Anais 6 seminario

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ISSN: 2525-7463

ANAIS DO 6º SEMINÁRIO DO

GPLV

Imagem de domínio público

18 e 19 de abril de 2016 Aquidauana, MS – Brasil 20 de abril e 11 de junho de 2016 Corumbá, MS – Brasil


Anais do 6º Seminário do GPLV © 2016 dos respectivos autores

PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação Editorial Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles Doutoranda Pauliane Amaral Mestranda Natália Tano Portela Capa Pauliane Amaral Periodicidade Semestral Divulgação Eletrônica UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL GPLV - PPG/Letras/UFMS/Câmpus de Três Lagoas Letras - UFMS/Câmpus de Aquidauana Letras - UFMS/Câmpus de Corumbá COMISSÃO ORGANIZADORA Prof.Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN) Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL) Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL) Prof.ª Dr.ª Janaína Zaidan Bicalho Fonseca (UFMS/CPAQ) Prof.ª Dr.ª Me. Isabel Cristina Ratund (UFMS/CPAQ) Prof.ª Dr.ª Rosalina Brites de Assunção (UFMS/CPAQ) Mestranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL) Graduando Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMS/CPTL) COMISSÃO CIENTÍFICA Prof.Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN) Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL) Prof. Doutorando Marcos Rogério Dorneles (UFMS/CAQ/CPTL) Prof.ª Dr.ª Janaína Zaidan Bicalho Fonseca (UFMS/CAQ) Doutoranda Pauliane Amaral (UFMS/CPTL) Mestranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL) Contato Principal E-mail: gpliteraturaevida@gmail.com Site: http://gpliteraturaevida.blogspot.com.br/p/eventos.html SOUZA, Eunice Prudenciano; RODRIGUES, Rauer Ribeiro; DORNELES, Marcos Rogério Heck; AMARAL, Pauliane; PORTELA, Natália Tano. (Orgs.). Anais do 6º Seminário do GPLV, 18, 19 e 20 de abril e 11 de junho de 2016 [recurso eletrônico], Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Aquidauana e Câmpus de Corumbá, 2016, 252p.


Sumário Apresentação Rauer Ribeiro Rodrigues

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Programação geral

10

Caderno de resumos das comunicações 1 - Linguística 2 - Literatura

17 26

Mesas-redondas

37

Minicursos

42

Artigos completos - 1 – Linguística Daniele Lucena Santos Fernanda Viana de Sena/Nataniel dos Santos Gomes Giselle Vasconcelos dos Santos Ferreira / Nataniel dos Santos Gomes Michelle Sousa Mussato Selma Marques da Silva Fávaro Tamires Dantas Pereira Cândido / Maria Luceli Faria Batistote

44 58 70 81 95 104

Artigos completos - 2 – Literatura Ângela Nubiato Lopes Cesar Christian Ferreira Santos / Márcia Maria de Medeiros Cibele Fátima do Prado Daniel Abrão / Janaína Nunes Roque Eunice Prudenciano de Souza Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim Julio Augusto Xavier Galharte Karina de Fátima Gomes / Rodrigo Andrade Pereira Marcos Rogério Heck Dorneles Maura Camargo Oliveira/Márcio Antonio de Souza Maciel Rodrigo Andrade Pereira Rodrigo Andrade Pereira

114 126 137 151 160 171 184 198 208 220 229 242


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Apresentação Rauer Ribeiro Rodrigues 1 Esta apresentação se divide em três partes. Nesta primeira, falamos da gênese do trabalho conjunto realizado e agradecemos as parcerias que viabilizaram o evento. Na segunda parte, registramos o conteúdo destes Anais e, na terceira, fazemos breve balanço dos cinco anos de atividades do GPLV. Desde sua concepção, o GPLV se constituiu como um Grupo de Pesquisa que se abre para além das fronteiras de uma sede fixa: foi formalizado em Ituiutaba, MG, durante um evento, tendo por coordenador um professor lotado em Corumbá, no Câmpus do Pantanal da UFMS; no grupo fundador tínhamos pós-graduandas do Mestrado em Estudos de Linguagens, da UFMS de Campo Grande, e do Mestrado em Letras, da UFMS de Três Lagoas; ampliava ainda esse espírito difusor a origem dos pesquisadores ─ goianos, mineiros, paulistas, sul-mato-grossenses ― e o local em que residiam ― Campo Grande (MS), Corumbá (MS), Ilha Solteira (SP), Pereira Barreto (SP) e Três Lagoas (MS). Tal gênese tem se manifestado nas articulações internas e externas do GPLV. Realizamos agora nosso 6º Seminário, que teve por palco o Câmpus de Aquidauana da UFMS. Antes, passamos novamente por Ituiutaba, assim como por Corumbá e por Três Lagoas. A vocação agrego difusora‖ se manifestou em outras ocasiões, abrindo o Seminário para outras vozes além das integrantes do Grupo; agora, se vincula ao Curso de Letras da UFMS de Aquidauana para a realização do evento. Registremos que tal integração só se mostrou possível pela forma de pensar e agir dos professores do Curso de Letras do CPAQ, a quem agradecemos, e em especial agradecemos à Profa. Janaína Zaidan Bicalho Fonseca, coordenadora do Curso, e ao Prof. Marcos Rogério Heck Dorneles, pela gestão local que viabilizou o evento. É preciso também que se registre a postura e o empenho dos monitores do CPAQ e da equipe do GPLV nas diversas fases do evento: a divulgação inicial, a realização em si do evento, a atualização das informações no Portal do GPLV, a emissão dos certificados e a preparação deste volume. Em particular, cabe aqui o registro da eficiência do trabalho da Prof.ª Eunice Prudenciano de Souza, da doutoranda Pauliane Amaral, da mestranda Natália Tano e do graduando Igor Iuri Dimitri Nakamura. Cabe também ressaltar a participação dos professores-debatedores que analisaram os projetos, apontaram equívocos, indicaram possibilidades, propuseram bibliografia complementar. Neste 6º Seminário, foram os professores Carlos Martins Júnior (CPAQ/UFMS) e Júlio Augusto Xavier Galharte (CPAN/UFMS).


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O evento se desdobrou com uma noite e uma tarde de atividades no Câmpus do Pantanal, em Corumbá. Para tanto, além da efetiva participação dos acadêmicos, ressalte-se o incentivo a tal participação por parte dos colegas dos cursos de licenciatura e de pós-graduação do CPAN, e à divulgação efetivada pelas coordenadoras das duas habilitações em Letras, profas. Adriana Viana Postigo Paravisine e Alcione Maria dos Santos. O Curso de Letras, UFMS, CPAQ, e o ―Grupo de Pesquisa em Ensino de Língua Portuguesa, GRUPELP‖, coordenado pela Profa. Janaína Zaidan Bicalho Fonseca, propiciaram a exposição e o debate de vários trabalhos acadêmicos realizados no CPAQ. Dentre eles, destacamos estudos de iniciação científica, trabalhos de conclusão de curso e pesquisas de pós-graduação, inseridos nos seguintes projetos de pesquisa: ―Leitura e escrita no ensino médio: demandas para a ação e a formação de professores, caminhos para novas práticas‖; ―As estratégias de didatização constitutivas do agir da identidade do professor de português: efeitos das representações sobre a atividade docente no processo de ensino‖; ―Novos Letramentos e Multiletramentos no Ensino de Línguas em Letras: ressignificando em tempos globais‖; ―O discurso do MST sobre Educação Básica: a construção da identidade do Sem Terra‖; ―Léxico dialetal no português do Brasil: em busca de traços de ruralidade e de urbanização‖; ―Tesouro do léxico patrimonial galego e português: Brasil‖; ―Estudos terminológicos em Mato Grosso do Sul‖. O Seminário destacou-se como um momento e um espaço de aprofundamento dos debates acerca das vertentes teóricas, críticas e metodológicas sobre língua, linguística e ensino; além disso, concretizou-se como uma instância de interação entre professores, acadêmicos e pesquisadores de diversos campi da UFMS e de outras instituições de ensino. Sobre o GPLV, o apresentamos em detalhe no último bloco desta Apresentação. 2 Estes Anais do 6º Seminário do GPLV trazem, além da programação completa realizada, o resumo das comunicações, das palestras, dos minicursos e da oficina pedagógica, e a quase totalidade dos textos apresentados. Os resumos e os artigos estão divididos em duas secções: Linguística e Literatura. Os resumos dos estudos linguísticos estão subdividos em: 1. Estudos do discurso e do texto; 2. Metodologias para o ensino de línguas maternas e/ou estrangeiras; e 3. Novos e múltiplos letramentos. Os resumos dos estudos literários estão em dois blocos: 1. Literatura brasileira contemporânea; 2. Literatura, teoria e crítica.


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Os resumos das palestras, dos minicursos e da oficina pedagógica são apresentados, nesta sequência, em secções específicas. Dentro de cada secção, seguimos a ordem alfabética do primeiro nome do autor ou, se for o caso, do primeiro autor. Já os artigos completos são divididos entre Estudos Linguísticos e Estudos Literários, mantendo internamente a sequência alfabética correspondente ao primeiro nome do autor ou do primeiro nome do primeiro autor. Eis um quadro com os números de cada seção ou bloco:

TOTAL DE ITENS POR CATEGORIA Resumos de Estudos do discurso e do texto Resumos de Metodologias para o ensino de línguas maternas e/ou estrangeiras Resumo de Novos e múltiplos letramentos Subtotal de Linguística Resumos de Literatura brasileira contemporânea Resumos de Literatura, teoria e crítica Subtotal de Literatura Subtotal dos resumos Resumos das palestras nas Mesas Redondas Resumos dos Minicursos Resumo da Oficina pedagógica Subtotal de Palestras, Minicursos e Oficina Subtotal de resumos Artigos de Linguística Artigos de Literatura Subtotal de Artigos Total geral

11 6 1 18 7 13 20 38 8 3 1 12 50 6 9 15 65

O evento, como se pode verificar na programação, contou, como um todo, com 42 Comunicações e dez Palestras. Além das Comunicações e Palestras, tivemos nove projetos discutidos, duas defesas de TCC e atividades culturais. Ao término do evento, ficou indicada a realização do 7º Seminário do GPLV para o período de 23 a 25 de novembro deste ano em Três Lagoas.

3 Apresentamos, a seguir, um pequeno esboço da trajetória do GPLV, que completou cinco anos neste maio de 2016.


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O Grupo foi criado no dia 13 de maio de 2011, durante a 4ª Semana Luiz Vilela, evento que ocorreu na cidade de Ituiutaba, Minas Gerais, terra natal do escritor Luiz Vilela. O Grupo era então constituído por mestrandas da área de estudos literários de programas de pós-graduação da UFMS, tendo por sede o PPG-Letras do Câmpus de Três Lagoas. Logo em seguida, criamos um Blog para divulgar as atividades do Grupo e nele constituir portal com a fortuna crítica do escritor Luiz Vilela. A criação do Grupo e a efetivação dessas ações estavam previstas no Projeto de Pesquisa ―A poética de Luiz Vilela‖, proposto por mim no início de 2011, com encerramento previsto ─ no cronograma do Projeto ─ para agosto de 2016. O grupo original que compôs o GPLV e defendeu dissertação sobre a obra de Luiz Vilela era composto pelos seguintes pesquisadores, seus respectivos trabalhos e ano de defesa: 1. Laura Eliane de Magalhães Alvarez Delgado. A alteridade em narrativas de Luiz Vilela. 2012. 2. Janaína Paula Malvezzi Torraca da Silva. Eros e civilização em Luiz Vilela: a repressão sexual em contos no ambiente escolar. 2013. 3. Pauliane Amaral. A função-autor no roman à clef: personagem e narrador em O inferno é aqui mesmo, de Luiz Vilela. 2013. 4. Raquel Celita Penhalves dos Reis. O antropófago mineiro: um estudo sobre a ficção de Luiz Vilela. 2013. 5. Rosana da Silva Araújo. Ficção e História em Os novos, de Luiz Vilela. 2013.

Antes desses trabalhos, havíamos já orientado as seguintes pesquisas sobre a obra de Luiz Vilela em cursos pós-graduação da UFMS, com os respectivos anos de defesa: 1. Londina da Cunha Pereira. O chiste epifânico em Luiz Vilela: o riso, do humor à sátira, nos contos de A cabeça. 2010. 2. Rodrigo Andrade Pereira. Tormenta e resignação: traços do Bildungsroman em contos de Luiz Vilela. 2010. 3. Aline de Jesus Sena. Da submissão à dominação ― as mulheres na obra de Luiz Vilela. 2011. 4. Isaías Leonídio Farias. O erotismo no romance Graça, de Luiz Vilela. 2011.


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5. Ronaldo Vinagre Franjotti. O mundo como GRAÇA e representação - polifonia, epifania e niilismo em Luiz Vilela. 2011. Posterior à criação do GPLV, e até o momento, tivemos mais duas dissertações defendidas: 1. Lucas Fernando Gonçalves. A "Graça" do Nada: alguns aspectos filosóficos da ficção de Luiz Vilela. 2014. 2. Karina Torres Machado. Literatura, escolarização e práticas de ensino: a recepção de contos de Luiz Vilela no Ensino Fundamental. 2015. Em agosto, teremos a defesa de mais uma dissertação: 1. Angela Nubiato Lopes. A obra de Luiz Vilela na formação de leitores no Ensino Fundamental. Início: 2014. O GPLV, nestes cinco anos, ampliou em muito o rol de pesquisadores e passou a ter, além de mestrandos de mestrados acadêmicos, pesquisadores do Profletras Mestrado Profissional em Letras, doutorandos, graduandos em iniciação científica, planos de trabalho de TCC's e uma pesquisa de pós-doutoramento. Um TCC foi concluído em 2015 e dois Pibics serão concluídos em 2016. No momento, temos, no âmbito do Grupo, mais seis TCC‘s em andamento, quatro pesquisas de mestrado, cinco pesquisas de doutorado e uma pesquisa de pós-doutorado. Essas pesquisas são todas orientadas pelo Prof. Rauer, exceto as duas de Iniciação Científica e um mestrado, cuja orientação cabem à Profa. Dra. Kelcilene Grácia Rodrigues, do PPG-Letras Mestrado e Doutorado da UFMS de Três Lagoas; os Pibic‘s se voltam para o levantamento da fortuna crítica de obras de Luiz Vilela, e o mestrado pesquisa os nomes das personagens do volume de estreia do escritor, Tremor de terra (1967). Registre-se que algumas das pesquisas sob orientação do Prof. Rauer não se voltam para o estudo da obra de Luiz Vilela, mas de outros autores da literatura brasileira contemporânea. O coordenador do Grupo, além do estudo de pós-doutorado que realizou na UERJ sobre a obra de Machado de Assis, tendo por supervisor o Prof. Roberto Acízelo, tem orientado também pesquisas sobre regionalismo e sobre microconto, assim como de autores os mais variados, como Manoel de Barros, Clarice Lispector, Autran Dourado, Mário Prata, Vargas Lhosa e a escritora Alciene Maria Ribeiro Leite de Oliveira, que planeja a reedição de todos os seus livros, assinando como Alciene Ribeiro. No âmbito das produções acadêmicas, até a constituição do GPLV, havia sido produzida uma única tese sobre o escritor, defendida em 2006 pelo hoje coordenador do Grupo, Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (aqui e aqui), e quatro teses com capítulos sobre Luiz Vilela; outra tese, na UFSC, foi defendida em 2015.


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O volume de dissertações anteriores ao GPLV era maior: haviam sido defendidas, até 2011, dez dissertações sobre a obra de Vilela, a primeira em 1992; de 2011 até o momento, mais treze dissertações foram defendidas, sendo que onze delas foram orientadas pelo Prof. Rauer. Essas informações, com referência completa e links para a maioria dos trabalhos, está disponível na aba "Fortuna Crítica" do Blog do GP Luiz Vilela, em relação que também inclui os TCC's e monografias de especialização, além de rol de artigos e filmografia baseada na obra do escritor. O GPLV realizou, ao longo desses cinco anos, seis Seminários de Pesquisa, fazendo-os ― além da sede do Grupo, em Três Lagoas ― em Ituiutaba, com a presença do escritor durante os debates, e nos campi da UFMS de Aquidauana e Corumbá (para ver detalhes do mais recente, acesse no menu do Blog a aba "Eventos"). Tem ainda realizado, mensalmente, reuniões como Grupo de Estudos, debatendo aspectos pontuais da teoria literária ou da obra de Luiz Vilela. As convocatórias e atas de algumas dessas reuniões estão disponíveis nas notícias postadas no Blog do Grupo. Consolidado no modo de atuação, o GPLV estabeleceu, nos dois últimos anos, diversas parcerias com outros pesquisadores, na UFMS e em outras instituições, ampliando e diversificando seus interesses, conforme exemplifica estes Anais do Seminário recentemente realizado e a participação de membros do Grupo em congressos e outras atividades acadêmicas em diversas outras instituições. Ao agradecer a todos os que participaram do evento em Aquidauana e a todos os que enviaram seus artigos para estes Anais, deixamos o convite para novo encontro em Três Lagoas, em novembro próximo. Boa leitura, e até lá!

Corumbá, 12 de junho de 2016.


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Programação geral 18 de abril de 2016 Horário

Atividade

Local

07h às 08h 08h às 09h30

Cadastro e credenciamento Comunicações de Linguística

Unidade 1, UFMS/CPAQ Salas 2, 3 e 4, Unidade 1, UFMS/CPAQ

Sala 2 (térreo) 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediadora: Prof.ª Me. Isabel Cristina Ratund

    

 Os anglicismos em Manhattan Connection (Giselle Vasconcelos dos Santos Ferreira / Nataniel dos Santos Gomes)  A sequência didática: metodologia de trabalho docente (Camila Candido Oliveira Menezes / Jéssica Campos de Arruda)  A nova ortografia nas aulas de língua portuguesa: uma proposta para o ensino fundamental (Fernanda Viana de Sena / Nataniel dos Santos Gomes)  Ensino da língua inglesa nos anos iniciais: aprendendo com transletramentos educacionais (Larissa Chujo Rodrigues Higa Serpa)  O projeto de educação do MST e a escola do assentamento São Manoel (Antonio Martins da Costa Cunha / Rosalina Brites de Assunção)  Negociación de sentidos y prácticas translingües en las clases de lengua española de alumnos brasileños (Lorene Férnandez Dall Negro Ferrari)

Sala 3 (piso superior) 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediadora: Doutoranda Andréia Marques Rosa Eduardo (PPGL - CPTL)

   

 Análise discursiva da carta de apresentação do referencial curricular nacional para as escolas indígenas (Selma Marques da Silva Fávaro)  Koinukunoen: escola; território e movimentos identitários (Daniele Lucena Santos)  O RCNEI e o discurso do professor terena: as representações sobre o currículo e o ensino da língua materna (Andréa Marques Rosa Eduardo)  Surdo terena: constituição identitária do sujeito (Michelle Sousa Mussato)  A construção discursiva de identidades de migrantes haitianas no Acre (Ana Maria Casarotti



11 Franco)  A identidade de uma estudante surda brasileira e sua apropriação da língua inglesa como língua adicional (José Augusto Albuquerque Rabelo)

Sala 4 (piso superior) 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediadora: Prof.ª Dr.ª Rosalina Brites de Assunção  O mistério do símbolo de Marcello Grassmann (Oswaldo Guimarães Barbosa)    O percurso gerativo de sentido na parábola bíblica ―O homem rico e Lázaro‖ (Iury Feitosa da Rocha)

  

 Tirada das tiras: leitura semiótica e sociolinguística [na linguagem] de Mariadadô (José Gilberto Garcia Rozisca / Rosangela Villa da Silva)  Fabrincando o sentido: ―o fazedor de amanhecer‖, de Manoel de Barros, à luz da semiótica discursiva (Tamires Dantas Pereira Cândido / Maria Luceli Faria Batistote)  A utilização de símbolos religiosos em produções audiovisuais da cantora Madonna: uma leitura semiótica (Diego Barcellos de Souza)

09h30 às 10h

Intervalo

10h às 11h30

Comunicações de Linguística

11h30 às 13h30

Intervalo

13h30 às 17h30

Minicursos e Oficina Pedagógica

17h30 às 19h30

Intervalo

19h30 às 20h50

Mesa-Redonda 1

Salas 2, 3 e 4, Unidade 1, UFMS/CPAQ

Unidade 1, UFMS/CPAQ

Anfiteatro da Unidade I, UFMS/CPAQ

Mesa 1 - Pesquisas e perspectivas linguísticas: Mediador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Auri Claudionei Matos Frübel (UFMS/CPAQ) Base de dados terminológicos de Mato Grosso do Sul: produções e perspectivas. Janaína Zaidan Bicalho Fonseca (UFMS/CPAQ) Discursos e práticas do professor de português em formação.

Rosalina Brites de Assunção (UFMS/CPAQ)

20h50 às 22h10

Mesa-Redonda 2

Análise do discurso da proposta de Educação para a constituição do sujeito nos assentamentos. Anfiteatro da Unidade I,


UFMS/CPAQ


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Mesa 2 - Literatura, História e Filosofia: Mediador: Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza Miguel Rodrigues Sousa Neto (UFMS/CPAQ)

O corpo na letra - visões do homoerotismo

na literatura de João Silvério Trevisan.

Julio Augusto Xavier Galharte (UFMS/CPAN)

Uma leitura de Nos beirais da memória, novela de Alciene Ribeiro Leite

Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL)

Processos e dinâmicas do pensamento filosófico na produção contística

19 de abril de 2016 Horário

Atividade

Local

08h às 09h30

Comunicações de Literatura

Salas 2, 3 e 4, Unidade 1, UFMS/CPAQ

Sala 2 (térreo) 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediação: Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza

    

 A violência em uma novela de Alciene Ribeiro Leite (Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim)  Recordar, elaborar, escrever [...]: esquecimento, lembrança e recordação em ―Cartas perto do coração de Fernando Sabino e Clarice Lispector (Francine Carla de Salles Cunha Rojas / Edgar Cézar Nolasco)  O espaço e o discurso: uma análise literária do conto ―No bar, de Luiz Vilela (Igor Iuri Dimitri Nakamura / Luciene Lemos de Campos)  A subversão do ideal do ―príncipe encantado‖ (Eunice Prudenciano de Souza)  Aspectos da fortuna crítica de Luiz Vilela: Tremor de terra revisitado (Igor Iuri Dimitri Nakamura)  Formação de leitores: método científico e contos de Luiz Vilela (Angela Nubiato Lopes)  Erotismo ou pornografia: a sexualidade em Luiz Vilela (Maria do Socorro Pereira Soares do Carmo)

Sala 3 (piso superior)


13 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediação: Doutorando Rodrigo Andrade Pereira

     

 A tragicidade como intersecção constitutiva em contos luso-brasileiros (Marcos Rogério Heck Dorneles)  O espaço narrativo na obra de Alciene Ribeiro Leite através da leitura do romance Nos beirais da memória (Karina de Fátima Gomes / Rodrigo Andrade Pereira)  Reminiscências do medievo na obra Inocência: uma aproximação com os romances de cavalaria (Cesar Christian Ferreira Santos / Márcia Maria de Medeiros)  Breve caracterização do escritor Cornélio Penna (Maura Camargo Oliveira / Márcio Antonio de Souza Maciel)  A figuração das coisas na poesia de Ana Martins Marques (Paulo Eduardo Benites de Moraes)  Atributos míticos e conceituais em contos de Objeto quase, de José Saramago (Jorge Manoel de Holanda / Marcos Rogério Heck Dorneles)  Contadores de histórias: arquinarrador e o narrador-editor em Entre amigos, romance de Luiz Vilela (Rodrigo Andrade Pereira) Sala 4 (piso superior) 08h às 09h30 e 10h às 11h30 Mediação: Prof. Dr. Julio Augusto Xavier Galharte

     

 Tempo e resistência no [fazer do] cururu sul-mato-grossense (José Gilberto Garcia Rozisca)  A construção das personagens de ficção na novela Filho de pinguço, de Alciene Ribeiro Leite (Cibele Fátima do Prado)  A paratopia do autor no conto ―Teoria do medalhão‖, de Machado de Assis (Juliana Recalde Gimenez / Rosalina Brites de Assunção)  Alguns eloquentes silêncios na literatura modernista brasileira (Julio Augusto Xavier Galharte)  Jogos vorazes: um ciclo vicioso de adaptações (Yasmin Oliveira Massulo Noviaky)  Distintas dimensões da relação entre protagonistas e a manutenção da escrita em Contos com monstros, de Antonio Bracinha Vieira (Job Floriano Justino / Marco Rogério Heck Dorneles)

 O regional como questão: traços de regionalidade na literatura brasileira (Daniel Abrão / Janaína Nunes Roque)

09h30 às 10h

Intervalo

10h às 11h30

Comunicações de Literatura

11h30 às 13h30

Intervalo

Salas 2, 3 e 4, Unidade 1, UFMS/CPAQ


14 13h30 às 17h30

Debate de projetos do GPLV e de projetos de Literatura

Sala 3, Piso superior, Unidade 1, UFMS/CPAQ

Debate de projetos do GPLV e de projetos de Literatura Debatedores: 1. Prof. Dr. Carlos Martins Júnior (UFMS/CPAQ); 2. Prof. Dr. Júlio Augusto Xavier Galharte (UFMS/CPAN). Moderador: Doutoranda Pauliane Amaral (UFMS/CPTL) 13h20

Ruínas e Modos de narrar em A Cabeça, de Luiz Vilela, e em Sete Contos de Fúria, de Bracinha Vieira.

Projeto de pesquisa de Doutorado de Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL)

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues. Debatedor: Júlio Augusto Xavier Galharte 13h45

A nomeação das personagens nos contos que tratam da condição feminina na coletânea Eu choro do palhaço, de Alciene Ribeiro Leite

Plano de Trabalho de TCC de Regmar Fátima Yovio de Souza (UFMS/CPAN)

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues. Debatedor: Júlio Augusto Xavier Galharte 14h10

Alciene Ribeiro Leite: Uma vida registrada em acervo Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues.

Projeto de Pesquisa de Mestrado de Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo (UFMS/CPAN)

Debatedor: Júlio Augusto Xavier Galharte 14h35

Repressão e sexualidade feminina: uma análise dos contos de Alciene Ribeiro Leite Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues.

Projeto de Pesquisa de Mestrado de Natália Tano Portela (UFMS/CPTL);

Debatedor: Carlos Martins Júnior 15h00

A fortuna crítica da coletânea Tremor de terra, de Luiz Vilela

Plano de Trabalho de Iniciação Científica de Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMSCPTL)

Orientador: Prof.ª Dr.ª Kelcilene Grácia-Rodrigues Debatedor: Júlio Augusto Xavier Galharte Luiz Vilela: da face pública à ars poetica 15h25

Projeto de Pesquisa de Doutorado de Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL)


15 Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Debatedor: Carlos Martins Júnior 15h50

A obra infanto-juvenil de Alciene Ribeiro Leite: acervo e fortuna crítica das obras infanto-juvenis e classificação conforme pressupostos teóricos de Nelly Novaes Coelho Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues

Projeto de Pesquisa de Doutorado de Karina Fátima Gomes (UFMS/CPTL)

Debatedor: Carlos Martins Júnior 16h15

Luiz Vilela: documentário e acervo

Projeto de Pesquisa com apoio financeiro do CNPQ a ser desenvolvido integrado ao Projeto de Doutorado de Pauliane Amaral.

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Debatedor: Carlos Martins Júnior 17h30 às 19h30 19h20 às 19h45

Intervalo Atividade Cultural

19h45 às 21h05

Mesa-Redonda 3

Anfiteatro da Unidade I, UFMS/CPAQ Anfiteatro da Unidade I, UFMS/CPAQ

Mesa 3 – Estudos sobre a obra de Luiz Vilela: Mediador: Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL) O grande desastre de avião de hoje: uma análise do conto ―Corpos‖, de Luiz Vilela. Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)

A metacrítica da Fortuna Crítica acadêmica da obra de Luiz Vilela.

Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN)

Estratégias narrativas nas novelas de Luiz Vilela.

20 de abril de 2016 Horário Atividade

Local

19h30

Auditório H-108 da Unidade 1 do UFMS/CPAN

Banca de Trabalho de Conclusão de Curso Trabalho: A construção das personagens na novela Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro Leite. Acadêmica: Cibele Fátima do Prado.


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Arguidores: Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL), Doutorando Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL). 21h

Banca de Trabalho de Conclusão de Curso Trabalho: Um suspiro de liberdade: a representação da mulher na novela Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro Leite.

Auditório H-108 da Unidade 1 do UFMS/CPAN

Acadêmica: Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim. Arguidores: Prof. Dr. Júlio Augusto Xavier Galharte, Doutoranda Pauliane Amaral.

11 de junho de 2016 Horário Atividade

Local

14h

Palestra ―Introdução à metodologia de trabalhos científicos‖, pelo Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues

UFMS/CPAN

15h

Apresentação da trajetória de elaboração de projetos de TCC recentemente concluídos:

UFMS/CPAN

 Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim  Gabriela Winkler da Costa Silva  Cibele Fátima do Prato

16h

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Apresentação de projeto de TCC em andamento:

UFMS/CPAN

 Lidiane Moura Tacion

17h

Orientador: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Debate do projeto de mestrado de Lucas Neves: ―A simbologia dos nomes em Tremor de Terra, de Luiz Vilela‖. Orientador: Prof.ª Dr.ª Kelcilene Grácia Rodrigues Debatedor: Prof. Dr. Julio Augusto Xavier Galharte

UFMS/CPAN


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Resumos das comunicações 1 Linguística ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE IDENTIDADES DE MIGRANTES HAITIANAS NO ACRE Ana Maria Casarotti Franco (IFAC/UFMS)

RESUMO: Esta pesquisa tem como objetivo apresentar um recorte do estudo de doutorado que busca investigar como as mulheres haitianas (re)constroem suas identidades nos novos espaços que passam a habitar em seu contexto migratório. Como parte inicial desse estudo, pretende-se fazer uma análise discursiva de notícias publicadas no jornal digital O Alto Acre, da cidade de Brasiléia, buscando discutir a construção de identidade(s) ou do conflito de identidade(s) em relação à migração. A pesquisa fundamenta-se em pressupostos teóricos da Análise do Discurso, tendo como base principal os estudos de Michel Foucault. PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Identidade. Haitiana. Migração.

O RCNEI E O DISCURSO DO PROFESSOR TERENA: AS REPRESENTAÇÕES SOBRE O CURRÍCULO E O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA Andréa Marques Rosa Eduardo (UFMS/CPTL) RESUMO: A Educação Escolar Indígena diferenciada, intercultural e bilíngue/multilíngue está presente nos discursos oficiais e o indígena Terena tem lutado para que essa educação se efetive nas escolas indígenas. Porém, embora os professores indígenas conheçam e assumam o discurso oficial, o contrariam em suas ações para a construção de um currículo diferenciado e em busca de estratégias para o ensino da língua materna, como se observou em atividades de reflexões linguísticas e culturais e elaboração de material didático desenvolvidos com a comunidade indígena terena. Tal fato leva ao questionamento sobre a subjetividade do discurso que o professor indígena articula; a presença de interdiscursos no discurso do professor indígena; as divergências entre o discurso do professor indígena e o discurso presente no RCNEI; e, a relação entre o discurso e a prática do professor indígena. Neste sentido, esta apresentação tem por objetivo problematizar o discurso dos professores indígenas terena e o discurso das propostas do Referencial Curricular Nacional para a Educação Escolar Indígena,


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analisando as representações sobre currículo e ensino da língua materna. Portanto, tratase de uma pesquisa de cunho bibliográfico e empírico, pautada na Análise de Discurso de Linha Francesa, seguindo reflexões e metodologias presentes em Foucault (2007; 2008; 2014); Orlandi (2015); e Pêcheux (1990; 2014), considerando as reflexões sobre identidade e cultura presentes em Hall (2013) e Bhabha (1998). PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Currículo; Língua Terena.

KOINUKUNOEN: ESCOLA; TERRITÓRIO E MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS. Daniele Lucena Santos (UFMS/CPTL)

RESUMO: A partir dos discursos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escola Indígena na Educação Básica (2012) e do discurso dos Kinikinau temos como objetivo problematizar o processo de constituição identitária desses sujeitos e analisar como são construídas as representações de escola e território. Para desenvolver a pesquisa nos baseamos na Análise do Discurso de linha Francesa e nos Estudos Culturalistas, nos estudos de Coracini (2003, 2007), Authier-Revuz (1998), Hall (2005; 2013) e Canclini (2015), além do método arqueogenealógico foucaultiano (2008; 2012). Nosso corpus se constitui de entrevistas com membros da comunidade Kinikinau e do discurso do documento oficial. Os resultados, ainda que preliminares, apontam que o discurso oficial traz à baila representações de escola e território atravessadas por formações discursivas e interdiscursos atrelados a questões políticas, se divergindo das representações construídas pelos Kinikinau, articuladas em princípios culturais. PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Representação; Kinikinau.

A UTILIZAÇÃO DE SÍMBOLOS RELIGIOSO EM PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS DA CANTORA MADONNA: UMA LEITURA SEMIÓTICA Diego Barcellos de Souza (Mestrando PPGMEL - UFMS)

RESUMO: A utilização de símbolos religiosos é recorrente nas obras da cantora norteamericana Madonna. O objetivo desse estudo foi de, com base na teoria semiótica peirciana, interpretar os símbolos religiosos presentes na apresentação ao vivo da música Live to Tell (2006) e investigar como a disposição dos símbolos corrobora para a produção de determinados efeitos de sentido em detrimento de outros. Foi utilizada a semiótica de C.S. Peirce como base teórica para identificação e interpretação desses elementos dentro do contexto geral da obra. Os resultados apontam para uma interpretação da mensagem como crítica à falta de amor ao próximo nos dias atuais.


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Concluiu-se que a semiótica é uma teoria que contribui significativamente para a compreensão e interpretação de mensagens, viabilizando uma análise aprofundada das mesmas. PALAVRAS-CHAVE: semiótica americana, Peirce, Madonna, símbolos, religião.

OS ANGLICISMOS EM MANHATTAN CONNECTION Giselle Vasconcelos dos Santos Ferreira (UEMS) Nataniel dos Santos Gomes (UEMS)

RESUMO: A língua tem a sua disposição várias possibilidades de enriquecimento lexical e o empréstimo linguístico constitui uma dessas possibilidades. O presente trabalho tem por meta abordar o emprego de palavras de origem inglesa na linguagem jornalística do programa Manhattan Connection transmitido pelo canal a cabo Globo News. Os fragmentos das falas dos apresentadores do programa serviram de base para a coleta de dados e contribuiu para constatação que a utilização de anglicismos e da criação neológica a partir dos empréstimos contribui para ampliação do léxico do língua portuguesa e concomitantemente reflete o momento histórico, político, social e cultural que se revelam através da língua. PALAVRAS-CHAVE: Mídia, léxico, empréstimos linguísticos.

O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO NA PARÁBOLA BÍBLICA “O HOMEM RICO E LÁZARO” Iury Feitosa da Rocha (Mestrando – PPGMEL/UFMS)

RESUMO: É comum as instituições religiosas promulgarem um efeito de verdade nos textos bíblicos vinculados às suas práticas. Partindo dessa problemática, escolhemos a parábola do ―Homem rico e Lázaro‖ para desenvolvermos uma análise apartidária de grupos religiosos. O objetivo dessa pesquisa é verificar como os principais actantes dessa parábola são constituídos discursivamente por meio do percurso gerativo de sentido. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de meio bibliográfico e com fins descritivos. O resultado de nossa pesquisa reflete que os objetos de valor do Homem rico e de Lázaro eram diferentes um do outro e que apesar de ambos serem sujeitos conjuntos, eles receberam sanções opostas, Lázaro obtém uma sanção positiva e o Homem rico, a negativa. Concluímos que a análise dessa parábola bíblica, por meio da Semiótica de Greimas, colabora para um efeito de sentido ―livre‖ de amarras ideológicas religiosas institucionais. PALAVRAS-CHAVE: semiótica de Greimas; percurso gerativo de sentido; parábola bíblica;


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TIRADA DAS TIRAS: LEITURA SEMIÓTICA E SOCIOLINGUÍSTICA [NA LINGUAGEM] DE MARIADADÔ José Gilberto Garcia Rozisca (UFMS/Campo Grande) Rosangela Villa da Silva (UFMS/Campo Grande)

RESUMO: Esta comunicação apresenta conceitos da semiótica discursiva, com base na etapa narrativa da manipulação, a partir da linguagem das tiras da personagem Mariadadô, da escritora sul-mato-grossense Marlene Mourão. Como objetivo temos a análise da etapa narrativa da manipulação discursiva e dos traços sociolinguísticos presentes nas tiras da Mariadadô. Utilizamos o método de pesquisa bibliográfico, tendo como referencial teórico os postulados da semiótica discursiva de linha francesa e os da sociolinguística laboviana. Após atualizar conceitos da semiótica discursiva e dos níveis de percurso gerativo de sentido, apresentamos a personagem, a autora, e o contexto de criação das tiras, considerando as escolhas lexicais que demarcam o perfil socioideológico e político da Mariadadô. A pesquisa mostrou a possibilidade de aplicação dos conceitos da semiótica discursiva para evidenciar o processo de manipulação no texto, e também a possibilidade de destacar aspectos sociolinguísticos na linguagem utilizada nas tiras, marcas importantes em Mariadadô. PALAVRAS-CHAVE: semiótica sociolinguística; tiras Mariadadô.

discursiva;

processo

de

manipulação;

SURDO TERENA: CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO Michelle Sousa Mussato (UFMS-CPTL)

RESUMO: Ao observar, diante da transdisciplinaridade que envolve a Análise do Discurso de linha francesa, que o discurso constitui um cenário em que estão envolvidos a língua, o sujeito e o espaço histórico-social-ideológico e cultural, este trabalho objetiva problematizar o processo de constituição identitária dos sujeitos surdos indígenas que se encontram nas aldeias de etnia Terena, em Miranda, MS, por meio de seus dizeres, contribuindo para a reflexão da exclusão social sob as condições de produção, as manifestações históricas e identitárias. Entendendo, dessa forma que a visão discursiva considera a linguagem em sua incompletude, por buscar compreender a complexidade das questões contidas no discurso, o sentido das palavras submetidas às condições ideológicas das relações de produção (sejam elas em sua formação, produção, transformação ou reprodução), temos no método arqueogenealógico de Foucault, juntamente com as contribuições de autores dos Estudos Culturais, as referências teóricas para o nosso gesto analítico-interpretativo. PALAVRA-CHAVE: Índio Surdo, Identidade, Representação.


