O GAUCHE 04 - EPIFANIA

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Folhetim cultural | Edição 04


Feuilleton na veia Desde sua criação, muito se falou sobre a "legitimidade" d'O Gauche ser considerado um "zine". Em primeiro lugar, ilegítimo é o Presidente. Fora Temer! Em segundo lugar, o blá-blá-blá que rolou nas redes sociais (e fora delas) apresentou a seguinte questão: "Ah, mas zine é algo artesanal, coisa de artista, livre". Ok, O Gauche é pé-durão: imprimimos todas as folhas e as grampeamos com nossas lindas mãozinhas. Dá um trabai!! Nenhuma gráfica envolvida. É na base do xerocão mesmo, fio. Todas as ilustrações são produzidas por COLABORADORES, assim como os textos, portanto, não há relações comerciais envolvidas. Contudo, aos ingênuos, informo que há zines que se enveredam ao consumo: tomemos como exemplo o jornal Tribuna de Minas, que alcança milhares de leitores na região de Juiz de Fora e produz um zine, com propaganda da Dell e tudo na capa. Tá bom pra você? Inclusive a jornalista que escreve no baguio recebe a alcunha de "zinética". Ok, nós concordamos que a característica mais forte de um zine seja seu poder de resistência num mundo tomado pelas relações de consumo - tanto o é que funcionamos SEM VERBAS PRIVADAS OU DO ESTADO. Pagamos o zine com recursos próprios, ou seja, tiramos o dim-dim DO NOSSO PRÓPRIO BOLSO. Distribuímos SEM FINS LUCRATIVOS. Se essa atitude não é libertária, de resistência, bem, que seria libertário? Ai ai... A tendência é espernear, né? Mas em tempos de totalitarismo, como o nosso, é bom que a sociedade não tenha um discurso unívoco. Quanta asneira temos ouvido! Mas todas elas são férteis, pois despertam o debate e só ampliam a vontade de crescermos. Ademais, o conhecimento provém do atrito. E essa é uma boa hora para expormos argumentos - até porque as universidades têm sofrido ataques de governos corruptos, que insistem em empurrar a população contra seus professores, alunos e funcionários, como se fossemos "marajás" envoltos em nossas bolhas, alheios ao que acontece lá fora. Pra você que tem uma visão deletéria do academicismo, posso lhe garantir que a UEM também está "LÁ FORA". Criada na década de sessenta, a universidade possui MILHARES (e não é hipérbole, é dado factual mesmo) de projetos voltados à comunidade, sejam eles concretizados em forma de ensino, pesquisa e/ou extensão. O Hospital Universitário e o Colégio de Aplicação são grandes exemplos do montante da população que atingimos diariamente. Então, vamos lá, responda com sinceridade: que seria de Maringá e região sem a UEM? Não, nós não estamos envoltos em uma bolha. Essa é uma perspectiva intolerante que vai contra os princípios que um dia fizeram alguém reivindicar: Eu não preciso estar no Status Quo das ações para poder fazer a produção de conteúdo e pra falar de coisas, que para mim, são relevantes. E se você assim o


pensa, sinto em lhe dizer, mas quem está numa bolha é você. Saia dela e participe, a universidade É PÚBLICA, portanto, aberta. Seja UEM. Participe da vida UEM. Informe-se sobre nossos milhares de projetos em circulação. Some. De qualquer forma, andamos pensando na alcunha e resolvemos trocar o nome de "zine" para "folhetim" cultural. "Folhetim"? Sim, a partir dessa edição iremos dar início à publicação de uma história sem fim. AHN? Como? A história sem fim é o seguinte: alguém inicia uma história na última página. Coloca lá seu enredo, personagens... Mês que vem chega outro(a) autor(a) e dá sequência, desencadeando a trama como bem lhe apetece. No outro mês vem outro(a) doido(a), com uma nova história - todas pautadas na anterior - e assim por diante. Ininterruptamente a história vive. Ente vivo. História que morde o braço. Antropófaga. A partir de agora, "folhetim". O judeu errante, A toutinegra do moinho, Os três mosqueteiros, Núpcias de fogo, Sepultada viva, O moço loiro, Leonor de Mendonça, coitadinha, morta pelo doido enciumado. Eita hómi sem coração! Feuilleton, coisa chique, rapá, tá pensando o quê? Sem mais. Leia o livro. And you gonna know the true. Beijim no ombro, Claudíne Lisboa, Monique Boer e Suzana Flag.

Equipe editorial: Claudíne Lisboa e Monique Boer; Colaboradores desta edição: Ana Julia Campos (colaboradora permanente), Enjoy Maringá (colaboradores permanentes), Ana Laura Perenha, Ana Paula Hoffman, Beatriz Pazini Ferreira, Debora Primo, Diego Rasteiro Ramires Fonseca, Eduardo Chierrito de Arruda, Eloisa Pedroni Pimentel, Gerson Jr., Inaiá S. Gonçalves, Jefferson Campos, Marcele Aires Franceschini, Pedro Afonso Barth, Suélen Domingues e Tarik Adão. O Gauche é um folhetim cultural de distribuição gratuita e produção independente.


| Epifania: uma provocação dos sentidos Por Prof. Jefferson Campos (FAMMA-GEDUEM/UEM) e Prof. Diego Rasteiro Ramires Fonseca (SEE/SP-PLE/UEM) Partimos do pressuposto de que o estado ontológico no qual podemos flagrar a existência humana se (re)constrói no trato concreto da/na vida cotidiana. Assim, como produto dos encontros inusitados do homem consigo mesmo, a vida, na sua forma e substância, se elabora com base nos limites dos modos de significação do mundo. Ou melhor, com base nos nossos limites ao significarmos os sentidos do mundo. Viver, portanto, é reagir às experiências que se revelam, até mesmo, no mais prosaico dos acontecimentos concretos. Daí que, não sem razão, nos interessamos pelo tema da epifania como mote para tratar da experiência de existir no mais abissal das vivências humanas: o gozo. A epifania em sua materialidade, é o momento em que todos os sentidos se chocam no todo DO sentido. A epifania, portanto, é o efeito catártico do confronto entre a vida vivida nas suas limitações e as limitações de experimentar o prazer e o sofrimento do todo num átimo temporal/existencial. Não seria demasiado cogitar que em circunstâncias não tão específicas, gozo e epifania acercam-se por vizinhança, coincidência ou sucessão. Desde a antiguidade, o gozo é um dos muitos tabus da humanidade. Num primeiro momento fora silenciado, visto como imundo e pecaminoso, ferramenta de corrupção das “pobres” almas que buscam em Deus a salvação. Notadamente dicotomizado entre sagrado e profano e embora tenha sido instrumento de exaltação na poética, confundiu e atormentou a mente de muitos durante as reviravoltas dos séculos. Na atualidade, diante da busca pela transcendência pelo/no alcance do gozo/prazer, nas suas formas possíveis e imagináveis, faz-se necessário destronar o significante prazer de sua suficiência linguística, despi-lo de sua autonomia denotativa e observá-lo nos seus tropeços, isso porque, como bem nos lembra Jean Claude Milner: Tudo não se diz. Entender o prazer enquanto instrumento de elevação aos fenômenos que transcendem a materialidade corpórea humana, na passagem de um estado de gozo, enquanto sublimação tendo como resultante a epifania, não significa encapsula-lo no reduto sexual. Aristóteles, em su’A Poética, traz o conceito de katharsis. Em sua concepção, esta era uma espécie de “cura” por meio de uma descarga prazerosa. Esse prazer estético, elucidado anteriormente, poderíamos estabelecê-lo como parâmetro de relação entre gozo e epifania em sua


