O Gauche - Primeira edição

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Zine Cultural | Edição 01


O que é O Gauche? O Gauchenasceu do amor à literatura e toda manifestação artística de duas estudantes de Letras da Universidade Estadual de Maringá. Nossa ideia logo foi carinhosamente acolhida pela Prof.ª Dra. Marcele Aires Franceschini e seu projeto de extensão Outras Palavras. É um zine cultural que se dedica à abordagem de assuntos relacionados com as artes – principalmente a arte literária –, história e filosofia, buscando o alcance de toda a comunidade, dentro e fora da instituição. Nossa proposta é viabilizar a cultura por meio da palavra. Entendemos que o espaço acadêmico, com toda a sua burocratização – incômoda, mas necessária –, não proporciona tantos meios para que os estudantes divulguem seu conhecimento junto à arte e não interajam com outras áreas além do próprio curso de graduação e pós-graduação. A influência da vida acadêmica motivou a nossa escolha pelo formato de zine – informal, mas pensado em todos os pormenores. O título faz referência a Carlos Drummond de Andrade e seu jeito gauche de ser: esquerdo, deslocado, incompatível. Portanto, dedicamos esta primeira edição ao poeta itabirano, nosso mestre e confidente. O tempo foi o tema escolhido, já que é um assunto recorrente em sua obra, e grande parte dos textos aqui presentes obedece a essa temática. Além disso, o zine estará disponível também no blog com a versão integral de todos escritos e apresentação de seus respectivos autores. Agradecemos a todos os colaboradores e àqueles que acreditaram em cada detalhe desta ideia. Este é o necrológio dos milhares de Josés desiludidos, a flor desbotada que rompeu a pedra no meio do caminho, o brado de indivíduos canhestros. Vai! Sê gauche também. As editoras, Claudíne e Monique, Deleite-se! Equipe editorial: Claudíne Lisboa e Monique Boer; Coordenadora do Projeto de Extensão Outras Palavras (POP): Prof.ª Dra. Marcele Aires Franceschini; Colaboradores desta edição: Ana Julia Campos (colaboradora permanente), Bárbara Boer, Bianca Marçal, Carolina Freitas, Débora Curti, Eduardo Voroniuk, Erick Humai, Felipe Gurgatz, Gustavo Rosseto, João Muriel, Lucas Fiorindo, Márcio Roberto do Prado, Matheus Fiaux, Natalia Wingeter, Pedro Berger e Thais Meinerz. Universidade Estadual de Maringá – UEM (DTL)


Capa | Com oitenta por cento de ferro na alma Carlos Drummond de Andrade construiu sua poesia. A poesia viva. A poesia que permanece até hoje. Nascido em 1902 na cidade de Itabira, interior de Minas Gerais, o Drummond empírico não foi um ser engajado. Construiu sua carreira como servidor público, casou-se, encontrou seu lugar no mundo. O Drummond poeta foi – e ainda é – um ser inquieto, torto e deslocado. Pela metáfora do gauche, tentou entender o enigma do mundo que lhe era disforme. O poema No meio do caminho, que o apresentou ao mundo, quando publicado, em 1928 na Revista de Antropofagia, escandalizou o contexto literário, que ainda respirava resquícios do rigor formal de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira: Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas. A ideia de permanência é colocada nesses versos e retrabalhada de diversas maneiras em sua obra, desde a maneira mais prática, como a lembrança de uma Itabira ora idealizada, ora não. Além disso, retrata a atitude reflexiva do poeta diante do mundo. A pedra no meio do caminho é a mais perfeita tradução do gauche autoral. Sua poesia carrega características como a temática do tempo – Drummond trabalhou o intangível!–, numa recuperação mnemônica e nostálgica do espaço, do passado, de amigos, de amores e da família, a autorreflexão, a questão social (lembremos deA flor e a náusea), o pensar a poesia (Procura da poesia), o amor – até mesmo erótico (O Amor Natural) –, e a metafísica, que se fizeram constantes em sua obra. Drummond tem uma regularidade muito rara na literatura brasileira. Podemos até encontrar, em determinadas frentes, picos maiores de sua produção; contudo, o poeta itabirano jamais demonstrou queda ou esquecimento no panteão dos escritores nacionais. Sabendo que é uma produção multifacetada, a regularidade que o autormanteve é algo sobrehumano, fato que explica a posição central que ocupa na nossa literatura. Definir Drummond hoje apresenta dificuldades que o colocam entre o triunfo e o tormento, pois devemos pensar no espaço que a lírica ocupa atualmente – afinal, o que é um poema hoje? Devemos pensar também em qual é o papel da literatura e, sobretudo, o espaço que ocupa. Esse é o tormento. Por essa perspectiva, Drummond corre o risco de tornar-se uma voz um tanto quanto mais fraca na poesia. Entretanto, se tomarmos as demandas e os ditames da contemporaneidade e retomarmos a voz artística específica, são raras as que podem ser tão exemplares quanto a de Carlos Drummond de Andrade, uma vez que não há tanta presença, tornando ainda mais modelares aquelas que se direcionam ao centro do que chamamos de cânone literário. Ademais, foi Carlos um dos atores na criação de nossa identidade literária, especialmente na lírica.De tal modo que, com todas as dificuldades,


