Revista Noize #85 - Os Mulheres Negras - Fevereiro 2019

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Dentro de certas condições de pressão e temperatura, a Ciência se transforma em Arte e é nesse ponto

#85 // ANO 13

expediente

de fusão que nasce Os Mulheres NOIZE COMUNICAÇÃO

NOIZE FUZZ

Direção Leandro Pinheiro Pablo Rocha Rafael Rocha

Editores Gustavo Brigatti Joana Barboza Leonardo Baldessarelli

Gerente Financeiro Pedro Pares

Coordenação de Projetos Brenda Beloni Caio Pereira Diego Paz Jordana Monteiro Thais Martins

Gerente de Planejamento Cássio Konzen Diretor de Criação Rafael Rocha RH Taisla Heres Coordenação de Arte Jaciel Kaule Diretores de Arte Árthur Teixeira Guilherme Borges Patricia Heuser Assistentes de Arte Guilherme Ferreira Maicon Pereira Produção Dani de Mendonça Malena Thailana Coordenação de Vídeo Lucas Tergolina Vídeo Diego Machado Humberto Ferreira Pedro Krum Shandler Franco Thaíse Silva Novos Negócios Leandro F. Gonçalves

NOIZE RECORD CLUB REVISTA / SITE Editor Ariel Fagundes Coordenação de Projeto Karen Rodriguez Diretor de Arte Árthur Teixeira Repórter Brenda Vidal Community Manager Ana Paula Pause Hayane Leotte

Negras. A dupla de André Abujamra e Mauricio Pereira rompeu os limites do Tempo ao misturar em um só tubo de ensaio música eletrônica e standup comedy, pop brega e literatura erudita, samples e artes cênicas.

O lado A abre esta edição com base

Atendimento Interno Ingrid Mônaco

em fórmulas e rigor científico.

Redação Camila F Oliveira Fernanda Zandavalli Guilherme Flores Rodrigo Laux Tássia Costa Vinícius Rocha

Resgatamos a história de como as

Planejamento Eduardo Mello Gabriela Etchart Julia Brito Juliano Mosena Luan Pires Mickael Prass Tainá Cíceri Thiarles Wäcther

Orquestra de Laptops de Brasília,

drum machines chegaram ao Brasil, apresentamos a música holofractal de Eufrasio Prates, maestro da

entrevistamos o célebre Pena Schmidt e ainda documentamos o que há ao redor do último disco que Pereira e Abujamra fizeram juntos.

Mídia Ágatha Donini Camila Ferrareli

Na outra metade, o lado B,

Community Manager Fernanda Herter Laís Soares Maurício Teixeira Vanessa Castro

ignoramos os cálculos e deixamos

GRITO

raras do Newton Foot, fotografias

Gerente de Planejamento Marcel Maineri

inéditas de Gal Oppido, um artigo

nos levar pelas inspirações passionais. Ali, você encontra HQs

sobre o poder narrativo da luz

Coordenação de Projetos Carolina Farias

de palco e um perfil do sempre

Assistente de Projetos Gabriel Dias Helena de Oliveira

surpreendente Theo Werneck.

Planejamento Matheus Barbosa Matheus Gugelmim

Estas páginas servirão de trilha

Estagiário Planejamento Rafael Kronitzky

pois música serve pra isso.

Redação Camila Benvegnú Jéssica Teles Pedro Veloso

Ariel Fagundes

para o seu novo LP e vice-versa,

NOIZE BOOST boost@boost.mn boost.mn

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Abujamra e Pereira.

tempo.

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noize.com.br

!" Os Mulheres Negras

Camila F Oliveira

André Abujamra e Mauricio

Procurando sentidos pra

Pereira formam a terceira

virar do avesso. No resto do

menor big band do mundo.

tempo, usa jornalismo pra

Aqui, revelam o que há por

ouvir (e contar) histórias.

trás do disco Música Serve

Pra Isso.

Gustavo Brigatti

Gal Oppido

Mais um jornalista

Fotógrafo, músico, arquiteto

matando um leão por dia

e desenhista. Publicamos

na publicidade. Música,

aqui fotos históricas que ele

cultura pop e abismos.

fez d'Os Mulheres Negras.

GG Albuquerque

Brenda Vidal

Jornalista, edita o blog o

Jornalista vivendo um ritmo

volume morto e colabora com

que só a música pode

o portal Kondzilla. Defende a

acompanhar. Apaixonada por

vanguarda como um jogo de

cultura, arte e negritude.

cintura.

Guilherme Bonfanti

Newton Foot

Iluminador e light designer

Ilustrador, roteirista e autor

com longa experiência

de histórias em quadrinhos.

em teatro e música. Foi o

Cofundou a revista Animal,

responsável pelo palco d'Os

na qual publicou uma série

Mulheres Negras por muito

de HQs protagonizada por

tempo.

Abujamra e Pereira.

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%&'()"!*

_ o que, quem? Lafawndah batiza a energia criativa, o projeto musical e toda a mistura da produtora, compositora e cantora Yasmin Dubois, que também se define como “conceitualista” e “performer”. Talvez, o essencial para entender seu trampo seja considerá-la uma cartógrafa de experiências. Seus deslocamentos sonoros se relacionam diretamente com seus deslocamentos territoriais: ela mora em Nova York, nasceu em Paris, tem ascendência egípcia e iraniana, morou na capital do Irã, Teerã, na infância e também já residiu no México. Multiculturalismo é a chave pro seu som.

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T E XTO _

F OTO _

Brenda Vidal

Jonangelo Mol inari/Reprodução

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_ mood:

não conhece _ como soa?

/$.(-')'01$

_ qual a vibe?

_ por onde começo?

LAFAWNDAH soundcloud.com/lafawndah

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Fantástico, etéreo, surrealista, quem sabe alienígena, mas não exótico. A complexidade de Lafawndah vai além do seu nome. Entretanto, ela mesma declara não querer se encaixar no rótulo de “exótica”, defendendo que suas referências não vêm de um lugar exótico, só não são ocidentais: “Eu cresci ouvindo música não-ocidental, então música pop pra mim é o que é exótico”, disse em entrevista ao The Guardian em 2016. Para ter mais uma ideia do som, imagine uma mistura entre Kelela e Tei Shi que, em alguns momentos, pode soar como uma Lorde mais ousada. Pense em um pop com uma proposta de fusão parecida com a que Rosalía faz entre R&B e flamenco, mas com outro fundo cultural. Vibes Björk e FKA Twiggs. Em entrevista ao site Noctis em 2018, Lafawndah diz que sua música poderia ser descrita como “pop devocional”. Três anos antes disso, em uma outra entrevista para a Wonderland Magazine, ela usou “pélvico”, “boom” e “osso” para descrever seu som em três palavras. É difícil explicar como soa, mas a gente tenta: ela pega a enorme bagagem de referências - do zouk ao R&B, das músicas caribenhas e latinas às canções tradicionais do Oriente Médio - e constrói um pop instigante e claustrofóbico, combinando desconstrução com reconstrução. É um alt R&B ancestral com voz sussurrada e aura de mistério. Entre estranhamento, sufoco, sensualidade, batidas minimalistas, ela nos traduz sua herança cultural em um ambiente que soa inabitado e até de outro mundo. Mente aberta. Aquele momento sozinho de madrugada que você quer ouvir um som meio sci-fi, quando você tá caçando música experimental atrás de novas propostas. Quando tá a fim de dançar. Ou quando quer apresentar um som diferentão pra impressionar os amigos. Corra para o Youtube e assista ao potente clipe de “JOSEPH”. Sério, é belíssimo. Passeie pelos outros clipes, como “Ally” e “Tan”, dirigidos por ela. Não deixe de assistir a performance de “Chilli” e, uma vez fisgado pelo combo de conceitos sonoros + visuais da artista, ouça o EP Tan (2016). Fique de olho porque no dia 22 de março ela lança seu primeiro disco: Ancestor Boy.


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T E XTO _

F OTO _

Brenda Vidal

Acervo Pena Schmidt A vida de Pena se mistura à história da indústria fonográfica no Brasil. Além de ter sido técnico de som d´Os Mutantes nos anos 1970, trabalhado na produção de festivais como o Hollywood Rock, Free Jazz e Rock In Rio e produzido dezenas de discos, foi ele quem lançou na gravadora Warner (WEA) bandas como Titãs, Ira!, Ultraje a Rigor e Os Mulheres Negras. Pena é um curioso de marca maior e, aqui, conversamos sobre seu olhar musical.