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O MISTÉRIO DO SÍMBOLO DE MARCELLO GRASSMANN Oswaldo Guimarães Barbosa (Mestrado em Estudos de Linguagens – UFMS)

RESUMO: O trabalho do artista paulista Marcello Grassmann (1925-2013), que inclui principalmente gravuras e desenho, sempre despertou curiosidade, tanto pelas qualidades técnicas, quanto pelo estilo inconfundível do artista, povoado por cavaleiros, damas, crustáceos, peixes e os mais variados objetos. As atmosferas de mistério das cenas produzidas por Grassmann são uma importante parte do seu trabalho, e é com uma abordagem sobre essa suposta aura de mistério que este estudo se envolve, por meio do conceito de símbolo na concepção da semiótica de Charles S. Peirce. O que se pretende é compreender os meandros que levam o trabalho do artista a ter o que se infere ser uma forte carga sempre presente de mistério. A abordagem do assunto perpassa pela apresentação do conceito do símbolo peirceano e desenvolve algumas possibilidades de aplicação do conceito no entendimento de certas figuras simbólicas presentes em gravuras de Grassman. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica, Charles S. Peirce, Gravura.

ANÁLISE DISCURSIVA DA CARTA DE APRESENTAÇÃO DO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS Selma Marques da Silva Fávaro (Doutorado em Letras- UFMS/CPTL)

RESUMO: A educação escolar indígena tem sido tema de várias pesquisas acadêmicas devido à sua contribuição para o reconhecimento da identidade indígena, para a sua inclusão social e, portanto, para a sua cidadania. Diante de uma política educacional que apresenta a atuação de liderança e de professores indígenas como um elemento necessário e presente na elaboração dos programas de ensino, é nosso objetivo neste trabalho analisar o discurso da Carta de Apresentação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (2005). Para tal, recorremos ao método arqueogenealógico de Foucault, tendo como embasamento teórico a Análise do Discurso de Linha Francesa. Nossa análise nos conduz a um discurso atravessado por diferentes vozes, às vezes conflitantes. Trata-se, portanto, de um discurso heterogêneo, elemento constitutivo de todo discurso, que aponta ora para relações simétricas ora assimétricas entre Estado e escolas. PALAVRAS-CHAVE: Educação Escolar Indígena. RCNEI. Carta de Apresentação. Análise do Discurso.


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FABRINCANDO O SENTIDO: “O FAZEDOR DE AMANHECER”, DE MANOEL DE BARROS, À LUZ DA SEMIÓTICA DISCURSIVA Tamires Dantas Pereira Cândido (UFMS – Campo Grande/CAPES) Maria Luceli Faria Batistote (UFMS – Campo Grande) RESUMO: A Semiótica Discursiva se qualifica como teoria que se preocupa com o sentido em todas as modalidades discursivas. Assim sendo, pode ser enquadrada ao grupo de teorias voltadas à compreensão do texto. Para desvendar os efeitos de sentido produzidos ao longo da cadeia discursiva e como essas significações são construídas, se vale do percurso gerativo de sentido, o qual se constitui por três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo, organizado do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Ancorado em referenciais teóricos tais como Algirdas Julien Greimas, José Luiz Fiorin e Diana Luz Barros, o presente trabalho propõe uma análise do percurso gerativo de sentido do poema ―O fazedor de amanhecer‖ de Manoel de Barros. Os resultados apontam para validação e eficácia do nível do conteúdo no desvelar das significações circunscritas no corpus analisado. PALAVRAS-CHAVE: Semiótica Discursiva. Percurso Gerativo de Sentido. Poema. Manoel de Barros.


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METODOLOGIAS PARA O ENSINO DE LÍNGUAS MATERNAS E/OU ESTRANGEIRAS O PROJETO DE EDUCAÇÃO DO MST E A ESCOLA DO ASSENTAMENTO SÃO MANOEL Antonio Martins da Costa Cunha (PIBIC/UFMS/AQ) Rosalina Brites de Assunção (UFMS/AQ)

RESUMO: este trabalho objetiva analisar o discurso do Movimento dos Sem Terras a fim de confrontar a pedagogia adotada na escola São Manoel, localizada no município de Anastácio/MS, com a proposta pedagógica explicitada pela Educação Básica do MST disposta no texto ―Pedagogia do Movimento Sem Terra: acompanhamento às escolas‖, que compõe o Dossiê MST-Escola: documentos e estudos 1990-2001. Como embasamento teórico adotamos os analistas do discurso de linha francesa: Foucault (2008), Pêcheux (1997/1997), e para a concepção de identidade os estudos de Stuart Hall (2000), entre outros. O trabalho ocorreu em dois momentos: primeiro um estudo bibliográfico, e segundo uma pesquisa de campo com os docentes da escola-campo. Como resultado obtido, comprovamos que a comunidade escolar desconhece a proposta de educação idealizada pelos militantes do movimento, tendo em vista que atuam somente como reprodutores do Projeto Político Pedagógico emitido pelos Documentos Oficiais. PALAVRAS-CHAVES: discurso; proposta pedagógica; estudo cultural.

A SEQUÊNCIA DIDÁTICA: METODOLOGIA DE TRABALHO DOCENTE Camila Candido Oliveira Menezes (UFMS/CPAN) Jéssica Campos de Arruda (UFMS/CPAN)

RESUMO: O presente trabalho possui o objetivo de expor a proposta da metodologia de trabalho docente utilizada pelo grupo PIBID em escolas públicas de Corumbá, com a ―Sequência Didática‖. Dividida por etapas, a sequência didática tem como objetivo a apropriação de um gênero textual e consiste em um trabalho contínuo de reflexão e análise da Língua por meio de atividades com gêneros textuais, tendo em vista a necessidade de se trabalhar as práticas de linguagem para a concretização de um agir docente significativo. A elaboração das atividades está baseada na teoria sociointeracionista que concebe a língua como atividade social. Considera-se o uso do texto como unidade básica de ensino para desenvolver a escuta e leitura dos textos, a prática de análise linguística (gramática contextualizada) e, por fim, o domínio do gênero trabalhado por meio de sua efetiva produção. O resultado obtido é sempre positivo, ao considerar o grande avanço na aprendizagem por parte dos alunos, revelado ao final do processo. PALAVRAS-CHAVES: sequência didática, gênero textual, língua portuguesa.


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PROPOSTA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Fernanda Viana de Sena (UEMS) Nataniel dos Santos Gomes (UEMS)

RESUMO: A ortografia da língua portuguesa passou por uma atualização e isso tem gerado preocupação entre os profissionais de ensino. De acordo com uma pesquisa feita com professores do ensino fundamental do Instituto Penrabel da cidade de Campo Grande – MS, temem-se mais dificuldades no ensino da língua materna. Os países envolvidos no acordo tiveram um período de adaptação e a partir de 2016, o novo acordo ortográfico passa a ser obrigatório. A proposta é basicamente a unificação da ortografia da língua portuguesa entre os países lusófonos, que têm a língua portuguesa como primeira língua. O acordo envolve questões político-linguísticas, com caráter de integração internacional. Diante desse caráter unificador, especialistas no assunto afirmam, que haverá benefícios para o Brasil e que as novas regras ortográficas não afetarão a língua, a gramática, nem tão pouco a fonética, será uma questão de adaptação a longo prazo, as regras incorporar-se-ão à medida que forem utilizadas nos contextos sociais. PALAVRAS-CHAVES: ortografia, mudanças; unificação.

A IDENTIDADE DE UMA ESTUDANTE SURDA BRASILEIRA E SUA APROPRIAÇÃO DA LÍNGUA INGLESA COMO LINGUA ADICIONAL EM SUA FORMAÇÃO ESCOLAR José Augusto Albuquerque Rabelo (UEMS-PG)

RESUMO: O presente trabalho parte da premissa de que a língua é uma construção social e que por meio dela, seus usuários se constituem como cidadãos na sociedade. Nesta perspectiva, investigo como o aluno surdo no ensino básico constrói sua identidade pela apropriação da língua inglesa, como parte da sua formação escolar. Discuto quais os indícios de investimentos esse aluno passa desenvolver em sua rotina para acrescentar relevância na língua estudada. Por fim, analiso quais as relações sociais envolvidas na comunidade imaginada pelo aluno ao dialogar com essa língua adicional. Os dados gerados são advindos de um estudo de caso de natureza qualitativa. Para isso, foi entrevistada uma aluna surda, bem como analisados diários de bordo feito pela aluna sobre as aulas de língua inglesa. Como suporte teórico na qual esta pesquisa é fundamentada, dialogo com autores que apontam os conceitos de investimentos, identidades e comunidades imaginadas, a citar alguns, Hall (2006), Norton (2000) e Pavelenko (2002). Assim, com este trabalho espero contribuir para elaboração de uma teoria sobre a construção da identidade destes que se apropriam da língua inglesa como língua adicional a luz da linguística aplicada. PALAVRAS-CHAVE: Aluno surdo. Língua adicional. Identidade.


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ENSINO DA LÍNGUA INGLESA NOS ANOS INICIAIS: APRENDENDO COM TRANSLETRAMENTOS EDUCACIONAIS Larissa Chujo Rodrigues Higa Serpa (UFMS) Resumo: Este trabalho busca ampliar o ensino de língua inglesa nos anos iniciais, já que não existem políticas educacionais específicas para esses anos do ensino fundamental. O tema selecionado é um assunto que precisa ser estudado para a melhor compreensão do ensino-aprendizagem da língua inglesa, das possibilidades e limitações encontradas pelos professores no ensino desta disciplina. A metodologia é de natureza bibliográfica e interpretativa. Foram utilizados conceitos de multiletramentos de Kalantzis e Cope (apud ROJO, 2013), de ―novos‖ letramentos, Lankshear e Knobel (apud TAKAKI; SANTANA, 2014) e de letramentos críticos, Cervetti, Pardales e Damico (2001) e Jordão (2015). Os resultados desta pesquisa assinalam a importância da perspectiva de educação crítica, criativa e ética nas aulas de inglês dos anos iniciais relacionados aos tempos globais. Palavras-chave: Língua Inglesa. Anos iniciais. Letramentos críticos.

NOVOS E MÚLTIPLOS LETRAMENTOS NEGOCIACIÓN DE SENTIDOS Y PRÁCTICAS TRANSLINGÜES EN LAS CLASES DE LENGUA ESPAÑOLA DE ALUMNOS BRASILEÑOS Lorene Fernández Dall Negro Ferrari (UEMS-Campo Grande)

Resumo: O ensino de línguas estrangeiras tem tradicionalmente se pautado em teorias que enfatizam a visão monolíngue de língua e cultura (Canagarajah, 2013, Pennycook, 2010, Garcia, 2010). O presente trabalho tem por objetivo discutir uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório e interpretativo para o ensino de espanhol que valoriza práticas translíngues como prática de justiça e prática social (Garcia, 2011), como resultado de práticas colaborativas na construção da aprendizagem e desenvolvimento de práticas de letramentos. A análise apresentada tomará como base os momentos de interação de alunos brasileiros estudantes da língua espanhola em produções oral e escrita. O trabalho se fundamenta ainda, em Rocha e Maciel (2015) que defendem a orientação translíngue como uma forma de repensar contextos pedagógicos que problematizem o papel do professor de línguas estrangeiras. Busca-se, nessa visão, um redirecionamento e ressignificação de focos e objetivos ligados ao ensino de línguas estrangeiras como ênfase na padronização. Defende, portanto, a compressão do processo de ensino e aprendizagem e sua relação mais ampla com as questões de negociação de sentidos nas aulas de línguas em zonas de contato e a inclusão de diversas semioses. Palavras-chave: Práticas Translíngues; Língua Espanhola; Ensino e Aprendizagem.


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Resumos das comunicações 2 Literatura LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA FORMAÇÃO DE LEITORES: MÉTODO CIENTÍFICO E CONTOS DE LUIZ VILELA Angela Nubiato Lopes (UFMS/CPTL)

Resumo: O presente artigo tem como objetivo expor o trabalho com o método científico cuja fundamentação teórica está no livro de Maria da Gloria Bordini e Vera Teixeira Aguiar, Literatura: a formação do leitor alternativas metodológicas (1993). O livro traz a exploração de problemas referentes a formação de leitores literários. O aporte literário para aplicação dessa metodologia foram os contos do escritor Luiz Vilela distribuídos em 16 antologias voltadas para o público infanto-juvenil. Buscamos através do desenvolvimento da proposta, alguns caminhos para propiciar aos alunos, estudantes do 8° ano do Ensino Fundamental, uma formação literária adequada, que abranja e trabalhe com os sentidos globais e os implícitos do texto, adequando-os as situações reais de vida dos alunos. Esses contextos, abordando temas relacionados á juventude, sensibilidade, solidão, incomunicabilidade entre os seres humanos e conflitos existenciais estão representados nas narrativas de Luiz Vilela, que, pela linguagem singela e medida, pela temática real e reflexiva, propiciam elo adequado para o trabalho com a alternativa metodológica estudada. A proposta buscou formas significativas de ensino que promovam e despertem o gosto pela leitura e pelo texto literário observandose que os problemas levantados revelam a perda de interesse pela leitura de literatura conforme o avanço no grau de escolaridade. Os resultados da pesquisa demonstraram a importância da aplicação da alternativa e a necessidade de adaptação da mesma ao público direcionado. As obras de Luiz Vilela provocaram grande interesse e motivação nos alunos e trouxeram reflexões relativas a realidade deles despertando uma visão mais crítica e autônoma. Palavras-chave: Literatura; Luiz Vilela; Método Científico.


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A SUBVERSÃO DO IDEAL DO “PRÍNCIPE ENCANTADO” EM CONTOS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre os contos ―Por toda a vida‖, de Tremor de Terra (1967), de Luiz Vilela, e o conto ―A quinta carta‖, de Ivana Arruda Leite, de Ao homem que não me quis (2005). No conto do escritor mineiro, podemos perceber a desilusão da figura feminina com a realidade de um casamento tradicional de meados do século XX. Ao passo que o conto de Ivana subverte o código da memória machista, em especial o ideal de ―príncipe encantado‖, desconstruindo o modelo perpetuado pelo código patriarcal. O século XXI coloca em cena novas posturas femininas, em que os discursos machistas e ultrapassados são vistos por perspectivas satíricas e irônicas. A modernidade trouxe certo descentramento de papéis cristalizados pelo discurso patriarcal, ampliando os espaços de debates nas academias e vozes – como as das minorias éticas e sexuais – foram inseridas no centro dos discursos, promovendo e prevendo novos paradigmas. Tais debates acarretaram profundas modificações tanto nas teorias sociais e ciências humanas quanto na organização da sociedade. Palavras-chave: Contemporaneidade; Ivana Arruda Leite; Luiz Vilela; Ficção e História.

RECORDAR, ELABORAR, ESCREVER [...]: ESQUECIMENTO, LEMBRANÇA E RECORDAÇÃO EM CARTAS PERTO DO CORAÇÃO DE FERNANDO SABINO E CLARICE LISPECTOR Francine Carla de Salles Cunha Rojas (UFMS – PG/PPGMEL - CAPES) Edgar Cézar Nolasco (UFMS)

Resumo: O presente trabalho reflete acerca da relação entre lembrança, recordação, esquecimento e escrita epistolar a partir das cartas de Fernando Sabino e Clarice Lispector. A articulação a ser empreendida repensa tais categorias no sentido de que percebe que o esquecimento possui papel relevante dentro do construto da memória, de forma que age como o fio condutor. Pensar o esquecimento, dessa forma, requer deslocá-lo de sua acepção corriqueira, isto é, como o ―antagonista‖ e passar a vê-lo como o agente da atividade de ―recorte‖, cuja semelhança com a palavra recordar não é por coincidência. Por fim, o artigo se deterá em elaborar o que se denomina de ―sequência da memória na escrita‖, cuja resposta encontra-se no próprio titulo do trabalho. O embasamento teórico reside no diálogo com autores como Jeanne MariaGagnebin, Lembrar, escrever, esquecer (2006), Sigmund Freud, no ensaio ―Recordar, repetir e elaborar‖ (1914) e Eneida Maria de Souza, em Pedro Nava: o risco da memória (2004). Palavras-chave: Clarice; Escrever; Fernando; Lembrar; Recordar.


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O ESPAÇO E O DISCURSO: UMA ANÁLISE LITERÁRIA DO CONTO “NO BAR”, DE LUIZ VILELA Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMS/CPTL) Luciene Lemos de Campos (SED-MS)

Resumo: O bar é um espaço de natureza difusa na literatura, na integração com as categorias da narrativa, sobretudo, as personagens que nele estão inseridas. O objetivo deste trabalho é demonstrar o espaço do bar como elemento significativo para desnudamento de camadas de leitura mais profundas do conto ―No bar‖ (1968), de Luiz Vilela. No respectivo conto, observou-se certa integração entre o espaço bar e o narrador, na configuração da interioridade do sujeito e sua materialidade discursiva. Para a presente análise, fundamentou-se nas teorias da narrativa, nos estudos literários sobre o espaço e nas teorias linguísticas.

Palavras-chave: Ficção Brasileira Contemporânea; Luiz Vilela; Teoria Literária.

ASPECTOS DA FORTUNA CRÍTICA DE LUIZ VILELA: TREMOR DE TERRA REVISITADO Igor Iuri Dimitri Nakamura (UFMS/CPTL)

Resumo: Pretende-se, por meio deste trabalho, apresentar aspectos da fortuna crítica da coletânea de contos Tremor de terra (1967), de Luiz Vilela, com base na produção crítica dos âmbitos jornalístico e acadêmico. Para tanto, levantam-se apontamentos discutidos sob uma perspectiva histórica pela crítica da obra e assimila-os através de uma abordagem pautada de premissas teórico-metodológicas pertinentes à Estética da Recepção e à crítica sociológica. Logo, subentende-se que a itemporalidade temática, amalgamada à técnica narrativa, na tessitura dos contos do autor, atesta-lhe o reconhecimento por parte da crítica literária e situa-o como um dos expoentes da prosa no cenário da literatura brasileira contemporânea. Palavras-chave: Crítica; Luiz Vilela; Recepção.

A VIOLÊNCIA EM UMA NOVELA DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim (PG-UFMS) Resumo: Este trabalho, embasado em pesquisa bibliográfica, versa sobre a temática da mulher na novela Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro Leite. Descrevemos as personagens femininas à luz da violência simbólica que sofrem, conceito proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, de maneira a apontá-la e descrever de que forma se


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dá. Percebemos que, embora, na novela, se tratem de personagens secundárias, as mulheres retratadas são símbolos da denúncia de um mundo ainda marcado pelo machismo e dominação masculina, onde a mulher é objeto de desejo e desconsiderada como ser pensante dotado de direitos. A novela sugere um início da quebra da violência simbólica em algumas personagens, que já ensaiam as primeiras vozes de liberdade, no entanto, evidencia o quanto as mulheres ainda estão longe de romperem com o status quo patriarcal. Palavras-chave: Feminismo; Literatura Brasileira; Pierre Bourdieu; Violência simbólica.

EROTISMO OU PORNOGRAFIA: A SEXUALIDADE EM LUIZ VILELA Maria do Socorro Pereira Soares (UFMS/CPTL)

Resumo: Analisamos o discurso do romance Graça (1989) e contos de A cabeça (2002) de Luiz Vilela, tendo em vista os conceitos de erotismo e de pornografia no âmbito do discurso literário. A afirmação, em artigo cientifico, da então mestranda Célia Tamura de que o romance Graça e os contos de A cabeça estejam inseridos no mercado pornográfico nos parece afirmativa do âmbito do senso comum. Analisamos se o discurso empregado no romance e nos contos faz uso do discurso erótico ou do discurso pornográfico. Temos como proposição que o forte erotismo e as cenas de intercurso sexual utilizados nas obras configuram um discurso erótico de transgressão de interdito. Na elaboração deste trabalho, foi desenvolvida uma pesquisa do tipo bibliográfica. Através da interpretação do discurso das personagens, concluímos que o modo como acontece as nuances nos envolvimentos sexuais, ambas as interpretações, sobre a luz do erotismo em oposição à pornografia, confirmou-nos de que foi equivocada a afirmativa de que o romance e os contos de A cabeça sejam obras que configuram em mercado pornográfico. Como aporte teórico, são utilizados, dentre outros, os conceitos de Bataille, em O erotismo, e de Maingueneau, em O discurso pornográfico. Temos também, em nosso horizonte, Alexandrian, com História da literatura erótica, dentre outros. Palavras-chave: Discurso; Interdito; Romance Brasileiro; Transgressão.


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LITERATURA, TEORIA E CRÍTICA REMINISCÊNCIAS DO MEDIEVO NA OBRA INOCÊNCIA: UMA APROXIMAÇÃO COM OS ROMANCES DE CAVALARIA Cesar Christian Ferreira Santos (Mestrando acadêmico da UEMS) Márcia Maria de Medeiros (Professora do Mestrado Acadêmico em Letras da UEMS)

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo analisar como a intertextualidade faz perpetrar através dos séculos algumas características únicas dos Romances de Cavalaria em obras de autores da Literatura Brasileira. A obra analisada neste trabalho é o livro ―Inocência‖ de Alfredo d‘Scragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, e esta se trata de um dos últimos romances da ficção romântica brasileira. A análise da obra dá-se através da comparação entre a forma de ser no mundo e a forma de ver o mundo que o sertanejo de Taunay carrega e a forma de ser no mundo e a forma de ver o mundo que eivavam as páginas dos romances de cavalaria, criando um código de conduta que norteava o pensamento e a mentalidade dos homens e mulheres do medievo. Palavras-chave: Inocência, Intertextualidade, Romance brasileiro, Romance de Cavalaria.

A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS DE FICÇÃO NA NOVELA FILHO DE PINGUÇO, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Cibele Fátima do Prado (UFMS-CPAN)

Resumo: O presente trabalho propõe-se a analisar as personagens da novela infantojuvenil Filho de Pinguço, da escritora mineira Alciene Ribeiro Leite. O enredo desta trama se desenvolve em torno de uma família assolada pelos problemas da bebida alcóolica. É a história de um pai alcoólatra que sempre obriga o filho a comprar cachaça e cigarros. Analisamos o comportamento das personagens ao longo da narrativa, bem como o que as caracteriza e influencia suas atitudes. Apontamos traços do neonaturalismo na obra e, a partir dos estudos de Beth Brait, Antonio Candido, Anatol Rosenfeld e Autran Dourado, apresentamos a teoria sobre a personagem de ficção. Já Massaud Moisés nos auxilia na contextualização do conceito de novela. Palavras-chave: Ficção; Literatura Brasileira; Novela; Personagem.


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DISTINTAS DIMENSÕES DA RELAÇÃO ENTRE PROTAGONISTAS E A MANUTENÇÃO DA ESCRITA EM CONTOS COM MONSTROS, DE ANTONIO BRACINHA VIEIRA. Job Floriano Justino (UFMS/CPAQ) Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL) Resumo: Esta comunicação busca expor os estudos efetuados a respeito das diferentes dimensões da vinculação entre alguns protagonistas e o ato da escrita nos planos mítico, filosófico e literário do livro de contos de Vieira. Dentre os desígnios do trabalho, destacam-se a tentativa de integração entre os âmbitos mitológicos, literários e filosóficos e a busca da polivalência dos papéis desempenhados pelos protagonistas nas suas relações com a escrita. A investigação efetuada está situada no eixo temático ―Literatura e estudos interdisciplinares‖ e tem como diretriz principal a pesquisa bibliográfica. O acolhimento de conceitos teóricos e críticos dos universos pertinentes ao corpus e objeto de estudo se dá tanto numa relação de conformidade com princípios fundamentais quanto de busca de indicações de novos elementos críticos e reflexivos. Como seguimento dos estudos, dispomos a evidência do embate entre forças divergentes nos enunciados literários e nos seus respectivos contextos e a crescente expansão semântica dos vocábulos. Palavras-chave: Literatura, Mito, Filosofia.

ATRIBUTOS MÍTICOS E CONCEITUAIS EM CONTOS DE OBJETO QUASE, DE JOSÉ SARAMAGO. Jorge Manoel de Holanda (UFMS/CPAQ) Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL)

Resumo: Exposição por meio de comunicação oral acerca de pesquisa realizada sobre alguns atributos míticos e conceituais encontrados em narrativas curtas do livro Objeto quase, de José Saramago. Apontam-se como objetivos a busca da interação entre mito, literatura e filosofia e o estabelecimento de críticas e reflexões acerca do deslocamento do mito para os planos sociais e literários. Os estudos se desenvolveram por intermédio de levantamento e análises bibliográficas, através dos processos dedutivos e indutivos de indagação e se inserem no Grupo temático ―Literatura e estudos interdisciplinares‖. Dispuseram-se como proposições da pesquisa a constatação da elevação da articulação e tensão intrínseca da unidade mítica, e o destaque da possibilidade de ampliação de tópicos temáticos e aspectos críticos e reflexivos no plano literário. Palavras-chave: Literatura, Mito, Filosofia.


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TEMPO E RESISTÊNCIA NO [FAZER DO] CURURU SUL-MATO-GROSSENSE José Gilberto Garcia Rozisca (Mestrando do PPG em Estudos de Linguagens, UFMS/CCHS) Resumo: A exposição versará sobre a narrativa do cururueiro e a poética do Cururu que é, por sua origem, uma prática essencialmente relacionada aos valores religiosos, éticos e de companheirismo, ao mesmo tempo em que é vivenciada como uma brincadeira entre seus praticantes. O principal objetivo é abordar o Cururu em si, explicando o que vem a ser essa manifestação tradicional presente no Mato Grosso do Sul que resiste ao tempo, pondo em tela conceitos de Tempo e Resistência na narrativa. Para a composição do trabalho foi utilizado o método de pesquisa bibliográfico tomando por base o Dossiê de Registro do Modo de Fazer Viola-de-Cocho, do IPHAN; a dissertação de mestrado de Eunice Rocha; e a entrevista do cururueiro Agripino Magalhães, para a série audiovisual do sítio Diário Corumbaense. O diálogo com referenciais teóricos passou por estudiosos como Alfredo Bosi, Benedito Nunes e Ecléa Bosi. A pesquisa mostrou a pertinência de tratar tanto a narrativa do cururueiro quanto a poética das cantigas sob a perspectiva dos conceitos propostos: tempo e resistência. Palavras-chave: Narrativa; Cururu sul-mato-grossense; Tempo; Resistência. A PARATOPIA DO AUTOR NO CONTO “TEORIA DO MEDALHÃO” DE MACHADO DE ASSIS Juliana Recalde Gimenez (UFMS) Rosalina Brites de Assunção (UFMS)

Resumo: O presente trabalho tem a finalidade de demonstrar como a paratopia do autor é expressa discursivamente no conto ―Teoria do Medalhão‖, de Machado de Assis. Adota-se como suporte teórico os pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa, sobretudo a noção de paratopia, proposta por Maingueneau (2006) para o estudo do discurso literário. É no processo de criação da obra literária que o escritor constrói para si um lugar no mundo. Inicialmente foi feita uma pesquisa bibliográfica sobre o referencial teórico, levantando o material publicado em livros e redes eletrônicas. A seguir, foi desenvolvida uma pesquisa analítica e descritiva do conto, através da qual, constatamos como a paratopia do autor se constrói na sociedade inscrita na obra. Para Maingueneau (2006) o escritor pode construir na enunciação literária a sua paratopia, e essa construção longe de ser exterior à obra, é parte da sua criação. A pesquisa permitiu-nos evidenciar que a paratopia do autor no conto se constrói na enunciação pelo uso recorrente da ironia expressa no diálogo das personagens. Palavras-chave: Paratopia, Discurso literário, Sociedade.


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ALGUNS ELOQUENTES SILÊNCIOS NA LITERATURA MODERNISTA BRASILEIRA Julio Augusto Xavier Galharte (UFMS) Resumo: Trata-se de uma análise em torno de alguns dos polissêmicos silêncios que se evidenciam nos escritos de três autores do Modernismo brasileiro: Mário de Andrade, Graciliano Ramos e Clarice Lispector. Será dada atenção ao procedimento desses autores de criaram personagens afeitos à mudez com diferentes matizes de significação, ora negativos, ora positivos, já que eles podem, com seus silêncios, mostrar sua condição trágica ou a falta de palavras ante atmosferas amorosas ou a imersão no quietismo de vibrações místicas, só para mencionar alguns exemplos. Existe também o silêncio associado aos próprios autores que desejam que os leitores apreendam não só o dito no texto, mas também o não dito, perseguindo tesouros semânticos no subtexto ou ―a palavra pescando a não palavra‖, como sugeriu Lispector. O eixo teórico desta análise acopla algumas reflexões de Walter Benjamin (―O narrador‖ e Origem do drama barroco alemão), Susan Sontag (―A estética do silêncio‖) e Eni Orlandi (As formas do silêncio: no movimento dos sentidos). Palavras-chave: Silêncios; Mário de Andrade; Manoel de Barros; Clarice Lispector. O ESPAÇO NARRATIVO NA OBRA DE ALCIENE RIBEIRO LEITE ATRAVÉS DA LEITURA DO ROMANCE NOS BEIRAIS DA MEMÓRIA Karina de Fátima Gomes (Doutoranda em Letras, Estudos Literários, UFMS/CPTL) Rodrigo Andrade Pereira (Doutorando em Letras, Estudos Literários, UFMS/CPTL)

Resumo: O presente trabalho objetiva fazer a apresentação da obra da autora Alciene Ribeiro Leite, com análise da obra Nos Beirais da Memória, tendo como objeto de estudo o espaço narrativo como elemento constitutivo da obra literária. A análise da produção da autora é importante pois nos dá a dimensão do papel da mesma a partir da década de 70 e como, paulatinamente, esta foi ganhando espaço entre leitores infantis, juvenis e adultos. Podemos concluir que sua literatura mostra uma superação da dependência da mulher em relação ao trabalho e às relações interpessoais, muito embora, nos romances, essas questões ainda sejam apresentadas sob uma ótica masculina, porém a autora consegue muito sutilmente, com fineza e estilo mostrar o seu posicionamento através dos diálogos e falas das personagens. O espaço na obra Nos Beirais da Memória, funciona como plano de fundo para as ações, pensamentos, divagações das personagens, pois uma das características mais marcantes da obra de Alciene são os diálogos e os pensamentos das personagens, as internalizações, e o espaço funciona como local onde as narrativas acontecem, oferecendo poucos conflitos. Para os estudos foram usados como referencial teórico Gaston Bachelard e Antonio Dimas. Palavras-chave: Espaço; Memória; Romance.


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A TRAGICIDADE COMO INTERSECÇÃO CONSTITUTIVA EM CONTOS LUSO-BRASILEIROS. Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ) Resumo: Apresentação sobre propriedades constitutivas da tragicidade na organização e disposição de narrativas curtas na literatura brasileira e portuguesa, como as balizas temáticas das situações extremas da presença da morte e do ímpeto amoroso. Destacamse como objetivos da pesquisa a detecção do imbricamento formal de lances trágicos no delineamento criativo de contos luso-brasileiros e dos cruzamentos das poéticas e teorias narrativas com determinados segmentos filosóficos. O trabalho foi constituído pela leitura e análise de obras digitais e impressas; teve como base a articulação entre as ações descentes de inferência lógica de textos teóricos e críticos e os atos ascendentes de premissas indutivas de obras literárias; e foi dimensionado no eixo temático de ―Literatura e estudos interdisciplinares‖. Estabeleceram-se como resultados a constatação de recorrência temática de elementos trágicos, porém, de oscilatória proposição formal, propiciando a distinção de algumas afinidades teórico-filosóficas. Palavras-chave: Literatura, Filosofia, Tragicidade.

BREVE CARACTERIZAÇÃO DO ESCRITOR CORNÉLIO PENNA Maura Camargo Oliveira (UEMS) Márcio Antonio de Souza Maciel (UEMS)

Resumo: A comunicação aborda a caracterização do escritor modernista Cornélio Penna. Cornélio Penna é um autor de difícil caracterização nos limites do Modernismo brasileiro uma vez que sua obra transita entre o viés psicológico, intimista e elementos surrealistas. O objetivo da presente pesquisa é tanto realizar uma visada sobre parte da fortuna crítica do escritor como, também, observar como o mesmo é caracterizado pela crítica. Entre os críticos estão Mário de Andrade, Alfredo Bosi, Antonio Cândido e Afonso Ávila entre outros. Na medida do possível, por fim, contribuiremos para a apresentação de Cornélio Penna, no contexto historiográfico do Modernismo no Brasil, assim como, igualmente, apresentar as principais caracterizações frequentemente atribuídas ao escritor e à sua obra. Palavras-Chave: Caracterização, Cornélio Penns, Modernismo.


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A FIGURAÇÃO DAS COISAS NA POESIA DE ANA MARTINS MARQUES Paulo Eduardo Benites de Moraes (UCDB/UFMS)

Resumo: Ana Martins Marques, escritora mineira, é uma das vozes mais expressivas da novíssima literatura brasileira. A obra de Ana Martins conta, até o momento, com três títulos: A Vida Submarina (2009), Da Arte das Armadilhas (2011) e O Livro das Semelhanças (2015). Este trabalho se propõe a analisar poemas que representam a figuração das coisas, tema recorrente na poética de Ana Martins Marques. Por meio de procedimentos metafóricos e recursos estéticos de criação da imagem poética a autora se vale de um discurso metapoético e explora a materialidade do poema. A hipótese que se levanta é a de que os recursos metafóricos apontam para uma tentativa da poeta em mostrar o próprio poema como um objeto capaz de condensar, por meio da linguagem, a experiência do mundo. Palavras-chave: Ana Martins Marques, Imagem poética, Metáfora, Poesia brasileira contemporânea.

CONTADORES DE HISTÓRIAS: ARQUINARRADOR E O NARRADOREDITOR EM ENTRE AMIGOS, ROMANCE DE LUIZ VILELA Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL)

Resumo: O romance Entre Amigos, do escritor mineiro Luiz Vilela trata-se de uma longa conversa entre cinco amigos que se encontram para beber cerveja, comer amendoim torrado, linguiça calabresa, entre outros quitutes. Narrado através de um longo diálogo entre esses amigos, em único fôlego, conduzido por um narrador heterodiegético, que constantemente muda o foco narrativo, de modo que as cinco personagens acabam, também, por se tornarem ―narradores‖. Entremeando e organizando essas ―pequenas narrativas‖, podemos observar a presença, nos dizeres de Ismael Cintra, de um arquinarrador e /ou um narrador-editor explícito. Dessa maneira, o que se pretende com o presente trabalho é analisar o romance Entre Amigos de Luiz Vilela, à luz da teoria do narrador e do foco narrativo, de modo a demonstrar a presença do arquinarrador, entidade narrativa constante na obra do escritor, e dos multi-focos narrativos, utilizados por Vilela, para construir um efeito de sentido de ―ângulos diversos‖ da sociedade brasileira do começo dos anos 80 e uma maior ―ilusão‖ de realidade para o leitor. Nos valeremos das teorias sobre o romance enquanto gênero literário dos teóricos Mikhail Bakhtin, György Lukács, Lucien Goldmann, e dos estudiosos das ―vozes‖ no romance como Oscar Tacca, Wolfgang Kayser e o já citado Ismael Cintra, para melhor demonstrarmos a proposição acima levantada. Palavras-chave: Arquinarrador; Bakhtin; Foco narrativo; Narrador; Romance.


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JOGOS VORAZES: UM CICLO VICIOSO DE ADAPTAÇÕES Yasmin Oliveira Massulo Noviaky (UFMS) Resumo: Este trabalho tem como objetivo expor como a ficção de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, demonstra ser mais impactante que a realidade. Para tal estudo, utilizaremos o aporte teórico fornecido por Eneida Maria de Souza, Edgar Cézar Nolasco, George A. Dunn, Nicolas Michaud, Robert Stam. Com base na leitura dos livros dos autores citados, fomenta-se desvendar o círculo de adaptações que conta com a participação da autora. Vale ressaltar que os Jogos vorazes são uma adaptação da realidade de uma forma perturbadora que faz com que o leitor ou o cinéfilo tentem entender o fato da autora ter criado um universo que coloca crianças e jovens lutando até a morte ser algo divertido para os residentes da Capital. O objetivo do filme, que fora uma adaptação do livro e será utilizado neste trabalho, visa salientar como a sociedade contemporânea comporta-se diante desta situação impactante e que a leva a um questionamento do porquê de uma adaptação ser algo mais assombroso do que o real. Palavras-chave: Jogos Vorazes; Suzanne Collins; Adaptação; Literatura.


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Mesas-redondas resumos BASE DE DADOS TERMINOLÓGICOS DE MATO GROSSO DO SUL: PRODUÇÕES E PERSPECTIVAS Auri Claudionei Matos Frübel (UFMS) Resumo: A apresentação focalizará, numa perspectiva histórica, o desenvolvimento da Base de Dados Terminológicos de Mato Grosso do Sul, abordando aspectos teóricos e metodológicos que subsidiaram os trabalhos até o presente momento. Também, serão evidenciadas as principais produções científicas que tiveram a referida base como corpus de pesquisa, dentre elas monografias, dissertações, capítulos de livros, trabalhos apresentados em eventos e publicações em anais de eventos. Durante a apresentação serão explicitadas, também, as perspectivas futuras relacionadas à base, tais como, novos projetos de pesquisa, produções de cunho terminológico, principalmente no que se refere à dicionários e materiais didáticos que focalizam as línguas de especialidade. Palavras-chave: Base de dados, Terminologia, Materiais Terminológicos.

A METACRÍTICA DA FORTUNA CRÍTICA ACADÊMICA DA OBRA DE LUIZ VILELA Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)

Resumo: Nosso propósito, nesta pesquisa, é debater os estudos acadêmicos sobre Luiz Vilela sob o aspecto metodológico da metacrítica, realizando uma crítica da crítica. Após coligir a fortuna crítica sobre a obra do ficcionista, analisaremos as conclusões desses diferentes estudos individuais, com o propósito de integrá-los, combinando e sintetizando seus resultados, para estabelecer um padrão que configure suas invariantes ou suas contradições. Por decorrerem de pesquisas e análises mais densas, nosso corpus será constituído pela fortuna cristalizada em produtos finais de pesquisa acadêmica: TCC's, trabalhos de especialização, artigos de periódicos, dissertações e teses. A abordagem da fortuna crítica de Vilela, ao mesmo tempo em que permite estabelecer o que é homogêneo na obra do ficcionista, também permite analisar as diferenças metodológicas e de resultados dos estudos críticos. Com o presente trabalho, propomos o mapeamento, qualificação, estudo e comentário da recepção crítica acadêmica à obra do ficcionista Luiz Vilela, contribuindo para os estudos da crítica sobre Vilela, da historiografia da ficção brasileira e, especialmente, para os estudos no âmbito do acervo e da fortuna crítica. Palavras-chave: Acervo; Fortuna Crítica; História da Literatura; Luiz Vilela.


