100 anos de Gonzagão

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100 anos de Gonzagão NESTA EDIÇÃO Cidade de Exu relembra seu filho ilustre Página 03

Feira de Caruaru inspirou um dos grandes sucessos Página 05

Religiosidade sertaneja marca obra do rei do baião Página 06

Sanfona de oito baixos continua sendo base do forró Página 07

Foto: Divulgação

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O BERRO

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Carta ao leitor

Foto: Divulgação

De popular a clássico

Foto: Divulgação

JOVEM Gonzaga numa foto promocional tirada nos anos 30

CATÓLICO Capa de disco lançado em homenagem a dois papas

A sanfona dos oito baixos, o chapeú de couro, o sorrizo largo, o fraseado perfeito nas letras que incorporam o linguajar do homem sertanejo. O cantor pernambucano Luiz Gonzaga, durante quase meio século, ajudou a criar e amplificar a imagem do nordestino. E virou sinônimo de forró, o gênero musical que ajudou a tornar famoso em todo o Brasil. De quebra, assumiu um papel fundamental na música popular brasileira. Para lembrar o seu centenário de nascimento, esta edição de O Berro é dedicada ao rei do baião. Com suas músicas e composições, Gonzaga representa a cultura popular nordestina no que ela tem de mais expressivo: a luta contra os elementos da natureza, a camaradagem entre amigos, a singeleza das festas juninas, o gosto pela diversão, a opção pela alegria diante das dificuldades e, também, é necessário dizer, uma dose de machismo. Gonzaga tinha tudo para se tornar uma figura simbólica: talento musical e carisma. Era diferente de todos os outros. Alcançou o sucesso justamente numa época em que, com a proliferação dos meios de comunicação, o Brasil descobria a riqueza cultural de suas regiões. Gonzaga é também um exemplo eloquente de como as origens modestas de um artista podem gerar um grande fenômeno de massa com qualidade. E que sucesso popular não tem de ser necessáriamente confudido com a mediocridade e a banalização, tão comuns neste início de século 21. Hoje, assim como é impossível falar do sul dos Estados Unidos sem pensar em músicos como o blueseiro Robert Johnson e o jazzista Louis Armstrong, assim como Cartola e Pixinguinha são inseparáveis dos subúrbios cariocas, não é possível pensar o Nordeste brasileiro sem lembrar a figura de Luiz Gonzaga. Nas próximas páginas, encontramse reportagens variadas que tentam

explorar a atualidade do legado deixado pelo cantor, sua importância e suas contradições. Na cidade de Exu, o Parque Asa Branca preserva a casa do cantor e muitos dos objetos que fizeram parte de sua vida. Os moradores da cidade usam, orgulhosos, motivos da sua obra nos nomes no comércio e preservam a memória do filho mais ilustre. No Recife, um circuito cultural e de exposições relembra a figura de Gonzagão, com uma programação que vai crescer neste ano de 2012, por causa das comemorações do centenário. A feira de Caruaru, imortalizada na letra de Onildo Almeida e cantada por Gonzaga, é tema de outra reportagem. O jornal traz também duas matérias que tratam da relação do compositor com o catolicismo, expressa no disco “O sanfoneiro do povo de Deus?”, e de sua adesão à Maçonaria. O Berro mostra também a tradição da sanfona dos oito baixos, mantida pelo músico Arlindo, antigo amigo e parceiro de Gonzaga. O mercado de discos de vinil e cds que ajudam a perpetuar a obra do forrozeiro também foi abordado. Entrevistamos também Toinho do Baião, colaborador de Gonzaga, e que ainda divulga o trabalho dele, e João Silva, que teve a proeza de ter sido seu parceiro em nada menos do que 130 músicas. Hoje já existem grupos interessados por forró nos Estados Unidos e até no Japão. “Asa Branca”, por exemplo, tem versões cantadas em várias línguas. Só isso já garantiria o nome do compositor pernambucano na história da música. Extremamente popular no seu tempo, ainda hoje conhecido por todos, Luiz Gonzaga sobrevive ao tempo e já é sério candidado, com o passar dos anos, a se tornar um clássico definitivo da música brasileira. Marcelo Abreu

EXPEDIENTE Coordenador do Curso de Jornalismo Alexandre Figueirôa O BERRO é uma publicação da Disciplina Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista - Recife-PE 50.050-900 CNPJ 10.847.721/0001-95 Fone: (081) 2119.4000 Fax: 81 2119.4222 | site: www.unicap.br/oberro

Professor Orientador Marcelo Abreu Subeditor Milton Couto

Repórteres Alexandre Amorim Alexandre Cunha André Amorim André Luframaia Beatriz Braga Camila Lindoso Eliane Carneiro Gabriela Arantes Gabrielle Buarque Mariana Lemos Milton Couto Nilton César

Revisão Fernando Castim

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Diagramação Flávio Santos Impressão FASA

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ro e os que não o conheceram – têm uma visão diferente sobre o Rei do Baião. Para os mais velhos, que viram uma cidade violenta, marcada por brigas entre famílias rivais (Alencar, Peixoto, Sampaio e Saraiva), Luiz Gonzaga foi um apaziguador. Utilizandose do prestígio que tinha, conseguiu junto ao presidente em exercício Aureliano Chaves – vice-presidente de João Baptista Figueiredo – que um interventor fosse nomeado, em 1981, para acabar com os conflitos em Exu. Segundo Zilclécio Saraiva, atual secretário de Administração e três vezes prefeito da cidade, a atuação do artista foi determinante para a pacificação, sendo reconhecido por isso. “Ele sonhou isso e idealizou, trouxe a intervenção para que nós pensássemos melhor. É a nossa expressão maior. Um nome realmente