5 perguntas 2$0$ 3',$(4!5/1-6( 1) Como você conheceu Os Mulheres Negras? Talvez fosse 1983 [provavelmente, foi 1984]. Desci do metrô e estava indo a pé para o médico, descendo a Rua Sena Madureira [em São Paulo]. Na mesma calçada, vi uma biblioteca infantil, que tinha um pequeno jardim. Nele, uma faixa de pano em que se lia alguma coisa mais ou menos assim: “Hoje, 15h, Os Mulheres Negras, grátis”. Estava na hora, ouvi um rumor de música e resolvi entrar na sala com cadeirinhas de criança, quase vazia. Sentei no fundo e apreciei a cena: dois caras com roupas parecidas com aventais de cientista, sax, guitarra e uns pedais, fazendo uma coisa que me fascinou na hora, com um ar de disco experimental, falso suingue e bom humor de 8 bits. As crianças presentes adoravam, batiam palmas e queriam cantar junto. Não sosseguei até a WEA contratá-los.

2) Sua posição na WEA exigia faro para novos talentos. Considerando que você descobriu grandes sucessos, como foi investir n’Os Mulheres Negras? Ninguém sabia de onde poderia vir a próxima onda, nem [o presidente] André Midani. Apostar na mais improvável das bandas fazia parte do jogo, combinava com minhas apostas anteriores. Minha margem de acertos tinha sido bem boa. Por que não [contratar] Os Mulheres Negras, com esse nome e todo aquele anti-sex appeal? 3) O que é essencial para ter uma escuta atenta às novidades musicais? Eu tentei desenvolver uma audição curiosa e interessada em contexto, saber mais sobre o que estava ouvindo e como aquilo se conectava com o que eu já tinha ouvido antes, criar um nexo musical, uma espécie de cartografia onde se vai desbravando e trazendo o desconhecido para um mapa do que já é conhecido. Fiz isso por pura curiosidade. 9A

4) Para você, existe uma oposição entre música pop e música experimental? Na História da Arte da Música Pop, não aparece uma fronteira entre pop e experimental. Há um permanente conflito no qual o esquisito não para de se apresentar em formas sedutoras e revoltantes ao mesmo tempo. Para alguns, a experiência de decifrar os códigos de algo que não é familiar é um grande orgasmo. Códigos decifrados podem se transformar em códigos copiados e, assim, o pop segue e evolui, explorando, decifrando, absorvendo e incorporando tudo. 5) Você viu o mercado musical mudar muitas vezes. Existem fórmulas para o sucesso comercial? A fórmula do sucesso comercial é (x = x´). O x´ é o sucesso de hoje, uma variação minimamente perceptível de x, que é o sucesso da semana passada. Esta fórmula pode ser filosoficamente traduzida para "Sie Wiederholen Sich" ou "Mais do Mesmo" e está comprovada à exaustão no mercado sertanejo nos últimos 15 anos, que levou à precisão quântica o fator da mínima variação perceptível. Porém, o fluxo histórico do pop está cheio de eventos tangenciais singulares que alteram drasticamente o rumo dos negócios, bastando para isto que haja agentes provocadores sendo lançados de maneira competente na timeline de forma a influenciar e alterar o "minimamente perceptível". Minha observação do fenômeno nas últimas décadas me faz acreditar que, sem essas provocações, o mercado se mantém na fórmula da estabilidade, onde x = x.


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T E XTO _

A RT E _

GG Al buquerque

Jaciel Kaule

das drum machines

A chegada

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B e$ t + a 6((1(-ão ao Brasil

Em 1985, o Brasil acabara de sair de mais de duas décadas de uma violenta ditadura militar. Um primeiro presidente civil tomava posse em Brasília e o país vislumbrava para si um futuro democrático, repleto de possibilidades, com pontes abertas para a diversidade da cultura do mundo. Imerso nos novos sons do hip hop e da música eletrônica, Fernando Luís Mattos, o DJ Marlboro, era um dos artistas que estava definindo os pilares deste novo Brasil. Pioneiro na técnica dos scratches, ele comandava bailes com milhares de pessoas e rapidamente se tornou um dos principais nomes do emergente funk carioca. Mas pioneirismo e habilidades à parte, Marlboro vivia trabalhando e estava sempre duro. Só tinha o dinheiro da passagem. A tão desejada bateria eletrônica, que lhe permitiria fazer um som pesado e impactante como os discos de Miami Bass que importava dos Estados Unidos, era apenas um sonho — literalmente. “Eu comprava

uma revista americana de instrumentos musicais e ficava vendo as fotos das baterias eletrônicas. Eu recortava e colocava debaixo do meu travesseiro, dizendo que ia sonhar com o equipamento”, recorda Marlboro. A situação mudou por volta de 1988, quando o antropólogo Hermano Vianna — que estava pesquisando a cena funk carioca para seu mestrado — apresentou a Marlboro uma Boss DR-110, tirada do estúdio do seu irmão Herbert Vianna, do Paralamas do Sucesso. “No ônibus, ele me mostrou como programava e, quando chegamos ao baile, já pluguei a bateria e estava tocando ao vivo”, conta Marlboro. “Depois, fui dormir e sonhei com uma programação para a bateria. Esperei Hermano acordar, liguei pra ele e falei para ele a programação — 'bota a bolinha no número tal; o bumbo e o hi hat em tais lugares' — no telefone mesmo. Ele falou: ‘A batida ficou foda! A bateria agora é sua. Programou até em sonho, merece!’”.

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Quando Hermano relatou ao seu orientador, Gilberto Velho, que deu a bateria eletrônica a Marlboro, foi censurado. Na visão do professor, o Hermano deveria apenas observar o fenômeno social que estava pesquisando, sem influenciá-lo. O ato do pesquisador poderia alterar radicalmente a história. “É como dar um rifle a um chefe indígena”, assertou o antropólogo. E não deu outra: em 1989, Marlboro lançou Funk Brasil Volume 1, considerado o marco inicial do funk carioca, dando início ao primeiro gênero brasileiro de música eletrônica de pista.

Ainda que os músicos estivessem incorporando as novas máquinas com uma atitude criativa, o seu som ainda estava amarrado a presets, batidas predefinidas de gêneros musicais específicos. Para alcançar um novo patamar criativo, era preciso maior controle e poder de experimentação sob os ritmos e timbres. É aí que as baterias eletrônicas programáveis entram em cena e revolucionam o mercado. Com este equipamento, você poderia criar uma sequência rítmica própria, da sua cabeça. Os artistas estavam livres dos ritmos predeterminados, podendo ir muito além das batidas embutidas e de fato criar os seus próprios beats.

Ritmos encaixotados Até cair nas mãos de jovens funkeiros do subúrbio do Rio como Marlboro, as baterias eletrônicas (ou drum machines) percorreram um longo caminho. Os primeiros modelos foram desenvolvidos entre os anos 1930 e 1960, entre eles estão o Rhythmicon (criado por Leon Theremin a pedido do compositor Henry Cowell), o Rhythmate (de Harry Chamberlin) e o Rhythm Synthesizer (de Raymond Scott). Estas invenções, contudo, não eram instrumentos propriamente ditos. Serviam apenas como um acompanhamento rítmico para pianistas ou ainda como base musical com ritmos predefinidos para cantorias em família — uma espécie rudimentar de karaokê. O Wurlitzer Sideman (1959), por exemplo, incluía ritmos como bolero, samba, tango, chá-chá-chá, rumba e valsa. O som era uma gravação de um baterista real em fita, que era cortada e atada, formando um loop dentro da “caixa de ritmos”. Foi só no final da década de 1960 que as drum machines deram os primeiros passos para se transformar nas ferramentas musicais que conhecemos hoje. Fabricada na Itália, a Elka Drummer One (1969) inovou ao apresentar controles individuais de instrumentos percussivos — era possível aumentar ou diminuir a duração de um prato de bateria ou de uma conga isoladamente, por exemplo — e foi adotada por grupos experimentais da Alemanha como Can, Cluster e Kraftwerk. Na mesma linha, veio a Maestro Rhythm King MRK-2 (1971), utilizada com maestria por Sly & The Family Stone no hit funky “Familly Affair” (1971), a primeira música com drum machines a atingir o número um das paradas americanas. Em seguida, vieram outros sucessos, como “Why Can't We Live Together” (1972), do soulman Timmy Thomas — décadas depois sampleada por Drake em “Hotline Bling”.

