da cultura popular como frevo, maracatu, ciranda, entre outros. Instaura-se assim um debate sobre políticas públicas e o reconhecimento de diferentes matrizes da cultura popular: para além do popular folclórico, sintetizado pelas expressões culturais protegidas e incentivadas pelo Estado, existe um popular midiático que também funciona como dispositivo identitário e agregador de ideais culturais de um território. Na ligação telefônica, Edilson Silva me relatava que a ideia do projeto de lei tinha surgido a partir da demanda dos artistas e citou um episódio em que MC Troinha e Tocha foram impedidos de subir ao palco e cantar no São João de Caruaru, em junho daquele ano de 2017, a convite da cantora Márcia Fellipe45. O argumento da Prefeitura de Caruaru foi de que a participação dos MCs atrasaria os outros shows no palco principal. O produtor Victor Ronã deu outra versão, em depoimento ao site Leia Já: “Já estava tudo acertado para a participação deles, mas a prefeitura depois voltou atrás alegando questões de segurança pois a música deles fazia apologia à violência”, relatou, completando: “pura hipocrisia”.

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Troinha e Tocha postaram vídeo na rede social Facebook expondo o episódio: “O brega é por lei cultura pernambucana, mas o preconceito e a falta de respeito continuam”. O que, em linhas gerais, os MCs relatavam é que “virar lei” não faz do brega permissivo em todos os espaços. As barreiras políticas, estéticas e morais seguem entrincheirando o gênero musical nos espaços de espetáculos, criando zonas de negociação que fazem acentuar o estigma e a origem periférica e racializada de grande parte dos artistas. O que a lei do brega realçou foi um duplo movimento: ao mesmo tempo em que artistas se uniram e passaram a se enxergar como atores políticos que reivindicam a entrada e o acolhimento das políticas públicas do Estado, também evidenciou a fissura existente no próprio gênero musical, através de um brega “que atende às expectativas” das políticas públicas (ou seja, o brega romântico e consagrado como o “autêntico” brega) e aquelas expressões musicais e performáticas (o Bregafunk) que é excluída informalmente do “guarda-chuva” da lei em função de argumentos morais (“música que incita violência”, “música que incentiva a sexualização de crianças”) e também por evidentes indícios de racismo (supor que artistas negros performando causariam violência). A partir do ano de 2017, artistas de brega passaram a integrar a programação dos eventos públicos do Governo de Pernambuco, como Festival de

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Inverno de Garanhuns e Carnaval – todos vinculados ao brega romântico ou “brega das antigas”. A exclusão do Bregafunk pelo poder público não impediu que outros circuitos fossem se abrindo para os MCs e artistas do gênero. O festival Rec Beat, que é realizado com verba pública, porém através de uma curadoria que o vincula ao circuito de festivais independentes, nas três edições que sucederam à lei do brega incorporaram artistas de Bregafunk à sua programação: em 2018, o primeiro MC a subir ao palco do festival foi Tocha, seguindo de Shevchenko e Elloko em 2019 e com a primeira mulher a representar o gênero, Rayssa Dias, em 2020. O principal argumento do idealizador e produtor do Rec Beat, Antonio Gutierrez, era reconhecer que artistas do Bregafunk pudessem estar presentes no Carnaval. “Está na hora de criarmos essas oportunidades, como é a proposta do festival”, atestou em entrevista ao G146. A leitura do produtor enquadrava o Bregafunk como uma “música alternativa” dentro do próprio brega, a partir do próprio reconhecimento de que alguns artistas precisariam de espaços com traços mais assumidamente curatoriais para que pudessem se integrar ao status quo do gênero musical. O mesmo movimento de integrar o Bregafunk à paisagem dos festivais de música independente foi capitaneado pelos produtores Ana Garcia e Jamerson de Lima ao inserirem, ano a ano, artistas do gênero no line up do festival No Ar