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DISCURSOS E PRÁTICAS DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS EM FORMAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE ESCOLA E UNIVERSIDADE Janaína Zaidan Bicalho Fonseca (UFMS/CPAQ)

Resumo: O texto que ora se apresenta resume uma das falas proferidas na mesaredonda Pesquisas e perspectivas linguísticas, cuja temática possibilitou a discussão do projeto de pesquisa intitulado Discursos e práticas do professor de português em formação: um diálogo entre escola e universidade, e é sobre este que se pretende versar. O projeto em pauta objetiva investigar o agir do professor de português em formação, tendo em vista as atividades práticas – relacionadas aos estágios supervisionados e a programas de formação docente – desenvolvidas por acadêmicos de Letras. Espera-se, assim, compreender o agir do professor em formação a partir da sua própria reflexão sobre a prática profissional e da identificação dos impedimentos, motivos e intenções para agir, condicionado, por vezes, a outros agentes implicados na tarefa executada pelo acadêmico. Teoricamente, o projeto se norteia por uma concepção sociointeracional de linguagem, ancorando-se, especialmente, nos estudos de Bakhthin (2003, 2009) e Bronckart (2006, 2008, 2009) para analisar os discursos gerados no contexto de pesquisa. Metodologicamente, os gêneros relato de experiência e autoconfrontação serão os responsáveis pela geração de dados. Espera-se, com isso, mapear as práticas de formação experienciadas por alunos de Letras, com o intuito de responder à seguinte pergunta de pesquisa: como o professor de português em formação interpreta sua própria prática de ensino e reflete acerca das possibilidades de modificá-la? Palavras-chave: professor de português; agir docente; discursos; práticas.

UMA LEITURA DE NOS BEIRAIS DA MEMÓRIA, NOVELA DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Julio Augusto Xavier Galharte (UFMS – CPAN)

Resumo: Lê-se Nos beirais da memória, de Alciene Ribeiro Leite, tomando como referência três temas; a morte, o silêncio e a linguagem. Observa-se no procedimento analítico o diálogo que a autora estabelece consigo mesma, como no capítulo ―Tristeza do palhaço‖ da novela em foco, que é, em parte, a reescrita de seu conto ―Eu choro do palhaço‖, do livro homônimo publicado em 1978. Essa seção de Nos beirais da memória dialoga também com a narrativa ―Palhaço da boca verde‖, do livro Tutameia, de João Guimarães Rosa. Deste autor, foi escolhida também a novela Campo geral para ser contrastada com outras passagens de Nos beirais..., já que os irmãos Miguilim e Dito, do texto roseano, são muito parecidos com os irmãos Zinho e Neném da obra de Alciene, e paradoxalmente são muito diferentes deles, no que concerne ao enfrentamento do óbito, ao convívio com o silêncio e às problematizações ligadas ao nome (sua busca, sua falta e a distância entre o nome e o ser nomeado). A análise


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fundamenta-se em algumas ideias apresentadas em ―Luto e melancolia‖, de Sigmund Freud, ―A estética do silêncio‖, de Susan Sontag, e Crátilo, de Platão Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; João Guimarães Rosa; morte; Nos beirais da memória; silêncio-linguagem.

PROCESSOS E DINÂMICAS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO NA PRODUÇÃO CONTÍSTICA Marcos Rogério Heck Dorneles (CPAQ/CPTL/UFMS)

Resumo: Apresentação acerca de algumas interações entre o pensamento filosófico e a produção contística na literatura brasileira e portuguesa. No trabalho, são apontados como objetivos da pesquisa levantar parte do percurso de consolidação da produção contística brasileira e portuguesa; arrolar as vertentes principais; e distinguir diferentes tipos de ação recíproca entre os universos da literatura e da filosofia, tais como antecipação, simultaneidade, condicionamento etc. A pesquisa foi disposta no eixo temático de ―Literatura e estudos interdisciplinares‖. O trabalho foi realizado por meio do estudo de textos teóricos, críticos e literários, em que se estabeleceu a alternância entre o prosseguimento de princípios fundamentais e a atribuição provisória de proposições. Resultam dos estudos o destaque às variações de forma, tema e cosmovisão, e a proeminência do imbricamento entre as oscilações da produção literária e os deslocamentos do pensamento filosófico. Palavras-chave: Conto; Filosofia; Literatura.

O CORPO NA LETRA - VISÕES DO HOMOEROTISMO NA LITERATURA DE JOÃO SILVÉRIO TREVISAN Miguel Rodrigues de Sousa Neto (UFMS/CPAQ)

Resumo: O escritor paulista João Silvério Trevisan, nascido em 1944 e produzindo ainda hoje, tem sido um dos mais representativos militantes do movimento de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros no Brasil. Para além de sua militância junto aos movimentos sociais, destaca-se como ficcionista e ensaísta. Sua primeira obra literária publicada foi o conjunto de contos intitulado ―Testamento de Jônatas deixado a David‖, de 1976. Deste conjunto de textos, destaquei três (Cruel revelação; Testamento de Jônatas deixado a David; Interlúdio em San Vicente) para analisar a produção do sujeito homoerótico na escrita de Trevisan. Na análise dos contos, compreendo a ficção de João Silvério a partir de um sentido de visibilidade (a necessidade de dizer, nomear o desejo, em Cruel revelação), de construção/apropriação de uma tradição (a tradição católica sendo apropriada e ressignificada para dar sentido ao amor dos protagonistas de Testamento de Jônatas deixado a David) e da revolução pelos afetos (o sentido líricorevolucionário do abraço do protagonista de Interlúdio em San Vicente).


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ESPAÇO, TEMPO E PERSONAGENS NAS NOVELAS DE LUIZ VILELA Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS) Resumo: Em 2013, publiquei, no volume 10 da revista Forma Breve, da Universidade de Aveiro, em Portugal, o ensaio "Aspectos estruturais das novelas do ficcionista brasileiro Luiz Vilela‖ (o artigo completo está disponível em: < http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/2802/2627 >. No momento em que a Editora Record anuncia para o segundo semestre de 2016 o lançamento da quarta novela do escritor, intitulada O filho de Machado de Assis, retomo o estudo original para discernir aspectos das personagens, do tempo e do espaço nas primeiras novelas de Luiz Vilela. Se estruturalmente o gênero, para Vilela, é uma narrativa de tamanho intermediário entre o conto e o romance, construída em blocos sucessivos e cronológicos, ao trabalhar a forma em O choro no travesseiro (1979), Te amo sobre todas as coisas (1994) e Bóris e Dóris (2006), o escritor se impôs diferentes desafios narrativos. Desse modo, enfatiza, sucessivamente, o espaço, o tempo e as personagens, para ― a partir da ênfase em diferentes categorias da narrativa ― reelaborar a mesma cosmovisão do humano, transitando entre o ceticismo e a ironia, entre o compassivo, resignado, e o rascante, autocentrado. Nota-se, também, que há progressivo envelhecimento das personagens protagonistas masculinas: é um adolescente na primeira novela, é um adulto na segunda novela e é um homem maduro na terceira novela. Tal conjunto de topoi narrativos das novelas se coaduna, a nosso ver, com a obra de Luiz Vilela como um todo, pois referendam e homologam as constantes ideológicas, narrativas, temáticas e estéticas que verificamos em seus contos e em seus romances.

O GRANDE DESASTRE DE AVIÃO DE HOJE: UMA ANÁLISE DO CONTO “CORPOS”, DE LUIZ VILELA Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL) Resumo: O presente artigo tem por finalidade a análise do conto ―Corpos‖, da coletânea Você Verá, de Luiz Vilela, à luz da história do conto, tendo por referenciais teóricos Bakhtin, Sophia Angelides, Julio Cortazar, Edgar Alan Poe, Charles Kiefer e Ricardo Piglia, utilizando suas análises e concepções sobre o conto moderno. Como percurso analítico, no primeiro momento aborda-se a história do conto, desde as inscrições na caverna, passando pelo surgimento do conto moderno, com Edgar Alan Poe e Tchekhov, até os nossos dias. Em um segundo momento, utilizando-se da base teórica já apresentada, tem-se a análise do conto, situando-o na poética do autor e, sobretudo, na historiografia do conto moderno.

Palavras-chave: Conto, Luiz Vilela, Poe, Tchekhov


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ANÁLISE DO DISCURSO DA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PARA A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NOS ASSENTAMENTOS. Rosalina Brites de Assunção (CPAQ//UFMS)

Resumo: Esta pesquisa analisou o discurso do MST sobre uma proposta de Educação Básica para a população dos assentamentos, buscando apreender, na materialidade linguística dos textos do Dossiê MST Escola: documentos e estudos e no discurso da comunidade escolar das escolas de dois Assentamentos localizados no município de Anastácio/ MS, as relações estabelecidas entre as formações discursivas e as propostas de construção da identidade do sem-terra. Como fundamentação teórica para as análises, adotou-se os pressupostos teóricos da análise do discurso de linha francesa. Inicialmente, fez-se uma pesquisa analítico-descritiva dos textos que materializam o discurso do MST. A seguir, foi feita uma pesquisa de campo, nas escolas dos assentamentos, para se confrontar o ideal de identidade que perpassa a proposta de educação nos textos com o oferecido nas escolas, verificando até que ponto a formação de uma identidade coletiva contribui para a reafirmação do campo como espaço legítimo de produção da existência humana. Palavras-chave: Proposta de educação. Identidade. Discurso.


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Minicursos resumos PRÁTICAS DE LEITURA EM SALA DE AULA, UTILIZANDO O MÉTODO CIENTÍFICO Ministrante: Mestranda Ângela Nubiato Lopes (UFMS/CPTL) Resumo: A partir das ideias de Bordini e Aguiar, presentes em Literatura: a formação do leitor literário - alternativas metodológicas (1993), o respectivo minicurso aborda propostas metodológicas para o ensino de leitura literária em sala de aula, utilizando contos do escritor mineiro Luiz Vilela como corpus literário para as atividades práticas. Público-alvo: Docentes, pesquisadores, alunos de graduação e profissionais da educação que se interessem pela formação do leitor literário. Número máximo de participantes: 20 pessoas Carga horária: 4 horas

CORPO, SEXUALIDADE E NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS Ministrante: Dr. Miguel Rodrigues de Souza Neto (UFMS/CPAQ)

Resumo: A contemporaneidade tem sido marcada pela profusão da produção e do consumo de imagens. A produção audiovisual e/ou cinematográfica faz parte deste imenso mosaico disponibilizado cotidianamente. As narrativas, porém, tendem à reprodução dos elementos hegemônicos de cada sociedade. Desta maneira, o objetivo é, por meio deste minicurso, oferecer outras visões/produções cinematográficas que destoem da visão hegemônica da sexualidade (de sua heterossexualidade compulsória), do gênero (binário) e da corporalidade (pautada em padrões comerciais de beleza), com vistas a criar outros olhares sobre as eróticas divergentes da heterossexualidade, das performances e gênero binárias e não binárias e das corporalidades múltiplas. Para tanto, ―Um lugar para beijar‖, de Neide Duarte (2008), e ―Tatuagem‖, de Hilton Lacerda (2013), são tomados como objetos de análise. Público-alvo: profissionais da educação regular que se interessem pela formação do leitor literário. Número máximo de participantes: 25 pessoas Carga horária: 4 horas


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FACES DO AUTORITARISMO: VOZES DISSONANTES NA OBRA DE LUIZ VILELA (1967-1983) Ministrante: Doutoranda Pauliane Amaral (UFMS/CPTL) Resumo: Neste minicurso abordamos as narrativas do escritor mineiro Luiz Vilela publicadas entre os anos de 1967 – quando o escritor lançou seu primeiro livro, a premiada coletânea de contos Tremor de terra – e 1983, quando o escritor lança o romance Entre amigos, no qual o exercício estético de fôlego de uma narrativa em que predomina o diálogo entre as personagens alia-se a uma temática comum ao período: a invasão da cultura de massa norte-americana no Brasil aliada ao proclamado crescimento econômico do país.No período que contempla o recorte proposto o escritor publicou cinco livros de contos, três romances e uma novela. A análise dos temas abordados por essas narrativas será o ponto de partida para mostrar como a construção das personagens e dos espaços nessas narrativas refletem uma visão de mundo dotada de um ceticismo próprio, no qual o autor-criador se vale da atmosfera opressiva que marcou o cenário sócio-político brasileiro nos decênios de 1960 e 1970, até sua gradual dissolução na abertura política no início de 1980, para construir narrativas em que eclode tanto a denúncia social mais explícita quanto uma crítica sutil à classe média e sua moralidade contestável. Público-alvo: estudantes de graduação e pós-graduação das áreas de Letras e História. Número máximo de participantes: 20 pessoas Carga horária: 4 horas

Oficina Pedagógica LEITURA PARA APRECIAR CONTOS Ministrante: Me. Luciene Lemos de Campos (SED-MS) Resumo: A Literatura apresenta-se como ferramenta significativa para o trabalho interdisciplinar em sala de aula. Embora existam muitas discussões e estudos referentes às questões do ensino de literatura e da prática da leitura literária, ainda se constata uma carência de ações pedagógicas que produzam resultados capazes de reverter o contexto das deficiências desse ensino em nosso País. Esta oficina almeja apresentar estratégias pedagógicas para o trabalho com leitura literária na Educação Básica. A proposta fundamenta-se em Aguiar & Bordini (1988), Literatura: a formação do leitor alternativas metodológicas, Kleiman (1996) Oficina de Leitura: teoria e prática, Silva Tietzmann (2009) Leitura literária & outras leituras e Baldi (2009) Leitura nas séries iniciais: uma proposta para formação de leitores de literatura. Tem como objetivos estimular a leitura literária de contos como experiência estética, aperfeiçoar a compreensão leitora e as possibilidades de se trabalhar com a produção de gêneros textuais diversos, a partir de narrativas ficcionais curtas. Público-alvo: profissionais da educação regular que se interessem pela formação do leitor literário. Número máximo de participantes: 20 Carga horária: 4 horas


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A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor.

Artigos completos - 1 Linguística KOINUKUNOEN: ESCOLA, TERRITÓRIO E MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS

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Daniele Lucena Santos (UFMS/CPTL)

Resumo: A partir do discurso dos Kinikinau temos como objetivo problematizar o processo identitário desses sujeitos e analisar como são construídas as representações de escola e território. Para desenvolver a pesquisa baseamo-nos na Análise do Discurso de linha Francesa e nos Estudos Culturalistas, com as contribuições de Coracini (2007), Authier-Revuz (1998), Baumam (2005), Canclini (2015) e Hall (2013); e para as análises utilizamos o método arqueogenealógico foucaultiano (2008; 2012). O corpus se constitui de entrevistas com membros da comunidade Kinikinau, com base em um questionário semiestruturado. Os resultados, ainda que preliminares, apontam que o discurso Kinikinau traz à reflexão representações construídas em princípios tradicionais e ressignificadas no mundo contemporâneo, atravessadas por formações discursivas e interdiscursos atrelados à cultura. Palavras-chave: Identidade; Representação; Kinikinau.

Pontos de partida... Remanescentes da nação Chané-Guaná, os Kinikinau são nativos da região do Chaco Paraguaio, mas migraram para o Brasil em, aproximadamente, 1850, afirma SOUZA (2008, p. 38). A travessia para as terras brasileiras, motivada em especial por disputas territoriais, foi impulsionada pela busca de (re)construir sua história, um (novo) lugar Kinikinau, no entanto, as perseguições por terra não cessaram e o conflito entre fazendeiros e índios foi intensificado pela Guerra da Tríplice Aliança. Popularmente conhecida como Guerra do Paraguai, tal conflito gerou a dispersão desse povo dos territórios de Agaxi e Albuquerque, sobretudo, localizado entre Miranda e Aquidauana e Corumbá e Miranda, sendo este último ratificado pela comunidade como território tradicional. Em razão da crescente ―apropriação‖ das terras por parte dos 1

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, campus de Três Lagoas. Graduada em Letras pela da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, campus de Aquidauana. Bolsista Capes. lucena.ufms@hotmail.com


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fazendeiros e posseiros da região, os Kinikinau, objetivando a sobrevivência, assumiram a identidade Terena. Esse gesto provocou um discursivo desaparecimento, uma vez que o povo foi considerado extinto nas décadas de 1960 e 1970 por renomados pesquisadores. Em consonância com o ―desaparecimento‖, os Kinikinau enfrentaram a invisibilidade por parte dos órgãos competentes, primeiro pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois pela Fundação Nacional do Índio (Funai), visto que ―as crianças que nasciam na aldeia eram registradas como Terena‖, (SOUZA, 2012, p. 19). Envolvidos por tais circunstâncias, os Kinikinau foram orientados pelo antigo SPI, em 1940, a seguirem para a Aldeia São João, Reserva Indígena Kadiwéu, próxima do município de Bonito/MS, onde encontrariam terras para fixar suas casas. Desde 1940, eles coabitam a reserva com Terena e os Kadiwéu, donos da terra. Há informações, no entanto, de que ―quatro famílias migraram dessa aldeia em virtude dos atritos com os Kadiwéu e atualmente moram na Terra Indígena de Cachoeirinha, no Assentamento Mãe Terra, em Miranda, junto com os Terena‖. (SANTOS; SOUZA, 2014, p. 07). Autodeclarar-se Kinikinau foi uma decisão mobilizada pela proposta de instalação de uma escola na Aldeia São João, que atendendo a demanda da comunidade, na qual a maioria é Kinikinau, recebeu o nome de Escola Municipal Indígena Koinukunoen

2

. A construção dessa escola permitiu o fortalecimento do povo na

comunidade e o trilhar de novos caminhos, todavia, ainda que a tensão tenha aumentado pela construção da instituição, os Kinikinau valem-se deste ambiente para reivindicar seu lugar de cidadãos brasileiros, em especial seu lugar de índio brasileiro, muitas vezes silenciado pelo Estado. Em face da relação tecida pelos Kinikinau com a escola e com o território, espacial, em Agaxi e Albuquerque, e simbólico, na aldeia São João, compreendemos que, relacionados de maneira peculiar, a escola e o território são dois conceitos que atravessam o processo identitário desse povo, e, nesse viés, partimos do pressuposto de que ambos vão além das concepções limítrofes de espaço educacional e extensão geográfica, assumindo, pelas práticas do grupo, uma nova representação. Levantamos, diante desse contexto, a hipótese de que a escola representa para os Kinikinau um microterritório em terras Kadiwéu, garantindo o fortalecimento identitário e a 2

Na língua indígena, Koinukunoen significa Kinikinau.


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revitalização de sua cultura e língua, além de se constituir como um espaço no qual a democracia é efetivada. Para significar, entrelaçando conceitos Com o foco em analisar o discurso dos Kinikinau, visando rastrear as construções representativas de escola e território/terra, já que tomamos esses últimos como sinônimos, e os processos de identificação do povo, selecionamos dois recortes, denominados de R1 e R2, selecionados de uma entrevista realizada em setembro de 2015 com dois membros da comunidade, os quais chamamos de SP1 e SP2 (Sujeito Professor 1 e 2). Esse discurso constitui-se como arquivo, objeto de nossas análises, desse modo, compreendemos arquivo como um sistema que concebe o enunciado enquanto um acontecimento singular, sistema esse que condiciona a aparição, a circulação e o desaparecimento dos discursos na sociedade. Nesse sentido, esses enunciados estão submetidos às relações de poder e, como onde há poder há resistência, nas palavras de Coracini (2007, p. 17), arquivo é também ―o lugar da resistência do sujeito a esse mesmo poder‖. No bojo da produção de um discurso, o elemento pré-existente a esse é o enunciado, que ―tem sempre margens povoadas de outros enunciados‖ (FOUCAULT, 2008, p. 110), o que nos permite entender que todo enunciado reverbera outros discursos, e está atrelado a uma propriedade interdiscursiva, ou seja, um discurso tem sempre relação com outros discursos. Na esteira foucaultiana (2008, p. 133-134), o discurso é ―constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência‖. Assim, pensar o discurso é também considerar que a sua produção se dá em uma conjuntura sócio-histórica e ideológica específica, e que sua aparição é sempre recorrente de conflito, instigada por poder e resistência e emergente na descontinuidade. Para o historiador (FOUCAULT, 2008), o sujeito, sendo uma fabricação do social, pode ocupar várias posições e identificar-se com cada uma delas, o que mudará serão as regras, a ordem das discursividades. Como explica Fischer (2013, p. 131), ―o sujeito do discurso não é uma pessoa, alguém que diz alguma coisa; trata-se antes de uma posição que alguém assume, diante de um certo discurso‖. Nessa perspectiva, os discursos são produzidos em face das posições ocupadas pelos sujeitos, expostos a elementos que afetam suas escolhas, uma vez que ―os sujeitos


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funcionam pelo inconsciente e pela ideologia‖. (ORLANDI, 2009, p. 20). A ideologia, conforme Pêcheux (1988, p. 159), é apreendida como um complexo jogo de relações que incitam o sujeito à existência e que determinam, historicamente, ―o que é e o que dever ser‖ das palavras e dos sentidos a elas conferidos. Ao serem envolvidos por uma determinada ideologia os sentidos ficam condicionados a ela, logo o sujeito não tem o controle total do que diz e dos sentidos que emanam de seu discurso (PÊCHEUX, 1988). Isso ocorre em razão das experiências e dos discursos que ecoam no (in)consciente, de já ditos que formam um mecanismo de ―filtragem‖, de seleção e apagamentos enunciativos acerca de um determinado objeto como, por exemplo, o índio. Essa espécie de filtro é que vai formar uma memória discursiva, que relacionada à interdiscursividade, é concebida como ―aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os ‗implícitos‘ de que sua leitura necessita‖ (ACHARD, 1999, p. 52). Para além do domínio da restituição, do resgate do fio de significância, a memória transcende essa perspectiva ao gerar esquecimentos, que ―transformam e silenciam sentidos‖, afirma Baronas (2011, p. 103). Contornando os elementos da produção dos sentidos vinculados a uma ideologia, obedecendo as regularidades no funcionamento do discurso e determinando o uso das palavras é corroborada a existência de uma formação discursiva, subordinadas às formações ideológicas. Foucault (2008, p. 43) afirma que quando se ―[...] puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão [...] se puder definir uma regularidade [...] diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva‖. Frente a esses conceitos trazemos à reflexão que nossa tarefa enquanto analistas do discurso ―consiste em problematizar os enunciados concretos em sua historicidade, descrevendo e analisando os fatores que permitiram que esses enunciados se interrelacionassem, se negassem, se excluíssem, se substituíssem‖ (SOUSA, 2011, p. 112). A partir disso, buscamos encontrar, pelas camadas sedimentares da história, as relações de poder que viabilizam determinadas discursividades e escamoteiam outras. No entanto, como a linguagem na perspectiva discursiva não é transparente e passível de falhas, utilizamos o método arqueogenealógico de Foucault (2008, 2012), que nos permitiu problematizar os processos de subjetivação dos sujeitos e ―escavar‖ os enunciados a procura de regularidades que façam emergir a ordem das escolhas discursivas desses sujeitos. Nesse sentido, a exterioridade exerce um papel significativo,


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à medida que nos remete ao espaço, refere-se às condições de produções, tornando-se fundamental para o rastreamento dos acontecimentos que difundiram uma determinada série discursiva. Com relação à questão identitária, frisamos que é pertinente discutir isso em decorrência das desestabilizações dos processos históricos que, enredados pelo movimento globalizador, promoveram um estado de incertezas em diversos campos, sobretudo o sócio-político. Os novos movimentos sociais e políticos têm (des)construído modelos seculares e propiciado o surgimento de novas identidades, identidades essas híbridas, construídas e reconstruídas na diferença (CANCLINI, 2015). Perpassado por inúmeros conflitos, desencontros e desgastes provocados pelos choques da diferença emerge um sujeito formado por diversas faces, diversos elementos, em que cada componente, consubstanciado de diversos outros, promove a criação de um ser multifacetado, interpretável de diversas maneiras. Inerente ao processo de construção do sujeito, o sociólogo Baumam (2005, p. 17-8) diz que tanto o pertencimento quanto a identidade não são sólidos, pelo contrário ―são negociáveis e revogáveis‖. O sujeito e todas as coisas no mundo são fluidas e móveis, e assim, como a identidade não há nada determinado, tudo está em movimento, em constante (trans)(de)formação. Um gesto interpretativo: representações de escola e território Envolvidos pela memória que, para Coracini (2007, p. 16), é ―sempre esquecimento, pois é sempre interpretação de algo que passou; passado que se faz presente que, a todo momento, já é futuro‖, o sujeito, em seu discurso, a fim de relatar a luta do povo Kinikinau verbaliza: R1: SP1: [...] e:: depois dessa luta... conseguimos esse reconhecimento... a nossa identidade né? conseguimos fazer a nossa identidade... até a cédula também de identidade pra... pra ser como Kinikinau...e::: o que nos falta agora: é só o território... então a escola pra gente foi... um grande caminho... é o primeiro passo para o nosso reconhecimento [...] O uso do termo depois desempenha a função de marcador temporal, em que o sujeito, ao utilizá-lo, objetiva ordenar fatos inscritos na história de seu povo. O item lexical vem, portanto, demarcar, sequenciar a história dos Kinikinau, que é trazida por uma anáfora encapsuladora -dessa luta-, que tem como função uma ―retomada


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resumitiva‖ (CAVALCANTE, 2014, p. 80), além de dar continuidade a uma entidade já existente que é a busca de reconhecimento étnico e territorial. Como se trata de um povo que, desde a era chaquenha, já sofria constantes perseguições, sobretudo por questões de terra, os Kinikinau caracterizam-se por ser um povo que se adapta com facilidade. Essa adaptação não significa, entretanto, uma aceitação cabal das condições que lhes foram, e ainda o são, impostas. Ao contrário, esse povo, apesar de, após a guerra da Tríplice Aliança, num grupo já bastante reduzido, ter se aglutinando aos Terena, vislumbrando sobreviver, em nenhum momento deixou de lutar pela visibilidade de seu grupo, como afirma SP1 em instantes anteriores ao recorte. Frisamos que a autoidentificação como Terena foi a maneira encontrada pelos Kinikinau para sobreviver em meio às guerras e perseguições, no entanto, com o passar do tempo, esse povo foi sendo esquecido pela sociedade hegemônica e, por conseguinte, considerado extinto por renomados pesquisadores, como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira. Por meio da anáfora encapsuladora dessa luta, representa-se a situação relatada, e faz-se necessário, nesse viés, o deslocamento de sentido, ou seja, historicizar a palavra luta, que tem acepção dicionarizada de ―combate corpo a corpo; conflito armado; batalha; guerra‖ (BECHARA, 2011, p. 968). O sentido veiculado pelo dicionário, apesar de bastante associado aos indígenas por meio da mídia, não representa, todavia, a luta à qual SP1 se refere. A definição dicionarizada dessa palavra fazia, de fato, muito sentido para o índio de 500 anos atrás, mas não se aplica ao indígena de hoje, informado, tecnológico e político. Assim, o sentido da expressão, no discurso de SP1, está vinculado à luta contra a extinção de seu povo, que sofria um processo de (des)identificação, já que seus integrantes eram registrados como Terena pela Funai, mesmo estando ciente das diferenças étnicas existentes; e da violação de seus direitos, travando uma luta ideológica contra o Estado. Posto isso, a luta descrita pelo índio, não é mesma luta descrita pelo branco, uma vez que ambos discursivizam esse termo envolvidos por diferentes espaços sóciohistóricos e ideológicos. Episódios que enfatizam a diferença na representação de luta para os índios e para os brancos são as retomadas, a luta para reaver terras tradicionais, por exemplo. As retomadas de territórios tradicionais processam-se pela sequência ocupação, plantio e construção de moradias, caracterizada como luta para que seus direitos sejam garantidos. Em contrapartida, a iniciativa de retomada é vista pelo branco


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como uma afronta, uma violação dos direitos constitucionais do outro, tendo em vista que a maioria das retomadas é realizada no seio de uma expectativa de aprovação judicial, como uma forma de pressionar a agilidade processual. Tal entrave nos permite compreender ainda mais a relação desse povo com seu território tradicional, pois, nas palavras de Santos (2001, p. 03), ―o movimento indígena

é uma grande afirmação de que há relações sociais que são escritas em territórios e que só fazem sentido enquanto parte deles. As suas terras são sagradas, e são aquelas e não outras‖. Essa representação não passa, porém, pelo imaginário do homem branco e, portanto, em suas redes de significação, não compreende tal relação. Acreditamos que o branco, ao tolher a ação de retomada, busca inviabilizar a ocupação, que, apesar de embasada em um direito constitucional, não possui respaldo legal eficiente; e impedir os índios, mesmo que com o uso da violência, de reaverem suas terras tradicionais. Terras de que emanam história e memórias de seu povo. O branco, sujeito ―civilizado‖, hábil nas leis, representado de tal forma pela sociedade hegemônica como padrão de cidadão, ao usar a força, assume uma posição difundida, via

mídia,

de

agressor,

selvagem,

―silvícola‖,

carregada

do

interdiscurso

governamental, antes associada apenas ao índio. Em decorrência disso, o índio, por meio dos conhecimentos que lhe foram impostos pela escola para civilizá-los e torná-los sujeitos fabricados por uma ideologia, direciona esses conhecimentos a seu favor, como uma forma de resistência. Hoje, o índio da descoberta, ou melhor, da ―invasão‖ (ORLANDI, 2008, p. 42), atravessa o momento da informatização, da tecnologia, do excesso de informação, a era da ―sobremodernidade‖ (AUGÉ, 2006, p. 103), que se torna necessária para a sua sobrevivência, possibilitando sua visibilidade em espaços globais. Durante sua fala, SP1 nos explicou que a relação com os donos da terra foi complicada pela construção de uma escola Kinikinau, e que esse fato tem gerado conflitos, tensão na aldeia, motivando diversas famílias a buscarem abrigo em outras comunidades, na maioria delas Terena. As tensões pelo fato da escola ser Kinikinau enrijece a disputa entre os povos e indigna SP2, uma vez que este questiona se é uma... aldeia onde a maioria é Kinikinau por que tem uma escola Kadiwéu né?. O espaço escolar, nesse sentido, é disputado pelas duas etnias e funciona como um ―barril de pólvora‖ na comunidade. Baseando-nos, assim, no dizer de SP2, em especial nas afirmações de SP1 sobre a escola, pudemos observar que a comunidade Kinikinau tece uma relação diferente


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com a escola, se comparada a outras comunidades. Os gestos interpretativos nos direcionam para a representação de escola como um espaço de reafirmação étnica, sobretudo, no qual os Kinikinau, apesar de estarem em território alheio, têm um lugar próprio. Pensando acerca das questões históricas dos Kinikinau e das afirmações anteriores, constroem-se, pela materialidade linguística, os efeitos de sentido de uma escola reformulada pela comunidade, uma escola do indígena e não para o indígena, apesar da face regulamentadora instituída pelo Estado à escola. A partir disso é significativo refletirmos que todas as práticas, interpeladas pela globalização, (tras)(de)formaram, no decorrer no tempo, a relação homem/natureza, além de terem se consolidado de maneira conflituosa, envolvendo sempre relações de poder, já que operam nos espaços da dicotomia inclusão/exclusão. Entre essas práticas elencamos o consumismo, o latifúndio, o desmatamento que condicionam os deslocamentos da representação de território, em especial para o índio. Na atualidade, essas práticas são resultantes dos jogos de poder entretecidos por sujeitos que não estão nas bordas sociais envolvidos pelo discurso de progresso ou evolução, e, com isso, criam uma cisão em determinadas representações, uma vez que as representações que os sujeitos criam estão relacionadas a seus processos de identificação (CORACINI, 2007). Dessa forma, ressaltamos que as representações elaboradas pelo branco, em determinados aspectos, são ininteligíveis para os índios. Vejamos R3 a representação de território articulada por SP2: R2: SP2: [...] a terra pra nóis... num tem que/ não tem como explica né? ele é tudo... ele:: é como se fosse uma mãe... e a mãe... a gente não se vende/ não vende... a mãe a gente cuidá... então para o indígena é assim né? a terra a gente tem que cuidá... e sobrevivê da terra... porque:: como a mãe da gente... ah:: eh:: a mãe nos sustenta... então quem nos sustenta é a terra... tudo que vem da terra... são tudo o que é produzido da terra... são alimentação... agua... eh:: tudo que existe:: faz parte da vida... também dos indígena... pra mim a terra é isso... é a vida [...] No início de seu dizer, é frisada a separação de sua identidade em relação à identidade do branco, estabelecendo distinções marcadas por oposição, sendo as identidades construídas por marcas de classificação. (WOODWARD, 2013, p. 78). A presença do pronome nóis, funcionando como uma remissão endofórica e exofórica, restringe a representação de terra a ser descrita apenas aos Kinikinau. Ele mostra essa


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oposição usando a locução para nóis, os Kinikinau, indicando, com isso, a presença do outro silenciada no recorte, mas passível de recuperação por meio da referenciação. Outros itens lexicais como a gente e nos tonificam a distinção feita pelo sujeito entre o índio e o outro. Uma das primeiras regularidades nesse recorte é o uso da palavra mãe, para descrever a representação de território para a comunidade. A acepção dicionarizada de mãe designa, conotativamente, ―pessoa extremamente cuidadosa, zelosa‖ (BECHARA, 2011, p. 799), e é esse o sentido do emprego realizado pelo sujeito no momento que metaforiza a representação do território: é como se fosse uma mãe... e a mãe... a mãe a gente cuida... Outro aspecto pertinente no trecho em que SP2 faz essa relação território/terra – mãe é a relação interdiscursiva estabelecida por meio da expressão e a mãe... a gente não se vende/ não vende... Ao dizer que a terra não pode ser vendida, presentifica-se, via interdiscurso, o dizer do outro, do branco que vende, comercializa a terra como um produto. Diante dessa perspectiva, vender a terra é, para o indígena, vender a si próprio (a gente não se vende), como o deslizamento provocado pelo inconsciente nos mostra. Compreendemos, portanto, que a relação com o território é um relação una, além, inclusive, da relação com a própria mãe: é uma relação de fidelidade, cuidado de si mesmo, consorciada a uma formação discursiva cultural, divergente da formação discursiva capitalista que emana de itens lexicais como, por exemplo, vende, recorrente no discurso do branco, que atravessa o seu dizer. Baseando-nos, assim, no imaginário indígena, a terra não pode ser vendida porque ela não é de ninguém, mas, ao mesmo tempo, é de todos, e, em virtude da questão relacional, ressaltamos que a representação de território para o indígena é erigida sob circunstâncias diferentes, e isso acarreta a reflexão de que ―A terra não é e não pode ser objeto de propriedade individual. De fato, a noção de propriedade privada da terra não existe nas sociedades indígenas‖. (RAMOS, 1986, p. 13-16). Assim, no momento em que o sujeito verbaliza a mãe a gente cuida... então para o indígena é assim né? a terra a gente tem que cuidá... e sobrevivê da terra..., ele expressa os laços afetivos para com o território em que vive e a maneira como os sujeitos Kinikinau lidam com o espaço. Dessa frase a gente cuida, emana o sentido de que os indígenas, diferente do branco, cuidam de suas terras, de seus espaços: o branco, ao contrário, vende-o, comercializa-o, desfaz-se desse espaço como um produto, algo que não carrega sua história, que não faz parte de si.


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Nos trechos a mãe a gente cuida, a terra a gente tem que cuidá, há um diálogo com já ditos, discursos outros, como o de preservação, disseminado por uma formação discursiva ambiental. O sujeito manifesta a heterogeneidade em seus dizeres, por meio das não coincidências do discurso, ―a presença estrangeira de palavras marcadas como pertencendo a um outro discurso‖ (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 193), reafirmando um distanciamento entre si e o outro por meio de um jogo de palavras como vende, cuida, preservar, pra nóis. Entendemos que a repetição da palavra mãe no discurso do índio é um forte indício de demarcar, de ratificar as diferenças nas quais estão alicerçadas as representações de território para o índio e para o branco, além de corroborar a relação tradicional e cultural com o espaço, e em especial, pelas formas de territorialização específicas da comunidade. Por se tratar de uma territorialização que transcende os fios de afetividade e entrelaça-se à identidade, no sentido de tornar-se Kinikinau por meio do território, os efeitos de sentidos da palavra mãe vão estar associados a cultura Kinikinau, expressão que melhor pode definir a relação da comunidade com o espaço em que vive, pois, segundo Hall (2013, 49), a cultura é uma produção, uma questão de ―torna-se‖. A recorrente utilização da termo tudo, funcionando como uma anáfora encapsuladora, em ele é tudo lança um leque de significações que podem estar atreladas a ela, à medida que sua acepção dicionarizada é ―a totalidade, o essencial‖ (BECHARA,

2011, p. 1114). No decorrer de sua fala, o sujeito ressignifica esse tudo por meio da palavra mãe, que parece estar na mesma direção argumentativa simbólica, território tudo - mãe - nos dá a vida. Tais reflexões são corroboradas pela afirmação do sujeito de que a terra, ou o território, concede tudo, assim como a mãe concede tudo o que é necessário ao filho, ela o sustenta, o alimenta, o protege. Da mesma ordem simbólica emerge o sentido de tudo utilizado por SP2, pois ele explica são tudo o que é produzido da terra... são alimentação... água... eh:: tudo que existe::. A representação de território como mãe-provedora-protetora perpassa o discurso dos Kinikinau: mais que um território para construir suas casas é a representação de território como um lugar no qual as identidades se fortalecem, que, conforme SP2, é a vida. Na sequência, o tudo é ressignificado a partir do momento que o sujeito diz são tudo o que é produzido da terra... são alimentação... agua... eh:: tudo que existe:: faz parte da vida... também dos indígena... pra mim a terra é isso... é a vida.