A Roland foi a principal empresa nesta era da programação musical. Primeiro, com a CR-78 Compurhythm (1978), que permitia salvar uma sequência rítmica inteira — podemos ouvir seu som aplicado brilhantemente em “In The Air Tonight”, de Phil Collins. Dois anos depois, a Roland apresentou a TR-808 Rhythm Composer (1980), bateria eletrônica que transformou profundamente a música por ser a primeira a ter timbres sintetizados, efetivamente eletrônicos, que moldaram as características sônicas de gêneros indistintos. Do rap ao Miami Bass, do techno de Detroit ao soul, todos usaram a 808. Afrika Bambaataa foi o primeiro cara do rap a colocá-la no mapa com a seminal “Planet Rock” (1982), seguido por “Sexual Healing”, o hit que ressuscitou a carreira de Marvin Gaye no mesmo ano. Contra leis e preconceitos A chegada desses novos equipamentos ao Brasil foi particularmente complicada. Em 1981, o governo havia baixado um decreto proibindo a importação de instrumentos eletrônicos — resultado de um possível lobby de fábricas nacionais. Baterias eletrônicas e sintetizadores mais modernos tinham de ser contrabandeados. Mas, dominando a música pop anglo-americana, estas ferramentas acabaram aparecendo nos estúdios das gravadoras multinacionais no Brasil. Pioneiro da engenharia de áudio no Brasil, o arranjador e produtor musical Lincoln Olivetti, falecido em 2015, foi o principal responsável por estabelecer as drum machines no país e definir o som da MPB dos anos 1980. Utilizando uma MXR-185 de estrutura de madeira e tendo a banda britânica Scritti Politti como referência, Olivetti costumava mesclar a bateria eletrônica com trechos acústicos em seus trabalhos — é o que se ouve no clássico álbum Robson Jorge & Lincoln Olivetti (1982). Posteriormente, o produtor foi adquirindo equipamentos mais avançados — como o LinnDrum (fabricado em 1982) e o Linn 9000 (1984), que integrava bateria digital e tecnologia MIDI para gravar trechos de teclado — e foi

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construindo a sonoridade de sabor um pouco mais sintético que marcou sua carreira, como em “Trem da Central” (1983), de Sandra de Sá, e “Marcha do Dendé Não Sai” (1984), de Moraes Moreira, em sintonia com a arquitetura musical do pop pós-disco music. Mais distante do pop e próximo ao circuito instrumental e à música de concerto, o arranjador e tecladista Cesar Camargo Mariano também passou a experimentar com drum machines e sintetizadores eletrônicos. Acompanhado pelo coletivo de músicos Prisma, Mariano lançou dois importantes álbuns: Prisma (1985) e Ponte das Estrelas (1986), cada um contendo uma faixa com a bateria eletrônica E-mu Drumulator — respectivamente “Os Breakers”, uma inédita mistura de rap e jazz, e “Don Quixote”. Nos dois casos, a programação eletrônica foi feita por Dino Vicente, ex-tecladista da banda de rock progressivo Som Nosso de Cada Dia e pioneiro na introdução dos computadores e sequencers na música brasileira. Depois das experiências com o Prisma, Mariano ainda gravaria o álbum solo Mitos (1988), esse sim fazendo uso ostensivo das drum machines e dos equipamentos mais caros disponíveis no estúdio da Som Livre. Embora vendessem bem, os trabalhos de Olivetti, Mariano e todos aqueles que se aventuravam em um caminho mais eletrônico eram invariavelmente criticados pela imprensa nacional. A acusação era a mesma: a “pausterização” da música brasileira. Uma resenha publicada no Jornal do Brasil sobre o álbum Som e Fantasia (1984), de Nivaldo Ornelas e Marcos Resende, por exemplo, dizia que o clássico da bossa nova “Influência do Jazz” ficou “desfigurado com a marcação pop da bateria eletrônica”. “No encarte de Prisma, tinha um texto que dizia: 'Muitas pessoas acusariam o gênero de pastiche, mas felizmente a música instrumental brasileira sobreviveu forte'. Já era uma defesa contra críticas que existia naquela época”, contextualiza o musicólogo Alexei Michailowsky, autor da tese de doutorado Tecnologias Eletrônicas no Projeto Prisma (1984-1987). “Qualquer um que se envolvesse com a produção eletrônica seria acusado de pausterizar a música brasileira, de traidor do movimento, de macular a pureza da música brasileira, principalmente a música de tradição percussiva”, indica o pesquisador. Alexei destaca que a maior dificuldade de trabalhar com esses novos instrumentos era a “desinformação generalizada” da época. “Os equipamentos tinham que ser contrabandeados, não havia escola para aprender a mexer com eles, não havia pessoas ensinando. Era todo mundo tentando aprender junto, na base da tentativa e erro”, salienta.

Jeitinho brasileiro “A gente ainda estava saindo do governo militar, tudo era fechadão. Tudo era caro e, pior ainda, você não tinha informação, não tinha literatura sobre isso. No máximo, você tinha uma revista, mas eram poucas as matérias sobre os instrumentos eletrônicos, eram mais os anúncios. Até os caras de estúdio eram muito conservadores. Você perguntava desse negócio, ninguém sabia e ninguém queria saber”, reforça o DJ Grandmaster Raphael, outro pioneiro do funk carioca. “Um cara me emprestou uma bateria da Yamaha mas os sons eram de bateria acústica. A gente tocava os vinis de fora e ouvia um punch, um grave forte que não tinha a mínima ideia de como era feito. Quando a gente veio entender que era o som da TR-808, ela já tinha parado de ser fabricada”. Com o Hip Rap Hop (1988), os paulistas do Região Abissal entraram para a história como o primeiro grupo de rap a gravar um álbum próprio no Brasil e sentiram na pele esse clima de desinformação. Além dos equipamentos, o novo gênero pedia uma nova dinâmica musical que os produtores de estúdio não entendiam, chegando a cortar muitas das frequências graves do álbum. “Os técnicos de som ficavam até acanhados. Não é que fosse difícil servir a gente, mas a forma de construir a música era outra, a gente precisava tirar outro som do estúdio”, conta o DJ Kri, que utilizou uma Boss DR-110 no LP de 1988. Assim como ocorreu com a guitarra elétrica nos anos 1960, os instrumentos eletrônicos despertaram a ira dos setores mais ortodoxos e conservadores da MPB, que acreditavam que a música brasileira tinha que ser sempre “de raiz”. Mas o tempo — e seus inventos tecnológicos — são inexoráveis. As drum machines estabeleceram aquilo que chamamos de “click”, isto é, o andamento absolutamente preciso durante toda a música, a batida do metrônomo que daria surgimento a todo espectro de dance music eletrônica, do techno ao funk carioca, da disco a house music. No Brasil de bambas como Marlboro, Grandmaster Raphael, Lincoln Olivetti, Cesar Camargo Mariano e Região Abissal, a batida eletrônica ganhou um suingue próprio. Um molho especial, fruto da imaginação do brasileiro e de seu espírito inquieto combinado ao fascínio pelas novas tecnologias. “Não é simplesmente copiar o que alguém já fez, é uma busca constante pelo novo”, sentencia Marlboro. “Você começa a ouvir, a sentir aquele surdão do bumbo do samba com o surdo do Miami Bass e aí começa a fazer um som que está entre o samba e o Miami Bass, buscando a originalidade. A criatividade é o que faz com que a gente tire melhor proveito das tecnologias”, conclui.



T E XTO _

F OTO _

A RT E _

Ariel Fagundes

Lucas Neves

Rafael Rocha

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Gêmeos e opostos “Eu nasci músico”, afirma Abujamra. Filho do famoso ator e dramaturgo Antônio Abujamra, André, hoje aos 53, conta que levou quatro anos para falar as primeiras palavras. Dois anos antes, já estava em uma escola de música onde tocava piano e compunha as primeiras melodias. “Sei mais de música do que de Português. A música, pra mim, é como se fosse a água ou a pele”, explica. Já Mauricio é o contrário: “Sou um músico tardio”, diz. Assim como André, fez aulas de piano quando criança, mas, na época, ele não estava interessado nisso. Foi só na faculdade de Jornalismo que a música voltou na forma de saxofone. Hoje, aos 59, explica que sabe “o suficiente pra não passar vergonha e poder criar”, mas que nunca teve paciência para ser um instrumentista virtuoso. Ambos nasceram em São Paulo, onde vivem até hoje. Mas, quando tinha 17, em 1982, André morou um ano em Oklahoma, nos Estados Unidos, e, lá, absorveu muito country, rock n’ roll e música pop oitentista. Enquanto isso, seu pai estava engajado na revitalização do tradicional Teatro Brasileiro de Comédia e, dentro da programação do espaço, havia sido lançado um curso de percussão africana. Quando voltou dos EUA, André se matriculou lá, mas jamais imaginaria que o curso lhe traria um novo irmão. “Essas coisas não têm explicação, né”, diz André: "Me chamou muita atenção no Maurício a inteligência dele. Tudo que ele fala tem precisão, é muito sarcástico. Desde sempre gostei disso e o admirei. Sabe quando você admira alguém com quem você não se acha parecido? ". “A gente teve uma liga imediata”, conta Pereira, “meu encontro com o André foi pele pura”: "Olhei a cara do André, com aqueles olhões azuis, e pensei: "Que cara maluco". Só que, tocando, a gente tinha uma velocidade muito grande. Então, de cara, já estávamos trocando figurinhas."