Drummond pode se dar ao luxo de dizer que se identifica como a própria poesia. Drummond é a poesia brasileira. Monique Boer e Claudíne Lisboa Texto feito a partir de uma entrevista com o Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado (DTL – UEM).

Análise: A flor e a náusea Por Marcele Aires Franceschini Um poema não se basta na beleza. A flor e a náusea é um desses casos. Logo na primeira estrofe nosso colega de Orkut de Itabira extravasa o tédio do mundo: “Vomitar esse tédio sobre a cidade”.Voo-mitar. O próprio título escarra na cara o mote: a náusea. La nauséé, o tédio, a melancolia: “Preso à minha classe e a algumas roupas, / vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias espreitam-me. / Devo seguir até o enjoo?”. Eis o sujeito poético que se nos apresenta. Entidade poética nada a fim de cantar rouxinóis ou ninfeias. Viva o escatológico: “O tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera. / O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse”. Drummond, o poeta pobre. Lembremo-nos: A rosa do povo, livro que traz A flor e a náusea, é publicado em 1945. Aninho emblemático esse, hein: fim da II Guerra, mundo fraturado. Gebrochen. A guerra findou, porém não seus horrores: ainda tão recente, no Brasil os jornais noticiavam os massacres e as fugas. Chega ao fim a Era Vargas, marcada por rígida repressão – seria A flor e a náusea um poema em “[E]stado de guerra”? Já aí, nos quarenta, o mineirimse mostra poeta dos mais refinados, cujas antenas sensíveis captam as dores e a agonia de seu tempo. São torrões de açúcar a vida de um homem. O poeta respira seu tempo. Num relance, o tom de A flor e a náusea soa negativo; tempo cinza, dose extra de descrença onthe rocks no copo sujo. Não há o que fazer, e com um grau créu5 de niilismo tão impactante quanto Bernardo Soares, Sartre, Camus e Kafka, o poeta acorda em águas irascíveis: “Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima”. Mas pera lá: o poeta não faz loas ao seu ódio? Como o ódio a dar esperança? Ódio é força, propulsão, grito, tapa, reação, ira, intensidade. É, pois, justamente a cólera que leva à esperança, apaziguada pela “forma insegura” duma flor que nasceu na rua.


