

de Paulo Cezar Boscardim Pereira

RICCARDO HÜBNER

Memórias de Bertilla Boscardim Pereira

de Paulo Cezar Boscardim Pereira
RICCARDO HÜBNER

Memórias de Bertilla Boscardim Pereira
Curitiba 2023



Projeto aprovado no Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura | PROFICE da Secretaria de Estado da Cultura | Governo do Estado do Paraná.

CASA DOS GERÂNIOS (FOTO DE APROXIMADAMENTE 1912)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
H u b n e r , R i c a r d o
C a s a d o s G e r â n i o s : m e m ó r i a s d e B e r t i l l a B o s c a r d i m
P e r e i r a / R i c a r d o H u b n e r - - C u r i t i b a , P R : F a r o l d o s R e i s , 2 0 2 4 - - ( C o l e ç ã o c a s a d o s g e r â n i o s )
I S B N 9 7 8 - 8 5 - 6 9 1 2 6 - 1 5 - 7
1 . F a m í l i a s - H i s t ó r i a s 2 . F i l h o s d e i m i g r a n t e sB r a s i l 3 . I m i g r a n t e s 4 . I t á l i a - E m i g r a ç ã o e
i m i g r a ç ã o - B r a s i l I . T í t u l o . I I . S é r i e .
2 4 - 1 8 9 2 3 8 C D D - 9 2 9 . 2
Índices para catálogo sistemático:
1 . F a m í l i a s : G e n e a l o g i a 9 2 9 . 2
E l i a n e d e F r e i t a s L e i t e - B i b l i o t e c á r i a - C R B 8 / 8 4 1 5

EXPEDIENTE
Coordenação e produção editorial
Núcleo de Mídia e Conhecimento
Curador
Fábio André Chedid Silvestre
Autor
Riccardo Hübner
Pesquisa e consultoria
Paulo Cezar Boscardim Pereira
Projeto gráfico e diagramação
Danielle Dalavechia Chedid Silvestre
Assistente de edição
Fernanda Cheffer
Revisão ortográfica
Juliana Maria Gusso Rosado
Foto da Capa
"Casa dos Gerânios", óleo sobre tela, artista João Moro. Foto: NMC, 2022.

PREFÁCIO
É com grande honra e profundo respeito que apresentamos aos leitores esta obra singular, Casa dos Gerânios: Memórias de Bertilla Boscardim Pereira , escrita com esmero por Riccardo Hübner. Este livro, parte integrante da notável coleção Casa dos Gerânios, é uma homenagem vívida e emocionante à vida de Bertilla Boscardim Pereira, cuja jornada extraordinária deixa uma marca indelével na história da família Boscardin.
Bertilla Boscardim Pereira, mulher notável e inspiradora, viu a luz pela última vez em 23 de dezembro de 2022. Sua trajetória de vida, repleta de desafios, triunfos e uma dedicação inabalável aos valores familiares, é agora preservada nas páginas deste docudrama íntimo e comovente. Bertilla era uma habilidosa contadora de histórias, e o livro mergulha nas memórias dela para tecer um retrato autêntico e respeitoso de sua vida.
O título Casa dos Gerânios não é apenas uma descrição física, mas também um símbolo carregado de significado. Os gerânios, flores vibrantes e resistentes, representam a força e a vitalidade que permearam a existência de Bertilla e sua influência na dinâmica familiar. Neste livro, somos convidados a adentrar não apenas na história de uma mulher notável, mas também na essência mesma de uma família que se entrelaça como os ramos de uma árvore robusta.
Este trabalho, acompanhado pela obra precursora Bertilla Boscardim: a santa da família, que detalha a genealogia da família Boscardin, forma uma coleção única que ilumina as raízes profundas e os ramos frutíferos dessa linhagem. Juntas, essas páginas oferecem um mergulho fascinante no passado, proporcionando uma compreensão mais profunda das origens e dos valores que moldaram a Casa dos Gerânios.

Riccardo Hübner, ao assumir a responsabilidade de dar voz às memórias de Bertilla, demonstra uma sensibilidade notável, transmitindo a riqueza emocional de cada experiência vivida. A sua escrita hábil cria uma atmosfera que transporta os leitores para o coração da narrativa, permitindo-nos sentir a presença viva de Bertilla e testemunhar o impacto duradouro que ela teve em seus entes queridos.
O projeto gráfico foi ambientado a partir das pinturas parietais reveladas no processo de preservação e restauração da Casa dos Gerânios.
Ao folhear as páginas deste livro, prepare-se para uma jornada tocante e reveladora. Casa dos Gerânios é mais do que um relato biográfico; é um testemunho da força da família, do amor incondicional e da capacidade humana de superar adversidades. Esta obra não apenas celebra a vida de Bertilla Boscardim Pereira, mas
também enaltece a importância de preservar as histórias que moldam nossa identidade.
Então, que este livro, ao contar histórias vividas no bairro de imigrantes Santa Felicidade, inspire e ressoe nas almas dos leitores, proporcionando reflexões profundas sobre a natureza efêmera da vida e a eternidade das memórias que construímos.

Danielle Dalavechia Chedid Silvestre
Fábio André Chedid Silvestre
Núcleo de Mídia e Conhecimento


OBRA DA ARTISTA JAMALI (1992). ACERVO PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA.


NOTA DO AUTOR
Durante muitos anos de minha vida, procurei respostas para questões que me fascinavam. A principal pergunta sempre foi: como pensavam os homens que marcaram a história? Desde meus 14 anos de idade, busquei, então, por meio da leitura, mergulhar nos pensamentos de Albert Einstein, Siddhartha Gautama, Nietzsche, Charles Spencer Chaplin Jr., Fernando Pessoa, Nicolau Maquiavel, Sigmund Freud, entre outros. Quando fui entrando na fase adulta, enveredei por ler tudo que encontrava a respeito de grandes empresários, então mergulhei nos pensamentos de empresários como Akio Morita, Lee Iacocca, Riccardo Semler, Soichiro Honda e Raymond Albert Kroc. Próximo dos 30 anos mudei o curso em direção aos modernos estudiosos do comportamento humano, então li tudo que aparecia a minha frente que fosse escrito por Jim Rohn, Zig Ziglar, Daniel Goleman, Judith Rich Harris, Robert Greene,


BERTILLA BOSCARDIM (PRIMEIRA COMUNHÃO).
Jack Trout, James Hillman, Anthony Robbins, e finalmente na fase em que escrevo esse livro os filósofos do Direito Cesare Lombroso, Michel Foucault, Enrico Tullio Liebman, Charles de Montesquieu, Ronald Dworkin, Miguel Reale. Porém, dentre todos esses, o que mais fez mudar a minha forma de pensar e trouxe grande transformação à minha vida foi Anthony Robbins. "Tony Robbins", como é conhecido, é um mestre em comportamento humano. Discípulo de Jihn Ron (filósofo motivacional), bem como seguidor de John Grinder (linguista) e Richard Bandler (matemático, gestalt-terapeuta e perito em computadores). Foi por meio de Anthony Robbins, primeiramente lendo a obra dele mais de 20 vezes e estudando-a, depois indo visitá-lo no Robbins Institute, em San Diego (USA), no ano de 1996, que pude ter contato com a Programação Neurolinguística (PNL) ou, como é preferido por Robbins, Condicionamento Neurolinguístico – assunto que abordarei durante o desenvolvimento deste livro.
Depois da visita a Anthony Robbins, fui orientado a escrever um livro adaptado às condições brasileiras e assim o fiz. Fui para Lisboa
em busca de nossas raízes comportamentais e lancei o livro Sem medo para vencer. Uma revolução nas atitudes. Com o lançamento do livro, proferi mais de 1000 palestras em todo o território brasileiro, chegando ao ponto de dar quatro palestras em um mesmo dia para públicos que atingiam a casa de 4000 pessoas em uma única sessão. Você, leitor(a), deve estar-se perguntando: o que o livro
A Casa dos Gerânios tem a ver com tudo isso? Respondo com um convite: leia o livro do começo ao fim. Apenas 10% dos livros são lidos além do seu primeiro capítulo, e apenas 3% da população brasileira têm o hábito de ler regularmente. Portanto, esse é um dos motivos pelos quais não podemos estranhar que somente uma pequena parcela de nossa sociedade viva uma vida saudável em todos os sentidos. Quero surpreendê-lo como fui surpreendido. Primeiramente, por Anthony Robbins e, depois, por uma senhora chamada Bertilla Boscardim Pereira – descendente de imigrantes italianos e moradora do bairro Santa Felicidade, bem como herdeira da Casa dos Gerânios.
RICCARDO HÜBNER







1
OS IMIGRANTES PARTE UM



"LAMENTO
PROFUNDAMENTE –AFIRMAVA UM COMISSÁRIO DE CERCAMENTO – O MAL QUE AJUDEI A FAZER A 2 MIL
POBRES, A RAZÃO DE 20 FAMÍLIAS POR ALDEIA."
(MANTOUX EM ANNALS OF AGRICULTURE)


A ITÁLIA DO SÉCULO XIX
Era apenas um convite, uma proposta talvez. Mas em 1870 a mensagem dos cartazes distribuídos pelas ruas italianas trazia esperança e tristeza aos que se colocavam a lê-la. Afinal, cruzar o oceano em direção ao Brasil poderia ser uma oportunidade de trabalhar em terras férteis, ter um espaço para cultivar e encontrar um clima semelhante ao que estavam acostumados. Ou pelo menos essa era a promessa. Ao mesmo tempo que a ideia de encontrar espaço para trabalhar e talvez fazer um bom dinheiro parecia tentadora, deixar a Itália e tudo a que estavam familiarizados era como abandonar não só a pátria, mas a própria identidade.
"– Biazio não tô aguentando mais, não tem nada de bom acontecendo em nossas vidas, tô ficando muito desanimada com a nossa situação.
"– Eu sei, eu sei. Eu tô pensando em alguma maneira de melhorar nossa renda — retrucou firme.
– Enquanto você pensa nosso tempo vai passando.
– Eu sei mulher, mas então me dê alguma ideia em vez de ficar reclamando.
– Tá todo mundo indo embora Biazio, a vida aqui não tá dando mais — argumentou.

— O quê? — Se você tá pensando que eu vou sair daqui da minha terra tá muito enganada.
— Tua terra Biazio, a terra nunca foi tua. Tu trabalhas feito um escravo e está sempre devendo. Você quer que nossos filhos cresçam como escravos também Biazio? Os senhores não querem mais nosso povo aqui, isso só você não viu ainda."
TRECHO DO LIVRO DE JOANIR ZONTA
Com as consequências dos conflitos que precederam a unificação italiana (Cercamento e Revolução Industrial), a vida dos italianos, especialmente aqueles que trabalhavam nos campos e os que possuíam pequenas fazendas, foi afetada de tal maneira que, para muitos, não houve alternativa senão embarcar em novos sonhos. Na Europa do século XIX, muitos fatores mudaram as vidas da população camponesa. Um destes foi o Cercamento, sistema criado no século XVIII, na Inglaterra e que estava ganhando adeptos em outros territórios. Tal política era considerada inimiga dos moradores mais pobres do campo, pois , com isso, eles foram expulsos das terras onde viviam e tinham cultivos.
A lógica por trás desse sistema era de fato tão eficiente quanto desumana e visava somente aumentar as rendas
da aristocracia inglesa. Bastante simples: eliminavam-se os pequenos lotes e criava-se um só campo cercado por sebes, utilizado para a criação intensiva de gado, carneiros e novas técnicas agrícolas. Com o aumento da produtividade e a melhor negociação dos insumos, a renda aumentava.
A publicidade de vida nova em um lugar como o Brasil era o que faltava para decidir deixar um país de economia debilitada, onde reinava a fome e o desemprego. O próprio governo italiano considerava a emigração necessária para aliviar a situação política e econômica local. Vários navios carregados de italianos já haviam partido para os Estados Unidos, mas, nesse país, já começavam a serem criados mecanismos para barrar a imigração.
"Lamento profundamente — afirmava um comissário de cercamento — o mal que ajudei a fazer a 2 mil pobres, a razão de 20 famílias por aldeia. Muitos deles, aos quais o costume permitia levar rebanhos ao pasto comum, não podem defender seus direitos, e muitos deles, pode-se dizer quase todos os que têm um pouco de terra, não têm mais de um acre: como não é o bastante para alimentar uma vaca, tanto a vaca como as terras são em geral vendidos aos ricos proprietários."
MANTOUX EM ANNALS OF AGRICULTURE

"Não é raro ver quatro ou cinco criadores se apossarem de toda uma paróquia, antes dividida entre 30 ou 40 camponeses, tanto pequenos arrendatários, quanto pequenos proprietários: todos foram repentinamente expulsos e, ao mesmo tempo, inúmeras famílias que dependiam quase que unicamente deles para o seu trabalho e sua subsistência, as dos ferreiros, carpinteiros, artesãos e pessoas de ofício, sem contar os jornaleiros e criados."
MANTOUX EM A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NO SÉCULO XVIII
"A meu ver, a população é um objeto secundário. Deve-se cultivar o solo de modo a fazê-lo produzir o máximo possível, sem se inquietar com a população. Em caso algum, um fazendeiro deve ficar preso a métodos agrícolas superados, suceda o que suceder com a população. Uma população que, ao invés de aumentar a riqueza do país, é para ele um fardo, é uma população nociva".
ARTHUR YONG (1741-1820)
"Os princípios do Cercamento foram amplamente difundidos pela Europa no séc. XIX e foram responsáveis por um brutal desemprego na área rural. A aplicação desses princípios criou uma massa de homens ditos 'homens livres', um modo conveniente de rotular aqueles que estavam desprovidos de propriedade, uma massa pronta para ser absorvida e explorada como mão de obra industrial.
Os 'homens livres' foram empurrados em direção às indústrias, porém mais uma vez foram surpreendidos. As máquinas a vapor, principalmente os gigantes teares, revolucionavam o modo de produção. Assim, surgia mais um fator de desemprego, agora urbano, na Europa do séc. XIX. A Itália também sofreu as consequências. As fábricas passaram a se concentrar nos arredores das cidades, e foram vistas como satânicas e tenebrosas, lembrando, quase sempre, quartéis com grandes edifícios. O ambiente interno das fábricas era insalubre, com pouca luz, pouca ventilação. Os operários viviam com baixos salários e amontoavam-se em quartos e porões imundos e desconfortáveis, sem condições sanitárias.
No outro lado do Atlântico, a situação era diferente, porém também conspirava para que o movimento migratório eclodisse.
Em 1887, o governo brasileiro era pressionado pelos governos europeus a que decretasse a abolição da escravidão negra. O objetivo era aumentar, no Brasil, a demanda de mão de obra barata, e que essa pudesse ser suprida pelos pobres e indesejáveis camponeses do Velho Continente, deixando bem felizes os governantes que queriam se ver livres daquela massa que poderia atrapalhar seus interesses. Com o movimento abolicionista, o custo da mão de obra

cresceu como previam os europeus: 'ao preço de 1.256 mil réis para o homem e 1.106 para a mulher. Entre 1835 e 1875 o preço médio dos escravos, cresceu 235%.
Para que o valor da mão de obra baixasse, deveria haver mais oferta, e os imigrantes europeus ofereciam essa oportunidade.
Para o Brasil, os imigrantes criavam duas vantagens: mão de obra barata e colonização com o objetivo de defender as fronteiras e garantir mais segurança interna, até mesmo contra ataques indígenas, muito comuns no séc. XIX."


NAVIO DE IMIGRANTES PARTINDO. ARQUIVO DO CENTRO DE ESTUDOS DE IMIGRA ÇÃ O DE ROMA.
TRECHO DO LIVRO ENTRE QUATRO PANELAS

O BRASIL EM EXPANSÃO
Para o Brasil, ter estrangeiros trabalhando na expansão das terras ocupadas e na lavoura cafeeira era uma necessidade, pois, com a Lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico negreiro a partir de 1850, e mais tarde com as leis do Ventre Livre, de 1871, e dos Sexagenários, de 1885, a demanda por mão de obra aumentava a cada dia. Quando a escravidão foi abolida, em 1888, a vinda de imigrantes já acontecia de forma intensa, o que persistiu até 1930. A partir daí, ganhou força o controle de emigração feito pelo governo italiano.
Dos que se aventuraram na longa viagem às terras brasileiras, boa parte partiu do nordeste da Itália, mais precisamente da região de Vêneto, formada por sete províncias: Belluno, Padova, Rovigo, Treviso, Vicenza, Verona e Veneza. As acomodações nos navios superlotados não traziam conforto algum e era comum não ter outro lugar para dormir que não fosse em cima dos próprios pertences. Um dos navios que atracaram no Brasil, cerca de dois meses depois de
ter deixado a Europa, foi o Sulis, que em 1877 partiu da Itália carregado de planos e de mentes esperançosas.
O maior destino no Brasil era a província de São Paulo, de onde partia toda aquela propaganda de trabalho e novas terras para serem ocupadas. Os fazendeiros cafeicultores tinham como objetivo reunir mão de obra agrícola assalariada, mas esperavam pelos imigrantes com condições de trabalho semelhantes às da escravidão. Muitos trabalhadores já chegavam ao Brasil endividados, de uma maneira que talvez nem o trabalho de uma vida toda pudesse ser suficiente para deixá-los livres dos patrões. Os grandes territórios não povoados também foram o destino de muitos imigrantes, nas províncias do sul do país, incentivados a adotar terras de ninguém e ocupar vazios populacionais.
Assim como os italianos chegavam e sofriam adaptações culturais em terras brasileiras, no Brasil também houve certa aderência de costumes italianos, que persistiram ao

longo do último século e continuam presentes até hoje. Como povo católico, os italianos trouxeram elementos religiosos, por exemplo, festas e santos cultuados na terra natal.
A culinária brasileira também apresenta elementos tipicamente italianos, como o frango com polenta, massas e o panetone, tipicamente consumido no Natal.
Diferentemente do que aconteceu com imigrantes alemães e japoneses, os italianos tiveram certa facilidade em se adaptar ao idioma e aos costumes da nova terra. Ao invés de serem criadas escolas italianas — que existiram, mas foram poucas — os imigrantes da Itália se integraram em escolas brasileiras, aprendendo na língua portuguesa.



FAMÍLIA DE AGRICULTORES COM UM REBANHO DE PORCOS EM PRIMEIRO PLANO.
ARQUIVO HIST Ó RICO MUNICIPAL JOÃO SPADARI ADAMI, CAXIAS DO SUL.

OS PROBLEMAS NO NOVO LAR
Nem todos os que aqui chegaram se adaptaram à "terra prometida", houve quem se desiludiu com o que encontrou ou foi incapaz de permanecer naquelas sacrificantes condições de trabalho. As condições climáticas também atrapalharam, já que há dias o forte calor fazia os estrangeiros passassem mal ou não conseguissem trabalhar. Além disso, problemas de saúde como fraquezas, tonturas, indisposição e problemas com insetos, bichos-de-pé e bernes
tornavam o dia a dia ainda mais difícil. As constantes notícias de trabalho praticamente escravo e as más-condições a que eram sujeitos os italianos em fazendas cafeeiras paulistas, fizeram com que o governo italiano ativasse em 1902, até que tardiamente, pois nessa época a situação precária já havia mudado, o "decreto prinetti", que proibia a imigração subsidiada para o Brasil. Com isso, também tornou-se proibida a prática de recrutamento feito por agentes na Itália.


(NGI)

OS ITALIANOS EM TERRAS PARANAENSES
Entre os papéis desempenhados pelos imigrantes italianos no Paraná estão o desenvolvimento do varejo, a criação de colônias e, principalmente, o apoio no campo, como mão de obra agrícola. Eles produziam alimentos para abastecer a região, mas também exportavam, dependendo do desempenho da produção. O Paraná daqueles dias, uma província recém-emancipada, ainda tinha a maior parte de seu território coberta de mata virgem e sua economia era baseada na agropecuária. A exportação do mate, a criação de gado e de equinos, a exploração da madeira e o cultivo da cana-de-açúcar para a produção de aguardente também contribuíam para o panorama econômico provincial. Os italianos foram inseridos nesse cenário, e também se empenhavam no plantio de milho, legumes e café.



FOTO DO CARTAZ ALUSIVO AO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA EM SANTA FELICIDADE. (CASA DOS GERÂNIOS, NOVEMBRO, 1978).


DO LITORAL A CURITIBA
Entre as famílias que foram mandadas ao litoral, algumas não aceitaram permanecer naquele clima quente ou isoladas, longe da igreja. Estas então partiram rumo a Curitiba e se posicionaram nos seus arredores, formando novas colônias ou ocupando aquelas já estabelecidas Mas até que esse processo estivesse concluído e as famílias alojadas, muitas passaram meses sem ter onde trabalhar ou morar, tendo que recorrer, inclusive, à esmola. Mas, à medida que as colônias localizadas ao redor de Curitiba iam se fortalecendo, outros italianos abandonavam o litoral e seguiam para a capital, em busca de melhores condições de vida e de trabalho. A construção da ferrovia, Paranaguá-Curitiba, em 1884, facilitou essa movimentação. No final do século XIX, eram cerca de 30 mil italianos vivendo no estado, espalhados por dezenas de colônias italianas ou mistas.
As colônias maiores prosperaram na região metropolitana de Curitiba, como é o exemplo do atual bairro Santa Felicidade, colônia fundada em 1878 por famílias italianas. Na mesma época, foram fundadas também, com a participação de italianos, Dantas e Alfredo Chaves em Curitiba; Santa Maria Novo Tirol, Zacarias e Inspetor Carvalho em São José dos Pinhais; e Antônio Rebouças, em Campo Largo. Santa Felicidade é o local onde melhor se tem preservada a cultura trazida por esses imigrantes, principalmente em termos de gastronomia. Além disso, a Igreja São José foi construída em 1891 para atender à religiosidade dos imigrantes italianos e, em 1899, surgiu a primeira escola. É uma região com dezenas de opções de restaurantes de cozinha italiana e construções com arquitetura. Ganhou esse nome em homenagem à Felicidade Borges, cuja família vendeu parte de suas terras aos imigrantes.