ELIANE CARNEIRO

Exu, como muitas cidades do interior, ainda mantém tradições e hábitos de uma vida pacata. É comum as pessoas deixarem o carro e a casa abertos, colocarem as cadeiras na calçada para conversar durante a noite, e a maior parte do comércio não funciona depois das cinco da tarde. O que difere Exu do resto do sertão é a constante presença de Luiz Gonzaga. Há, por toda a parte, a imagem, o nome ou as canções dele. Seja no posto de gasolina, no restaurante, na pousada, na praça ou, até mesmo, na “lan house” – que avisa que Gonzaga agora é virtual – a cidade é toda influenciada pela obra que ele deixou. No entanto, não é um legado somente artístico. Duas gerações de exuenses – os contemporâneos do sanfonei-

forte, uma celebridade, nós sabemos disso. Cultuamos Luiz Gonzaga como nosso filho maior”, declarou. Maria Aparecida de Sá, comerciante há 20 anos, observa que o trabalho do cantor não se restringia apenas à música e sua influência na cidade permanece. “Fez muito pela paz de Exu. Lutou, foi lá fora e buscou recursos. Hoje, graças a ele, tem turismo, tem a festa, que traz recurso para a cidade.” A assistente social Tâmara Moreira é coordenadora de um grupo que resgata a cultura do sertão por meio de danças típicas da região, como o baião, o xote e o xaxado. Tâmara diz que a finalidade do projeto voltado às crianças é “elevar ao máximo” o nome de Luiz Gonzaga. “Ele é referência não só na região, mas no país. A gente quer que nunca se esqueçam dele.” Ma-

Foto: Eliane Carneiro

Gonzaga ainda hoje movimenta Exu PRESENÇA A lembrança está por toda a cidade

ria Helenilda dos Santos, professora e coordenadora de um centro de artesanato, defende a imagem que os exuenses têm de Luiz Gonzaga. “Ele é um motivo de inspiração, porque passou por todo o tipo de preconceito: pobre, preto, do sertão, do nordeste e conseguiu vencer. É uma referência de lutar pelo seu ideal, mesmo com muitas portas batendo em sua cara, ele não desistiu.”

Gonzaga é reconhecido por ter cantado as coisas do sertão, ter uma visão humanista e voltada à natureza. Esse olhar diferenciado conquista seguidores como o professor de sanfona Cosmo Damião, de 20 anos. “Eu tenho que seguir essa cultura, sinto como obrigação. É uma influência muito forte, especialmente, entre os sanfoneiros de Exu.”

ELIANE CARNEIRO

Com vista para a cidade de Exu, o primeiro andar da casa em que Luiz Gonzaga morou, os últimos anos de vida, é o ponto alto da visita ao parque Aza Branca, no sertão do Araripe, a 607 km do Recife. A intimidade do Rei do Baião é desvendada em cada canto, desde a fé, no terço pendurado no espelho da cama, passando pela coleção de gibões e chapéus de couro, até no banheiro, onde ele desfrutava de uma grande banheira feita de alvenaria. Todos os objetos, espalhados pelas paredes e cômodos, remetem a alguma faceta de Gonzaga. A mesa, com dois grandes bancos, no estilo refeitório, acomoda até 15 pessoas. Percebe-se, nesse detalhe, o apreço dele por lugares com muita gente. E, para hospedar todos, ele ergueu outra casa, ao lado da dele, que mais tarde serviria de pousada. Em frente, há um palco, no formato de ferradura, onde o cantor entretinha os convidados. Ainda no refúgio do Rei do Baião, outra marca sempre

Foto: Eliane Carneiro

Parque Aza Branca preserva objetos pessoais

INTIMIDADE O quarto preserva os objetos pessoais do artista

presente pelos aposentos é a religiosidade. Na sala que conduz às escadas, para o primeiro piso, há um altar, onde as imagens do padre Cícero e do frei Damião se destacam. Em outro altar, dentro do quarto de Gonzaga, chamam atenção os crucifixos e um retrato, na parede, do papa João Paulo II. A presença dos objetos pessoais dá a impressão de que, por

um instante, ele ausentou-se, mas em breve retornará. Entrar lá é sentir que a história dele permanece viva, como o casal de asa branca mantido em um viveiro, na frente do terraço. Após conhecer esse recanto, outro ponto central da visita ao parque Aza Branca é o mausoléu. Nesse local, com portas envidraçadas e paredes adornadas com algumas fotos de Gonzaga, estão

além dos restos mortais dele, os da mulher (Helena), os dos pais (Januário e Santana) e os do irmão Severino dos Santos. Ao lado do mausoléu, está o museu do Gonzagão. que guarda todo o acervo do artísta. Entre os objetos, estão a primeira sanfona de oito baixos, presente do pai, a utilizada na homenagem, em 1980, no Ceará, para o papa João Paulo II, e a última, de 120 bai-

xos, usada num show no Recife. As paredes repletas de recortes de jornais e fotografias de parentes, artistas e amigos ajudam a contar a trajetória desse sertanejo pobre que conquistou o Brasil e chegou a se apresentar na França. O museu, além de ter todos os prêmios e títulos, guarda objetos pessoais, inclusive a cadeira de rodas usada quando o cantor ficou doente. Cícera Maria dos Santos, guia do parque, afirma que o espaço foi idealizado pelo próprio Gonzaga. “Ele vivia falando em fazer esse museu. Viu o projeto, já (diagnosticado) com o câncer de próstata, mas morreu (em 1989) antes da inauguração. O filho dele (Gonzaguinha) também tinha planos para o local, no entanto, pouco tempo depois do pai, morreu (em 1991) em um acidente de carro”. Aberto diariamente das 8h às 12h e das 13h às 17h, o Aza Branca (asa grafada com z, porque houve um erro na hora do registro, que mais tarde não foi corrigido, pois agradou ao cantor) tem outros espaços para a visitação, como a Casa de Januário – onde viveu o pai de Gonzaga.