Aos aedos, aos bardos, aos rapsodos e a Sinatra as flores sempre foram sinônimo de beleza, candidez, ideal estético de perfeição. Mas por que Drummond contradiz a flor? Quanta pretensão! Enfear a flor! Ah, mas é aí que você se engana, meu querido: “Uma flor nasceu na rua!”. É bem verdade que se trata de “uma flor ainda desbotada”, porém não sejamos ludibriados pelo imediatismo:ela tem vida, age, nada resignada nasce, “rompe o asfalto”. Bachelard, em O direito de sonhar (1939), compreende: “brotar é hesitar em sair”. Hesitante, a flor “desbotada”, “feia”, cuja “cor não se percebe” rompe o asfalto. De fato, “[é] feia. Mas é realmente uma flor”. Realmente. Em toda sua essência que brota, irrompe, força-se à vida. De fato, Drummond não é aquele que “entre flores, [o] amor espera”. Bilac isdead, babe. A flor é o objeto de passagem, devolvendo ao poeta a esperança mínima, não mais fruto do ódio, mas da contemplação: “Sento no chão da capital do país às cinco horas da tarde / e lentamente passo a mão nessa forma insegura. / Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se // Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Que O Gauche tire dos versos finais do poema (um dos mais bonitos da literatura brasileira, pra mim) esperança, fé, força à peleja e resistência num mundo cada vez mais fraturado. Afinal, somos uma soma de tudo aquilo. E de tudo isso. Não desejo vida longa ao Gauche porque isso não importa. Orpheu foi tão breve, porém ficou. Pra sempre. Desejo sim que vocês, xóóóvens, irrompam com força todo o tédio, todo ódio e toda desesperança que povoam as mentes cansadas. Que O Gauche seja feio. Como a flor. Que resista. Que rompa o asfalto, contaminado pela poesia nossa de cada dia. Avant-garde! Prof.ª Dra. Marcele Aires Franceschini DTL – UEM


Cronologia: principais obras 1902– Nasce Carlos Drummond de Andrade na cidade de Itabira – MG; 1918– seu irmão Altivo publica seu poema em prosa Onda; 1921 – o poeta publica seus primeiros trabalhos na seção Sociais do Diário de Minas. Além de publicar, em 28 na Revista de Antropofagia de São Paulo, o poema No meio do caminho, que se torna um dos maiores escândalos literários do Brasil; 1930 – publica seu primeiro livro Alguma Poesia; 1945 – publicação de A Rosa do Povo pela José Olympio e a novela O Gerente; 1951 – publicação de Claro Enigma, Contos de Aprendiz e A Mesa; 1952-53 – seus livros Poemas e Dos Poemas são publicados em Madri e Buenos Aires, respectivamente; 1958 – é publicado, em Buenos Aires, uma seleção de seus poemas na coleção Poetas delsigloveinte; 1962 – publica Lição de coisas, Antologia Poética e A bolsa & a vida; 1964-65 – publica a primeira edição de Obra Completa. No Rio de Janeiro, em colaboração com Manuel Bandeira, publica Rio de Janeiro em prosa & verso; 1966 – publica Cadeira de balanço; 1968 – publica Boitempo& A falta que ama; 1978-80 – escreve 70 historinhase O marginal Clorindo Gato. É publicada a edição limitada de A paixão medida,que antecede as publicações de Contos Plausíveis e O pipoqueiro da esquina; 1982 – ano do seu 80º aniversário. Publica A lição do amigo - Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, e os principais jornais do Brasil publicam suplementos comemorando a data. Vale ressaltar que, ao longo de sua vida, Drummond fez parte de diversas colunas jornalísticas, além de publicar obras em revistas. Suas colaborações em suplementos literários abrangem o Correio da Manhã e a Folha Carioca, além das revistas: Todos, Ilustração Brasileira e Euclides. Também traduziu obras de Balzac, Proust, Mauriac e Hamsun, teve suas obras publicadas e traduzidas em diferentes idiomas. O itabirano saiu do papel e colaborou no programa Vozes da Cidade, Rádio Roquete Pinto, e iniciou o programa Cadeira de Balanço, na Rádio