vizinhança. Posto que, durante o processo cognitivo de desestruturação de uma realidade estética suplantada por consciente coletivo social, onde as regras são estabelecidas e impostas, estas serão aquebrantadas por um “ser” em processo de emancipação sócio-politico-cultural. Aqui jaz as mazelas do jogo no tocante aos temas: “conceito de belo”, “a definição do que é arte”, “qual ideologia atende melhor as necessidades (da elite dominante) da sociedade”. Na verdade, o que arriscamos dizer, nesse caso, diz da tênue proximidade entre os termos em observação. Após este momento de crítica-reflexiva acerca do “habitus” social, ocorre assimilação, das verdades massificantes e posterior acomodação tanto da crítica subjetiva quanto da realidade do mundo que cerceia o indivíduo, enquanto constituinte da sociedade. O gozo e a epifania dentro do regime de vizinhança visa o intelecto, ou seja, o a priori deste é a satisfação cognitiva. A partir desta visão, voltamos à problemática do gozo e do prazer na sua inefável relação com o profano. Platão, em “A República”, nos alerta sobre os perigos da influência do desejo para a vida humana, uma vez que o “prazer” constitui as brumas da “razão”. Não é à toa que tal pensamento se espraie para outros terremos filosóficos. “Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma se lhe tornam um fardo insuportável [...]” (Schopenhauer – O mundo como vontade e como representação). Para este filósofo, o prazer estético servia apenas como abstração da realidade. A noção de prazer como espaço do ilógico, da não razão frutificou produtivamente como mote para o controle sobre as condutas humanas. Em contrapartida, é em Nietzsche que encontramos o argumento de não nos caber mensurar ou mesmo julgar a dor, pois, já que existe, que ela sirva de combustível, “da escola de guerra da vida; o que não me mata, torna-me mais forte” (Nietzsche – Crepúsculo dos ídolos). No Hedonismo, vemos a busca pelo prazer limitado, individualista e egoísta, assim como na conduta dos personagens dos romances de Balzac (Ilusões Perdidas) e Dostoievski (Crime Castigo), onde os indivíduos isolados não mantêm contato com o outro, estando encerrados em sua existência mesquinha. Diferentemente, temos no Epicurismo, a busca pelo prazer e pelo gozo da vida, apoiado na moral, como fórmula de satisfação dos desejos e de aplacar as pulsões. Embora o sentido do exposto por Epícuro tenha sido destorcido por alguns que atribuíram uma interpretação diferente, “O prazer é o começo e o fim da vida feliz e constitui o “Bem Supremo” da vida, cujo modelo perfeito nos é fornecido pela vida de delicias levada pelos deuses”. Ao tratarmos do prazer encarnado na epifania, isto é, na sua relação de coincidência, temos uma característica bem peculiar que é a elevação suprema, que toca a essência e transforma o indivíduo de tal modo que este irá transcender e transbordar a sua subjetividade. Supomos que o estopim que poderá


desencadear tal processo ocorre por identificação. Seja por deparar-se com amores, em Eros ou Ágape, seja, até mesmo, com o prazer estético de uma mimese representada por uma canção ou filme. Essa experimentação, certamente, é o gozo que confunde alma, no momento em que esta se depara com a impossibilidade de fluir o todo dos sentidos que pululam na recepção da alteridade da arte (ou o do coito). A epifania por sucessão, entendemos como produto linear da relação do sujeito com um acontecimento. Como “[...] reação vivencial em face de uma situação corriqueira” (MOISÉS, 1984, p. 0492). Trata-se do que aventamos como uma metáfora ontológica do gozo como porta transcendente. O gozo seria, então, uma presença ausente de algo que ainda não é, mas que pode vir a constituir-se em materialidade, uma luz a ser lançada sobre o sujeito para sua transcendência. A questão primordial é que o gozo sentido ou refreado é espaço, materialidade ou acontecimento para a experiência epifânica. Momento de satisfação, confusão e dor em que os sentidos se tornam possíveis de vir a serem... Espaço em que o corpo se permite experimentar o inexprimível... Fato em que o ser se choca com o todo do TUDO, ainda que dele não se possa aproveitar quase nada. Enfim, cremos que da epifania e do gozo, sobra o universal das almas, a verdade indiscernível, o sabor não sabido, mas a razão para ser no mundo. Coincidência ou não, em tempos de “crises”, quando toda a solidez se liquefaz, uma pretensa essência do “humano” pode se alocar em (re)tomadas cotidianas de si, no lastro ou nas profecias do prosaico da vida. Se a epifania é a manifestação, uma revelação que dirige o ser à sua transcendência, faz-se necessária, também, a análise da história pregressa como movimento constituinte da construção das experiências que consolidam a aprendizagem ou simplesmente atestam que, seja por vizinhança, coincidência ou sucessão, para o bem ou para o mal, estamos vivos. Se assim o é, gozemos!