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Coquetel Molotov: Troinha em 2018, a dançarina Dani Costa em 2019 e Rayssa Dias na edição online em 2020 em função da pandemia de Coronavírus foram reconfigurando o Bregafunk no circuito de entretenimento da Região Metropolitana do Recife, atenuando as diferenças e promovendo ampla visibilidade para artistas que também ajudaram a minimizar estigmas. Entre os meses de novembro de 2019 e fevereiro de 2020, as paradas musicais de plataformas de música por streaming consagraram canções de Bregafunk inserindo o gênero musical num circuito ainda mais amplo de música pop evidenciando seu forte apelo comercial e de engajamento em redes sociais digitais. A canção “Surtada”, cantada por Tati Zaqui, OIK e pelo cantor pernambucano Dadá Boladão alcança 200 milhões de visualizações no Youtube e chega a um invejável pódio de canção mais ouvida nas plataformas digitais no mês de dezembro de 2019 (dados do Spotify e Deezer). Seguiram roteiro semelhante, as faixas “Hit Contagiante”, remix do cantor Felipe Original sobre canção de Kevin o Chris; “Sentadão”, de Pedro Sampaio, Felipe Original e JS o Mão de Ouro, chegando na consagração de “Tudo OK”, parceria de Thiaguinho MT, Mila e (mais uma vez) JS o Mão de Ouro, o hit do Carnaval de 2020. Artistas de música pop como Pabllo Vittar fizeram remixes em ritmo de Bregafunk para suas canções – a mais importante delas, “Amor de Que”.

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A centralidade do Bregafunk como música pop brasileira em 2020 aponta para a necessidade de compreensão das tramas midiáticas e contextuais que ensejaram o gênero musical. É parte de um processo que envolve atores humanos (artistas, músicos, produtores e mediadores culturais) e atores não-humanos (plataformas digitais de compartilhamento de vídeos, aplicativos musicais, aparelhos de celulares, entre outros) conectando-se em redes sóciotécnicas que se movem, agrupando interesses em torno de ações performáticas compartilhadas e retroalimentadas por novas redes que se ampliam a partir de sistemas de recomendação. A formação e a retroalimentação destas redes dependem de dispositivos tecnológicos que se tornaram acessíveis a partir do acesso das classes populares a tecnologias móveis, do barateamento dos dispositivos tecnológicos, alterando a forma de produzir e consumir música nas periferias do Brasil. Como “música de pobre” conectada ao mercado de entretenimento musical, emulando também modismos e incorporando acentos da música pop global, o cancioneiro da música brega em Pernambuco evidencia toda porosidade das expressões culturais em contextos públicos e privados, as negociações, apagamentos, censuras e formas de engajamento proporcionadas pela e através da música. A “lei do brega” em 2017 reconheceu o brega como “expressão cultural de Pernambuco”, entretanto apresentou outras

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fissuras: evidenciando as tensões de sua conexão com manifestações da cultura pop global, amplamente comercial e as questões em torno do pertencimento e da marcação territorial como “música pernambucana”, além dos estigmas e do racismo que permeiam as relações de poder. Esses impasses de ordens territorial, política e estética sobre a música brega só revelam as potências deste cancioneiro como formas legítimas de debater a cultura em seu campo sempre minado de certezas, apontando para a necessidade de revisão das bases históricas e políticas que nos fazem enquadrar (olhar e ser olhado) para aquilo que nos afeta academica e emocionalmente. A música brega reflete e refrata as lutas de classe, as questões antirracistas e sobre as desigualdades de gênero. Olhar para estas questões é buscar, através das expressões culturais, formas de entendimento de uma sociedade mais plural, democrática e inclusiva.