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Como muitos povos indígenas, os Kinikinau têm uma relação social e cultural forte com a terra e tudo que está posto sobre ela; portanto, eles devem sobrevivê da terra... Para os indígenas tudo o que a terra produz, assim como os animais, as árvores, sobretudo o lugar no qual seus antepassados foram enterrados, são sagrados e, por isso devem ser respeitados e preservados. Algumas considerações Atravessados pelo (O)outro e seus valores, as representações rastreadas no discurso dos sujeitos apontam para formações discursivas e interdiscursos sedimentados em suas práticas culturais e simbólicas, sobretudo, mas que, nos momentos em que emergem FDs e interdiscursos deslocados de seu imaginário, revelam a presença de discursos hegemônicos com o objetivo de resistir. Essa tomada de discurso corrobora nossas afirmações porque demonstram as ressignificações feitas por esses sujeitos em todos os âmbitos de sua vivência e desvelam a relação de saber-poder-resistência de que se investe. Em seus dizeres, delineiam-se as representações de escola como espaço de formação desses sujeitos, transcendendo o processo de escolarização proposto pelo branco e assumindo o papel de fomentadora das transformações necessárias para a sobrevivência da comunidade. Do mesmo modo, esse espaço é concebido como lugar de construção e reconstrução da identidade Kinikinau, tornando-se o único território legitimado Koinukunoen, um espaço social e democrático. No mesmo viés, verificamos que a representação de território também é atravessada pelo fio da cultura, que atribui sentidos simbólicos e mitológicos ao espaço. O território é, assim, concebido como tudo-mãe-protetora, uma tríade que não se desvencilha no fio intradiscursivo do sujeito. A partir dessas considerações e observando que a comunidade, por não ter um território próprio, condiciona essa falta à escola. Nesse sentido, apesar de estar associada à instituição governamental e consolidada a perspectiva de ―identidade legitimadora‖ (CASTELLS, 2010), o nome da escola grafada em língua indígena, Koinukunoen, mobiliza uma interpretação distinta de escola. Os Kinikinau compreendem que o âmbito escolar, na condição de território em que a ―democracia‖ se estabelece, oportunizando momentos de (des)(re)construção identitária quando a língua Kinikinau é ensinada, quando valores e saberes desse povo, junto aos conhecimentos universais, são transmitidos aos alunos, é o que os fortalecerá, que lhes ampliará a visibilidade diante da sociedade hegemônica na busca de seu


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território. Esse mecanismo de resistência veiculado pelo ―saber-poder‖ (FOUCAULT, 2012) é que molda os sujeitos de uma sociedade. Posto isso, acreditamos que uma das questões mais significativas identificadas e confirmadas durante as análises é a relação escola/território, relação em que os Kinikinau, sem seu território de origem, mas baseando-se em suas memórias e imaginário cultural, transferem para o espaço escola a representação de território. Ou seja, sendo a escola o único espaço legitimado, até mesmo pelo Estado como Kinikinau, a comunidade a concebe como um microterritório, espaço de construção identitária, onde a reafirmação identitária não é negada, nem silenciada. Diante do exposto, corroboramos a nossa hipótese de que a escola transcende o espaço de transmissora de conhecimento e é concebida pela comunidade como um microterritório em terras Kadiwéu. Referências: ACHARD, Pierre. Papel da Memória. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999. AUGÉ, M. Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã. In MORAES, Denis. Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p. 99-117. AUTHIER-RÉVUZ. Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. BARONAS, Roberto Leiser. Ensaios em Análise de Discurso: questões analíticoteóricas. São Carlos: EdUFSCar, 2011. BAUMAM, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BECHARA, Evanildo. Dicionário da Língua Portuguesa. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011. CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da introdução Gênese Andrade. 4ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 6. ed. vol. 2. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2010. CAVALCANTE, M. M. Coerência, referenciação e ensino. Mônica Magalhães Cavalcante (et al). 1ª. ed. São Paulo: Cortez, 2014.


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A NOVA ORTOGRAFIA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Fernanda Viana de Sena (UEMS) Nataniel dos Santos Gomes (UEMS) Resumo: A ortografia da língua portuguesa passou por uma atualização e isso tem gerado preocupação entre os profissionais de ensino. De acordo com uma pesquisa feita com professores do ensino fundamental do Instituto Penrabel da cidade de Campo Grande – MS, temem-se mais dificuldades no ensino da língua materna. Os países envolvidos no acordo tiveram um período de adaptação e a partir de 2016, o novo acordo ortográfico passou a ser obrigatório. A proposta do acordo é a unificação da ortografia da língua portuguesa entre os países lusófonos, que têm a língua portuguesa como primeira língua. O acordo envolve questões político-linguísticas, com caráter de integração internacional. Diante desse caráter unificador, um dos especialistas no assunto (SILVA, 2016) afirma, que haverá benefícios para o Brasil e que as novas regras ortográficas não afetarão a língua, a gramática, nem tão pouco a fonética, será uma questão de adaptação a longo prazo, as regras incorporar-se-ão à medida que forem utilizadas nos contextos sociais. Palavras-chaves: Ortografia, Mudanças, Unificação.

Introdução Seguindo a historiografia da ortografia da língua portuguesa baseada na obra de Ismael Coutinho, Pontos de Gramática Histórica de 1976, a necessidade de se conhecer os clássicos romanos e gregos no período do Renascimento foi a causa da falta de uniformidade gráfica, a partir de então as palavras de influência etimológica contendem com a simplicidade primitiva. As tentativas de unificação da escrita entre países lusófonos sempre foram frustradas por diversos fatores, um deles é a falta de ratificação de todos os países membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, desde que foi proposta pela primeira vez, em 1911, até o presente momento. Diante do reconhecimento da flexibilidade dessa escrita oficial, em 1904, o fonecista luso Gonçalves Viana estabelece princípios que eliminaram bastante as multiplicidades outrora existentes. Mesmo com essa base de simplificação emergida por Gonçalves Viana, a escrita portuguesa ainda não havia se tornado única. O acordo de 1990 veio para eliminar resquícios de duplicidade do período simplificado da ortografia portuguesa. Porém, diante dessa nova norma, percebe-se um verdadeiro


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desespero entre os usuários da língua e questionamentos em todos os segmentos e utilizações da ortografia da língua portuguesa. O novo acordo traz ao Brasil mudanças não nucleares. Sem alterar, contudo, princípios estabelecidos. De um modo geral, as modificações mais importantes estão relacionadas à acentuação gráfica e à hifenização. Silva (2009) não cita a inclusão das letras K W, Y como mudança e sim uma aceitação da realidade. Aliás, é importante salientar que muito se fala de uma ―uma reforma ortográfica‖, o que não é o caso, pois não se trata de uma formação nova da ortografia e sim de um acordo entre falantes que negociam a mesma língua. Em 2009, tal acordo ortográfico entrou em vigor, porém foi estabelecido um prazo de adaptação para os livros didáticos inserir as modificações necessárias e para os usuários da língua portuguesa se acostumarem com a nova realidade da modalidade escrita da língua. Quando se fala em mudanças, há quem fica assustado, pois o novo traz, muita das vezes, estranhamento. Nesse sentido, o período de transição da nova ortografia traz à tona uma série de críticas por parte dos usuários da língua portuguesa dos países lusófonos. Assim, nesse ambiente de expectativas e experiências faz-se necessário um levantamento de questões que permeiam os ambientes em que a ortografia está inserida. Antes de expor os questionamentos dos usuários da ortografia, faz-se necessário um percurso nas fases da ortografia da língua portuguesa.

1. As fases da ortografia portuguesa segundo Coutinho (1976) A partir de estudos da ortografia portuguesa, Gonçalves Viana (1904) percebeu que a ortografia portuguesa nunca foi uniforme. As palavras eram remetidas a momentos, ora de empolgação do Renascimento sob influência etimológica, ora de primitiva simplicidade. Diante do caos instaurado, Gonçalves Viana tem servido de viés teórico às reformas com tendência simplificadora em seu trabalho Ortografia Nacional. A história da nossa ortografia divide-se em três períodos: o fonético, o pseudoetimológico e o simplificado.

1.1. Período Fonético No período fonético, as palavras eram grafadas mais ou menos de acordo com a pronúncia, sem nenhuma sistematização criteriosa. Havia certa infidelidade gráfica, pois o material produzido pela fala não era recepcionado de igual modo entre os ouvintes, a


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partir daí, cada um escrevia de acordo com aquilo que escutava. Nesse período não havia um padrão na transcrição das palavras. Num documento, às vezes, apareciam os mesmos vocábulos grafados de modo diferente. Para exemplificar, tínhamos as seguintes palavras: ceeo = céu, dooe = dói, mááos = mãos. As vogais eram duplicadas para marcar a tonicidade da pronúncia. A escrita era uma tentativa de representação fiel da fala, uma imagem acústica percebida e representada graficamente. O objetivo dos escritores ou copistas da época era facilitar a leitura, dando ao leitor uma impressão, tanto quanto possível da língua falada. (Coutinho, 1976) Por mais que a escrita avançasse, ela nunca podia acompanhar a evolução da língua oral. Inicia-se este período com os primeiros documentos redigidos em português e estende-se até o século XVI. Esse período é muito parecido com o momento da alfabetização de uma criança que não domina a ortografia de sua língua, ela escreve exatamente como fala. 1.2. Período Pseudoetimológico Nesse período havia a preocupação etimológica, fruto do eruditismo dos séculos XVI a XVIII. Os escritores e copistas da época duplicavam as consoantes intervocálicas e inventavam símbolos extravagantes, a pretexto de uma aproximação artificial com o grego e o latim, critério pretensioso que contrariava a própria evolução das palavras. O objetivo desse tipo de grafia era respeitar as letras originárias das palavras, mesmo que tais letras não representassem nenhum fonema. O que caracteriza este período é o emprego de consoantes geminadas e insonoras, de grupos consonantais impropriamente chamados gregos, de letras como o w, k e y, sempre que ocorriam nas palavras originárias. Diante dessa suposta etimologia que começou a surgir no século XVI, os primeiros tratados de ortografia também começam a surgir. Pêro de Magalhães de Gândavo publica Regras de escrever a ortografia da língua portuguesa e Duarte Nunes do Leão, Ortografia da língua portuguesa. No século XVII, surgem Álvaro Ferreira de Vera, autor da Ortografia ou modo para escrever certo na língua portuguesa e João Franco Barreto, que publica a Ortografia da língua portuguesa. Madureira Feijó, no século XVIII, publica a Ortografia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a língua portuguesa e Monte Carmelo é o autor de Compêndio de ortografia (Coutinho, 1976). 1.3. Período Simplificado


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No terceiro período, que assinala a renovação dos estudos linguísticos em Portugal, surge Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, foneticista, que depois de algumas tentativas, consegue apresentar um sistema racional de grafia, com base na história da língua. De conformidade com os princípios por ele estabelecidos, há dois sistemas simplificados: o português e o luso-brasileiro. Brasil e Portugal, por intermédio de seus governos, começaram a pensar nos Acordos Ortográficos, a fim de desfazer a indecisão na escolha de um ou outro tipo ortográfico, simplificando, contudo, ao máximo o sistema de grafia. Nessa fase, Gonçalves Viana determina os princípios que devem regular qualquer sistema de simplificação. São estabelecidos os seguintes princípios: Proscrição absoluta e incondicional de todos os símbolos de etimologia grega, th, ph, ch, rh, y. Redução das consoantes dobradas, com exceção do rr e ss mediais, que têm valores peculiares. Eliminação de consoantes nulas, quando não influenciam na pronúncia da vogal que as precede. Regularização da acentuação gráfica. (Coutinho, 1976) Basicamente, o período simplificado orienta-se pela pronúncia, pela etimologia e pelo elemento histórico. Em 1911, Brasil e Portugal estabeleceram suas reformas, seguindo caminhos diferentes (Duarte, 2003). Em 1931, tentaram realizar um acordo, porém o projeto não avançou. O Brasil passou a adotar o sistema ortográfico de 1943 e Portugal de 1945. Porém com o advento do acordo ortográfico de 1990, o fim da duplicidade do sistema simplificado foi o maior objetivo dos governos dos países envolvidos. 2. Caráter Político do Novo Acordo Ortográfico A proposta do acordo ortográfico de 1990, visa atender todos os países componentes da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Totalizando cerca de 240 milhões de falantes, sendo que mais de 190 milhões deles são falantes brasileiros. Visto que todos têm a Língua Portuguesa como uma língua oficial e a utiliza em contextos muito diversificados, surgindo, assim manifestações variacionais. A própria palavra ―acordo‖ remete a um significado de obrigação imposta entre as partes. Portanto, todos tiveram de ceder em parte para se chegar a um termo de negociação. Inclusive o Brasil, que detêm mais da metade dos falantes da língua portuguesa. Entre os negociadores desse acordo não estavam apenas profissionais da política, mas também homens dedicados ao ensino e à pesquisa, todos em função basicamente política. Não se trata de uma solução científica ou técnica para solucionar questões de linguística ou de ensino da língua, mas de uma decisão de política


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linguística que envolva a utilização da língua escrita no padrão culto ou oficial. Seria absolutamente impossível que uma das partes de um acordo ficasse satisfeita com os resultados. A unificação ortográfica não foi feita para resolver as questões do ensino ou da educação, mas questões de política linguística, que, é óbvio, interessa aos educadores. Como todas as ações políticas de grande alcance afetam grande parcela da sociedade e algumas muito mais profundamente que outras, os países que utilizam a língua portuguesa tiveram impactos diferentes em relação às mudanças, devido às realidades linguísticas (sociais, históricas, culturais, entre outras) em que se encontram expostos. Segundo Silva (2009) levará mais vantagens sociais quem possuir melhor possibilidade de comunicação com o restante do mundo. Isso se torna evidente desde o momento que o homem visa o domínio sobre todas as relações que o cercam. Uma vez que a língua esteja inserida em relações políticas, sociais, culturais e econômicas dominantes, ela terá vantagens frente às que não possuem esse status. A utilização de um padrão unificado de ortografia terá repercussão positiva nesse sentido. Como afirma Faraco em artigo publicado no site da Rádio CBN – Curitiba: ―O Acordo de 1990 não propôs uma ‗reforma‘ da ortografia. Ou seja, em nenhum momento se mexeu nas linhas mestras do sistema ortográfico. O que o Acordo estabeleceu foram pequenas mudanças (todas marginais, nenhuma nuclear) para garantir o fim da duplicidade ortográfica.‖ (FARACO, 2009) A língua portuguesa não podia ser inserida como língua de cultura tão amplamente expandida, possuindo duas ortografias. Na verdade, muitos podem achar que essa dupla ortografia não mudará a realidade linguística no Brasil. Porém, é possível reconhecer que isso atinge diretamente nosso sistema linguístico como um todo, pois a língua de cultura é representada por um padrão de língua escrita culta e o Brasil ficava isolado dos outros sete países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

3. Vantagens e desvantagens para Língua Portuguesa no Brasil Além da simplificação do ensino da acentuação gráfica e da hifenização, muitos autores, entre eles, Silva (2009) argumenta que teremos outros ganhos nada desprezíveis. E não serão ganhos exclusivos para o Brasil, mas para todos os falantes da


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língua portuguesa que a têm como primeira ou segunda língua. Como aponta Silva (2009), a língua portuguesa unificada facilitará: I) a relação internacional entre esses oito países e com os demais países do mundo, teremos um importante e fundamental benefício, que será o da agilização de processos em nossa política e negócios exteriores, para os quais não será necessária mais a duplicação de documentos oficiais. Com a unificação ortográfica, haverá grande possibilidade de termos nossa língua oficializada na Organização das Nações Unidas, o que nos trará ganhos políticos e economia nas relações internacionais entre seus integrantes (praticamente todos os países do mundo). II) Teremos maior possibilidade de ampliar o chamado ―ensino a distância‖ pelos sistemas virtuais de ensino, para atingir o usuário da língua escrita em qualquer lugar em que estiver. É natural que um russo e um chinês, que têm sistemas linguísticos bem diferentes do nosso, terão dificuldades ao comparar o português com o espanhol e com o galego. Para eles, às vezes, as diferenças entre um pequeno texto brasileiro e um português são maiores do que entre esses e um texto espanhol ou galego. E como explicar ou justificar essas discrepâncias a esses estrangeiros? III) Teremos um significativo barateamento nas grandes edições de livros, considerando-se que será bastante ampliado o seu mercado. Naturalmente, isto implicará em economia na compra de livros e, consequentemente, o aumento dos acervos nas bibliotecas. Alguns livros de referência, como o Dicionário Houaiss, por exemplo, são editados duas vezes: uma na ortografia brasileira e outra na ortografia portuguesa. Outros, como o Dicionário Aurélio, são editados com duas entradas para cada verbete: uma na ortografia brasileira e outra na ortografia portuguesa, ampliando desnecessariamente o número de verbetes e o preço do livro. IV) A política de expansão de uso da língua portuguesa será barateada e ampliada, possibilitando um rápido aumento do número de usuários do português como segunda língua, como é esperado, inicialmente, nos países do Mercosul e nos países lusófonos em que o português é apenas uma das suas línguas oficiais. 4. Vários olhares sobre o novo acordo ortográfico A questão ortográfica no Brasil vem sendo muito discuta no ano de 2016, porque em janeiro desse ano passou a ser obrigatório o uso das novas regras e conclui-se o processo de complementação do novo acordo. Diante de tudo que foi exposto, é imprescindível citar que assim como haverá benefícios, há quem diga que o contrário


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também se fará. Partindo do pressuposto de que a língua é um bem nacional particular de um grupo que, diante da diversidade migratória, construiu sua história e cultura a partir da sua língua. É um fato tão intrínseco que não se sabe precisar se a língua reflete a sociedade ou a sociedade reflete a língua. Numa visão patriota, é possível chegar à conclusão de que analisar a ortografia da língua como reflexo de uma sociedade é particularizá-la, levando-a ao conceito de patrimônio e isso a torna um bem nacional. Serão expostos, a diante, posicionamentos de professores da educação básica do Instituto Penrabel de Campo Grande – MS, graduandos do curso de Letras da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) e do especialista Filólogo José Pereira da Silva. 4.1. Como os professores e graduandos reagiram ao novo acordo De acordo com entrevista realizada com 20 professores do Instituto Penrabel no dia 12 de março de 2016. Você dominava as regras ortográficas anteriores? O que você achou do novo acordo ortográfico? A língua portuguesa do Brasil precisava mudar sua ortografia? Em quanto tempo você estima a adaptação da nova ortografia entre os usuários da língua portuguesa? Quem você acha que se adaptará melhor à nova ortografia no Brasil? Em relação à inclusão das letras k, w e y, ocorreu algo inovador ou uma adaptação à realidade dessas letras em seu cotidiano? O que ainda te traz mais dúvidas quanto à escrita, depois do novo acordo? O novo acordo entre os países que falam a língua portuguesa tem a finalidade de unificar a grafia. Você acha que isto é suficiente para

Sim: 35%

Necessário: 25%

Não: 15%

Um pouco: 50%

Desnecessário: 20%

Necessário, porém insuficiente: 55%

Sim: 50%

Não: 45%

Em parte: 5%

1 ano: 5%

5 anos: 40%

+ de 5 anos: 55%

Crianças em fase de alfabetização:95%

Adultos em geral: 5%

Adaptação à realidade: 100%

Inovador: 0 %

O uso do acento gráfico: 30% O uso do hífen: 70%

Sim: 20%

Não: 15%

Em parte: 65%


65 estabelecer comunicação entre esses povos? O novo acordo trará ao ensino: Você acredita que o novo acordo ortográfico teve um caráter:

Soluções: 25%

Dúvidas: 50%

Dificuldades: 25%

Político: 40%

Linguístico: 15%

Político-linguístico: 45%

Em entrevista realizada com 20 graduandos em Letras da UEMS no dia 14 de março de 2016. Você dominava as regras ortográficas anteriores? O que você achou do novo acordo ortográfico? A língua portuguesa do Brasil precisava mudar sua ortografia? Em quanto tempo você estima a adaptação da nova ortografia entre os usuários da língua portuguesa? Quem você acha que se adaptará melhor à nova ortografia no Brasil? Em relação à inclusão das letra k, w e y, ocorreu algo inovador ou uma adaptação à realidade dessas letras em seu cotidiano? O que ainda te traz mais dúvidas quanto à escrita, depois do novo acordo? O novo acordo entre os países que falam a língua portuguesa tem a finalidade de unificar a grafia. Você acha que isto é suficiente para estabelecer comunicação entre esses povos? O novo acordo trará ao ensino: Você acredita que o novo acordo ortográfico teve um caráter:

Sim: 40%

Necessário: 55%

Não: 5%

Um pouco: 55%

Desnecessário:25%

Necessário, porém insuficiente: 20%

Sim: 55%

Não: 40%

Em parte: 5%

1 ano: 20%

5 anos: 45%

+ de 5 anos: 35%

Crianças em fase de alfabetização:100%

Adultos em geral: 0%

Adaptação à realidade: 95%

Inovador: 5 %

O uso do acento gráfico: 40%

O uso do hífen: 60%

Sim: 15%

Não: 25%

Em parte: 60%

Soluções: 35%

Dúvidas: 40%

Dificuldades: 25%

Político: 25%

Linguístico: 35%

Político-linguístico: 30%


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4.2. Análise do filólogo José Pereira da Silva No dia 16 de março de 2016 foi feita uma entrevista por e-mail ao filólogo José Pereira da Silva, presidente do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos – CiFEFil, ele que foi o precursor das análises do novo acordo e lançou no mesmo ano de vigência do acordo, 2009, o livro A nova Ortografia da Língua Portuguesa. Diante do cenário de analfabetismo e de não incentivo à leitura, surgiu a questão se as mudanças ortográficas poderiam afetar de forma direta ou indireta a modalidade escrita dessa parcela de usuários da Língua Portuguesa no Brasil. Silva respondeu: Se você se refere aos analfabetos e aos semianalfabetos [...], digo-lhe que não afetarão em nada, porque as mudanças ocorridas dizem respeito a itens que nem são percebidos por eles, tais como a acentuação gráfica, hifenização e uso de maiúsculas iniciais. Quanto aos demais usuários, que já têm algum manejo da língua escrita, só vai facilitar, visto que não foi acrescentado nada (nem um acento sequer!), simplificando a escrita em todos os pontos em que houve alteração. Nos demais países, a simplificação foi maior ainda, porque aquelas letras que eram escritas sem alterar a pronúncia, a partir da nova ortografia não serão mais escritas. (SILVA, 2016, s.p.).

Uma questão que tem gerado muita polêmica é que durante o período de adaptação do novo acordo ortográfico, o filólogo afirma que foram reincluídas as letras K, W e Y como adaptação à realidade, o que tem deixado alguns estudantes e leigos preocupados. Assim, Silva diz: Não houve, de fato, nenhum acréscimo, pois essas letras já existiam e já eram utilizadas. Na escrita, não foi mudado em nada em relação ao uso dessas letras. O que ocorre é que, quando fazíamos uma numeração alfabética, passávamos da letra ―j‖ para a letra ―l‖, porque não era considerado o ―k‖. (SILVA, 2016)

Durante as aulas ministradas, fomos surpreendidos com uma questão sobre a existência de alguma justificativa para a inclusão das letras no alfabeto exatamente na posição em que elas foram ordenadas. Não encontramos nenhuma bibliografia a respeito, mas Silva nos diz: A ordem das letras no alfabeto se baseia na sua origem. Como nosso alfabeto é o alfabeto latino, segue a mesma ordem em que já estavam naquele alfabeto, inclusive as letas ―k‖, ―w‖ e ―y‖, que foram adotadas


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do grego pelos latinistas. Não se trata de uma ordem aleatória, criada na língua portuguesa. Todas as línguas que utilizam o alfabeto latino seguem essa mesma ordem. Isto não foi alterado por nenhum acordo ortográfico, pois já existia antes de haver qualquer ortografia oficial na língua portuguesa. (SILVA, 2016).

De acordo com um questionário feito com usuários da modalidade escrita de uma escola privada de Campo Grande – MS, as mudanças na hifenização trazem mais dúvidas do que soluções para antigos problemas. Silva comenta tais mudanças ao dizer: Isto é impossível, pois nem os autores de livros e dicionários sabiam como utilizar ou deixar de utilizar a hifenização. Para alguém acreditar nisso, peça que escrevam uma lista de palavras compostas por ou formadas por prefixação, de acordo com a ortografia antiga. Se eles souberem, e não souberem escrever essas palavras de acordo com a nova ortografia, isto pode ter algum vestígio de verdade. As mudanças não trazem dúvidas, mas não resolvem todas as dúvidas que já existiam antes, com as regras anteriores, que eram muito mais numerosas e sem critério do que as atuais, que são relativamente simples. Qualquer pessoa com um mínimo de esforço pode compreendê-las e aplicá-las em muito pouco tempo. (SILVA, 2016).

Para o senso comum parece que existem alguns pontos negativos do novo acordo para o Brasil, visto que a palavra ―acordo‖ nos remete a uma negociação entre as partes que por sua vez alguém sai perdendo nesse estabelecimento, mas Silva diz: Talvez não haja pontos efetivamente negativos, mas pontos em que os outros países ficaram em vantagem. A extinção do trema nos grupos ―güe‖, ―güi‖, ―qüe‖, ―qüi‖, por exemplo, já havia sido feita em Portugal há mais de cinquenta anos. As letras ―k‖, ―w‖ e ―y‖ já eram muito mais frequentes na grafia dos países africanos do que entre nós. De fato, os portugueses têm razão quando dizem que a nova ortografia abrasileirou a escrita da língua portuguesa, apesar de terem consciência de que, no acordo, eles eram seis países que utilizavam a ortografia de Portugal, cada um com um voto, e nós só tínhamos um voto. Portanto, não foi um acordo para beneficiar uma ou outra nacionalidade, mas a simplificação e uniformização da língua portuguesa. Por isto, a grafia do português brasileiro teve três vezes menos alterações do que a dos demais países da lusofonia. (SILVA, 2016).

A fim de explorar e detalhar mais o novo acordo ortográfico no âmbito do ensino da língua portuguesa, foram muito pertinentes os levantamentos dos dados mencionados anteriormente. Detectamos um clima de insegurança por parte dos usuários da modalidade escrita e insatisfação quanto ao período de adaptação das novas regras ortográficas. Porém, a partir dos respaldos do filólogo José Pereira da Silva,


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poderemos, com êxito, anunciar que não há com o que se preocupar diante das novas regras, será uma questão de tempo para que elas estejam inseridas na sociedade.

5. Conclusão A Língua é um sistema linguístico particularmente utilizado por um povo que necessita externar, com propriedade, os mais sutis pensamentos ou os mais requintados sentimentos do coração. Ela é dinâmica, um organismo vivo que apresenta constantes transformações. Portanto, palavras ou expressões, geralmente, caem em desuso e outras surgem com o uso. Não há academias que possam deter a dinâmica histórica de uma língua. Seria impossível fazer representações fiéis frente à mutabilidade da língua, daí se compreende que as mudanças ortográficas que uma língua sofre não afetarão de maneira alguma todo o sistema de uma língua moderna. Além disso, os diversos funcionamentos dessa língua vêm convencionados a partir de regras já pré-estabelecidas num momento sincrônico da língua em gramáticas que prescrevem e determinam o seu funcionamento. Diante disso, as novas regras serão incorporadas ao ensino de maneira gradual à medida que usuários tenham contato com as modificações, quanto maior o contato do estudante com textos escritos, maior será a fixação das regras. O professor precisará incorporar as regras num estudo situado ao texto, apontando, quando necessário, as mudanças ortográficas aos alunos que conheciam a regra anterior. De um modo geral, em qualquer manifestação da modalidade escrita de produção textual, o domínio das novas regras determinará o nível de correção num contexto avaliativo e seletivo. Referências: BECHARA, Evanildo. A nova ortografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. BECHARA, Evanildo. O que muda com o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Revista, ampliada e atualizada conforme o novo Acordo Ortográfico, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. 7 ed., revista, Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1976. DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos: língua portuguesa. São Paulo: Panda, 2003.


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FARACO, C. A. A imprensa e o Acordo Ortográfico. In: CBN Curitiba, 15/01/2009. Disponível em: http://www.cbncuritiba.com.br/index.php?pag=noticia&id_noticia=20960&id_menu=1 48. Acessado em 2 de março de 2016. ------. Nova ortografia. In: CBN Curitiba, 25/05/2008. Disponível em: http://www.cbncuritiba.com.br/index.php?pag=noticia&id_noticia=16404&id_menu=1 48&conjunto=&id_usuario=&noticias=&id_loja . Acessado em 02 de Março de 2016.

PERINI, M. A. O novo acordo ortográfico. In: Letra Magna: Revista eletrônica de divulgação científica em língua portuguesa, linguística e literatura, ano 5, n10, 1º semestre de 2009. Disponível em http://www.letramagna.com/marioperini.Htm. Acessado em 21 de Abril de 2016. RIBEIRO, Manoel P. Gramática da língua portuguesa. 18 ed. Rio de Janeiro: Metáfora, 2009. RIBEIRO, Manoel P. O novo acordo ortográfico: soluções, dúvidas e dificuldades para o ensino – Rio de Janeiro: Metáfora, 2008. SILVA, J. P. da. A nova ortografia da língua portuguesa. Niterói: Impetus, 2009. SILVA, J. P. da. O novo Acordo Ortográfico em debate, Caderno Seminal Digital., Ano 15, n. 11, V 11, Rio de Janeiro: UERJ, Jan/Jun 2009. In. http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/cadernoseminal/article/viewFile/9822/7688 Acessado em 21 de Maio de 2016. SILVA, J. P. da. Ortografia do Português do século XVI a 2016. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2016. SILVA, Maurício. O novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa: o que muda, o que não muda. Editora Contexto, São Paulo, 2008. SILVA, J. P. DA. Nova ortografia. 2016. Campo Grande, MS, Entrevista à Fernanda Viana de Sena via e-mail. TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa –Tradução de Celso Cunha, São Paulo: Martins Fontes, 1982. VIANA, A. R. G. Ortografia Nacional. Lisboa: Tavares Cardoso, 1904.


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OS ANGLICISMOS EM MANHATTAN CONNECTION Giselle Vasconcelos dos Santos Ferreira (UEMS) Nataniel dos Santos Gomes (UEMS) Resumo: A língua tem a sua disposição várias possibilidades de enriquecimento lexical e o empréstimo linguístico constitui uma dessas possibilidades. O presente trabalho tem por meta elencar algumas palavras de origem inglesa utilizadas nas falas dos apresentadores do programa Manhattan Connection, transmitido pelo canal a cabo Globo News e verificar quais são consideradas empréstimos e quais são consideradas estrangeirismos. Os conceitos de tais termos serão abordados segundo os pressupostos teóricos de CARVALHO (2009) e ALVES (2004) reafirmando, dessa forma, que o léxico de uma língua está em constante ampliação e modificação devido, principalmente, à contribuição de vocábulos estrangeiros, em especial, os de origem inglesa. Palavras-chave: Léxico, Empréstimos linguísticos, Mídia.

Introdução As mudanças e variações da língua são visivelmente retratadas pelo léxico. Por ser um sistema aberto, o léxico está constantemente e incessantemente ampliando-se, ou seja, incorporando novos itens lexicais. Por ser uma classe aberta, o léxico comporta unidades de todos os registros linguísticos, inclusive os estrangeirismos, objeto de análise deste artigo. O objetivo desse estudo é verificar a presença de anglicismos no telejornalismo brasileiro, mais especificamente no programa Manhattan Connection, transmitido pelo canal fechado Globo News. A partir dos dados coletados de recortes das falas dos apresentadores, realizou-se uma análise dos anglicismos elencados verificando a incorporação ou não destes no léxico do português por meio de análise de dicionários. O embasamento teórico dessa análise vem de CARVALHO (2009) e ALVES (2004) considerando o conceito e a classificação dos estrangeirismos e MANZOLILLO (2001) e referindo-se ao léxico e a sua dinamicidade. Dinamicidade do léxico As palavras de uso corrente na língua portuguesa formam um léxico de aproximadamente sessenta mil palavras. É claro que o conjunto de palavras que ―cada falante domina passivamente (isto é, que ele sabe interpretar)‖ (ILARI & BASSO, 2012, p. 134) é apenas uma parte desse conjunto de palavras. O número de itens lexicais fica mais reduzido quando o usuário da língua pretende se comunicar ou transmitir alguma


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informação através dos atos de fala. Mesmo com números reduzidos de vocábulos utilizados pelos falantes da língua portuguesa ―estudos de natureza estatística vêm mostrado já há algum tempo que há grande variação na frequência de usos dos vários itens lexicais.‖ (ILARI & BASSO, 2012, p.134) Essa característica dinâmica do léxico faz com que os falantes de uma língua estejam constantemente ouvindo e aprendendo novos vocábulos. O léxico, segundo MANZOLILLO ―é um sistema aberto, isto é, constituído de um número flutuante de componentes, o que torna a determinação de todos os elementos pertencentes a essa estrutura uma tarefa quase impossível.‖ (2001, p.11) Essa instabilidade do léxico é igualmente citada por BIDERMAN ao observar que ―o léxico de qualquer língua constitui um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos‖ (1978, p. 139) oferecendo a ideia de que o léxico jamais está pronto e que com o passar do tempo se modifica. Segundo ILARI & BASSO (2012, p.134), ―o léxico do português brasileiro aparece como o resultado de um longo processo, no qual muitas palavras antigas se perdem ou só sobrevivem com novas funções e novos valores, ao mesmo tempo que novas palavras vão sendo constantemente criadas‖ . Essa mutabilidade que o léxico sofre com o passar dos tempos ocorre devido a que MANZOLILLO chama de ―inquietações tipicamente humanas‖ (2001, p.12). Segundo o autor, o homem é um ser que constantemente está em busca de progresso e aprimoramento pessoal e coletivo. Além disso, o homem é também um ser criativo. E em relação ao léxico, constantemente novas expressões e termos são criados ou novas conotações são dadas a palavras já existentes na língua. BIDERMAN prefere chamar os usuários que incrementam o léxico com novos itens lexicais de ―artistas da língua‖ e coloca que ―a criatividade humana em todos os domínios é a principal causa da expansão sempre crescente do sistema lexical da língua.‖ (1978, p. 166) Juntamente com a criatividade e as inquietações humanas, o desenvolvimento da tecnologia, da ciência e das artes, o advento da internet e as mudanças nos comportamentos, costumes e nos relacionamentos, propiciam o surgimento de novos vocábulos para nomear objetos, processos, mecanismos ou condições atendendo às necessidades culturais, científicas e da comunicação de uma sociedade. Conforme cita BIDERMAM Qualquer sistema léxico é a somatória de toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das


72 idades. Os membros dessa sociedade funcionam como sujeitosagentes, no processo de perpetuação e reelaboração contínua do Léxico da sua língua. Nesse processo em desenvolvimento, o Léxico se expande se altera e, ás vezes, se contrai. As mudanças sociais e culturais acarretam alterações nos usos vocabulares. (BIDERMAN, 1978, p. 139).

BECHARA (2009, p.351) classifica de neologismos essas palavras que surgem para atender as necessidades dos usuários de uma língua e de arcaísmos as palavras ou expressões que por algum motivo deixaram de ser usadas por comunidades linguísticas. As novas criações lexicais ou neologismos entram na língua através mediante a utilização de elementos existentes no idioma como os afixos através dos processos de derivação e composição ou através da mudança do significado de palavras já existentes na língua. Esses elementos presentes em uma língua e responsáveis pelas criações de novos itens lexicais são designados por BECHARA de ―pratas da casa‖ (2009, p.351) e de suma importância na revitalização do léxico de uma língua. A respeito dos neologismos formados a partir de palavras já existentes na língua, MANZOLILLI classifica-os de neologismos intrínsecos ―formados através dos processos de derivação e de composição, mas também por meio de recursos como uso de siglas ou de acrônimos, redução, onomatopeia, reduplicação ou duplicação silábica, recomposição e palavra-valise ou cruzamento vocabular.‖ (2001, p.14) Outro processo para a ampliação lexical é o empréstimo linguístico que consiste na adoção de palavras de outras línguas estrangeiras que são incorporadas ao léxico da língua comum. MANZOLILLI designa os empréstimos como ―neologismos extrínsecos

(...) os quais podem apresentar total aclimatação ao novo ambiente ou graus variados de inadaptação.‖ (2001, p.14). Sendo assim itens lexicais oriundos de línguas estrangeiras são passíveis de serem adotados, porém alguns apresentam maiores dificuldades de incorporação em relação a outros. Segundo BIDERMAN ―a maioria dos neologismos é constituída de substantivos, sendo raros os adjetivos e verbos‖ Quando, porém os substantivos e adjetivos vindos de línguas estrangeiras são incorporadas a uma língua podem sofrem adaptações gráficas, morfológicas ou semânticas. (ALVES, 2004, p.77) Além dos substantivos, responsáveis pelo maior número de estrangeirismos adotados pela língua portuguesa e dos adjetivos de adoção mais rara, MANZOLILLI observa a incorporação das preposições in e out vindas do inglês e que ―são utilizadas no Brasil como qualitativos, significando, respectivamente algo similar a ―moderno‖, ―atual‖, ―positivo‖ e ―antiquado‖, ―ultrapassado‖ e ―fora de moda‖.‖ (2001, p.14). Outra


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preposição também inglesa e muita utilizada pelos usuários do português brasileiro é by, porém, aparecendo com valor de preposição como em ―Jeans by Carmin‖. A utilização de preposições de origem inglesa demonstra segundo MANZOLILLI que a influência do inglês é tão massiva que já atinge ―setores do léxico, via de regra, pouco receptivos aos empréstimos.‖ (2001, p. 14). Muitos neologismos, no entanto, não são formas inéditas na língua. Muitas palavras já existentes em um idioma podem receber uma acepção nova ultrapassando os limites da sua primitiva esfera semântica. Através da aplicação de recursos disponíveis na língua tais como a metáfora e a metonímia, dentre outros, uma palavra muda o seu significado para atender as necessidades do falante. Segundo ALVES Muitos neologismos são criados na língua portuguesa sem que se opere nenhuma mudança formal em unidades léxicas já existentes. Qualquer transformação semântica manifestada num item lexical ocasiona a criação de um neologismo semântico ou conceptual. (ALVES, 2004, p. 64).

Como exemplos de neologismos semânticos, pode-se citar penteado (tipo de escova), pepino (problema) e tricotar (conversar, bater papo, fofocar). Esse processo altamente produtivo e simples em qualquer língua demonstra a criatividade e o poder de observação do falante na criação de novos significados a palavras já existentes no idioma.

Importação lexical O léxico da língua portuguesa, basicamente de origem latina, ampliou seu acervo por meio de mecanismos oriundos da própria língua, tais como os processos de derivação e composição já citados anteriormente, utilizando, para isso, palavras já existentes no idioma. Além desses mecanismos, o português, tem adotado, desde o início da sua formação, novas unidades lexicais de outros sistemas linguísticos. Segundo ALVES (2004, p.06) ―empréstimos provenientes de contatos íntimos entre a comunidade de fala portuguesa e outros povos (influência celta, fenícia, basca, bárbara, árabe, africana e tupi)‖ contribuíram para o enriquecimento do vocabulário da língua portuguesa. O processo de importação de itens lexicais alógenos, por meio dos contatos íntimos ou contatos interpessoais, ocorre devido à proximidade territorial, como no caso do português do Brasil e o guarani, da colonização de um povo sobre outro, citando como exemplo a colonização portuguesa no Brasil, e das guerras de conquista do qual se pode citar a invasão do Império Romano em vários territórios da Europa.