Sem uma banda para chamar de sua, a dupla resolveu criar um projeto instrumental com a inusitada formação de guitarra (André) e saxofone (Mauricio). Decidido isso, precisavam de um nome que também fosse inusitado. “Era uma época de nomes muito loucos, quer nome mais louco do que Biquini Cavadão?”, diz Pereira: “A gente pensava: ‘Ah, vamos botar um que chame atenção’. Certamente, hoje, nunca se chamaria Os Mulheres Negras”. Honrando o nonsense que logo se tornaria um pilar da banda, o nome foi escolhido aleatoriamente, como conta André: - Meu pai tinha uma biblioteca gigante e peguei um livro escrito Títulos de Teatro. Aí fui vendo e tinha uma peça que se chamava Quando as Mulheres Negras Tentaram Suicídio, Quando a Primavera Não Era Suficiente. Falei: “Puta nome legal, vamos botar na banda!”. Aí o Maurício falou: "Pô, tá um pouco grande esse nome, né?". E eu: "Por que a gente não chama de Mulheres Negras?". Aí ele falou: "Mas a gente é homem!". E eu: “Então coloca um ‘Os’ na frente!”. Foi assim que nasceu. De jaleco e palheta A partir de 1985, André e Maurício começaram a ensaiar loucamente. E se o nome escolhido já era capaz de confundir o público, imagine o som que faziam. A dupla começou criando versões instrumentais muito doidas para sucessos de bandas como U2 e The Police. Resultado: “Os bares de rock não queriam saber da gente porque não éramos cover e os bares de jazz não queriam saber da gente porque não era jazz”, diz Mauricio: “Basicamente, éramos candidatos ao fracasso”. As coisas só fluíram melhor quando começaram a tocar em casas de música autoral: “A esquisitice da gente se encaixou com a esquisitice da cena paulistana do meio dos anos 80”, explica Pereira.

Havia um intervalo geracional entre eles, enquanto André tinha 19 e começava a faculdade de Música, Mauricio tinha 25 e estava terminando a de Jornalismo. Porém, qualquer diferença era menor do que o entrosamento que brotou. “Eu e o Maurício somos almas gêmeas musicais. Temos uma conexão absurda, é alquímico o negócio”, diz André. Em função disso, não demorou até que ele convidasse o novo amigo para tocar em um grupo chamado Muscad Xalote. Sem saber, Abujamra estava levando-o para um caminho sem volta: a música profissional.

A família de Abujamra morava no bairro de Santa Cecília e foi no quarto do André que Os Mulheres fez as primeiras criações. Com cerca de 1,5 x 3m, o espaço foi apelidado de Laboratório de Santa Cecília, pois era lá que passavam horas experimentando as possibilidades de um pedal de sampler recém adquirido e um sampler Casio SK-1. A criatividade compensava a estrutura apelidada por eles "low-tech". “Eram uns tecladinhos vagabundérrimos, a gente chamava de tecnopobre”, conta André: “Aí começou a brincadeira de sermos a terceira menor big band do mundo, de soar como mais do que duas pessoas”. “A gente experimentava muito, tocamos muito até pisar num palco”, lembra Mauricio.

A Muscad Xalote chegou a fazer alguns shows, inclusive há no YouTube um vídeo raro deles tocando “Bob Mixirica” no 2º Festival Universitário da MPB da TV Cultura, em 1985, quando o grupo já estava no fim: “Uma hora rachou e o pessoal mais do jazz foi pra um lado e eu e o André fomos pro outro”, lembra Mauricio.

E o palco era o elemento que faltava para resolver a equação. Logo que começaram a se apresentar, ficou claro o potencial cênico da dupla: "Era bem louco o som, era instrumental, mas a galera morria de rir! A gente ficava olhando pras pessoas, tipo: 'Por que elas estão rindo?'. E aí elas riam mais. Era um riso meio de nervoso, sabe?" - diz Abujamra.

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Notando isso, André e Mauricio resolveram explorar o lado teatral ao máximo. “Aos poucos, fomos fabricando a parte cênica do Mulheres”, explica Pereira. As capas sobretudo vieram para resolver de forma prática e efetiva o figurino, que, inicialmente, incluía ainda toucas de banho. Só depois da viagem que Mauricio fez ao Nordeste, em 1986, é que vieram os chapéus de palha que se tornaram marca registrada da dupla. "Aí fomos chegando aos personagens, o do André mais quieto e o meu que nunca dava risada e falava mais. Fomos achando o jogo de cena, chegamos em roteiros legais", diz Mauricio. Nesse momento, as apresentações d’Os Mulheres incluíam danças, cabeçadas no teclado, cuspidas no saxofone, monólogos, explicações em quadros negros, além da demonstração do incrível “rotoscópio” (que, basicamente, consistia em Mauricio tocar seu sax girando em volta de si mesmo no meio da plateia). “Muita gente acha que o Mulheres é uma banda de humor”, comenta Pereira: “Eu não diria que é humor, diria que é nonsense. Temos mais a ver com os Irmãos Marx no seu momento mais louco do que com o pastelão, embora tenha muito o jogo dos clowns”. - Os Mulheres Negras, na época, era muito esquisito. Como hoje é esquisito. Só que, hoje, a galera acha moderno. Mas a gente faz a mesma coisa que fazia em 85! Imagina em 85, dois malucos, fazendo um puta som, divertindo todo mundo, e com poesia e meus malabarismos musicais... As pessoas piravam! - afirma André. O nome do jogo Entre 1985 e 86, Os Mulheres Negras tocou bastante em São Paulo. Acompanhando a intensa rotina de ensaios, nasceram mais e mais criações autorais, que passaram a ocupar cada vez mais espaço nos shows. Foi nesse contexto que Pena Schmidt, à época olheiro da gravadora Warner, conheceu a dupla. O encontro aconteceu em um sábado à tarde, chovendo cântaros, em um show d'Os Mulheres em uma biblioteca pública no bairro de Santo Amaro. No caso, a plateia era formada por cerca de 12 crianças e aquele senhor de barba branca, claramente deslocado. “Acabamos de tocar, aparece ele e dá um cartão: ‘Ó, meu nome é Pena Schmidt, tô na Warner, apareçam lá pra conversar’”, lembra Mauricio. Poucos meses antes, Pena tinha tido um papel importante no lançamento de bandas como Titãs e Ultraje a Rigor, que ganharam projeção comercial quando seus LPs saíram pela Warner. André e Mauricio sabiam disso e a ideia de ir para uma grande gravadora já estava na cabeça deles. Então, é claro que ficaram ansiosos com o convite. “Fomos conversar com ele na maior ilusão de que venderíamos um milhão de discos”, diz Mauricio. - Queríamos tocar na Globo, no rádio, ser vendidos como sabão em pó. Mas uma coisa é você querer, outra coisa é o cara lhe falar o que

precisa fazer pra isso. Nunca tínhamos parado pra pensar no beabá da música comercial. E, ali, se falou de dinheiro, de contrato, de comportamento... Lembro que a gente ficou histérico, brigamos, não entendemos nada. Mas foi importante porque nos deu um choque de realidade. Obrigou a gente a pensar mais em formato, comportamento, abordagem, a simples conversa com o Pena nos obrigou a ser mais potentes e gastar menos tempo com bobagem - avalia Mauricio. No fim das contas, Os Mulheres Negras assinou com a Warner, porém, devido ao cronograma de lançamentos da gravadora, levou dois anos até que eles fizessem seu disco de estreia, Música e Ciência (1988). Antes, lançaram de forma independente uma demo que chamavam de Fita Pirata Oficial (1987) e era vendida nos shows. Esse cassete, segundo André, chegou a vender 5 mil cópias e trazia 11 faixas, incluindo versões de “Sub”, “Purquá Mecê”, “Eu Vi”, “Lobos Para Crianças”, “Mãoscolorida”, “Feridas”, “19:30” e “Summertime” (todas lançadas depois no LP de 1988) e também “Monstros Japoneses”, que sairia só no segundo disco, Música Serve Pra Isso (1990). A Fita Pirata Oficial conta ainda com a faixa “História Completa da Abolição da Escravatura” (dividida entre Parte 1, Parte 2 e a versão ao vivo), que não foi relançada - essa raridade pode ser ouvida na íntegra em streaming no site reverbnation.com/osmulheresnegras/. Sobre estar em uma grande gravadora, André comenta que era algo "complexo": “Era quebrar paradigma atrás de paradigma”. Para Maurício, Os Mulheres Negras era “uma banda esquisita dentro do selo”: “Depois é que sacamos que não fomos lá pra vender 500 mil discos, fomos pra prensar mil e ver o que acontece”. Hoje, a dupla entende que Os Mulheres era um nome conceitual, importante para compor o catálogo da Warner, mas que não havia sido contratado como uma grande aposta comercial. “A gente era criado solto lá dentro. Não tinha responsabilidade nenhuma de vender, então os discos eram muito livres, a gente fazia o que queria. Mas também vendia pouco”, explica Mauricio. Apesar do caráter experimental de Música e Ciência, o álbum ampliou o alcance do grupo. A partir do seu lançamento, eles participaram do prestigiado programa de entrevistas Jô Soares Onze e Meia e seus shows se tornaram cada vez maiores e mais frequentes. Além disso, a faixa “Sub” ganhou um remix do DJ Ippocratis "Grego" Bournellis e foi bastante executada nas rádios. “Foi incrível, a gente chegou a ser uma banda micro famosa”, diz André. Efeitos colaterais Como de costume, o sucesso trouxe de brinde uma nova dimensão de problemas. Abujamra lembra do período entre o lançamento do primeiro LP e a produção do segundo como sendo uma fase de muitas descobertas, muito trabalho e muita briga: “A gente brigava por acorde, por ideologia... Eu era um menino ainda, o Mauricio já era um pouco mais maduro, mas a gente brigava por tudo. Eram dois caciques brigões”.