2
A FAMÍLIA PARTE DOIS



"MEU PAI (FRANCISCO BOSCARDIN)
ERA UMA PESSOA MUITO PACATA. MUITO SÉRIO, MUITO TRABALHADOR, ELE TRABALHAVA DIA E NOITE."
(BERTILLA BOSCARDIM)


A CHEGADA AO BRASIL
Em 20 de março de 1877, a bordo do navio Clélia, embarcavam no porto de Gênova, com destino ao Brasil, perto de 900 emigrantes, saídos da Região de Vêneto. Entre eles estava a familia Boscardin, chefiada por Francesco Boscardin, "o Barba". Eram eles, conforme consta no passaporte tirado em março de 1877, da cidade de Thiéne, Vicenza, Itália: Matteo, de 46 anos; sua esposa, Maria Dal Santo, de 40 anos; e os filhos Francesco, de 24 anos, Giovanna, de 23 anos, Magdalena, de 15 anos, Giuseppe, de 13 anos, Margharita, de 11 anos, Bernardo, de 9 anos, Luigi, de 6 anos, Nicola, de 6 anos e Marco, de 2 anos (que faleceu em terras brasileiras, em 16 de maio de 1877, dez dias depois da chegada). Também vieram Francesco, com 39 anos – "o Barba", que em italiano significa "solteirão", cujo passaporte foi tirado em seu nome, irmão de Matteo – e Lucca Latinni, com 25 anos, casado com Giovanna Boscardin.

O povo desceu a bordo de vapor, que os conduziu ao cais e de lá aos locais destinados pelo Governo, no município de Morretes. Cada família recebeu um terreno de 17800 metros quadrados, com uma casa de madeira, ao preço de 150 mil réis para serem pagos em prestações após a primeira colheita – preço considerado bom. Era garantida a sua manutenção durante os seis primeiros meses, com sementes e instrumentos agrícolas.
A terra era fértil, entretanto surgiram os primeiros problemas: o clima era quente, abafado e úmido, bem diferente ao que os italianos estavam acostumados em sua terra natal.
"Boscardin e outras famílias permaneceram no Rio Sagrado em Morretes, ali não se deram bem porque eles vinham de um lugar muito frio, na Itália havia frio com neve. Morretes tinha muitos mosquitos, muito pernilongo, muita butuca. Não se adaptaram, daí abriram uma picada, com cavalo, com burros e com mulas, e fizeram com aquelas trouxas, que trouxeram junto com os filhos."
BERTILLA BOSCARDIM



CARTEIRA DE IDENTIDADE BRASILEIRA DE NICOLA BOSCARDIN.
CERTIFICADO DE BATISMO ITALIANO DE NICOLA BOSCARDIN.

EM CURITIBA
Chegando em Curitiba, foram alojados em barracões. Muitas famílias com grandes dificuldades tiveram que viver da caridade do povo até que houve a divisão dos lotes da família Borges.
"Chegando a Curitiba tiveram conhecimento de que havia uma grande área pertencente a Borges, família Borges (os irmãos Antônio e Arlindo Borges e a irmã Felicidade). A família Borges recebeu essas 15 famílias. As famílias vieram pra saber como era aqui. O que dava aqui. Que tipo de plantação. Tinham conhecimento que aqui também fazia frio. No inverno era inverno, só geava no inverno. Primavera era primavera, outono era outono, verão era verão!
Eles vieram em busca do clima melhor."
BERTILLA BOSCARDIM
Contam que "o Barba", depois de meses de luta, espera e sofrimento, vendo a terra que lhe cabia, o verde da mata e o céu azul igual ao de Vêneto, disse com emoção: "Santa Felicidade", e o nome ficou. As atividades baseavam-se na agricultura, o que motivou a imigração para o Brasil.
Com o pouco dinheiro que lhes sobrou, compraram cavalos e carroças e vendiam lenha, milho, feijão, verduras, uva e erva-mate "no Centro," em Curitiba.
O terreno comprado dos irmãos Borges começa na entrada de Santa Felicidade até a casa dos Comparim. Aos Boscardin coube o lote compreendido desde a atual Nicolau José Gravina (Cruzeiro) até o rio Uvu (Cascatinha), que movia o antigo moinho do Boscardin, ao lado da Casa dos Gerânios, na Avenida Manoel Ribas.


OS GÊMEOS NICOLA (AVÔ PATERNO) E LUIGI BOSCARDIN.

INAUGURAÇÃO DO CEMITÉRIO EM 1886
Em 1882, construíram uma capela de madeira em um terreno cedido por Marco Mocellim, próximo ao local da atual Igreja de Santa Felicidade, onde hoje se venera a imagem de Santa Bertilla. Em 1886, um terreno cedido pela família Smaniotto foi transformado em cemitério da comunidade.
A primeira pessoa a ser sepultada foi Giuseppe Boscardin, com 22 anos, acidentado no moinho de seu pai.
— Então quer dizer que Santa Felicidade tem um cemitério? — disse Giuseppe em tom sarcástico.
— É. O terreno foi doado pelos Smaniotto — respondeu Nicola seu irmão.
— Vamos ver quem vai inaugurar o cemitério — retrucou rindo.
— Não brinca com isso, Giuseppe — alertou sua noiva — Deus não gosta de brincadeiras desse tipo.
— A vá, vá. Deus tem coisa mais importante pra fazer do que ficar me controlando. Vamos ver quem vai inaugurar — sorriu mais uma vez Giussepe.
No dia seguinte Giussepe Boscardin foi encontrado morto.
"Giuseppe era muito feliz, contente, e ia se casar. Estava noivo com a tia da minha mãe. Contavam que ele era muito pândego. 'Pândego' quer dizer 'muito alegre, muito brincalhão'. Ele apostava quem que ia inaugurar o cemitério."
A família havia sentido a falta dele durante o almoço. Saíram então em sua busca por mais de duas horas, até que encontraram. Seus restos foram recolhidos no moinho. Ele havia sido triturado. Francisco (o Barba) deduziu que ele havia sido puxado pela camisa enquanto trocava as engrenagens. Uma morte trágica para a família Boscardin. Foi dessa maneira que o cemitério de Santa Felicidade foi inaugurado: com o enterro de Giuseppe Boscardin, filho de Maria e Matteo Boscardin.
E foi assim que, a partir daquele dia, ninguém mais ousou fazer brincadeiras a respeito do Cemitério de Santa Felicidade, pois aquele que havia brincado, o havia inaugurado.
"E justamente ele ficou preso a uma camisa nova. Na época não existia assim, uma

BERTILLA BOSCARDIM
camisa fina, era um xadrez meio grosso, era só um tecido um brim listrado, uma calça, um suspensório... Ele foi preso pela camisa. Havia uma engrenagem que tinha que ter duas pessoas, uma pra segurar, outra pra poder trocar... Isso foi na hora do almoço, que não tinha ninguém ali pra auxiliar, então ele foi encontrado já na roda, ele foi jogado pra roda. E ali meu pai e os

parentes contam que foram tirados só os pedaços, foi isso. Moído e tirado em pedaços. A roda tinha um metro de diâmetro e muito grossa. Eram duas rodas grandes. Se fosse uma camisa já velha, fraca, talvez ele pulasse dali e arrebentasse. Mas ele foi lançado com força na roda maior quando a camisa o puxou foi pra dentro."


ILDEGONDA LEONARDI TULIO (AVÓ MATERNA).
GIUSEPPE TULIO (AVÔ MATERNO).
BERTILLA BOSCARDIM

A FAMÍLIA BOSCARDIN
Matteo Boscardin nasceu em Sandrigo, município de Vicenza, na Itália, em 24 de março de 1830. Foi batizado na Paróquia de Santa Maria, Santo Felippo e Santo Giácomo, em Sandrigo. Casou-se com Maria Dal Santo e, dessa união nasceu Nicola Boscardin. Este nasceu na cidade de Montecchio Precaltino, Diocese de Vicenza, Itália, em 21 de julho de 1871.
Nicola se casou com Izabel Menegusso, e dessa união, nasceu Francisco Boscardin. Ele foi batizado em 23 de janeiro de 1896 e teve alguns irmãos: Mateus, Antonio, José (falecido), Bortolo, Pedro, João, José, Catarina, Tereza, Maria (falecida aos 40 dias de casada). Fixou residência na Cascatinha localizada na Avenida Manuel Ribas, hoje a conhecida Casa dos Gerânios. Francisco foi proprietário do moinho de fubá e farinha de milho de Santa Felicidade, que ficava ao lado de sua casa e era movido pelas águas do rio Cascatinha. Casou-se em Santa Felicidade, em 26 de fevereiro de 1916, com Carolina Tulio, nascida em Santa Felicidade, em 10 de maio de 1896, filha de José Tulio e Ildegonda Leonardi.
Dessa união, nasceram 13 filhos: Nicolau, Maria, José, Zeferino, Izabel, José, Felicita, Mercedes, Ângelo, Helena, Faustino, Antônio e Bertilla. Bertilla Boscardim nasceu em Santa Felicidade, em 18 de outubro de 1939. Casou-se em Santa Felicidade, em 10 de maio de 1958, com Nilto Pereira, nascido em Jaraguá do Sul-SC, em 7 de setembro de 1932.
O terreno comprado dos irmãos Borges começava na entrada de Santa Felicidade. Aos Boscardin, coube um lote onde iniciaram a construção da sua casa por volta de 1880, a primeira de Santa Felicidade, e o moinho dos Boscardin, também conhecido como Moinho Cascatinha.
"A nonna Beta (Izabel Menegusso) comia e levava aqueles aventais no quarto. Comia sozinha e não deixava os netos comerem. Deixava as frutas lá até apodrecerem. Então tenho uma lembrança dela sendo muito enérgica, muito limpa, uma higiene total. Aquele assoalho estava sempre limpo. Ela areava aquilo, não sei se era com cinza. Eu tenho uma lembrança da minha avó que ela era exigente. A roupa era fervida com cinza enrolada em um pano, o que nós chamávamos de 'bonequinha'."

"Meu pai (Francisco Boscardin) era uma pessoa muito pacata. Muito sério, muito trabalhador, ele trabalhava dia e noite. Era uma pessoa que vivia para família e pra igreja. Não ia à igreja dia de semana porque não podia, mas a ele era assim, uma pessoa justa que ajudou todos os filhos de uma maneira ou de outra."
BERTILLA BOSCARDIM




FRANCISCO BOSCARDIN (PAI) — NOIVADO EM 1915.
CAROLINA TULIO BOSCARDIN (MÃE) — NOIVADO EM 1915.
INVENTÁRIO DO "DOTE" DE CAROLINA TULIO.

O MOINHO
O Moinho da família Boscardin foi construído em 1880 pelo italiano Francisco Boscardin — o Barba — nas terras da família Borges. A primeira sede, em madeira, durou aproximadamente 15 anos, e os únicos registros que restam são as informações passadas pela família. O local foi demolido após um incêndio.
"O primeiro moinho era de madeira, e depois, numa tarde assim muito infeliz, um tio, falecido tio meu, chamado Matheus Boscardin, tinha galinhas. Uma das galinhas era choca, e ela não queria sair do ninho, e o meu tio, um garoto cheio de vida, naturalmente, disse: vou te riscar um fósforo. E riscou um fósforo naquela choca e ela saiu com as penas acesas e foi num monte de palha de milho. E pegou fogo o moinho por isso. Ah, isso foi uma coisa de louco! Daí queimou o moinho, e o meu falecido avô fez um outro de material e até há pouco tempo ele funcionou, mas funcionou mais 120 anos esse moinho. O moinho era movido a água, por roda de água, depois com o tempo com turbina, depois veio problemas de seca, depois a atividade dele foi com motor diesel, até hoje tem, motor diesel, tem tudo. Mas a gente servia toda a comunidade de Santa Felicidade, toda a colônia caía no Moinho dos Boscardin. Eles traziam o milho, e a gente moía o milho. Eles pagavam lá uma cota de moagem ou trocavam por fubá já moído e assim a gente ia fornecendo milho moído,
fubá, quirera, canjica, tudo isso. A comunidade aqui se servia do moinho que era o único que tinha. Depois surgiram outros, o moinho aqui da família Trevisan, antes dos Trevisan era da família Manosso, era o Moinho Manosso."
ÂNGELO BOSCARDIN


Até o final da década de 1950, os cereais eram comprados das famílias da região. Em 1960, foi adquirido o primeiro caminhão, então se iniciou a compra de milho e trigo em algumas cidades, como Irati, Ponta Grossa e São Mateus. Nessa mesma época, o moinho começou a funcionar movido a eletricidade.
O último administrador do moinho foi Faustino Boscardim. Em 1988, a família encerrou as atividades do Moinho Cascatinha, e todos os equipamentos utilizados durante suas atividades foram armazenados no local.
Em 1996, uma enchente destruiu parte do material existente.


MOINHO DA FAMÍLIA BOSCARDIN.

AS CARROCEIRAS
A história do moinho está na comunidade de Santa Felicidade. Colônia agrícola, o milho, o trigo e o centeio colhidos eram moídos pelos Boscardin. As carroças com a produção das moradoras locais, ou de colônias próximas, paravam defronte ao moinho.
As carroceiras vinham principalmente do Butiatuvinha, Campo Novo e Campo Magro e eram as responsáveis pelas entregas e pelo transporte, os homens trabalhavam na lavoura.
As carroceiras eram na maioria descendentes de italianos, mas havia também descendentes de poloneses.
A rotina de trabalho iniciava-se às cinco horas da manhã. Os colonos dormiam cedo e acordavam cedo, tanto que seu Francisco, pai de Bertilla, tinha um ditado:
"Não se vende dia para comprar querosene."
Então, lá por cinco da manhã, começava a se formar uma fila de dezenas de carroceiras que seguiam
uma rotina: deixar o milho no moinho, seguir para o Centro — que compreendia uma região que se iniciava nas
Mercês e seguia até o largo da ordem além — vender hortigranjeiros, deixar roupas lavadas, coletar roupas sujas, voltar para o moinho, pegar o fubá e retornar para as suas casas.
"[... ] as carroceiras deixavam o milho para gente moer, a gente dava assim um prazo de dias ou de horas depende a quantidade que ele trazia. Trazia muito milho ou trigo, às vezes no mesmo dia não dava, então seria posteriormente entregue com uma data x; a gente marcava lá no saco com giz, até tal dia, então a pessoa sabia que naquele dia voltava e estava lá à sua disposição. E vinha gente de longe, não era só de Santa Felicidade. Vinha gente de Bateias, de Campo Magro, D. Pedro II (Colônia D. Pedro), Almirante Tamandaré."
ÂNGELO BOSCARDIN
As carroças dos italianos tinham linhas retas. As carroças dos poloneses tinham linhas curvas.




MOINHO DA FAMÍLIA BOSCARDIN.
RECORTE ANTIGO DE JORNAL SOBRE AS CARROCINHAS. ACERVO PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA.

"As carroças levavam lenha, palha de colchão — o colchão era feito de palha de milho — trouxas de roupa, que elas lavavam pra fora, e verdura dos seus próprios quintais. Traziam milho pra trocar em fubá pra fazer polenta. Havia muito mais de 100, muito mais de 100 carroças; e vinham alguns poloneses também. Às vezes tinha uma fofoca, assim elas (as carroceiras) diziam uma pra outra, falando altíssimo: — Mas não conte pra ninguém, pelo amor de Deus. Isso que eu tô te contando é segredo.
A gente ria tanto de ver os segredos que elas contavam uma pra outra. Algumas se vestiam como ciganas, com aquele lenço assim amarrado, fumavam cachimbo, aquele avental todo queimado de brasa que elas carregavam pra ascender o cachimbo. Acendiam um sabugo de milho, elas deixavam pegar fogo e saiam com aquilo aceso. Diziam tição de fogo, uma brasa. Tinha uma delas que até carregava na mão, a mão dela já estava tão curtida, queimada, que ela não sentia, passava de uma mão para a outra."
BERTILLA BOSCARDIM
O FRIO
Os italianos e seus descendes faziam seus próprios casacos de tricô. As cobertas eram de penas, os colchões de palha. As penas usadas eram de ganso, de marreco, e até de galinha. Matavam a galinha, separavam as penas e deixavam secando. Faziam travesseiros, preferindo a pena de ganso. O tecido era próprio para não sair as pontas das penas. Faziam uma capa de tecido às vezes colorida, mas a maioria era branca. A pena de ganso era preferida também porque não amontoava, espalhava mais facilmente. Travesseiro e coberta de pena, colchão de palha, casacos de tricô, assim enfrentavam o frio.
Dentro de casa, o fogão a lenha, no centro, afastado um metro da parede da cozinha. Na chapa do fogão, o feijão; no forninho, uma carne de posta recheada com bacon e cenoura.
"— Como é freddo esse buso de Boscardin. (como é fria essa baixada dos Boscardin) — disse uma carroceira a outra. Era mesmo, era frio, era frio mesmo. Era um muito gelado. Naquele lugar ali, geava, pegava geada o inverno todo. A gente passava em cima da grama de calçado e fazia crec crec, geada mesmo."
BERTILLA BOSCARDIM



FRANCISCO BOSCARDIN E CAROLINA TULIO BOSCARDIN (1972).

3
BERTILLA BOSCARDIM PARTE TRÊS



"ALÉM DE EU ACOMPANHAR MEU
PAI PRO CENTRO, A MINHA TAREFA
ERA LAVAR OS SACOS; SAQUINHOS BRANCOS QUE ERAM VENDIDOS COM
O FUBÁ, QUIRERA, MILHO MOÍDO, ESSAS COISAS
TUDO EM GRANDE
QUANTIDADE; NÃO HAVIA OS CARTUCHINHOS."
(BERTILLA BOSCARDIM)


O NASCIMENTO DE BERTILLA
Bertilla nasceu em 1939, em uma casa de chácara (atualmente uma academia na Rua Nicolau José Gravina — antes conhecida como Estrada Velha) construída pelo genro do seu tataravô Matteo, genro esse da família Slompo. Naquela, época seus pais, Francisco e Carolina, vendiam lenha, verduras e frutas plantadas no quintal e do pomar da chácara, havia também palha de milho desfiada para colchões. Carolina sempre estava em sua carrocinha, com lenha picada pronta para os fogões, além do sapê e dos gravetos de lenha fina para começo de fogo. Tudo preparado para fogão a lenha. Naquela época, não havia fogão a gás, nem máquina de lavar roupa. As roupas eram lavadas no rio ou nas fontes.
"[...] O parto foi difícil, na época não se falava de cesárea e também não havia acompanhamento médico ou de pré-natal. A parteira foi Antonia Bosa. A grávida tinha que fazer uma dieta rigorosa durante 40 dias. Não podia apanhar chuva, nem sereno, nem comer comida muito temperada, nada de tempero forte, muito caldo de galinha com torrada ou

biscoito — em italiano se dizia La Supa el Brodo. Quarenta dias cuidando do alimento, tudo isso sobre orientação de nossas mamas ou nonnas, tudo isso para o bem-estar do bebê, para o bebê não ter cólicas."
BERTILLA BOSCARDIM
Francisco e Carolina escolheram o nome "Bertilla porque na época do nascimento da filha havia um processo de canonização daquela que se tornaria a "Santa Bertilla" nascida, e falecida na Itália, como também reconhecida pelo Vaticano por seu milagres. Porém, Bertilla Boscardim, mesmo sabendo da importância da santa e tendo visitado a cidade onde a santa nasceu e viveu, e que hoje está sepultada, no decorrer
dos anos em que desenvolveu sua fé, começou a repensar o valor que atribuía aos santos.
[...] Eu já tinha a sensação que não era por aí. Santo pode ter sido uma boa pessoa, como foi a Santa Bertilla. Ela cuidava dos enfermos... Mas eu penso assim: ela não pode curar a si própria. Ela foi uma pessoa que obedeceu a Deus, serviu bem, foi escolhida pra cuidar dos doentes, mas foi maltratada pelas freiras, foi maltratada pelos padres, foi uma menina excluída, ninguém dava valor pra ela, teve câncer, ficou enferma e veio a falecer. Era tão querida pelos doentes que era considerada santa viva, mas ela mesma não pôde sair do câncer. Às vezes, eu penso: meu Deus, eu saí de tanta coisa [...]"


BERTILLA BOSCARDIM
PADRINHOS DE BATISMO DE BERTILLA, MARIA PARIZE E CARLOS AFFORNALI, E FAMÍLIA.

A SANTA BERTILLA
O Papa Pio XII, em 1952, disse: "é uma humilde camponesa".
Era ela, que nasceu na família dos Boscardin, em 6 de outubro de 1888, na cidade de Brêndola, na Itália, e recebeu o nome de Ana Francisca no batismo. Os pais dela eram simples camponeses, e sua infância transcorreu entre o estudo e os trabalhos do campo – rotina natural de filhos e filhas de agricultores dessa época. Aos 17 anos, mudou o modo de encarar a vida e ingressou no convento das Irmãs Mestras de Santa Doroteia dos Sagrados Corações, quando adotou o nome de Maria Bertilla. Paralelamente, estudou Enfermagem e se diplomou como profissional da área, de modo que pôde tratar dos doentes por meio de ciência e fé, os quais assistia com bastante carinho. Teve uma existência de união com Deus no silêncio, no trabalho, na oração e na obediência. Isso se refletia na caridade com que se relacionava com todos: doentes, médicos e superiores. Mas, era submetida a constantes humilhações por uma superiora.
Depois, foi enviada para trabalhar no Hospital de Treviso, mais ao norte do país. Tinha apenas 22 anos de idade quando, além de enfrentar a doença no próximo, teve que enfrentá-la em si mesma. Logo foi operada de um tumor e, antes que pudesse se recuperar totalmente, já estava aos pés dos seus doentes outra vez. As humilhações pessoais continuavam, agora associadas a dores físicas. Naquela época, estourou a Primeira Guerra Mundial, e a cidade de Treviso ocupava uma posição militar estratégica, estando mais sujeita a bombardeios. Era uma situação que exigia dedicação em dobro de todos no hospital.
A Irmã Maria Bertilla surpreendeu a todos com sua incansável disposição e solidariedade de religiosa e enfermeira no tratamento dos feridos da guerra. Porém, seu mal se agravou e, aos 34 anos sofreu a segunda cirurgia, mas não resistiu e morreu no dia 20 de outubro de 1922, no Hospital de Treviso. O Papa João XXIII canonizou-a como Santa Maria Bertilla Boscardin, em 1961.