Ministério da Educação. Recebeu, ainda, o título de Doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 1983 – publica seu último livro em vida: Nova Reunião (19 livros de poesia); 1985-86 – publica Amar se aprende amando,O observador no escritório (memórias), História de dois amores, Amor, sinal estranho, Tempo, vida, poesiae escreve 21 poemas para a edição do centenário de Manuel Bandeira, preparada pela editora Alumbramento, com o título Bandeira, a vida inteira; 1987 – escreve e publica o poema Elegia a um tucano morto, que passa a integrar o livro Farewall. Em 17 de agosto, 12 dias após a morte de sua filha, Drummond falece por problemas cardíacos e é enterrado no Cemitério São João Batista do Rio de Janeiro. Deixou obras inéditas: O avesso das coisas (aforismos), Moça deitada na grama, O Amor Natural (poemas eróticos), Viola de bolso III, hoje publicados pela Record; Arte em exposição (versos sobre obras de arte), Farewall, crônicas, dedicatórias em verso, correspondência e um texto para um espetáculo musical; 1988-2000 – publicação de Poesia Errante,Auto-retrato e outras crônicas,entre outras publicações estrangeiras dos livros brasileiros. A Casa da Moeda homenageia o poeta emitindo uma nota de 50 cruzeiros com seu retrato, versos e uma auto-caricatura.


Contexto histórico | Um fevereiro em vinte e dois Por Felipe Gurgatz Existia, em São Paulo, uma pequena elite letrada acostumada a cruzar todos os anos o Atlântico a fim de nutrir-se com os ares sapientes da Europa. Essa seminobreza rural, com suas raízes se confundido a do café paulista, ouvia rumores de um mundo em pleno processo de transformação, de manifestos de uma nova arte europeia e da quebra de padrões até então impassíveis. Ao manter contato com artistas de vanguarda, absorviam as variantes e as sutilezas da pintura moderna, despejando, então de volta a São Paulo, tudo que fosse parte integrante dessa recente onda cultural. O que eles queriam mostrar era, como disse Raul Bopp, que com as mais novas tendências plásticas, o artista europeu estava em pleno domínio da expressão, isto é, podia exprimir livremente as suas criações, com maneiras que lhes eram peculiares, emancipado de qualquer formulário artístico. Uma pergunta rondou as conferências de intelectuais da época: por que é que em São Paulo não se dá início a uma renovação geral das artes? Artes essas encontradas em situações desalentadoras, num triste atraso. Por quê? Acontece que essas ideias coincidiam com os planos de Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e Rubens Borba de Moraes, pretendentes a realizar uma exposição de quadros de vanguarda e, quem sabe, abrir caminhos para experiências modernistas no Brasil. Com os planos iniciais passando da conversa para o concreto, uniram-se a eles Paulo Prado, Victor Brecheret e Oswald de Andrade. Começava a ser planejada a Semana de Arte Moderna em São Paulo. Na noite da inauguração, o Teatro Municipal se transformou num dos maiores pontos de confluência da cidade. A casa estava cheia. Com pontualidade e sob um estrondo de palmas, Graça Aranha apresentou-se no palco e anunciou em alto e bom som o estado de insurreiçãoem que se encontravam os domínios da inteligência. Proclamou que era necessário triunfar sobre a inércia que tomara conta das letras e das artes do nosso país. Depois, o rebelde Oswald de Andrade leu alguns fragmentos de Pau-Brasil e de Chove chuva choverando, para fazer cócegas em regras de colocação de pronome. Coordenados por Menotti del Picchia, participantes do programa declamaram versos de tempero moderno, da própria autoria ou da de outros. Mário de Andrade, munido de um sorriso zombeteiro, recitou alguns versos ainda inéditos e mordazes de Pauliceia desvairada. Quando Ronald de Carvalho leu o poema Sapos, do ausente Manuel Bandeira, foi o golpe de


misericórdia. A galeria se entregou ao deleite, restando ao maestro Villa-Lobos – calçando adequadamente só um de seus pés e permitindo que o outro se recuperasse de um ferimento –, acalmar a maré de espectadores que quase invadia o palco em seu entusiasmo. A segunda parte do programa foi realizada dois dias mais tarde. No saguão do teatro foram expostos trabalhos modernos, de colecionadores ou dos próprios artistas participantes da Semana. Foi uma apresentação magnífica, de uma ambientação inédita para o público paulista. Anita Malfatti, altamente influenciada pelo expressionismo alemão, apresentou 12 telas, entre elas, O homem amarelo e Amulher de cabelos verdes, duramente criticadas por Monteiro Lobato, cujas habilidades para a crítica artística, segundo Raul Bopp, equiparavam-se ao pensamento simplista de seu próprio personagem, o Jeca Tatu. Ou seja, o escritor não possuía qualquer sensibilidade para com o mundo moderno. A Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo teve inegáveis reflexos proveitosos. Sua reverberação, como notícia, foi enorme. Sua iniciativa, merecedora de reconhecimento e louvor. Mais do que suscitar uma tendência, ela abriu caminhos às manifestações literárias de cunho moderno, repercutindo ideais de revolução por todos os centros culturais do Brasil. Felipe é estudante de História – UEM | (bradogauche.blogspot.com)