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Exclusivo: A rara entrevista de Sergio Sampaio a Zeca Baleiro


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Mauricio acrescenta que o fato de a banda se apresentar com uma intensidade inédita não ajudou nesse processo, inclusive dificultou que eles continuassem fazendo os experimentos que eram a alma do projeto. “Tocamos bastante, mas a gente já não compunha tanto”, lembra Pereira sobre a fase entre 1989 e 90: “Até paramos de fazer shows antes do segundo disco, mas só o suficiente pra terminar os arranjos, gravar e já cair na estrada”. Segundo André, na hora de fazer o Música Serve Pra Isso, o clima entre eles “não estava bom”: “Eu não estava com a cabeça muito boa na época”. Já Mauricio sente que a dupla começava a se distanciar: “Estávamos pensando diferente, acho que a rotina engoliu a gente”. - Já estava pensando em outras coisas, já queria fazer o que seria o Karnak, já fazia muita trilha de cinema e teatro. O Mauricio queria uma concentração no Mulheres e a gente brigava mesmo. Eu era um pouco fora da casinha, ainda sou. Então, foi degringolando - conta André. - Na época, eu pensava: “Pô, o cara tá fazendo 200 mil trampos…”. Hoje, eu penso que é isso mesmo, músico tem que fazer tudo. Mas eu não sou maestro igual ao André, sou um cara da canção, então tenho que estar fazendo disco - explica Mauricio. Mesmo com esse contexto, ou justamente por causa dele, a dupla resolveu que ela mesma produziria o novo álbum (ao contrário do anterior, que contou com a produção do Pena Schmidt e Paulo Calasans). Primeiro, houve uma pré-produção ao lado de Dino Vicente, que ajudou muito com as partes eletrônicas. Depois, entre junho e julho de 1990, Música Serve Pra Isso foi gravado. Mauricio garante que “Os Mulheres Negras é 50/50, não tem choro”, mas lembra que a maior parte das faixas nasceram a partir de suas canções: “O André estava um pouco distante, chegou mais perto na hora de gravar”. De alguma forma, isso colaborou para a atmosfera de Música Serve Pra Isso ser mais soturna do que a de Música e Ciência. “Não por acaso, a capa dele é escura. É um disco noturno, tem melancolia, fala da solidão, é um disco mais delicado”, diz Mauricio. Já André destaca as novas ferramentas que puderam testar no álbum: "Começou a ter uma tecnologia um pouco mais avançada. Muita coisa que as pessoas escutam e acham que é bateria ou teclado ou cordas é minha guitarra MIDI que tá fazendo. É um disco muito bonito". Caciques depostos por pajés Quando o LP foi lançado, no fim de 1990, Os Mulheres Negras estavam maiores do que nunca. “John” foi uma música que tocou muito nas rádios, já “Só Tetele” ganhou um clipe que foi pioneiro dos lyric videos e era exibido na recém criada MTV Brasil. Porém, a separação da dupla era iminente e o fim de um projeto marcado pelo nonsense só poderia ser... nonsense. Apesar do bom momento

comercial, o show de lançamento de Música Serve Pra Isso coincidiu com a data de um importante jogo de futebol em São Paulo (as versões sobre qual jogo foi esse divergem), o trânsito ficou um caos e pouquíssimas pessoas conseguiram ver a estreia do disco ao vivo. - Foi uma catástrofe, perdemos uma puta grana. E a gente queria se separar, mas não tinha dinheiro porque estava devendo pra muita gente. Então, resolvemos fazer uns shows de despedida. Foi bonito porque aí fomos vendo o amor que as pessoas tinham pela gente. Foi assim que terminou - lembra André. “Foi meio triste”, diz Mauricio ponderando que as buscas sonoras deles estavam se distanciando: “A gente precisou se separar para crescer. O André foi fazer o Karnak e eu, o [disco solo] Na Tradição (1995). Se comparar, são coisas muito diferentes”. Apesar disso, o fim do Mulheres não abalou o vínculo de afeto entre a dupla, tanto que Mauricio chegou a dar canjas com o Karnak e gravou no disco solo mais recente de André, Omindá (2018), assim como André participou do Na Tradição, inclusive ao lado do seu pai, Antônio Abujamra. “O amor que temos um pelo outro não é só musical, é como de irmãos mesmo”, diz André. Em 2001, os dois LPs da banda foram remasterizados e relançados pela Warner em CD, um projeto capitaneado por Charles Gavin (na época, ainda baterista do Titãs). Essas reedições motivaram os primeiros reencontros nos palcos d'Os Mulheres Negras. Desde então, eles fazem poucos shows pontualmente, como a recente apresentação na edição paulistana do festival Dekmantel de 2018. - O Mulheres, hoje, é um ritual de improviso e gozo. Vou pro show como quem vai pra uma festa pagã. Tem roteiro, mas a gente sabe que cada vez vai fazer de um jeito. Não me incomodo de ir pra estrada com o Mulheres porque acho que temos que manter o mistério. Se voltar a ser uma banda de carreira, perde um pouco esse encanto - diz Mauricio. - No palco, é uma simbiose. A gente se transforma num bicho bem estranho. Digo que Os Mulheres Negras é uma alma só. E, dentro das nossas loucuras, criamos uma coisa muito nova, que ainda vai ser moderna no futuro. É uma banda atemporal. Nunca mais fizemos nada novo porque eram tão lindas as coisas antigas que, hoje, fazemos tudo que é velho, só que é novo - explica André. Em 2018, tanto Pereira quanto Abujamra lançaram discos extremamente elogiados - Outono No Sudeste e Omindá, respectivamente. Considerando a força dos seus trabalhos solo, é bem compreensível que não haja planos de novas músicas da dupla e Os Mulheres permaneça como um projeto à parte, um encontro especial que só acontece quando os astros se alinham. “A tarefa é manter a chama piloto acesa”, diz Mauricio: “Um dia, a gente pode entrar num ônibus e fazer 20 shows ou se trancar num estúdio e compor 30 músicas. Qualquer coisa é possível”. Pode acreditar que isso não é figura de linguagem: em relação a Os Mulheres Negras, qualquer coisa é possível mesmo.

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Música Serve Pra Isso faixa a faixa André Abujamra e Mauricio Pereira contam o que há por trás de cada música do último disco d´Os Mulheres Negras

Lado A 1) Música Serve Pra Isso “É música caipira com o devido veneno pop, filosofando sobre pra quê serve uma canção e intimando a mídia a levar essa canção pro povo. Detalhe sudestino: a sanfona e as vozes em terça no refrão (uau… temos um refrão!)”, Mauricio. “É uma poesia do Maurício, pré-internet, o Mauricio é um visionário. A orquestra dessa música é feita na minha guitarra MIDI, todas cordas, piano, tudo que aparece é feito pela guitarra. E tem uma distorção muito louca porque, como a gente estava fazendo umas experiências, coloquei a guitarra em linha e distorci na mesa. Tem um timbre bem maluco de distorção no refrão caipira", André.

2) Martim “Um ponto de umbanda eletrificado, retificado, ratificado, estilizado, espiritualizado. Dorival Caymmi participa assobiando, remixado pelo lendário DJ Cuca do Chic Show”, Mauricio. “É um ponto de umbanda de um guia que eu e o Mauricio conhecemos, o Martim Parangolá, que é um marinheiro maravilhoso. A gente fez uma versão meio hip hopana, e tem o DJ Cuca fazendo uns scratches com um disco do Dorival Caymmi”, André. 3) Guembô “Isso é música étnica, embora eu não saiba dizer de qual etnia. Eletroétnica, provavelmente”, Mauricio. “É uma música africana falsa que o Mauricio fez. Tem um grave muito bonito da minha voz lá”, André.