| Epifania, função transcendente e a vida que se vive Por Psicólogo Eduardo Chierrito de Arruda CRP08/22624 Leitores, a proposta ousada deste Folhetim ao se referir à epifania tende a provocar reflexões diferenciadas. Inicialmente a palavra pode motivar sentimentos ou conceitos específicos, se possível pense nas primeiras imagens que lhe ocorrem sobre “epifania”, sim imagens. Na psicologia analítica, perspectiva que eu compartilho, considera-se que toda realidade é oriunda de imagens, vindas do consciente ou inconsciente, elas revelam a realidade psíquica. Na etimologia das palavras é comum encontrar analogias para explicar algo imagético, principalmente quanto se refere ao contexto subjetivo. Retomando, de acordo com alguns dicionários Epifania é uma palavra de origem grega “epiphainein” e significa manifestação ou aparição. A raiz da palavra “phainein”, pode ser traduzida como: mostrar, fazer ou aparecer. Talvez estes conceitos estão próximos ou distantes daquele imaginado, porém é possível estabelecer sensações de mistério e de certeza, um mesclar entre coisas desconhecidas e conhecidas. Ajustado, um tema comum deste movimento é a possibilidade da totalidade das coisas, mas isto já é “analítico” demais. Será? Quando Carl Gustav Jung, fundador da perspectiva analítica, estava mergulhado introspectivamente, questionou se aquilo que estava produzindo era realmente ciência ou arte. Visto que em seus estudos buscou apoio interdisciplinar (na época não era comum), visitou e revisitou as artes, os sonhos, a mitologia, a antropologia, a filosofia, a física moderna e outros campos. Em fantasias espontâneas frequentes, num instante ouviu uma voz “isto é arte”, tomado de pavor, iniciou um diálogo e incentivado pela vivência das realidades subjacentes ele audaciosamente iniciou uma nova possibilidade de construção científica empírica, uma psicologia da natureza e de como ela se manifesta. Pode-se compreender, a partir de seus estudos, que os fenômenos se interpõem em um conjunto maior que a humanidade, denominado de arquétipos, ou um terreno arquetípico (inconsciente coletivo). Apenas para ilustrar este conceito, muitas vezes mal compreendido, na perspectiva analítica não existe espaço para o causalismo, para o reducionismo e, como diria o próprio Jung, todos os “ismos” que vitimaram a humanidade. Os arquétipos se


assemelham à “um reino de infinitas possiblidades”, primordial e instintivo, são atualizados em nossa temporalidade, historicidade, contextos e dinâmicas socioambientais, o mesmo tema arquetípico dado à complexidade humana é vivenciado em várias linhas de possibilidade. Quando preso ao terreno primordial não vivemos na realidade presente, se por ventura estivermos impregnados pela consciência coletiva de nossa temporalidade, podemos ser condicionados a não ser aquilo que realmente somos, meros resultados de uma condição alienante e distante das questões inter e intrapsíquicas. Não é por acaso que a questão essencial “quem sou” pode nutrir interrogações profundas, ou até o mesmo o vazio de possibilidades. A partir destas colocações, a epifania pode ser considerada a síntese daquilo que Jung denominou de Função Transcendente, ou seja, uma possibilidade de nossa historicidade transpor os terrenos humanos e ir para além da própria dinâmica pessoal, um estado em que o consciente e o inconsciente se unificam para compor uma nova atitude, uma atitude simbólica. Romper “ismos”, criar e (re) criar-se no espaço-tempo e, por resultado agir no mundo e atuar politicamente na construção deste, por meio de uma consciência reflexiva. Por atitude simbólica, resultante desta função, visualiza-se a capacidade criativa humana, presente desde os tempos ancestrais e responsável por saltos qualitativos na dinâmica evolutiva, para tal é necessário permitir sentir o que foi conversado anteriormente, ou seja, uma disposição reflexiva da consciência de estar ao lado do símbolo, de respeitar o mistério, presentificar-se. Jugend (1998) aponta que “ter uma Atitude Simbólica significa acreditar que não somos nós que vamos dar o sentido. Esse sentido é extraído; pois o arquétipo já tem um sentido, uma virtualidade”. Quando se fala em epifania como a manifestação do desconhecido, trata-se dos significantes e da vivência de vislumbrar, não algo novo, mas a possibilidade de ver por um prisma mais totalizante das coisas. Para concluir, inspirado por Barcellos (2004) cito Elliot: A poesia começa, ouso dizer, com um selvagem batendo um tambor numa floresta, e ela retém aquilo que há de essencial na percussão e no ritmo; hiperbolicamente, pode-se dizer que o poeta é mais velho que os outros seres humanos (1933, p. 155).


| Clarice e a mulher de entremeios Por Ana Laura Perenha (Letras – UEM) Lendo as obras de Clarice Lispector podemos observar uma predominância das personagens femininas. Em Laços de Família (1960), a presença e protagonismo femininos se dão em todos os contos. Faremos aqui um breve resumo e teceremos algumas considerações acerca do conto Amor, que consta como personagem principal Ana, uma mulher que possui uma vida classe média, é mãe e esposa. Tudo se inicia com Ana subindo no bonde e levando suas compras para casa. No momento em que a mulher se recosta no ônibus para descansar, começa a refletir sobre sua vida e sobre a situação na qual se encontrava. Notamos que em um primeiro movimento Ana está presa a uma situação de conformismo, ela se contentava com aquilo que tinha, era feliz com o seu “destino de mulher”. Porém, na hora mais perigosa da tarde, uma vez que ela já havia terminado seus afazeres, punha-se a pensar se realmente estava feliz, mas logo tudo era abafado pois se sentia mal por agir de tal maneira. Os pensamentos de Ana são repentinamente interrompidos e surge o cego – elemento que ocasionará a epifania. Esse homem é um símbolo do rompimento com o primeiro movimento, o do conformismo representado também pela quebra dos ovos, da vida, que Ana carrega na rede. Uma vez ocorridos, a mulher confirma que o “mal está feito”. Ana estava em crise e conseguia ver que existia mais do que aquilo que estava vivendo, que ela não estava feliz, que era necessário mais, muito mais. Porém, a lembrança dos filhos a faz retroceder, de tal modo que se sente culpada novamente e acaba indo para casa. No movimento de volta ao lar, notamos também a volta da zona de conforto. É como se aquele momento de revelação nunca tivesse existido. Existe, na personagem Ana, a presença de uma mulher de entremeios. Clarice, nesse livro de contos, deixa suas personagens sempre no quase: ela quase saiu da situação de insatisfação, quase reatou os laços com a mãe, quase contou à família que todos não passavam de um bando de hipócritas. Assim, como essas personagens, muitas vezes nós sempre ficamos no quase, seja por medo, insegurança ou qualquer outro sentimento perpetuando a nossa infelicidade ou insatisfação. Proponho então que saiamos do quase, que completemos nossa travessia e que o subir e descer do bonde não consiga nos parar. Que ouçamos e sigamos a epifania, sem medo!


