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Segurança ou Vigilância: o mundo pós-Covid-19
A pandemia do novo coronavírus levou a um aumento global sem precedentes na vigilância digital. Na opinião de inúmeros analistas, defensores da privacidade em todo o mundo, milhões de pessoas no planeta enfrentam agora uma monitorização das suas ações que pode ser difícil reverter. A tecnologia é como uma faca de dois gumes. Por um lado, o poder disruptivo das tecnologias emergentes pode ser usado para alcançar um maior bem público, mas, por outro lado, pode ser reduzido a uma ferramenta para minar a privacidade e as liberdades individuais.
O tema da privacidade versus segurança tem gerado muita controvérsia desde há muito tempo, principalmente após o 11 de setembro. A utilização massiva de novos métodos de vigilância tecnológica, num grande esforço global para combater o coronavírus, reacendeu este debate. No entanto, uma linha fina divide persuasão e coerção. Apesar de todas as críticas de ser um estado de vigilância, a China usou efetivamente o poder das novas tecnologias (reconhecimento facial, rastreamento térmico, monitorização de redes sociais, drones, inteligência artificial e robótica) para monitorizar e verificar a propagação do vírus e muitos outros países seguiram o modelo chinês. É verdade que, dada a escolha entre privacidade e saúde, as pessoas geralmente escolhem o último, principalmente em caso de emergência. No entanto, nada nos garante que após a tempestade Covid-19 desaparecer, os governos não continuam a utilizar as mesmas ferramentas tecnológicas para efetuar vigilância em massa. Convém termos noção de que uma ferramenta tecnológica que monitoriza a temperatura do corpo, a pressão arterial e a frequência cardíaca também pode ser usada para acompanhar as nossas preferências culturais e políticas e até o nosso humor.
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Esses dados biométricos podem tornar-se o núcleo de um novo e preocupante sistema de vigilância. Tal como os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos mudaram a face das viagens aéreas, a pandemia de coronavírus tem o potencial de transformar o setor da saúde pública e a maneira como os dados são aproveitados para monitorizar de perto a vida das pessoas. A questão que se coloca hoje é a de saber se os dados sobre as reações das pessoas serão usados politicamente para saber como respondem as emoções do eleitorado a certos estímulos. Ou, por outras palavras, para manipular grandes massas.
Recentemente, o historiador Yuval Noah Harari, uma das personalidades intelectuais mais influentes dos últimos anos, chamou a atenção para os inúmeros perigos que podem advir do desenvolvimento de tecnologias aplicadas no combate à pandemia se continuarem a ser utilizadas pelos governos no pós-Covid-19 e deixou vários exemplos:
Em Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu autorizou a Agência de Segurança a usar tecnologia anteriormente restrita a combater terroristas para rastrear pacientes com coronavírus. Isso foi feito através de um “decreto de emergência” que rejeitou as objeções da oposição no Parlamento. Por outras palavras, a tecnologia de vigilância em massa, que antes assustava muitos governos, poderá ser usada regularmente, dando aos políticos muitas informações sobre o que nos provoca tristeza, tédio, alegria e euforia. Isso representa um poder sobre as populações sem precedentes e arriscado.
Na Índia, as autoridades locais testaram soluções como aplicações de rastreamento móvel, selfies geolocalizadas e identificação dos endereços de pacientes infetados com Covid-19.
Na China, centenas de milhões instalaram aplicações obrigatórias de “código de saúde” que determinavam se os utilizadores, com designações codificadas por cores de verde, amarelo ou vermelho (para pacientes confirmados de Covid-19) podiam viajar ou até sair de casa.
Em Moscovo, uma cidade com 12 milhões de pessoas, planeou-se exigir que os cidadãos tivessem códigos QR para poderem andar nas ruas e utilizaram-se as mais de 100 mil câmaras de vigilância e tecnologia de reconhecimento facial para impor esquemas de autoisolamento.
Na Europa, alguns governos estão a recolher dados de empresas de telecomunicações e a copiar aplicações de rastreamento de contatos. Nos EUA, a Apple e a Google anunciaram a abertura dos seus sistemas operacionais móveis para permitir aplicações semelhantes, para serem executadas em iPhones e telefones Android.