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E N T R EV I STA _

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Ariel Fagundes

4) Só Tetele “No tempo em que tinha secretária eletrônica e ela pedia pra a gente deixar um recado, ‘Só Tetele’ seria um recado singelo - quase poesia concreta - pra se deixar gravado. Deixamos gravado. Contém um belo solo de baixo do querido Arthur Maia no final”, Mauricio. “É um clássico do Mulheres Negras, né? E muita gente nem sabe o que quer dizer. É uma poesia que o Maurício tinha escrito e quer dizer: ‘Só te telefonei pra te contar que se tua orelha tá pegando fogo tô eu pensando em você’. E ele quebra: ‘Só tetele / Fon / Nei’... É também uma música pré celular, pré WhatsApp, a gente tinha que ligar mesmo pra galera. E tem a participação do saudoso baixista, o Arthurzinho Maia, que fez uns baixos maravilhosos nessa música”, André. 5) John “Pra mim, ‘John’ é ZZ Top com Werner Herzog. Fui claro? Destaque pras guitarras do André”, Mauricio. “Essa foi a primeira música que eu fiz. Eu tinha 12 pra 13 anos e a letra, na verdade, não quer dizer absolutamente nada. É mais uma questão do fonema, do som da palavra. Uma coisa muito interessante é que quem tá tocando baixo é o Maurício”, André. 6) Só Quero Um Xodó “Tem três jeitos de ouvir essa música: em estéreo; só o canal direito; e só o canal esquerdo. Em cada uma dessas audições a harmonia - e por consequência, a canção - vai soar de um jeito diferente. Experimenta”, Mauricio. “É uma coisa bem louca que a gente fez: se você deixar totalmente pra esquerda, só vai escutar cítara

e voz; e, se colocar totalmente pra direita, vai escutar o resto do arranjo e voz. Sendo que tem duas tonalidades diferentes. É uma experiência”, André. 7) Cabeludas “Uma mistura forte: música africana com haicai, China com Senegal. Participação dos Inimigos do Rei”, Mauricio. “É uma música minha e do Maurício que tem a ver com água, com mar, e tem a participação do Inimigos do Rei, onde meu melhor amigo Paulinho Moska canta”, André.

Lado B 1) Etiópia-Mirim “É uma música que a gente fazia só com voz e gaita de boca e fala sobre a Etiópia-Mirim”, André. “Vocês já foram para a Etiópia-Mirim? É um lugar utópico criado pelos Mulheres, apenas com sons. Talvez, se a gente tivesse feito essa música hoje, eu dissesse que era ‘um lugar distópico criado pelos Mulheres’”, Mauricio. 2) Imbarueri “É um grande hit do Mulheres, o Maurício fez essa letra maravilhosa. Fala sobre a periferia da vida, sobre transformar tudo que é periférico em visível. É pra gente poder olhar para outras coisas. Eu acho muito linda essa música”, André. “O lugar comum visto de longe, delicadamente. Destaque pro solo de bateria não muito ortodoxo do Kuki Stolarski”, Mauricio. 3) Judith “A princípio, era uma versão que eu tinha feito de ‘Only You’ [do The Platters]. A gente ia fazer um show 29A

em São José dos Campos, caiu um temporal e, na passagem de som, fizemos essa música. Não teve o show, mas nasceu ‘Judith’, que é uma música de amor”, André. “Uma D.R. pilhada sobre relações embaçadas, com mais um solo lindo do Arthur Maia no baixo”, Mauricio. 4) A Lavadeira, o Varal e a Saudade “Acho que é uma das músicas mais tristes do Mulheres Negras. Não tem letra, mas a ideia é de uma lavadeira colocando a roupa no varal e lembrando da morte de um filho. É muito triste. E é uma melodia muito linda”, André. “Um lamento, um canto de lavadeira, tristeza aos pés do varal”, Mauricio. 5) Monstros Japoneses “É uma música que fala sobre monstros japoneses, sobre o imperialismo americano, essas coisas”, André. “Se a gente imaginasse que um dia um cara como o Trump ia ser presidente dos Estados Unidos, nem precisava ter feito essa música: era só mandar as pessoas ligarem na CNN e botar um groove em cima. Um urro pop pacifista”, Mauricio. 6) Commom Uncommunicability “É um reggae muito lindo, com uma letra do Maurício muito linda. Nessa música, também, todos instrumentos que vocês escutam são feitos pela guitarra e saxofone, só nós dois”, André. “Quanto mais meios de comunicação os humanos têm pra se comunicar e não se comunicam, mais essa música dói. Pra se ouvir com o celular desligado, se isso for possível”, Mauricio.




T E XTO _

A RT E _

Ar i e l F a g u n d e s

N e w t o n Fo o t

No mesmo ano em que Os Mulheres Negras lançaram seu primeiro disco, Música e Ciência (1988), chegou a primeira edição da revista Animal. A publicação criada por Rogério de Campos, Celso Singo Aramaki, Fábio Zimbres e Newton Foot lançou 22 números e resistiu por pouco menos de quatro anos, mas fez história. Suas páginas eram repletas de HQs sujas, perturbadoras, provocativas e/ou hilárias e divulgaram a produção de muitos artistas brasileiros e estrangeiros que fizeram a cabeça de uma geração ávida por quadrinhos para adultos. Durante os tempos da Animal, o desenhista Newton Foot desenvolveu uma série de HQs inspirada n´Os Mulheres Negras. Aqui, conversamos com ele sobre essa aventura de nanquim e reproduzimos algumas de suas histórias.

Como nasceu a ideia de transformar Os Mulheres Negras em personagens de HQ?

Que relação você vê entre a música d´Os Mulheres Negras e o mundo das HQs?

Você criava todos roteiros ou a banda participava de alguma forma?

Eu já curtia muito o trabalho deles de algumas apresentações que vi na universidade na época em que estava terminando a Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da USP. Alguns anos depois, quando já fazia parte da equipe que editava a revista Animal, surgiu a ideia de uma parceria entre Os Mulheres Negras e a revista. Se não me engano, foi numa conversa informal entre o Aguinaldo (empresário da banda) e o Rogério de Campos, da Animal. Além dos quadrinhos, a revista era também conhecida pelas matérias que publicava sobre as bandas da época.

O humor nonsense da banda foi a grande fonte de inspiraração para os quadrinhos. A própria performance do André e do Maurício, que se apresentam como dois personagens com suas roupas características, o sobretudo e o chapéu coco de palha, e principalmente suas ideias de apresentarem um repertório musical como resultado de experiências de laboratório. Era como se fossem dois cientistas.

Houve uma reunião, no início, na qual conheci o Maurício e o André e, nessa reunião, eles me falaram sobre o espirito da banda, suas ideias científicas como, por exemplo, a de medir a reação do público durante o show, ou sobre o objetivo de se tornar rico e xarope - e várias outras ideias que serviram de base para a criação das HQs ao longo daqueles anos. Algumas HQs foram inspiradas nas letras ou temas de suas musicas e outras em acontecimentos da época, como aquela HQ em que se descobre que Milli e Vanilli era uma farsa.

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T E XTO _

F OTO S _

Gustavo Brigatt i

Rafael Rocha

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A inacreditável vida

de

Theo Werneck

O sujeito pega uma ripa de madeira. Mete um prego numa ponta, enrosca nele um pedaço de arame e estica, atarrachando do outro lado. Com o dedo, faz um "PLÉIN", que o deixa ao mesmo tempo satisfeito e espantado. Ele acabou de criar uma guitarra. Essa cena é protagonizada pelo multiplatinado guitarrista norte-americano Jack White em um dos trechos mais célebres do documentário A Todo Volume (2008). Mas, no começo dos anos 1970, a mesma cena ocorreu na Zona Norte de São Paulo, no bairro do Tucuruvi, desempenhada por um desconhecido Marcos Theobaldo Werneck, de 10 anos de idade. Só que ele foi além:

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- Percebi que, quando passava o dedo na agulha do toca-discos, o som saia na caixa. Aí peguei um elástico e encostei na cápsula e saiu na caixa uma nota de baixo! Eu pirei: sem saber, eu tinha feito um captador. Daí juntei com a guitarra que tinha feito em casa e eu tinha uma guitarra elétrica, olha que loucura - conta hoje, aos 57 anos, o conhecido Theo Werneck. Parece loucura, claro, mas apenas quando analisado como fato isolado. Dentro do surrealista quadro que compõe a vida e a obra de Werneck, ele ter fabricado uma guitarra em casa aos 10 anos é mera consequência do gênio criativo (e hiperativo) que apenas começava a sair da lâmpada.