Clarice Lispector, por Debora Primo


| Há uma idade para a Epifania acontecer? Por Prof. Pedro Afonso Barth (UEM) Pelas habilidosas mãos de bruxa de Clarice Lispector, nós leitores, conhecemos de forma mais direta a epifania – o momento em que um fator exterior altera a subjetividade de um indivíduo e assim ele passa a ver a vida de uma forma que jamais havia visto antes. Clarice transportou para a literatura essa descoberta que é tão essencialmente humana – a nossa constante transformação. Entretanto, podemos nos perguntar, há uma idade para essas descobertas epifânicas? Somente na fase adulta da vida ou apenas ao passar por muitas experiências que um ser humano seria capaz de mergulhar em si mesmo e entender melhor sua essência? A própria Clarice em sua obra infantil parece responder essa pergunta. Na obra O Mistério do Coelho pensante temos um esperto coelhinho, personagem que aproxima o enredo do universo da criança, permitindo a identificação de leitores menores com a história. O coelhinho chama-se Joãozinho e vive em uma gaiola, muito bem tratado. Mas o animalzinho tem uma fascinante habilidade: é capaz de cheirar ideias. E cheirando, cheirando encontra uma forma de fugir da Gaiola em que vive. Primeiro, ele pensa em fugir apenas quando falta comida, mas logo descobre como é maravilhosa a sensação de liberdade e assim torna-se um “fujão”. Nessas fugas, o leitor percebe que o animal já não é mais o mesmo, ele começa a descobrir o mundo, começa a entender a si próprio e passa a pensar. Talvez não seja propriamente uma epifania, mas mesmo na obra infantil de Lispector observamos uma motivação existencialista, um movimento de desnudar o interior da alma humana. Mesmo que seja por meio de um fofo coelhinho. Não apenas na obra de Clarice, mas em muitas obras da literatura Infantil e Juvenil contemporânea que aproximam personagens de diferentes idades de momentos que poderíamos considerar epifânicos. A obra da magistral Lygia Bojunga recheada de personagens que adentram um caminho de descobertas subjetivas apresenta múltiplos exemplos de personagens que após experiências banais (como ganhar de presente uma linda bolsa amarela) avançam em uma jornada de autoconhecimento. Podemos citar também a obra Lis no peito: um livro que pede perdão (2005), obra juvenil de autoria de Jorge Miguel Marinho. O título Lis no peito já deixa clara a relação com “Lispector”. De fato, trata-se de uma obra que homenageia Clarice e faz das relações intertextuais com sua obra o mote de desenvolvimento da narrativa. Um ato de desilusão amorosa fará que o jovem coloque um pássaro morto dentro de um dos livros de Clarice como vingança. Entretanto, esse ato impensado terá consequências e a personagem vai precisar pedir perdão. Na jornada em busca de perdão o jovem protagonista irá repensar qual é o seu lugar no mundo e assim passará a reorganizar o seu modo de pensar, agir e sentir. Ler a obra de Clarice será o ponto de partida para o garoto repensar os seus atos e ter momentos que guardam semelhanças com epifanias. Assim, como o encantamento pela literatura, não há uma idade para um mergulho de transformação do ser consciente e do ser inconsciente. Leitores e personagens, sejam eles crianças, adolescentes, jovens ou adultos, todos podem, a partir dos seus horizontes de expectativa e de suas experiências sensoriais com o mundo, compreender melhor suas essências e constituírem assim a sua subjetividade.


| O processo epifânico da mulher em “Mulheres que correm com os lobos” de Clarissa Pinkola Estés Por Eloisa Pedroni Pimentel É sabido que a epifania é um instante existencial de caminho sem volta. Antecipo que aqui não caberão as good vibes. O desnudamento de um momento excepcional que revela e determina o interior garante momento tempestuoso, sobretudo, imprescindível na tensão da narrativa. Vibremos! Pois é aí que a literatura, munida de sua brilhante tarefa de convite à compreensão humana, nos oferece em “Mulheres que correm com os lobos” meios para o despertar da mulher em seu processo de (re)conexão com seus instintos, sentidos, intuições e poderes. É a respeito dessa epifania feminina que o texto tratará. Acautelo-os que a leitura desse livro tem consequências irreparáveis na vida da mulher e que é por este terreno pedregoso, pungente e sombrio da psique que pautaremos nossas reflexões. Esclareço-me. Cá não se encaixa a good vibe modé, justamente por conta do encadeamento da consciência ser um processo doído, penetrante e irreparável. Ninguém chega à luz exalando clareza. O entorno da psique humana é obscuro e sangra exaustivamente quando chegamos perto de sua artéria. Esbarrar com o real é apavorante, mas não deixa de ser genuíno. Isso é sobre permitir ouvir aquilo que intimamente nos está a falar e abafamos com medo do mergulho profundo. Isso é sobre a fina camada de poeira que vive sendo empurrada para os cantos e que ao se acumular, torna-se rodamoinho que mata o espírito, a criatividade e a alma. Nossas habilidades criativas e instintivas foram tentadas por séculos e diariamente mortas pelo mundo. Dessa maneira, fomos nos segregando uma das outras e, consequentemente, de nós mesmas. O encontrar-se consigo é eixo central das discussões do livro já citado da psicanalista analítica Clarissa e esse percurso é feito por meio de mitos interpretados que oferecem ferramentas capazes de penetrarmos na penumbra do nosso eu feminino completo. A literatura nos oferece a chave para as perguntas e as perguntas são a germinação da consciência. A inquietude nos faz chegarmos à substância da questão enigmática. Que conversemos com nossos vazios, que assumamos nossas próprias escolhas e nos dediquemos a elas. Que permaneçamos em posse de nossos poderes, protegendo nossos instintos e nos esforçando para descobrirmos as coisas por nós mesmas. Que não neguemos nossos insights e permeemos todo tipo de gotejo ralo e fresta de escuridão. Que não tenhamos receio daquilo que parece não estar encaixado ali e que embora a rotina tente laboriosamente esconder, nosso eu grita bem alto todos os dias. E principalmente, que nos esbarremos sem receio com a epifânica realidade e nos entreguemos de corpo e alma à essa paradoxa relação lancinante e orgasmática. Eu disse que esse trajeto não teria volta. Aliás, girl, você já abraçou o seu demônio hoje?