A CASA DOS GERÂNIOS
"Em 1942 faleceu o nonno Nicola, como nós carinhosamente o chamávamos antes da sua morte. Pediu ele, antes de falecer, a meus pais, Francisco e Carolina, juntamente com meus irmãos, para que meus pais e minha família mudássemos para o sobrado da Cascatinha, sobrado esse construído em 1880, pelo irmão do meu tataravô Francisco Boscardin, mais conhecido por tio Barba."
BERTILLA BOSCARDIM
Aos dois anos de idade, Bertilla estava morando no casarão da família. Ela havia nascido e morado em uma casa construída pelos pais nas proximidades da cruz de Santa Felicidade — atual Rua Nicolau José Gravina— mas com a morte de seu avô Nicola Boscardin, os pais de Bertilla foram chamados para dar assistência. Então lá estava ela, morando na primeira casa construída em Santa Felicidade, a casa que guardava grandes histórias dos pioneiros da Colônia de Santa Felicidade, como era chamada na época — 1941 — três andares , contendo, no primeiro, três salas e cozinha; no segundo, quatro quartos; no terceiro, um sótão.
Ela foi para lá com os pais, Francisco Boscardin e Carolina Tulio Boscardin.
No casarão, havia muita fartura de alimentos. Os Boscardin tinham frutas, verduras, carnes e outros mantimentos. Bertilla a 13ª de uma família com 13 filhos, era, portanto, a caçula da família e, para sua sorte, a família não passava mais pelas dificuldades iniciais encontradas pelos pioneiros. O moinho que seus antepassados haviam construído representava um negócio sólido e rendoso para a família Boscardin.
"[...] Salada de carne. E eu falo que a gente cozinhava uma quantia de carne, uma parte você comia na sopa e outra parte feito salada, e isso era umas duas vezes por semana; e macarrão caseiro, uma sopa com macarrão caseiro, muito radiche [risos], muita verdura, toda plantada lá na nossa horta. A gente tinha pomar, e a gente tinha o vinho que nunca faltou à nossa mesa, nós tomávamos dois litros por dia. Eram feitas três polentas por dia, inclusive, eu tenho o panaro da família. A polenta não era cortada com faca não, era com fio, uma linha no panaro... Cortava com fio. Ai se a gente não soubesse cortar! Era nosso pai, nossa mãe que cortava a polenta."
BERTILLA BOSCARDIM

Na propriedade, os Boscardin tinham um poço com 22 metros de profundidade, água que era para preparo de comidas.
Tal poço também servia os vizinhos, que iam buscar água para beber.
"Eles (os vizinhos) carregavam dois baldes nos ombros com bigolo, o mesmo que uma cangalha. A água para limpeza de casa e de lavar roupas era água do rio. Lembro que as minhas irmãs Maria, Felista e Betina iam com cestas de roupas para lavar no rio."
BERTILLA BOSCARDIM



ISABEL BOSCARDIM (BETINA).
A FAMÍLIA COMEMORANDO BODAS DE OURO DOS NONOS FRANCISCO E CAROLINA (ACERVO DA FAMÍLIA BOSCARDIN, MAIO, 1966).

A EDUCAÇÃO
Com um certo receio de que os mais novos da família não recebessem uma educação rígida e austera, as vezes a nonna Izabel Menegusso, também chamada de nonna Beta, criava algumas dificuldades extras para a criançada, e Bertilla volta e meia sentia a intenção de sua avó. A princípio nonna Beta era contra o contato físico com os filhos, para ela o contato amolecia a cria. Tal teoria não era compartilhada pelo falecido nonno Nicola que, por várias vezes, havia contrariado a teoria sendo pego aos abraços e enchendo os netos com balinhas e outros doces.
"[...] e o meu avô era um baixinho, mas com uma voz incrível, esta é a verdade. E adorava nós. E a minha avó é da família Menegusso... já mais durona, e meu avô não: — deixe aquele menino, não brigue com ele...( porque não sei o quê ). Mas ele... o forte do meu avô era tomar um vinho, sabe. Aos domingos, após a missa, (tinha sempre ali, defronte a Igreja, um armazém chamado Armazém de Alberto Zonnato). Então faziam aquela puxada de italianos e daí vinha pra casa. Enchia assim os bolsos de balas, sabe, e do paletó. E diziam: — Boscardin, o que o senhor vai fazer hoje?
'— A festa dos meus netos'! Então ele subia no sótão depois do almoço (e nós éramos em 22 netos dele), e ele depois que almoçou e tomava o seu bom vinho, então dizia: '— agora eu vou fazer a festa dos meus netos'... Então abria as janelas e jogava aquelas balas, e via nós lá embaixo pegando as balas, enrolando-se um com o outro, sabe. E o meu avô cantava e dava risada!... e mais balas... Até jogar todas as balas. Depois dizia assim: 'Bambine, adesso me voi a dormire' (agora eu vou dormir). Então ele dizia assim, (e chorando): 'Bambine o nonno é vecchio (estou velho), quem será que vai jogar balas pra vocês quando eu morrer... Vocês são as minhas relíquias, minhas jóias, o nonno vai ficar triste... [Choro]... podemos continuar. Meu avô pertencia ao coral da Paróquia de Santa Felicidade, cantava nas missas, sem o coral naquela época não tinha missa. Tinha né, mas era a coqueluche do tempo, o coral de uma paróquia. Então ele cantava na missa das 8h, das 10h, missa festiva que diziam. Mas na época, nos dias em que meu avô cantava, ele conseguia reunir todos os amigos e fazia aquelas cantarolas de italianos, assim no portão, cantando a girolleta e mais tantas, mais coisas lindas, aquelas modas italianas que a gente sente saudades, sabe.

E os vizinhos, quando um convidava a família próxima, os amigos, era uma cantarola. Lá corria o vinho, a caipireta diziam (a caipirinha), grustoli, as mulheres iam pra cozinha fazer o grustoli, sabe o que é grustoli? [Risos]. Então todo mundo tinha uma atividade, todo mundo se mexia; e pinhão, festas de pinhão, mas era uma fábula!"
ÂNGELO BOSCARDIN
Mas nonna Beta era realmente diferente. Muito religiosa e muito austera. Certa vez, estava nonna Beta subindo as escadarias da Igreja de Santa Felicidade e, ao seu lado, estava a pequena Bertilla. Como estava fazendo muito frio naquele dia, Bertilla pensou que enfiar a mão no bolso da nonna seria uma boa ideia e assim colocou em prática o intento.
"— Que tá enfiando a mão no bolso aí menina — disse nonna Beta se esquivando rapidamente.
— Quero esquentar minha mão — disse a pequena.
— Mas não no meu bolso — repreendeu.
— Por que a nonna é tão brava? Assim não adianta nada vir na igreja — falou a pequena com indignação.
— Pra ver se você se educa — encerrou assim nonna Beta."
BERTILLA BOSCARDIM
Ela era realmente muito brava. Quando cozinhava então! Sai de baixo. A cozinha era um ambiente quase sagrado. Não sendo um ambiente muito grande para uma família tão grande, as refeições eram servidas em turnos. Primeiro, as crianças; depois, os adultos, seguindo um protocolo de chamada. Porém, não raras foram as vezes em que as crianças se atreviam a quebrar o protocolo, indo até a cozinha sem serem chamadas.
"— Bertilla desce da mesa — disse nonna Beta sem ser atendida pela neta que queria pegar um pouquinho de macarrão cru.
— Eu já falei para descer da mesa — falou a segunda vez, batendo na mão da pequena com uma varinha. A mesma varinha que nonna Beta usava para espantar os gatos que entravam na cozinha".
" 'Teretetê' era a mania dela, ela reagia com o 'teretetê teretetê mexilão como se fosse hoje o frunha, que também é uma palavra para mexilão, que tá mexendo nas coisas — curioso. Então frunha é aquele que mexe aqui, mexe ali."
BERTILLA BOSCARDIM

E assim era a nonna Beta, desconfiada, austera e exigente. A nora, Carolina, (mãe de Bertilla) não concordava muito com os métodos da sogra e em alguns momentos até desafiava o humor de nonna Beta.
"— Que tá fazendo com essa grandona no colo? — perguntou nonna Beta ao dar de frente com a nora.
— A minha caçula vai ser mimada sim, nonna — respondeu Carolina ao subir os últimos degraus da escada que levava ao sótão."
E foi assim que Carolina, mesmo desafiando a nonna, criou Bertilla, aquela que lhe seria filha fiel e amorosa por toda a sua vida.
"Minha avó pegava a varinha e dizia: Dodeli, não vê que a tua mãe tá cansada de trabalhar e você aí uma grandona. Ela dizia que eu era uma 'cuculona'. Cuculona quer dizer adulada. — Onde é que se viu a tua mãe subir a escada do sótão pra te levar dormir, Dodeli. Daí ela dizia: — A gente tem que amar os filhos mais não pode mostra os dentes.
Ela tocava os gatos. Os gatos da minha avó eram enormes. Mas nada de ficarem dentro da cozinha. Dentro de casa não tinha gato. A mesma vara que ela usava pra toca os gatos, ela tocava a gente também. Uma vez eu sentei à mesa e levantei pra ver o que tinha, foi assim, querendo uma massinha crua. Então ela me deu 'uma varadinha' e disse: '– teretetê teretetê' falava 'vai pra fora, brinca, que daqui a pouco fica pronto, teretetê'. 'Teretetê' era uma maneira de chamar a atenção."
BERTILLA BOSCARDIM


BERTILLA BOSCARDIM.

COISA DE CRIANÇA
Certa vez, Carolina resolveu levar Bertilla para o Centro de Curitiba de carroça. Carolina tinha muitas freguesas: na Rua Riachuelo, na Rua Fechada, no Largo da Ordem, no Bebedouro e na Rua 13 de maio. Na Rua 13 de maio, havia uma freguesa italiana. A filha do casal tinha aproximadamente cinco anos, e Bertilla tinha dois anos. A menina, filha do casal, tinha uma linda boneca, maior do que ela mesma. Bertilla nunca havia ganho uma boneca até aquele momento, não uma de verdade, apenas bruxinha de pano feita por suas irmãs mais velhas.
Quando Bertilla viu a menina, no topo da escada com aquela maravilhosa boneca, prontamente saiu do lado de sua mãe, que estava com os braços cheios de lenha, chegou perto da menina e agarrou a boneca. Uma boneca linda, que os olhos de Bertilla jamais haviam visto. Simplesmente ficou agarrada. Foi um tal de agarra-agarra. Puxa para lá, puxa para cá. Bertilla chorou, a
menina também. Choraram de um lado e choraram do outro. Até que a mãe da menina encontrou uma solução para o problema, disse ela:
"— Carolina leve a boneca para sua casa".
Foi assim que Bertilla, com enorme alegria, voltou para casa, de carroça, com aquela enorme boneca, bem maior que ela. Mas conforme Carolina e a mãe da menina combinaram, a boneca seria devolvida no dia seguinte. E assim foi uma grande tristeza para Bertilla. De noite dormiu agarradinha com a boneca, no dia seguinte, acordou sem a boneca.
"Sessenta anos depois, quando passo na frente desse sobrado, que ainda existe, tenho vontade de entrar naquela casa, bater a campainha. Sempre comento esse fato com meus filhos. Esse sobrado no início da 13 de maio, na esquina tem um colégio em seguida a casa. Permanece igual, sessenta anos após."
BERTILLA BOSCARDIM


A IRMÃ/MAMA
Bertilla não era paparicada somente por sua mãe, Carolina. A despeito do pensamento da nonna Beta, a irmã Felicita também mimava a caçula. Felicita cuidava de Bertilla principalmente quando a mãe ia ajudar o pai no moinho. Carolina era muito prestimosa e trabalhadora. Fazia o serviço caseiro de limpar, cozinhar; fazia o serviço da roça, tal como plantar, colher; e também os serviços do moinho recebendo as carroceiras que deixavam o milho e buscavam o fubá no moinho dos Boscardin. E, para tanto, dispunha dos préstimos de Felicita, que, por tanto cuidar da Bertilla, era chamada de mama pela pequena.
Felicita aceitava ser chamada de mama pela irmã. Era até uma brincadeira gostosa, assim como uma brincadeira de casinha, mas nem sempre as coisas saiam de acordo.
Naquela época, Felicita já começava a receber as visitas de rapazes que queriam namorar a moça. Os namoros da época eram
muito ritualísticos e obedeciam a um padrão bastante característico. Começavam com trocas de olhares. Seguiam com a oferta de um bilhete amoroso, música ou presente simbólico. Continuavam com passeios e idas aos cinemas. Prosseguiam com visitas a casa da moça e se consumavam com o pedido do pretendente ao pai da moça, que fazia gosto ou não. E foi na fase das visitas que Felicita teve alguns problemas com a caçula Bertilla.
— Felicita — disse o pretendente parado ao lado de fora do casarão. — Como vai? — respondeu a adolescente entusiasmada e tímida com a aparição do rapaz. — Vim te convidar para ir ao cinema no domingo. — ia avançando o pretendente.
BERTILLA BOSCARDIM
Tudo seguindo o trâmite sem maiores percalços até que....
— Mama, mama, vem aqui pra dentro — ia Bertilla ao encontro de Felicita para puxar a saia.

A IRMÃ DE BERTILLA, FELICITA
— Escuta aqui ela é tua irmã ou tua filha?
— Não, é minha irmã.
BERTILLA BOSCARDIM
Felicita então saia totalmente envergonhada, pedindo desculpas ao rapaz e seguia com a menina para dentro de casa.
— Nunca mais faça isso! — dizia Felicita com o dedo em riste apontando para a pequena Bertilla.
— Mas eu fiquei sozinha. — respondia Bertilla.
— Não interessa, não faça mais isso, senão eu vou ficar solteira pro resto da vida entendeu? — alertava Felicita sobre o problema.


E foi assim que Felicita perdeu alguns pretendentes naquela época. Mas a pesar das contrariedades. Felicita e Bertilla continuaram a fortalecer aquele laço de irmãs, e também aquele laço de "maternidade".
"Felicitá é uma das minhas irmãs, e eu Bertilla a considero como segunda mãe. Quando minha mãe saia, Felicitá me dava carinho de mãe, com seus olhos verdes e cabelos encaracolados castanhos claros, pele clara. Seu amor brotava no olhar, então eu também a amei e continuo amando. Lembro quando ela se casou. Eu chorava, pois sempre dormia com ela abraçadinha."


BERTILLA BOSCARDIM
BERTILLA E IRMÃOS.
BERTILLA BOSCARDIM
A IRMÃ DE BERTILLA, FELICITA E ESPOSO.
E ESPOSO.

A LOUCA
A pequena Bertilla às vezes ia dormir na casa da Tia Maria, mais conhecida como Marieta. Casada com Pedro Maziozeki, Marieta morava perto do hipódromo conhecido como Prado Velho. Bertilla adorava ir na casa da tia, pois lá sempre havia uns doces diferentes e a prima para brincar. Entre a casa da tia Marieta e local de trabalho do tio Pedro havia um asilo de doentes mentais. O então chamado Asilo Nossa Senhora da Luz. Bertilla e sua prima, filha da tia Marieta, sempre levavam a marmita para o tio Pedro na hora do almoço e passavam ao lado do asilo que tinha um alto e longo muro branco em sua volta.
"Meu tio trabalhava na Rede Ferroviária. Rede de Viação Paraná-Santa Catarina. O asilo ficava no meio do caminho. A gente levava comidinha na hora, pra ele comer quente, era uma marmitinha. A marmita na verdade era grande, mas ele era magro."
BERTILLA BOSCARDIM
Certo dia, lá pelas 11 horas...
" — Vocês, levem lá para o tio essa comida — disse tia Marieta."
BERTILLA BOSCARDIM
Lá saíram as duas meninas caminhando ao lado do muro do asilo, rumo à Ferroviária.
"E uma louca pulou aquele muro e quase caiu em cima de nós duas. Ela tava toda de branco, meu Deus, eu sempre lembro desse fato. Meu Deus, quase em cima de nós, foi uma gritaria... Depois eu voltei tremendo, de noite eu não dormia, daí a minha tia disse: — Aconteceu aquele dia, mas não é todo, isso de alguém pular um muro tão alto."
BERTILLA BOSCARDIM
"Nos éramos pequenininhas, não, mas antigamente era comum, eu com sete anos já ia comprar alguma coisa que meu pai me mandava no Centro, era pegar o ônibus e descia ali, era tudo juntinho. Nós estávamos distraídas, conversando, eu levava um pouco, porque era uma marmita grande, depois feito uma trouxinha assim, bastante pano assim pra manter quente. E qual foi a bela surpresa quando vi uma coisa cair em cima de nós. Aí eu dei um grito, e aí vi

aquela senhora toda assim, despenteada, vestida com uma roupa branca, um camisolão branco."
BERTILLA BOSCARDIM
— Isso é comum aqui, não é a primeira vez que acontece de ela subir numa árvore, alcançar o muro e pular — disse a primi -
nha aumentando o desespero de Bertilla.
— Aí meu Deus. Que meu pai venha aqui me buscar, porque eu não quero mais ir levar marmita para o meu tio — retrucou Bertilla
— Nós vamos dormir em três em uma cama, vocês não vão ficar com medo — assim a tia arrumou a situação.


BERTILLA BOSCARDIM E FAMÍLIA NA CHÁCARA BOSCARDIN.

A PEQUENA AJUDANTE
"Sim, sim as mulheres eram tal como homens, trabalhavam. Tinha umas irmãs minhas que se saíam melhor do que nós, homens no moinho, principalmente na parte comercial. As minhas irmãs, na parte comercial, eram as catedráticas, danadas. E mulher gosta de dinheiro, não gosta?
Gosta. [Risos]. E elas eram maravilhosas, boas na matemática, uma beleza! Minhas irmãs também eram pé-de-boi para trabalhar, e todas as italianas antigamente eram assim. Italianas de Santa Felicidade aqui, surravam homens em muitos trabalhos."
ÂNGELO BOSCARDIN
"Além de eu acompanhar meu pai pro Centro, a minha tarefa era lavar os sacos;

saquinhos brancos que eram vendidos com o fubá, quirera, milho moído, essas coisas tudo em grande quantidade; não havia os cartuchinhos. Eu lavava os saquinhos, era a minha tarefa; isso era umas duas vezes por semana, não havia Brastemp, não! [Risos]
Era no rio mesmo, com uma tábua; a gente se ajoelhava, com sabão caseiro, e isso era a minha tarefa na família; enquanto minhas irmãs lavavam a roupa, uma lavava a roupa branca, a outra lavava a roupa escura. Mas a minha tarefa, por ser, como é que se diz...
A caganhara da família, a caçula, era menor, ele dizia: 'tá aqui ó, tua trouxinha de saco'. E eu ia com muita alegria, com muito carinho, com muito amor... E eu fazia isso com muita... Com muita alegria."
BERTILLA BOSCARDIM


CARROÇA COM MILHO NO MUSEU DA POLENTA (DÉCADA DE 1980).
BERTILLA E IRMÃOS.

A POLENTA
Os Boscardin consumiam diariamente três polentas de um quilo. Comiam polenta de manhã. A polenta era o prato preferido da família e também o alimento mais forte, que dava energia para as tarefas diárias. Mas também havia queijo, salame, ovo, la fortaia, ricota e requeijão.
"Polenta pela manhã, ao meio-dia e à noite. Polenta sempre foi o prato principal para acompanhar todos os outros pratos. Exemplo, carne de boi cozida e feito salada, e polenta também, nós levamos na roça e , por ser um alimento de sustância, nos fazia fortes. Eu meus irmãos trocávamos o pão pela polenta e agora vou falar como essa iguaria do milho se transformava em polenta. Em primeiro lugar, tinha que haver moinhos de pedra para moer, também movido a água da maneira artesanal. Lógico, nessa época, não havia eletricidade, os moinhos eram movidos por uma grande roda de água, e um grande tanque de água, e uma bica dentro do moinho, e as pedras onde o milho era triturado todos
os dias pela manhã – já tinha imensas filas de carroças pela rua na época. Havia mais de 150 carroças indo à cidade, mas era costume na descida dos Boscardin deixar o milho para a troca do fubá, e palha de trigo ou centeio havia no moinho triturados; cortador de palha; ração para os animais, cavalos. Mas havia canjica, quirera grossa e fina, fubá grosso e fino, milho moído, fubá branco e amarelo. Esse moinho de que estou falando é histórico, eu, Bertilla, tenho alegria de voltar a esse passado feliz que eu tive, sem exagero de curtir a minha grande família composta de 13 irmãos, mãe, pai e avós, com a participação de cada membro de nossa família. Todos meus irmãos e irmãs tivemos participação, tivemos que arregaçar as mangas e ajudar na fabricação do fubá e derivados do milho, esse angu que deu certo que é conhecido pelo Brasil e sem medo de errar por esse mundo a fora. Quem resiste a uma polentinha frita. Combina com tudo, com frango, carnes, queijos, salames e assada na chapa de fogão a lenha, a polenta brustulada."
BERTILLA BOSCARDIM


O CASTIGO
"Na minha adolescência os passeios foram restritos para mim, porque meu pai Francisco era 'mão fechada. Os passeios se restringiam a sentar nas pedras e molhar os pés na cascata do rio ou então ir ao cinema da família Toaldo.
Como o dinheiro era curto, se eu comprasse o bilhete, eu não podia comprar as balas ou chocolates. As minhas amigas compravam tudo, faziam o piquenique no cinema.
Certo dia, contrariando minha educação paterna, esperei começar a sessão e, quando estava escuro, em vez de dar o bilhete para o bilheteiro, dei um papel de bala, que passou como se fosse o bilhete.
Quando minha mãe ficou sabendo da história, fiquei de castigo por um bom tempo sem ir ao cinema."
BERTILLA BOSCARDIM





O CASAL NILTO E BERTILLA PARTE
QUATRO


"TUDO ERA MAIS FÁCIL. NA HORA ERA RESOLVIDO. LÁ IAM A BERTILLA E O NILTO. TUDO ERA DIFERENTE, NÃO HAVIA OBSTÁCULO."
(BERTILLA BOSCARDIM)


NILTO PEREIRA
Nilto Pereira era um jovem vindo de Jaraguá do Sul, cidade do estado de Santa Catarina. Nascido em família humilde, foi para Curitiba em busca de melhores condições de trabalho e de vida. Chegando em terras curitibanas em 10 de setembro de 1952, Nilto começou a trabalhar na automecânica Kwasinski, que ficava nas imediações do bairro Água Verde, onde veio a fixar também a sua residência.

NILTO PEREIRA.