Prato cheio de som Ao longo dos últimos 30 anos, Theo fez tudo o que estava ao seu alcance. No que entrou, se esbaldou, como legítimo integrante de uma geração de brasileiros que compensava com seu entusiasmo o pouco acesso que tinha à cultura de massa estrangeira - especialmente à música. "Você comprava uma revista pra ficar por dentro do cenário musical e aquela informação estava quase sempre defasada", comenta. A ordem, portanto, era se virar com o que tinha e usufruir ao máximo o pouco que havia disponível. E a música era sua guia. Era compreensível, portanto, que quase todo o dinheiro que ganhasse invariavelmente acabasse nas lojas de discos. "Eu tinha uns 12 e, quando meu avô vinha visitar a gente, sempre trazia presentinhos. O primeiro era um frango assado, que a gente amava; o segundo era dinheiro pra comprar um carrinho", relembra Theo. "Aí uma hora eu parei de comprar carrinhos e passei a

comprar discos. Numa dessas, comprei o The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd". A paixão pelo rock cantado em inglês dos gigantes que dominavam a cena setentista em todo o mundo atingira o jovem Theo feito um zepelim de chumbo despencando do céu. Não havia mais volta. "Os primeiros discos que comprei foram o álbum de estreia do Black Sabbath e o Billion Dollar Babies, do Alice Cooper. Só que disco era uma coisa cara, então a gente se associava com os amigos pra ouvir e gravava em fita cassete", lembra. "Daí nunca mais parei". Do rock gringo, passou para o rock brazuca ouvindo Novos Baianos, O Terço, Mutantes e Made in Brazil - de quem se tornou próximo a ponto de participar de shows comemorativos ao longo dos anos seguintes. Mas o baque veio em uma apresentação de Baby do Brasil (então Baby Consuelo), que, na época, lançava seu disco de estreia solo, O Que Vier Eu Traço (1978).

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- Era um show no Sesc, seis e meia da tarde, e a gente era rato daquilo que fosse de graça, moleque de perifa, sem grana, sabe? Aí tinha esse show da Baby chamado Tudo Blue. Eu já tinha uma coisa com blues, e aí Pepeu aparece numa contraluz solando e eu pensei: "Meu deus, eu quero tocar guitarra" - relembra. O amor pela música acabou levando também ao colecionismo de discos - primeiro como hobby - depois incorporado ao ganha pão de DJ. Theo já ultrapassou os 30 anos de discotecagem profissional em um sem-número de projetos que vão do heavy metal ao samba rock. Uma das festas mais famosas de que participou foi a My Baby, que acontecia no Teatro Mambembe, em São Paulo, em 1987. Nela, Theo discotecava ao lado de Nasi (vocalista do Ira!) e do DJ Hum. Nasi logo seria um dos produtores do disco de estreia de Thaíde e DJ Hum, Pergunte a Quem Conhece (1989), e Theo estava lá testemunhando os primeiros passos do hip hop no Brasil.


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O gosto pela raiz Apesar de amar tanto o rock n' roll quanto o soul e o rap, Theo sabia muito bem que tudo aquilo derivava, de uma forma ou de outra, do blues, que conheceu por conta de Jimi Hendrix e da própria mãe. Certa feita, intrigada com o filho estar ouvindo uma mesma música por dias a fio, a matriarca foi verificar o que estava acontecendo. - Eu ouvia "Hey Joe" sem parar, o dia todo. Um dia, minha mãe entra no quarto e pergunta por que eu estava ouvindo tanto aquela música. Respondi que era porque eu amava aquele rock. No que ela responde: "Mas isso é um blues, meu filho". Minha cabeça explodiu - lembra. "Quando minha mãe fala que 'Hey Joe', que deve ser a música que eu mais amo no mundo, é um blues, começa a minha trip com o blues", explica. "Daí eu fui estudar: quem o Hendrix ouvia? O Buddy Guy. Vou ouvir Buddy Guy. E quem o Buddy Guy ouvia? O John Lee Hooker. Vou ouvir John Lee Hooker. E assim até chegar ao blues dos anos 1920, 30 e 40, que forma o repertório da minha banda de blues", diz, referindo-se a Theo Werneck Blues Trio. Seguindo a música, foi parar em lugares muito mais distantes e distintos - a começar pela sua primeira banda, a Luni. "Eu havia aberto um show pras Mercenárias (seminal grupo punk feminino criado em SP, em 1983) fazendo um som meio industrial", conta Theo. "Botei uns captadores e motores numas placas de metal, foi demais (risos). Daí o pessoal da Luni me chamou pra fazer uma participação especial e acabei ficando. Primeiro como percussionista e, depois, como guitarra e vocal".

Calcada em sonoridade experimental e apresentações teatrais, a Luni estreou em disco em 1988 com a atriz (e namorada de Theo) Marisa Orth nos vocais. O álbum foi bem recebido pela crítica, mas a banda se desfez em 1992 - embora continue retornando com partes dos seus integrantes originais para apresentações esporádicas. Contemporâneo a Luni estavam Os Mulheres Negras, de André Abujamra e Maurício Pereira. O encontro parecia inevitável. "Conheci o Mulheres no Madame Satã (clássico inferninho paulistano dos anos 80). O André era mais fechadão e fiquei primeiro amigo do Maurício. Mas o Andre é guitarrista, então foi um pulo virar amigo dele", comenta Theo. "Somos amigos até hoje e acho que estou em quase todos os discos do André de uma forma ou outra". No disco Música Serve Pra Isso (1990), de André e Maurício, Theo gravou vocais nas faixas "Imbarueri" e "Judith". Ator sem precoceitos O pé no teatro que a Luni cultivava não apresentava segredos para Theo, que àquela altura também acumulara experiência atrás e à frente das cortinas. Ainda menor de idade, havia embarcado na aventura da dramaturgia como uma forma de encontrar sua tribo e fugir da pressão do pai para que se tornasse funcionário do Banco do Brasil. - Meu pai ficava me dando apostilas do banco falando: "Filho, tem que fazer alguma para que você se estabeleça primeiro e depois você faz o que você quer". E eu dizia: "Ah, pai, não vai ter jeito, não é isso que eu quero". E, como filho mais velho, tive que tomar minhas providências. Aí comecei a trabalhar com teatro.

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Aos 17, Theo começou a trabalhar com o grupo do Otávio Donasci e foi fazer de tudo: contra-regra, cenotécnico, operador de boneco, construtor de boneco... Até o dia em que faltou um ator e ele viu a oportunidade de subir ao palco. Tomou gosto pela coisa, colocou a atuação como mais uma ocupação profissional e fez isso, como sempre, sem preconceitos. No final dos anos 1980, por exemplo, ele não teve problemas para vestir uma fantasia de pinguim para um dos quadros musicais do Rá-Tim-Bum, da TV Cultura. Theo se deu tão bem no papel do Pinguim Pianista que participou da nova fase do programa, o premiadíssimo Castelo Rá-Tim-Bum, onde dava voz para Tap, parceiro de Flap, um par de botinas com ares de roqueiros que falavam rimando. Depois, fez ainda participações no extinto Telecurso 2000, programa didático da TV Globo. - Daí você vê: quem me dirigia no Rá-Tim-Bum era o Fernando Meirelles [que dirigiria depois filmes como Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira]. Um dia, o Meirelles me chamou pra fazer um curta, E no Meio Passa um Trem (1998). Se eu estivesse pensando muito, talvez não tivesse feito. Mas fiz e foi incrível, ganhei prêmio de melhor ator em Gramado e em Recife - diz. Depois, Theo continuou pelo cinema. Participou de filmes marcantes, como Colegas (2012), dirigido por Marcelo Galvão e que participou e foi premiado em festivais nacionais e internacionais; o tocante Que Horas Ela Volta? (2015), um dos filmes brasileiros mais ovacionados dos últimos anos, vencedor em festivais de prestígio como o de Berlim e de Sundance. Atualmente, fez a série Assédio, da Rede Globo, exibida no ano passado exclusivamente


na internet, mas que, em 2019, deve entrar na grade de TV da emissora. Loucura, loucura, loucura Como só acontece com Theo, suas muitas habilidades estão sempre se cruzando ou caminhando em paralelo. Aconteceu com a música, o teatro e o cinema, quando fez a pesquisa musical para o filme Carandiru (2003) e a confecção de trilhas sonoras para diversas peças de teatro. Mas nada foi tão insólito quanto quando topou atacar de DJ no programa de auditório da TV Bandeirantes que, em 1996, apresentou Luciano Huck a todo Brasil, o H. O programa sempre teve um foco musical, mas, em 1998, incluiu em seu roteiro a participação da personagem Tiazinha, que se tornou um fenômeno nacional, e, logo, seria acompanhada pela personagem Feiticeira. Interpretada pela atriz e bailarina Suzana Alves, Tiazinha se apresentava de lingerie chicoteando e depilando membros da plateia ao vivo no palco do H - tudo isso com trilha sonora providenciada por Theo. Em 1999, a Sony chegou a lançar o CD Tiazinha Faz a Festa projetando uma carreira musical a ela. O disco vendeu mais de 300 mil cópias, mas, em uma era pré-internet, esse número foi considerado um fracasso pela gravadora, que esperava vender muito mais. A sua única faixa que realmente fez sucesso foi o single "Uh! Tiazinha", que contava com a produção e vocais do Vinny, porém o CD traz a participação de vários músicos, incluindo lendas como Fausto Fawcett e Reginaldo Rossi e representantes do pagode que bombava na época, como os cantores Salgadinho (do Katinguelê) e Diumbanda (do Companhia do Pagode). No meio disso tudo, lá estava Theo. Ele é o responsável pela faixa-título do álbum e também pelo remix da música "Doeu".