EPIFANIA Talvez eu tenha que olhar o cego mascando chicletes para envolver-me, decifrar-me. Talvez eu tenha que andar pelo zoológico. Talvez eu tenha que debruçar sobre o sofá e me ver através do vaso, do espelho ou me atirar no navio e chorar quanto for preciso. Quantas lispectors, quantas meirelles. Somos alegres, somos tristes, somos poetas. Somos distantes, somos presentes. Somos do mundo epifânico, somos fingidoras. – Beatriz Pazini Ferreira

Extermínio Feliz é o homem que afoga o jornal da segunda-feira de sol numa caneca cinzenta de poesia. – Lélia Lilgen


| Partindo da ilusão Eu tenho me perguntado se tudo é uma grande ilusão. Se em algum momento iremos acordar de um sonho, ou melhor, desse pesadelo. Todos os sonhos estão dentro de um grande pesadelo. E se tudo o que passamos até agora não ser real, seria apenas uma previsão do que há por vir? Todo este estresse do dia a dia e todos esses problemas que nos cercam simplesmente acabariam. Porque na verdade eles nunca existiram. Algumas vezes me pego olhando para uns detalhas da casa, quando estou lendo, e do nada me perco na pequena falha da pintura no teto da sala. Sigo com meus olhos até a lâmpada, observo o movimento dos mosquitos em torno dela, abaixo a cabeça e vejo minhas mãos, e comigo eu penso "Eu estou vivendo." Vocês conhecem aquela frase "viver ou existir", fazemos os dois. É estranho na verdade. Nunca tiveram essa sensação? Parar para perceber que você é mais um na face da Terra, que está vivendo? Só mais um! E se todas as pessoas que vivem à minha volta não forem reais? Seria só eu neste mundo. Então logo eu não seria só mais um, seria somente eu. Acredito que talvez possa de fato ser só eu, sozinho, isolado, único, porque afinal todas as minhas consequências vieram de algo que eu mesmo fiz. Experiências boas ou ruins, a maior parte delas seriam as ruins, que são passadas ou "vividas" com outras "pessoas" que na verdade servem para nos fazer pensar no final do dia, recapitular tudo o que aconteceu, rebobinar a fita cassete, pra que no outro dia não façamos as mesmas burradas. Estou atordoado com toda esta situação. Tudo o que vejo é o tempo chuvoso pro lado de fora da janela. Não sei se devo ficar aqui ou pegar mais um café. Deve ser isso que está me matando. É isso! Estou morrendo! Cada dia é um a menos. Cada segundo é o último. Cada palavra pronunciada é dita pela última vez. Já entramos na contagem regressiva. Talvez um dia todo esse pesadelo realmente acabe, só que não irei acordar, e nem olhar mais pela janela. O que me vem à mente agora é, o que será que tem do outro lado? GJR.


| Rosto de criança Ana Paula Hoffman Eu havia deitado tarde na noite anterior. Talvez não tão tarde e nem tão cansada como diversas mães que chegam em casa após um longo dia de trabalho braçal e ainda preparam a janta, cuidam dos filhos e marido. Não. Era um cansaço diferente. Um cansaço do qual eu realmente gosto. A mente, nessa manhã, estava já acesa e não tinha como ser diferente. Muitos projetos, muitos planos a realizar o tempo todo. Eles não podem esperar. Minha mente despertou com os pensamentos da noite anterior. Focava neles o máximo possível. Talvez como uma espécie de refúgio. Um refúgio para fugir de uma mulher, de uma mãe que não sei mais se é minha. Uma mãe muito diferente daquela trabalhadora. Pior? Melhor? Não sei. Não as conheço realmente, sei apenas que há incongruências entre ambas. Esta mãe deixou de ser minha quando ela não mais me reconheceu. E então eu não a reconheci mais. Não. Mais. Eu tentava colocar um porém. Só me vinha o portanto. Se ela não me ama como eu me apresentei a ela, se ela não ama a verdadeira filha, portanto eu também não posso amar essa mãe. Eu posso não a amar. E ela tentava de tudo. O tempo todo. Queria me recuperar. A palavra “lésbica” martelava em sua mente e a forma com que ela expunha isso me feria. Fere. Era como uma fera, um animal que só obedece aos instintos de sobrevivência. E para sobreviver ao mundo perfeito e sem fome criado por ela, era necessário excluir esse tópico de vez. A última tentativa dela foi assim: colocou em minha escrivaninha e colou no meu espelho uma foto minha. Eu criança. Eu. Vi e tentei não olhar. Ela queria aquela menina de volta. Foi então que hoje, ao acordar bem cedo, com a mente tentando pensar nos planos, eu fui ao banheiro. Liguei a torneira para, antes de qualquer outra coisa, lavar o rosto. Era para eu acordar. Molhei o rosto, alcancei o sabão e esfregava, com os movimentos ainda fracos, como se os músculos ainda não estivessem fortes o suficiente para realizar aqueles pequenos movimentos rotativos. Eu estava concentrada e não via nada além. Minha lembrança é tão vaga que me aparece apenas o preto. É como se meus olhos estivessem fechados, e não fosse por causa do sabão. Um quase sono, como se aquele instante pudesse proporcionar mais alguns segundos de descanso. Liguei novamente a torneira. Abaixei o rosto bem perto da pia. Eu sempre tive o dom de espalhar água por tudo, não importa o que eu fizesse. Fiz uma conchinha com as mãos e joguei aquela água. Uma. Duas vezes. Após a terceira, levantei o tronco. Inesperadamente, meus olhos encontraram outros olhos no espelho. Não devia ser novidade, o espelho sempre estivera ali. Mas era diferente. Vi um rosto mais magro do que ontem. Como eu não havia notado? As olheiras estavam ainda lá, para não perderem o costume. Eu vi também os cachos que eu tinha na infância, e de cuja existência só sei pelas fotos que trazem a memória de um tempo do qual as pessoas não costumam lembrar. Os cachos curtos. Eu poderia passar por um menino naquela foto, só minha mãe não percebe. E nem tinha de perceber também, essa coisa de “meninas lésbicas se vestem como meninos e jogam futebol...” blá, blá, blá. Análises de uma sociedade que precisa definir, classificar. Visões que cria raízes nas mentes quando você gostaria


mesmo que elas nunca tivessem existido. Fato é que lembrei dessa idiotice lembrando da foto e da roupa que usava: conjunto de moletom vermelho, uma bike azul escuro e os cabelos curtos. Criança só brinca. Eu só queria brincar. Ela quer de volta essa criança. Mas ela sou eu, sinto muito, eu sempre fui eu. Olha aqui, sou essa aqui do espelho, a mesma. Não vê, mulher? Cadê tua explicação para essa metamorfose? Eu sou aquela menina. Eu sou eu. Nunca deixei de ser. Mas se você afirmar que eu mudei, vou ter que confirmar. Pode ter certeza que sim. Porque eu mudei com você, que mudou também. Você passou de mãe para agressora, de agressora para manipuladora. Não te reconheço nem em fotos. Por isso, se pudesse eu pediria: Não olhe para eu. Eu sei onde eu estou. Vá atrás de ti. Que ficou esquecida em algum canto dessa casa, em alguma fotografia, na poeira dos dias que se vão. Voltei novamente a face para a pia. Mais uma conchinha de água para limpar o rosto antes de escovar os dentes.