A MENINA DE TRANÇAS
Francisco Boscardin (o pai) era um homem trabalhador e honesto. Sempre preocupado com a boa educação dos filhos, não poupava esforços, principalmente para dar conselhos à gurizada. As filhas, dentro desse contexto, tinham atenção reforçada. Francisco sempre dizia:
"— Se assobiarem pras vocês, não olhem pra trás, entenderam?"
E assim as meninas obedeciam ao diligente pai que as tinham sob grande cuidado. Esse ensinamento fez toda a diferença na vida da menina Bertilla Boscardim.
Em 1950, quando a pequena tinha 11 anos, havia festas no então Recanto Cascatinha, atual Restaurante Cascatinha. Nessas festas, reuniam-se cerca de mil pessoas que almoçavam e passavam as tardes de domingo passeando e paquerando. Muitos dos namoros e casamentos de Santa Felicidade tiveram início nessas festas, que recebiam jovens não só de Santa Felicidade, mas também do Centro de Curitiba e outros bairros,
às vezes para desgosto e preocupação das moçoilas, filhas dos colonos, que se encantavam com os modos dos forasteiros. E foi em uma dessas festas que a menina Bertilla teve seu destino amoroso iniciado.
Estava nessa festa (1952) um jovem mecânico chamado Nilto Pereira — rapaz do bairro Água Verde que, com os amigos, estava alerta às meninas que ali passeavam. Quando Nilto viu passar a menina de tranças, prontamente assobiou para chamar a atenção da moça.
"— Fiu-fiuuuuu! — assobiou para a moça. "
Mas, para a surpresa do moço, três amigas olharam para trás, mas a menina de tranças não. Simplesmente porque se lembrou dos ensinamentos do pai quanto ao comportamento de uma menina educada. Então, naquele momento, Nilto comentou com um dos amigos:
"— É aquela menina que eu quero — apontando para Bertilla.

— Qual? — perguntou o amigo.
— Aquela última da fila, aquela de tranças.
— Mas ela é uma criança.
— Pode ser, mas ela vai crescer.
— Mas por que ela, Nilto?
— Foi a única que não olhou pra trás quando eu assobiei. É com essa menina que eu quero me casar."
"Ele me viu e me escolheu, e falou ele para seus amigos sentados no bosque a uns 100 metros da casa de meus pais. Naquela época, o dinheiro era pouco e controlado, então meu passeio frequente era sentar e molhar os pés no bosque do Cascatinha. Nilto disse: 'daqui a dois anos venho procurar essa menina que me chamou tanto atenção'. Mas ele não esperou dois anos. Isso foi num domingo, já na segunda ele se pois a me procurar, sua imaginação virou uma obsessão, queria ele
ver aquela menina de trança, descalça e tamancos nas mãos. Então emprestou um carro da oficina para me procurar. A procura se iniciou nas proximidades do bosque..."
BERTILLA BOSCARDIM
Depois disso, Nilto levou dois anos procurando a moça de tranças, sem sucesso. Perguntava pela menina em todas as festas que participava em Santa Felicidade. Até que um dia a reencontrou, mas não ouviu coisas muito favoráveis a ele. A jovem Bertilla naquele ínterim havia-se apaixonado por outro jovem.
"[...] eu tinha um cabelo tão grande que eu tinha uma trança que até guardei para os 15 anos da minha filha."
BERTILLA BOSCARDIM


NILTO PEREIRA E AMIGOS (JARAGUÁ DO SUL-SC).

A PAIXÃO
Bertilla com 12 anos de idade frequentava aulas de costura de uma professora chamada Arvelina Costa. Lá, havia também algumas amigas. Entre uma aula e outra, um jovem rapaz muito bem vestido aparecia, pois era amigo da professora. Com o seu jeito simpático e extrovertido, chamou a atenção da menina, que se apaixonou rapidamente, mas o sentimento não era correspondido. Aliás, Bertilla várias vezes se submetia a presenciar o rapaz jogando charme para uma amiga, mas sem demonstrar constrangimento, só pelo simples fato de poder estar perto daquele que havia despertado tamanho e intenso sentimento: a paixão.
A paixão de Bertilla era alimentada por cenas e circunstâncias muito peculiares. Certa vez, estava ela com as amigas e o rapaz na fila do Cine Luz, no Centro de Curitiba, quando uma das amigas tentava abrir uma trouxinha de lenço, de nó bastante apertado, onde ela havia guardado o dinheiro do ingresso. Tendo muita dificuldade, o rapaz se ofereceu para abrir, fazendo
divertidas caretas, com os dentes ia desatando o nó. Não precisou mais que isso para botar as adolescentes a cair na gargalhada, era um verdadeiro palhaço o rapaz, mas com uma grande diferença, era elegante e bonito. Para Bertilla, encantador.
Passado algum tempo, houve uma aproximação entre Bertilla e o rapaz. Trocaram fotos e tiveram um início de namoro. Até que um dia o destino traçou caminhos diferentes para os dois. O início de um namoro restringia-se a algumas visitas do pretendente à casa da moça. Essas visitas obedeciam a regras rígidas e claras a respeito de horários e comportamento. A jovem Bertilla seguia as regras e orientações dos pais com aceitação e educação, mas não pode aceitar o que se seguiu naqueles dias.
Estava o rapaz e Bertilla conversando, sentados em uma namoradeira, quando ouviram uma buzina na entrada da propriedade dos Boscardin. O rapaz reconheceu a buzina, levantou-se e caminhou de encontro ao motorista que prontamente lhe falou.

"— Minha irmã está passando mal e pediu para eu vir aqui buscá— lo, ela quer te ver.
— assim disse o motorista.
— Bertilla eu tenho que ir, mas volto outro dia. — despediu-se o rapaz com certo nervosismo e olhar inseguro."
Depois disso, passaram-se alguns dias e lá estava o rapaz conversando com Bertilla, na namoradeira, quando a buzina voltou a tocar, e a cena se repetiu como na primeira vez. Lá ia novamente o rapaz, passageiro do carro que estava a buzinar.
Passaram-se mais alguns dias e lá estava novamente o rapaz a conversar com a jovem Bertilla sentados na namoradeira, no casarão dos Boscardin, quando, pela terceira vez, ela ouviu a mesma buzina, só que
naquele dia a jovem estava disposta a não se calar.
"— Bertilla eu tenho que ir, mas volto outro dia. — despediu-se o rapaz com certo nervosismo e olhar inseguro.
— Você pode ir, mas não volte mais. Dei-te três chances. Não quero que você volte mais."
Depois daquele dia, o rapaz não voltou mais à casa dos Boscardin. Bertilla chorou por uma semana seguida, sempre olhando para a pequena foto três por quatro que escondia em baixo do travesseiro. Uma semana de dor e sofrimento, mas da qual não se arrependeria em momento nenhum dos anos vindouros.



O ENCONTRO COM NILTO
"E eu fui contrariada, eu não queria ir naquele baile de dia. Para mim baile era à noite. Eu não queria ir."
BERTILLA BOSCARDIM
Foi em uma tarde de domingo. Lá estavam Bertilla e as irmãs em um baile na Sociedade Iguaçu, em Santa Felicidade. A orientação do seu Francisco e dona Carolina era para que as moças chegassem em casa antes do anoitecer, tarefa difícil para as moças, pois quem animava as festas não era nada mais nada menos que "Bepe e seus solistas", a melhor orquestra baile da época. Às 15h, os rapazes e as moças saíam do baile e rezavam na igreja por uma hora e voltavam.
Moças e rapazes elegantemente vestidos. Rapazes de terno e gravata, moças de taier e vestidos. Glamour a toda prova. Então, pelas contas da moças, tinham poucas oras para se divertirem antes de ter que voltar para casa, e assim faziam.
Lá estava Nilto com seus amigos quando viu a menina passar.
Aquela mesma menina que havia procurado por mais de dois anos sem sucesso. Então sem titubear foi ao encontro da moça. As moças não pagavam, mas também não podiam dar "balaio" (recusar um convite para dançar). Havia exceções, é claro.
"— Olá, lembra de mim — disparou o pretendente.
— Não, acho que não — respondeu a jovem.
— Eu estava no bosque da Cascatinha com os meus amigos há dois anos atrás e assobiei pra você, mas você não olhou.
— continuou sem muito sucesso.
— Hummm, acho que sei — disse Bertilla com timidez.
— Então, naquele dia eu disse pra mim mesmo que iria me casar com você, que iria te procurar até que a encontrasse.
— Você tá louco!
— Não tô louco não, eu sei muito bem o que tô falando. Eu tenho uma namorada, mas eu termino o namoro se você aceitar namorar comigo.
— Imagine, você só pode estar brincando."

E, assim, passaram-se as poucas horas que as meninas podiam estar naquele baile. Nilto na ofensiva e Bertilla esquivando-se, porém envaidecendo-se até chegar a hora da despedida. Bertilla e as irmãs pegaram um ônibus quando o baile acabou, normalmente as coisas corriam sem grandes surpresas, mas...
"— Eu vou com vocês — disse Nilto querendo subir as escadas do ônibus.
— Você tá louco? Não vai não, eu sou uma menina não tá vendo.
E foi assim que Bertilla dissuadiu o pretendente que queria acompanhá-la até sua casa para garantir o conhecimento do paradeiro da moça.
— Eu vou te procurar, eu vou te procurar! — gritava Nilto acenando do lado de fora do ônibus, correndo e sorrindo para a menina encabulada.
— Ele é bem bonito Bertilla — disse a irmã.
— Você tá louca, eu ainda quero aproveitar muito antes de namorar — assim concluiu Bertilla."
Meses se seguiram depois disso. Mas Nilto diligente e persistente encontrou o domicílio da jovem Bertilla, que mesmo tendo se escondido durante esse tempo, acabou por aceitar a proposta de Nilto.
Nilto teve paciência, persistência e sabedoria. Mesmo depois da moça contar-lhe da recente e frustrada paixão em que ela esteve envolvida.
"– Com o tempo você esquece dele – disse Nilto."
Nilto Pereira era um mecânico de "mão cheia". Paciente e caprichoso, e assim por várias vezes emprestava o carro de seus clientes para fazer uma visita à Bertilla.
No começo, não houve facilidades por parte de seu Francisco (pai), os horários eram combinados.
Visitas aos domingos, mas Nilto arrumava um jeito de ir às quartas-feiras também. O rapaz morava no bairro Água Verde, e quando tinha que voltar para casa, não eram raras as vezes que tinha que andar um bom trecho a pé e sem iluminação, principalmente nas proximidades do portal de Santa Felicidade, que naquela época ainda não existia. A pé, porque o motorista do ônibus não parava, talvez com medo de assalto, não se sabe. O fato é que Nilto Pereira foi persistente. Quando Nilto quis se aproximar de Francisco, perguntou à Bertilla: "— Do que seu pai gosta? perguntou Nilto. — De pescar, de caçar... — respondeu Bertilla.

E foi assim que Nilto conquistou a confiança de Francisco: pescando, caçando e demonstrando seriedade e responsabilidade. De fato, o futuro de Nilto parecia promissor aos olhos de Francisco. Nilto, mecânico de "mão cheia", tendo feito cursos de aperfeiçoamento, bom motorista. Só tinha um defeito: não era italiano e não morava em Santa Felicidade, mas para os negócios do moinho, um mecânico poderia ser bastante útil, e foi assim que tudo começou.



FAMÍLIA PEREIRA REUNIDA AO REDOR DA MATRIARCA FILOMENA DA SILVA PEREIRA, COM SEUS 11 FILHOS. (ANOS 2000)
NILTO PEREIRA E AMIGO.

O NOIVADO – VIAGEM A JARAGUÁ
A família de Nilto morava em Jaraguá do Sul-SC, então saíram de Santa Felicidade: Francisco, Carolina, Nilto e Bertilla com um objetivo: conhecer o pai de Nilto.
Na frente, dentro da cabine do caminhão estavam Francisco, Carolina e Nilto. Na carroceria Bertilla, sentada em um banco de madeira improvisado. Carroceria fechada e uma janelinha de comunicação com a cabine. Bertilla feliz da vida.
Não cabiam quatro pessoas na cabine. Francisco era um homem corpulento. E assim foram. Estrada de terra, muitos buracos e solavancos, mas muito entusiasmo e satisfação. Naquela época, as dificuldades eram superadas pelo fascínio do desconhecido. Uma simples viagem se transformava em um grande acontecimento e aventura. Nada era problema, tudo era desafio.
"Nilto dirigindo e eu em cima da carroceria. Não tinha asfalto, era uma estrada que vai para as praias depois entra pra
Guaramirim. Nossa, aqueles socos, eu ia lá para o teto, mas foi assim, um fato... Fomos para Jaraguá do Sul na casa dos meus sogros. Ficamos uns dias lá, fomos numa sexta-feira e voltamos no domingo à tarde. A minha sogra tinha vindo para o noivado. E o meu sogro... eu não conhecia ele. Daí nos fomos lá pra conhecer ele, e pra ele conhecer meus pais. Fomos bem recebidos, eles eram assim: umas pessoas humildes, era uma casa sem pintura, mas aquela higiene, aquela limpeza, aquela coisa maravilhosa."
E foi assim que Bertilla chegou em Jaraguá, descadeirada, despenteada.
"— Niltooo pelo amor de Deus pare um quilômetro antes pra eu me ajeitar — disse Bertilla."


BERTILLA BOSCARDIM

OS PASSEIOS
Com Nilto trabalhando firme no moinho, também não faltaram grandes momentos de lazer e de aventura. Em um caminhão, reuniam-se famílias de amigos e parentes e iam para as praias do Paraná. Certa vez, até uma termpestade pegaram, mas nada fazia diminuir o entusiasmo pelas viagens ao litoral.
"— Nilto segura firme pro toldo não voar — disse Bertilla durante um temporal.
— Tô segurando! — gritou Nilto segurando a estaca pro vento não levar.
Tudo era mais fácil. Na hora era resolvido. Lá iam a Bertilla e o Nilto. Tudo era diferente, não havia obstáculo. Saímos muito na época. Praias, piqueniques na serra Velha, íamos a Morretes, Paranaguá, Antonina. Comíamos bons pratos típicos e peixe. Muitos frutos do mar em Matinhos na casa do Antonio e Maria Pedri. Vivemos dias felizes, além da comida e dos passeios".
BERTILLA BOSCARDIM


O TEMPORAL. FRANCISCO BOSCARDIN E NILTO PEREIRA (DIRIGINDO O CAMINHÃO).
O PRESENTE DE NOIVADO
A princípio Nilto teve um pouco de receio na escolha do presente de noivado porque era um rapaz de origem humilde, mas aos poucos Bertilla foi tranquilizando o rapaz.
"— Não é a riqueza o que adianta — disse Bertilla."
Nilto foi bastante franco, desde o início.
"— Eu nada tenho, mas o que eu tenho pra dar é o meu amor. Quando olhei pra você já sabia que ia ser você — falou Nilto em tom apaixonado."
No dia do noivado Nilto presenteou Bertilla com um relógio Lincoln. Confessou anos mais tarde, depois de casado, que aquele presente lhe havia custado dois meses de salário.


AS IRMÃS BERTILLA E ELENA BOSCARDIN COM SEUS NOIVOS NILTO PEREIRA E JOÃO BOTTEGA.

"Para o casamento eu fiz uma loucura. Eu fui cortar o cabelo sem ele saber. Ele ficou quase um mês sem olhar pra mim, sem olhar não, conversando comigo, mas mudou, quase que perdi o noivo, ele gostava de cabelo comprido. Eu mesma fiz o arranjo, com flores de laranjeira, ficou um bouquet lindo".
BERTILLA BOSCARDIM
"— Não é a Bertilla que eu conheci e pronto, vou me casar com uma Bertilla que eu não conheço — disse Nilto".
"— Tá sabendo da última? Vai casar a scaganhara (a caçula). A filha da Carolina com o Francisco. Vai casar com um senhorão de Santa Catarina (senhorão quer dizer um rico de Santa Catarina). Mas pelo amor de Dio, não vá contar isso pra ninguém, é um segredo, fui na missa e vi na porta, um

O CASAMENTO OS PRIMEIROS ANOS DE CASADA
"Os primeiros anos de casamento fizeram parte de uma experiência nova. Me tornei uma jovem senhora com 18 anos, a partir dali eu tinha uma lar e uma família.
senhorão de Santa Catarina — disse uma carroceira à outra antes do casamento.
— Meu Deus diz que foi o casamento mais bonito de Santa Felicidade. Um casamento que tinha tanta coisa boa pra comer e beber. Trouxeram cozinheiro e confeiteira do Centro. Foi o que aconteceu — disse uma carroceira à outra depois do casamento."
BERTILLA BOSCARDIM
Fato curioso aconteceu no dia do casamento. Os pais de Bertilla não se encontravam na igreja durante a cerimônia. Era costume das famílias que os pais ficassem arrumando a festa de recepção dos recém casados. E assim foi. Quando Bertilla e Nilto chegaram casados ao casarão, lá encontraram os pais de Bertilla ansiosos por cumprimentar e felicitar o novo casal.
Nilto era bastante ciumento, mas não interferiu em nada, até foi um 'tempero' para o nosso relacionamento."
BERTILLA BOSCARDIM



CASAMENTO BERTILLA E NILTO PEREIRA EM 10/05/1958. PARÓQUIA NOSSA SENHORA DAS MERCÊS.

A FÉ
"Meu sogro era uma pessoa muito diferente da minha sogra. E muito diferente do meu pai. Ele era assim com todo mundo até com meus filhos. Meus filhos até temiam de ficar perto dele, ele era muito rígido. Já minha sogra, uma menina, corria atrás de balão... Meu sogro era assim, não gostava de barulho. Quando a gente ia com os netos lá para Jaraguá, principalmente na Páscoa, minha sogra nos presenteava, porque lá é o costume, com muito chocolate, ovo da galinha bem pintadinho, balinhas e amendoim. E era novidade para os meus filhos."
BERTILLA BOSCARDIM
Bertilla, Nilto e filhos foram passar algumas Páscoas em Jaraguá. Lá algumas diferenças começaram a aparecer entre ela e o sogro, principalmente na forma como Bertilla via os ritos religiosos e o significado deles. Na verdade, Bertilla estava começando a questionar a maneira como alguns símbolos religiosos católicos estavam influenciando as pessoas, nunca desvalorizando os católicos, mas apenas questionando alguns símbolos. Bertilla começava a colocar em prática alguns dos mais modernos conceitos de Programação Neurolingística (PNL), sem mesmo
ter tido contato com essa área do conhecimento humano, muito menos com a teoria.
A Programação Neurolinguística é uma forma de conhecimento aplicado para se obter mudanças no comportamento humano. Várias outras formas são mais conhecidas, tais como a psicanálise, análise transacional e outras.
Os criadores da PNL elaboraram diversos mecanismo e ferramentas para que as pessoas possam ter benefícios para suas vidas tais como: apreender uma nova língua mais rápido, livrar-se de dogras, melhorar o desempenho nos esportes, livrar-se de hábitos destrutivos. A base da PNL está na máxima: cada símbolo, e aí podemos incluir as palavras, carrega uma energia ou emoção que afeta o nosso comportamento para melhor ou para pior.
Bertilla intuitivamente já havia percebido o quanto um símbolo pode afetar o comportamento das pessoas, e então começou a questionar algumas tradições religiosas.
"Mas no dia de sexta-feira ele não deixava as crianças mexerem na terra. Meu filho mais velho sempre gostou de ferramenta,

martelo, então ele achou por lá um martelinho do meu sogro com um preguinho e começou a pregar."
BERTILLA BOSCARDIM
"— Hoje não é dia de fazer isso — disse o sogro ao neto de dois anos. — O avô vai te dar esse martelo, mas hoje não..."
Bastou Bertilla ouvir para chamar Nilto em um canto.
"— Olha nunca mais me chame na semana Santa pra ir na casa do teu pai.
Faziam tudo um dia antes, daí no outro dia comiam por exemplo: um amendoim, uma coisa já pronta, uma batata-doce, uma mandioca, uma coisa assim, nada feito na hora quente. Não varriam casa, eu estranhava aquilo porque nós fazíamos normalmente, eu achava que Jesus foi crucificado sim, mas há quantos anos ele já havia morrido e ressuscitado".
BERTILLA BOSCARDIM
"— Aconteceu há dois mil anos. Ele teve morte na cruz, mas ressuscitou. Se eu acredito que Jesus tá crucificado, eu tô crucificando ele de novo, porque eu não tô acre-
ditando que ele está entre nós, vivo — disse Bertilla ao sogro que saiu rapidamente de perto dela — Eu vejo ele como vencedor, eu vejo ele como Cristo ressuscitado, não como Cristo morto."
Bertilla não queria mal ao sogro, apenas queria que os filhos fossem influenciados por uma imagem mais positiva daquele que ela havia escolhido como salvador. Ela estava aplicando a PNL sem saber disso.
"Tinha a imagem dele morto porque ia nas procissões quando era bem criança, mas depois que eu fui vendo que não era bem assim. Então passei a conhecer e acreditar que a cruz está vazia".
BERTILLA BOSCARDIM
Os pensamentos de Bertilla têm eco entre os adeptos da neurolinguística. Uma cruz vazia representa melhor o Cristo ressuscitado. Mas, o símbolo que remonta aos começos da religião é o Ichthys, (significa "peixe" em grego), peixe estilizado, sendo também um acrônimo de Iesus Christus e ou Yicus Soter ("Jesus Cristo filho de Deus Salvador").


O MOINHO DOS BOSCARDIN
Francisco percebeu as qualidades de Nilto e o convidou para trabalhar no Moinho dos Boscardin. Para não ser direto demais, Francisco ao comprar um caminhão para o moinho perguntou a Nilto:
"— Agora temos um caminhão, mas ainda precisamos de um motorista. Que tal ser o motorista? — falou Francisco para Nilto

— Pode contar comigo — respondeu Nilto, sabendo que se tratava de um convite para participar dos negócios do moinho.
Para Nilto adentrar efetivamente na sociedade, teve que abrir mão de algo que muito lhe apetecia: sua moto. Nilto vendeu sua moto para levantar capital para a sociedade. A partir dali, o mecânico Nilto Pereira empreendia no negócio de moagem de milho, trabalhando com o sogro e o cunhado.
OS CLIENTES DO MOINHO DOS BOSCARDIN
"Mas naquela época a gente fornecia para todos os grandes armazéns. Eram os grandes armazéns da família Senff na Rua Westphalen, que depois viraram supermercados. Esses armazéns de esquina... esses pequenos armazéns. Fornecíamos para todos eles: fubá, quirera, milho, canjica. Tudo ensacado, não era em pacote. A gente só vendia em arroba. Quinze quilos era o mínimo que a gente vendia. Então tinha gente que comprava três arrobas, quatro arrobas, cinco arrobas. O Hospital
Nossa Senhora da Luz foi o hospital que mais comprou e usou do Moinho Cascatinha; às vezes ia uma carga por semana de mais de 1200 ou 1500 quilos de fubá. Naquela época, nós levávamos também o milho moído, pois o hospital tinha muita criação. No hospital, eles tinham uma criação de gado, de vacas pra ter leite para os pacientes. Eles até tinham pacientes em condições de trabalhar e que cuidavam das vacas. Então, o hospital comprava milho moído ou farelo."
BERTILLA BOSCARDIM


O MOINHO PEREIRINHA
Com o passar do tempo, Nilto já experiente, crê por bem separar-se e ter o próprio moinho. Naquela época, Nilto conhecia Alfredo Vendramim, proprietário da Carpintaria São Judas Tadeu. Seu Alfredo, percebendo que o jovem queria ter o próprio negócio, ofereceu parte das instalações da carpintaria para que Nilto montasse um moinho. Como parte da ajuda, Alfredo combinou não cobrar aluguel durante dois anos.
Assim, nasceu o Moinho Pereirinha. Já em 1972 começou a construção do moinho na Avenida Toaldo Túlio saindo do aluguel para um imóvel próprio.