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Além dos contatos íntimos ou interpessoais, ALVES (2004, p.06) cita também os ―empréstimos culturais, fruto de relações sociais luso-brasileiras com outras sociedades (origem provençal, francesa, espanhola e italiana).‖ Dentre os empréstimos culturais, a língua francesa foi muito marcante no português do Brasil principalmente na primeira metade do século XX e de acordo com ILARI & BASSO ―a língua românica que mais influenciou o léxico português foi o francês, que, em diferentes momentos, transferiu para o português termos ligados à guerra (...), à cultura filosófica e literária (...) e à tecnologia.‖ (2012, p. 138). Sendo assim, muitos vocábulos, oriundos do Francês, incorporaram-se definitivamente ao léxico do português tais como bilhete, chaminé e loja. Ainda a respeito dos empréstimos culturais, CARVALHO coloca que eles ocorrem devido ―aos contatos à distância, mediatizados por canais artificiais‖ (2009, p. 48) influenciando política e culturalmente a língua receptora. Atualmente, é o inglês que exerce o papel de exportador de itens lexicais para o português do Brasil e de acordo com ILARI & BASSO Os valores desse mundo globalizado de expressão inglesa estão cada vez mais presentes no dia a dia dos brasileiros; assim, não é de estranhar que o inglês seja hoje em dia uma língua prestigiada, que fornece um número sem precedentes de empréstimos. O Brasil tem mostrado uma receptividade muito grande em relação a palavras inglesas que, adaptadas ou não na escrita e na pronúncia, são logo assimiladas ao uso comum. (2012, p. 140).

Sendo assim, em vários campos como a informática, a ciência, o esporte e as artes, é praticamente impossível o falante do português brasileiro não utilizar um ou outro termo inglês ou de origem inglesa já adaptado como por exemplo Sem dúvida alguma, observando o exposto acima, pode-se afirmar que os empréstimos são responsáveis pelo enriquecimento e renovação vocabular. O termo empréstimo, segundo BECHARA em o Dicionário da língua portuguesa, é a ―ação ou efeito de emprestar. Aquilo que foi cedido por empréstimo, por tempo determinado‖ (2011, p. 558). Do ponto de vista linguístico, o termo empréstimo é colocado por CARVALHO como a adoção de palavras estrangeiras por uma língua e classificado pela autora de empréstimo externo. Este tipo de empréstimo ―sempre começa por um ou vários sujeitos-ouvintes, quando passam a falantes. Penetra na língua através do adulto, pois não acontece de maneira espontânea‖ (2012, p. 30). Com igual classificação,

BIDERMAN (1978, p. 160-161) cita que o empréstimo estrangeiro ―constitui uma palavra nova introduzida no idioma‖ e são compostos pelas mais variadas procedências linguísticas tais como galicismos, arabismos, anglicismos, etc.


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Alguns autores fazem distinção entre os termos empréstimos e estrangeirismo. ALVES observa que quando empregado em outro sistema linguístico, o vocábulo estrangeiro, em uma primeira etapa, ―é sentido como externo ao vernáculo da língua. É então denominado estrangeirismo, ou seja, ainda não faz parte do acervo lexical do idioma.‖ (2004, p. 72) O termo estrangeiro passa a ser considerado empréstimo, segundo a autora, quando está se integrando a língua receptora ocorrendo adaptações gráficas, morfológicas ou semânticas. SILVA classifica o estrangeirismo como um sinônimo de estrangeirismo e observa que ―toda língua toma emprestado alguns elementos alógenos seja para nomear realidades típicas de outros países, neste caso toma emprestado o signo e o referente, seja para conferir conotações distintas e unidades já conhecidas em seu léxico.‖ (2012, p. 316) VILLALVA e SILVESTRE também apontam, assim como ALVES, que ―o empréstimo é uma palavra que ainda não foi completamente integrada no vocabulário nativo, mantendo-se a percepção de que é uma palavra de língua estrangeira.‖ E o estrangeirismo é visto pelos autores como uma subcategoria do empréstimo e a percepção de que uma palavra é estrangeira é percebida através de destaques tipográficos como o uso do itálico ou das aspas como, por exemplo, big-bang e best-seller. (2014, p. 37) Alguns autores, porém, aceitam com reservas o termo empréstimo por considerar que os itens lexicais que um idioma toma emprestado de outro jamais são devolvidos. CÂMARA JR salienta que nas relações comerciais há um intercâmbio nítido de empréstimos, porém, não há uma língua ―que empresta sem tomar emprestado‖ (1989, p. 269). A nomenclatura dada pelos autores em relação aos termos empréstimo e/ou estrangeirismo, não exclui o fato de que a influências lexicais externas contribuiu e contribui para a ampliação e enriquecimento do patrimônio lexical do português. E atualmente, os anglicismos são os que mais exercem influência no português do Brasil.

Os anglicismos no programa Manhattan Connection A língua é um patrimônio de todos os falantes que a utilizam e, sendo assim, a criatividade lexical e um direito facultado a todos os membros dessa comunidade linguística. Por meio dos meios de comunicação de massa e de obras literárias, os neologismos são amplamente divulgados.


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Em relação aos empréstimos linguísticos, mais especificamente os anglicismos, a mídia tem exercido um papel importante na propagação de itens lexicais oriundos do inglês. A esse respeito CARVALHO cita que [...] à medida que são divulgadas através da imprensa, via de acesso mais corrente para os empréstimos, estas terminologias passam a fazer parte do repertório cotidiano dos falantes. Desta forma, os empréstimos de língua inglesa têm aí seu grande campo de aplicação e divulgação. (2009, p. 72).

O inglês tornou-se uma grande fonte contemporânea de empréstimos de vocábulos para o português do Brasil e para outras línguas. E toda essa avalanche de vocábulos de origem inglesa em diversas áreas como a tecnologia, ciência e arte tornase um apelo forte demais para que a mídia da informação e principalmente da publicidade deixem de explorar ―as associações semióticas entre a língua inglesa e o enorme repositório de recursos simbólicos, econômicos e sociais por ela mediados.‖ (GARCEZ e ZILLES, 2002, p. 25). O programa Manhattan Connection, transmitido pelo canal por assinatura Globo News, chama a atenção pelo fato de utilizar diversos anglicismos nas falas dos apresentadores. Esse fato pode ser explicado pela transmissão do programa ser feita diretamente da cidade de New York e de apresentar ao telespectador aspectos culturais e de entretenimento dessa cidade. Ao comando do apresentador e jornalista Lucas Mendes, o programa Manhattan Connection estreou em março de 1993 no canal por assinatura GNT permanecendo por 17 anos. O programa, em formato de estúdio, incluía originalmente Paulo Francis, Nelson Motta e Caio Blinder além do próprio Lucas Mendes discutindo, como em uma mesa redonda, política, economia, cultura e assuntos de destaque da semana no Brasil e no mundo. Em janeiro de 2011, o programa mudou de canal, passando a ser transmitido pela Globo News, porém o formato continuou. Atualmente, a equipe é formada pelos jornalistas Lucas Mendes, Caio Blinder, Diogo Mainardi e Pedro Andrade e pelo economista Ricardo Amorim A partir de uma ideia de Lucas Mendes e Paulo Francis, o programa apostou na ideia da conexão que é realizada de New York com as cidades de São Paulo com Ricardo Amorim e com a cidade de Veneza na Itália com Diogo Mainardi. Além das conversas descontraídas, o programa também apresenta aspectos culturais como


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exposições de obras de arte em museus, bares e restaurantes, lojas de moda e artigos de decoração, por meio do apresentador Pedro Andrade. Nesse contexto, o programa, através da fala e também da escrita, apresenta várias vocábulos e expressões vindas da língua inglesa que serão abordados neste artigo. É importante ressaltar que serão apresentados aqui recortes das falas dos apresentadores e que as palavras de origem inglesa serão escritas em itálico. Conforme os pressupostos teóricos de ALVES, os estrangeirismos são os vocábulos ou expressões, utilizados pelos falantes de uma comunidade linguística, mas que ainda não estão incorporados no léxico desse idioma. Ao serem incorporados, constando em dicionários, os termos estrangeiros passam a ser denominados empréstimos linguísticos. A decisão sobre a incorporação ou não de um termo alógeno em uma língua depende do uso frequente do elemento estrangeiro por uma comunidade linguística ou pela sua não difusão. Além disso, fatores extralinguísticos também podem influenciar na inserção de unidades léxicas, tais como, fatores políticos, econômicos ou culturais. ALVES comenta que ―eles (os dicionários) simbolizam o parâmetro, o meio pelo qual decidimos se um item léxico pertence ou não ao acervo lexical de uma língua‖ (2004, p. 85) O programa Manhattan Connection, exibido no dia 03/04/2016, será utilizado na coleta de dados, ou seja, os anglicismos nos recortes das falas dos apresentadores e a verificação se tais vocábulos estrangeiros contam no léxico do português do Brasil, será feita por meio de consulta aos dicionários Houaiss (2011) e Dicionário da Língua Portuguesa de Evanildo Bechara (2011). A seguir serão elencados os anglicismos que serão escritos em itálico. ―...pegando migalhas, quinhões do Estado em troca de votos, votos que não virão pro impeachment.‖ (Diogo Mainardi) ―A nau brasileira tá afundando, mas você viu que o dólar caiu, a bolsa subiu, e(...) as percepções são diferentes aí.‖ (Lucas Mendes) ―Tudo gira em torno do trumpismo e não de grandes propostas. Essa semana foi histórica na campanha do Trump.‖ (Caio Blinder) ―Depois nós tivemos a ideia do que um tabloide colocou que o Cruz tinha cinco amantes.‖ (Caio Blinder) ―O chef nasceu no Peru, filho de cozinheiros, duas décadas atrás, eles ganharam o green card na loteria da imigração americana.‖ (Pedro Andrade)


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―Aqui eu vou tomar um drink chamado Thirty six forty eight que é a distância entre Nova York e Lima.‖ (Pedro Andrade) ―Um novo livro conta a história do jeans desde os tempos do onça.‖ (Lucas Mendes) ―Poucos cowboys vestiam jeans no velho oeste.‖ (Lucas Mendes) ―Nos anos setenta cê tem revolução hippie. Nos anos oitenta você tem o punk, o

Calvin Klein.‖ (Pedro Andrade) ―E contou a história do coquetel de Damasco.‖ (Lucas Mendes) ―Eu fui fazer um quiz e você já furou meu quiz.‖ (Lucas Mendes)

―Os republicanos ainda não entenderam, não admitem que perderam a guerra contra os gays e contra as lésbicas.‖ (Lucas Mendes) Dentre as palavras destacadas nas falas, impeachment, jeans, punk, hippie e gay já estão incorporadas ao léxico do português do Brasil, aparecendo nos dois dicionários citados em itálico e sem alterações gráficas. Os dicionários oferecem a pronúncia das palavras com algumas diferenças na marcação da sílaba tônica. Enquanto no dicionário de Evanildo Bechara, as palavras recebem um acento agudo na sílaba tônica, o dicionário Houaiss não oferece esse recurso. As palavras dólar>dollar, tabloide>tabloid, drink>drinque e coquetel>cocktail não aparecem em itálico por terem sido adaptadas ao português com alterações gráficas. O vocábulo cowboy também aparece nos dicionários de forma adaptada ao português, caubói. Mas o dicionário de Evanildo Bechara coloca as duas formas tanto na língua original cowboy, como também na forma adaptada, coubói. Green card e quiz não constam nos dicionários pesquisados. Em relação à palavra trumpismo trata-se de um neologismo formado por derivação sufixal a partir do sobrenome do candidato à presidência dos Estados Unidos Donald Trump e o sufixo – ismo. Neste caso o elemento derivado, trumpismo, denota depreciação.

Considerações finais O léxico de uma língua é dinâmico e está em constante transformação e ampliação. Por meio dos processos de formação de palavras e da incorporação de vocábulos estrangeiros, novos vocábulos vão sendo inseridos em um idioma. Em relação aos empréstimos linguísticos, atualmente, eles representam uma parcela significativa no enriquecimento vocabular do português do Brasil, principalmente em se tratando dos anglicismos.


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Os estrangeirismos chegam ao nosso idioma principalmente por meio da mídia, e quando são utilizados com certa frequência pelos falantes de uma comunidade linguísticas, tornam empréstimos sendo incorporados ao léxico de um idioma constando em seus dicionários. O programa Manhattan Connection, que é transmitido

há 20 anos, é um

divulgador do inglês, idioma que é considerada no mundo contemporâneo como língua franca. Em recortes das falas dos apresentadores do programa, vários anglicismos foram utilizados e após a análise em dois dicionários, verificou-se que de fato a língua inglesa, exercendo influência em setores como a economia, a cultura e a política, influencia também na maneira como as pessoas utilizam a língua nos atos de fala.

Referências: ALVES, Ieda Maria. Neologismo criação lexical. São Paulo: Ática, 1990; BECHARA, Evanildo. Dicionário da Língua Portuguesa. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011; BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2009; BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Teoria linguística: linguística quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978; CAMARA JR. Joaquim Matoso. Princípios de linguística geral: como introdução aos estudos superiores de língua portuguesa. 7 ed. Rio de Janeiro: Padrão Livraria Editora, 1989; CARVALHO, Nelly. Empréstimos linguísticos na língua portuguesa. São Paulo: Cortez, 2009; GARCEZ, Pedro M.; ZILLES, Ana Maria S. Estrangeirismos: desejos e ameaças. In: Faraco, Carlos Alberto (Org). Estrangeirismos: Guerras em torno da língua. 3 ed. São Paulo: Parábola, 2004. P. 15-30; HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss conciso. São Paulo: Moderna, 2011; ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato Rosa; O português da gente: a língua que estudamos a língua que falamos. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2012; MANZOLILLO, Vito Cesar de Oliveira. Acerca da dinamicidade lexical. SOLETRAS, Ano 1, nº 2.São Gonçalo: UFRJ. Jul./dez. 2001;


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SILVA, Maria Cristina Parreira da. O “glamour” das palavras inglesas na língua portuguesa. In Silva, José Pereira da. Neologia e neologismos no Brasil – século XXI. Cutitiba: Appris, 2012 VILLALVA, Alina; SILVESTRE, João Paulo. Introdução ao estudo do léxico: descrição e análise do Português. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.


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SURDO TERENA: CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO

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Michelle Sousa Mussato (UFMS-CPTL)

Resumo: Ao observar, diante da transdisciplinaridade que envolve a Análise do Discurso de linha francesa, que o discurso constitui um cenário em que estão envolvidos a língua, o sujeito e o espaço histórico-social-ideológico e cultural, este trabalho objetiva problematizar o processo de constituição identitária dos sujeitos surdos indígenas que se encontram nas aldeias de etnia Terena, em Miranda, MS, por meio de seus dizeres, contribuindo para a reflexão da exclusão social sob as condições de produção, as manifestações históricas e identitárias. Entendendo, dessa forma que a visão discursiva considera a linguagem em sua incompletude, por buscar compreender a complexidade das questões contidas no discurso, o sentido das palavras submetidas às condições ideológicas das relações de produção (sejam elas em sua formação, produção, transformação ou reprodução), temos no método arqueogenealógico de Foucault, juntamente com as contribuições de autores dos Estudos Culturais, as referências teóricas para o nosso gesto analítico-interpretativo. Palavras-chave: Índio Surdo, Identidade, Representação.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao relatar que ―[...] embora muito já tenha sido feito a escola indígena diferenciada, intercultural e bilíngue ainda é um sonho [...]‖ (SILVA E SOBRINHO, 2010, p. 72) as autoras explicitam uma realidade ainda presente em nossos dias, realidade que não se dá apenas à educação oferecida aos indígenas, mas à toda comunidade surda que também tem esses direitos elencados na legislação e, mais, aos surdos indígenas que parecem estar na condição de invisibilidade ainda. As autoras trazem em seu discurso a demonstração do empenho e preocupação por parte da comunidade indígena ―em fazer com que a escola específica, diferenciada, intercultural, bilíngue não seja apenas uma exigência da legislação, mas sim uma realidade no processo de escolarização da aldeia‖ (SILVA e SOBRINHO, 2010, p. 57). A comunidade surda também se constitui em grupos para promover e fortalecer sua cultura, lutando da mesma forma pelo seu reconhecimento linguístico e cultural. As discussões sobre índios surdos, sua língua, sua cultura, os sinais específicos de sua etnia têm alcançado visibilidade mediante o trabalho de pesquisadores, que se ocuparam do registro destas práticas discursivas. Dentre estes, destacamos Vilhalva (2012), dado seu registro da língua de sinais de indígenas Guarani-Kaiowá, da região de Dourados, no Mato Grosso do Sul – pesquisa pioneira que comprovou a existência 1

Mestranda em Estudos Linguísticos pela UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus Três Lagoas – MS, orientada pela Profª Drª Claudete Cameschi de Souza.


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desses sujeitos, de modo a torná-los visíveis à sociedade e preservar seus direitos e características linguísticas. De acordo com esta pesquisadora, estudos anteriores sobre a vulnerabilidade e possibilidade de extinção das línguas indígenas, bem como a existência de língua de sinais desses grupos, foram realizados por Brito (1995) sobre a etnia Urubu-Kaapor, no Maranhão; por Nonaka (2004), relacionado à etnia Ban Khor, na Tailândia e mais recentemente, na direção desta temática, situou-se a pesquisa de Giroletti (2008) sobre a cultura surda e a educação escolar Kaingang. Nosso propósito é a continuidade de estudos de discursos sobre índios surdos, na perspectiva teórica da Análise do Discurso, de linha francesa, articulada na transdisciplinaridade, a saber, dos estudos culturalistas, uma vez que objetivamos interpretar as formas de representação do índio surdo por seus pares, as formações discursivas que constituem seus discursos e os efeitos de sentido possíveis em sua materialidade linguística. O corpus constitui-se de enunciados extraídos de entrevista gravada indígenas surdos, in loco, na aldeia – recorte de enunciados mais significativos para nosso gesto de interpretação do processo identitário desses sujeitos visto a quantidade de páginas solicitadas. Entendendo que o discurso constitui um cenário em que estão envolvidos a língua, o sujeito e o espaço histórico-social e cultural, este trabalho objetiva pesquisar o processo identitário dos sujeitos surdos indígenas que se encontram nas aldeias do Posto Indígena Cachoeirinha de etnia Terena, na cidade de Miranda no Mato Grosso do Sul, por meio de seus dizeres, contribuindo para a reflexão da exclusão social sob as condições de produção, as manifestações históricas e identitárias presentes.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO A pesquisa para a constituição da dissertação se detém à população Terena que vive em aldeia no município de Miranda, denominado como ―Posto Indígena de Cachoeirinha onde se encontram as aldeias: Cachoeirinha, Argola, Babaçu, Lagoinha, Morrinho, Assentamento Mãe Terra e recentemente, a partir do segundo semestre de 2011, a área de retomada nomeada Tumuné Kalivôno – ―Futuro das Crianças‖ (PORTO, 2012, p 42). Nessas aldeias é possível observar que a comunidade é falante e a Língua Terena é utilizada no cotidiano da aldeia para comunicação e interação entre os sujeitos índios em todas as situações vivenciadas internamente: social, economia,


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política, religiosa e cultural e compreendem que o uso de seu idioma valoriza a identidade cultural e preserva a cultura indígena. De modo a cercar os efeitos de sentido lançados na problematização da constituição do processo identitário do indígena surdo, por meio da análise de narrativas de si e do outro, pela subjetividade do sujeito em descrever como se vê, como vê o outro (seus pares e o branco) e como acredita que o outro o vê (seus pares e o branco) sendo índio e surdo, temos como hipótese de pesquisa que estes sujeitos estão à margem da sociedade hegemônica numa dupla exclusão: por serem indígenas e surdos. Destacamos que iniciamos esta pesquisa com quatro surdos indígenas, três da mesma família, e alguns ouvintes, de etnia Terena, residentes na aldeia Cachoeirinha, localizada no município de Miranda, em Mato Grosso do Sul. A falta de atendimento especializado para as necessidades educacionais específicas na escola da aldeia levou os pais dos indígenas em questão a matriculá-los numa escola para ouvintes, na área urbana, cuja prática da oralidade com resquícios do procedimento da Comunicação

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Total era comum. Instalados na escola com esta peculiaridade, os índios surdos, concomitante ao treinamento fonoaudiológico, nos anos de 2006, tomaram contato com a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) no ambiente escolar. No entanto, tais sujeitos haviam desenvolvido um sistema próprio de comunicação, uma língua de sinais emergentes (VILHALVA, 2012) que lhes atendia a necessidade cotidiana de interação no seio familiar e entre amigos, mediante uma linguagem sinalizada, cujos sinais eram originários da própria comunidade de convívio. Na escola, cessada a obrigatoriedade de aprendizagem da língua oral, pelo Decreto nº 5626/05, da Lei nº 10.436/02 que regulamenta a Libras, os índios surdos passaram a receber o auxílio da tradução simultânea da Libras em sala, o que gerou outras dificuldades, dentre elas, a resistência das escolas em aderir e adaptarem-se ao novo método e a escassez de intérpretes de Libras, capazes de atendimento em todas as séries que continham surdos e índios surdos. Duplamente marginalizado, primeiro por ser indígena, segundo por ser surdo, o índio surdo se vê em um ―entre-lugar‖, conforme Bhabha (1998), onde o processo de

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Perlin e Strobel (2006, p. 23) entendem por Comunicação Total todo o espectro dos modos linguísticos: gestos criados pelas crianças, língua de sinais, fala, leitura orofacial, alfabeto manual, leitura e escrita. Incorpora quaisquer restos de audição com vistas ao desenvolvimento das habilidades de fala ou de leitura orofacial, seja pelo uso constante, em longo período de tempo, de aparelhos auditivos individuais e/ou sistemas de alta fidelidade para amplificação em grupo.


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constituição identitária ocorre em meio a diversas fronteiras. Porto e Guerra (2013) afirmam que: ―[...] a condição do índio na atualidade: não pode ser considerada completamente indígena, pois já não traz apenas sua cultura de origem, nem pode ser considerada completamente branco, pois há em si marcas da sua cultura e etnia que não permitem essa completude‖ (PORTO e GUERRA, 2013, p. 32). O que corrobora o entendimento da condição identitária deste sujeito na fronteira: da não totalidade índio ou branco, no entre-lugar. Índio e surdo, num jogo de formações discursivas antagônicas, distintas, que ora se superpõem, tornando este sujeito cindido, daí a necessidade de interpretar seus discursos, observar as regularidades em suas práticas discursivas para sua constituição histórica.

TECITURA TEÓRICA O presente artigo tem como fundamentação teórica transdisciplinar concepções advindas da Análise do Discurso (AD), de alguns conceitos dos estudos culturalistas e do método arqueogenealógico de Foucault. Os conceitos dessas diferentes áreas de conhecimento são fundamentais para a problematização da constituição identitária do surdo indígena por meio de regularidades enunciativas trazidas à tona pela materialidade linguística. A transdisciplinaridade aqui descrita se faz necessária, uma vez que tal aporte teórico considera a linguagem em sua incompletude, pois se busca compreender a complexidade das questões contidas no discurso, o sentido das palavras que, submetidas às condições ideológicas das relações de produção (sejam elas em sua formação, produção, transformação ou reprodução) vem esclarecer pontos que dizem respeito à subjetividade, à memória discursiva, ao pensamento logocêntrico que regulam o que o sujeito pode e deve dizer, bem como o que não pode e/ou não deve ser dito. Portanto, o sentido do dizer não é tão puro e não está tão facilmente ao alcance de todos já que se apresenta muitas vezes ambíguo ou, no mínimo, plural (CORACINI, 2010). Com pontos distintos das demais teorias da linguagem, o campo da AD de linha francesa busca ―as significações discursivas que podem ser apreendidas, a partir da materialidade do texto, e são afetadas por condições sócio-históricas de significação‖, conforme postula Indursky (2010, p. 72). A autora destaca que a AD, busca uma semântica discursiva que ultrapassa os limites do texto para, então, alcançar o próprio discurso e seus processos de significação, uma vez que o texto é atravessado pelo


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interdiscurso. O sentido de um texto é alcançado, portanto, quando o relaciona às suas condições de produção, que o faz remeter à exterioridade e às formações discursivas que o afetam. Não objetivamos, aqui, tratar a língua como sistema transparente e regular, como nos modelos estruturalistas, detentora de um significado único e invariante, mas sim, reconhecer o seu aspecto híbrido, heterogêneo e perpassado pelo social, pelo histórico e por uma ideologia. Este estudo só é possível, portanto, ancorando-se numa análise social, uma vez que sociedade e linguagem se constituem de forma recíproca. A AD considera a exterioridade como constituinte do discurso, colaborando para o trabalho de transformação do espaço de acepção do sujeito, compreendido, assim, numa relação linguagem-exterioridade. Assim, entendemos que a produção de sentidos é uma prática ligada à exterioridade, na qual a materialidade linguística se percebe construída pela língua em conjunto aos aspectos sociais, inscrita num processo histórico que faz sua enunciação significar. Segundo Orlandi (1999), todo discurso se atualiza na relação com outros discursos e na tensa relação entre a materialidade linguística e construções sóciohistórico-ideológicas dos sujeitos, uma vez que ―o sujeito da linguagem é descentrado, afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo controle sobre o modo como estas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia‖ (ORLANDI, 1999, p. 20). No entanto, Limbert (2009) retifica que a subjetividade do sujeito manifestada na linguagem, na verdade revela sua identidade, quando este opta por tais palavras e não outras para constituir seu enunciado, como se vê em: Na manifestação da identidade, não ocorre uma substituição inconsciente de discursos, mas sim uma “seleção”, no interior do próprio discurso, do que vai ser dito e como vai ser dito. Tais ―escolhas‖ são reveladoras, pois, tanto as formas discursivas eleitas quanto as excluídas são as marcas de sua subjetividade e, consequentemente, de sua identidade. Essas marcas são combinatórias de ―escolhas‖ feitas pelo sujeito social que revelam seu modo de representar a realidade, a qual, da mesma forma, ele conforma de maneira própria e individual. Assim se delineia a identidade: pelo conjunto de características discursivas próprias, que formam um conjunto de “escolhas” que significa tanto quanto o que se enuncia. (LIMBERT, 2009, p. 33 grifos nossos).


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Motivado pelo desejo de completude de seu dizer, o sujeito deixa transparecer a falha da linguagem, oportunizando o seu deslocamento, expondo-o ao que lhe falta na língua, aos sentidos (im)possíveis em seu dizer. Quando tal sujeito não consegue expressar, pela linguagem, aquilo que gostaria, deixa escapar sentidos outros, possibilita diversos caminhos interpretativos, onde o dizer torna-se um lugar de conflito, de contradições, de rupturas, de tensões, de relações de resistências. A AD, ao abster-se dos sentidos prontos, transparentes de um texto, concebe que os sentidos são captados no entrelaçamento de vozes que remetem a outros discursos. As formas de interpretação se submetem, pois, à tomada de posição do interpretante. A busca pela completude, pela cientificidade e verdade, inerentes ao sujeito, é crucial para que ele continue a produzir ―novos sentidos‖, sentidos esses que não são novos, mas (re)produzidos nessa necessária ilusão. É diante da ilusão de ser a origem de seu dizer e por acreditar que seu discurso possui a mesma compreensão como fora enunciado que este sujeito envolto pelos esquecimentos nº 1 e nº 2 descritos por Pêcheux (1988, p. 173-175) nos fornecerá caminhos para a análise dos processos referenciais do material linguístico de seu dizer. Pêcheux, ao trazer a teoria do interdiscurso revela-nos que o dizer do sujeito é perpassado por vários discursos e não é produzido intencionalmente. Todo discurso possui uma base histórica, uma materialidade que permite ou interdita sua existência. No acontecimento discursivo, que é, pois, o enunciado, o sujeito ocupa uma posição e o que se fala não é dito de um lugar qualquer. Nas palavras de Gregolin (2004, p. 95): ―exatamente por serem objeto de luta, as práticas discursivas determinam que nem sempre tudo pode ser dito, que aquilo que pode ser dito é regulado por uma ordem do discurso‖. Se o discurso é responsável por articular saber e poder para o sujeito que, quando inserido na ordem do discurso profere seu dizer, tem-se a construção de verdades que, sedimentadas em determinadas ordens discursivas, constituem o que Foucault (1969) chama de formações discursivas (FD), as quais são regras anônimas (dispersas, mas também regulares) que determinam a maneira de pensar, de interpretar, de agir de cada sociedade em determinado tempo. Assim, conforme o filósofo historiador, é ―preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos e regulamentados pelas instituições‖, cada uma delas ―capaz‖ de regulamentar os seus próprios discursos, visando à condução das suas ―verdades‖, nas quais se apresenta a sua heterogeneidade. (FOUCAULT, 2007, p. 39). A FD


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apresenta-se como um conjunto de enunciados que não se reduzem a objetos linguísticos, tal como as proposições, atos de fala ou frases, mais submetidos a uma mesma regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, ciência, teoria, entre outras. Se a FD é concebida por Foucault (1969) como regras anônimas que determinam a maneira de pensar, de interpretar, de agir de cada sociedade em determinado tempo, convém dizer acerca do tempo em que vivemos, o qual ora é chamado de pós-moderno ora de modernidade tardia, ou até mesmo de modernidade líquida. Nesse período, como problematizamos, há uma discussão em torno da identidade em que se evidenciam várias tomadas de posição quanto às perspectivas para compreendê-la. Uma vez que nossa pesquisa está inserida nas discussões sobre o processo de constituição do sujeito, ela é atravessada por questões identitárias e, por isso, é mister lançarmos um olhar a tais questões e sua problemática na atualidade por meio das contribuições dos estudos culturalistas. Os estudos culturalistas constituem-se em importante fonte para a ampliação do entendimento sobre hibridismo cultural e identidade, relevantes à nossa proposta de análise. Seus estudiosos centraram atenção em temas como globalização, subjetividade, representação e processos identitários. Mobilizados pela situação socioeconômica do país, tomam, entre outros, a pobreza, a corrupção, a repressão e a ditadura militar, os negros e os índios para discuti-los. O índio possui sua imagem inserida em um imaginário (GUERRA, 2010), o que pode ser explicado pela afirmação de Coracini (2010, p. 61) em que o sujeito ―se constrói nos e pelos discursos imbricados que o vão constituindo‖. Dessa forma, o índio na atualidade revela a condição de não carregar apenas sua cultura de origem não sendo, por sua vez, considerado totalmente indígena; tampouco poderá ser conceituado como completamente branco, pois mantém traços culturais do indígena do passado, idealizado pela sociedade. A identidade vincula-se ao conceito de representação, de forma direta, pois ao nomearmos um objeto, nós o estamos fazendo real; de igual modo, ao representarmos uma etnia (como a dos índios Terena) de acordo com determinada imagem, é comum que grande parte dela assuma tal representação como uma identidade (CORACINI, 2003). Acerca da identidade que o indivíduo assume e seu papel na sociedade, pode-se afirmar que nem sempre uma está relacionada à outra: a identidade está relacionada à significação do ator social por si mesmo, enquanto os papéis são definidos por


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instituições

e

organizações

da

própria

sociedade,

somente

interferindo

no

comportamento das pessoas por um acordo entre o indivíduo e a organização.

DA INTERPRETAÇÃO DOS DISCURSOS Nosso procedimento metodológico parte da Análise do Discurso, cuja fundamentação, privilegia a relação entre interlocutores, enunciado e mundo. Sob tal perspectiva discursiva, preocupamo-nos com as formas de organização dos elementos que constituem o discurso, ―o interior linguístico‖, mas também com as formas de instituição de seu sentido, ―as condições de produção do discurso‖ (CARDOSO, 2003, p. 127). Dessa forma, o procedimento analítico se faz transdisciplinar, advindo do método arqueogenealógico de Foucault, em conformidade ao arcabouço teórico dos estudos culturalistas, juntamente às teorias que compreendem os processos de referenciação linguística. O recorte analisado foi selecionado do corpus, constituído de entrevistas gravadas, filmadas e transcritas, com surdos indígenas da etnia Terena, na cidade de Miranda, Mato Grosso do Sul, devidamente autorizadas.

REPRESENTAÇÕES DO/SOBRE O INDÍGENA SURDO No presente o sujeito-enunciador trata-se de surdo da etnia Terena que está concluindo o ensino médio, que iniciou seus estudos com cerca de doze anos de idade e passou por diversas reprovações durante o ensino fundamental em decorrência da falta de comunicação consolidada entre ele, a escola e a família. Neste recorte o índio surdo (IS) relatando sobre as dificuldades que enfrentou/enfrenta por falta da sistematização do ensino vivendo num entre-meio, em um entre-línguas, onde apresenta como regularidades a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como porta de acesso às relações de saberes-poderes e seu sentimento de impotência e incapacidade resultado de uma formação discursiva de exclusão. IS: [...] até pouco tempo atrás eu era uma pessoa considerada ignorante... não adquiria conhecimento e nem conseguia ajuda de minha mãe por falta de comunicação... na escola eu sentia vergonha, medo, insegurança... via as outras crianças crescendo se desenvolvendo, mas eu não as acompanhava por que não tinha Libras... na escola da aldeia Cachoeirinha que não me permitiram estudar [...]


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É possível observar no recorte que o sujeito enunciador indígena surdo (IS) atrela a sua dificuldade de compreender a si e ao mundo ao seu redor à falta do uso da Libras como suporte em sua comunicação, de modo que deixa emergir em seus ditos que antes do processo de ensino era considerado pelos outros um ignorante. Segundo Coracini (2011), a identificação se dá pela diferença e pelo olhar do outro que diz quem eu sou, percebemos, desta maneira, que o sujeito enunciador introjeta essa identidade atribuída pelo outro ao proferir que era uma pessoa considerada ignorante, sentimento esse reforçado por sua condição de surdo e não dominar a Libras (dispositivo de inclusão), uma vez que a língua materna (vista neste artigo como língua de sinais emergentes) não oportunizava acesso aos saberes institucionalizados. Segundo Ferreira (2009, p. 460) o vocábulo ignorante remete a ―adj2g. s2g 2. que ou quem não tem instrução‖, diante disso, observamos em Quadros (1997), que a primeira língua de uma criança norteia, promove e facilita o acesso aos conhecimentos escolares, mas para o referido sujeito-enunciador, por ser surdos, suas experiências são diferentes em relação à construção do conhecimento. Para IS o processo de significação de si, do mundo e da escola só acontece por meio da língua de sinais, pois sem a Libras, relata o enunciador que não adquiria conhecimento e nem conseguia ajuda de minha mãe por falta de comunicação. Rinaldi (1997, p. 24) explica que, diferentemente de um ouvinte, em se tratando do aluno surdo, ―verifica-se que raramente ele traz consigo aquela gramática implícita, precisando ‗heroicamente‘, participar da reflexão sobre uma língua que não domina ou domina precariamente, ao mesmo tempo em que se encontra no processo de aprendizado da língua portuguesa e de aquisição da língua de sinais‖. Nota-se, pelo nãodito no fio discursivo, que a língua de sinais emergentes, ou tida por alguns autores como língua de sinais caseira, não oportuniza comunicação, pois o modo como a mãe se comunica com ele não se aplica quando, na construção de sentidos, não possibilita acesso ao aprendizado em sala de aula ao recorrer à mãe para auxílio. Isso gerava um sentimento de vergonha diante do outro que o faz confessar. Para Foucault (1994) a confissão é uma das técnicas de si, um dos modos pelos quais o indivíduo pode estabelecer uma relação consigo mesmo e produzir uma série de operações sobre seu corpo, seus pensamentos e sua conduta; um modelo e mesmo a matriz do modo, como, na civilização ocidental, o sujeito pode produzir um discurso de verdade sobre si-mesmo. A partir disso, podemos notar no trecho na escola eu sentia vergonha, medo, insegurança... via as outras crianças crescendo se desenvolvendo /


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mas eu não as acompanhava por que não tinha Libras... na escola da aldeia Cachoeirinha que não me permitiram estudar percebemos que IS relata que tinha vergonha, medo e insegurança. Sensações e sentimentos negativos que passou a introjetar ao ver a si pelo olhar do outro, pois, conforme Foucault ―o indivíduo é levado a buscar dentro de si, diante de um outro, uma verdade sobre o seu desejo que diga ainda toda a verdade sobre o conjunto da sua existência‖ (FOUCAULT, 1994, p. 785).

O sujeito enunciador passa pela ordem do assujeitamento em que o sujeito adota o discurso do outro como uma verdade sobre si. Dessa forma, é-nos dado observar nesse excerto que existe uma gradação negativa da representação e posição-sujeito de IS por ser considerado ignorante, motivo de vergonha, se torna uma pessoa medrosa e uma pessoa insegura. Quando IS enuncia que não acompanhava os demais alunos porque não tinha Libras, vemos outra construção de uma vontade de verdade por parte do sujeito enunciador. Percebemos que IS passa pela ilusão do esquecimento número 1 de Pêcheux, ao (re)produz o discurso da sociedade branca que afirma que o surdo só evolui, progride quando se utiliza da Libras para estabelecer comunicação e abrir possibilidade de educação, de aprendizagem, como podemos observar em Fernandes (2007, p. 2) ao descrever que ―as crianças surdas necessitam de uma modalidade linguística que atenda às suas necessidades visuais espaciais de aprendizagem, o que significa ter acesso à Libras‖ como forma de ―suprir as lacunas que a oralidade não preenche em seu processo de desenvolvimento da linguagem e conhecimento de mundo‖. Porém, emerge pelo não-dito um efeito de sentido de que o sujeito enunciador vê a Libras como um dispositivo de poder-saber, por lhe trazer a capacidade e a possibilidade de adquirir conhecimentos considerados científicos. Não mais tomado pelo sentimento de impotência, IS vê (re)significada sua condição de ser surdo, pois, imbuído pela prática de poder-saber, ele passa a entrar na ordem do discurso, a ter uma voz, a ter uma vez na trama discursiva e acredita ainda, que sua evolução nos estudos se iniciará, o fará crescer e desenvolver-se por meio dos saberes científicos e pedagógicos da instituição escolar. Fica demonstrado a busca pela completude, pela cientificidade e verdade, diante do discurso de IS, pois é inerente ao sujeito a produção de novos sentidos, sentidos esses que não são novos, mas (re)produzidos nessa necessária ilusão. Assim podemos observar neste excerto a emergência das formações discursivas de exclusão e educacional, visto que nos primeiros anos de sua vida escolar o sujeito enunciador é interditado em seu direito à educação que deveria assegurar a ele sujeito


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um atendimento especializado por ser surdo e por ser indígena na escola da sua própria aldeia. Durante a coleta de dados, a mãe relata que, quando a professora percebeu que o sujeito indígena não escutava, pediu não levasse mais para a escola, alegando falta de ―condições‖ para atendê-lo e alfabetizá-lo. Daí sua lacuna de 5 anos (dos 7 aos 12 anos) sem acesso a escolarização que chega ao fim ao ser acolhido por uma escola municipal urbana. Quando IS relata que não permitiram que estudasse na escola da Cachoeirinha (não me permitiram estudar na escola da aldeia Cachoeirinha) fica expresso o embate entre modalidades de línguas, entre dois tipos diferentes de sujeitos que deixa a identidade de IS desestabilizada, pois a escola devia ser vista como um território onde as ideologias e a diversidade cultural e social se debatem, garantindo uma ―educação para todos‖. Para esta instituição escolar, IS é caracterizado como um sujeito ―anormal‖ (FOUCAULT, 1997), e passa a ser excluído por não corresponder aos padrões exigidos pela docente em questão, tirando de IS seu lugar na sociedade. Entendemos, dessa forma, que os processos de identificações dos sujeitos se operam via relação com o outro, seja pelo âmbito social por constituírem-se pelo imaginário (ou fantasmático) nos espaços culturais (HALL, 1996), seja no âmbito dos processos psíquicos por relações imaginadas que estruturam o inconsciente do sujeito, enquanto algo pleno, unificado e resolvido, resultando de uma fantasia de si mesmo. Diante das considerações acima, vemos representado a imagem de um sujeito surdo indígena que se identifica como motivo de vergonha, ignorante, inseguro, medroso, aquele que introjeta sensações e sentimentos negativos sob o olhar do outro, o olhar da escola, deixando permear em seu dito a negação em recorrência ao advérbio destacado no presente excerto, uma vez que o sujeito ―se constrói nos e pelos discursos imbricados que o vão constituindo‖ (CORACINI, 2010, p. 61). Conforme a análise empreendida podemos notar que esse sujeito pode ser classificado como margem da margem, haja vista sua dupla condição de pertencimento a duas minorias além de indígena, IS também é surdo. O que proporciona a ele uma dupla interdição que contribui para que se sinta discriminado tanto pela comunidade a que pertence, que não acolheu por ser surdo, quanto pela sociedade branca, que o acolhe por ser surdo, mas de sua condição de indígena.