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Notas de fim 1 Corroboramos aqui com a ideia de “incômodo” como pensada por Felipe Trotta, na palestra “A Música que Incomoda”, na Universidade Federal de Pernambuco, em março de 2016. 2 O termo faz referência ao Festival Pernambuco Nação Cultural, que entre 2007 e 2014, elaborou 74 etapas, realizando shows musicais em 82 cidades do interior de Pernambuco. Nenhum artista de música brega integrou o evento em seus sete anos de realização. O documento sobre o projeto está disponível em: https://issuu.com/ cultura.pe/docs/revista_secult_web_final. 3 O projeto “Music from Pernambuco” foi realizado pela Astronave Iniciativas Culturais, criado pelo produtor Paulo André Pires (do Abril pro Rock), e teve apoio da Funcultura (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) e Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco). 4 “Em grego, o cânone era uma regra, um modelo, uma norma representada por uma obra a ser imitada. Na Igreja, o cânone foi a lista, mais ou menos longa, dos livros reconhecidos como inspirados e dignos de autoridade” (COMPAGNON, 2010, p. 222). 5 Estamos aqui lembrando o que Genette chamou de “ilusão estética” ou o relativismo de quem olha: a posição do crítico e a tentativa de fixar valores, seja destacando uma certa objetividade científica (a partir de leituras imanentes) ou também apontando a (suposta excessiva) subjetividade da crítica como um lugar “menor” de observação. Dentro deste quadro, sabemos que mesmo diante de toda tradição de abordagens imanentes nas ciências humanas (formalistas, estruturais), sempre coube à crítica vazar disposições subjetivas, o lugar do crítico como amparado em escolhas muito pessoais e a disposição para leituras políticas destes posicionamentos. 6 Para a íntegra da matéria: http://eutonamidiapb.com.br/33595/noticias/bandasedutora-em-menos-de-tres-anos-tem-13-formacoes-diferentes. 7 Joelma, ex-vocalista da banda Calypso; Michelle Melo, ex-vocalista da banda Metade; Priscila Sena, ex-vocalista da banda Musa do Calypso; Carlinha, ex-vocalista da banda Kitara; Palas, da banda Ovelha Negra; Dany Miller, ex-vocalista da banda Ovelha Negra; Elisa, ex-vocalista da banda Brega.com. Percebe-se a intensa mobilidade de artistas de brega na aparição e no fim de bandas centradas na figura da mulher. 8 Percebemos também agenciamentos entre Rio de Janeiro (a cena musical do funk) e Recife, a partir do momento em que aparecem os MCs do brega (mestres de cerimônia) centrados na figura masculina, sexualizada, evocando a sedução e a dominação masculinas como retórica (integram este diálogo, cantores do funk carioca como Mr. Catra, MC Marcinho, MC Sapão, Bonde do Tigrão, entre outros, e os MCs do brega pernambucano, como Sheldon, MC Troia, Boco, GG, Leozinho, as duplas Metal e Cego, entre outros). Sobre este processo podemos chamar de “funkização do brega” gerando, inclusive, uma nomenclatura de uma sub-gênero musical chamado “brega funk”. 9 O Manguebeat (também grafado como Manguebit ou Mangue beat) pode ser traduzido como um movimento de inspiração contracultural ocorrido no Recife na década de 1990 que usava do mangue como metáfora da diversidade musical de Pernambuco. Artistas que promoviam “misturas” de ritmos regionais, como o maracatu com o rock e o hip-hop, despontaram neste cenário, notadamente, Chico

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Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. O Manguebeat influenciou bandas de Pernambuco, sendo o principal “motor” para Recife ser reconhecida midiaticamente como um “centro musical”, e permanecer com esse título até hoje. 10 Nomenclatura que soa como uma síntese da junção entre o pagode baiano e a axé music. 11 Podemos pensar também numa geografia distintiva dos espaços de shows: havia aqueles mais “nobres” na área de entretenimento, como o Circo Maluco Beleza (reduto onde jovens da classe média se reuniam, frequentemente, para shows de axé music), o Clube Português ou o Pavilhão do Centro de Convenções também cediam seus palcos para apresentações de grupos de pagode. 12 Lembremos que os anos 1990 foram centrais na cristalização da axé music e das micaretas, os Carnavais fora de época num modelo de entretenimento gerado nos padrões da folia de Salvador. 13 Uma prática que se assemelhava ao quadro da Banheira do Gugu, do Domingo Legal, em que, a certa hora, em meio a um show de pagode, jogava-se espuma na plateia e se iniciava uma “guerra” de mela-mela que se convertia num jogo de paquera e sedução. 14 As configurações musicais (arranjos, letras) eram bastante semelhantes, por exemplo, às do cantor Reginaldo Rossi – uma espécie de precursor da “movimentação” em torno da música romântica no Recife. 15 A música foi gravada também por artistas de “âmbito” nacional, como o pagodeiro Vavá e os sertanejos Zezé di Camargo & Luciano, entre outros. 16 Foi em meio a estes procedimentos discursivos que “estourou” nas rádios, no final de 2001, a música Amor de Rapariga, logo “apelidada” de Melô da Rapariga. A canção foi cantada por Palas, vocalista do grupo Ovelha Negra, e trazia versos explícitos como: “Amor de rapariga não vinga, não/ Não tem sentimento, não tem coração/ Eu sei que logo ele vai perceber/Esta é a diferença entre nós duas/ Todo homem quer uma mulher só sua”. 17 Cabe aqui uma definição acerca do que vem a ser uma festa brega no contexto da cidade do Recife e Região Metropolitana: trata-se de um evento em que artistas da cena brega local se apresentam. Neste sentido, adota-se o brega como um gênero musical e a festa como uma espacialidade na qual a estética e as experiências deste gênero são performatizadas. Artistas como MC Shedon, Michelle Melo, banda Musa do Calypso, Kitara, entre outros, são endereçados como bregas. Vale aqui fazer diferenciações dos usos acerca do termo: o emprego do brega no Recife difere, por exemplo, do tecnobrega do Pará e também da música cafona dos anos 1970. 18 Antes de tudo, é preciso fazer uma ressalva em torno da tradução para português do termo “conveniência”, que, nos escritos originais de Yúdice, aparecem como “expediency”. O termo, como usado pelo autor, traz à tona os usos ligados às lógicas de políticas culturais e legitimações governamentais em torno de bens intangíveis. A forma com que pensamos “conveniência” talvez se aproxime mais da palavra original em inglês “convenience” que, por sua vez, não é usada por George Yúdice. O uso do termo “conveniência” como fazemos neste texto, portanto, é mais inspirado pelos escritos de Yúdice que, propriamente, uma tentativa de extensão de suas noções. Neste caso, tento fazer um (re)enquadramento do termo para compreensão das “brechas” e “conveniências” existentes nas experiências dos gêneros musicais. 19 O uso do termo “episteme” como faz Yúdice remete à noção como pensada por Michel Foucault, ou seja, a episteme como um paradigma comum aos diversos saberes humanos em uma determinada época que, por se embasarem numa mesma estrutura, compartilham as mesmas características, independetemente de suas