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Forró agita mercados do Recife ALEXANDRE CUNHA

A vida e a obra de Luiz Gonzaga sobrevivem ao tempo. Seja como tema de filme, bloco carnavalesco ou escola de samba, a herança cultural deixada pelo compositor mantém-se presente. Porém, um sentimento de nostalgia, “tempo bom que já não volta”, é comumente compartilhado entre defensores do forró de raiz, inquietos com o desenvolvimento sem freio das bandas “estilizadas”. No intuito de preservar e perpetuar o ritmo consagrado por Gonzagão, sob a musicalidade tradicional da sanfona, triângulo e zabumba, o Memorial Luiz Gonzaga realiza, mensalmente, o “Sábado Danado de Bom”. Iniciado

no período junino de 2009, o projeto consiste na reunião de forrozeiros e amantes do pé de serra nos principais mercados públicos da cidade. As primeiras apresentações aconteceram no Pátio de São Pedro, onde está localizado o memorial, como forma de atrair as pessoas a conhecerem o acervo e as atividades do lugar. Em 2011, o evento ganhou caráter itinerante, expandindo os shows, gratuitos, aos mercados da Madalena, Encruzilhada e Boa Vista. De acordo com José Mauro de Alencar, gerente do memorial, o Sábado Danado de Bom (nome inspirado na famosa música de Gonzagão) tem tido grande sucesso, e um dos progressos nos encon-

como o “embaixador do forró”, o apresentador do programa “Forró, Verso e Viola”, da Rádio Universitária FM, tem um histórico com o rei do baião. “Tive o privilégio de ser amigo de Luiz Gonzaga. Uma das grandes alegrias da minha vida foi dividir o palco com ele no município de Serra Talhada, em confraternização ao poeta Zé Marcolino, no final da década de 80. Juntos, cantamos ‘Asa Branca’”. Segundo Ferraz, os compositores atuais devem-se espelhar no olhar crítico que o “velho Lua” tinha com as coisas cotidianas da vida. “Gonzaga cantava sobre a seca, os vaqueiros, os carros de boi. Registrava, nas músicas, os costumes e tradições da sua

tros foi a criação da Medalha Memorial Luiz Gonzaga. “É uma homenagem àqueles com notórios serviços prestados à arte pernambucana. Es-

Todo último sábado do mês, o público pode dançar ao som das músicas de Gonzaga critores, sanfoneiros, ou seja, baluartes da cultura que contribuem, nos dias atuais, para a manutenção da tradição”, conta Alencar. Um dos primeiros homenageados com a simbólica medalha foi o cantor e radialista Ivan Ferraz. Conhecido

gente. Característica que hoje sinto falta no nosso forró”, afirma. Na sua opinião, Gonzaga ajudou a despertar uma sensabilidade nas outras regiões, sobre a realidade do povo nordestino, por meio do apelo contestador de algumas de suas letras. Zelito Nunes, poeta, pesquisador da cultura regional do estado e também condecorado com a Medalha Memorial Luiz Gonzaga, diz que a batalha entre os “artistas da raiz” e bandas de forró estilizado, contratadas por grandes gravadoras, é absolutamente desleal. “A iniciativa do Sábado Danado de Bom é corajosa, pois é um trabalho quase suicida. O forró precisa de pontos de resistência como este.”

Simplicidade e ousadia marcaram os passos de um homem que cantou como ninguém os problemas do Sertão. Com uma voz diferenciada, o sanfoneiro revelou ao mundo a riqueza de estilos musicais como o xote e o baião. Mais de duas décadas após sua morte, ele ainda é visto como um ícone da cultura nordestina. Seu legado está presente em diversos cantos do país. Um exemplo disso é o Memorial Luiz Gonzaga, localizado no Pátio de São Pedro, no centro do Recife e criado em 2 de agosto de 2008 (a inauguração ocorreu nesse dia porque o Rei do Baião morreu em 2 de agosto de 1989). A iniciativa de construí-lo partiu da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife, com o objetivo de manter e divulgar a obra do artista. “Como ele deixou uma riqueza cultural muito grande, o espaço tem por obrigação tornar público tudo que é relacionado a ele,” afirma Pedro Américo, pesquisador do Memorial. O lugar atrai a atenção por apresentar um cenário interiorano (parede de taipa, cordéis, santos como São João Menino e

Frei Damião e candeeiros) justamente para mostrar ao público a realidade do ambiente sertanejo. Associado à arquitetura, encontra-se um vasto acervo distribuído entre livros, discos, documentários, fotos, depoimentos e DVDs. Diariamente, grupos de escola e turistas vão à galeria conferir o setor educativo, de pesquisa e de música. “As pessoas que vêm aqui se interessam muito em pesquisá-lo, ler os livros, assistir aos documentários e escutar suas músicas”, diz Marcos Leite, estudante de Ciências Sociais e estagiário do memorial. “Ouvi falar daqui. Gosto demais desse compositor e esse local preserva a memória dele e invoca minha curiosidade”, conta o músico mineiro Raphael Funchal, de 23 anos. Assim como o Memorial, o Museu do Forró Luiz Gonzaga, em Caruaru, é outro ponto de destaque na preservação da biografia do cantor. Idealizado pelo Governo do Estado de Pernambuco em 29 de maio de 1999, o espaço recebe ,em média, de 1000 a 1200 visitas por mês. “Funcionamos de terça a domingo. Temos vinis, sanfonas, partituras e vários objetos pessoais dele. Quando chegam os visitantes, rapidamente eles se inte-