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CONSIDERAÇÕES EM CONSTRUÇÃO

Desde os primórdios da civilização que o homem tem dificuldade em aceitar o diferente, ainda mais quando essa diferença se dá pela (im)perfeição da deficiência (GESSER, 2012), isso vem ao encontro de nossa análise discursiva sobre as representações dos sujeitos surdos indígenas que, igualmente à margem, acabam por assumir posições (de) sujeitos determinadas pela sociedade hegemônica branca ouvinte. É possível perceber a tentativa de IS em promover deslocamentos acerca dos discursos remetidos aos surdos indígenas como mecanismo de inclusão e aceitação desses sujeitos por parte da sociedade envolvente. Assim, as relações de poder induziram a promoção de discursos que ainda persistem na memória discursiva e nas práticas discursivas dos índios sobre os surdos indígenas no que consiste a incapacidade e/ou impossibilidade de aprendizado. Observamos materializado no discurso a formação discursiva educacional, em que o índio surdo é identificado como sujeito anormal cuja surdez o torna, não humano, aquele que tem um problema, uma condição pedagógica em que as ―verdades‖ sobre os discursos da surdez, o capacita efetivamente apenas quando passa a dominar certas ferramentas comunicativas do branco em detrimento ao seu conjunto de sinais caseiro. Este olhar sobre o surdo tem espaço na sociedade, na escola, no currículo feito e conduzido por ouvintes, traçou um procedimento de separação da alteridade e estereotipação da sua identidade. Da mesma forma a clínica, enfocando o problema clínico, trouxe os termos de corpo surdo pensado a partir da falta de audição, falta da fala. Na educação o surdo é alvo de preconceito e exclusão pelas dificuldades em aprender e também em se ensinar, já que isso requer um certo treinamento que nem todo profissional possui. Em vista disto, em confronto com a norma, o corpo surdo, em termos teóricos, foi transportado para o quadro da deficiência. Inseridos entre os deficientes continuouse com a estratégia da hegemonia e os surdos tiveram diluída sua representação na imaginária representação branca ouvinte. Entendemos que IS introjeta essas ―verdades‖, como uma assimilação da hegemonia do poder ouvinte sobre os surdos, branco sobre os indígenas, pois o que está em jogo por trás de todo saber é a luta pelo poder, ou seja, o saber vai se constituindo por meio dele, de forma que os surdos indígenas conquistem poder oportunizado pelo


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saber, possam assim construir e professar uma imagem de si diferente da representação da surdez no/pelo senso comum.

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ANÁLISE DISCURSIVA DA CARTA DE APRESENTAÇÃO DO REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDÍGENAS Selma Marques da Silva Fávaro (Doutorado em Letras - UFMS/ Três Lagoas) Resumo: A educação escolar indígena tem sido tema de várias pesquisas acadêmicas devido à sua contribuição para o reconhecimento da identidade indígena, para a sua inclusão social e, portanto, para a sua cidadania. Diante de uma política educacional que apresenta a atuação de liderança e de professores indígenas como um elemento necessário e presente na elaboração dos programas de ensino, é nosso objetivo neste trabalho analisar o discurso da Carta de Apresentação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (2005). Para tal, recorremos ao método arqueogenealógico de Foucault, tendo como embasamento teórico a Análise do Discurso de Linha Francesa. Nossa análise nos conduz a um discurso atravessado por diferentes vozes, às vezes conflitantes. Trata-se, portanto, de um discurso heterogêneo, elemento constitutivo de todo discurso, que aponta ora para relações simétricas ora assimétricas entre Estado e professores indígenas. Palavras-chave: Educação Escolar Indígena. RCNEI. Carta de Apresentação. Análise do Discurso.

1. INTRODUÇÃO

A educação escolar indígena tem sido bastante discutida nos últimos anos por diversos fatores, como sua importância para a formação dos alunos, para o reconhecimento/fortalecimento da identidade do indígena, para a sua inclusão social e, portanto, para o exercício de sua cidadania. De acordo com Limberti e Ramos (2013), podemos distinguir algumas fases do ensino indígena, o qual teve início com a colonização do Brasil: uma, que vai até o final dos anos 80 do século XX, marcada pela dominação do indígena por meio da integração e homogeneização cultural, e, a segunda, a partir da Constituição de 1988, responsável por um novo paradigma de ensino. A Constituição pode ser considerada um marco na história do indígena e do Brasil, pois conferiu a esse grupo minoritário o direito de ―serem índios‖ (LIMBERTI; RAMOS, 2013, p. 138). A política integracionista e homogeneizadora cede lugar, ao menos no discurso político-educacional, a uma nova proposta de ensino, marcada pela manutenção da identidade cultural, pelo uso das línguas indígenas e pela criação de processos próprios de aprendizagem. Nesse sentido, a escola ganha uma atenção especial, visto ser um importante instrumento para a valorização da identidade desse grupo minoritário.


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A partir da Constituição de 1988, vários documentos legais foram criados, como o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, doravante RCNEI, editado em 1998 e reeditado em 2005, que aponta para a necessidade de uma ―educação específica, diferenciada e de qualidade para as populações indígenas‖ (BRASIL, 2005, p. 11). Conforme consta no Referencial, este foi elaborado por um conjunto de educadores vinculados à educação indígena e por professores indígenas, ou seja, estes têm o direito de atuar na construção de seus próprios currículos escolares, mais condizentes com as suas realidades. Diante de uma política educacional declaradamente elaborada por indígenas e não indígenas, o que sugere uma relação menos assimétrica entre Estado e indígena, é nosso objetivo neste trabalho analisar o discurso da carta de Apresentação do RCNEI (2005), assinado pelo então secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Ricardo Henriques, problematizando como se manifestam as relações de poder e as principais dicotomias sob as quais se constrói o discurso. Para isso, nosso trabalho tem como embasamento teórico a Análise do Discurso de Linha Francesa, e, como método, a arqueogenealogia de Foucault. Acreditamos que este estudo, isto é, este gesto interpretativo contribuirá para uma postura mais crítica a respeito das políticas educacionais vigentes, ou seja, para a compreensão de seu processo de construção e significação.

2 UM CAMPO TEÓRICO-METODOLÓGICO TRANSDISCIPLINAR Este trabalho tem como embasamento teórico a Análise do Discurso de Linha Francesa, doravante AD, corrente teórica que surgiu na França na década de 60 do século passado, que tem o discurso como a sua noção nuclear e o social e o histórico como elementos indissolúveis, que se encontram reunidos no discurso (FERREIRA, 2000). Nesse sentido, a língua tem papel fundamental: é nela que o discurso se materializa. Portanto, não é transparente; pelo contrário, é opaca, em razão de ser histórica. Uma análise discursiva considera a língua, levando em conta sua gramática, vocabulário e sintaxe em sua relação constitutiva com a história, propondo, dessa forma, ―interpretações que constrói levando em conta dados de língua(s) e de história [...]‖ (MAZIÈRE, 2007, p. 9). Na perspectiva da AD, a noção de condições de produção do discurso não se refere apenas às circunstâncias do discurso, mais imediatas, mas, sobretudo, às


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instâncias sócio-históricas, que põem em relação língua e história, fazendo com que todo discurso seja atravessado por outros discursos, ou seja, pelo interdiscurso, sendo, portanto, heterogêneo. O discurso politico educacional, por exemplo, é permeado por vários discursos, como o positivista, que, de acordo com Mascia (2002), exercerá importante papel no mundo ocidental. A educação, que se encontra atrelada a questões políticas e sociais, ―vê no ideário positivista de progresso a sua própria fundação‖ (p. 51). O progresso, sob essa perspectiva, é algo contínuo, acumulativo, com vistas a um ideal. Acredita-se que a democratização da educação, com a valorização da diversidade cultural, pode levar a uma sociedade mais justa, assim como o trabalho e a ação. Trata-se do discurso da modernidade. O discurso, para a AD, é considerado, então, uma prática social, que se produz, portanto, em um dado momento histórico, constituindo saberes em determinados momentos (FOUCAULT, 2008). Ele é o espaço onde saber e poder se articulam, onde as verdades são produzidas. O poder, para Foucault, não é de posse de alguém ou do Estado: é algo que circula, que funciona em rede. Ele, em si, não existe; existem relações de poder, de modo que onde há poder há resistência, a qual se constitui em pontos móveis e transitórios da estrutura social (FOUCAULT, 2004). O discurso político educacional é permeado por relações de poder e de saber, sendo produzido por aqueles que são legitimados a falar, a produzir verdades. Assim, com o objetivo de analisar o discurso e as relações de poder que se produzem no discurso político-educacional da carta de Introdução do RCNEI, faz-se necessário um arcabouço teórico transdisciplinar, em que diferentes áreas do conhecimento se articulam para possibilitar a análise do discurso.

3 O DISCURSO POSITIVISTA E AS RELAÇÕES DE PODER NA CARTA DE INTRODUÇÃO DO RCNEI O texto de Apresentação do RCNEI pertence ao gênero epistolar, uma carta assinada pelo então secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, Ricardo Henriques, ou seja, por alguém que ocupa uma posição de poder, estando, portanto, autorizado a falar e difundir verdades. Essa carta, inserida logo após a capa, não é neutra; ao contrário, funciona como uma estratégia argumentativa, um ―texto envoltório‖, que abarca outro texto, ―envolvendo-o como que através de uma película invisível, e valor de sedução [..].‖ (MASCIA, 2003, p. 92). É o início do processo de


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argumentação, tendo em vista o convencimento do leitor a respeito de sua proposta de ensino, ou seja, de suas verdades, com vistas à educação de qualidade. No discurso do RCNEI, atravessam inúmeras vozes, elemento constitutivo de todo e qualquer discurso. O discurso se constrói com base na dicotomia novo x velho, sendo o primeiro relativo à ―falta‖ e, o outro, à ―completude‖. No que diz respeito ao ensino indígena após a Constituição de 1988, menciona-se que, com ela, ―os povos indígenas conquistaram o reconhecimento de suas formas próprias de organização social, de suas línguas, crenças [..]‖, o que aponta para uma falta, ou seja, anteriormente à Constituição, tais povos não tinham o reconhecimento de sua identidade, e, também, para a completude, isto é, a partir dela, reconhece-se a pluralidade cultural da nação. Essa falta também se revela em ―[...] novo modelo de escola, afastado de propostas educacionais implantadas para anular as diferenças culturais e identidades étnicas.‖, cujo verbo ―anular‖ reforça o sentido de que o ensino indígena não considerava a pluralidade da cultura brasileira; ao contrário, anulava-a. Trata-se de um discurso da modernidade, de filosofia positivista, focado no ideário progressista, termo que nos remete à ideia de processo, de algo contínuo e acumulativo para se alcançar um objetivo, um ideal. Essa filosofia permeia o discurso da carta, materializa-se, por exemplo, no uso do substantivo ―construção‖, no seguinte enunciado: ―[...] pretendemos, assim, oferecer material de consulta e problematização para professores indígenas na construção de projetos pedagógicos [...]‖ (grifo nosso). Em outras palavras, não existe um modelo de ensino pronto a ser seguido, como no discurso estruturalista, mas um projeto escolar que deve ser construído, refletido, enriquecido. Esse discurso progressista também se materializa na própria divulgação do Referencial de 2005: trata-se de uma ―reedição‖, cujo processo de formação da palavra (prefixo ―re‖ associado à ―edição‖) carrega tanto características da ―nova‖ proposta de ensino quanto da anterior (edição de 1998), ou seja, uma alteração da primeira, com vistas à sua melhoria, já que nada está pronto e acabado. O discurso positivista da reforma educacional como um elemento de transformação social também atravessa o discurso da introdução do Referencial. Tal discurso emerge no seguinte enunciado: O Ministério da Educação criou a Secretaria de Educação Continuada, alfabetização e Diversidade- SECAD para dar destaque e relevância política à diversidade sociocultural no âmbito das políticas educacionais, revertendo com isso desigualdades sociais relacionadas ao silenciamento das diferenças culturais e de perspectivas sociais,


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políticas e econômicas peculiares aos projetos societários dos povos indígenas. (BRASIL, 2005, grifo nosso).

Nesse enunciado, há o uso do verbo ―reverter‖, que, de acordo com o Dicionário

Escolar da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (2008), tem algumas acepções, como: 1. Voltar ao ponto ou à condição inicial; retornar, regressar, retroceder; 2. Tomar ou fazer tomar uma direção contrária. Em sua forma nominal, o verbo, no gerúndio, aponta para a ocorrência de ações simultâneas, o que gera o seguinte efeito de sentido: ao dar destaque e relevância política à diversidade sociocultural, revertem-se ―as desigualdades sociais relativas ao silenciamento das diferenças culturais [...].‖. Em outras palavras, se a escola oferecer um ensino intercultural, baseado no respeito às diferenças culturais, as desigualdades sociais se diluem, ou, melhor, tomam uma direção contrária: é a emancipação/ascensão social do indivíduo. Isso nos leva à construção do seguinte enunciado conclusivo: o não reconhecimento da identidade indígena e a tentativa de apagamento de sua diversidade cultural são responsáveis pelas desigualdades sociais atuais. Portanto, reconhecer a sua diversidade sociocultural, no âmbito da educação, levará à sua transformação social. A educação é, portanto, a peça chave para a sua ascensão social. Eis o discurso positivista. De acordo com Mascia (2003, p. 123), os discursos mais recentes em Educação são considerados mais simétricos, menos autoritários, com maior distribuição do poder, ―no sentido de atingir os excluídos, emancipando-os e libertando-os‖, ideologia positivista. O discurso da carta apresenta essa característica, pois os indígenas têm o poder na esfera político-educacional de atuar na elaboração do documento. Vários enunciados apresentam esse efeito de sentido, como: 1. ―Consolidaram-se, com este marco legal, algumas experimentações que vinham sendo desenvolvidas com autonomia, em várias comunidades indígenas, que buscavam construir um novo modelo de escola [...]‖ (grifo nosso), cujo verbo ―consolidar‖, de acordo com o mesmo dicionário, remete à força, estabilidade, ou seja, solidez das práticas escolares desenvolvidas pelos indígenas (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2008). Esse efeito de sentido também emerge em: 2. ―[...] uma sistematização de reflexões e subsídios que foram se constituindo nessas diferentes práticas pedagógicas e curriculares que se transformaram em princípios para as políticas públicas educacionais.‖ (grifo nosso). No segundo enunciado, há o uso de um substantivo que sintetiza a importância das práticas escolares indígenas para a elaboração da proposta:


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elas se referem aos ―princípios‖ das politicas publicas educacionais, ou seja, constituem a sua base. Sob essa perspectiva, podemos analisar os efeitos de sentido do enunciado que explicita a finalidade da publicação do Referencial, bem como a maneira pela qual ele é identificado: Com a publicação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas pretendemos, assim, oferecer material de consulta e problematização para professores indígenas na construção de projetos pedagógicos nas escolas e para técnicos e gestores de programas voltados para a valorização e fortalecimento das identidades étnicas que fazem deste país uma sociedade plural. (BRASIL, 2005, grifo em negrito nosso).

Há, neste trecho, o uso de uma remissão que cria efeito de sentido de relações mais simétricas entre Estado e professores indígenas: ―material de consulta e problematização‖, que recategoriza o referente ―referencial‖, atribuindo-lhe significação (MARCUSCHI; KOCK, 2002). De acordo com o dicionário que tomamos como referência neste trabalho, ―consulta‖ significa: 1. Ato ou efeito de buscar informação em dicionários, atlas etc. 2. Pedido de conselho (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2008). Em outras palavras, tal anafórico, mais especificamente o uso do adjunto adnominal ―de consulta‖ dá autonomia ao trabalho do professor, pois o Referencial não se mostra como um modelo de ensino a ser seguido, mas um material de auxílio, no qual o professor pode buscar informações, tirar dúvidas, como ocorre quando buscamos um dicionário. O uso do adjunto adnominal ―(de) problematização‖ também atua nesse sentido, pois dá liberdade ao professor e aos profissionais envolvidos com a educação indígena de questionar as ―verdades‖ construídas no

RCNEI, ou seja, eles têm o poder de desconstrui-lo. Além desse elemento anafórico, o uso de dois verbos nesse enunciado reforça essa ideia: ―pretender‖ e ―oferecer‖. De acordo com o mesmo dicionário, ―pretender‖ é um verbo que apresenta algumas acepções: 1. Ter a intenção de; 2. Exigir, esperar de; 3. Desejar. O segundo, ―oferecer‖, é definido como: 1. Apresentar ou propor para ser aceito; 2. Colocar-se à disposição; 3. Proporcionar, propiciar. Se relacionarmos tais verbos ao uso do elemento anafórico ―material de consulta e problematização‖, podemos afirmar, novamente, o efeito de sentido de autonomia, de liberdade ao indígena. Dessa forma, ―pretendemos‖ estaria mais próximo de ―desejamos‖ e, ―oferecer‖, de ―colocar à disposição‖, ou seja, coloca-se à disposição um material para os indígenas consultarem se precisarem. Mais uma


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vez, estamos diante de um discurso atravessado pelo discurso positivista, que ―vê na liberdade o instrumento do progresso‖ (MASCIA, 2003, p. 49), além do discurso da pósmodernidade, pelo fato de o referencial ser caracterizado como material de ―problematização‖, ou seja, de questionamento: concebe-se, com o uso desse anafórico, a verdade como uma construção: as ―verdades‖ do RCNEI são, portanto, construídas, são postuladas em um dado momento histórico, podendo ser desconstruídas. O seguinte enunciado pode sintetizar o discurso da carta, seus efeitos de sentido: uma educação de qualidade só é possível se o indígena tiver autonomia, liberdade na tomada de decisão.

Outra questão que deve ser destacada em nossa análise refere-se ao tipo de trabalho realizado para a educação indígena, o qual, mais uma vez, remete-nos a relações mais simétricas entre Estado e professores indígenas. Trata-se de um trabalho aparentemente mais democrático, desenvolvido em conjunto entre Estado e docentes indígenas, efeito de sentido produzido quando se afirma a consolidação de ―[...] algumas experimentações que vinham sendo desenvolvidas com autonomia, em várias comunidades indígenas [...]. Mostra-se, de certa forma, regular na carta o uso de verbos na voz passiva, tanto na forma sintética quanto analítica, sem o uso do agente da passiva, ou seja, daquele que pratica a ação, como em: ―Consolidaram-se, com este marco legal, experimentações que vinham sendo desenvolvidas com autonomia, em várias comunidades indígenas [...]‖ e em ―O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas foi produzido com a intenção [...]‖. O apagamento do sujeito que pratica a ação (quem consolidou as experimentações? Quem produziu o Referencial?) parece camuflar o poder, tendo em vista a emergência de um discurso que caminha na direção da igualdade, da ―distribuição‖ do poder. Apesar desse efeito de relação simétrica entre Estado e indígena, convém ressaltar que todo discurso é permeado por relações de poder e de saber, como o discurso da carta. Não podemos nos esquecer, por exemplo, de seu enunciador: trata-se do secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, ou seja, de alguém legitimado a ocupar uma posição de poder, de falar em nome do Estado e apresentar um documento a servir de referência no projeto educativo das escolas. Se fosse quebrado o protocolo das cartas introdutórias dos documentos oficiais e, em vez de um político, assinasse o texto, por exemplo, um professor indígena, os efeitos de sentido seriam os mesmos? É a partir do momento que se dá relevância política à questão indígena que novos discursos surgem, ressignificando práticas que fortalecem o reconhecimento da


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identidade indígena e a sua luta pelos direitos de cidadão, como qualquer outro cidadão do país...

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O discurso da carta de Introdução do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas é atravessado por inúmeras vozes, como o discurso da modernidade e da pós-modernidade. Trata-se de um discurso político-educacional que se revela menos autoritário, com uma maior ―distribuição‖ do poder, o que aponta para uma relação menos assimétrica entre Estado e o grupo minoritário, de modo a superar relações de dominação, que marcaram durante séculos a história desses povos. Em nossa análise, mostramos que o discurso se construiu sob dicotomias, que contrastam um ―velho‖ e um ―novo‖ paradigma de ensino, sendo aquele ligado à uma política assimilacionista e, este, ao progresso, à emergência da educação como instrumento de dissolução dos conflitos sociais, que visa ser mais democrática e humana. A análise realizada representa um gesto interpretativo permitido pela materialidade linguística relacionada às condições de produção, que nos remete ao discurso.

Referências Bibliográficas: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008. FERREIRA, M. C. L. Da ambiguidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000. FOUCAUL. M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. FOUCAUL. M. Microfísica do poder. 19.ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2004. LIMBERTI, R.C. A. P.; RAMOS, M. A. da S. Trajetória da educação escolar para indígenas: o percurso da construção de sentido. In: GUERRA, V.M. L.; LIMBERTI, R.C. P.; NOLASCO, E.C. Olhares sobre a constituição do sujeito contemporâneo: cultura e diversidade. Dourados: Editora UFGD, 2013. p. 119-142. MARCUSCHI, L. A; KOCH, I. V. Estratégias de Referenciação e Progressão Referencial na Língua Falada. In: ABAURRE, M. B. M.; RODRIGUES, A. C.S. (Orgs.) Gramática do Português Falado. Campinas: Editora da Unicamp, 2002. p. 3156.


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MASCIA, M. A. A. Investigações discursivas na pós-modernidade: uma análise das relações de poder-saber do discurso político educacional de língua estrangeira. Campinas: Mercado de Letras, 2002. MAZIÈRE, F. A análise do discurso: história e práticas. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. Texto de análise: BRASIL. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. 2.ed. Brasília: MEC/SECAD, 2005. Apresentação.


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FABRINCANDO O SENTIDO: “O FAZEDOR DE AMANHECER”, DE MANOEL DE BARROS, À LUZ DA SEMIÓTICA DISCURSIVA

Tamires Dantas Pereira Cândido (UFMS – Campo Grande/CAPES) Prof.ª Dra. Maria Luceli Faria Batistote

(UFMS – Campo Grande)

Resumo: A Semiótica Discursiva se qualifica como teoria que se preocupa com o sentido em todas as modalidades discursivas. Assim sendo, pode ser enquadrada no grupo de teorias voltadas à compreensão do texto. Para desvendar os efeitos de sentido produzidos ao longo da cadeia discursiva e como essas significações são construídas, vale-se do percurso gerativo de sentido, o qual se constitui por três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo, organizado do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Ancorado em referenciais teóricos tais como Algirdas Julien Greimas, José Luiz Fiorin e Diana Luz Barros, o presente trabalho propõe uma análise do percurso gerativo de sentido no poema ―O fazedor de amanhecer‖ de Manoel de Barros. Os resultados apontam para validação e eficácia do nível do conteúdo no desvelar das significações circunscritas no corpus analisado.

Palavras-chave: Semiótica Discursiva. Percurso Gerativo de Sentido. Manoel de Barros.

Notas introdutórias A obra poética de Manoel de Barros é considerada um marco no campo da arte literária por seu estilo original e pela forma com que transforma as efemeridades da vida em matéria para poesia. Como certa vez afirmou o poeta, seu trabalho era ―administrar o

à toa/ o em vão/ o inútil‖ e nesse intento conseguiu desvendar articulações linguísticas inéditas, jamais esperadas até então. Sendo a Semiótica Discursiva uma teoria que se preocupa com o sentido em todas as modalidades discursivas, acredita-se que seu arcabouço teórico-metodológico seja capaz de elucidar novas significações acerca da poesia barriana, de descortinar outros efeitos de sentido ainda não vistos e, especialmente, evidenciar como são produzidos no interior de sua poética tais significações. Neste trabalho elegeu-se como corpus o poema ―O fazedor de amanhecer‖ a partir do qual será mobilizado especificamente o conceito de percurso gerativo de sentido desenvolvido pela teoria semiótica. No intuito de situar o leitor em terras semióticas, antes de lançarmo-nos ao exercício analítico, julgamos necessária a apresentação de um breve panorama sobre a


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Semiótica Discursiva desde o seu surgimento, quais são suas bases teóricas, em quais princípios fundamenta-se para então mobilizarmos os conceitos por ela concebidos.

O horizonte semiótico

No ano de 1966, o lituano Algirdas Julien Greimas publicou a obra Semântica Estrutural e instaurou o nascimento do que viria a ser conhecido como Semiótica Discursiva (doravante SD) ou Greimasiana e até mesmo Semiótica Francesa. O nascimento dos estudos semióticos se dá pela necessidade de contrapor a análise exaustiva que se fazia sobre o plano do conteúdo das línguas naturais com base nos postulados da semântica estrutural, durante os anos 60 do século XX. Vendo não ser produtiva a realização de uma descrição globalizante dos vocábulos constituintes de todas as culturas, visto que são inumeráveis e estão sempre em proliferação, o projeto estrutural em semântica busca reconsiderar seu objeto. A partir disso, como aponta Fiorin (2012), a Semântica Estrutural passa a se configurar como uma teoria do texto, compreendido como um todo de significação, e busca desvendar não apenas o que o texto significa, mas como funcionam os seus mecanismos internos de produção se sentido. O autor nos informa que para demarcar-se do projeto semiológico proposto por Ferdinand de Saussure, o qual não considera o processo sêmico, isto é, o discurso, essa semântica estrutural passou a denominar-se Semiótica. Com o surgimento da SD, os limites da palavra, da oração e do período foram ultrapassados, uma vez que os fenômenos significantes passam a ser encarados em sua totalidade discursiva. Mais que isso, nessa nova perspectiva a significação é postulada como um objeto próprio, transversal às diversas linguagens que lhe atribuem forma e asseguram-lhe a eficiência (BERTRAND, 2003). Para que o estudo acerca da significação seja satisfatório, deve respaldar-se em três condições: a) ser gerativo, ou seja, ―concebido sob a forma de investimentos de conteúdos progressivos, dispostos em patamares sucessivos, indo dos investimentos mais abstratos aos mais concretos e figurativos, de tal modo que cada um dos patamares pudesse receber uma representação metalinguística explícita‖ (Greimas e Courtés, 1979: 327); b) ser sintagmático, isto é, deve explicar não as unidades lexicais particulares, mas a produção e a interpretação do discurso (Greimas e Courtés, 1979: 327); c) ser geral, ou seja, deve ter como postulado a unicidade do sentido, que pode ser manifestado por diferentes planos de expressão ou por vários planos de expressão ao mesmo tempo,


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como, por exemplo, no cinema (Greimas e Courtés, 1979: 328) (FIORIN, 2012, p.17).

É válido salientar que a SD está ancorada em referenciais como F. de Saussure e Louis Hjelmslev, por isso qualifica-se como uma teoria da linguagem, pautada no princípio estrutural da imanência, e segura da visão de língua como uma instituição social. Barros (2005) esclarece que o texto, objeto da semiótica, determina-se de dois modos que se completam: como objeto de significação, no qual faz-se uma análise interna ou estrutural, e como objeto de comunicação, dando privilégio à análise externa do texto. É importante ressaltar a relevância de se considerar ambas as definições como equivalentes, pois é a partir da junção entre os aspectos interiores e exteriores ao texto que se poderá chegar a uma explicação plena sobre o que o texto enuncia e como o faz. Para propiciar um melhor exame do objeto da semiótica, Hjelmslev propõe que o texto seja estudado, inicialmente, a partir do seu plano do conteúdo. É válido ressaltar que a SD não ignora a existência e relevância do plano da expressão. Em textos de fruição estética, por exemplo, a expressão assume demasiada relevância, já que o escritor não apenas engaja-se em informar o mundo, mas almeja recriá-lo por meio da linguagem. A obra poética de Manoel de Barros é, também, um acervo riquíssimo ao estudo do plano da expressão. Entretanto, por razões de recorte metodológico, nossa análise incidirá sobre o plano do conteúdo. A SD, portanto, deve ser compreendida como teoria dedicada a explicar o/os sentidos do texto, pela investigação, primeiramente, de seu plano do conteúdo (BARROS, 2005). Este, por sua vez, é concebido sob a forma de um percurso gerativo, o qual permite a visualização de como a significação é construída internamente no texto.

Fabrincando o sentido: uma leitura a partir do percurso gerativo

O percurso gerativo de sentido é, pois, uma sucessão de patamares, cada um passível de receber uma descrição apropriada, que evidencia como se produz e se interpreta o sentido, num processo que parte do mais simples ao mais complexo, conforme aponta Fiorin (2002). Segundo o autor, o percurso gerativo estabelece uma hierarquia do plano do conteúdo em três patamares: o fundamental, o narrativo e o discursivo. Como assevera Bertrand (2003), a SD por meio do percurso gerativo


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propõe articular a apreensão do sentido segundo um percurso estratificado em camadas relativamente homogêneas, indo das formas concretas e particulares, manifestadas na superfície do texto, às formas mais abstratas e gerais subjacentes, dispostas em múltiplos níveis de profundidade. Ela mostra, assim, como os percursos de significação se organizam e se combinam, em razão de regras sintáxicas e semânticas que fundamentam, em segredo, a sua coerência. Inversamente, partindo das estruturas profundas para as estruturas de superfície, ela simula a ―geração‖ da significação. (BERTRAND, 2003, p. 49).

Os efeitos de sentido do texto são, então, fabricados, construídos a cada leitura, o que significa afirmar que a significação textual não é concebida a priori, mas é reconstruída por um processo sistemático pautado na relação entre cada constituinte linguístico considerado na totalidade discursiva de que faz parte. Segundo Fiorin (2002), cada nível do percurso gerativo é composto por um elemento sintáxico e um elemento semântico, o autor pondera que a diferença entre a sintaxe e a semântica não está relacionada ao fato de que uma seja significativa e a outra não, mas de que a sintaxe possui mais autonomia em relação à semântica, na medida em que uma mesma combinação sintática pode ser revestida de uma vasta variedade de investimentos semânticos. A partir de tais definições e com base nos conceitos a serem discutidos no decorrer deste trabalho a respeito dos três níveis do percurso gerativo, será analisado o seguinte poema do escritor mato-grossense Manoel de Barros:

Fazedor de amanhecer Sou leso em tratagens com máquina. Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis. Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas Como sejam: Uma pequena manivela para pegar no sono Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão. Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias automobilísticas pelo Platinado de Mandioca. Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio. Pelo que fiquei um tanto soberbo.


E a glĂłria entronizou-se para sempre em minha existĂŞncia.


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Convém informar que esse poema faz parte do livro ―O fazedor de amanhecer‖ publicado em 2001 pela editora Salamandra. O livro é classificado como literatura infantil, nele o autor partilha as memórias de uma infância distante apenas cronologicamente, mas que se revela viva e pulsante a cada nova leitura de seus versos de menino. O primeiro nível do percurso gerativo de sentido é o fundamental. De acordo com Batistote (2012), nesse patamar é articulado uma categoria semântica mínima, a partir da qual constrói-se o sentido do texto: São oposições termos gerais e abstratos, como /vida/ vs /morte/ ou /natureza/ vs /cultura/, mas que possuem ao menos um traço comum entre si. Esses termos mantêm uma relação de contrariedade, estando em relação de pressuposição recíproca. Aplicando-se uma relação de negação sobre cada um desses termos obtém-se uma relação de contradição, gerando os termos contraditórios, por exemplo: /não vida/ vs /não morte/, contrários entre si, que são denominados subcontrários. Além dessas duas relações a articulação de uma categoria semântica ainda prevê relações de implicação, pois os subcontrários implicam termos contrários, por exemplo: /não vida/ implica /morte/. A união dos termos contrários produz o termo complexo /vida/ e /morte/, enquanto a união dos subcontrários gera o termo neutro /não vida/ e /não morte/. (Ibidem, p.39-40).

Respaldando-se nessas afirmações é possível determinar que /liberdade/ vs /opressão/ constituem as categorias semânticas fundamentais do texto em análise, uma vez que há uma relação de contrariedade entre /liberdade/ vs /opressão/, bem como se aplicarmos uma relação de negação sobre cada um dos termos haverá uma relação de contradição que gerará os termos contraditórios /não liberdade/ vs /não opressão/, denominados de subcontrários por serem contrários entre si. Ademais, essa categoria semântica estabelece, ainda, relações de implicação, já que termos subcontrários implicam termos contrários: /não liberdade/ implica /opressão/ e /não opressão/ implica /liberdade. Para melhor compreensão da estrutura fundamental do texto, expõe-se abaixo o quadrado semiótico:


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termos contrários termos contraditórios termos complementares operação de negação operação de afirmação

Essa oposição semântica (liberdade vs opressão) manifesta-se no poema por meio da liberdade criativa que domina o sujeito e o faz fabricar somente coisas aparentemente inúteis (“Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis”) em detrimento da criação de produtos utilitários, que podem ser considerados opressores do ponto de vista do sujeito, desejados pelo universo adulto e/ou pela sociedade consumista pautada na ideologia do capital. Ainda no nível fundamental, os elementos formadores da categoria de base do texto são classificados como positivos ou eufóricos e negativos ou disfóricos, conforme Barros (2005). No texto em questão, a liberdade é eufórica, enquanto a opressão é disfórica. No segundo patamar, o nível narrativo, o olhar analítico se lança sobre o fazer transformador do sujeito e os estados por ele alterados. De acordo com Fiorin (2002), poderia haver objeções sobre o nível narrativo compor o percurso gerativo, já que nem todos os textos são narrativos. Entretanto, o autor pondera que a teoria semiótica ocupase da narratividade e não da narração. Aquela é um componente de todos os textos, enquanto esta é relativa a uma classe específica de textos. A narratividade pode ser


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compreendida como uma transformação de conteúdo estabelecida entre dois estados consecutivos e distintos. A sintaxe narrativa mobiliza dois tipos de enunciados elementares, os enunciados de estado que estabelecem uma relação de junção (conjunção e disjunção) entre um sujeito e um objeto; e os enunciados de fazer, em que são mostradas as transformações, isto é, a passagem de um enunciado de estado a outro (FIORIN, 2002). Na produção do poeta mato-grossense, percebemos um enunciado de estado em que o sujeito se encontra em disjunção com o objeto máquina (“Sou leso em tratagens com máquina”) e um enunciado de fazer em que ele transforma seu estado disjunto de máquinas em um estado conjunto com três máquinas (“Em toda minha vida só engenhei 3 máquinas”). A partir do que é denominado por esquema narrativo, a semiótica possibilita averiguar, por meio da performance do sujeito, ou seja, da operação por ele realizada na narrativa, as manipulações pelas quais ele passou, as competências exigidas para executar determinada ação e, finalmente, como ele será julgado por ter feito ou não o que lhe foi proposto. De acordo com Barros (2008), o esquema narrativo é composto por três percursos: o da manipulação, o da ação e o da sanção. A autora afirma que no percurso da manipulação o sujeito operador, designado de destinador, quer levar o sujeito dos estados sobre o qual age, denominado de destinatário, a fazer alguma coisa. Para que isso ocorra, precisa leva-lo a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer. Existem quatro tipos de manipulação: a intimidação, a tentação, a sedução e a provocação. Fiorin (2002) descreve resumidamente os quatro tipos mais comuns de manipulação: Quando o manipulador propõe ao manipulado uma recompensa, ou seja, um objeto de valor positivo, com a finalidade de leva-lo a fazer alguma coisa dá-se uma tentação. Quando o manipulador faz fazer por meio de ameaças ocorre uma intimidação. Se o manipulador leva a fazer manifestando um juízo positivo sobre a competência do manipulado, há uma sedução. Se ele impele a à ação, exprimindo um juízo negativo a respeito da competência do manipulado, sucede uma provocação. (FIORIN, 2002, p. 22).

Vale ressaltar que um mesmo actante pode assumir simultaneamente no texto a função de destinador e destinatário, como ocorre em ―O fazedor de amanhecer‖. Nessa construção textual, o destinador-manipulador e o destinatário correspondem ao mesmo sujeito que seduz a si mesmo para fabricar as três máquinas (“Uma pequena manivela


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para pegar no sono/Um fazedor de amanhecer/para usamentos de poetas/E um platinado de mandioca para o/fordeco de meu irmão”). Esse percurso caracteriza-se como sedução pois o destinador expressa um juízo positivo acerca do destinatário, afinal não ser habilidoso com máquinas e coisas prestáveis assume valor positivo sob seu ponto de vista, o que o leva a engenhar as máquinas supracitadas. No percurso da ação são organizados dois programas narrativos a partir da visão do sujeito da ação: um programa narrativo de performance e um programa narrativo de competência (BARROS, 2008). No programa narrativo de performance opera-se uma transformação nos enunciados elementares de estado. É imprescindível destacar que ―todo programa de performance pressupõe um programa de competência (ibidem, p.200). Assim, para que a ação ocorra, o sujeito precisa estar dotado de uma competência (saber, poder, querer e dever fazer) para que possa executar a sua performance. No texto analisado, o programa da competência não se mostra explicitamente, mas se encontra pressuposto. É necessário pressupor que o sujeito sabe, pode, quer e deve criar máquinas ―imprestáveis‖, já que sua inabilidade em lidar com artefatos úteis, capacita-o a fabricar máquinas sem utilidade no universo material. No percurso da sanção, após a constatação de que a performance se realizou, há o reconhecimento do sujeito que operou a transformação principal da narrativa (construir as três máquinas). O sujeito pode ser sancionado positivamente ou negativamente. No objeto de nossa análise, percebemos que o sujeito alcançou o reconhecimento por suas criações e, do seu ponto de vista, a sanção foi positiva, já que se sentiu glorificado pelo prêmio recebido: “Cheguei a ganhar um prêmio das indústrias/automobilísticas pelo Platinado de Mandioca./Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio./Pelo que fiquei um tanto soberbo./E a glória entronizou-se para sempre em minha existência”. Por fim, o terceiro patamar do percurso gerativo de sentido, o discursivo, é subdividido em dois níveis: o da sintaxe o da semântica. Na sintaxe discursiva a narrativa domina os estudos relativos à colocação em discurso das categorias de pessoa, tempo e espaço, são estudadas as debreagens (enuncivas ou enunciativas), as embreagens, as técnicas de aproximação ou distanciamento. Nesse domínio os níveis anteriores são sempre atualizados e nele são investigados os efeitos de sentido de um discurso narrado em primeira ou terceira pessoa, num espaço do aqui ou do lá, num tempo passado ou presente, e quais os recursos discursivos utilizados pelo narrador para


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criar tais efeitos de sentido (BATISTOTE, 2012). Na construção poética barriana, em foco nesse trabalho, percebe-se que a enunciação se projeta sob a forma de um esquema enunciativo, uma vez que instaura a categoria de pessoa eu, o tempo do agora e o espaço do aqui (“Sou”, “tenho”, “construí”, “meu irmão”, “cheguei a ganhar”, “minha existência”), o que confere ao discurso um efeito de proximidade e subjetividade.