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diferenças específicas. 20 Na letra “Tá Querendo o Quê, Novinha?”, o MC Sheldon canta versos em que sugere que a novinha vai querer tomar “Toddynho” (marca de leite achocolatado comum entre jovens, mas que funciona como metáfora de sexo oral). 21 Percebemos aqui que a teoria da performance de gênero de Butler lembra o estudo sobre o performativo nos atos de fala, de J.L. Austin, para quem a fala não apenas descreve o que existe, mas “faz algo existir”. “Eu agora os declaro marido e mulher” não descreve algo apenas, mas faz existir algo. 22 Uma das questões mais problemáticas no brega do Recife é o debate sobre autoria das canções. Quando uma faixa faz sucesso, é disseminada nos “carrinhos de CD pirata”, aparece nas programações das rádios comunitárias, ela passa a entrar no repertório de praticamente todas as bandas – ao mesmo tempo. O que problematiza ainda mais o reconhecimento de quem primeiro cantou a faixa ou é, de fato, seu autor. 23 Por “imposição psicossocial”, entende-se na ideia de que gênero é um ato intencional e performativo: palavras ou gestos que, ao serem expressos, e repetidos de uma forma estilizada, produzem um efeito ontológico, levam a crer na existência de seres homens e seres mulheres. Os gêneros, portanto, são performances sociais. (PORCHAT, 2010, p. 2). 24 O funkeiro carioca MC Papo compôs uma canção chamada “Piriguete”, de levada próxima do reaggeton, cujo trecho diz: “Ela curte funk quando chega o verão/ No inverno, essa mina nunca sente frio/ Desfila pela night de short curtinho/ Ela gosta é de cara comprometido/ Não tem carro, anda de carona (...)/ Todo mundo já conhece, sabe o que acontece/ Quando vê a gente ela se oferece/ Mexe o seu corpo como se fosse uma mola/ Dedinho na boquinha, ela olha e rebola/ Chama atenção, vem na sedução, essa noite vai ser quente/ Eu vou dar pressão”. 25 Na ocasião, Ivete Sangalo usou da identidade de “piriguete” para incluir em seu show um bloco de canções ligadas ao pagode popular e ao arrocha – gêneros musicais marcadamente presentes na periferia de Salvador, Bahia. A partir de então, Sangalo recorria à alcunha de “piriguete” para cantar desde faixas como “Piriri Pom Pom”, da banda Um Toque Novo; passando por “Mulher Brasileira (Toda Boa)”, do Psirico e até “Você não Vale Nada”, sucesso na voz de Calcinha Preta. 26 O gênero desenvolveu-se durante os anos 1980 nos Estados Unidos. Um dos pioneiros do “gangsta rap” foi o rapper Ice-T com seus singles “Cold Wind Madness” e “Body Rock/Killers”, de 1983 e 1985. 27 As próprias bandas de brega, que não tinham recursos para gravar discos, munem o mercado musical com registros de suas canções, em geral, ao vivo, a partir de gravações amadoras. Mesmo sendo uma prática ainda muito comum, a “carrocinha de CD pirata” agora tem uma concorrente de peso; e os artistas, mais um instrumento de divulgação: a internet. 28 A tamanha repercussão do caso fez com que houvesse um verbete sobre o “Caso Denny Oliveira” até no Wikipédia. 29 Disponível em http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vidaurbana/2015/06/13/interna_vidaurbana, 581019/mc-vertinho-foi-solto-nesta-sexta. shtml 30 Reportagem do jornal Folha de São Paulo chamando MC Loma de funkeira: https:// f5.folha.uol.com.br/celebridades/2018/09/mc-loma-processa-seu-empresario-ealega-nao-receber-repasse-de-caches-de-shows.shtml. 31 Para mais informações: https://kondzilla.com/m/dada-boladao-apresenta-obregafunk-de-recife.