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- O negócio foi o seguinte: eu trabalhei na TV Cultura e, lá, conheci o Luís Paulo Simonetti, que foi o primeiro diretor do H. E ele começou a fazer uns trampos na MTV e eu fui DJ de muitas festas da MTV, também fiz curadoria de DJ pra eles, enfim. Daí, ele me chamou pra conversar. No começo, fiquei meio assim porque o Luciano [Huck] apresentava o Circulando, um programa meio como o do Amaury Jr., que tinha uma coluna de jornal com o mesmo nome e tal. Achei meio estranho, mas ele disse que ia virar, que o Paulo Lima, da revista Trip, estava com a gente. Daí comecei a ver muitas possibilidades e fechei com eles. E, ali, eu tive liberdade de fazer muitas coisas, sabe? Claro que tem que fazer coisas mais comerciais, você tá no horário nobre na TV, mas também foi a primeira vez que tocou rap no horário nobre da TV, heavy metal, drum and bass... Foram cinco anos bem loucos (risos) - conta. Atualmente, além dos projetos de discotecagem, Theo está preparando o lançamento de um álbum da Theo Werneck Blues Trio. O repertório, como não poderia deixar de ser, não tem nada de ortodoxo e inclui duas músicas de Itamar Assumpção e uma versão de "Negro Gato", de Luiz Melodia. Outro de seus projetos atuais, a festa Marimbondo Sound System, junta "rare grooves, levadas nordestinas, brega, soul brazuca e o que mais der na telha", como segundo sua página no Facebook. - Uma vez me perguntaram como eu administrava tantos talentos e eu disse: existe um negócio chamado boleto e eu tenho que pagar (risos). Então, talento você começa a descobrir quanto tem que viver daquilo. A gente primeiro acha que pode fazer, depois vai ver como é que faz. É o que eu tenho feito a vida inteira - conclui.



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do conhecido

deslumbramento

O patĂŠtico


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parcerias que duram até hoje.

artes cênicas de SP. A partir daí, fomos trocando

fotografei dezenas de pessoas da cena alternativa de

um ensaio meu chamado “Fundo Finito” (1987), no qual

do movimento Vanguarda Paulista. Eles participaram de

Gal Oppido

porque eu era baterista do grupo Rumo, um dos nomes

F OTO S _

Brenda Vidal

meio das conexões ligadas à música e às artes cênicas

E N T R EV I STA _

Gal Oppido

muito paulistana. Nos conhecemos entre 86 e 87, por

Minha relação com Os Mulheres Negras é uma relação

T E XTO _


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própria construção molecular dos dois.

dar nenhum pio, só de subirem ao palco. Tá na

arquétipos que já emanam e comunicam sem precisar

o Magro”, das oposições. A figura cênica deles traz

Corporalmente, eles trazem essa ideia do “Gordo e

uma poética do deslumbramento do conhecido.

um deslumbramento patético sobre as coisas,

deles com o mundo, é tudo meio esparramado. Existe

Tati. A ideia, a concepção, a música, a relação

mistura um pouco da obra do cineasta Jacques

característica. Me lembra muito um nonsense,

Os Mulheres sempre teve uma ação cênica muito




A N D R É , M AU R I C I O E GA L O P P I D O .

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pr’Os Mulheres de a gente refazer essa foto.

tenho o fundo amarelo que usei, tô propondo

ensaio desde a época que fizemos. Eu ainda

Mulheres Negras”. Nunca mais tinha mexido no

isso era muito “Os Mulheres Negras” para “Os

não topou, acho que devem ter pensado que

muito mais Mulheres Negras. Mas a gravadora

fosse a capa do disco. Achei que, assim, era

essa imagem, com fundo caído por cima deles,

Tirei a foto mesmo assim. Eu até sugeri que

(1988), o fundo amarelo caiu em cima deles.

fotos para a capa de Música e Ciência

Lembro que, quando estávamos fazendo as

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Discoteca

Básica

A música acompanha as vidas de André Abujamra e Mauricio Pereira desde sempre. Eles apresentam aqui quatro discos que lhes influenciaram muito e foram decisivos para os experimentos que fizeram com Os Mulheres Negras.

IL84(A7HSL84(BCDYRG ZZ Top Eu morei um ano nos Estados Unidos e eu vivia em Oklahoma [estado situado ao Sul dos EUA], então eu só escutava country e rock 'n' roll, né? O rock 'n' roll roots. Por causa disso, eu tenho uma influência muito grande do Billy Gibbons, o guitarrista do ZZ Top, e dessa banda, que eu gosto muito. André Abujamra

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IL73<NW;<>(7K(3>?<4( 8I(N<LN8?N<4(BCDPEG

>(HX4<N>(;<@L8 J8(A8LH8I7( 3>4NA7>;(BCDYRG

Caetano Veloso, Gil berto Gil, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão, Tom Zé

Hermeto Paschoal

Esse aí já é importante porque misturava não só música, mas também conceitos: tradição com modernidade; poesia concreta com Vicente Celestino; guitarra com berimbau; Mutantes com Duprat; Batman com macumba; o Brasil com o mundo. E tinha muito clima, psique, política. Foi um disco que mexeu muito comigo, desde quando eu era pequeno e ouvi pela primeira vez. Parecia um filme. Que eu assistia mil vezes e era sempre diferente.

Esse disco tinha de tudo: orquestra, jazz, Nordeste, Pixinguinha, Gonzagão, aquelas percussões malucas, acordes dissonantes, algum caos, músicas sem formato definido. A liberdade que o Hermeto se dava no jeito de usar os instrumentos, de misturar gêneros e sonoridades, misturar cidade e roça. Atrevimento. Com certeza isso influenciou o trabalho da gente.

Mauricio Pereira

Mauricio Pereira

>(4>ZL>OT7(J>(3L<H>@8L>(BCDCRG Igor Stravinsky Na faculdade, eu tive que fazer uma dissertação sobre A Sagração da Primavera e o Stravinsky era um cara que eu não curtia. Eu achava a música muito esquisita. Mas, aí, estudando e ouvindo o Stravinsky, ele foi um cara que me ensinou muita coisa. André Abujamra

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KH(N7?@<J>J7(S8H( IL>3>;AT7(BCDPEG Blake Edwards Esse é o filme que eu mais assisti em toda minha vida, assisto uma vez a cada dois ou três meses. Um Convidado Bem Trapalhão, com o Peter Sellers, é um filme impossível de não se assistir. André Abujamra

FUUCV(KH>(7J<448<>( ?7(843>O7(BCDPEG

J8;<N>I8448?(BCDDCG

Stanley Kubrick

Jean-Pierre Jeunet

Outro filme que eu não poderia deixar de citar. 2001: Uma Odisseia no Espaço, pra mim, que sou um cara que faz trilhas sonoras, esse filme é uma obra de arte, é uma maravilha.

Esse é o filme que eu mais amo. É um longa-metragem musical, do mesmo diretor que fez O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001). É um filme maravilhoso.

André Abujamra

André Abujamra

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:8;<=(>?7(@8;A7(BCDEFG Marcelo Rubens Paiva

Feliz Ano Velho do Marcelo Rubens Paiva retrata desejos e angústias da minha geração, na linguagem reta da minha geração, no exato momento em que essa geração estava amadurecendo. O Marcelo contando a história dele criou um livro forte e essencial: imagino que ele influenciou um bocado a literatura brasileira que veio depois. (Aliás, na década de 90, logo depois do fim do Mulheres em 91, rolou a ótima coincidência de eu trabalhar como cantor do programa que o Marcelo comandava na TV Cultura, o Fanzine. Cantei mais de 500 músicas brasileiras em dois anos de programa, que era diário e ao vivo… Ou seja, devo duas pro Marcelo: o livro maravilhoso e a experiência intensa, parruda, de cantar música na televisão). Mauricio Pereira

H>I>J7KL7(M(7K( >(NLK=>J>(J>4( NL<>?O>4(BCDPDG

N>3L<NA74(8 L8;>Q74(BCDERG Paulo Leminski Ter lido Caprichos e Relaxos do Paulo Leminski foi decisivo pra eu ser um artista da palavra. Muita poesia, muita estrutura, muita cultura pop, muito Ocidente, muito Oriente. Esse livro do Leminski abriu e multiplicou a minha cabeça: aí é que eu entendi quanta poesia poderia caber dentro de uma simples palavra. E totalmente musical, ainda por cima. Leminski rules! Mauricio Pereira

Kurt Vonnegut Narra uma trip quase surreal de uns jovens soldados perdidaços sob uma chuva de bombas, na Alemanha, já no fim da Segunda Guerra Mundial. Escrito daquele jeito simples do Vonnegut, o livro enxerga a barbárie e a estupidez básicas do Homo sapiens com uma melancolia leve, delicadamente devastadora. O cara sabe como contar uma estória, recomendo. Mauricio Pereira

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