| Telas coloridas Tarik Adão Entre carros e postes saiu sem destino naquela tarde fria e apertada. Os olhos carregados. Verdes e singelos olhos. Meio bobos, complicados. Na tarde pequena e fria em uma dessas cidades grandes e interioranas do Sul, Miguel, moço de rosto fino, esses com uma frieza perspicaz e doce. Vivia a sonhar e imaginar coisas coloridas na cabeça. Mas, na verdade, mantinha e pintava coisas coloridas no peito. Telas. E carregava-as. Durante dias e noites, entre um sono profundo e outro. Entre uma pintura e outra. O moço de um só amigo, vivendo a imaginar as cores de dentro, saiu entre carros e postes naquela tarde, com os olhos apertados. Um aperto pequeno. De dentro. Mas incômodo. E como numa bobeira ríspida, relembrava alguns momentos de sua vida, ao mesmo em que caminhava nas vias de trânsito rápido e com frio no pescoço, sob o escuro. Escuridão pitoresca. Escuridão essa a que se habituou desde o acidente sofrido quando criança, tornando-o cego. Apesar disso, nunca se esquecera de alguns pontos e imagens arquivadas na memória. E mesmo cego continuava a enxergar. Enxergava de forma leve e pequena, naquela escuridão a qual habitava dia após dia. Entre figurinos simples, mas com texturas. Dessas roupas com estampas quase bregas, alguns diriam. Estilo Romero Britto. Estrelas, corações, abstracionismos. Rabiscos. Coisas de 7° série, desses exercícios que a gente fazia nas aulas de arte do ensino fundamental. Apertadamente enxergava, pintava e carregava. Miguel, das poucas vezes de permissão, chorava baixinho e pequeno naquela avenida. Os passos apressavam-se aos poucos e sentia os segundos correndo pelo peito. Lágrimas de início escorriam e ele mal sabia o porquê. No fundo sabia. A gente sempre sabe o porque chora, ou não. Mas coisas de choro não há como controlar. E no anoitecer com os pés vestidos de meias brancas e sandálias amarelas, dessas tipo Jesus Cristo, continuavam a caminhar. Sem destino. Carros rápidos, motos, faróis altos. Tudo aquilo iluminava os olhos do moço, ouvia o barulho da avenida. Foi quando sentiu os próprios olhos voando, numa tentativa de saltar para fora, como numa piscina. Acontece que as lágrimas tornaram-se asas e de súbito os olhos verdes e apertados tornaram-se o próprio corpo. Não era capaz de entender. Aquele abstracionismo estranho, singelo, bobo, em só mais um anoitecer de uma cidade com edifícios. Andar sem destino, é meio isso. Bobeira. Andar para onde se perguntava: onde estou? Para onde vou? Queria tanto que me salvasse e me buscasse aqui. Mas estou perdido, já não domino meu corpo. Não sinto mais o chão. E numa vertigem entre os faróis acesos, faixas de pedestres, sinais. Caíra. Ou melhor, voava. E num tombo febril esborrachava as telas coloridas. Na escuridão de Lua, entre carros, motos e caminhões. Entre pensamentos, memórias e lembranças. Entre um iluminar e outro pelos olhos. Telas quebradas, espatifadas, coloridas. Tornavam-se tudo uma coisa só. Um abstrato conjunto e individual. Um suspiro, uma dor latente. Porém, sem machucados graves, ou não. Ou sim. E num enrolar do corpo, levantou-se. Envergonhado. Partido. Choroso. Mas íntegro, sentindo-se vivo, inteiro. Não aceitando ajuda ou olhares de pena. E sozinho foi embora com sua bengala amiga e suas roupas bonitas de cor. Chorando baixinho com as telas quebradas. Foi-se o moço artista na cidade fria.


| Bolo Inaiá S. Gonçalves Ela entrou pela lavanderia para não espalhar lama no carpete da sala. O barro chegava até seus tornozelos, manchava suas mãos e ficava preso embaixo das unhas curtas. Até as trancinhas, antes bem apertadas e agora bagunçadas e tortas, tinham barro enroscado nos fios. Ela esfregou as mãos no vestidinho cor de rosa já arruinado e abriu a porta da cozinha lentamente, para ninguém ver que ela trazia todo o barro do parquinho para dentro de casa. – Puta que pariu! – escutou e viu a avó segurando o pé que tinha batido na mesa. Nunca tinha escutado a avó falar uma palavra feia. Chocada, encarou sua avó, que só agora notava a neta e a encarava de volta. Aquela senhora era uma completa desconhecida. O que realmente sabia sobre a pessoa que acreditava ser a sua avó? Quem era aquela pessoa na sua frente, que exclamava palavrões, cada ruga uma história de pesar, cabelos grisalhos com uma vida inteira só dela, escondida de todos. De repente, viu-se como sua avó, enrugada, olhos escondidos por óculos, grisalha. Como tudo isso aconteceu? Nem um minuto atrás era criança! Mas quem tem tempo de crescer? Quem tem tempo – nesse mundo em que o tempo não existe, ao mesmo tempo em que é a única coisa real. Agora brincava de boneca, daqui um minuto era mãe, em dois, avó. O tempo nunca para, e o peso da idade parecia puxar seu corpo infantil para baixo. Será que ela também teria uma história escondida em suas rugas, segredos nos seus fios grisalhos, uma netinha coberta de barro a encarando e pensando sobre tudo o que não sabia sobre ela, querendo perguntar se um dia foi feliz, vovó, ou se só fingia ser pra passar o tempo, pra aguentar o peso de viver todo dia um dia novo e velho ao mesmo tempo, porque o tempo se repete e de repente todos os dias são os mesmos, a rotina que sufoca nunca para e nunca passa. Avó e neta piscaram como se fossem uma pessoa só, o encanto se dissipando. Silêncio. – Vó, tem bolo?