Com a semântica discursiva, os valores trazidos no nível narrativo são difundidos no discurso de forma abstrata, por meio de percursos temáticos que, por sua vez, podem ser figurativizados, alcançando com isso maior concretude (BARROS, 2003). Em nossa análise percebemos a presença de alguns temas figurativizados os quais podem ser visualizados no quadro abaixo:

TEMAS FIGURATIVIZADOS Temas Industrialização Criação/invenção Reconhecimento Altivez/soberba Valorização das trivialidades

Figuras “tratagens com máquinas”, “indústrias automobilísticas”. “desapetite para inventar coisas prestáveis”, “engenhei três máquinas”. “ganhei um prêmio”, “fui aclamado de idiota”. “fiquei um tanto soberbo”, “a glória se entronizou na minha existência”. “desapetite para inventar coisas prestáveis”, “Uma pequena manivela para pegar no sono”, “Um fazedor de amanhecer”, “E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão”.

Considerações finais Há uma célebre citação de Manoel de Barros na qual ele genialmente afirma: “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas) ”. Com base nessa afirmação, podemos considerar que analisar ―O fazedor de amanhecer‖ consistiu num exercício de descobrir as insignificâncias tão significativas na poética barriana, e, com isso, foi possível (res)significá-la a partir dos pressupostos teóricos da Semiótica Discursiva, por isso podemos considerar este um trabalho poderoso. Além disso, descortinar novos efeitos de sentido no corpus selecionado permitiu que se atestasse o caráter atual e eficaz da teoria semiótica em recuperar as significações


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circunscritas no universo discursivo e possibilitou a visualização do texto como um emaranhado de relações morfológicas, lexicais e sintagmáticas unidas no intuito de propiciar a ―fabrincação‖ de sentidos novos a partir de cada leitura.

Referências: BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2002. ______. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008. ______. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005. BARROS, Manoel. Poesia completa – Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013. BATISTOTE, Maria Luceli Faria. Semiótica francesa: busca de sentido em narrativas míticas. Campo grande, MS: Ed. UFMS, 2012. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Tradução do Grupo CASA. Bauru, SP: EDUSC, 2003. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2002. ______. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2012.


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Artigos completos - 2 Literatura FORMAÇÃO DE LEITORES: MÉTODO CIENTÍFICO E CONTOS DE LUIZ VILELA Ângela Nubiato Lopes (UFMS/CPTL)

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Resumo: O presente artigo tem como objetivo expor o trabalho com o método científico cuja fundamentação teórica está no livro de Maria da Gloria Bordini e Vera Teixeira Aguiar, Literatura: a formação do leitor alternativas metodológicas (1993). O livro traz a exploração de problemas referentes à formação de leitores literários. O aporte literário para aplicação dessa metodologia foram os contos do escritor Luiz Vilela distribuídos em 16 antologias voltadas para o público infanto-juvenil. Buscamos, através do desenvolvimento da proposta, alguns caminhos para propiciar aos alunos, estudantes do 8° ano do Ensino Fundamental, uma formação literária adequada, que abranja e trabalhe com os sentidos globais e os implícitos do texto, adequando-os às situações reais de vida dos alunos. Esses contextos, abordando temas relacionados a juventude, sensibilidade, solidão, incomunicabilidade entre os seres humanos e conflitos existenciais estão representados nas narrativas de Luiz Vilela, que, pela linguagem singela e medida, pela temática real e reflexiva, propiciam elo adequado para o trabalho com a alternativa metodológica estudada. A proposta buscou formas significativas de ensino que promovam e despertem o gosto pela leitura e pelo texto literário observando-se que os problemas levantados revelam a perda de interesse pela leitura de literatura conforme o avanço no grau de escolaridade. Os resultados da pesquisa demonstraram a importância da aplicação da alternativa e a necessidade de adaptação da mesma ao público direcionado. As obras de Luiz Vilela provocaram grande interesse e motivação nos alunos e trouxeram reflexões relativas à realidade deles despertando uma visão mais crítica e autônoma. Palavras-chave: Literatura; Método Científico; Luiz Vilela.

Introdução

O livro Literatura: a formação do leitor - alternativas metodológicas, de Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar, é resultado de um extenso trabalho de pesquisa em diferentes instituições de ensino superior e fundamental, que foi realizado nos anos de 1983 a 1986 com caráter experimental e que, ao longo das aplicações, foi sendo melhorado. A pesquisa investigava as condições e problemas do ensino de literatura no Rio Grande do Sul, pelo centro de pesquisas literárias da PUC-RS, que contou com apoio financeiro do INEP/MEC. Concebida de modo a dar conta da realidade das salas de aula

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Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN / UFMS).


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e, ao mesmo tempo, trazer dessas as contribuições práticas que pudessem alicerçar a investigação universitária para alternativas metodológicas nessa área. Essa pesquisa se desenvolveu em dois planos paralelos. Foram entrevistados 240 alunos e 80 professores de escolas públicas e particulares, de 1° e 2° graus de Porto Alegre. A intenção era verificar como se procedia o ensino de literatura em salas de aula. Essa parte da pesquisa teve como foco o levantamento do processo percorrido pelo ensino de literatura. No outro plano da pesquisa ocorreu a elaboração de alternativas metodológicas que seriam as contribuições práticas da pesquisa. Os resultados foram apresentados ao INEP/MEC sob o título Diagnóstico da situação do ensino de literatura no 1° e 2° graus em escolas de Porto Alegre. As conclusões básicas da pesquisa foram a constatação de um crescente desinteresse em relação à leitura de literatura pelos alunos, conforme o avanço do grau de escolaridade, e um considerável despreparo dos professores quanto à abordagem das obras literárias nos vários currículos escolares. No que se refere aos resultados após a aplicação dos métodos, foi constatado que dos 362 alunos participantes, 294 sujeitos passaram a se interessar pela leitura e pela literatura. Ocorreu um processo de reformulação que deu origem a proposta do livro. As respectivas alternativas oferecem liberdade para que o professor possa escolher os materiais literários para sua aplicação e visam fazer da literatura uma prática de ensino planejada Com a metodologia adequada em mãos, partimos para a busca de um material literário que pudesse auxiliar nesse processo e encontramos Luiz Vilela, um escritor brasileiro que, além de romances e novelas, escreve contos. Essas pequenas histórias tratam do cotidiano das pessoas. Com linguagem simples, mas carregada de sentidos profundos, os contos incentivaram o leitor à reflexão. Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba – MG, no ano de 1942, e foi criado numa família em que todos liam muito. Com 13 anos de idade começou a escrever e, aos 14, fez sua primeira publicação em um jornal de estudantes. O escritor mineiro publicou, até o momento, sete volumes de contos, três novelas, cinco romances e cerca de quinze antologias. A escolha de Luiz Vilela se deu em razão de sua obra ter linguagem concisa e prática, além de poucas personagens e fartos diálogos o que facilitaria a abordagem e a recepção pelos alunos que se encontram na fase da adolescência. Ocorre exploração de situações cotidianas, conflitos envolvendo situações corriqueiras da vida de personagens aparentemente simples, de temas que abordam a visão de pequenas cidades ou


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confronto entre a partida de um pequeno para um grande centro, do foco muitas vezes voltado para o mundo rural, da criação de histórias envolvendo os maus tratos aos animais, Sanches Neto expõe a universalidade da obra de Luiz Vilela: A obra de Luiz Vilela que, num primeiro momento, se anunciou com um atalho para o campo. Eu veria depois que esta leitura não correspondia à obra que apresenta uma universalidade [...] A vida numa pequena cidade, a proximidade com o mundo rural, tudo isso entra na literatura de Luiz Vilela mais pela percepção de uma temporalidade lenta e densa. Se há narrativas com um ritmo nervoso, com cortes abruptos, estas não constituem a maioria. Uma das marcas de sua ficção são os fartos diálogos, próprios de uma percepção mais profunda das experiências cotidianas, de uma maneira interiorana de habitar o tempo. A sua é uma literatura sem pressa, que devassa as situações narradas, criando uma temporalidade mais espessa, extremamente original numa literatura contemporânea baseada na rapidez (SANCHES NETO, 2008, p. 201-202).

Luiz Vilela engloba em sua obra uma infinidade de existências, impele o leitor a conversar, por meio de sua escrita, com outros autores, como Hemingway, Joyce e Kafka, entre outros, esboçando através de sua escrita única, sensibilidade e crítica, inquietando o leitor, o que o torna tema constantemente atual, porque sua obra é focada na reação (e esta é influenciada pela história, cultura de uma sociedade), no conflito que o ser humano tem ao vivenciar os fatos cotidianos. A consequência parece sempre ser a modificação da percepção primeiramente interior, que se reflete em mudanças corporais ou do espaço na tentativa de explicitar a angústia, o conflito, a falta de comunicação do ser diante da imposição social. Nesse sentido, os contos de Luiz Vilela representam a tentativa do homem urbano desdobrar-se dentro de suas aflições, complexidades, isolamentos, na busca de resolver-se, de encontra-se. Se, assim, a identidade é um tema central na obra de Luiz Vilela, o tema, muitas vezes, tem por protagonistas crianças ou jovens em momentos cruciais de sua formação, da definição de seu caráter, na descoberta da crueza do mundo e do modo pelo qual devem enfrentar a alteridade com a qual se confrontam. É no desnudamento das faces que compõem a estrutura social, utilizando-se de uma linguagem simples, objetiva e totalmente expressiva e significativa que Luiz Vilela propicia ao leitor o contato com as ideologias sociais e uma reflexão das mesmas, promovendo, consequentemente, a transformação do aluno, enquanto sujeito leitor (MACHADO, 2015, p. 42-43).


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A linguagem simples utilizada nos contos confronta-se com a profundidade do texto, essa complexidade na absorção e entendimento dos sentimentos, a exposição das manobras sociais para inibir nas personagens a exploração dessa interioridade obscura que são os pensamentos, as sensações, a nítida impressão de que há uma ideologia que impõe os costumes, o modo de viver e sentir, estão presente em Luiz Vilela e "vale lembrar ainda que essa simplicidade de linguagem é uma herança de suas experiências infantis, as quais o autor se mantém fiel." (SANCHES NETO, p. 205, 2008). A inserção dos contos de Luiz Vilela, no Ensino Fundamental, foi realizada em conjunto com a aplicação do método proposto por Bordini e Aguiar (1993). Os contos, aliados à metodologia adequada, foram fundamentais no auxílio à formação de leitores críticos e reflexivos.

Mediação pedagógica utilizando o Método Científico

O currículo por áreas, dentro do qual se trabalhou o método científico, consiste na prática de uma sequência metodológica baseada inicialmente na elaboração de um conteúdo, na seleção do material, propondo o desenvolvimento do objetivo de pesquisa nos quais os procedimentos didáticos que se subdividem em atividade exploratória, estabelecimento do tema, a formulação e escolha das hipóteses, justificativa, coleta de dados e conclusão são trabalhados. O método científico envolve as diversas áreas do conhecimento, buscando, por meio da análise científica, a confirmação ou refutação das hipóteses levantadas. Nesse sentido, ocorre a observação de um modelo, que deve ser verificado para corroborar ou substituir o conhecimento. Nesse método, as etapas se distribuem em: definição do problema, formulação de hipóteses, justificativa da pesquisa, a coleta de dados, o tratamento analítico e interpretativo dos dados e a conclusão. A sala de aula é vista como um laboratório de investigação e reflexão. A realidade do aluno, no que concerne o sentido social e cultural, deve ser levada em conta pelo professor, assim como seus interesses e necessidades. O método proporciona situações desafiadoras aos discentes, estimulando a investigação. O objetivo é ampliar a visão de mundo do aluno, expandindo seus conhecimentos, provocando-o a se tornar um indivíduo reflexivo, inserindo a crítica em sua análise social.


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Uma metodologia de ensino de literatura, com base no método científico, concebe a sala de aula como um laboratório de experimentação e reflexão, em que as atividades se estruturam obedecendo às fases da pesquisa científica [...] Tendo como partida a realidade cultural do aluno, seus interesses e necessidades, o plano de ensino prevê a proposição de situações desafiadoras aos estudantes, que estimulem a investigação e o raciocínio na solução de problemas (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 47).

O método requer a participação de todos os alunos no proposta de investigação. A avaliação é participativa, visando dois processos de aprendizagem: observação da atitude investigativa e conclusões atingidas a partir das hipóteses levantadas. A metodologia é desenvolvido nas seguintes etapas: fase inicial; pesquisa sobre as observações levantadas por meio da formulação de um problema, buscando soluções que vão de acordo ou refutem as hipóteses levantadas. Fase descritiva; com os dados coletados os alunos partem para interpretação e análise dos mesmos. Fase comparativa; após a interpretação ser realizada, os alunos comparam as hipóteses levantadas inicialmente por eles com os dados coletados, confirmando ou refutando as propostas desenvolvidas. Fase conclusão: se refere a reflexão e discussão dos dados finais, proposição de novas hipóteses e consequente elaboração de novas situações problemas. A atividade exploratória pode ser um relevante ponto de partida para que o interesse dos alunos seja despertado com o objetivo de aproximá-los da temática proposta, que pode ser desenvolvida por meio do diálogo, pesquisa em revistas, jornais e idas à biblioteca.

A tríade: metodologia, escola, alunos Esta pesquisa, no que se refere à sua estrutura, baseou-se na metodologia de PESQUISA-AÇÃO, que é um método de pesquisa qualitativo, de análise crítica, que visa observar a realidade, propor alternativas e modificar, por meio de ação, o contexto pesquisado. Esse método valoriza a imersão consciente do professor em sua prática, partindo de uma análise problematizadora e intencional. Nesse contexto, além de pesquisador, o professor é sujeito da pesquisa e deve propor novos meios de verificação, problematização e mudança da sociedade, Thiollent (2013):


O método de pesquisa-ação consiste essencialmente em elucidar problemas sociais e técnicos, cientificamente relevantes, por


119 intermédio de grupos em que encontram-se reunidos pesquisadores, membros da situação-problema e outros atores e parceiros interessados na resolução dos problemas levantados ou, pelo menos, no avanço a ser dado para que sejam formuladas adequadas respostas sociais, educacionais, técnicas e/ou políticas. No processo de pesquisa-ação estão entrelaçados objetivos de ação e objetivos de conhecimento que remetem a quadros de referência teóricos, com base nos quais são estruturados os conceitos, as linhas de interpretação e as informações colhidas durante a investigação. (THIOLLENT, 2013, p. 7-8).

O professor, nessa proposta, interage com o sujeito da pesquisa, verifica e interpreta os problemas levantados e ele, sendo parte da investigação, também se torna agente modificador, propondo uma pesquisa, e ao mesmo tempo, fazendo parte da solução que pode ser desenvolvida. A proposta metodológica visa uma aplicação conscientizadora e não apenas de aproveitamento de dados coletados e transmissão de informações, formando um elo ideal com a alternativa científica explorada por Bordini e Aguiar (1993). No que se refere ao ambiente, este projeto foi realizado na cidade de Araçatuba localizada no interior do estado de São Paulo, que possui aproximadamente 200 mil habitantes. A escola escolhida se deu em razão da proposta de sua viabilidade, pela docente da pesquisa ser coordenadora da escola no Ensino Infantil e fundamental I, facilitando a inserção do projeto. A escola selecionada possui aproximadamente 1400 alunos, é um ambiente de ensino particular que possui todos os níveis de ensino, desde o infantil até o ensino superior. A proposta geral do projeto foi enviada à respectiva escola. Após o deferimento, foram realizadas reuniões com o diretor geral, a coordenadora do ensino fundamental II e com os professores da área de Língua Portuguesa, envolvidos na pesquisa, para estabelecimento dos horários de realização das atividades e também para troca de ideias e sugestões sobre o trabalho com os livros. Foram explicadas, nesses encontros, as etapas do desenvolvimento do projeto, demonstrando-se a relevância dessa pesquisa para a instituição e para a sociedade em geral. Em relação aos alunos participantes, foram selecionados os do 8° ano do ciclo II do Ensino Fundamental. Foram enviadas aos pais dos alunos, cartas para consentimento, nas quais foi solicitada a permissão para participação do aluno e breve explicação do projeto. Para o desenvolvimento da proposta, foram sugeridas aulas fora da grade de horários obrigatória da escola, tornando-se uma disciplina optativa. Não ocorreram


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propostas de avaliações sistematizadas (que fazem parte do histórico escolar estabelecido pelo sistema nacional). Desse modo, as avaliações realizadas foram por meio da observação da docente da pesquisa, com foco voltado para a validação ou não da proposta metodológica. A docente que realizou a pesquisa de campo é uma profissional da área da pedagogia. Com relação aos contos, foram escolhidos os das antologias de Luiz Vilela, lançadas com direcionamento para a faixa juvenil.

Aplicação do Método Científico e seus resultados

O Método Científico trabalhado no currículo por áreas teve como conteúdo adaptado o tema "Da compaixão aos maus-tratos dos animais". Os materiais utilizados foram os contos de Luiz Vilela: ―Um peixe‖, ―Bichinho engraçado‖, ―As formigas‖, ―Andorinhas‖ e ―Corisco‖. O conto ―Um peixe‖ narra a história de um menino que, depois de uma pescaria, chega em casa e coloca os peixes em um tanque. Ao observá-los, percebe que um deles, uma traíra, ainda esta viva. A história gira em torno da tentativa do garoto de salvar o peixe sobrevivente trazendo à tona a argumentação de tê-lo encontrado vivo e que então ele merecia sobreviver. ―Mas o que ele faria com ela agora? Matá-la ele não ia; não, ele não faria isso. Se ela já estivesse morta, seria diferente, mas ela estava viva, e ele não queria matá-la.‖ (VILELA, 2002, p.62-63). O garoto sai em busca de alimento para o peixe e, quando retorna, encontra a empregada dizendo ter esvaziado o tanque e tirado o animal que, segundo ela, tinham esquecido lá. Diante da morte do animal, o garoto se sente cansado (triste). A empregada argumenta sobre a situação: – Traíra é duro de morrer, nunca vi um peixe assim! Eu soquei a ponta da faca naquelas coisas que faz o peixe nadar, sabe? Pois acredita que ela ainda ficou mexendo? Aí peguei o cabo da faca e esmaguei a cabeça dela, e foi aí que ela morreu. (VILELA, 2002, p. 64).

O conto "Bichinho engraçado" conta a história de um homem que vai a uma pescaria com os amigos. Todavia, ao invés de peixes, algumas vezes, os amigos pescam cágados e a atitude recorrente de passar a faca no pescoço deles, que é comum aos amigos, não agrada a personagem principal chamada Tito. Quando ele pesca um


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cágado, finge estar com raiva, mas não o mata. Leva-o para casa para cuidar dele. Sua família e amigos não se agradam com tal atitude, o que faz com que Tito resolva deixar o animal em um parque da cidade no qual tinha um lago. O animal sofre maus tratos dos moradores, sempre sendo socorrido por Tito que o coloca num lago da cidade, indo visitá-lo de vez em quando. Conforme o tempo passa, deixa de ir visitá-lo, desabafando com a mulher Dalila "Antes eu tivesse cortado o pescoço dele na pescaria; antes eu tivesse feito isso" (Vilela, 2002, p. 54). A última vez que o vê, está em um carro, dirigindo e o vê sozinho na pista. Não desce para socorrê-lo, suspira e continua seu caminho. O conto "As formigas" narra a história de uma criança que num dia chuvoso imagina uma conversa com formigas que estão em uma fenda aberta na parede do seu quarto. A personagem imagina a vida das formigas, conversando baixinho, todos os dias com elas, "A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar uma porção de coisas, e elas também perguntavam para ele. (Conversava baixinho, para os outros não escutarem)." (VILELA, 2002, p. 58). A personagem faz amizade com as formigas e um dia encontra a fenda tampada por cimento e não vê mais as amigas. Fica triste e chora percebendo que seu pai é quem havia feito isso: "Quando olhava para a fenda cimentada sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça com um cobertor." (VILELA, 2002, p. 59). O conto ―Andorinha‖ descreve a história de um menino entediado numa tarde de domingo que resolve sair e encontrar algo para se distrair: matar uma andorinha com seu estilingue. Ele tenta e não consegue matá-la, muda a posição em relação à ave para que a veja melhor, pensando e querendo ser como todos seus amigos que tiveram êxito ao tentar realizar a tarefa. Em um momento de concentração, atira e consegue acertar a andorinha, todavia, ao invés do sentimento de felicidade, coragem, brio, sente tristeza ao observar que acertou a andorinha e não a matou, fazendo-a sofrer; sente raiva por perceber que ela irá morrer. Agachando-se estendeu a mão, devagar para não assustá-la, e então segurou-a: ela não se debateu; e antes que abrisse os dedos para olhar, sentiu a umidade e compreendeu que era sangue: a pedra havia acertado de cheio. E então teve raiva de sua astúcia, sua espera, sua alegria, e agora sua impotência: sabia que a andorinha ia morrer, sabia que ela ia morrer e que ele não podia fazer nada (VILELA, 2002, p. 15).


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O conto "Corisco" expõe a história de um menino que vivia em uma fazenda junto com seus pais. O sonho dele era ter um cachorro, mas seu pai, avesso a esses animais, não permitia. Foi por meio de sua mãe que o garoto conseguiu o cachorro, no qual colocou o nome de Corisco. A vida corria na fazenda, o garoto brincava com o cachorro e o pai sempre se mantendo afastado, reclamando do animal. Certo dia, o cachorro fica doente e o pai, mesmo expressando frieza diante da situação, manda entregar na fazenda um remédio para o cachorro. Todavia mesmo sendo medicado, o cachorro morre, o garoto sofre, e o pai, apesar de parecer não expressar qualquer sentimento pelo animal, derrama uma lágrima no canto dos olhos: [...] só uma vez, uma noite em que havia desaparecido mais uma galinha e então mamãe falou que, se Corisco ainda estivesse vivo aquilo não teria acontecido, e então Papai levantando de repente falou que nada, que cachorro era um bicho velhaco que só servia para dar amolação e pra comer a comida da gente, ela não falasse naquilo, não queria saber mais daquela praga na fazenda, e foi até a janela e ficou olhando o céu estrelado, e então Mamãe me cutucou a perna e eu olhei pra ele e vi ele enxugando uma lágrima. (VILELA, 2002, p. 11).

O objetivo da proposta foi propiciar aos alunos o estabelecimento de relações entre a literatura e suas vidas. De um modo geral a análise dos resultados demonstrou que os alunos compreenderam o tema dos maus tratos presentes no texto de Vilela. Grande parte dos alunos, na reescrita do texto optaram por mudar o final do conto explorando a alternativa da compensação do sofrimento ou mesmo a extinção do mesmo que era direcionado às falas de textos como contos de fadas em que as personagem são "felizes para sempre" ao final. Também houve alunos que retiraram características consideradas negativas em algumas personagens, optando por reorganizar o papel delas na trama. E, nesse contexto, há a adição de uma nova idéia /argumento. Na obra de Luiz Vilela, as personagens partem de uma reflexão ou conflito interior para repensar sua ação, mas nos textos dos alunos, houve a criação de uma nova personagem que funciona como consciência externa, evitando um conflito interior. Com relação à estrutura do texto, dentro da perspectiva de formação do leitor e da proposição do método científico, os alunos atingiram os objetivos, observando-se que todos fizeram a reescrita dos contos selecionados. Os textos possuem estrutura satisfatória, com recuo de parágrafos, construções de diálogos com uso do travessão e dois pontos, início de frases com letras maiúsculas, correta utilização de tempos verbais,


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parágrafos coesos, uso de personagens, espaço, tempo e narrador coerentes, uso correto de grande parte das palavras e finalizações das histórias. A relação hierárquica que está presente em nossa sociedade é revelada nos textos dos alunos, uma vez que estruturas de comandos e posições sociais são frequentemente citadas. As histórias giraram em torno da compensação proporcionada pelo capital, uma vez que o dinheiro substitui a tristeza em grande parte dos textos. Os alunos, dentro do contexto em que vivem, conseguiram entender o problema relacionado aos maus tratos dos animais, mas não elaboraram soluções em seus textos que poupassem os animais de estimação do sofrimento causado por adultos. O que ocorreu foram finais que poupassem as personagens do sofrimento da perda, mas não os animais. Todavia, nos textos de Luiz Vilela, os animais relatados abrangem um significado mais amplo do que aqueles selecionados para serem animais de estimação. Os textos expõem a crítica ao amor seletivo em relação aos animais e a construção cultural dos valores de nosso sistema. Em relação à associação com diferentes contextos (texto com contexto) históricos, culturais e sociais (no levantamento das influências dos problemas para formulação de hipóteses), os alunos expuseram, aparentemente, contextos vividos em casa, reproduzindo uma hierarquia social constituída e ratificada historicamente, como a compensação do problema por meio de valor monetário; o que é comumente visto em famílias que tem certo poder aquisitivo. Sobre o levantamento de hipóteses e solução do problema, na esfera ideológica, até houve certo reconhecimento de que há uma ideologia dominante, um conjunto de regras e normas a serem obedecidas, e a constatação de que a sociedade capitaliza e seleciona as formas de amor, bem como esse sentimento deve ser orientado e sentido. Não elaboraram finais de histórias que contivessem críticas sociais, não perceberam o mundo além de seus sentimentos, e somente na discussão final da proposta é que estes se deram conta de que há uma realidade diferente daquela vivenciada por eles.

CONCLUSÃO O trabalho com a metodologia e a inserção da obra de Luiz Vilela no Ensino Fundamental foram contribuições de elevado valor em relação à construção crítica dos alunos que pareciam possuir uma visão alienada da forma como a sociedade se


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estrutura, privilegiando o sistema em que vivem como o único meio de possibilidade de existência social. As leituras dos alunos, em grande parte, se restringiam à análise do texto em si, da ortografia e gramática, não faziam relações com o contexto do livro, não procuravam observar a data de publicação, o contexto histórico, a vida do autor ou mesmo a análise das figuras presentes no livro. A visão inicial dos alunos era parecida com a de um contos de fadas em que, não ocorrendo o confronto com a realidade, o destino se encarregava de encaixar as peças da vida e trazer a felicidade como proposta final. Por meio da metodologia aplicada, puderam ter a oportunidade de despertar sua análise crítica do mundo e desenvolver um gosto pelo aprofundamento da leitura literária. Essa metodologia foi à ferramenta necessária para que pudessem refletir, confrontar e buscar novas ideias e perceber que seu contexto não é o mesmo que de toda a população. Os alunos entenderam que a história e desenvolvimento de nosso país, não promove ou incorre em soluções simples, como um "felizes para sempre", e que é necessário busca e empenho para que a alienação não tome conta de mentes tão jovens. Perceberam o quanto é importante não desistir da aquisição do saber, que há um percurso (método) necessário para que o conhecimento se desenvolva e não só o acúmulo de informações. O professor, que é a ferramenta mediadora de todo o processo, também foi um grande beneficiado com a pesquisa. O contato com os alunos, com novos teóricos, com a vida na universidade e o confronto de ideias e ideologias durante as discussões no grupo de estudos, tanto na universidade, quanto na escola proporcionaram à docente a reflexão sobre a real importância do professor no processo de ensino-aprendizagem. O pesquisador deve estar em constante renovação em seu processo de aquisição do saber, ser um leitor, especificamente do texto literário, não para que diga aos seus alunos que devem ler, mas para que mostre, por meio de sua fala, de suas ações e de sua vivência, o papel fundamental da leitura para a decodificação, a interpretação dos códigos e das ideologias.

Referências: BORDINI, M. G; AGUIAR, V. T. Literatura: a formação do leitor, alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.


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MACHADO, T. K. Literatura, escolarização e práticas de ensino: A recepção dos contos de Luiz Vilela no Ensino Fundamental. Três Lagoas, MS. Tese (MestradoEstudos Literários). Orientador Rauer Ribeiro Rodrigues, 2012. PETIT, M. Os jovens e a literatura. São Paulo: Ed. 34, 2008. RODRIGUES, R. R. Faces do conto de Luiz Vilela. Araraquara, SP, 2006. 2 volumes. Tese (Doutorado - Estudos Literários) - FCL-Ar, UNESP. Orientador: Luiz Gonzaga Marchezan. Disponível em GPLV. SANCHES NETO, N. O romancista Luiz Vilela. Estudos de literatura contemporânea. Brasília, 2008, p.201-215. SILVA, E. T. Elementos de pedagogia da leitura. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. THIOLLENT, T. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2013. VILELA, L. Histórias de bicho. São Paulo: Editoria do Brasil, 2002.


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REMINISCÊNCIAS DO MEDIEVO NA OBRA INOCÊNCIA: UMA APROXIMAÇÃO COM OS ROMANCES DE CAVALARIA Cesar Christian Ferreira Santos (Aluno do Mestrado Acadêmico em Letras da UEMS) Márcia Maria de Medeiros (Professora do Mestrado Acadêmico em Letras da UEMS) Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo analisar como a intertextualidade faz perpetrar através dos séculos algumas características únicas dos Romances de Cavalaria em obras de autores da Literatura Brasileira. A obra analisada neste trabalho é o livro Inocência de Alfredo d‘Scragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, e esta se trata de um dos últimos romances da ficção romântica brasileira. A análise da obra dá-se através da comparação entre a forma de ser no mundo e a forma de ver o mundo que o sertanejo de Taunay carrega e a forma de ser no mundo e a forma de ver o mundo que eivavam as páginas dos romances de cavalaria, criando um código de conduta que norteava o pensamento e a mentalidade dos homens e mulheres do medievo. Palavras-chaves: Intertextualidade, Romance de Cavalaria, Inocência, Literatura Brasileira.

1. INTRODUÇÃO A obra de Alfredo d‘Scragnolle de Taunay, leva a uma imersão no interior do sertão da então Província do Mato Grosso em duas ocasiões, a primeira com a

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publicação da Retirada da Laguna e a segunda com a publicação de Inocência, objeto de estudo do presente artigo. Taunay mostra em Inocência uma transição para o realismo, tendo em vista a obra já ser em algumas ocasiões extremamente descritiva e ter foco no ambiente, mas ainda é classificada como obra do romantismo, período literário esse, que moldou o escritor de certa forma. O romantismo traz consigo o herói cheio de virtudes e com pouquíssimos defeitos em sua personalidade, é sabido que esta escola possui forte inspiração medieval e é exatamente este o objeto desta análise. Esta perspectiva mostra uma linha de pensamento que pode ser compreendida dentro de um processo de longa duração

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através do qual existe uma manutenção das formas de ser no mundo e das formas de ver o mundo dentro de determinadas sociedades.

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Ofensiva Brasileira (1867) durante a Guerra do Paraguai, que chegou até a Fazenda Laguna para posterior retirada por falta de adequada logística. Seguindo a mesma linha de raciocínio proposta por Fernand Braudel quando escreveu a obra Felipe II e o Mediterrâneo.


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Basicamente se parte da premissa de que existe a representação de uma forma de pensar que já existia antes e que mesmo com o passar do tempo e o surgimento de novas considerações e conceitos esta forma de pensar retorna, deixando uma marca que pode ser pressentida em vários campos do conhecimento, entre eles a literatura. Isso corrobora com a questão proposta por Ítalo Calvino segundo a qual, existem obras clássicas as quais, independente do marco temporal onde estão contidas seguem falando até a contemporaneidade: Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo. É clássico aquilo que persiste com rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível (CALVINO, 2007, p.15).

Existem reminiscências dos chamados romances ou novelas de cavalaria por toda a Europa, tendo estes sua origem nas Canções de Gesta, que Segundo Spina ―eram um tipo de Poesia Épica que surgiu na França no fim do Sec XI‖ (SPINA, 1973, p 18).

Encontram-se registros de tais novelas na França, Inglaterra, Portugal e Espanha. No caso de Portugal os primeiros registros sobre esse tipo de texto aparece no século XII. Sobre a origem dos romances de cavalaria Spina cita: As canções de gesta fazem a sua aparição em fins do século XI, ao lado da arte românica, do drama litúrgico, da lírica trovadoresca e do renascimento da Escolástica. É o século das gêneses. Consoante tenha como tema o rei ou os senhores feudais, o cantar de gesta francês, pode ser dividido em três ciclos: o carolíngio; o de Guillaume d‘Orange e o de Doon de Maycence. Na Espanha vem representado pelo poema de Mio Cid (1140), por uma produção heroica anterior (prosificada posteriormente nas crônicas: Don Rodrigo, Cerco de Zamora, Infantes de Lara, etc), no século XIII por Roncesvales, Bernardo del Carpio, e no século XIV pela Mocedades de Rodrigo. A dissolução das gestas em fragmentos épico-líricos resultou no romanceiro, cuja vitalidade chegou até ao Romantismo (SPINA, 1973, p 20 e 21).

Ao chegar em Portugal essas novelas foram adaptadas às realidades locais e durante sua tradução sofreram mudanças voluntárias e involuntárias. A matéria cavalheiresca é dividia em três ciclos: o clássico, o bizantino e o bretão. Em Literatura Portuguesa, essa divisão não tem uma lógica, tendo em vista, que somente o ciclo


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arturiano deixou marcas escritas de sua passagem em Portugal. Para se entender o prestígio e a influência que esse tipo de obra literária tinha na época, Massaud Moises cita: Sabe-se, ainda que na biblioteca de D. Duarte (1391-1438) existiam exemplares de algumas novelas, com Tristão, o Livro de Gaalaz, o Mago Merlim, o que revela o alto apreço em que eram tidas e a grande influência que exerceram sobre os hábitos e costumes palacianos da Idade Média portuguesa (MASSAUD, 1981, p.33).

As influências preconizadas pelos romances de cavalaria perduram e são muitas as

características

destes

textos

presentes

em

obras

de períodos

literários

cronologicamente posteriores, sendo que, neste trabalho será observado como algumas dessas nuances se sobrepõe entre Inocência e tais textos. A metodologia utilizada, para a realização desta pesquisa, deu-se primeiramente com as leituras de fundamentação teórica sem as quais seria impossível traçar o paralelismo entre as obras. Existe uma fronteira cronológica entre os textos aqui estudados, porém, esse espaço temporal é suprimido, ou extremamente diminuído quando se encontra traços do medievo em Inocência, sobre isso Roland Barthes observa: A crença de que há nos textos literários elementos comuns que identificam sua natureza, sem que isso os uniformize, é que ampara a atuação não só da teoria literária como da literatura comparada quando ambas visam à abstração de conceitos a partir da análise textual, orientando-se para aspectos supra-individuais das obras. Assumem, no caso, como finalidade última, a aproximação global da literatura, na qual cabe dar conta da complexidade de relações interliterárias e de como, por força desses processos, se estabelece a tradição (BARTHES, 1971, p. 15).

2. A PRESENÇA DO MEDIEVO NAS PERSONAGENS DE INOCÊNCIA

A leitura e estudo das obras Tristão e Isolda, Perceval ou o Romance do Graal e Inocência, permitiram que este trabalho fosse realizado, traçando um paralelo entre as personagens das referidas obras. Um aspecto importante de comparação se desvela quando da criação e estrutura familiar das personagens, o primeiro fragmento trata-se da criação e formação familiar de Tristão: Os homens do Duque Morgan já cercavam o castelo de Kanoel. Como poderia Rohald por mais tempo sustentar essa guerra? Diz-se, e justamente, que ―imprudência não é coragem‖. Ele se entregou à misericórdia do Duque Morgan. Mas temendo que este matasse o filho


129 de Rivalen, fê-lo passar por seu próprio filho, criando-o entre os outros seus filhos. Cumprindo os sete anos, quando chegou o tempo de tirá-lo das mulheres, Rohald confiou Tristão ao sábio mestre Governal, o bom escudeiro. (BÉROUL,2011, p. 18).

O segundo texto é de suposta autoria de Chrétien de Troyes e fala sobre como Perceval foi criado sem seu pai e longe de tudo e todos, sendo que o principal objetivo da mãe era o de proteger o filho das maldades de mundo: − Ah, infeliz que sou! Caro filho, eu acreditava vos manter tão vem afastado da cavalaria que jamais ouviríeis falar dela! Nunca vos deixávamos ver um cavaleiro. Cavaleiro teríeis sido, se ao senhor Deus tivesse agradado que vosso pai velasse por vós, assim como vossos outros amigos. (TROYES, 1992, p. 30 e 31).

O terceiro texto é um trecho de Inocência e fala sobre a infância de Cirino: Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticário e a esse ofício acumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até os doze anos completos, quando fora enviado, em tempos de festas e a título de recordação saudosa, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro Preto. (TAUNAY, 1999, p 26).

A similaridade entre os três textos se deve ao fato de que em todos eles os protagonistas Tristão, Perceval e Cirino, foram criados sem os pais. Tristão, foi criado por um vassalo que o adotou como filho e Perceval foi criado com a mãe e com os vassalos que a todo custo tentaram não lhe mostrar o caminho das aventuras e das armas. Cirino foi segundo a vontade do pai morar com um tio e padrinho, passando à tutela deste. A partir temos como característica em comum entre os dois protagonistas dos romances de cavalaria e o protagonista de Inocência a ausência da figura paterna ou pelo menos do pai biológico dos mesmos. Há que se fazer uma observação que estes, mesmo que sendo criados por esses pais biológicos comungaram do caminho tomado por eles. Tristão e Perceval seguiram o caminho das armas e Cirino tornou-se boticário e não rejeitava o título de doutor que os homens do sertão davam a ele. Uma outra característica que se deve observar em comum entre eles é que nenhum é de origem humilde, nenhum deles é homem do povo. Cirino não pertence à nobreza mas também não é de uma classe servil, e se destacava do vulgo passando-se por doutor o que lhe dava um ar de nobreza.