A mulher de cabelos verdes


Drummond, por Matheus Fiaux (Artes Visuais – UEM)


Contexto histórico | O Brasil dos anos 40 Por Natalia Wingeter Para entendermos melhor as temáticas e o movimento artísticos da década de 1940 no Brasil, podemos fazer uma breve retomada do cenário político dessa época. De 1937 a 1945, o país viveu a Era Vargas, governo no qual o Estado Novo foi implantado com a justificativa de conter a ameaça de um golpe comunista. A nova constituição, apoiada pela burguesia industrial e inspirada nas raízes fascistas, deu a Getúlio Vargas alguns “direitos”, como escolher os governadores estaduais. Além disso, Vargas criou o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), com o objetivo de divulgar propagandas do governo e censurar a mídia televisiva. É nesse contexto, juntamente com despertar do ideal nazifascista no Brasil e mais a Europa assolada pela Grande Guerra, que o Modernismo se destacou. Na pintura, Cândido Portinari retratou os horrores da Segunda Guerra e as mazelas do Brasil com a produção de suas séries Retirantes e Meninos de Brodowski, reforçando a pobreza, fome, injustiça social e a miséria no sertão. Tarsila do Amaral, importante figura feminina, resgatou os princípios do movimento antropofágico, realizando suas telas com temáticas sociais, comoEstratosfera. Na literatura, tivemos a segunda geração modernista, repleta de questionamentos acerca da conturbação dos acontecimentos históricos, da realidade e da sua finalidade no mundo e marcada pelo regionalismo e pela maturação dos artistas após a Semana de Arte Moderna, em 1922. O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou, em 1945, seu livro A Rosa do Povo, com um dos poemas mais relevantes da geração: A flor e a náusea, já analisado anteriormente. Na prosa, o homem brasileiro das diversas regiões foi temática recorrente, tornando o regionalismo uma das características dessa fase. Após esse recorte temporal, concluo que é necessário fazermos um contexto histórico antes de conhecermos as vertentes artísticas. Eu, como acadêmica em História, e se os deuses quiserem, como uma futura historiadora, acredito que a Arte e a História caminham de mãos dadas em toda a linha do tempo. Não há como estudar manifestações artísticas sem saber o que se passa na época, pois a política e os acontecimentos históricos impactam na sociedade, e a sociedade impacta na manifestação do homem. Ela é um modo de sobrevivência. É a nossa fonte de expressão e manifestação. O que seria de nós sem a Arte? Natalia é estudante de História – UEM | (Texto completo em bradogauche.blogspot.com)