Os contos apresentados nesta seção foram produzidos na Oficina de Escrita Criativa, que acontece na UEM (G34, sala 212), toda quarta-feira, às 18hrs e são atenciosamente ministrados pela – engenhosa e formidável - Prof. Thays Pretti. Além de encontros nutridos de discussões e reflexões sobre os tratamentos e composições da escrita e da narrativa, são Um dia desses desenvolvidas atividades de reconhecimento e aperfeiçoamento do autor-texto.


Um dia desses Por Suélen Domingues Dois ou três dias que Laura não comia. Comia sim, um pão francês, um amendoim salgado – essas coisas que se come pelas ruas. Mas o cheiro quente de feijão preto, temperado com alho e folhas de louro, o cheiro do feijão chiando no cozimento, nem salgado, nem insosso, o grosso do caldo desmanchando na língua, esse cheiro, exatamente esse cheiro, fez Laura estacionar os passos, farejando a cidade no auge do meio dia. Há dias não se sentava para comer feijão com arroz, arroz por baixo, feijão por cima, o caldo negro escorrendo por entre os grãos branquinhos e fundindo os sabores, como tem de ser. O cheiro vinha de um restaurante vermelho do outro lado da rua. Cheiro de tentação. Seus olhos gulosos, perdidos em algum domingo da infância, devoravam o restaurante todo, tijolos e janelas e telhas e portas, tudo devorado e com gosto de um tempo que já foi.. Os almoços domingueiros, vinha quase a família inteira: vô, vó, tios, tias e os primos. Domingo era dia de macarronada, arroz e feijão também, porque arroz e feijão são de todos os dias. Eram longos e sorridentes aqueles domingos, cheios de prosas e casos. Mas na hora do almoço fazia-se um silêncio humilde, é hora sagrada, dizia a mãe, almoço é hora sagrada. Feche a boca menina! Pra que pressa? A comida não vai acabar. Tinha razão, pena que criança é impaciente por natureza, teria mastigado muito pacientemente, sabor por sabor, textura por textura, teria decorado todos os aromas se soubesse que mais tarde passaria dias comendo congelados, com gosto, textura e aroma que são um só. Se bem que impaciência de criança é coisa bonita que adulto nenhum entende, é impaciência que de tudo tira gosto, de tudo experimenta. É só depois que se vira gente crescida que a impaciência se vira impaciente. Os olhos contrariados se contorceram até o relógio que apertava no pulso, hesitava, é que não tinha tempo. É assim mesmo, deu de ombros, com todo mundo é. Laura não fez caso e apressou os passos, sovando indiferença na dureza da calçada. Quantos minutos se foram com uma bobeira dessa? Dond’é que já se viu parar por aí cheirando feijão? Antes não tivesse parado, antes não tivesse cheirado! Desfeita da mesquinharia do feijão, apressou-se na normalidade, entregue ao contentamento de saber: logo chegaria em casa, assim que entrasse ia ver o gato e o cachorro, levava ração. Se livraria da poeira, do mormaço, e então comeria do que tivesse na geladeira. Feijão não tinha, é fato. Ração tem gosto de quê? Mas comeria do que tivesse e um trago de café. Ajeitou o peso da bolsa muito satisfeita, só isso por enquanto. Depois é sair outra vez e trabalhar. Não que fosse o seu o melhor dos empregos. Que ama a profissão é certo, aquele tanto de criança gritando: ô tia, ô tia, ô tia, e ela: calma ai qu’eu não sou dez! Uma rajada fresca atingiu-lhe o riso. Acontece que todo serviço tem seus desserviços, o problema é patrão ver a gente feito bicho, bicho nenhum foi feito ao desmerecimento, tropeçou em uma pedra pontiaguda: ai, ai, meu calo! Bicho nenhum foi feito ao desmerecimento, pisava meio torto, meio doendo, meio áspero. É assim mesmo, já ouviu por ai de patrão muito pior, ainda bem que tenho sorte.


Acertou os passos com o apressamento, o suor escorrendo na testa, molhando a nuca, uma água gelada agora... desvia!!! No caótico da calçada, todo mundo tem pressa, todo mundo tem atrasos, foi quase por um triz que seu apressamento não chocou com o apressamento do outro. Até que chega ao semáforo, ficou respirando precavida, as sobrancelhas soerguidas, assim que desse vermelho atravessaria. Inquietava-se os minutos duradouros, por isso, só por distração mesmo, vasculhou na bolsa um espelho, via-se ausente, atônita, como se a Laura do espelho fosse outra, não ela, outra mulher cansada. Fez uma careta desjeitosa, espremendo com súbito prazer o espelho em algum compartimento da bolsa. A avenida era de ruídos e fatalidades, os carros tossiam diminuindo as marchas e se afogavam na faixa de pedestre, enquanto os roncos dos motores respiravam descansados. Ainda bem que existe semáforos, descanso dos autos, tormento dos motoristas. Pois o que tem Laura com o descanso ou tormento do tráfego? Que atravessasse, oras, tem gente que procura perturbação. Avançou os passos em uma distância que os calcanhares alcançavam, duas pernadas e imobilizou no meio de um estralo esmagado na sola do sapato. Se atente mulher! O calor da coisa esmagada atravessou a borracha e foi dar com a meia suada, provocando um rangido que qualquer um poderia dizer que era de uma buzina, pareceu vagamente que era coisa estragada e pegajosa, o estômago embrulhou só de pensar, então antes que a náusea fosse de exagero os olhos se curvaram até o chão, o ruído cresceu, agudo e contínuo, sob o preto da sola, a cabeça desforme, esmagada, tingida de escarlate coagulado, a cabeça de uma pombinha cinza. Um calafrio zumbiu em suas costelas, os ruídos, os ruídos, os ruídos: sai da rua! Os ruídos, os ruídos, os ruídos: sai da rua!!! Estrondavam as buzinas. Os pés atormentados se espantaram e em um segundo estava do outro lado, cambaleando na calçada, a pombinha no meio, dez, quinze, vinte rodas e a pombinha do meio da rua. A mudez violentou Laura. Estava exausta, ofegante, com os olhos escurecidos, tonteando, rodeada de pombinhas esmagadas, se acudiu no poste quente do sinaleiro, suava frio e ofegava, como se nesse momento fosse desmaiar. Sentiu no estômago uma brusca pontada, se abraçou com força, ofegava. Brotou uma onda indigesta e o azedo viscoso subiu pela garganta e, antes que conseguisse arrancar da bolsa um papel toalha, deu um berro amargo e vomitou, pastoso, ofegante. E vomitou, o líquido esverdeado, pegajoso, escorrendo pela calçada, e vomitou, até que a náusea não encontrasse mais nada dentro do corpo marimbondo. Respirava, respirava, respirava, numa fremente ânsia de que o ar retornasse enfim aos pulmões, mas o cheiro do vômito, da pombinha morta, o cheiro do feijão... vomitou. Cruzavam-se pessoas e avenidas, que horas seriam? O trânsito ia tranquilo, o relógio respingado de vômito, talvez tenha se chocado com o poste, porque os ponteiros já não trabalhavam. Por instantes ficou ali, cabeça baixa, trêmula de perplexidade, sem ousar olhar a pombinha mais uma vez. Enojava. Encontrou na bolsa o papel toalha que buscava, se limpou como deu e recomeçou a andar. Caminhava com passos suprimidos, cada passo era como se estivesse pisando em pombinha morta, então pisava macio, lerdo, só com a beira do pé, desejando nunca mais esmagar criatura alguma. Mas era inevitável. Cabeças são esmagadas todos os dias sem que se saiba sequer o porquê.