ressam em ver esses objetos”, diz Samuel Musselman, turismólogo e assessor do museu. A popularidade do forrozeiro também alcançou a internet. O pesquisador Paulo Vanderley, 31 anos, criou o site Luiz Lua Gonzaga em 28 de setembro de 2005. A admiração pelo pernambucano é antiga. “Eu o ouço desde criança. Meu pai colocava as músicas dele no carro e na vitrola em casa”, afirma Vanderley. Essa afinidade o instigou a montar o guia virtual, que é composto de vídeos, histórias e discografias. “Escolhi a internet porque é o meio mais democrático de acesso. O site é para fazer justiça à memória dele”. O escritor e jornalista Renato Phaelante conheceu Gonzaga em 1960, época em que atuava como locutor na Rádio Clube. Graças a tal contato, lançou o livro “Luiz Gonzaga e o Cantar Nordestino” e reconhece a importância de relembrálo. “Foi o Pelé da música popular brasileira, o maior cantador que o povo já viu”. 1. PEÇAS que pertenceram a Luiz Gonzaga 2. VINIS fazem parte do acervo do Memorial

1 Foto: Gabriela Arantes

GABRIELA ARANTES

Foto: Gabriela Arantes

Exposições perpetuam a trajetória do rei

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NILTON CÉSAR

O mercado popular da “capital do agreste” nunca mais seria o mesmo após o grande sucesso da música “A feira de Caruaru”, composta por Onildo Almeida e eternizada na voz de Luiz Gonzaga. Na descrição contida na letra da música, o mercado parece guardar um mundo em suas barracas. Parte da letra, Onildo atribui à sua criatividade, que, para ele, não se explica, acontece. Para Emanuel Leite, membro da Academia Caruaruense de Cultura, Ciências e Letras, a música é a propaganda da feira e é graças a ela que, em 2006, o mercado ganhou o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde pequeno, Onildo costumava andar pela feira e observou que aquele não era um mercado comum. Na Feira de Caruaru dos anos de 1940, o comércio de rua vendia artigos de luxo, móveis coloniais, artesanato do

Foto: Nilton César

Feira de Caruaru rendeu disco de ouro HOMENAGEM Estátua do compositor na entrada da feira

mestre Vitalino, que Onildo costumava comprar. Hoje, a arte popular continua presente. Dos bonecos de barro, que são famosos em todo o país, como diz a melodia, a instrumentos musicais, caldo de cana e eletrodomésticos, tudo isso continua presente. Mas hoje há uma invasão de produtos vindos do Paraguai, da China e de outros lugares.

A variedade parece não ter fim. Para Onildo, essa diversidade não impede que a cultura local permaneça. Como na música escrita há quase 60 anos, a tradição da feira é vender tudo o que se possa imaginar, afinal, como diz a letra, “de tudo que há no mundo, tem na feira de Caruaru”. A música, inicialmente, seria gravada pelo cantor parai-

bano Jackson do Pandeiro, o que por ironia do destino, não aconteceu. Certo dia, uma gravação de “A Feira de Caruaru”, gravada pelo próprio Onildo, estava tocando nos estúdios da Rádio Jornal, em Caruaru, onde o compositor trabalhava como técnico do programa “Expresso da Alegria”. Gonzaga, que estava lá como convidado do

programa,ouviu por acaso a gravação e decidiu que aquele seria seu próximo sucesso. Onildo Almeida e Gonzaga ficaram amigos e o compositor chegou a produzir um show do Rei do Baião, que reuniu 30 mil pessoas em Caruaru. A parceria seria abalada quando, em uma viagem de Gonzaga à capital do forró, Onildo entregou-lhe uma fita com seis gravações. O tempo passou e quando se encontraram novamente, o compositor perguntou-lhe se tinha gostado das músicas e Gonzaga nem sabia do que Onildo falava. O poeta jurou que o safoneiro nunca mais gravaria uma canção sua. Anos mais tarde, a desavença seria desfeita quando ambos descobriram que um produtor perdera a fita e sucessos como “Marinheiro, marinheiro” acabaram sendo explorados por outros artistas. Para Zélia Santos, comerciante da feira, a música sempre será atual, pois a cada verso, a letra se renova como a feira da realidade, que inova sem deixar de lado o espírito nordestino.

Música na sala de aula, sim sinhô! ALEXANDRE AMORIM

Com uma bagagem de possibilidades interpretativas, as músicas cantadas por Luiz Gonzaga, podem ser recursos para desenvolver atividades pedagógicas na escola. A ideia de alguns professores é fazer com que os alunos tenham acesso a um cardápio cultural diversificado, possibilitanto, assim, o ensino através da troca de identidades culturais. Segundo Lylian Cabral, mestranda em literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um dos pontos importantes ao trabalhar na escola o universo cantado por Gonzaga está na desmistificação do engessamento de uma língua e de sua fala. “Através dessas músicas, os alunos compreendem que

o falar do sertanejo é possível de ser entendido. Eles percebem como a língua pode ser discriminada por se distanciar das normas gramaticais, mas que nas músicas os erros da fala servem para aproximar o ouvinte do povo do Sertão”, disse. Já para o professor de português Diogo Mendonça, que ensina no Colégio Dom, a obra musical de Luíz Gonzaga serve de apoio, por exemplo, para explicar as figuras de linguagem. Na canção “Asa Branca”, escrita em parceria com Humberto Teixeira, os alunos podem ver o uso das metáforas. “No trecho: ‘quando o verde dos teus óio se espaiá na prantação...’, o autor cria uma comparação entre a cor dos olhos da mulher amada e o sonho de ver a terra rica de culti-

vos”, contou Diogo. O uso dessas figuras podem aguçar a interpretação dos estudantes e fazê-los compreender o assunto através da contextualização da teoria com a prática. Outra