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32 Para mais informações: https://blogs.ne10.uol.com.br/social1/2019/06/08/ produtor-pede-desculpas-apos-polemica-envolvendo-os-mcs-shevchenko-e-ellocopreconceito-nao-e-citado-em-nota/. 33 Para mais informações: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/ viver/2017/06/mcs-troinha-e-tocha-sao-impedidos-de-fazer-show-com-marciafellipe-em.html. 34 A pesquisa da historiadora Martha Abreu (2017) relata uma série de episódios de racismo quando da aparição dos primeiros artistas negros que levavam as “canções escravas” para os palcos artísticos das grandes cidades brasileiras. O detalhamento dos relatos evidencia traços muito semelhantes de racismo que revelam a permanência de padrões de enquadramento do olhar sobre pessoas negras. 35 Para mais informações: https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/desafio-so-datu-espalha-brega-pernambucano-pela-internet-e-chega-a-china.ghtml. 36 Confira em: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2019/01/ofenomeno-do-passinho-dos-malokas-no-grande-recife.html. Acesso em: 6 de maio de 2020. 37 Embora dados presentes no documentário “A Batalha do Passinho – O Filme”, de Emílio Domingos, relate a existência do passinho nas comunidades cariocas desde 2003. Informações: A BATALHA DO Passinho – O Filme. Documentário. Direção: Emílio Domingos. Osmose Filmes, 2012. Brasil. 75 minutos. 38 Para ver a informação: http://g1.globo.com/musica/rock-in-rio/2013/ noticia/2013/09/beyonce-encerra-noite-pop-com-show-vigoroso-e-toca-funkcarioca.html 39 Para assistir ao videoclipe: https://www.youtube.com/watch?v=7tzDburY9ec. 40 Para ler: https://www.leiaja.com/cultura/2019/02/14/mcs-sao-expulsos-doparque-da-jaqueira-ao-gravar-clipe/. 41 Para íntegra do projeto de lei: http://www.alepe.pe.gov.br/proposicao-textocompleto/?docid=4966&tipoprop=p. 42 Para leitura da reportagem completa: https://marcozero.org/projetos-de-leitentam-proibir-dancas-nas-escolas-por-todo-o-pais/. 43 No trabalho de conclusão de curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), “Corpo de Baile: O Protagonismo das Dançarinas de Bregafunk”, disponível em: https://jpoa96.wixsite.com/corpodebaile. 44 A Lei número 16.044/2017, proposta pelo deputado Edilson Silva (PSOL), altera a Lei nº 14.679/2012 e inclui o brega na lista de manifestações artísticas com espaço garantido na programação de eventos custeados pelo Estado. Para mais informações: http://www.alepe.pe.gov.br/2017/08/18/brega-e-reconhecido-como-expressaocultural-pernambucana/. 45 Para a íntegra da reportagem: http://saojoao.leiaja.ne10.uol.com.br/ noticias/2017/06/23/mcs-troinha-e-tocha-sao-proibidos-de-subir-ao-palco-commarcia-fellipe-em. 46 Para a íntegra da reportagem: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/ carnaval/2020/noticia/2020/02/19/mulher-representa-brega-funk-pela-primeiravez-no-palco-do-festival-rec-beat-no-recife.ghtml.