MOINHO PEREIRINHA DÉCADA 1990.
CONSTRUÇÃO DO MOINHO PEREIRINHA 1973-4.
MOINHO PEREIRINHA DÉCADA DE 1980.



PASSEIO DA FAMÍLIA NO PARQUE OURO FINO. DA ESQUERDA PARA DIREITA: PAULO CEZAR, NILTO, BERTILLA, MILTON, ANTONIO PEDRI (CUNHADO DE BERTILLA).
CAMINHÃO DO MOINHO PEREIRINHA. NILTO E SEU IRMÃO ARLINDO FAZENDO ENTREGAS.
1972
Em 1972 nasce Patrícia, a filha mais nova do casal Nilto e Bertilla. Dias depois do nascimento da menina, Nilto chega em casa com uma surpresa.
"— Trouxe um presente — falou Nilto mostrando uma boneca grande.
— Mas Nilto, é uma boneca muito grande pra uma recém-nascida! – exclamou Bertilla.
— Lembra da história da boneca, a história que você me contou sobre a tua infância?
— perguntou Nilto.
— Sim, eu lembro.
— Então. Essa boneca não é para a Patrícia. Essa boneca é para você — concluiu Nilto dando um beijo em Bertilla, que o abraçou com lágrima escorrendo dos olhos."
BERTILLA BOSCARDIM


OS IRMÃOS MILTON, PATRÍCIA E PAULO CEZAR NAS OBRAS DO MOINHO PEREIRINHA (1973).

5
AS ADVERSIDADES PARTE CINCO



"O
QUE DEUS ME DÁ DE BOM EU NÃO FICO PRA MIM, EU PASSO ADIANTE. O QUE DEUS ME DEU DE GRAÇA, EU TAMBÉM PASSO, E SE DEUS É MEU PAI, O QUE UM PAI QUER PARA O FILHO? O MELHOR."
(BERTILLA BOSCARDIM)


A PICADA DE COBRA–1987
Fomos a uma festa na casa do tio da Marlene (nora de Bertilla) a uns 40 quilômetros de Santa Felicidade, era noitinha. Eu não andava muito bem, estava com um pouco de gripe, meio resfriada, até disse para o Nilto:
"— Acho que não vamos.
— Não, vamos lá — a gente fica um pouco e logo volta — disse.
— Eu sei que não volta, vai virar uma festinha grande, e a gente não volta cedo.
Estavámos lá: Nilto, Bertilla e Patrícia, minha filha. Durante a festa, Janaina minha neta, filha do Luiz, tinha cinco anos, me falou:
— Vó, me leva lá num cantinho, eu já fiz na calça e minha mãe vai brigar, e quem tá no banheiro não sai mais.
— Sim, eu te levo.
Chegando lá, ela se acocorou, e eu fiquei de pé ali quando senti uma picada. Eu achei que era um borrachudo, uma coisa assim, uma butuca, uma coisa assim sabe e entrei

na claridade, olhei eu tinha dois pingos de sangue. O Nilto nem sabia que eu tinha saído com a menina, eu sai com ela meio escondidinho, assim que ele já percebeu que eu estava estranha, eu disse:
— Nilto vamos embora que eu já estou cansada.
— Deita ali no sofá — disse Nilto.
Eu dei uma deitadinha no sofá da casa do homem, e então eu fui pra casa tomei um comprimido pra gripe e um refrigerante. Eu tinha um pato assado, um pato pronto para assar, no outro dia de manhã, levantei chamei meu marido e fiz café. Nilto ia na missa no Cascatinha. Fiquei em casa preparando o pato. Coloquei recheio. Me agarrando nas paredes, consegui ascender o forno e colocar o pato. Acompanhei Nilto até o portão, como sempre fazia. Quando ele voltou, me chamou, mas não me achou.
Eu estava fechada no quarto com uma coberta de pena tremendo. Daí ele disse:
— Meus Deus o que você tem?
— Eu tô com febre. Eu batia o queixo de febre. Então Nilto falou pra minha irmã.
— Meus Deus, onde vou?
Nilto pediu socorro para o médico pediatra Dr. Luiz Acorsi.
— Venha ver o que aconteceu aí com minha
mulher, ela foi picada por algo aí que não se sabe, ela tá com febre alta. El não está bem, o que eu devo fazer?
Contei pra ele o que aconteceu, mostrei pra ele tudo, a minha perna já tava inchada, diminuiu a minha visão, eu sentia tontura, me agarrava nas paredes para andar, daí ele disse:
— Olha, isso aí essa manchinha de sangue essas picadas ali acho que foi de uma cobra, você me falou que foi num cortador de lenha. Cobra gosta desse lugar.
— No que, cortador de que?
— Onde corta lenha, que fica aqueles pedacinhos de coisas. Os bichinhos gostam de ficar ali. Eu vou te dar nome de um especialista, Dr. Ney José Lins de Alencar.
O médico atestou pelo tipo do furos que não podia ser escorpião, seria um furo. Não podia ser aranha, porque seriam quatro, então ele disse:
— É cobra!
— Dr. Ney é uma emergência, é uma vizinha aqui, tá feio o negócio — falou Dr. Acorsi.
Dr. Ney já tratava do meu filho, dava vacina porque meu filho tinha alergia. Alergia por comida, ele toma aquelas vacinas. Não conseguimos localizar ele no domingo, então fui na segunda-feira. Minha perna já estava bastante inchada do joelho pra baixo, um horror.

— Dr. Ney por favor acenda uma luz, o senhor tem uma lâmpada ali, eu acho que foi uma cobra que me picou. Contei e ele ficou apavorado.
— Dona Bertilla, meu Deus, a senhora não se internou?
— Eu não sabia o que fazer, como agir. O doutor, seu amigo, me deu o seu endereço e só.
— Foi cobra dona Bertilla.
Dr. Ney colocou na receita: Injeção antiofídica e o mesmo começou os primeiros procedimentos que duraram de início de março até mais ou menos dia 15 de agosto. Primeiro formaram umas bolhas brancas, depois amarelaram e depois vermelharam. Teve rompimento de veia. Minha perna começou inchar, inchar... ficou monstruosa.
Minha irmã vinha me atender. Não podia tampar, porque se grudasse saia tudo na pele. Eu dormia com um lençol fino sobre a perna, mudei o lado da cama com meu marido e ficava com a perna sobre uma banqueta fora da cama. Era inverno. Meu marido se aprontava com coberta grossa e eu só com aquele lençol, passei frio. O médico já tinha dito para o Cezar:
— Olha, tá no ponto de amputar, se dentro dessa semana uns três, quatro dias não tiver uma melhora.
Pra não passar pra cima, pra não subir do joelho, foi aí que eu entreguei a Deus. Foi aí que eu usei a minha fé, a fé que a gente não sabe o poder que tem. Se entregar pra Deus, confiar que Ele tudo pode, é isso que Ele quer ouvir de nós. Meu marido já tinha conhecimento da necessidade de amputar a perna. Por pomada estava difícil, a carne já cheirava mau, já tava podre mesmo, a gente já via até o osso.
— Bertilla, se ficar com essa perna exposta pode vim mosca e criar bicho, daí como é que fica?
Nilto ligou para o médico, e o médico disse:
— Daria pra passar um tipo de um creme e por uma faixa.
Mas também não deu certo porque aquela faixa quando tirava saia também pedaço de pele, pedaço. Meu marido me molhava de lágrimas, aquelas lágrimas que me molhavam o peito quando ele ficava em cima de mim pra poder lidar comigo. Ele chorava.
— Ai Bertilla, eu não sei como é que você arranja tanta força. Você conversa comigo como se nada fosse. Você não sente dor, as pessoas vem te visitar, você conversa como se fosse nada, você parece que não tá consciente do que pode acontecer."
BERTILLA BOSCARDIM


FALANDO COM DEUS
"Quando ele saiu, pensei: — mas então o negócio tá feio mesmo, pra ele ter chegado a esse ponto. Então falei com Deus.
— O Senhor, eu não aceito uma amputação, eu sou uma pessoa gorda, como é que eu vou me virar. Não, eu não aceito uma perna não! Quando nasci, o Senhor me deu uma mão com cinco dedos, outra com mais cinco, são dez. Me deu duas pernas, e eu quero voltar para o Senhor com minhas mãos e minhas duas pernas. Eu não aceito amputação. Se é pra ser amputada, o Senhor me leve, me leve agora que eu estou sozinha, agora que meus filhos não vêem, não vão sofrer de me ver morrer, não vão sofrer de me ver com uma perna, com uma amputação. Senhor faz esse milagre agora ou me mate, eu não aceito amputação.
Passou aquele dia, chorei muito, chorei muito, mas chorei muito e falei que Ele podia. Deus podia me dar uma perna nova, e Ele me deu.
Olha quem me conheceu, quem me viu. O milagre foi tão grande.
Nilto percebeu, meu marido viu e disse: Bertilla hoje já não está igual — eu to vendo uma pequena melhora. Eu via que ele não chorava mais, que também ele chorava em silêncio, soltava aquelas lágrimas em cima de mim.
— Sim, eu acho que hoje você tá vendo uma pequena melhora, amanhã você vai ver um pouquinho maior, e logo você vai ver que eu ainda vou dançar com você a valsa de 15 anos de nossa filha.
BERTILLA BOSCARDIM
Em 22 de agosto de 1987, a família comemorou o aniversário de 15 anos da filha Patrícia. Em 9 de setembro, nonna Carolina veio a falecer, assim a Casa dos Gerânios tinha uma nova proprietária: Bertilla Boscardim Pereira.
Para confortar Bertilla depois de ter passado uma fase difícil com a mordida de cobra, Nilto levou a esposa para uma viagem à Argentina. Nela, visitaram Buenos Aires e Bariloche. Foi uma viagem inesquecível para o casal.



OS 15 ANOS DA FILHA PATRÍCIA
Na volta da viagem, tiveram bastante trabalho com os preparativos da festa de 15 anos da filha Patrícia.
A festa foi no dia 22 de agosto de 1987. Foi uma grande festa para 500 convidados na sociedade Danúbio Azul e mais duas participações nos bailes de debutantes do Clube Três Marias e da Sociedade Iguaçu.
"Pena que nonna Carolina não pode ir à festa, estava muito enferma, foi debilitando ao logo de dois anos, os gerânios ficaram tristes."
BERTILLA BOSCARDIM



NONA CAROLINA.
PATRÍCIA, BERTILLA, MITO (VISITANTE DO PARAGUAI), MILTON COM O FILHO DANIEL NO COLO, E PAULO CEZAR (1986).

AS CONVULSÕES – DEZEMBRO DE 1989
"Tive uma crise de convulsão e me internei no Hospital Nossa Senhora das Graças, onde as irmã me perguntaram: — aceita receber a extremunção? Aceita a visita do frei? Mas esse frei nunca vinha e eu fiquei lá uns quatro dias. Quando me dava a convulsão, eu perdia os sentidos, eu não podia falar, até que numa hora dessas o frei entrou. Daí eu disse:
— Vamos ao que interessa. Eu não matei, eu não roubei, eu não trai, os outros pecados acho que até o senhor já cometeu.
Meu Deus, eu convulsionava a todo instante. Em dois minutos, eu não podia andar, a boca caia, perdi a visão por duas vezes. O primeiro ataque ocorreu no dia do casamento de uma sobrinha minha, a Ticiane. Eu tive que ir para o hospital e eu não pude ir ao casamento. Estava Jaraguá inteiro no casamento, e eu no hospital.
Em outra ocasião, eu também estava em Jaraguá do Sul. Fui à primeira comunhão de uma afilhada. Lá fui eu parar no Pronto-Socorro de Jaraguá.
Eles me encaminharam imediatamente. Eu tinha uma convulsão, duas por dia, depois começou todo instante, todo instante convulsão, fiquei dez dias assim. Eu pedia pra ir pra casa, eles diziam: 'não tem como mandar a senhora desse jeito. O medicamento me fazia mal então falei: — Eu acho é os remédios que estão me deixando pior do que eu estava, porque eu entrei aqui com menos convulsões, alguma coisa está errada aí. Então ouvi: 'quer nos ensinar a rezar?'
Quando voltei para Curitiba, um neurologista me disse: 'não aparece nada, não há nada, como é que essa mulher está assim? E eu rebati: 'excesso de remédio'. Me tirem esse remédio e me mandem pra casa!
Bom. Foi indo, foi indo até que me deram alta, mas deram também uma porção de remédios. Quando cheguei em casa, eu disse: 'eu não vou tomar!' Daí o neurologista disse: 'espero a senhora em meu consultório daqui uma semana, toma direitinho o remédio'. Respondi: 'tá bom eu vou'. Mas não tomei nada, me recuperei com oração e fé".
BERTILLA BOSCARDIM


A PITOSE
Foi em um dia de muito calor. Nilto estava em um churrasco no Clube Três Marias. Era um sábado de verão. Nilto convidou Bertilla para almoçar. Naquela época, era costume os amigos fazerem uma linguiçada, um churrasquinho.
"— Ah, não está muito quente — disse Bertilla — meu Deus, tá um calor insuportável."
Depois que Nilto foi para o clube, Bertilla sentiu o olho se fechar involuntariamente. Bertilla tentou abrir, mas não conseguiu. Bertilla enxergava normalmente, mas a pálpebra continuava caída causando imediata tristeza e angústia. Percebendo então ser um problema sério, Bertilla chamou seu filho Cezar, que imediatamente a levou ao Posto de saúde de Santa Felicidade. Quando chegaram lá, o postinho estava fechando, mas mesmo assim atenderam dona Bertilla ao perceberem sua apreensão.
"— Vá imediatamente vai para um hospital — disse o médico do postinho.
— O senhor me indica? — disse Bertilla.
Eu acho que por ser sábado, o Santa Cruz. A senhora vai lá, recebe os primeiros socorros. Eles vão lhe medir pressão, vão medir a pressão do olho. Por ser sábado, talvez a senhora fique até segunda-feira tendo atendimento. Depois, o médico vai lhe indicar uma clínica de olhos para lhe acompanhar, para fazer exercícios — falou o médico do postinho."
BERTILLA BOSCARDIM
Então começou a fazer alguns testes básicos.
"— A senhora enxerga? — perguntou o médico.
— Perfeitamente — respondeu Bertilla.
— Então é só o nervo que perdeu a força, paralisou. O nervo pode se recuperar, depende da senhora se ajudar e ter essa fé, que a senhora tem — falou o médico motivando a paciente."
BERTILLA BOSCARDIM
Então Cezar chamou Nilto e foram para o Hospital Santa Cruz. Lá, Bertilla ficou a tarde toda, ficou domingo, na segunda-feira eles disseram que não havia nenhum neurologista no hospital naquele dia.

"Não tinha naquele dia um neurologista no hospital. Passei o sábado lá, o domingo lá, eles me deram os primeiros socorros eu continuei assim com o olho caído, com um, ainda bem que tinha o outro, mas nesse, se eu abrisse com o dedo, assim, eu enxergava. Na segunda-feira me deram alta e me indicaram para eu fazer exercícios — porque não danificou meu olho, só tinha caído, só tinha paralisado o nervo, o terceiro nervo — mas aí eu achei que eu devia de procurar um oftalmologista já aqui em Santa, então fui num médico aqui, o Dr. Rogil, e ele me disse: 'eu vou te indicar uma clínica para você fazer exercícios.'"
BERTILLA BOSCARDIM
Bertilla também foi a um neurologista seguindo as recomendações do Hospital Santa Cruz e lá recebeu palavras de incentivo do Dr. Cléverson, que também indicou uma clínica de recuperação.
"— Às vezes demora três meses, às vezes seis, mas como eu conheço a senhora e sei que a senhora é forte, pode ter a recuperação em três meses — disse o médico.
Eu já comecei na terça-feira, dia seguinte. Fui para casa e já comecei. Daí eu fui umas três vezes na clínica. Colocavam meu olho no aparelho e queriam que eu tentasse mover, eu não conseguia. Eu ficava ali uns 15, 20 minutos. Eu tinha que fazer 25 exercícios. Eu olhava naqueles aparelhos lá tentava abrir e não conseguia. Certa vez, eu sai nervosa e eu
falei: — 'tá sendo difícil, não está reagindo'. Então a médica falou pro Cezar: 'o caso da sua mãe é irreversível'. Ah meti a boca na mulher:
'— Não, irreversível é o pro ser humano, ao homem, mas não a Deus, eu vou voltar aqui enxergando. Os médicos desenganando as pessoas, dizendo que é irreversível. Eu não sei quanto irreversível: na vida, na perna, em tudo. Irreversível é o homem, mas onde o dedo do ser humano não chega o de Deus chega — saí de lá pensando assim."
BERTILLA BOSCARDIM
E Bertilla voltou para casa. Sentou no sofá, e com a caneta, começou a fazer os exercícios. Fazendo os exercícios e conversando com Deus:
"— Um dia vai se mover, Deus vai mover. Deus, não é pra ver uma sujeira que há no mundo, é pra ver a tua criação. Pra ver o que o Senhor fez de bom, o céu, a terra, as flores, as plantas. Não é nem pra ver a maldade desse mundo, mas a sua beleza. Quando abro a janela, todos os dias, vejo os passarinho. Vou lá na frente e vejo as flores. Me empresta os seus olhos, meu Deus, e sei que o Senhor vai me dar olhos perfeitos."
BERTILLA BOSCARDIM
Bertilla abriu o primeiro olho depois de três meses do incidente. Já o segundo olho abriu com mais dois meses. Bertilla ficou ainda mais confiante quando o primeiro abriu.



A RECUPERAÇÃO
"A primeira demorou um pouquinho, mas a segunda eu já estava mais tranquila. Depois meu marido tinha ido para Jaraguá, eu não quis ir junto assim. Quando ele voltou, eu fui abrir o portão assim com o olho assim bem aberto. Foi uma surpresa, para o médico também. Fiz questão de voltar na clínica.

REFORÇANDO A FÉ
"Eu sempre dizia para meu esposo. Eu via uma coisa assim, uma coisa grave, séria, como as convulsões. A picada de cobra, que, uma coisa gravíssima, e pensava: Meu Deus, eu sempre fui uma menina que vivi pela família, vivi com bons pensamentos. O que Deus me dá de bom eu não fico pra mim, eu passo adiante. O que Deus me deu de graça, eu também passo, e se Deus é meu pai, o que um pai quer para o filho? O melhor. Então, se é o melhor, por que?! Porque isso não é uma coisa de Deus. As pessoas me desenganando. Dizendo serem irreversíveis os problemas. Então eu pensava: 'estão me desenganando... Eu vou voltar aqui e vou sair dessa, vou voltar aqui enxergando, vou voltar aqui com minha perna normal, vou tudo'."
BERTILLA BOSCARDIM
'— Olha. Irreversível, nunca se diz. Escuta aqui que mania de vocês ficar desenganando as pessoas, será que no dia que vocês recebem o diploma é isso que vocês juram lá: eu juro que vou desiludir os meus clientes?' — disse Bertilla".


BERTILLA BOSCARDIM
NILTO PEREIRA E O FILHO PAULO CEZAR PEREIRA.





AERO WILLYS DE NILTO PEREIRA (1966).
CEZAR E O TIO OSMAR PEREIRA NO PASSEIO PÚBLICO. FOTO DE LAMBE-LAMBE.
FESTA BODAS DE OURO FRANCISCO BOSCARDIN E CAROLINA TULIO (MAIO/1966).

AS ENCHENTES
"A minha irmã Izabel — chamada de Betina — estava dormindo...a minha irmã quase morreu afogada dentro do quarto dela. E a água quase que afoga ela numa enchente... daquele tempo pra cá, começou a água... qualquer enchente alaga o terreno."
ÂNGELO BOSCARDIN

ENCHENTE NA CASA DOS GERÂNIOS.


A CASA DOS GERÂNIOS: NOVAMENTE, DE PRESENTE PARA SF
A belíssima construção que tem indícios de ter sido iniciada há mais de um século, em 1880, começou a retomar seu formato original graças a um esforço conjunto de Bertilla Boscardim Pereira e seus filhos: Milton Luiz, Paulo Cezar e Patrícia Bertilla —, que há muito acalentaram esse sonho e nós somos testemunhas disso. Quando entrevistamos Nilto Pereira, falecido em 2003, para saber da trajetória do Moinho Pereirinha, vimos o quanto a família desejava a revitalização da Casa dos Gerânios, que sofreu muito com as intempéries, com o alagamento ocorrido há alguns anos e com atos de vandalismo.
O primeiro passo para a recuperação total do imóvel foi dado a partir do incentivo da atual diretoria da Associação do Comércio e Indústria de Santa Felicidade (ACISF), que procurou a família para convidá-la a fazer parte do evento de Natal de Santa Felicidade, denominado Natale Felice . Assim, Bertilla e o filho Cezar contrataram 12 pessoas
para fazer as obras de reforma e pintura da Casa dos Gerânios, o ajardinamento e algumas melhorias a fim de "empacotá-la" como presente de Natal para todos nós.
"— Trata-se, sobretudo, de um brinde em louvor aos nossos antepassados, que em meados de 1900 nos deram este presente", falou Paulo Cezar — o "Fubá" —, demonstrando, em nome da família, agradecimento aos seus antecessores e aos apoios, bem como aos encorajamentos, recebidos da comunidade para iniciar a importante obra.
"— Em breve, estaremos abrindo as janelas sorridentes e perfumadas da Casa dos Gerânios, com novo vigor e alegria para a chegada do bom velhinho, que por coincidência usa barba, como tio Barba — Francesco Boscardin, o construtor —, e usa vermelho como sua saudosa proprietária, a nonna Carolina Tulio Boscardin, a conhecida senhora dos gerânios", concluiu Paulo.
POR ROSANGELA SCHELLIN
JORNAL CIDADE EDIÇÃO 89 2ª QUINZENA DE NOVEMBRO DE 2004


A SUCESSÃO
O tio Barba – italiano originário da Província de Vicenza, na região do Vêneto, responsável pela vinda da família para o Brasil, junto à primeira leva de imigrantes que chegou à Santa Felicidade, em 1878 – foi o construtor desse imóvel e chefiava a clã dos Boscardin (com I, N ou M, no final) que aqui se formou.
Pelo menos é o que dá a entender a inscrição encontrada num dos travessões principais "F.B. 1.900", por Nilto Pereirinha e seu filho Milton, durante uma limpeza feita no sótão da casa.
Tio Barba era solteiro e vivia cercado de irmãos casados, solteiros e sobrinhos. Seus sucessores na

posse do imóvel foram, por ordem: o sobrinho Nicola; depois o filho mais velho dele, Francisco (Queco), dono por algumas décadas do Moinho Cascatinha e, posteriormente, a sua viúva, Carolina Tulio Boscardin. Nonna Carolina ficou famosa pelas fotos que tirou na janela do sobrado, junto aos maravilhosos gerânios, tão bem cultivados por ela e por sua filha Izabel. Ela morreu aos 91 anos, em 1987, legando a Casa dos Gerânios para sua 13ª filha, Bertilla, e o marido dela, Nilto Pereira — o Pereirinha do moinho, como era conhecido.
JORNAL CIDADE EDIÇÃO 89 2ª QUINZENA DE NOVEMBRO DE 2004
AS VISTAS DAS JANELAS
ENTREVISTA COM BERTILLA BOSCARDIM PEREIRA. POR ROSÂNGELA SCHELLIN, 2004.
Sem mais perdas de tempo, a família Boscardim Pereira pretende ver reabertas, uma a uma, as sorridentes janelas enfeitadas com gerânios do imóvel que registrou
inúmeras histórias desse clã. E, para contar sobre elas, ninguém melhor que dona Bertilla. Aos 65 anos, ela se recorda de fatos ocorridos quando tinha apenas dois anos de idade.