Filosofia |

A vontade no tempo Por Erick Humai

Não acredito que as decisões dos homens são frutos de longos raciocínios cuja conclusão é suficientemente capaz de movê-los para ação. O homem é muito mais facilmente movido por suas paixões, por sua vontade; é possível acreditar que agimos com propriedade e sentido – racionalmente –, mas não podemos discordar da possibilidade de que esse sentido seja apenas uma narrativa que contamos a nós mesmos para manifestação de algo anterior: nosso desejo. Nesse caso, o raciocínio é mais um artifício para justificar nosso desejo e encontrar meios para que este se realize. Será que somos tão racionais quanto pensamos? O tempo foi alvo da racionalização, foi mapeado, dividido matematicamente em partes iguais, temos o calendário e o relógio internalizados. Ao passo que podemos fazer promessas, dizer que estaremos em tal lugar, tal dia em tal hora. Se podemos prometer com segurança –e podemos, pois há toda uma estrutura que nos impede de quebrar contratos, coerções jurídicas ou até olhares de pessoas que amamos –, podemos vender nosso futuro. Somos os capazes de prometer, capazes de dizer que continuaremos com o acordo mesmo não tendo as mesmas motivações, mesmo não sendo os mesmos. Somos responsáveis, sacrificaremos nossa vontade se for preciso. A vida acontece no presente e é no presente que guardamos o passado pela memória. Prometer é exercitar a memória. Quanto mais prometemos, mais lembramos e, com isso, nosso passado se torna grande em nós, pesado. Por isso há em nós uma força que atua de modo contrário: o esquecimento, cuja utilidade, de acordo com Nietzsche, é zelar pela ordem psíquica, pela paz, e que sem o esquecimento, não poderia haver jovialidade, felicidade. Não haveria o presente, ou melhor: um presente não contaminado pelo passado ou futuro. Erick é estudante de Filosofia – UEM (bradogauche.blogspot.com)


Psicologia | O telescópio de Schopenhauer Por Eduardo Voroniuk Se considerarmos o comportamento como um processo mutável, fluido e evanescente, e não como uma essência dada como imutável, o tempo se mostra como fundamental. Entretanto, uma questão mais abrangente é: existe algo sem o tempo? A fumaça que sai do meu cigarro nunca mais voltará a ele. Podemos, então, falar de algo que exista fora do tempo? Talvez os físicos saibam a resposta que não sei, mas isso gera outra dúvida: como os físicos podem acreditar em algo que nunca viram? A maioria de nós acredita que a Terra é redonda sem nunca ter se distanciado o suficiente para ver com os próprios olhos ou feito qualquer experimento. Mesmo assim, acreditamos veementemente. O que garantiria essa permanência de crença por gerações, senão uma seleção por suas consequências? Se considerarmos que tudo, em última instância, é uma questão de seleção natural, como podemos explicar práticas que levam à extinção da espécie, como bombas nucleares? A resposta talvez seja a de que todos os comportamentos que presenciamos hoje foram selecionados no passado. Porém, se nossos comportamentos são fluxos do passado no presente e não podem ser controlados pelo inexistente futuro, como podemos explicar o comportamento de uma pessoa que se senta e usa da luneta de Schopenhauer para imaginar-se 50 anos à frente, ouvindo o que seu eu 50 anos mais velho diria para seu eu presente? Não nascemos dotados de fala e uma criança que cresce sem uma comunidade verbal muito improvavelmente desenvolverá tal comportamento, que é desenvolvido a partir do momento em que o homem ganhou controle sobre suas cordas vocais, permitindo-o desenvolver uma comunidade verbal que outros animais não possuem. Sentaríamos sobre uma pedra e perguntaríamos se somos a pedra ou aquele que está sobre elase não tivéssemos aprendido a falar de alguma forma? A pessoa que se utiliza da luneta aprendeu as relações entre tal palavra e o resto do mundo. Também as relações complexas e temporais, ao ponto de conseguir imaginar-se 50 anos mais velha – mesmo que com grande imprecisão. Mas com toda essa aprendizagem, assim como quase todo nosso conhecimento, mesmo que queira referir-se ao futuro, ainda há algo mais a ser construído no mundo, em um meio social (direto ou indireto), e no passado. Eduardo é estudante de Psicologia – UEM (Texto completo em bradogauche.blogspot.com)


Arte visual

1. Bárbara Boer; 2. Carolina Freitas; 3. Bianca Marçal; 4. Débora Curti. Todas são estudantes de Artes Visuais – UEM.


Poemário tormentas do nadir Pendem duas gotas rubras em dois fios brancos Dependurados por nuvens de papel, e pena e canto. Neste tempo, rochas milenares queimam meu páramo E nele se apresentam as areias do pretérito e os relâmpagos atirados de uma planície gélida, sem horizonte quieto para firmar. As gotas caem e no abismo há dez mil sonhos, e em cada sonho uma lasca do teu coração. Mas no céu não há sonho e não há pranto E os pés afundam em náusea vívida Calorosos e repulsivos os verbos, os braços, as almas. O abismo é o espelho e tudo converge a ele. Vejo teus olhos taciturnos e grito teus rogos mudos E ainda abraço-te e sob a manga carrego um punhal E sangro teu corpo aos sete dias e descanso-o sob as estrelas. Deixo-te morrer sem vida nova que semeie no barro amargo