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ensaio fotográfico

CHICO LUDERMIR


A dança que nos revela



Fazer fotografias é um exercício estranho de presença. Estar com os olhos por trás de uma câmera, ou simplesmente portar uma, em contexto de pesquisa ensaística, parece automaticamente alçar qualquer indivíduo ao seu redor ao status de “outro”, alvo de observação, com força hiperbólica. Se, por um lado, esse tal olhar antropológico-artístico aguça a visão, que revela nuances e detalhes e possibilita entendimentos e construções narrativas pouco evidentes ou óbvias (mas, por vezes, evidente e óbvias), por outro, é totalmente carregado de pré-textos, hipóteses e, mesmo vieses, intencionais ou não, revelados ou não. Existem diversos mecanismos de interferência no real acionados nesse “ir a campo” que compõem, ao final, uma relação de poder daquele que representa sobre o representado. Desde a própria presença, às escolhas dos momentos capturados, enquadramentos e composições, interferências concretas de uma direção de pose ou locação, até a escolha do material que vai ser publicado e suas interferências na imagem como corte, saturação e contraste. Começo com essa reflexão autorreferencial não somente porque acho necessário assumi-la aprioristicamente em qualquer trabalho (e trago isso de outras experiências do meu trabalho com as travestis, por exemplo), mas também porque neste ensaio especificamente, em que se realçam os contrastes entre duas experiências marcadas por elementos de classe, raça – e automaticamente entre zonas periféricas

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e centrais, privilegiadas ou não da sociedade, fui tomado por diversas camadas de desconforto, que versam sobre representações simbólicas, e sobretudo, sobre o meu lugar (de fala também) no mundo. Desde que recebi o convite para fotografar as expressões do Brega no Recife até o momento em que fiz a primeira saída, na festa de comemoração de aniversário da casa Planeta Show, na Abdias de Carvalho, um sem número de dispositivos me atravessaram. Em sua maioria, eram artifícios que me levariam a fotos de arquivo e a uma pesquisa imagética bibliográfica. Um resgate histórico conduzido por um acervo pré-existente que me blindaria de uma exposição, onde eu mesmo seria o realizador das fotos. Uma outra possibilidade ventilada, que foi descartada somente na reta final (mas não totalmente), me mantinha na chave de uma suposta isenção: provocaria os participantes da festa a se fotografarem e eu apenas organizaria o apanhado, incrementando o material com uma análise dos elementos presentes somada a uma reflexão, que me interessa muito, sobre as faces da autorrepresentação e das gestualidades dentro delas. O ensaio final, este que apresento, acabou por se construir na própria experiência das festas de brega. Aquelas mesmas descritas por Thiago Soares neste livro. Me rendi ao perceber que não adiantariam as fugas rumo àquela suposta isenção, falácia à qual recorremos quando os

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assuntos se apresentam com complexidade assustadora, como é o caso (ou quando somos ingênuos ou agimos de má fé). Nem mesmo o ato de dar a câmera, ou de coleta de material, nem mesmo a pesquisa de arquivo me tiraria a carga de autor (afinal, era como autor que eu havia sido convidado). Mas não foi somente uma rendição, foi também uma escolha de me posicionar, de me assumir e de me expor, através do contato direto. E investigar também os meus próprios receios e medos. Como seria possível fazer deste ensaio fotográfico um texto que levantasse questões relevantes? E mais, como fazer tudo isso sem objetificar, constranger, reforçar estigmas ou caricaturizar as personagens? Como traduzir uma experiência que é por excelência movimento e música, em fotografia, uma técnica intrinsecamente silenciosa e estática? E além de tudo, como fazer isso, com inovação estética e fuga das obviedades? As fotos aqui correspondem à maneira como fui atraído pelo que se desenvolvia na minha presença. Isso, é claro, traz todas as marcas dos meus questionamentos provocados pela leitura do texto, mas além desses, por um sem número de questões construídas ao longo do restante da minha vida. Qualquer criação tem uma duração mista. Não há como fugir. É o tempo que a gente leva fotografando, mas é, também, toda a trajetória que nos levou até aquele exato presente – o que inclui, certamente, todas as características

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da nossa socialização. Eu, homem branco, filho da classe média (ainda que atualmente morador de um bairro periférico do Recife) em uma festa gratuita de música brega, num bairro periférico da cidade, com público majoritariamente composto por pessoas negras, era claramente um elemento dissonante. Naquele espaço, visivelmente, eu era um outsider – o que não significa que eu tenha sido rechaçado. Parecia que todo o baile percebia que era a primeira vez que eu estava ali. Não por acaso, não encontrei nem sequer um conhecido, naquela pequena multidão. As marcas do meu corpo estavam agindo ali. Minha gestualidade, minha forma de vestir e minha branquitude não se camuflavam, arrisco dizer que contrastavam. A máquina fotográfica me servia como dispositivo de contato e foi praticamente a única forma de permear encontros e conversas ao som da música alta. A ausência de partilha de certos códigos era um demarcador forte. E gerava dúvida de qual era o meu nível de consentimento para fotografar. Esperei um tempo até receber convites. “Tira uma foto da gente”. Eu, homem branco, filho da classe média (ainda que atualmente morador de um bairro periférico do Recife) em uma festa paga (R$30) de música brega num bairro central da cidade, com público majoritariamente composto por