“É preciso aproximar Gonzaga da cultura letrada”, afirma a mestranda Lylian Cabral figura bastante presente nas letras de Gonzagão é a hipérbole, função que atribui o exagero de algumas ações para chamar atenção dos ouvintes. “Na música ‘A vida do viajante’, no trecho: ‘minha vida é andar por esse

país...’, o autor intensificou uma ação para atribuir movimento à música”, afirmou Mendonça. Temas como a religiosidade e o sofrimento, assuntos abordados por autores consagrados da literatura, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, também são encontrados na obra do rei do baião. “É preciso aproximar Gonzaga da cultura letrada. Assim como esses escritores, ele transformou em poético as infelicidades da vida cotidiana e cantou e contou para o Brasil um Pernambuco que ele queria ver mudado”, afirmou Lylian. NA FACULDADE Para a professora de história Luciana Cavalcanti, da Faculdade Escritor Osman

da Costa Lins (Facol), as músicas de Gonzaga são aulas sobre o Brasil. Nelas se observa o cenário de relações políticas, marcado pela desigualdade social, mostrando um Luiz Gonzaga consciente de que era porta voz das demandas do Nordeste. “Em uma apresentação, ainda na década de 50, ao cantar ‘Vozes da Seca’, Gonzaga discursou no meio da canção e agradeceu ao homem que criou a Sudene, lançando um — obrigado, Juscelino —, então presidente Kubitschek. Esse caso em especial já me rendeu excelentes aulas de história”, disse Luciana. Ainda segundo Luciana Cavalcanti, quando o professor utiliza a produção cultural na sala de aula, ele faz com que o aluno observe como a arte se relaciona com a realidade.


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Obra é marcada pela religiosidade Mesmo vivendo em meio a inúmeros sofrimentos e tragédias, o sertanejo mantém sua fé inabalável. O rei do baião, Luiz Gonzaga, cantou como poucos a identidade nordestina e o chamado “catolicismo popular”, um dos temas mais recorrentes e marcantes em suas composições. Missas, romarias e os mais variados rituais católicos são o pano de fundo do disco “O Sanfoneiro do Povo de Deus”, o de maior conteúdo religioso de sua carreira, que foi lançado por Gonzaga no ano de 1968. Nesse disco, o Gonzaga canta desde “Beata Mocinha”, passando por uma louvação ao Papa João XXIII, até chegar à espirituosa faixa “O jumento é nosso irmão”. Ele trata da temática religiosa com bastante leveza. “A maneira como ele canta não é nem um pouco

anos de 1964 a 1966”, complementa. O ritmo dançante do tradicional forró “pé-de-serra”, com seus arranjos de sanfona, zabumba e triângulo, cede lugar a um canto triste e melancólico, quando Gonzaga homenageia um primo, o vaqueiro Raimundo Jacó, assassinado na cidade de Serrita, no interior pernambucano. A primeira Missa do Vaqueiro foi realizada como forma de protesto e reuniu centenas de sertanejos de todas as partes do Nordeste. A canção “A morte do vaqueiro”, composta por Gonzaga e Nelson Barbalho virou uma espécie de hino para os sertanejos. “A música foi feita para Raimundo Jacó, mas representa todos os homens do sertão que desafiam a seca e os perigos da caatinga, e, apesar de todo o sofrimento, ainda mantém viva a sua crença em Deus e em dias melhores”, conta Nunes. Até

Foto: Eliane Carneiro

MARIANA LEMOS

CASA DO REI Em Exu, objetos de Gonzaga mostram sua fé católica

piegas, mas sim incrivelmente autêntica, a cara do povo do sertão”, disse por e-mail o poeta cearense Arievaldo Nunes. “O disco foi lança-

do logo após um período de crise financeira e de escassez de shows, o que o fez atuar como músico de estúdio e até fazer campanha política, nos

hoje, a missa acontece anualmente em Serrita, conhecida como a capital do vaqueiro, e é considerada uma das maiores manifestações culturais de todo o Sertão. O frei Alberto Bezerra, da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, interior de Sergipe, afirma que é emocionante presenciar a fé dos fiéis que chegam para a missa. “Eles vêm das mais distantes cidades, algumas que eu nunca nem tinha ouvido falar, mas todos chegam vestidos com aquela indumentária pesada de couro e trazendo suas mulheres e filhos para a celebração, assim como aconteceu na primeira missa com Gonzaga em 1971”, afirma. Durante a celebração a céu aberto, cerca de mil vaqueiros desfilam em procissão, levando alguns de seus pertences como forma de oferenda, antes de se dispersarem para o trabalho pesado nas fazendas do alto sertão do Araripe.

MILTON COUTO

“Ela é tão linda é tão bela/ Aquela acácia amarela/ Que a minha casa tem/ Aquela casa direita/ Que é tão justa e perfeita/ Onde eu me sinto tão bem.” É com esse refrão da canção “Acácia Amarela”, que o cantor Luiz Gonzaga e o músico Orlando Silveira homenagearam a maçonaria, no disco “Eterno Cantador”, lançado em 1981. Para a sociedade secreta, a acácia é a planta que simboliza pureza e segurança. Foi no ano de 1961 que Gonzaga ingressou na maçonaria. Hoje, a loja maçônica de Exu, terra natal do cantor, leva o nome do ilustre membro. Hoje, alguns amigos relembram a participação do cantor na sociedade secreta. É o caso do gerente de banco Paulo Marconi Silva, que conheceu Gonzaga em 1988, quando o banco em que trabalhava resolveu transferi-lo de Canapi, no sertão de Alagoas, para Exu, sertão de Pernambuco. Silva, que hoje mora em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul,

disse por telefone que sempre tinha lugar marcado para se encontrar com Gonzaga, quase todos os dias. “Quando dava umas sete horas da noite, ia para o Parque Asa Branca ouvir os ensinamentos dele. O que mais aprendi