Choro os sóis que não te esperaram e amarro a mim teu peito. Clamo, embora as lanças perfurem tua garganta, Choro, embora não haja peso que derrube ao solo o pranto dos teus olhos. Não rio, não te foi dado o riso. Foi te dado torpor, begônias secas e um peito de vidro; Intocável, desmantelado ao toque dos meus dedos. Foi me dada vida, e sob a vida o orbe, E sobre o orbe o espelho.

Vis de Elumir ____________________________ há um tempo que não escrevo há o tempo de se escrever o tempo escreve o que não precisamos ler eu perdi a conta em algum momento o relógio marca sem se perder me flagrei nostálgico esperançoso me flagrei culpado temeroso ausente da sequência que o instante inscreve até a ocasião de se morrer

Lucas Fiorindo


Música | Sobre o tempo Por Thais Meinerz Se você tiver um tempinho, pare para ler esse texto. Apenas pare. As reflexões acerca do tempo acompanham o ser humano juntamente com a sua evolução. Questões sobre o que é o tempo e como aproveitá-lo sempre estiveram presentes nas discussões relacionadas à vida humana. O homem é um ser livre, o que lhe dá o poder de decidir, de escolher o que é melhor para si. E essas escolhas estão diretamente ligadas ao tempo. De todas as coisas que podemos perder, a mais lamentável é a perda do tempo. Ele não volta, não se recupera. Já disse Renato Russo em sua música Tempo Perdido: todos os dias quando acordo/ não tenho mais o tempo que passou... Dizem que depois dos 18 anos a vida passa num sopro, mas os jovens, assim como na continuação da música, acreditam ter todo tempo do mundo. Quem dera realmente tivéssemos todo esse tempo. A vida passa tão rápido... Quando se vê, o dia já acabou, já é sextafeira, o café já esfriou, o ano já acabou. Quando se vê, os filhos cresceram e você já envelheceu vinte, trinta anos. Lembre-se de Cazuza: o tempo não para! A letra de Time, da banda britânica Pink Floyd, retrata, talvez como nenhuma outra, essa aflição sobre o tempo. Antes dos vocais entrarem há as batidas – que lembram até as batidas do coração! –, que começam com um período razoável e depois aceleram, deixando a música mais intensa. Podemos fazer uma analogia aqui com a própria vida. Os primeiros anos, que são mais calmos, e, mais tarde, quando adultos, a aceleração que ocorre na vida de todos nós e nos acompanha até a velhice. Cada ano parece passar mais depressa. Nessa canção, o tema é justamente mostrar que não sabemos aproveitar o tempo, que o gastamos da forma errada. Podemos estar na juventude e a vida pode até parecer longa, mas, de repente (e não mais que de repente) já se foram dez anos, você perdeu a largada e um punhado de sonhos ficou pelo caminho. Outra música na qual o tempo é protagonista é Tempos Modernos, de Lulu Santos. O refrão tem uma mensagem clara e direta: hoje o tempo voa, amor/ escorre pelas mãos/ mesmo sem se sentir/ não há tempo que volte, amor/ vamos viver tudo que há pra viver/ vamos nos permitir. No último verso, um velho conselho que pode até ser clichê: viva tudo no hoje, o depois pode não ter tempo de chegar. O futuro é um terreno incerto para os sonhos. Millôr Fernandes já sabia. Quem mata o tempo não é um assassino, mas sim um suicida. Thais é estudante de Letras – UEM | (bradogauche.blogspot.com)


Desenho temĂĄtico

Ana Julia Campos (Artes Visuais – UEM e colaboradora permanente)