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pessoas brancas era, para meu incômodo, um elemento pertencente àquele espaço. Apesar de ser minha primeira vez ali, certamente isso não ficava evidente pela quantidade de conhecidos que eu encontrei. Pessoas que estudaram comigo em colégios particulares, na graduação e no mestrado da Universidade Federal de Pernambuco. Se eu não reforçasse que estava ali a trabalho, o que era, mais uma vez demarcado pela minha câmera, eu facilmente passaria por um frequentador daquela festa. (Minha barba era um pouco maior do que a dos demais e minha roupa talvez mais desarrumada e intencionalmente mais discreta – fui de jeans e camisa preta. No mais, o mesmo padrão). Fui tomado por uma autocrítica feroz que talvez tenha me instigado ainda mais a olhar com criticidade certas características daquele momento, tão revelador das diferenças sociais. É impossível não fazer uma análise comparativa tanto das experiências quanto do seu registro correspondente, frente a um contraste explícito, cujo elemento comum é o estilo musical. As fotos provavelmente revelarão aquilo que as palavras deste meu texto só poderão acessar de forma limitada. As imagens dizem respeito a um sem número de símbolos de diferenciação incorporados quais sejam as roupas, os cortes de cabelo, as cores das peles, os gestos “naturais” registrados nas fotos em que as pessoas não se percebem fotografadas. Revelam-se também nas marcas

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da cerveja, no uso do celular, tão abundantes na festa central quanto são os bonés nas festas periféricas. (Não se apresentam na fotos, mas foi interessante observar as filas de táxi na frente do Roof Tebas, em contraposição às pistas livres de carro na Abdias; não viraram imagens, tampouco, os preços dos ingressos e das bebidas, completamente contrastantes). Revela-se ainda nas fotos posadas (e a pose, é necessário dizer, é um certo estado de congelamento. Uma encenação, ou até uma pequena experiência de morte. No instante dela, opera uma conexão com aquilo que vai se tornar de forma inalterável. A pose é resultado de uma certa instância de escolha e revela a forma como a retratada/o a gostaria de ser visto, dentro dos padrões que ela/ele próprio avalia como aceitável e bonito). Pela quantidade de informações contidas nesse tipo de foto “artificial”, conferi às fotos posadas uma certa relevância neste ensaio. Em um momento em que fervem as discussões sobre apropriação cultural não é possível apresentar essas fotos sem apontar questões que se referem a um processo paulatino que vem reposicionando o brega no imaginário recifense. A palavra per si, junto com o ritmo, que carregou durante a minha infância a pecha de sinônimo de algo cafona e inadequado, foi se transfigurando em algo “cult” e “descolado”, não por acaso, na medida em que ia alcançando um espaço próprio longe da periferia. De representação típica das classes pobres, atrelada obviamente à origem dos seus cantores e consequentemente ao conteúdo de suas letras, quase sempre crônicas de uma 320


vida periférica, as festas de brega ganharam uma nova vertente elitizada, com um espaço restrito àqueles que se filiam às classes privilegiadas. A mistura de classes não foi diminuída pela partilha de um gosto musical comum. Muito usado na Sociologia, mas pouco trazido para o debate das apropriações, Pierre Bourdieu nos apresenta em sua teoria social dos gostos reflexões importantes: não há nada intrínseco a determinada experiência; nenhum quadro, fotografia ou música é essencialmente boa. Mas, nunca por acaso, quando determinada expressão passa a ser fruída por frações dominantes, muda automaticamente de status. (e vale dizer que o contrário também opera – quando passa a ser fruída por classe dominadas, perde seu caráter distintivo). Ou em bom breguês, “o mundo gira, o mundo é uma bola”. O que se percebe ao frequentar festas com o mesmo estilo musical, mas ocupado por públicos diferentes (pela sua localização, preço e pelo próprio caráter identitário de cada festa) é uma espécie de mímese nunca perfeita, porque classe dominante nunca quer ser inteiramente igual à classe dominada. Uma das fotos no ensaio me parece carregar esse elemento síntese: dois meninos negros eram os únicos de boné e bermuda da marca Cyclone na festa do Roof Tebas. Se apresentavam como elemento disruptivo. Um curto-circuito que personificou, para mim, todos os contrastes que eu já vinha observando numa comparação mental. (Se estivessem no Planeta Show, passariam despercebidos). Mas eles estavam ali. E de alguma forma escancaravam para quem quisesse ver 321