Gonzaga chegou ao posto de mestre na sociedade. Hoje, a loja maçônica de Exu leva o nome dele com o mestre foram duas coisas: simplicidade e humildade. Ele tratava as pessoas de igual para igual., mesmo sabendo do peso do seu nome para a cultura brasileira. De vez em quando, bate um saudade de sentar e conversar com ele”, afirmou. Liberdade, igualdade de direitos e obrigações sem diferença são os três principais preceitos da maçonaria. A sociedade possui

cerca de dez milhões de seguidores no mundo, segundo a Confederação da Maçonaria Simbólica do Brasil. O catolicismo se opõe, abertamente, à sociedade secreta. Segundo o catolicismo, os fiéis que são maçons cometem pecado e estão proibidos de comungar. Mas isso não parecia incomodar o católico Luiz Gonzaga. O contador e maçom José Mamoré, hoje morador de Belém, no Pará, entusiasma-se ao contar a história dos minutos que passou ao lado do Rei do Baião. Em 1977, Mamoré, voltando de avião do Acre, num voo que fez escala em Manaus. conheceu o cantor no aeroporto num encontro totalmente inesperado. “Me dispersei dos amigos e dei de cara com meu ídolo em carne e osso, no aeroporto de Manaus. Cheguei perto dele e falei uma frase maçônica. Ele me respondeu: ‘Tão novinho e já é um irmão’.” Coincidentemente, o voo de Mamoré era o mesmo de Gonzaga. Sabendo da presença do fã no avião, o músico pediu que

Foto: Arquivo Pessoal

Maçonaria foi homenageada com baião

PROSA Quase todas as tardes, Marconi encontrava o ídolo

ele fosse para onde estava, na primeira classe. “Mestre Lua me disse que estaria em Belém no mês seguinte e que queria jantar comigo no hotel.” Trinta dias se passaram e, no dia da apresentação na capital paraense, Mamoré não conseguiu sequer dormir direito. No quarto, Gonzaga interpretou algumas músicas, entre elas “Acácia Amarela”, apesar de a canção ainda não ter sido gravada na época. “Ele disse que era um presente para mim, em primeira mão”, falou. O Rei do Baião passou pelo posto de aprendiz, companhei-

ro e, perto de morrer, chegou a ser mestre maçom, cujo dever é entusiasmar os outros seguidores a seguirem acreditando na sociedade. Apesar de chegar a esse posto, ele não era assíduo. “Não tinha muito tempo para se dedicar, sempre estava viajando. Mas era fervoroso”, afirmou Paulo Marconi Silva. Doente, já de cadeira de rodas, o Rei do Baião se apresentou na loja de Exu e cantou “Acácia Amarela” para uma plateia de amigos maçons, inclusive Paulo Silva. “Todos ficaram emocionados. Inclusive ele, que chorou”, relembra Silva.


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CAMILA LINDOSO

Uma tradição passada de pai para filho. Foi ainda quando criança que Luiz Gonzaga aprendeu a tocar a sanfona de oito baixos do pai Januário. Conhecida no Nordeste como fole de oito baixos, concertina ou pé-de-bode, o instrumento é considerado um símbolo da música nordestina. Hoje, há incentivos para manter viva a sanfona que foi essencial tanto para Gonzagão quanto para a trajetória de outros sanfoneiros. Arlindo dos Oitos Baixos, morador do bairro de Dois Unidos, no Recife, é um dos músicos que consagraram a carreira junto ao instrumento. “A mais moderna, como a de 80 e 120 baixos, tem uma nota só abrindo e fechando. Mas a de oito baixos não. Quando aperta um dos botões sai uma nota quando fecha e outra quando abre a sanfona”, explica Arlindo. Segundo o músico, o instrumento, além de ser mais difícil de tocar, ainda possui uma afinação diferenciada dos demais. Arlindo nasceu na cidade de Sirinhaém, Zona da Mata Sul de Pernambuco, em 1942, e aprendeu a tocar com o pai ainda criança. Mas foi em um show na exposição de animais do Recife que conheceu o Rei do Baião.

Foto: Fábio Jardelino

A tradição dos oito baixos

ACORDEOM Em casa, Arlindo mantém um espaço para os instrumentos

“Com o tempo ele me convidou para alguns eventos em São Paulo e no Rio de Janeiro e, depois disso, toquei junto com ele cerca de 20 anos”, conta o músico, que, ainda nesse tempo, começou a fazer carreira solo com o fole de oito baixos por influência de Gonzaga. Devido à diabetes, Arlindo perdeu completamente a visão, mas, segundo ele, isso não o impediu de realizar shows e repassar os ensinamentos musicais. De acordo com a historiadora Lêda

Dias, que pesquisa por conta própria a história do acordeom, desde 2007 está havendo a crescente procura pelo fole de oito baixos, tanto no Nordeste quanto no Sul e Sudeste. “Acabou essa história de que esse tipo de arcodeom está desvalorizado”, diz a historiadora. Segundo ela, existem incentivos públicos e privados, como escolas e cursos, voltados para o instrumento, além de instituições que investem nos alunos interessados. “Em Caruaru, existe a Escola de Sanfona de Oito Baixos. Em Santa Cruz do Capibaribe tem a Orquestra Sanfônica de Oito Baixos e em Salgueiro já aconteceu o primeiro Encontro de Sanfoneiros”, conta Dias. Questionada sobre a transmissão dos ensinamentos da sanfona, a historiadora diz que hoje a tradição continua sendo oral. “Ainda não existe um método estabelecido para ensinar oito baixos. Tudo é através da prática”, conta ela. De acordo o músico e compositor pernambucano Herbert Lucena, criador do selo Coreto Records, que já gravou CDs de diversos artistas regionais, o fole de oito baixos foi e continua sendo a base das músicas juninas: “Ouço muitos discos antigos do gênero e noto que na maioria deles a sanfona de oito baixos está sempre presente”.