Resenha

| Contos de amor rasgados, de Marina Colasanti Por Pedro Berger

Marina Colasanti é um caso peculiar na literatura brasileira: a autora consegue tornar adultos os contos de fadas (ou infantis os seus leitores?), emprestando às narrativas uma delicadeza lírica ímpar. Em Contos de amor rasgados, obra publicada em 1986 pela editora Rocco, a autora se afasta dessa vertente e convida o leitor a mergulhar em um universo ao mesmo tempo insólito e absolutamente real: os relacionamentos amorosos, as vivências sentimentais, os dramas humanos que nos devoram. O lirismo típico da autora permanece como elemento central das narrativas, todas muito curtas, ocupando em média apenas uma página. As fronteiras entre prosa e poesia são desafiadas, por isso o leitor deve se preparar para construir os sentidos a partir de sua própria subjetividade. A autora rompe com a linearidade da narrativa para mergulhar o leitor em um universo simbólico, místico e mítico, no qual, muitas vezes, a ausência de lógica é tão absurda que nos resta preencher as lacunas do texto de acordo com nossas vivências e crenças. As cartas de amor do livro são nossas. Nós somos os autores, nós rasgamos essas cartas, ou vivemos esses amores rasgados. Os pequenos contos dessa coletânea são um convite aos sentidos. Não espere racionalizar ou intelectualizar as histórias. Em vez disso, Colasanti nos chama para a fruição, para o deleite de narrativas que devem ser lidas ao som da chuva, com o coração aberto ao belo, ao lírico, para que sua prosa-poética nos invada e nos mostre a insolitude do cotidiano. Por exemplo, como lidar com um amor não correspondido pela morte? Quanto suportar por esse amor? A paixão pela vida, minúsculo conto de apenas três parágrafos, parte desse questionamento para nos atormentar: Amava a morte. Mas não era correspondido. Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço. Quando finalmente desistiu da paixão, entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.

Pedro é professor de Literatura e mestre em Letras (bradogauche.blogspot.com)


Indicação

| A Metamorfose, de Franz Kafka Por Gustavo Rosseto

A Metamorfose, de Franz Kafka, uma das mais admiráveis narrativas do século XX, tem início com a metamorfose de Gregor, o filho mais velho da família Samsa, em um inseto. Gregor trabalhava como caixeiro viajante, responsável pelo sustento da família e assumia o lugar de provedor que deveria ser do Pai. É possível observar na primeira parte da narrativa uma relação edipiana entre o protagonista e a mãe. Essa relação de maternidade é rompida - ou pelo menos é iniciada uma espécie de castração – quando a mãe consegue entrar no quarto e vê o filho metamorfoseado. Isso provoca o crescimento de Gregor, que começa a desenvolver-se enquanto inseto. O personagem se torna cada vez mais furtivo, amedrontado, incapaz, desenvolvendo-se enquanto inseto e, concomitantemente, perdendo a humanidade. Impossibilitado de trabalhar, Gregor é isolado em seu quarto e devolve ao Pai o papel de protagonista na vida financeira da família, que se vê obrigado a voltar a trabalhar e assume o papel de provedor dos Samsa. A dificuldade de manter a qualidade de vida que Gregor proporcionara faz com que Grete, a irmã, também comece a trabalhar, induzindo a família a alugar parte da casa para três homens, o que tira, de certa forma, o poder das mãos do pai, mais uma vez. Grete ainda alimentava as esperançasde que seu irmão voltasse à forma humana. No entanto, quando Gregor impede que tirem um quadro com a figura de uma mulher do quarto, a irmã se irrita e se sente desolada – já que ele mostrara interesse por alguém do sexo oposto que não fosse ela mesma ou a mãe. Assim, pede à família que se livre daquele monstro, pois ele já não era mais o seu irmão. A metamorfose proporciona uma série de mudanças na vida da família, e após a morte do inseto Gregor, a família se torna mais leve, mais livre, com o fardo deixado para trás: a metamorfose é também da família Samsa. Gustavo é estudante de Letras – UEM (bradogauche.blogspot.com)


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Eu vou, tu ficas, mas nos veremos seja no claro cĂŠu ou turvo inferno. (NecrolĂłgio dos desiludidos do amor, Drummond)


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