Não se sentiu culpada, não era culpa, era? São coisas que acontecem, bem se vê por aí todos os dias. Os ventos do sul chegavam, sinal de chuva, as ruas se desertavam nessa parte da cidade e um ou outro cão vira-lata latia solitário. Laura quase dançava, aliviada, na expectativa da chuva que lhe lavaria os pés. Na profundidade, porém, não se sabe se era no estômago ou alguma outra parte, uma dorzinha incomoda, uma ferroada persistia. Preocupação, talvez. Afinal, estava muito atrasada. Foi só pensar no atraso que os passos se aceleraram, adeus tudo, agora é correr, chegar em casa e, olha, nunca tinha dado reparo àquela propaganda no outdoor, um energético que te dá asas, que coisa louca essa, não? Forçou os olhos para ler direito, para ver se era aquilo mesmo. E a pombinha morta no sinaleiro, o sangue escorrido, ninguém tirou a pombinha de lá, nem mesmo Laura. Deixou que ficasse no meio da rua, sendo morta tantas e quantas vezes a indiferença ao redor permitisse. A pombinha nunca mais voaria, a pombinha morta. Não vai negar que já conhecia o energético, conhecia sim e sempre bebia. É um vigor que dá, uma energia. Bebia e indicava aos cansados. Era assim que passava noites inteiras com os olhos arregalados e os movimentos débeis, voar nunca voou, a pombinha voava, essa sim voava, nunca mais, no entanto. Ao lado, outro anúncio: faça seu seguro de vida. É isso. Novamente, Laura achou que ia desmaiar, a dorzinha que era no estômago cresceu grave, toda a morte da pombinha estava agora em suas vísceras, toda a morte. De um prédio ali na frente, alguma ave alçou voo e uma pena flutuou nos ares, voejando lentamente. Os olhos de Laura se ofuscaram, essa pena, nem mesmo essa pena está livre, cairá aqui e qual será o seu destino? É uma pena, a gente também, uma pena trancafiada na cidade, uma pena cercada de paredes altas. Como é ser uma pena sem uma asa? Uma pena é uma pena, somente. E a gente, como é ser gente? A gente é pena, pena, pena, e todos os dias a gente pena, para chegar seis horas, se trancar em vinte metros quadrados, ligar a teve e assistir telejornais, tragédias. No intervalo, as utilidades: o energético que te dá asas. Faça seu seguro de vida. Queremos asas, queremos voar, então é penar hoje para que amanhã a velhice seja sossego. No fim a gente não tem asas, não tem segurança, não tem é nada. A gente tem é pena que dá é dó. E a pena pousou, por coincidência ou não, no ombro de Laura. Pena de ave é pluma, pena de gente é que é dura. Agora os passos eram lentos e enfezados, batucava o chão e o céu trovoava. Que chovesse! Que chovesse! Era disso que precisava, de chuva. Sentia-se suja e morta, muito antes da pombinha, Laura já morta estendida no asfalto. Seguro de vida para quê? Para pagar o tratamento da artrite?! Garantir um terreno no cemitério? A gente morre muito antes de morrer, a gente morre todos os dias e nem desconfia que está morrendo. O que estamos garantindo? Que a vida passe corrida, que os dias escorram dessabidos, para que na velhice, às beiras da morte, a gente descubra que uma vida inteira não foi vivida. Não. Eu não quero morrer!!! Eu não quero morrer!!! Eu não quero morrer!!! Gritou e gritava e grita. Tinha desespero, ânsia, desejo. Eu quero viver!! Sim, eu quero viver. É bem provável que qualquer transeunte pensasse que Laura estivesse louca. Senhora, eu não quero morrer e começou, antes de ouvir qualquer resposta, a correr: senhora, viva, ainda há tempo! Correu, correu, correu, viva, viva, viva, os braços estendidos abarcavam o mundo. Vida. Correu desfazendo todo o trajeto de ainda a pouco, se passou com o sinal verde não viu, se a pombinha estava no meio do caminho


não viu, só se sabe que corria, com um único fôlego, sentindo mais do que nunca a vida quente em suas veias. Estacionou os passos no mesmo lugar de outrora, não mais hesitaria, não mais. Atravessou a rua, o cheiro de feijão, aquele cheiro já não estava mais nos ares, o dono do estabelecimento recolhia pratos e limpava as mesas. Moço, ofegante, moço eu quero almoçar! Sinto muito, mas acabou... Não, sempre há tempo para um arroz com feijão. Eu quero almoçar, enfática. Eu quero almoçar. Render-se ao querer de uma jovem fedendo vômito e suor não é algo que qualquer dono de estabelecimento faria, mas diante da estranha euforia da moça, ele se rendeu, já avisando que o cardápio estava incompleto. Lá fora começava uma breve chuva, andorinhas e pombinhas rasgavam o céu buscando abrigo. A cidade está lotada de atropelamentos, todo mundo corre, se protege da chuva, tenta driblar os atrasos, mas ainda há tempo, Laura espiava pela porta, sempre há tempo. Aproximou-se da comida e inspirou o cheiro que é a vida. Tinha arroz, tinha feijão e tinha o frango... a pombinha morta no meio da rua, toda a dor da ave, toda a morte exalando. Não, o frango morto na panela, não, não comeria o frango, não comeria a morte. Laura sentou com o prato lotado de vida e comeu, como a muito não comia, com uma impaciência de criança, agradecendo pelo arroz com feijão, por finalmente degustar do sustento que é a vida.


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Quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta. – Carl Gustav Jung


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