GABRIELLE BUARQUE

Muitos foram os discos gravados por Luiz Gonzaga, ao longo de sua carreira. Hoje, com a venda de produtos piratas e a força dos downloads, ter a coleção completa de LPs e CDs do compositor pernambucano é privilégio de colecionadores. A maioria das lojas da Região Metropolitana do Recife dispõe de CDs de Gonzaga, com preços que variam entre R$ 9,90 a R$ 30,00. Por este último preço também podem ser adquiridos outros formatos, como o DVD “Danado de bom”. Apesar de todos os recursos que vêm sendo usados, as pessoas continuam comprando CDs. Um recurso utilizado por algumas lojas é a encomenda do disco, se ainda tiver no fornecedor. Segundo Fábio de Melo, dono da loja Passadisco, não existe dificuldade em vender os CDs do cantor. “Luiz Gonzaga é um artista que vende o ano todo. E tanto é que gravadoras lançam e relançam títulos dele mesmo fora do período junino.”

Foto: Gabrielle Buarque

Discos preservam clássicos do forró

DISCOS DE VINIL Registram a obra do compositor pernambucano

Na Disco Mania, loja de vinis usados, encontram-se obras de Luiz Gonzaga por, no máximo, R$ 10,00, devido à facilidade de localização da sua discografia. A dificuldade existente no vinil é o toca-disco, pois não é possível escutar sem o aparelho específico. O mercado já recomeçou a criar equipamentos, ainda economicamente inacessíveis à grande maioria. Mas o dono da loja Disco Mania,Valdemar Oliveira, afirma que isso não é problema. “Aqui na minha loja eu vendo em média três por semana. É um objeto

muito procurado e sempre tem alguma encostada. Hoje vendo uma radiola usada por R$ 150,00, R$ 250,00.” Porém, no final, o importante é o valor das músicas de Gonzagão no cenário sóciocultural do Estado, como diz o músico Marcelo Melo, do Quinteto Violado, banda que já tocou com Luiz Gonzaga. “Trata-se de uma genialidade que surgiu para ficar na história da música popular brasileira. É uma unanimidade nacional que influenciou e influenciará muitas gerações em nosso país”, afirma.

Uma legião de herdeiros

BEATRIZ BRAGA

Luiz Gonzaga saiu do Sertão do Araripe com sua sanfona e mudou a história da música brasileira. A influência do cantor chegou a outros estilos, não apenas o forró e seus derivados, como o movimento artístico Tropicalismo. O cantor era mestre, ainda, na solidariedade e, sendo assim, grandes artistas tiveram seu apoio para continuar a tradição do Baião. Hoje, a qualidade do forró brasileiro deve muito à visão artística de Luiz Gonzaga. “Ele olhou para mim e falou: você tem uma voz muito boa para o forró, por que não canta?” disse Nadia Maia, cantora pernambucana há 18 anos, uma das herdeiras da obra do Rei. Gonzaguinha, Domiguinhos, Santanna e Nadia Maia são apenas alguns dos cantores cuja vida profissional Luiz Gonzaga influenciou. Ao lado de Humberto Teixeira, popularizou e definiu um ritmo próprio do Nordeste. Por meio do rádio, levou sua invenção safona – zambuba e triângulo às casas de brasileiros das cinco regiões. “A coisa de Luiz Gonzaga era inventar moda. Ele fez coisa que ninguém tinha pensado antes”, disse Dominguinhos, que começou sua carreira com um presente do cantor, uma sanfona, e se tornou um de seus maiores seguidores. Apesar de hoje a influência de Gonzaga nas gerações que lhe sucederam ser evidente, na época, o artista encontrou algumas dificuldades. O diretor Fernando Lobo, por exemplo, o proibiu de cantar, chamando sua voz de “taboca raxada”. Mas sua obra logo virou febre nacional. Caetano Veloso e Gilberto Gil, pais do Tropicalismo, consideram Luiz Gonzaga responsável pela qualidade das primeiras músicas que deram início ao movimento revolucionário verde e amarelo. A contribuição e o legado de Gonzaga à música e cultura brasileira são incontestáveis. “Ele cantava o Nordeste de forma enriquecedora e era atualíssimo. Até hoje, suas músicas continuam a falar da realidade”, lembra Nadia Maia. A maior herdeira da música do cantor, sem dúvidas, é a cultura brasileira, que terá, sempre, lembranças da riqueza musical inventada pelo nordestino.


O BERRO

8 | Recife, dezembro de 2011

Músico mantém acesa a chama do baião Em 1989, o Nordeste perdia um de seus maiores defensores e divulgadores. O baião, ritmo que ajudou a consagrar, perdia o seu Rei. Por onde passou, Luiz Gonzaga deixou sua marca ao cantar os problemas e lutas do sertanejo. Ao deixar os palcos, a música dele continuou ecoando. A forma como cantou suas canções inspirou novas gerações que mantêm viva a memória do Rei do Baião. Com chapéu de couro, gibão, óculos escuros e uma voz grave, Antônio Evangelista da Costa, de 64 anos, mais conhecido como Toinho do Baião, emociona muita gente por conta das semelhanças com o ídolo. Há mais de 40 anos ele interpreta as músicas do grande mestre.

ficou conhecido foi dado por Luiz Gonzaga de uma forma inusitada, no primeiro dos muitos encontros que os dois tiveram. “Esse dia foi muito emocionante. Eu quase morri do coração. Eu fui fazer um teste para cantar numa casa de show em Olinda e, quando eu olhei, vinha um morenão em minha direção, de mãos dadas com dona Helena. Quando eu olhei bem, era o rei do Baião”, disse. A semelhança entre as vozes era tão grande que o Gonzaga ficou em dúvida se Toinho estava realmente cantando. O diálogo do primeiro encontro continua preservado nas lembranças de Toinho. “O palco onde estava era baixinho, ele chegou perto de mim e pediu ajuda para subir no palco. Ele perguntou meu nome e