POR ROSANGELA SCHELLIN
Falando-nos com a alma e muita emoção, dona Bertilla descreveu sua formação familiar, seus 12 irmãos, seus pais — Francisco e Carolina — e seus avós — Nicola e Izabel Menegusso Boscardin; o respeito que tinham entre eles; a rígida educação recebida.
"Bastava um simples olhar dos nossos pais e avós que, de imediato entendíamos a mensagem, a maneira que deveríamos agir", explicou ela.
E os costumes, como por exemplo, de sentarem-se à enorme mesa — com 17 cadeiras nos dias de semana, e mais, quando vinham outras visitas -, para se deliciarem com três panaros de polenta, muito queijo, salame, ovos, galinha caipira e carne de porco bem caseiros.
Isso, sem contar o famoso macarrão da nonna Izabel e a minestra da nonna Carolina. Sábio e trabalhador, Francisco era homem de poucas palavras. Conversas apenas quando os compadres e as comadres vinham visitá-los para tomar vinho e comer o macarrão caseiro. Dos imigrantes, pouco se falava, o que manteve por muito tempo dona Bertilla curiosíssima:
"Queria ser um beija-flor para saber mais sobre nossos heróicos desbravadores que, com certeza, sofreram muito para formar esse paraíso que é Santa Felicidade" , afirmou nossa entrevistada.
De nonna Carolina, dona Bertilla lembra bem, principalmente de seu momento de despedida. Consta que a anciã falou em dialeto vêneto a ela:
"Questa casa era mia, adesso a ze tua, te piace fiori? Pianta sempre i fiori — girani — in su finestre. Mi piace tutti i colori, ma mi piace più rossi."
Trocando em miúdos:
"Esta casa era minha, agora há de ser sua, gostas de flores? Plante sempre flores, gerânios, em suas janelas. Gosto de todas as cores, mas gosto mais de vermelho", concluiu a senhora que costumeiramente atendia muito bem e com muita disposição aos turistas, fotógrafos e repórteres ao mostrar sua casa e tirar fotos sempre em uma janela, ao lado de seus famosos gerânios, de preferência, vermelhos, cor idêntica a que até seus 90 anos, ostentava nos lábios, nas unhas e nas roupas.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL CIDADE EDIÇÃO 89 2ª QUINZENA DE NOVEMBRO DE 2004.




QUATRO GERAÇÕES: NETO DANIEL, BERTILLA COM BISNETO VICTOR E O FILHO MILTON (2004).
DA ESQUERDA PARA DIREITA: ANA TULIO LUCCA (IRMÃ DA CAROLINA), IZABEL (BETINA), CAROLINA TÚLIO BOSCARDIN, JANAINA PEREIRA, MILTON LUIZ E ESPOSA MARLENE TREVIZAN PEREIRA, DANIEL PEREIRA E BERTILLA BOSCARDIM PEREIRA (MAIO, 1986).





17 DE AGOSTO — DIA DO PATRIMÔNIO, POUCO
A SE COMEMORAR!
POR ROSANGELA SCHELLIN
O que deveria ser um motivo de alegria é de tristeza para nós. A realidade é muito triste: "comemoramos" o descaso, vandalismo, desrespeito para com os patrimônios público, privado, unidades de interesse de preservação.
No caso específico de Santa
Felicidade, bairro detentor de rico acervo histórico de origem italiana, que não se limita apenas à Avenida Manoel Ribas, há várias casas consideradas como Unidades de Interesse de Preservação (UIPs). [...]
Na semana da comemoração do Dia do Patrimônio, a Casa dos Gerânios,

ACERVO PAULO CEZAR PEREIRA.

aquela que os proprietários embelezaram às custas próprias, para o Natal de 2004 – Natale Felice – e que o Cidade Notícias divulgou, em primeira mão, não escapou da ação de vândalos. Quem seja o autor, no mínimo achou que lá havia algo a ser furtado, por isso, remexeu e abriu a janela, causando estragos ao imóvel.
Por outro lado, a família agradece ao apoio da Guarda Municipal que, na medida do possível, em suas rondas no Cascatinha, dá uma "olhada" e atenção à casa. Mas sabemos que vândalos, pichadores e desocupados sempre esperam a melhor hora para cometer seus delitos. Por isso, é necessário repensar na proteção e no respeito ao patrimônio e, principalmente, na sua história, no esforço de quem construiu, nas gerações que passaram ali, no proprietário que mantêm ou tenta mantê-la.
Existe também o vandalismo social. Aquele característico pelo desrespeito humano. Ele talvez faça mais estragos e não é de hoje.
"Lembro do tempo em que a nossa nonna Carolina ficava apavorada com o assédio e a intromissão. A família conservou a casa desde sua construção, sem cercas ou muros — a pedido da própria nonna Carolina — e talvez por isso, sempre recebia visitas inesperadas. Eram pessoas que chegavam para arrancar flores, entrar no interior da casa sem bater ou se fazer anunciar. Isso já era comum há 30 anos, imaginem hoje", falou Paulo Cezar, o Pereirinha.
"Sabemos que, hoje não é mais suficiente nem a cerca viva, muro ou qualquer outra forma de contenção de intrusos. Impera o desrespeito da ética, a falta de educação. Não se respeita mais o direito de propriedade, placas com avisos, etc. Proliferam aqueles que dizem ter a solução para seu patrimônio, e os que abusam e repetem aleatoriamente: este imóvel é tombado mesmo ou este imóvel é público mesmo, achando que consequentemente tornou-se a casa da mãe Joana", concluiu, indignado.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO JORNAL CIDADE EDIÇÃO 105 2ª QUINZENA DE AGOSTO/2005.


A VOLTA POR CIMA PARTE SEIS



"A PARTE MAIS EMOCIONANTE
FOI QUANDO ESTIVEMOS ONDE ELE
NASCEU NA MANJEDOURA E ONDE ELE SUBIU AOS CÉUS DEPOIS DE
TER RESSUSCITADO."
(BERTILLA BOSCARDIM)


AS VIAGENS
Riccardo — A primeira viagem ao exterior foi em setembro de 1988. Teve algum motivo para essa viagem? Bertilla — Sim. Foi o centenário de nascimento da Santa Bertilla. Nós tínhamos esse sonho de fazer essa viagem porque na canonização, a gente não estava presente. Quando a gente soube já fazia alguns meses que ela já havia sido canonizada. Então, quando nós chegamos lá em Brêndola, o corpo dela já tinha sido levado para a igreja, onde ela permanece até hoje em Vicenza, porque ela era da congregação Doroteia em Vicenza. Então eu voltei em uma segunda viagem. Eu não me satisfiz, nem o Nilto porque a capela onde foi feita a missa do centenário não era muito grande, tava lá o Papa, tava os Bispos, tava lá todos as autoridades, mas eu tinha que ficar de pezinho porque os italianos, você sabe que são altos, e eu lá pequenininha, meu marido também não era de alta estatura, então eu tinha que ficar lá subindo naquela parte do banco de igreja para poder ver alguma coisa. Daí eu disse para o Nilto: — "sabe, a gente vai fazer outra excursão".

R :— Então a senhora voltou.
B: — Eu voltei para Vicenza. Em Roma, a gente pegou um trem, viajamos a noite toda, amanhecendo o dia, acho que chegamos 8 horas em Vicenza, daí a gente pegou um táxi e foi até lá, para a capela.
R: — O que mais lhe impressionou, na viagem para Brêndola?
B: — Olha, dá uma emoção muito grande porque antes, mais ou menos uns 20 quilômetros antes de chegar, ouvimos uma gravação, uma mensagem do padre Debiasi. Ele assistiu à canonização. Ele era um padre que não usava batina. Ele fazia muitos encontros de casais, era uma pessoa, assim, maravilhosa.
R: — E quais foram os comentários da senhora e do senhor Nilto nessa visita?
B: — Ele disse: —"vamos na casa natal. Vamos conhecer lá todos os pertences, a pia onde ela lavava louça ajoelhada" (ela era pequenininha).
R: — Como era a vida da santa antes da canonização?
B: — O pai dela era muito bravo porque ele não queria que a filha fosse para o convento porque era a única filha, mas ela lutou, lutou até que ele consentiu.
Ele não queria que a filha fosse para o convento. Ele achava que a filha tinha que ajudar a mãe, e a mãe ficava com pena da fé dessa menina, que todo dia, quando, às 6 horas, já estava na igreja, subia aquele morro e ia na igreja. 6h ela já estava de joelho na porta da igreja. Com 6 anos ela tomou 1ª Comunhão e não era costume, tinha que ter 13, 14 anos, mas de tanto ela incomodar, de tanto pegar no pé do padre ele resolveu dar Comunhão pra ela, depois de tanto ela insistir que ela queria ser freira, o pai acabou deixando, a mãe ainda era a favor, só que a mãe se controlava porque o marido era bravo, um italiano. Dava para perceber que ele era assim uma pessoa muito enérgica. No convento, todos os doentes queriam ser cuidados por ela quando ela chegou a receber o hábito de freira, aquele processo todo. Por ela querer ser freira cedo, ela foi para o convento, logo de mocinha ela chegou a ser freira. Como freira, ela preferiu cuidar dos doentes. Em primeiro lugar, ela queria cuidar das crianças, aí começou a provocar um ciúme nas outras irmãs. As irmãs diziam que todos os doentes procuravam pela Bertilla, que só queria a Bertilla, a "suora" Bertilla, que dizia lrmã Bertilla só querem saber da Suora Bertilla "e nós aqui o que somos?" Então, eu sei que o padre começou a

colocar ela nas piores coisas na cozinha, descascar batatas, fazer as piores tarefas, tirou ela um pouquinho pra deixar outras, mas ela fazia aquilo com tanto carinho, com tanto amor, as piores coisas podia dar pra ela, e ela fazia com alegria, com amor, não tinha o que humilhasse ela, então eu sei que era dado até castigo pra ela, de ficar assim, à noite pegar tarefas à noite, pra ela fazer sozinha, sair comprar, e ela fazia tudo com amor. Ela lavava aquelas roupas dos doentes contagiosos, ela lavava sem se proteger, com amor, então ela era considerada santa.
Depois, teve câncer. Três vértebras dela o câncer consumiu, só reclamou três dias antes da morte. É muito emocionante ler as palavras que ela disse: "Amai somente a Deus, somente a Jesus, o resto é nada, nada, nada".
Todas as pessoas vinham de longe da redondeza de Treviso, de outras cidades próximas, dizendo que morreu uma santa, considerada santa viva, depois de morta, tanto que no túmulo dela as flores
não murchavam e era impossível. Daí as pessoas começaram a clamar que ela só podia ser uma santa e daí chegou aos ouvidos do Papa. Na presença de uma autoridade, do Papa, foi aberto o túmulo e o caixão dela. Ela estava intacta e trazia uma flor no peito. Ela estava perfeita, inteira, isso três anos depois. Em 1925, foi o 1º processo. Daí o que fizeram, enterraram ela por uns oito anos, colocaram no lamaçal onde tivesse muita lama muito barro pra ela se descompor. Daí ela só criou limo, daí foi raspado aquele limo, lavado aquelas escamas e fizeram relíquias. Tanto é que ela tem roupa de pano, tem aquele chinelão de feltro que antigamente as mulheres que tinham neném usavam — um tipo bota de feltro bem quente para se aquecer, ela tava com um sapatinho assim de camurça e feltro que é trocada a cada 3, 4 anos. O Cezar estava presente quando foi um Bispo e uma autoridade da Igreja. E aí ela foi canonizada tivemos conhecimento pela família cristã.


VIAGEM A CAMINHO DO CENTENÁRIO DE SANTA BERTILA EM SETEMBRO DE 1988.


A VIAGEM A JERUSALÉM – 2ª VIAGEM
A viagem à Terra Santa teve um impacto muito grande no comportamento de Bertilla. Seguindo suas convicções e crenças que a levavam a acreditar no Cristo Vivo, um Cristo fora da cruz. Lá, ela observou com satisfação o Santo Sepulcro, vazio. E era essa a imagem que lhe trazia otimismo, para ela a prova irrefutável de que Cristo havia ressuscitado. Quanta emoção para Bertilla, que pode, nessa mesma viagem, experimentar as águas do Rio Jordão, visitar o Monte das Oliveiras e tantos outros
lugares magníficos e tão significantes. Lugares que reforçaram ainda mais sua a fé. Lugares que faziam ela acreditar que nada poderia ser irreversível para aquele que tem fé, pois Jesus havia vencido a própria morte e tinha deixado um legado sem precedentes: as suas palavras e ensinamentos. Em Israel, Bertilla realizou um sonho e também se preparou para os futuros desafios que a vida ainda estava para lhe apresentar. E não foram poucos. Toda a sua fé seria novamente testada.
A picada de cobra fora um exemplo

BERTILLA E NILTO — ÀS MARGENS DO RIO JORDÃO.
de superação pela fé, mas o que estava por vir exigiria muito mais de Bertilla. O futuro lhe reservava muitos obstáculos e ela teria que superá-los.
E foi a partir dessas experiências tão marcantes que Bertilla começou a reunir o que havia escrito em pequenos cadernos escolares, aquilo se transformou em um livro muitos anos depois. Um livro de memórias, mas acima de tudo, um testemunho do poder de Deus na vida dos homens:
"Eu e Nilto subimos onde Jesus recebeu a sentença de Erodes, foi emocionante. Mas a parte mais emocionante foi quando estivemos onde ele nasceu na manjedoura e onde ele subiu aos céus depois de ter ressuscitado."
BERTILLA BOSCARDIM




BERTILLA E NILTO NA TERRA SANTA.
BERTILLA E NILTO REVEILON CRUZEIRO EM UM CRUZEIRO NO NILO.

OINESPERADO PARTE SETE



"VEIO
O CANSAÇO E ELE SENTIU. JÁ NÃO PODIA SER TÃO LIGEIRINHO."
(BERTILLA
BOSCARDIM)


O FALECIMENTO DE NILTO
Bertilla e Nilto viveram suas vidas muito bem. Trabalharam, constituíram uma família, viajaram. Tudo isso conforme os ensinamentos e conforme a cultura que os mais velhos lhes deixaram como legado. Nilto tocando sempre o Moinho Pereirinha, acompanhado pelos filhos Luiz e Cezar. Bertilla administrando a casa e a educação dos filhos, acompanhando mais de perto a filha Patrícia, que veio a se formar em Psicologia para orgulho do casal. Mas a vida seguiu seu curso natural e, com os anos, Nilto foi sentindo o peso da idade e, com isso, foi vitimado por uma depressão que, aos poucos, tirou-lhe a vontade de continuar vivo.
No passado (até os anos 1960 aproximadamente), a depressão era confundida com um possível defeito de personalidade ou caráter, mas com a evolução da Psicologia e a Psiquiatria, a perspectiva foi mudando. Hoje em dia, sabe-se que disfunções hormonais levam as pessoas à depressão, assim como outros motivos fisiológicos. E Nilto faleceu vítima de uma profunda depressão.

Para Bertilla, um impacto tremendo. Até que ela entendesse que se tratava de uma enfermidade — assim como o câncer e tantas outras doenças que podem levar as pessoas à morte — não foi fácil superar aquele momento. Mas a fé sempre esteve presente na vida de Bertilla, que se recuperou entendendo que a vida segue seu curso e que deveria se manter forte, passando confiança para os filhos e netos. Então, aquela que havia superado a pitose, a mordida de cobra, e as convulsões teria que superar a própria ameaça de depressão que rondava os seus ânimos.
"Nilto sempre dinâmico, pronto para servir a quem precisasse. Sempre dava um jeito. Ele era bom sem limites, até o ponto de as vezes se prejudicar. Quando se é jovem tudo bem, mas o tempo vai passando, a gente deixa de ser intrépido e os anos começam a pesar em nossas vidas. Nilto nunca pensou que fosse chegar essa hora. Nosso neto Matheus dizia: — Vovô Nilto, seja corajoso — mas ele não via as coisas dessa maneira. Veio o cansaço e ele sentiu. Já não podia ser tão ligeirinho, ele tinha sido movido pelo relógio, sempre pontual nos compromissos. Mas começou a ter problemas de visão, foi operado da próstata, as hemorróidas sangravam...".
BERTILLA BOSCARDIM


NILTO RECEBENDO HOMENAGEM NA FESTA DOS 50 ANOS DA EMPRESA EMMENDÖRFER DE JARAGUÁ DO SUL-SC, POR TER SER SIDO O PRIMEIRO FUNCIONÁRIO, DAS MÃOS DE VICTOR EMMENDÖRFER (2000).



O CONDOMÍNIO
Em 2007, a "colcha de retalhos" se transformou no condomínio Villagio di Roma. O lançamento do condomínio aconteceu em 2010. Nilto preparou e assegurou o futuro da família. Vinte e sete lotes com toda estrutura de um condomínio fechado, negócio esse que demonstrou ser o mais rentável, pois o
bairro de Santa Felicidade já havia-se posicionado como um bairro de condomínios fechados e sobrados. Assim, Bertilla, Luiz, Cezar e Patrícia foram beneficiados pelo esforço do pai de família Nilto Pereira, um exemplo de trabalho, responsabilidade, honestidade e amor pela família.

BERTILLA E NILTO NO EGITO.
BERTILLA EM SALZBURG, ÁUSTRIA (1988).

A SUPERAÇÃO PARTE OITO



“[...] NA CASA DOS GERÂNIOS
EU ME EMPOLGO, EU VIRO UMA BORBOLETA, SÓ FALTA EU VOAR."
(BERTILLA BOSCARDIM)


OS PLANOS
Dona Bertilla compreendeu que tinha que construir a sua vida sem a presença de Nilto. E que a melhor maneira de fazer isso era planejar a vida com objetivos claros que lhe ocupassem a mente e o tempo. Partindo desse ponto, colocou-se a pensar sobre o que tinha de mais valioso em sua vida. Após refletir, chegou à conclusão: sua família, sua fé e sua memória. E assim nasceu um projeto que consistiu em dar continuidade a atenção aos filhos e também conclusão daquilo que, para ela, deveria fazer parte do seu legado: a restauração da Casa dos Gerânios e o lançamento do livro com suas histórias.
Então chamou os filhos e comunicou seu intento. Eles entenderam prontamente a importância desse desejo e apoiaram a mãe sem restrições. A Casa do Gerânios seria restaurada e o livro seria escrito. À frente desse sonho, ficou Cezar Pereira, aquele que foi o coordenador desse empreendimento.
Quando começaram a pensar em datas e no cronograma de execução,

veio a lembrança que dona Bertilla faria 70 anos no dia 17 de outubro de 2009, portanto a data escolhida a priori foi essa. Com o andamento das obras de restauração, surgiu um grande desafio: as enchentes voltaram a inundar o casarão. Mas a persistência da família Boscardin Pereira, que assistiu a seus antepassados vencendo grandes desafios, tais como a saudades da terra natal (principalmente os imigrantes), a doença, a fome e a pobreza, não poderia esmorecer jamais, pois o propósito da restauração era exatamente a perpetuação da memória de homens honrados que venceram com fé, trabalho e amor à família.
E assim o foi. O projeto seguiu em frente. Bertilla e filhos mostrando à comunidade que não importa o número de vezes que se cai, mas sim a quantidade de vezes em que levantamos.



MURO DA PRAÇA VIA VÊNETO QUE ESTAMPA DESTAQUE PARA CASA DOS GERÂNIOS.


OS VALORES
Os principais valores de dona Bertilla sempre foram humildade, obediência e mansidão.

"Quando somos humildes, estamos agradando nosso Pai das alturas e também nossos pais terrenos. A obediência, uma obrigação para a alegria dos meus queridos pais. Mansidão para mim foi fácil, eu sempre procurava ser calma e mansa, meus pais foram um exemplo de mansidão, tinham um coração manso, humilde e obediente a Deus".
BERTILLA BOSCARDIM
COM O BISNETO



NETO PATRICK, FILHO DE PATRÍCIA. (2014)
NILTO COM O NETO MATEUS, FILHO DE PATRÍCIA (2001).
BERTILLA
VINCENZO, FILHO DE JANAÍNIA, NETO DE MILTON. (2012)
BISNETA ANTONELLA, FILHA DE JANAÍNA, NETA DE MILTON (2016).