todos os demarcadores das diferenças sociais. Não será, por certo, no Brega que a conciliação de classes será possível, mas há que se ressaltar uma confluência. Com o salão lotado e o brega nas alturas, existe um elemento de catarse muito similar. O romantismo parece esfaquear os corações e tecno-bregas, eletrizar dos pés às pélvis.

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THIAGO SOARES É historiador e possui formação pós-graduada em Comunicação e Sociologia. Trata-se de um dos fundadores no Brasil dos Estudos de Som & Música no campo da Comunicação (corrente de estudos que começou a ganhar fôlego no início dos anos 2000). Professor Titular da Escola de Comunicação (Eco) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação/UFRJ, coordena o grupo de pesquisa Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação (NEPCOM) É autor dos livros "Lapa, Cidade da Música", "O Funk e o Hip hop invadem a Cena", "Indústria da Música em Transição", entre inúmeros artigos e coletâneas sobre as intersecções entre música e comunicação. Pesquisador 1D do CNPq, investiga as relações entre culturas urbanas, música e mídia. CONTATO thikos@gmail.com


MICAEL HERSCHMANN

CHICO LUDERMIR

É doutor em Comunicação e

Jornalista, escritor e artista

Cultura Contemporâneas pela

visual. Integrante dos

Universidade Federal da Bahia

movimentos Coque Vive/

(UFBA); mestre em Teoria da

(R)existe e Ocupe Estelita. É

Literatura pela Universidade

autor dos livros Dos Alagados

Federal de Pernambuco (UFPE),

à especulação imobiliária:

professor e pesquisador do

fragmentos da luta pela terra

Programa de Pós-graduação em

na comunidade do Coque (2011)

Comunicação (PPGCom) e do

e A História Incompleta de

Departamento de Comunicação

Brenda e de Outras Mulheres

(Decom) da UFPE. Bolsista

(2016) e coautor de Senhoras

produtividade em pesquisa

do Coque (2010), Caderno

(PQ) – Nível 2 do CNPq. Autor

de Narrativas da Cultura

dos livros "Divas Pop: O

Pernambucana (2012) e Guia

Corpo-Som das Cantoras na

Comum do Centro do Recife

Cultura Midiática", "A Estética

(2015). Realizou as exposições

do Videoclipe", "Modos de

Entre (2013), Mulheres: o nascer

Experienciar Música Pop em

é comprido (2015), Design e

Cuba" e de inúmeros artigos

Resistência (2015), entre outras.

sobre música, cultura pop e performance, é coordenador

CONTATO

do Grupo de Pesquisa em

chico.ludermir@gmail.com

Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop) na UFPE. CONTATO micaelmh@globo.com


OUTROS CRÍTICOS Desde 2008 atuam desenvolvendo projetos de crítica cultural na internet e no Recife, Pernambuco. Produziram as publicações Entrelugares: notas críticas sobre o pósmangue (2012), de Ricardo Maia Jr.; no mínimo era isso: 10 bandas, 10 ensaios (2013), de vários autores; passagens performances processos (2015), de vários autores; o e-zine pq? e a revista Outros Críticos, com 16 edições lançadas entre os anos de 2014 e 2020, composta por textos de mais de 100 participantes. Além disso, lançaram coletâneas musicais e produziram debates, como os do festival Outros Críticos Convidam, realizado na Torre Malakoff, no ano de 2015. A reedição do livro “Ninguém é perfeito e a vida é assim”: A música brega em Pernambuco (2021), de Thiago Soares, marca o fim do projeto Outros Críticos, que continuará com o seu site aberto para consulta, com grande parte de seu acervo disponível gratuitamente, além de comercializar as publicações remanescentes em sua loja virtual.

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Nesta versão digital foram utilizadas as fontes Philadelphia Line (títulos e subtítulos) e Sansation (corpo do texto).



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