Foto: Arquivo pessoal

ANDRÉ AMORIM

PARCERIA Toinho do Baião toca ao lado de Luiz Gonzaga

Natural de Vitória de Santo Antão, o primeiro contato de Toinho do Baião com a música de Luiz Gonzaga foi aos sete anos de idade. “Asa branca” e outros sucessos fizeram parte da infância do cantor. Dez anos mais tarde, quando conheceu a primeira namorada, ele se viu desafiado pela paixão a cantar como

o ídolo. “Ela gostava muito de escutá-lo. Ela dizia que achava a voz dele muito bonita e que nunca ia aparecer uma voz como a dele. Eu tomei aquilo como um desafio e como eu gostava muito dela, tentei cantar como ele”, disse. O que começou como um desafio, logo virou trabalho. O nome com o qual

eu respondi. Foi então que ele disse que a partir daquele dia meu nome seria Toinho do Baião”, relembra. Naquele dia, Gonzaga disse: “Você foi o único cabra que me fez parar o carro para confirmar se você estava cantando mesmo. Sua voz é idêntica à minha.” O encontro abriu as portas para que Toinho participasse de alguns shows com o ídolo, como tocador de triângulo e cantor. “Muitas vezes, quando ele estava muito debilitado, ele perguntava se eu sabia a letra e então dizia para eu cantar poque ele estava cansado”, disse. Os momentos juntos renderam muitas histórias e boas lembranças. Por conta da semelhança entre os dois, a pergunta que Toinho mais escutava era se Luiz Gonzaga não era seu pai.

ANDRÉ LUFRAMAIA

“Tá é danado de bom. Tá danado de bom, meu compadre. Tá é danado de bom, forrozinho, bonitinho, gostosinho, safadinho, danado de bom.” A letra é facilmente reconhecida. O leitor também deve recordar dessas outras músicas: “Nem se Despediu de Mim”, “Pagode Russo” e “Deixa a Tanga Voar”. Todas elas foram consagradas na voz de Luiz Gonzaga, mas, muita gente não sabe que a autoria delas, pertence a outro pernambucano que também nasceu com talento para o forró. O compositor João Silva, nascido em Arcoverde, é o responsável por todas elas e outras duas mil canções. Foi na adolescência que ele despertou para a música e tornou-se um dos principais compositores e amigos de Gonzaga. Afinal, foram nada menos que 130 canções próprias eternizadas na voz do Rei do Baião e inúmeras vendagens de discos até o último trabalho “Aquarela Nordestina”, em 1989. Esse simpático senhor de 77 anos, de fala enfática e timbre forte, coleciona vários títulos, mas um enche o

peito de orgulho: o de ser o compositor que mais teve canções gravadas pelo cantor. De acordo com o pesquisador Cícero Lisboa, uma das principais distinções de João Silva, foi a força de sua musicalidade. “Ele entrou na vida de Luiz na metade da década de 1970 pra cá. Mas foi em 1980 que ele consagrou a carreira do cantor com um sucesso atrás do outro. João foi o principal parceiro de Gonzaga. Se não o maior.” A relação entre eles começou no Rio de Janeiro, por intermédio da ambição da RCA, a gravadora do rei, ao convidál-o para produzir o novo disco “Danado de Bom”, com o objetivo de chegar as 100 mil cópias (disco de ouro). O trabalho rendeu seis discos de ouro e, chegou a um milhão de cópias vendidas. Um resultado determinante para torná-lo o compositor e produtor musical exclusivo do artista famoso de Exu. “Gonzaga só veio ganhar muito dinheiro quando veio parar em minhas mãos. Eu coloquei o rei nos braços do povo novamente.” Silva destaca ainda, que produziu outros nove discos e um saldo de

11 milhões de LPs vendidos. Mesmo estando no Rio, João tinha que se deslocar para Exu, nos meses de setembro, para discutir os lançamentos. O entrosamento entre eles era confortável. “Quando eu levava minhas letras e o repertório do disco em fitas cassete, eu tinha que cantar todas elas para ele ouvir. Em seguida, Gonzaga pegava a sanfona e procurava ritmar as músicas do jeito dele. Feitos os ajustes, eu voltava para o Rio e começava a produção no estúdio, até ele ir à gravadora para colocar a voz final.” Para o escritor e pesquisador José Maria Marques, autor do livro “Mestre João Silva: Pra não morrer de tristeza, o maior parceiro de Luiz Gonzaga” (edições Bagaço), essa intimidade facilitou a parceria e mostrou novos paradigmas. “Suas composições trouxeram um bom humor às músicas de Gonzagão. Revelou a modernidade na época, com letras bem rimadas. O povo não queria mais saber das tristezas do sertão, queria cantar suas alegrias”, disse Marques. Após a morte do cantor em 1989, João Silva ficou morando

Foto: André Luframaia

João Silva, um parceiro em 130 músicas

SILVA é autor de letras como “Pagode russo“ e “Danado de bom”

no Recife e sobrevive dos direitos autorais. Em 2009, gravou o CD “Sertão Puro” e planeja lançar outro trabalho em 2012, além do documentário “Recordações Nordestinas”, produzido pela cineasta Deby Brennand, que vai

narrar a vida do principal parceiro do Rei do Baião. Mais uma conquista que vai orgulhar a mulher, os cinco filhos, cinco netos, um bisneto e toda uma legião de fãs de João Silva e de Luiz Gonzaga em todo o Brasil.


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