Dona Bertilla contou tantas vezes as histórias de seus antepassados, das famílias dos italianos que inauguraram a colônia de Santa Felicidade e histórias do próprio bairro de Santa Felicidade, mas em algum momento outras pessoas seriam, ou teriam, a incumbência de contar a história da própria dona Bertilla. Muitas pessoas a conheceram melhor que eu a conheci, mas quis o destino que eu, descendente de alemães (Hübner) e italianos (Tesseroli) e outro povos da Europa, tivesse a honra de poder ajudar a colocar suas palavras em um livro (obs.: sempre com a participação inestimável de seu filho Paulo Cezar Boscardim Pereira – que herdou a missão de levar adiante a história e as tradições dos italianos de Santa Felicidade).
Atualmente, no Brasil, temos passado por muitas dificuldades, algumas de amplitude global, como foi o caso da COVID-19, e outras locais como a polarização política que separou
A HISTÓRIA CONTINUA
tantos amigos e familiares, mas uma coisa boa tenho notado: estamos mais à vontade para sermos simples, vulneráveis, e isso é muito bom. Na internet, vemos pessoas contando vidas e experiências pessoais, na maioria das vezes com a qualidade inversamente proporcional ao padrão Rede Globo, mas com algo absolutamente notável: simplicidade e vulnerabilidade. Mas onde quero chegar? Vejam bem caros leitores, a primeira parte deste livro não conta atos heroicos e nem tem a qualidade de escrita – nem de perto – que Machado de Assis tinha. Então, o que tivemos? Uma protagonista que não foi heroína e um autor que não se considera escritor, mas que juntos, aliados, e com um único propósito apenas – o de contar uma simples história, envolvendo amor e verdade – preservaram a memória e as tradições de uma comunidade que contribuiu (e ainda contribui) para a riqueza cultural de Santa Felicidade.

BERTILLA ANOTANDO MEMÓRIAS DUARANTE A FESTA DA UVA NO BOSQUE SÃO CRISTÓVÃO (2008).
Nesta segunda parte, vamos falar a respeito dos eventos que dona Bertilla participou entre 2009 e 2022. Nossa intenção não é fazer disso uma espécie de mural de conquistas, mesmo porque eu, agora com 56 anos, creio que Deus não se agrada das nossas conquistas, mas de nossas renúncias. Dona Bertilla, se ainda estivesse viva, não concordaria que fechássemos o livro com os pés fincados na vaidade. Então, caro leitor, os eventos a seguir descritos, têm um único propósito: demonstrar que a nossa querida dona Bertilla, nos seus últimos anos deu vida, deu sentido à própria vida, registrando as tradições de um povo admirável, o povo da antiga colônia – agora bairro – de Santa Felicidade.
Nos seus últimos anos, dona Bertilla, foi se preparando aos poucos para a sua passagem. Foi se aproximando de Deus e lapidando seu legado.
Agosto de 2023
“— Amigo Riccardo, a vida da Bertilla era como um tecido entrelaçado de histórias, não apenas a sua própria, mas também as de sua família, sua comunidade e até mesmo das narrativas de estranhos que ela nunca havia conhecido. Ela se tornara um receptáculo vivo para memórias e legados. Esse papel único ganhou destaque, por exemplo, durante a 50ª Festa da Uva, onde ela subiu ao palco para receber um prêmio em
nome de seu falecido esposo, Nilto Pereira. Nilto havia sido um membro ativo da comissão da Paróquia de Santa Felicidade. Ao fazer isso, ela representava não apenas a si mesma, mas o legado e a missão confiados a ela como a última filha de Francisco, seu pai. Ao longo dessas cerimônias, Bertilla costurou os fios da história de sua casa (Casa dos Gerânios), o espírito pioneiro do Moinho dos Boscardin, os ensinamentos da amada Santa Bertilla Boscardin. Embora não tivesse compreendido o significado de compartilhar um nome com a santa (Santa Bertilla Boscardin) quando era jovem, a vida lhe ensinou o seu significado ao longo do tempo. Curiosamente, à medida que o tempo passava, sua própria vida parecia espelhar a da santa. Ela começou a recitar versos atribuídos à santa (principalmente nos últimos momentos de vida), como se o espírito e o propósito de sua homônima a estivessem guiando."
PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA MENSAGEM ENVIADA A RICCARDO HÜBNER
Em 2008, a comunidade se preparava para celebrar os 50 anos da Festa da Uva de Santa Felicidade. Dona Bertilla era uma das pessoas que sempre se envolviam profundamente na festa ao longo dos anos, apaixonada pela cultura local e pelas uvas. Aconteceu no Bosque São Cristóvão, com decoração festiva e uma grande tenda para os convidados, homenagem para 50 famílias e

pessoas que contribuíram com a fundação e crescimento da festa ao longo dos anos.
A família Boscardin foi homenageada com a citação do irmão e do primo de Bertilla: Ângelo Boscardin (serviços de alto-falantes) e Osmar Boscardin. Bertilla e o filho Cezar receberam a homenagem representando Nilto Pereira e a família. A homenagem era o símbolo de famílias dedicadas a preservar a cultura e a história da festa. A celebração continuou com música, danças e, claro, uvas deliciosas, destacando a importância da tradição e do amor compartilhado por todos na comunidade. Ao final, Bertilla se despediu dos amigos, sabendo que a festa continuaria a prosperar nas mãos das próximas gerações, inspirando todos com paixão e dedicação. O troféu da família era um lembrete constante de como é possível unir uma comunidade e celebrar sua identidade única.
“— Em 2009, você, Riccardo, cruzou caminhos com Bertilla. Você conheceu uma mulher no meio da reconstrução de sua vida após sofrer perdas significativas. O livro que você começou a escrever (Casa dos Gerânios) tornou-se um farol de esperança e um lembrete da resiliência da minha mãe."
PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA MENSAGEM ENVIADA A RICCARDO HÜBNER
Em 18 de outubro de 2009, o restaurante Cascatinha estava cheio de alegria para comemorar os 70 anos de dona Bertilla Boscardim Pereira. O almoço italiano, repleto de receitas tradicionais, reuniu familiares e amigos, incluindo irmãos, cunhados, sobrinhos e amigos de infância. Pedrinho Culpi animou a festa com suas músicas italianas, fazendo todos dançarem e cantarem. Dona Bertilla entrou no salão com seu irmão Ângelo, irradiando felicidade. Discursos emocionantes destacaram sua importância na comunidade e seu amor por Santa Felicidade. Dona Bertilla agradeceu a todos, mencionando suas memórias de infância e a importância da família e dos amigos enquanto os convidados saboreavam o almoço, compartilhavam histórias e abraços afetuosos. A celebração foi um testemunho de amor, gratidão e apreço por uma mulher que deixou uma marca profunda na vida de todos.
“— [...] no ano seguinte, em 2010, uma queda infeliz mudou o curso de sua saúde física. Também vieram as infecções relacionadas ao diabetes, que tiveram um impacto sobre ela, além dos lapsos de memória que logo seguiram”.
PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA MENSAGEM ENVIADA A RICCARDO HÜBNER

Em março de 2012, o Teatro Regina Vogue estava cheio de expectativa e emoção para a premiação “Mulher Simplesmente Mulher”, promovida pela Associação Comercial do Paraná (ACP) para reconhecer o talento das mulheres em várias áreas. Dona Bertilla foi uma das homenageadas, destacando-se como uma inspiradora empreendedora e contadora de histórias. No palco, cada mulher recebeu seu prêmio e, quando dona Bertilla foi chamada, o público aplaudiu seu trabalho árduo e visão empreendedora. Ela expressou gratidão e compartilhou palavras inspiradoras sobre o papel das mulheres nos negócios, incentivando a perseverança e o apoio mútuo.
A noite também destacou outras mulheres notáveis em várias áreas, mostrando como as mulheres podem moldar o mundo com coragem e talento. Após a cerimônia, dona Bertilla foi parabenizada por amigos e colegas, e ela continuou a inspirar jovens empreendedores e apoiar o empoderamento das mulheres em sua comunidade. O prêmio representava seu compromisso em inspirar outros a realizar seus sonhos e transformar paixões em realidade, tornando a premiação “Mulher Simplesmente Mulher” uma celebração e um lembrete do poder das mulheres em todas as esferas da vida.


BERTILLA BOSCARDIM RECEBE PRÊMIO "MULHER, SIMPLESMENTE MULHER"DA ACP, NO TEATRO REGINA VOGUE EM 22 DE MARÇO DE 2012. (ACERVO PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA).

NAS PALAVRAS DA DONA BERTILLA
“[...] Na Casa dos Gerânios eu me empolgo, eu viro uma borboleta, só falta eu voar. Eu nasci na Rua José Gravina, quando mudei pro casarão, pra Casa dos Gerânios, eu tinha dois anos. Então minha mãe vendia tudo o que é fruta, verdura, a palha do milho pra fazer colchões. Não havia colchão ortopédico, colchão de mola, não tinha nada disso, era colchão de palha, aquela palha era escolhida, colocada em quatro buracos, a gente mexia aquilo assim, aquilo era o nosso colchão de dormir.
Estou homenageando, falando no meu livro de muitas pessoas que já não estão mais aqui, mas essa história não é só minha, é de praticamente todos os moradores de Santa Felicidade. Jamais eu pensei que esse livro seria, eu mesma duvidava que chegasse a esse ponto de realizar meu sonho. Aquilo (o livro) foi fruto do que vinha à cabeça, minhas memórias, e eu fui colocando todo dia um pouquinho, todo dia um pouquinho, todo dia um pouquinho, até que eu enchi dois livrinhos... e daí por diante eu não parei.
Toda terça-feira meu pai me levava junto porque ele tinha uma irmã dele, irmã do meu pai, minha
tia, que morava perto do asilo, hospital psiquiátrico. Então, ele levava produtos lá para os animais. Ele levava produtos do moinho pra esse hospital, e um pouquinho antes morava a minha tia Maria. Nessa tia então eu ficava, eu me escondia que eu não queria voltar. Às vezes eu ficava uma semana lá. Lá havia luz, porque na região do Cascatinha, entre o Cruzeiro dos Boscardin até o Parque Barigui não havia luz. Eu tinha 12 anos. Daí, quando foi um dia, meu pai me convenceu e me levou pra casa: “eu tenho luz e eu comprei um rádio”. Oh, mas me arrumei, já me joguei na carroça. O meu avô Nicola. Ele era maravilhoso Nicola Boscardin, o pai do meu pai. Mas, a minha vó... ela fazia macarrão. Ela era muito limpa, muito higiênica. Então, ela pegava aqueles panos, aquelas toalhas, aquilo era uma neve de limpo. Eu de vez em quando levantava o paninho e escondia... pegava umas massinhas — cruas, antes de cozinhar. E ela dizia: 'terêtetê não coma a massa crua!' e batia nas minhas mãos. Ô meu Deus do céu, bater nos meus dedos. Ela era muito católica, ela ia na igreja todos os dias.


No inverno, ela fazia aquelas novenas de nove sextas-feiras e depois que terminava aquela, começava outra. Nós saíamos às cinco horas, ela de cachecol e eu simplesmente ia, mais simples, né, com casaquinho, sem nada na cabeça, uma sandalinha... daí o quê? Eu queria me aquecer no bolso dela, né? Quantas vezes eu punha a mão no bolso dela pra esquentar a minha mão que tava gelado, congelada... ela me batia na mão e dizia: 'tira a mão daí, tá querendo pegar meu dinheiro?'. Eu dizia 'uma bruxa, eu tenho que te entregar pro teu filho (o pai da Bertilla)'.
"Esse livro, essa é a minha história, não é só minha. Eu peço aos empresários, aos moradores de Santa Felicidade e que nos ajudem, nos ajudem pra um final feliz. É uma história verídica, é uma história que eu fiz com muito amor.... nos ajudem, não deixem essa história morrer.”
BERTILLA BOSCARDIM PEREIRA
ENTREVISTA 31 DE JULHO DE 2012.
DISPONÍVEL EM: CASADOSGERANIOS.COM.BR
“— Nos eventos ela ficava mais... admirando, relembrando o passado com as músicas e cantos. Sentia-se bem, com sorte, por ter repassado suas memórias para nós." PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA
OS EVENTOS
Foi no dia 10 de outubro de 2013, quando a pequena paróquia de São José, em Santa Felicidade, estava repleta de expectativa. A comunidade se preparava para uma ocasião especial: a missa comemorativa de 125 anos do nascimento de Santa Bertilla Boscardin. Entre os fiéis, estava uma mulher chamada dona Bertilla, cujo nome era uma homenagem à santa. Dona Bertilla carregava nas mãos a imagem delicada de Santa Bertilla, trazendo consigo a presença espiritual da santa que inspirava tantos corações. A igreja estava adornada com símbolos religiosos que representavam a vida e as virtudes de Santa Bertilla. Cada objeto trazido pelos familiares era carregado de significado e amor. Lá estava o Coral Italiano de Santa Felicidade entoando louvores com sua harmonia celestial. Suas vozes se uniam em uma sinfonia de fé e devoção, elevando a energia espiritual da cerimônia. O padre, em sua vestimenta litúrgica, deu início à missa, conduzindo os presentes em orações e reflexões inspiradoras. Ele ressaltou a importância da vida e do exemplo deixado por Santa Bertilla, enfatizando a dedicação dela aos mais necessitados e sua força inabalável diante das adversidades.

Enquanto a missa prosseguia, as palavras do padre ecoavam pelos corações dos fiéis, que sentiam uma conexão especial com Santa Bertilla. Suas vidas eram tocadas por sua generosidade e humildade, inspirando-os a seguir seus passos e a viver uma vida de compaixão e amor ao próximo. Após a missa, todos os presentes reuniram-se em frente as escadarias da igreja para reproduzir a fotografia de 1961 quando a imagem de Santa Bertilla chegou da Itália. A celebração continuou no restaurante Novo Madalosso. Durante o almoço, histórias e memórias foram compartilhadas entre os presentes, relembrando as ações e os milagres atribuídos à santa. O ambiente estava cheio de alegria e gratidão. Enquanto o tempo passava e as pessoas se deliciavam com a comida, uma sensação de união e paz preenchia o espaço, reafirmando a importância da vida e legado de Santa Bertilla Boscardin. Os eventos aqui narrados do ano de 2013 foram organizados pela Comissão dos 135 anos da imigração italiana em Santa Felicidade.
Dia 11 de novembro de 2013, na majestosa Assembleia Legislativa do Paraná, em Curitiba, os descendentes de italianos se uniram para celebrar os 135 anos da imigração italiana, um marco histórico que moldou a cultura
e a identidade da região. Várias famílias foram homenageadas. Elas representavam as mais de 120 famílias italianas que vieram se instalar no bairo de Santa Felicidade entre 1878 e 1900. A cerimônia teve início com discursos enaltecendo a importância da imigração italiana na formação da identidade local. O evento era uma oportunidade para celebrar as conquistas dos italianos e honrar aqueles que, como dona Bertilla, haviam mantido viva a chama da tradição. Enquanto a noite avançava, a emoção aumentava. Dona Bertilla, juntamente com outros representantes, foi chamada ao palco para receber um diploma de reconhecimento pelo trabalho das famílias da qual descendia: Boscardin, Tulio, Menegusso, Leonardi, Dal Santo. Bertilla Boscardim, com amor pela cultura e pela herança dos imigrantes era contagioso, se tornou uma figura querida e respeitada por todos. A plateia aplaudiu, reconhecendo sua dedicação e contribuição significativa à comunidade.
Dona Bertilla, sentiu-se grata pela homenagem às famílias, exaltando os imigrantes italianos que construíram uma nova vida naquelas terras distantes. Ela sempre ressaltava o valor de manter vivas as tradições e a importância de transmitir esse legado às gerações futuras.

Ainda como parte das comemorações, em novembro de 2013 foi ao ar o especial do programa Meu Paraná que teve como entrevistada Bertilla Boscardim Pereira. Ela contou sobre o livro de memórias Casa dos Gerânios que estava em andamento, apresentou a residência histórica, o túmulo da família Boscardin, falou sobre a Santa Bertilla e sobre a flor símbolo da família Boscardin, os gerânios.
Em 10 de outubro de 2017, a família Boscardin e amigos se reuniram em missa campal na propriedade da família de Agostinho e Jacy Boscardin, um espaço amplo da moradia quase centenária da familia, e de frente ao Cruzeiro dos Boscardin, lugar dos primeiros encontros religiosos quando ainda não tinha Capela e ainda não havia padres na região. A missa era em homenagem à Santa Bertilla, pelo seu nascimento e falecimento, ambos aconteceram no mês de outubro. Neste mesmo dia, depois da missa, alguns presentes, descendentes da família Túlio, se dirigiram ao almoço na paróquia São Bartolomeu. Tratava-se de Encontro da Família Tulio. Nesse encontro foi antecipado aos presentes o movimento de organização da família Tulio porque em outubro de 2018 iriam festejar os 140 anos da Família Tulio no Brasil.
Um almoço italiano foi servido, preparado com carinho pelas matriarcas da família. Conversas animadas e crianças brincando preencheram o ambiente com alegria. O encontro reforçou a importância das raízes e da união da família Tulio.
Em 2018, o repórter Wesley Cunha, do programa Meu Paraná gravou durante uma semana inteira, pessoas e lugares de Santa Felicidade para a homenagem aos 140 anos da imigração italiana neste bairro. Entre os trabalhos realizados, realizou entrevistas com três mulheres chamadas Bertilla: Maria Bertilla Boscardin Stella (a mais jovem), Bertilla Boscardim Pereira e a sra Bertilla Zonatto Wellner. A entrevista destacou como a fé pode unir pessoas e serviu como um lembrete do exemplo de amor e serviço deixado por Santa Bertilla. O programa veio ao ar no mês de novembro, mês dos festejos dos 140 anos. A história ressoou nos corações daqueles que a assistiram, deixando um legado de esperança, amor e devoção.
Em 13 de outubro de 2018, a família Tulio se reuniu no Bosque São Cristóvão para celebrar os 140 anos da chegada da família Tulio ao Brasil. Mais de mil descendentes da família Tulio se reuniram

para comemorar a jornada da família, que se entrelaçava com a história da comunidade italiana no Brasil. A festa incluiu atividades para todas as idades, com destaque para a cerimônia oficial, iniciada por missa acompanhada do coral de Santa felicidade (que conta com vários integrantes da família Tulio). Bertilla e outros familiares compartilharam a história dos Tulio, do casal Agostino Tulio e esposa Antônia Rigon, com seus filhos que chegaram em 1878 no porto de Paranaguá. A celebração continuou com música, dança, comida e vinho, mantendo viva a tradição italiana da família Tulio. O encontro foi uma oportunidade única das pessoas se conectarem com as raízes italianas e fortalecerem os laços familiares, perpetuando o legado da família Tulio, que se tornou a mais numerosa de Santa Felicidade. Foi um dia de grande significado e gratidão para todos os presentes.
Em novembro de 2018, Santa Felicidade celebrou com orgulho seus 140 anos de imigração italiana. A festa foi uma homenagem à coragem e esperança dos primeiros imigrantes italianos que buscaram um novo lar no Brasil. Bertilla esteve presente durante os três dias de festa, na qual a comunidade celebrou com missas, seminários sobre o patrimônio cultural italiano. A festa de
rua no centro da Avenida Manoel Ribas, teve cantos, grupos musicais e danças folclóricas, barracas da gastronomia italiana, o bom vinho, e exposições históricas. O ápice da celebração ocorreu no dia 23 de novembro, marcando o aniversário da fundação do bairro. A festa foi uma reverência aos valores de coragem, resiliência e solidariedade dos imigrantes italianos, unindo gerações e fortalecendo o sentimento de pertencimento à cultura italiana em Santa Felicidade. A celebração histórica prometeu manter viva a cultura italiana para as futuras gerações.
Em 2018, a Casa dos Gerânios, propriedade da família Boscardim em Santa Felicidade, foi escolhida como um dos cenários para um documentário chamado Itálicos, que buscou preservar as antigas profissões dos imigrantes italianos na região. Bertilla e Cezar, mãe e filho, foram convidados para representar a história do primeiro moinho de fubá da região, que pertencia à família Boscardin. O cineasta Otávio Zucon dirigiu a entrevista, Bertilla e Cezar compartilharam as memórias de seus antepassados que ergueram o moinho com determinação e importaram a técnica italiana de moer milho. O moinho se tornou um símbolo de prosperidade e união na comunidade italiana. Eles tam-

bém destacaram a importância da Casa dos Gerânios como um espaço de encontro e celebração para a comunidade italiana. O documentário foi lançado com sucesso, preservando a memória dos imigrantes italianos e sua rica herança cultural. A participação de Bertilla e Cezar trouxe autenticidade à narrativa, celebrando as tradições culturais que nunca se perdem com o tempo. É possível assisti-lo neste link: https:// www.prcultura.pr.gov.br/Pagina/ Documentario-Italicos
“— Durante os eventos e encontros (homenagens e festividades), Bertilla se transformava em uma espectadora de sua própria vida. Ela apreciava esses momentos de nostalgia, encontrando conforto em reviver o passado por meio da música e das canções. Ela encontrava consolo em saber que havia confiado suas memórias a você Riccardo, garantindo que não se desvaneceriam com o tempo.”
dança e comida. Doze mulheres de descendência italiana, incluindo Bertilla, foram homenageadas com o prêmio Anita Garibaldi por suas contribuições à comunidade e pela preservação das tradições italianas. Bertilla, homenageada na categoria “pioneirismo”, emocionou-se com o reconhecimento. A amiga Flora Madalosso recebeu a homenagem na categoria "empreendedorismo". A festa continuou com alegria e união, celebrando a cultura italiana e sua rica herança. A 1ª Festa da Itália marcou o início de mais celebrações e a preservação das tradições italianas em Curitiba. Bertilla sabia que momentos como esse continuariam a fortalecer os laços entre as gerações e manter viva a cultura italiana.
Em 28 de junho de 2019, Curitiba foi palco de um evento especial, a 1ª Festa da Itália, promovida pela Associação Giuseppe Garibaldi. O local escolhido foi o Palácio Garibaldi, um espaço histórico no Largo da Ordem, onde a cultura italiana brilhou com música,
Em setembro de 2019, os escritores Juliana e Victor visitaram Bertilla e Cezar para uma entrevista especial. Eles estavam coletando histórias para o livro Se essa rua fosse minha, que explorava as histórias de famílias italianas da região de Santa Felicidade, e tinham seus antepassados contemplados com nomes de ruas. A família Boscardin coube falar sobre a Casa dos Gerânios, moinho, a Santa Bertilla e a imigração.
Bertilla já não mostrava tanta empolgação como antigamente, e, seu filho Cezar, que tanto escutou as

PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA EM MENSAGEM ENVIADA A RICCARDO HÜBNER
histórias, compartilhou as histórias da família e do bairro. Bertilla, quando lembrava de algum fato, acenava com a cabeça sorrindo. A entrevista durou três horas e foi uma oportunidade única de preservar histórias significativas. O livro foi lançado em novembro de 2020, durante a pandemia, e inspirou as pessoas com mensagens de esperança e união. A entrevista gravada se tornou um legado valioso para a família Boscardin e a comunidade, eternizando a história e os valores transmitidos de geração em geração.
No feriado do dia 12 de outubro de 2019, uma atmosfera de amor, alegria e gratidão preencheu o salão de festas da Capela São Judas Tadeu, no bairro Cascatinha. Era uma data muito especial, comemorações do aniversário de 80 anos de Bertilla, uma mulher que havia tocado muitos corações ao longo de sua vida. Mas a celebração não se limitava apenas ao aniversário de Bertilla. Naquele mesmo dia, ocorreu o tão aguardado encontro anual da família Pereira, um evento que reunia parentes de Curitiba e outros vindos de Santa Catarina para compartilhar momentos de união e relembrar as histórias que os conectavam. Desde a década de 70 a família Pereira tinha costume de se reunir no dia 12 de outubro em Jaraguá do Sul para celebrar o aniversário da matriarca Filomena.
A data permaneceu mesmo após o falecimento da Vó Mena (com quase 100 anos). Dessa vez, famílias inteiras se reuniram em Curitiba, abraçando-se com carinho e saudade. E entre elas estava Bertilla, uma figura amada por todos, cujo coração sempre transbordava afeto e sabedoria. As gargalhadas ecoavam pelo salão, enquanto todos compartilhavam histórias engraçadas e emocionantes sobre seus entes queridos. Bertilla, com um sorriso, recebia os cumprimentos e abraços de todos. Sua jornada de 80 anos era uma história de força, resiliência e amor incondicional. Ela era a matriarca da família Pereira, e sua presença ali enchia os corações de gratidão por tudo o que havia feito e representava. A festa continuou com música e dança, enquanto todos se divertiam ao som de canções italianas.
À medida que o dia chegava ao fim, os corações estavam cheios de gratidão e amor. O encontro anual da família Pereira e o aniversário de 80 anos de Bertilla se entrelaçaram de forma única, criando uma memória eterna para todos os presentes. A celebração não era apenas sobre uma data especial, mas sobre o legado de uma mulher que, ao longo dos anos, cultivou laços familiares profundos e deixou um impacto inesquecível em todos que tiveram o privilégio de conhecê-la.