Conforme alertou Ron Deibert, chefe do Citizen Lab na Universidade de Toronto, numa entrevista recente, a maioria destas medidas não possui cláusulas de caducidade. Elas poderiam estabelecer o que muitas pessoas começam a descrever como “o novo normal”. Uma coisa é certa. Tal como o 11 de setembro definiu regras que se mantêm em vigor até aos dias de hoje, também neste caso poderá ser difícil reduzir o crescimento da vigilância após a pandemia. A eventual reversão dessa vigilância dependerá quase exclusivamente da supervisão pública.
Security or surveillance: The post-Covid-19 world
The new coronavirus pandemic has led to an unprecedented global increase in digital surveillance. In the opinion of countless analysts and privacy advocates worldwide, millions of people on the planet now face monitoring of their actions that can be difficult to reverse. Technology is like a double-edged sword. On the one hand, the disruptive power of emerging technologies can be used to achieve a greater public good but, on the other hand, it can be reduced to a tool to undermine individual privacy and freedom.
The issue of privacy versus security has generated much controversy for a long time, especially after 9/11. The massive use of new methods of technological surveillance in a major global effort to combat the coronavirus has rekindled this debate. However, a thin line divides persuasion and coercion. Despite all the criticisms of being a surveillance state, China has effectively used the power of new technologies (facial recognition, thermal tracking, monitoring social networks, drones, artificial intelligence, and robotics) to monitor and verify the spread of the virus, and many other countries followed the Chinese model. It is true that, due to the choice between privacy and health, people generally choose the latter, mainly In the case of an emergency. However, there is no guarantee that after the Covid-19 storm disappears, governments do not continue to use the same technological tools to carry out mass surveillance. We should be aware that a technological tool that monitors body temperature, blood pressure, and heart rate can also monitor our cultural and political preferences and even our mood.
This biometric data can become the core of a new and worrying surveillance system. Just as the September 11 attacks in the United States changed the face of air travel, the coronavirus pandemic has the potential to transform the public health sector and transform the use of data and closely monitor people’s lives. The question that arises today is whether data on people’s reactions will be used politically to know how the electorate’s emotions respond to certain stimuli. Or, in other words, to manipulate large masses.
Recently, historian Yuval Noah Harari, one of the most influential intellectual personalities of recent years, drew attention to the countless dangers that can arise from the development of technologies applied to fight the pandemic if they continue to be used by governments in post-Covid-19 and left several examples:
In Israel, Prime Minister Benjamin Netanyahu authorized the Security Agency to use technology previously restricted to combating terrorists to track patients with coronavirus. This was done through an “emergency decree” that rejected opposition objections in Parliament. In other words, mass surveillance technology, which once scared many governments, can be used regularly, giving politicians a lot of information about what causes sadness, boredom, joy, and euphoria. This represents unprecedented and risky power over populations.
In India, local authorities have tested solutions such as mobile tracking applications, geolocalized selfies, and identifying the addresses of patients infected with Covid-19.
In China, hundreds of millions installed mandatory “health code” applications that determined whether users with green, yellow, or red color-coded designations (for confirmed Covid-19 patients) could travel or even leave home.
In Moscow, a city of 12 million people, it was planned to require citizens to have QR codes to be able to walk on the streets, and more than 100,000 surveillance cameras and facial recognition technology were used to impose self-isolation schemes.
In Europe, some governments are collecting data from telecommunications companies and copying contact tracking applications. In the US, Apple and Google announced the opening of their mobile operating systems to allow similar applications to run on iPhones and Android phones.
As Ron Deibert, head of the Citizen Lab at the University of Toronto, warned in a recent interview, most of these measures do not have sunset clauses. They could establish what many people begin to describe as “the new normal”. One thing is right. Just as 9/11 defined rules that remain in effect today, in this case, too, it may be difficult to slow the growth of surveillance after the pandemic. The eventual reversal of this surveillance will depend almost exclusively on public supervision.