No dia 1º de fevereiro de 2020, a atmosfera estava impregnada de nostalgia e celebração na sede da Sociedade Operária Beneficente Internacional São Braz (SOBI São Braz), uma sociedade ítalo-brasileira com 100 anos de história. A ocasião especial era o jantar do centenário, um evento marcante que reuniu gerações de membros e amigos da comunidade. Bertilla, com seus cabelos brancos que contavam histórias, chegou ao salão com um brilho de animação nos olhos. Ela era uma figura querida na SOBI São Bráz, tendo sido membro ativo desde a juventude. Ao entrar, foi recebida com abraços calorosos e sorrisos afetuosos por seus amigos de longa data. Enquanto a festa se desenrolava, as lembranças do passado fluíam na mente de Bertilla. Ela sorria ao relembrar os bailes animados da juventude, quando a música e a dança preenchiam suas noites com alegria. Esses bailes eram o ponto alto da vida social da comunidade, e Bertilla tinha muitas histórias divertidas para contar sobre suas aventuras nessas ocasiões especiais. Houve a cerimônia oficial de comemoração do Centenário, alguns ex-presidentes e diretores antigos foram homenageados, depois um ótimo jantar. A música ao vivo começou a tocar, e os convidados logo se reuniram na pis-
ta de dança. Bertilla não pôde resistir à tentação de reviver aqueles momentos mágicos. As memórias daquele encontro especial vieram à tona, relembrando a época em que o amor floresceu entre ela e Nilto. Em um evento semelhante, em junho de 2019, Bertilla participou dos 100 anos da SOBE Iguaçú. O mesmo local onde o destino a uniu a Nilto Pereira, o amor de sua vida. Os jantares dos centenários da SOBI São Bráz e da SOBE Iguaçu foram noites inesquecíveis. A ocasião especial trouxe à tona memórias preciosas de sua juventude e do amor que viveu ao lado de Nilto. Enquanto a festa chegava ao fim, Bertilla olhava ao redor, sentindo gratidão. As memórias dos bailes da juventude e do encontro com seu marido permaneceriam vivas em seu coração, eternamente entrelaçadas com a história centenária da sociedade que ela tanto amava.
Nos dias 7, 8 e 9 de fevereiro de 2020, a pequena comunidade de Santa Felicidade estava em efervescência. Era a época anual da Festa da Uva de Santa Felicidade, no Bosque São Cristovão, um evento muito aguardado por todos os moradores da região. Bertilla Boscardim, com seus cabelos grisalhos e um brilho nos olhos que denunciava a alma jovem

que carregava, não poderia perder a celebração da uva. Bertilla era uma figura icônica do bairro, conhecida por suas histórias envolventes e por sua presença constante nos eventos culturais da comunidade italiana. Desde muito jovem, ela participava da Festa da Uva, mas esse ano seria diferente. Aos 80 anos, Bertilla já não tinha a mesma vitalidade de antes, mas sua paixão pela cultura e pelas tradições de sua terra natal permaneciam inabaláveis. No primeiro dia da festa, Bertilla se dirigiu ao Bosque São Cristovão com um sorriso radiante. A música alegre dos grupos folclóricos a envolveu, fazendo-a recordar os tempos em que ela mesma dançava essas danças com graça e vivacidade. Sentada em uma cadeira de madeira, observou os dançarinos com nostalgia e admiração. No dia seguinte, a emocionante missa em italiano foi realizada em um pequeno santuário improvisado. O coral do bairro de Santa Felicidade entoava hinos religiosos em uma harmonia celestial. Bertilla fechou os olhos e deixou-se levar pelas memórias das missas na Itália, lembrando-se de seu pai cantando com fervor ao seu lado. Após a missa, Cezar, seu querido filho, conduziu-a pelo local. Lá estava o totem da novela Amor de Mãe. Bertilla e Cezar se posicionaram em frente à réplica da famosa cena
e sorriram para a foto, recriando o afeto materno retratado na trama. Naquele momento, a conexão entre mãe e filho se fortaleceu ainda mais, e a alegria de estarem juntos na festa era inegável. Enquanto exploravam o evento, reencontraram um jornalista sorridente, Sandro Dalpícolo, que os cumprimentou efusivamente. Ele sabia da importância de Bertilla para a comunidade e desejava revê-la. O almoço foi uma mistura de sabores e conversas animadas. Cezar e Bertilla compartilharam suas experiências de vida com entusiasmo. No fim da Festa da Uva de Santa Felicidade, no Bosque São Cristovão, Bertilla estava cansada, mas feliz. Ela não sabia que aquele provavelmente era o último evento desse tipo que participaria. Estava grata por ter vivido momentos tão especiais ao lado de seu amado filho Cezar e por ter sido reconhecida e querida pela comunidade. Enquanto se despediam do evento, Bertilla olhou para trás, apreciando mais uma vez a atmosfera festiva e os rostos sorridentes que compunham aquele cenário único. Seu coração estava cheio de gratidão por toda uma vida dedicada a compartilhar a cultura italiana e perpetuar suas raízes para as futuras gerações. Aquela festa da uva ficaria marcada em sua memória como um momento de amor, união e celebração, eternamente gravado em seu coração.

“— A pandemia de 2020 forçou Bertilla ao isolamento. Aconselhada pela equipe médica a se afastar de visitantes, ela gradualmente perdeu o contato com o mundo exterior (os detalhes da pandemia escaparam de sua compreensão, e ela a associou a uma gripe severa e à necessidade ocasional de usar máscaras)”.
PAULO CEZAR BOSCADIN PEREIRA
EM MENSAGEM ENVIADA A RICCARDO HÜBNER
No dia 21 de fevereiro de 2021, em meio a pandemia, não era ainda possível juntar todo mundo naquelas festas de compartilhar, os famosos Filós. Pereirinha teve então a brilhante ideia de realizar o Filó em Casa. Ele conseguiu reunir videos da comunidade italiana e autoridades, com apoio do Projeto Casa dos Gerânios, coordenado por Fábio e Danielle Chedid Silvestre. Uma atmosfera de alegria e nostalgia permeava os estúdios do programa Revivere Itália, com a equipe comandada por Cesar Culpi que transmitiu ao vivo o evento. Bertilla Boscardim e Cezar gravaram os videos de apresentação e faziam a transição entre os convidados. Era uma ocasião especial, uma celebração em homenagem ao dia do imigrante italiano no Brasil e no Paraná. Bertilla, uma mulher de sorriso gentil e olhos cheios de histórias, era uma das representantes mais ilustres da comunidade italiana
na região. Sua família havia desbravado terras distantes, enfrentado desafios inimagináveis e, com perseverança, construído uma vida nova em solo brasileiro. Cezar compartilhava experiências, lembranças e emoções. Enquanto as histórias eram contadas, diversas autoridades, incluindo presidentes de associações da comunidade italiana, testemunhavam e reafirmavam a importância dessa herança cultural.
Filó em casa era mais do que uma programação especial transmitida ao vivo; era um tributo emocionante à jornada da imigração italiana. As imagens mostravam momentos de festas, danças e comemorações, como também revelava as saudades da terra natal e das pessoas queridas que haviam ficado para trás. Durante a transmissão, houve participação em comentários e reações. Cezar recebia mensagens de incentivo e palavras de gratidão por compartilharem este momento. Eles se tornaram símbolos vivos da capacidade humana de superar desafios e construir um futuro melhor por meio da esperança, amor, e, união familiar.
Filó em casa deixou um legado de orgulho e pertencimento para a comunidade italiana no Brasil e no Paraná. As memórias eternizadas tocariam os corações de muitas gerações, conectando-as às raízes

de sua história e incentivando-os a manterem vivas as tradições e os valores que os tornavam únicos. Bertilla e Cezar, sempre cativantes e tocantes, provaram que as histórias de imigrantes são como pontes que conectam o passado ao presente, e que tanto a cultura e quanto as origens são tesouros inestimáveis a serem guardados com carinho e compartilhados com o mundo. No Filó estão as últimas imagens registradas de Bertilla.
“— Seis meses antes de seu falecimento, ela perdeu a capacidade de caminhar, a jornada dela, rumo à passagem, estava acontecendo. Ela persistiu, talvez esperando um evento importante: minha ida à Itália para o Centenário de Santa Bertilla Boscardin. Sua saúde, miraculosamente, se manteve até que eu retornasse. Nos últimos momentos de sua vida, Bertilla acompanhou os vídeos e missas transmitidas do Centenário da Morte de Santa Bertilla Boscardin. Duas semanas de celebrações se desenrolaram, com eventos abrangendo as cidades onde a santa havia vivido: Brendola, Vicenza, Treviso e outras. Sempre acompanhada da sua cuidadora, de mais de uma década, Neide Nancy de Lima, que lhe tratava como uma mãe. Faleceu no seu lugar favorito, sentada a mesa, e olhando a maquete de madeira da casa amarela, para onde ela sempre desejava voltar, entrar e viver,
a Casa dos Gerânios. Foi uma partida adequada para alguém que passara grande parte de sua vida compartilhando histórias ao redor daquela mesma mesa. Foi dar seu último suspiro em 23 de dezembro de 2022, no mesmo ano do centenário de Santa Bertilla (parecia que seu pai Francisco a estava chamando). Afinal, apenas três dias depois, em 26 de dezembro, completaram-se 50 anos de sua partida (da morte de Francisco, o pai). E foi assim. A Missão de Bertilla passadas de gerações em gerações transmitida pelo Francisco e Carolina, novamente e oficialmente era repassada, e assim a história continuará. Os fios de sua vida estavam entrelaçados em um tecido de legado, memória e amor, deixando para trás um impacto profundo em todos que tiveram o privilégio de conhecê-la. Seu espírito, forte e resiliente, nunca deixou de inspirar aqueles ao seu redor, mesmo nos momentos mais difíceis. Ela tinha uma maneira singular de encontrar beleza e significado nas pequenas coisas do dia a dia, um dom que compartilhava generosamente. Seu olhar carregava uma profundidade de sabedoria acumulada ao longo dos anos, refletindo as muitas experiências e lições que a vida lhe proporcionou. E agora, embora ela tenha partido, seu legado perdurará, continuando a tocar e transformar vidas, como um farol de esperança e amor que jamais se apagará.

PAULO CEZAR BOSCARDIN PEREIRA MENSAGEM À RICCARDO HÜBNER.


BERTILLA BOSCARDIM E A FELICIDADE EM UM ALMOÇO DE DOMINGO, COM PAULO CEZAR BOSCARDIM PEREIRA.

EPÍLOGO
Caro amigo Cezar,
Tomo a liberdade de transformar essa última mensagem enviada a você pelo WhatsApp em um último texto do livro Casa dos Gerânios.
Lembro como se fosse hoje, o dia em que você e dona Bertilla chegaram à minha casa para conversarmos sobre a escrita deste livro. A primeira sensação que tive foi recorrente em todas as outras vezes que nos encontramos para ouvir a história da dona Bertilla. Mas, qual foi essa sensação? Uma sensação de paz. Diferentemente das duplas imbatíveis do cinema hollywoodiano, lá estava uma dupla que emanava um comportamento cada vez mais raro nos dias de hoje: gentileza. Talvez o leitor tenha ficado atento a outros aspectos da história da dona Bertilla e, por esse motivo, não poderia eu deixar de enaltecer esse traço de personalidade que sua mãe tinha, e que você herdou com maestria. Como é bom termos amigos educados e gentis. Desde o começo, percebi duas pessoas com suas fragilidades, mas com muita habilidade para enfrentá-las. Cada qual à sua maneira, mas ambos com educação e gentiliza. Sou grato.

MINHA RESPOSTA ÀS MENSAGENS DE PAULO CEZAR BOSCARDIN PEREIRA 2 DE SETEMBRO DE 2023
As entrevistas foram se acumulando e, com o passar dos dias, a história foi se revelando. E, assim, a grande mensagem foi ficando cada vez mais nítida.
Dias após dia vi um filho sorrir ao lado de sua amada mãe. Vi uma mãe sorrindo ao lado do seu amado filho. Será que podemos imaginar uma cena mais bonita que essa? Sua mãe era cristã. Acreditava em Deus, acreditava em Jesus, acreditava no poder do Espírito Santo. Da mesma forma que eu vi você e sua mãe, juntos, sorrindo, também posso imaginar ela junto ao Criador, sorrindo.
Sei que a cada dia que passa, menos famílias – proporcionalmente ao tamanho da população – frequentam igreja, ou se dizem cristãs. Mas, a verdade é que ser cristã fez toda a diferença na vida da sua mãe, e talvez este livro ajude pessoas no futuro a buscar uma aproximação com Deus. E isso pode ser muito bom.
Ultimamente, tenho estudado muito a morte e, sabe Cezar, pessoas, pensadores e cientistas em todo o mundo reconhecem que a crença em algo superior ajuda muito as pessoas a superar seus momentos de
maior dificuldade. E mesmo aqueles que se dizem ateus, na hora H, recorrem a Deus (ouvi falar que no campo de batalha não existe ateu). Ora, obviamente essa minha última observação está mais para uma anedota, mas guarda, no fundo, uma mensagem extremamente valiosa: “somos mais fortes quando temos Deus em nossas vidas”. Acredito que essa seja a maior e mais valiosa mensagem deixada pela dona Bertilla. O legado, a missão de perpetuar as tradições dos antepassados, etc., é claro, têm uma importância enorme, mas as demonstrações de fé, são absolutamente imprescindíveis. Imprescindíveis, Cezar, porque teremos enormes desafios a vencer como humanos. Temos pandemias, desastres climáticos, guerras e outras coisas improváveis, porém possíveis que podem exigir de nós uma intimidade muito grande com Deus, a menos que queiramos (a humanidade) desvanecer de forma mansa, triste e cruel.
Quando o ser humano deixa de crer em um Deus de amor – e sua mãe acreditava fortemente nesse Deus – ele se aproxima de uma racionalidade perigosa. Sim eu sei, na maioria das vezes, uma pessoa que acredita em Deus pode parecer idiota, estúpida aos olhos daqueles, mais inteligentes, mas aprendi na vida,
errando e sofrendo, que inteligência sem sabedoria não tem grande valor, e até mesmo pode nos fazer grande mal. Agora, sabedoria, sem inteligência, não é o ideal, mas pode nos salvar e ajudar a salvar outras pessoas. Sua mãe era sábia, Cezar. Em momento algum ela me falou sobre coisas fúteis, pequenas, impróprias etc. Ela, a cada palavra, queria nos falar a respeito da fé, do amor, da alegria. Mesmo com enormes desafios que teve em relação a saúde, fez questão que todos esses desafios fossem vencidos, com a medicina sim, mas sempre com a ajuda de Deus, de Jesus, do Espírito Santo. E, nesse ponto, concordo plenamente com ela, cada vez mais. Não temos a certeza de nada nessa vida, nem mesmo as regras básicas da Matemática se aplicam a todo o universo. E se não sabemos a verdade, e provavelmente nunca saberemos, creio que seja mais sábio e melhor acreditarmos em um Deus de amor. Que este livro, Cezar, ajude muito mais que manter a história e as tradições dos descendentes dos italianos de Santa Felicidade, ajude a manter a nossa fé e a nossa gratidão a Deus. Obrigado dona Bertilla. Obrigado Cezar.
RICCARDO HÜBNER


POSFÁCIO
Numa tarde de nostálgico crepúsculo, descubro-me folheando as páginas amareladas de um livro que, mais que meras palavras impressas, revela-se uma crônica entrelaçada das vidas e experiências da família Boscardin. Cada capítulo, uma crônica em si, como se o tempo se debruçasse sobre as memórias, transformando-as em crônicas da existência. Iniciamos encontrando os imigrantes que, como arautos do destino, cruzaram o oceano no século XIX, trazendo consigo a herança da Itália dos carros de bois. Ah… as suas jornadas, suas esperanças plantadas em terras paranaenses e os desafios que moldaram um novo lar no Brasil em expansão.
A chegada ao Brasil é o prelúdio, seguido pela fundação de Santa Felicidade, onde cada integrante dessa sinfonia familiar contribui com seus versos únicos. O moinho, as carroças e o frio curitibano são testemunhas
do crescimento dessa família em solo brasileiro.
Afinal, ir pela Via dei carri , pela rua do chão batido, no caminho do dia a dia, fazendo a diferença, é o ensinamento que Santa Bertilla nos deixou. E minha mãe Bertilla, em cada página, revelou sua jornada desde o nascimento até sua entrega apaixonada à fé e à educação. A Casa dos Gerânios é o palco de suas travessuras, e a crônica descreve a força singular dessa alma.
Na serenata do amor eterno entre Nilto e Bertilla, uma nota na melodia de um casamento que enfrentou desafios, celebrou momentos, mas continuaram a dançar juntos. O trabalhar dos moinhos são a trilha sonora dessa história.
As adversidades foram muitas: de picadas de cobra a enchentes. Cada desafio foi enfrentado com uma coreografia de fé, resiliência e, às vezes, uma pitada de

bom humor. A superação é diária. Viagens, entrevistas e a "colcha de retalhos" da vida são movimentos que ressoam como uma vitória sobre as adversidades, uma dança triunfante que ecoa através das gerações.
A partida de Nilto é um acorde triste, mas planos, valores e continuação da história se desdobram como versos que transcendem as páginas, deixando-nos com a sensação de que a crônica continua a ser escrita, mesmo quando a autora principal já não está presente.
Em meio às páginas envelhecidas deste livro de memórias, ergo meu coração em tributo à ilustre Bertilla Boscardim Pereira, uma figura que transcende as linhas do tempo com sua luminosidade singular. A vida dela é uma melodia eterna, entoada com notas de devoção, alegria e amor. Bertilla, como personagem central desta narrativa, personifica a
beleza encontrada na simplicidade de gestos altruístas e na dedicação incansável à família e à fé. Seu legado ressoa como uma canção eterna, inspirando-nos a trilhar caminhos de bondade, resiliência e compaixão. Que este tributo não seja apenas um eloquente agradecimento, mas também um compromisso renovado de honrar sua memória, perpetuando os valores que ela incutiu tão generosamente em cada página de sua vida simples e intensa.
Ao fechar este livro, percebo que cada página é uma crônica da vida, uma narrativa de encontros, despedidas, desafios e triunfos. A crônica dos Boscardin, entrelaçada com o fio de ouro do tempo, é uma história que transcende as palavras, ecoando como uma história viva que continua a ser contada, mesmo após o último ponto-final. Como uma gota relevante no mar do patrimônio cultural que une Itália e Brasil.
PAULO CEZAR PEREIRA


ÁLBUM DA BERTILLA (ACERVO PAULO CEZAR)

BERTILLA NO CASAMENTO DA SUA PRIMEIRA E ÚNICA NETA JANAINA PEREIRA COM PETERSON GOBI EM OUTUBRO 2011 .

BERTILLA NO ANIVERSÁRIO DE SEU FILHO PAULO CEZAR, A 50TH CEZAR'S PARTY, NO MINAS D'AGUA EVENTO, EM 28/07/2012.

ENSAIO FOTOGRÁFICO RAÍZES ITALIANAS PARA A FESTA DE 50 ANOS DE PAULO CEZAR, EM JULHO 2012.


BERTILLA NA CAPA DO DVD DA FESTA DOS 140 DA FAMÍLIA TULIO NO BRASIL EM 13 DE OUTUBRO DE 2018.

GRAVAÇÃO EM JULHO 2012 NO LOCAL DA INFÂNCIA E BOAS MEMÓRIAS: BOSQUE DO CASCATINHA.

BERTILLA BOSCARDIM E FLORA MADALOSSO NO RESTAURANTE MADALOSSO (2012).

BERTILLA E PAULO CEZAR EM ALMOÇO EM PENHA-SC, 2015.


GRAVAÇÃO PARA O DOCUMENTÁRIO ITALICOS,DO PROJETO CULTURAL DE OTÁVIO ZUCON, REPRESENTANDO MOINHOS DE SANTA FELICIDADE, A HISTÓRIA DA POLENTA BRANCA NO BRASIL, 2018.

BERTILLA NA GRAVAÇÃO DE REPORTAGEM PARA O MEU PARANÁ — 140 ANOS DA IMIGRAÇÃO ITALIANA EM STA. FELICIDADE (NOVEMBRO, 2018).

BERTILLA RECEBE PRÊMIO ANITA GARIBALDI,CATEGORIA PIONEIRISMO, DA ASSOCIAÇÃO GIUSEPPE GARIBALDI, NO PALÁCIO GARIBALDI EM JUNHO 2019.






"SEJAMOS

SIMPLES, PRESTATIVOS, HUMANOS.
LEVANTEMOS OS CAÍDOS,
OS SEM AMOR,
E SEM ESPERANÇA.
COM UMA PALAVRA PODEMOS
SALVAR MUITAS VIDAS.
VAI COM DEUS,
SEJA FELIZ, DEUS TE AMA."
BERTILLA BOSCARDIM PEREIR A