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A aproximação entre as obras segue se for observada a descrição física e a formação psicológica das personagens, observando como os autores projetam estas e como elas são descritas nas obras estudadas. O texto seguinte é de Tristão e Isolda, e mostra como o autor descreve Tristão: Vendo-o tão nobre e tão altivo, largo de ombros, delgado de quadris, forte corajoso e fiel, todos louvavam Rohald por ter tal filho. ...que Deus recompense quem te criou de modo tão nobre. Sem dúvida que és barão rico e poderoso. ....Mas Tristão se armara com aqueles que a sentinela por último despertara. Amarrou os calções, vestiu o brial, as caneleiras estreitas e as esporas de outro; pôs a loriga, fixou o elmo na parte inferior, e, com a armadura luzindo, esporeou o cavalo até a planície, onde surgiu com o escudo embraçado contra o peito, bradando ―Carhaix!‖. (BÉROUL,2011, p 106)

O próximo texto é de Perceval ou o Romance do Graal, o autor assim descreve Perceval: Então, na Gasta Floresta solitária, o filho da viúva levantou-se. Vivamente selou o seu cavalo de caça, pegou três dardos e saiu do solar materno. Dizia consigo mesmo que iria ver os gradadores que estavam semeando a aveia com doze bois e seis grades. (TROYES, 1992, p. 26).

A descrição de Cirino por parte de Taunay, dá-se da seguinte maneira: A essa hora, um viajante, montado numa boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira, seguia aquela estrada. A sua fisionomia e maneiras de trajar denunciavam de pronto que não era homem de lida fadigosa e comum ou algum fazendeiro daquelas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu-do-chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os ombros um poncho-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Rússia bem feitas e em bom estado de conservação. Tinha quando muito vinte e cinco anos, presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelos cortados quase à escovinha e ar tão inteligente como decidido (TAUNAY, 1999, p 18-19).

A preocupação no caso dos três fragmentos dos textos é tirar a personagem do vulgo, fazê-la diferente em aspectos como a nobreza de caráter e também a beleza física. O primeiro fragmento, que diz respeito a Tristão, acontece logo quando o jovem é raptado e sem querer abandona sua casa para viver as aventuras que todo cavaleiro deve viver, logo que ele se vê livre de seus raptores ele encontra um grupo de caçadores que não detém as nobres técnicas dos cortes da carne da caça e em consequência mostra-se diferente dos outros caçadores e imediatamente é visto como nobre pelo seu anfitrião.


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Tristão é mostrado ainda em sua glória guerreira com o arnês completo na ocasião em que ataca os homens do Conde Riol. No segundo fragmento, que diz respeito a Perceval, a sua descrição o mostra não como um jovem lavrador por exemplo, e sim como o filho da viúva que monta um cavalo de caça e pega os seus dardos, só em dizer que este tinha um cavalo de caça, já fica subentendido sua nobreza, pois a caça durante o período medieval era um privilégio daquela classe. O terceiro fragmento que é a descrição que Taunay faz de Cirino ele sem dúvidas o apresenta com um ar de nobreza, um cavaleiro, sempre bem trajado (apesar da viajem) e belo. Percebe-se a preocupação de Taunay em não descaracterizar a nobreza de Cirino apesar deste, aceitar o título de doutor sem sê-lo: Bem formado era o coração daquele moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no íntimo do seu caráter se haviam insensivelmente se enraizado certos hábitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insuficiência científica, como da roda em que sempre vivera. Afastara-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do comum dos médicos ambulantes do sertão, tipos que se encontram frequentemente naquelas paragens, eivados de todos os atributos da mais crassa ignorância, mas rodeados de regalias completamente excepcionais. (TAUNAY, 1999, p 29).

As relações de cortesia também são recorrentes nas obras aqui analisadas, formando uma espécie de padrão de comportamento entre os nobres. Tristão e Perceval assim como seus amigos e familiares são nobres e cavaleiros. Cirino e Pereira tratam-se da mesma maneira cortês, conforme se constatará nos fragmentos a seguir: − Então é quase de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me batia a passarinha, quando vi o seu rastro fresco na areia. Aí vai, disse eu por vezes com meus botões, um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Também tocando o meu Canivete, tratei de agarrá-lo para não fazer a viagem a olhar para o céu e a banzar. Acha que obrei mal? − Não, senhor, protestou o moço com afabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos. − Oh! Exclamou o outro todo expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia légua do Leal, torcendo à esquerda es se vosmecê não tem compromissos lá com o homem, farme-á muito favor agasalhando-se em teto de quem é pobre, mas amigo pra servir. Minha tapera é pouco retirada do caminho, e quem vem montando como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos em viagem.


132 Convite tão espontâneo e amável não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquelas alturas, e trouxe logo entre os dois caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece na em viagem. − Com toda satisfação irei parar em sua casa, respondeu o jovem. (TAUNAY, 1999, p. 21).

A situação dá-se da mesma maneira no texto Perceval ou o Romance do Graal, quando o barqueiro pede que Sir Gawain hospede-se em sua casa e o trata de maneira extremamente cortês: − Se quereis crer em mim, albergais hoje em morada como a minha. Não vos seria bom permanecer nesta margem, pois é uma terra selvagem onde ocorrem cousas estranhas. − Amigo, se tal é vosso aviso, acato o conselho, não importa o que me possa ocorrer! Seguindo o barqueiro que lhe devolveu o cavalo, ambos embarcaram e navegam para a outra margem. A casa do barqueiro era à beira da água, e tal que um conde poderia entrar e estar a gosto. O barqueiro acolhe o hóspede e o prisioneiro, fazendo-lhes festa como pode. Sir Gawain foi servido de tudo o que convém a homem probo: oferecem-lhe tarambolas, faisões e perdizes, e também carne de caça. E os vinhos eram fortes e suaves, brancos e tintos, novos e velhos. O barqueiro estava jubiloso pelo prisioneiro e pelo hóspede. Após comerem lavaram as mãos e foi tirada a mesa. Toda a noite, Sir Gawain teve bom alojamento e o hospedeiro à sua devoção; e ficou encantado com o serviço desse homem que lhe agradou. (TROYES, 1992, p. 126).

Da mesma maneira ocorre em Tristão e Isolda, quando o nobre cavaleiro se apresenta ao Duque Hoel para se aliar a este no combate a um vassalo revoltoso, o conde Riol. Tal é a citação de Béroul: − Ah senhor Tristão, segui vosso caminho, e que Deus vos recompense! Como vos acolher aqui dentro? Não temos mais provisões, trigo; só favas e cevada para não morrer de fome. − Que importa? – disse Tristão. – Eu vivi na floresta durante dois anos, de ervas, raízes, de caça, e achei boa essa vida. Mandai que me abram a porta. Ao que Kaherdim respondeu: − Recebeio-o, pai, uma vez que tem tanta coragem, a fim de que tome parte em nossas penas e trabalhos. Acolheram-no de modo respeitoso. Kaherdin fê-lo visitar as fortes muralhas e a torre principal, bem cercada de praças de armas, com estacas, onde se emboscavam os besteiros (BÉROUL,2011, p 105).

Na obra de Taunay fica evidente o modo cavalheiresco e hospitaleiro que o anfitrião recebe o visitante, oferecendo a este o melhor que tem em sua morada e da mesma maneira ocorre nas novelas de cavalaria. No caso específico, quando Tristão pede para tomar parte na luta e consequentemente hospedar-se no castelo do Duque Hoel, há no início uma certa resistência deste em receber aquele, mas exatamente


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porque o Duque não estava em condições de albergar da melhor maneira possível o seu visitante, tendo em vista estar enfrentando um cerco e estavam sendo minados pela fome, conforme a citação: Tristão perguntou: − O Duque Hoel ainda consegue sustentar sua guerra? − Com muita dificuldade, senhor. Carhaix, seu último castelo, ainda resiste. As muralhas são fortes, e forte é o coração do filho do duque, Kaherdin, bom cavaleiro. Mas o inimigo os oprime pela fome: poderão resistir muito tempo? (BÉROUL,2011, p 105).

A religiosidade e os valores cristãos ditam as relações das personagens nas novelas de cavalaria, sempre quando as pessoas se encontram ou se despedem eles pedem que Deus e Jesus que os protejam. Em ocasiões em que a personagem sofre ou fica angustiada, ela tanto nos romances de cavalaria como em Inocência clamam por Deus. Essa religiosidade aparece em Inocência em várias ocasiões e é mais um traço dos romances de cavalaria na referida obra de Taunay. O fragmento abaixo é de Perceval ou o Romance do Graal, e apresenta a seguinte citação: − Não choreis mais. Retornai, como peço a Deus que me ajude. Não há razão de estar em tristeza. Acaso não é certo ir rever minha mãe, que continua sozinha naquele grande bosque que chamam de Gasta Floresta? Esteja inda viva ou não , asseguro que retornarei! Se estiver viva, farei que tome véu de monja em vossa igreja. Se estiver morta, todo ano mandarei celebrar um serviço em seu nome, para que Deus a recolha no seio de Abraão, com todas as almas piedosas. Senhores monges e vós, senhoras, não deveis estar inquietos. Farei grandes dons para repouso da alma de minha mãe, se Deus me trouxer de volta a este lugar. (TROYES, 1992, p.34).

O próximo fragmento é de Inocência e dá-se por ocasião da morte de Cirino, quando este já se encontra mortalmente ferido. Taunay cita o fato da seguinte maneira: − Mas, quem lhe fez este dano, santo Deus? E correndo para o moço ajoelhou-se junto dele e levantou-lhe o corpo. − Quem foi o assassino? − Ninguém, rouquejou o mísero, foi... destino... Morro contente... Dême água... e fale-me de Inocência... − Água? Exclamou Cesário com desespero, aqui no meio do cerrado?... O córrego fica a três léguas pelo menos. − Ah! Replicou Cirino meio desvairado, se não há... com que estancar a sede do corpo... estanque a da alma... Inocência... onde esta?... Quero vê-la Diga-lhe que morri ... por causa dela. − Mas, quem o matou? Bradou o mineiro. − Não vale a pena dizê-lo, respondeu o mancebo entre gemidos. Cuide agora... só de mim... Olhe...nunca fui mau... não tenho pecados...


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grandes... Acha que Deus me... há de perdoar? (TAUNAY, 1999, p. 145).

Cirino em sua morte só pensa em duas coisas que para ele, naquela ocasião, eram muito importantes, Inocência e que Deus perdoasse seus pecados. A religiosidade é claramente evidenciada, porque Cirino acaba tendo um comportamento semelhante ao de Jesus Cristo, quando este na cruz pediu que Deus perdoasse seus algozes. Tal comportamento religioso é típico das personagens das novelas de cavalaria, pois os nobres cavaleiros eram fortemente influenciados pelo cristianismo no que diz respeito ao perdão aos que os ofenderam. Esse perdão das ofensas que é um dos fatores para ser relevado segundo o cristianismo é muito evidente quando um cavaleiro faz outro cavaleiro de prisioneiro, vencendo-o em um duelo. O vencido se entrega à piedade do vencedor que normalmente é nobre o suficiente para tratar o prisioneiro como a um irmão que caiu em desgraça. Se me desse ao trabalho, poderia narrar os episódios; mas de que serviria? Em uma palavra ou em cem, Clamadeu teve de pedir mercê. Como fizera Anguingueron, acata as condições do vencedor. E, como seu senescal, não aceita fiar preso em Bom Refúgio. Não, por todo o império de Roma, não iria para o castelo do homem probo! Porém de bom grado rumaria para a corte do rei Artur. Verá a damizela tão rudemente esbofeteada, para lhe dizer que a qualquer preço será vingada da ofensa, se Deus assim quiser. (TROYES, 1992, p. 59).

A violência contra as mulheres é retratada em algumas ocasiões e esse tipo de comportamento é encontrado no fragmento do texto abaixo, onde o objetivo é subjugar pela força e não pela razão o querer das mulheres. Tal violência gratuita é retratada no texto de Perceval ou o Romance do Graal da seguinte maneira: Assim fala o rei. E eis que o rapaz que ia embora vê uma donzela jovem e graciosa. Saúda-a. Ela retribuiu a saudação e diz rindo: − Se viveres até velho o bastante, penso e creio em meu coração que em todo o mundo não existirá melhor cavaleiro! Ora, a donzela não ria há mais de seis anos no mínimo. E falara tão alto que Kai a ouviu. Essa fala o encolerizou tão forte que ele esbofeteou o meigo rosto com um grande golpe que a lançou ao chão. (TROYES, 1992, p. 39).

Em Inocência há também um episódio de violência contra a mulher que aproxima os dois romances, tal é a citação: O pai agarrara-a pela mão, obrigando-a a curvar-se toda. Depois, com violento empurrão, arrojou-a longe, de encontro à parede. Caiu a


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infeliz com um gemido abafado e ficou estendida por terra, amparando o peito com as mãos. Mortal palidez cobria-lhe as faces, e de ligeira brecha que se abrira na testa deslizavam gotas de sangue. Ia Pereira precipitar-se sobre ela como para esmaga-la debaixo dos pés, mas parou de repente e, levando as mãos ao rosto, ocultou as lágrimas que dos olhos lhe saltavam a flux. (TAUNAY, 1999, p. 138).

Essas duas demonstrações de violência contra a mulher são uma maneira de manutenção do Status Quo vigente nos dois textos. As mulheres eram subjugadas e essa subjugação é feita com violência física e psicológica por seus ―senhores‖ que quando não era o pai era o marido, ou ainda, qualquer homem de uma posição social superior com é o caso do texto de Chrétien de Troyes. A violência é praticada pelo próprio pai no caso do texto de Inocência e ainda tem a conivência de todos da corte, mas podemos notar o herói, que é um homem sensível que se indigna com tal situação e buscara vingança, conforme citação abaixo: − Irás então para a prisão do Rei Artur. Saudarás o rei e lhe dirás de minha parte que mande procurarem na corte a donzela que o senescal Kai esbofeteou porque riu ao me ver. Eis a quem te renderás. Dize-lhe que peço que a Deus não morrer antes de a ter vingado. (TROYES, 1992, p. 55).

Em Inocência a sensibilidade e o repúdio contra a violência feminina é demonstrada pelo anão Tico, conforme nos ilustra Taunay: O anão chegara-se a Inocência, tomando-lhe uma das mãos: depois, a fizera sentar-se e, no meio de carinhos, mostra-lhe por sinais a necessidade de retirar-se. A custo pôde ela seguir aquele conselho. Quase de rastos e ajudada por Tico é que saiu da presença do pai e de seu perseguidor. (TAUNAY, 1999, p. 139).

Assim como a violência contra a mulher aparece em Inocência e nos romances de cavalaria, neste caso ilustrado por Perceval ou o Romance do Graal, a figura de homens que não coadunam com esse tipo de comportamento também é recorrente, cabendo a esses homens sensíveis a vingança ou o amparo às mulheres que sofreram com a violência dos seus.

3. A PRESENÇA DO MEDIEVO NAS PERSONAGENS DE INOCÊNCIA As similaridades entre as obras analisadas neste artigo ficaram evidentes ao longo do mesmo e reforçam o conceito de que os textos literários são atemporais e fazem parte de um universo onde eles (os textos) se reescrevem. A questão da


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paternidade onde os heróis nunca são criados com seus pais biológicos, a descrição da nobreza dos heróis, a cortesia entre as personagens, a religiosidade, a violência contra a mulher e a sensibilidade que alguns homens demonstram em relação ao drama feminino mostram como o pensamento e o comportamento medieval eram presentes nas obras do romantismo, mais especificamente em Inocência. Espera-se que este artigo possa demonstrar a importância que tem o medievo e os clássicos em geral têm nos textos do romantismo e mesmo em muitos textos contemporâneos e que essa importância também possa ser percebida na literatura do Séc XX e XXI. Que haja um consenso de que os clássicos devem permanecer nas disciplinas do ensino fundamental e superior, pois um dos objetivos deste projeto é ―aumentar‖ a importância atual dos clássicos.

Referências: ÍTALO, Calvino. Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SPINA, Segismundo. Iniciação na Cultura Literária Medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973. TAUNAY, Alfredo d‘Escragnolle. Inocência. São Paulo: Editora Ática, 1999. BEROUL, Thomas. Tristão e Isolda. São Paulo: Martin Claret, 2011. TROYES, Chrétien de. Perceval ou o Romance do Graal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. SARAIVA, Antônio José. História da Literatura Portuguesa. Póvoa de Varzim: Europa-América, 1972.


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A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NA NOVELA FILHO DE PINGUÇO, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Cibele Fátima do Prado (UFMS/CPAN)

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Resumo: Este artigo tem por objetivo explicitar como se dá a construção das personagens protagonistas da novela infanto-juvenil Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro Leite (1989). A partir dos estudos de Beth Brait, Antonio Candido e Edward Morgan Forster, apresentamos a teoria sobre a personagem de ficção. O enredo desta trama se desenvolve em torno de uma família assolada pelos problemas da bebida alcóolica. É a história de um pai alcoólatra que sempre obriga o filho a comprar cachaça e cigarros. Analisamos o comportamento das personagens ao longo da narrativa, bem como o que as caracteriza e influencia suas atitudes. Palavras-chave: Ficção; Literatura Brasileira; Personagem.

Introdução O presente trabalho propõe-se a analisar as personagens protagonistas da novela infanto-juvenil Filho de Pinguço, lançada em 1983 pela escritora mineira Alciene Ribeiro Leite. Pela criação de Filho de Pinguço, Alciene recebeu o Prêmio da Coleção do Pinto, em 1987. De acordo com Laura Sandroni, em A década de 1970 e a renovação na literatura infantil (2008), a Coleção do Pinto, da Editora Comunicação, de Belo Horizonte, colocou à disposição das crianças e jovens temas denunciadores dos conflitos contemporâneos. O lançamento repercutiu intensamente na época, pois representou uma nova forma de a arte se posicionar em face do leitor infantil. Filho de Pinguço apresenta a história de uma família rodeada por conflitos causados, principalmente, pelo vício do alcoolismo do pai. Conforme consta na apresentação do livro feita pelo escritor Duílio Gomes, Filho de Pinguço foi escrito para ―passar uma mensagem saudável aos seus leitores sem se atrelar a moralismos vãos‖ (GOMES, 1989). O título causa impacto, uma vez que a palavra pinguço é altamente depreciativa e diz muito mais que alcoólatra, de acordo com Gomes. Mais do que apontar as consequências de uma simples ressaca, a obra mostra ― segundo Gomes (1989) ― o estado psicológico e em degradação de um pai de família que não consegue se desligar do vício do álcool e provoca conflitos familiares. Na obra, é utilizada uma linguagem direta e concisa. De acordo com Nelly Novaes Coelho (2002, p. 32), Alciene Ribeiro Leite apresenta um ―estilo mineiro fluido 1

Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues.


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e denso, aderido ao visível e concreto mas arraigado na problemática humana, gerada pelas contradições da sociedade moderna‖.

A personagem de ficção Beth Brait, em A Personagem (1985), diferentemente do que algumas pessoas imaginam, considera que as personagens não são seres, são representação e estão vivas por conta das palavras, são seres de papel. Entretanto, recusar toda relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção. Assim, os escritores vão buscar nas características da linguagem, elementos significativos capazes de dar forma ao real, com características do mundo inventado e do mundo retratado. Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis os seus movimentos. (BRAIT, 1985, p. 53).

Dessa forma, Brait aponta que só texto é capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistência à sua criação e estimular as reações do leitor. Assim, é possível detectar numa narrativa as formas encontradas pelo escritor para caracterizar as personagens, sejam elas encaradas como pura construção linguístico-literária ou espelho do ser humano. O crítico Antonio Candido, em A personagem de ficção (2004), pondera que as personagens podem ser inventadas ou baseadas em pessoas reais e também em resquícios da personalidade do autor, porém, todas acabam sendo inventadas, pois são moldadas no contexto da obra. Entretanto, como pode uma personagem existir e ao mesmo tempo não existir realmente, questiona Candido: A personagem é um ser fictício, — expressão que soa como um paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação de fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada


139 através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 2004, p. 55).

Candido aponta que personagem é um ser fictício, ou seja, é uma criação da fantasia que comunica a verdade existencial. Conforme ele, uma obra literária só se realiza plenamente quando prima pela verossimilhança e convence, por meio das personagens, que tudo o que foi escrito é passível de ser verdade. Assim, quanto mais as personagens carregam a complexidade e densidade psicológica das pessoas da vida real, mais verossímil é a obra. De acordo Candido, a personagem é o elemento mais vivo, mais atuante no romance, pois possibilita a adesão afetiva e intelectual do leitor. Porém a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance. Enredo, personagem e ideias juntos formam um conjunto elaborado pela técnica, por isso são elementos inseparáveis nos romances bem realizados. Assim, a vida da personagem depende da sua situação em face dos demais elementos que constituem a obra: outras personagens, ambiente, duração temporal, ideias. Edward Morgan Forster, em Aspectos do romance (2004), afirma que um romance conta uma ―estória‖, sem ela não há romance. Para Forster, a estória narra fatos da ―vida‖ de pessoas. Aqui pessoas são entendidas como ―massa verbal‖ que é parte do autor. Essas pessoas das narrativas nunca serão pessoas reais, pois a função do romancista é escrever o que estaria oculto na vida de determinada personagem, tornando-a literária, mesmo que tenha sido histórica, pois de personagens empíricas não se pode saber tudo e é isto o que difere pessoas reais de pessoas literárias (FORSTER, 2004, p.65). Com base na teoria de Forster, concluímos que as personagens são criadas a partir da imaginação do escritor e sob influência de outras pessoas. O escritor dá vida e voz e, no decorrer da estória, molda as personagens para que o convencimento do leitor se torne cada vez mais forte a cada linha, criando uma ―realidade‖ nos limites do texto.

A novela Filho de Pinguço Para apresentar o tema do alcoolismo, tão presente na sociedade contemporânea, Alciene Ribeiro Leite utiliza o gênero literário novela e faz uso de uma linguagem coloquial para atingir jovens leitores. O enredo se desenvolve em torno de uma família


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assolada pelos problemas da bebida alcóolica. É a história de um pai alcoólatra que sempre obriga o filho a comprar cachaça e cigarros. O tempo em Filho de Pinguço é o cronológico/histórico, ou seja, é determinado pelo calendário e pelo relógio. A novela Filho de Pinguço ocorre no passado do narrador, embora o narrador a presentifique algumas vezes. Conforme Maussad Moisés, o passado constitui o tempo verbal típico da novela, uma vez que a ação é contada, em vez de apresentada ao leitor. ―Ao invés de fotografar a atualidade do escritor, a novela diligencia rememorar situações passadas graças ao culto da peripécia e do mistério‖, afirma Moisés (2007, p. 154). No caso de Filho de Pinguço, na maior parte do texto, o narrador alterna o uso do tempo verbal no pretérito perfeito, que expressa uma ação acabada, e no pretérito imperfeito, que expressa um fato ocorrido num momento anterior ao atual, mas que não foi completamente terminado. Em Filho de Pinguço, há o emprego sistemático do foco narrativo na terceira pessoa, revelador o onisciência e onipresença. Mas adere à personagem do menino, um dos protagonistas, alternando com ele o foco narrativo. A focalização do menino deixa nítida a preferência no narrador por esta personagem. A narração segue um ritmo acelerado, uma vez que são as ações e diálogos que norteiam a narrativa. O espaço é apresentado como um lugar degradado e ajuda na caracterização do pai, outro protagonista, porém não há citação explícita com relação à cidade representada. Não é possível saber onde a história ocorre. Porém, há uma pluralidade de espaços onde se passam as ações e por onde as personagens são continuamente deslocadas no decorrer da narrativa: a casa da família, o botequim, a rua e a escola.

As personagens de Filho de Pinguço Várias personagens aparecem ao longo da trama de Filho de Pinguço, porém são três as personagens centrais da narrativa. O narrador chama-os de pai, mãe e menino. Seus respectivos nomes não são revelados ao leitor, nem suas aparências físicas. O que se sabe sobre elas são seu comportamento, a relação entre elas e a função que desempenham dentro do contexto familiar: o papel de mãe, pai e filho. Até o final da narrativa, essas personagens aparecem sem nome. A presença de personagens inominadas é comum na ficção contemporânea, podendo indicar a falta de identificação e de referência fixa do indivíduo. Uma vez que o nome é a palavra mais adequada para identificar alguém, quando se troca o nome pela função dentro da família (pai, mãe e


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menino), a individualidade do sujeito também tende a desaparecer. Perdendo a referência como indivíduo, perde-se também a própria identidade, já que é por meio dela que se reconhece a si mesmo e ao outro. Segundo Câmara Cascudo, em O nome tem poder (2004), o nome personaliza: Não pode existir coisa sem nome que é próprio título e personalização, indissolúveis para sempre. […] O nome é a essência da coisa, da entidade denominada. Sua exclusão extingue o que se denominou. (CASCUDO, 2004, p. 658).

A falta de nome para os protagonistas pode ainda indicar o fato de todos os três enfrentarem sozinhos os seus conflitos ou ainda pode representar os valores de um mundo desestruturado que essas personagens sem nome estão mergulhadas. Apresentamos os protagonistas a seguir:

O pai O narrador descreve o ―pai‖ com um cheiro forte de suor, cigarro e cachaça. Ao longo da narrativa, são destacadas características de um homem agressivo e desleixado, aspecto típico das pessoas viciadas em bebida alcoólica: barba por fazer, roupa suja, cheiro forte, além de falante e, de certa forma, inconveniente. É uma personagem com aspecto grotesco, que passa para o leitor características que causam asco e repúdio. Entendendo aqui o grotesco como algo que foge dos moldes compreendidos e aceitos pela sociedade, podemos falar em grotesco psicológico, ou seja, uma personagem não propriamente deformada fisicamente, mas seus atos, suas vontades e seus pensamentos são muito desagradáveis. O narrador diz que para a família é um tormento o fato de um feriado cair na sexta-feira, pois com o sábado e domingo, são três dias em que o pai bebe e fuma continuamente. A sexta-feira caiu num feriado, veio o sábado, domingo. Três dias em casa, sem serviço. Cinco garrafas vazias no chão, muito toco de cigarro, a sala fedendo: corpo, hálito, fumo. Nem tomou banho, trocou de roupa. Três dias. Às vezes chegava da rua com aqueles cheiros e se enfezava por nadinha de tudo. Gritava com a mãe, batia nos filhos, xingava. (LEITE, 1989, p. 5).


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Se o pai não bebe, é como se fosse outra pessoa. Não tem susto. Um sossego para toda a família. Porém, algumas vezes, quando chegava em casa ―daquele jeito‖, brigava por qualquer coisa ou queria contar vantagem aos outros, principalmente em relação ao filho: ―― Filho meu não leva desaforo pra casa… conta aí filho, conta pro compadre aquela sova, malandro, cumé que ficou o olho do seu desafeto, conta!‖ (LEITE, 1989, p. 5). O pai desvalorizava a importância dos estudos e valorizava as brigas do menino, mostrando machismo em suas conversas: ― Filho meu é macho mesmo, tá puxando o pai. E na escola então só vendo. Eu não tive muito preparo não, escuta só, mas balancei o coreto, ninguém podia comigo. E sem muita frescura de pesquisa, do tal de para-casa. Pescava tudo na aula, escuta só, na aula e sem prestar muito tento. Deixei muita professora de boca aberta, toda vida o papai aqui, modéstia à parte... Conta pro compadre aqui a sua macheza, aquela briga, vem cá, conta. (LEITE, 1989, p. 6).

O pai aumentava os feitos, contava e repetia, fungava, falava arrastado. Segundo ele, o filho acertou os olhos do outro menino, testou a raça e provou ser homem. Aos fins de semana o pai também ficava zanzando pela casa, sem sono, alcoolizado. Não dormia, mas queria que o filho, ainda que com sono, fizesse companhia a ele diante da televisão: ―― Sono uma hora dessa, que moleza, não usa calça?‖, pergunta o pai ao filho (LEITE, 1989, p. 7). Mesmo que a mãe discorde, pois o menino tem escola no dia seguinte, o pai diz que já está na hora de o menino conhecer a madrugada. Sem ter como sustentar o vício, o pai vivia comprando fiado no botequim. E era o filho quem buscava as bebidas e os cigarros. E sempre reclamava quando o dono do boteco mandava recado cobrando-o. Além disso, as brigas entre o pai e a mãe eram frequentes, principalmente quando o marido bêbado e fedido se aproximava dela querendo namorar. Ela se esquivava e ele ficava furioso e, mais uma vez, mostrava seu lado machista: ― Está importante a madame, cheia de pose hem? Mas tem obrigação comigo, que diabo. Sou seu marido na igreja e no cartório. E comigo é na hora do pinicão. Sustento você para quê, hem, para quê? Para bater perna na rua, maldizer a vida alheia? Uma bisca sem serventia, só isso que você é, uma bisca. Largo tudo ainda, vai ver, desapareço assim ó – tenta estalar os dedos desgovernados, em vão. (LEITE, 1989, p. 20).

O narrador complementa as características do pai: fuma sem parar, um cigarro atrás do outro, sem se preocupar se incomoda quem está perto. Também frequentou


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pouco a escola, segundo ele mesmo, formou-se no curso primário, mas a mãe diz que na verdade cursou só até a quarta série. É pedreiro, mas está desempregado. Na segunda-feira, levanta do sofá resmungando e tossindo, acende um cigarro e toma café. Sai de casa direto para o botequim do Seu João, que lhe serve a primeira dose. Diz que vai procurar trabalho e retorna à tarde. Ao saber que o filho brigou na escola após ser chamado de filho de pinguço, o pai fica com raiva, xinga, pois entende que ser seu filho é xingamento, desonra. ―O menino não viu o brilho de lágrimas presas – ‗macho não chora‘. Nem entendeu o vulcão dentro do pai‖ (LEITE, 1989, p. 44). Ele golpeia o ar com um grito que ecoou por toda a casa, deixando mãe e filho assustados. Mas logo após a fúria pede que o garoto vá comprar cerveja de novo. Porém, desta vez, dá dinheiro para comprar à vista, assim o dono do boteco não cobraria mais o filho, que também foi autorizado a comprar um doce. Esse dinheiro parece ser de algum bico que arranjou como pedreiro naquele dia. O que se pode inferir a partir da leitura de Filho de Pinguço é que o pai vive um conflito, assim como o menino e a mãe, afinal não se sente feliz com a situação. Ele reclama da falta de carinho da mulher. ―E a sua dor, quem briga por ela? Desempregado, sem chamego em casa, mendiga favor de amigos, agora escassos. Razão para o vício não falta, mas ninguém entende‖ (LEITE, 1989, p. 44). Além dos conflitos internos das personagens, o narrador também utiliza a descrição do espaço para definir o pai: um espaço degradado. As poucas descrições de espaço estão estritamente ligadas ao pai. O espaço da sala é muito importante na construção da personagem paterna. Logo no início da narrativa, o espaço da sala é configurado pelo pai. ―Cinco garrafas vazias no chão, muito toco de cigarro, a sala fedendo: corpo, hálito, fumo. Nem tomou banho, trocou de roupa. Três dias‖ (LEITE, 1989, p. 5). Assim, podemos ver que o espaço da sala se liga à degradação moral da personagem e, de certo modo, o define. É o lugar onde ele dorme e passa a maior parte do tempo. À página 25, ao se levantar, o menino ―Tropeçou no pé pendente no sofá e o pai apenas resmunga, o ar impregnado de cheiros fermentados‖ (LEITE, 1989, p. 25). O menino diz que a sala é fria e sobra lugar na cama da mãe. Isso é muito significativo, pois revela que a frieza está também nas relações entre os integrantes da família. Ao final, quando sofre abalo pela descoberta do xingamento sofrido pelo menino, ―O pai desmorona no sofá e olha o vácuo, olhos de peixe morto, alheio [...]‖ (LEITE, 1989, p.


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47). A primeira cena da novela começa com o pai na sala e termina também neste espaço.

O menino O menino é apresentado pelo narrador como sendo tímido. Ele tem medo do pai bêbado, por isso sempre retribui os abraços forçados. Principalmente aos fins de semana, quando o pai bebe, o menino escuta as discussões, tapa os ouvidos, revira-se na cama. Tem medo do pai bater na mãe ou de ela empurrá-lo. ―― Não bate na mãe não, pai ― pede baixinho com a cabeça embaixo da coberta. Pensa que um dia irá fugir, mas ainda tem medo da fome e do frio, que considera piores que 'aquele inferno'‖ (LEITE, 1989, p. 7). Das convivências com o pai bêbado, o garoto também teme que ele morra, pois na casa há filhos pequenos e a mãe ficaria sem quem pudesse dar algum recurso. Devido a esse ambiente familiar conturbado, ele tem sentimentos de amor e raiva. Não sabe exatamente por quem torcer diante das brigas do pai e da mãe, e, silenciosamente, chega a querer a morte de um deles. Não sabe quem faria mais falta até ele crescer um pouco, ter dinheiro e sua própria vida. O menino era cobrado pelo pai para ser ―macho‖. A valentia era para um menino um dever custoso. ―― Não pode é levar desaforo pra casa, filho meu não leva desaforo pra casa, escuta só, vivo repetindo, menino, não baixa a crista pra nenhum frangote, o bichinho está aprendendo, mulher‖, disse o pai após briga do menino na escola (LEITE, 1989, p. 40). A pedido do pai, o menino sempre vai ao botequim pegar fiado cerveja e cigarro. Ele olha os doces e, sem poder comprá-los, pergunta os sabores a Seu João, dono do bar. Acaba recebendo resposta irônica. Seu João ainda questiona se o pai já recebeu e deixa o menino ainda mais envergonhado. O dono aceita vender fiado, apesar de reclamar, pois tem as prestações da televisão a pagar; acredita que vai acabar fechando o estabelecimento. Para o menino, era humilhante, o mesmo que pedir esmola. Seu João fechava a cara. O garoto não pegava os doces fiado, mesmo que o pai autorizasse. Imaginava quando fosse moço iria comprar todo o estoque de doces. No domingo, havia visita das tias Marlene e Marina com a filharada. Para o menino, era dia de ouvir a ―lenga-lenga‖, as repetidas queixas da mãe e tias: ―A mãe com mil doenças, o pai condenado a morrer de cirrose. Tia Marlene: o marido é mulherengo; Tia Marina: o marido não trabalha; mãe: o pai é beberão. Cada uma mais


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infeliz.‖ (LEITE, 1989, p. 12). Das conversas que ouve em casa, Tia Marlene sempre diz que a cirrose vai matar o pai. Preocupado, o menino tira dúvida com a professora Luiza sobre o que é cirrose e bebida alcoólica. Com o ambiente familiar desequilibrado, o menino demora a dormir, tem medo e raiva. Chega a urinar na cama. Sabe que quer ser diferente do pai, não quer ser pedreiro, pois fica sem trabalho assim que a obra acaba. Mas pensa que frequentar a escola, como a mãe, não leva a nada. O garoto desejava ter um pai como o tio Wolninho, que brinca até de cavalinho com os filhos. Ele gosta da prima Silvia e chegou a pedir um beijo a ela, apesar de acreditar ser pecado namorar prima de sangue. Beijo não correspondido, o menino sente raiva do Francisco, garoto popular da escola e admirado por Silvia. Por ciúmes da prima e por ser xingado de filho de pinguço, provocou briga com o Fran e acabou apanhando. A briga na escola repercutiu em casa e causou mais uma discussão entre os pais. Como o seu ―rival‖ Francisco é bom em tudo o que faz, o menino sente-se inferiorizado, acredita que só serve para ir comprar fiado no bar do Seu João. Gostaria de ser como o Fran: filho único, mãe bonita, casa nova com jardim na porta, duas geladeiras sempre cheias. O que podemos depreender é várias contradições e conflitos engendram a constituição do menino. É uma personagem cindida, daí a sua falta de identidade. Na verdade, nenhum dos três protagonistas tem uma identidade definida. Todos se sentem frustrados, nenhum é o que gostaria de ser. Como os protagonistas não têm seus nomes apresentados ao leitor, consideramos que talvez o menino não consiga construir sua identidade, não consiga se enxergar como integrante daquela família, pois todas as famílias que ele conhece são diferentes da dele. Ele sente frustração por não ter um pai como tio Wolninho ou seu Jurellas, chegando a fazer devaneios imaginado estar passeando de moto com o pai do Fran. O menino deseja atenção e companheirismo que um pai pode oferecer. Quando vê Fran e o pai conversarem por tanto tempo, diz não entender como um pai e um filho podem ter tantos assuntos, porque nunca vivenciou esse tipo de relação. Observamos ao longo da narrativa sentimentos desencontrados de amor e raiva. Há ainda conflito do menino diante dos sentimentos contraditórios pelo pai, o que o faz sentir-se culpado, principalmente pela formação religiosa que parece ter recebido. ―Deus castiga nojo de pai‖ (LEITE, 1989, p. 8). Sente-se castigado ao fazer xixi na cama. Teme que Deus tire a vida de seu pai por ter judiado das rolinhas. Para não mais


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conviver com as brigas dos pais, o menino chega a deseja a morte de um deles, por outro lado reflete: ―Aqui em casa é só menino pequeno, você não vai deixar o pai morrer, hem Deus? É ruim paca ele morrer, você gosta de fazer ruim com gente filha de Deus, gosta? (LEITE, 1989, p. 15). O menino também tem inquietação diante dos sentimentos e desejos pela prima Sílvia. São conflitos com a sexualidade nascente, o que acarreta angústias e agitação devido à sua religiosidade. ―Namorar prima de sangue não pode de jeito nenhum. Ainda mais quando a gente fica pensando nela em pelo‖ (LEITE, 1989, p. 15-16). Há ainda o conflito sobre quem morre primeiro: sabedoria da mãe versus ignorância do pai? ―Quem morre primeiro, a mãe ou o pai? Ela sabichona, formada normalista, ou ele escondendo a quarta série atrás do copo? Dói mais a morte de cirrose ou de doença de mulher?‖ (LEITE, 1989, p. 24). Ele reflete sobre qual dos dois faria menos falta até ele crescer um pouco. O menino define ele e a família: ―Ali é tudo gente sozinha. Será que a prima chora se ele morrer?‖ (LEITE, 1989, P. 25). É como ele se sente: sozinho. E é assim também que a mãe e p pai são e estão, cada qual em seu mundo de dor e frustração. Não há integração familiar. Mesmo vivendo nesse mundo desestruturado, o menino tem valores. Não gosta quando o pai mente, dizendo que ele batera em um garoto muito maior do que ele. Além disso, sente vontades de comer doces, mas mesmo o pai mandando, não pega fiado com seu João, sente vergonha e desaprova a atitude do pai. Talvez daí advenha grande parte da empatia com a personagem do seu João.

A mãe A mãe despreza o marido e sempre reclama dos fins de semana. Para ela, domingo é o pior dia da semana, pois tem mais trabalho. Enquanto os outros não trabalham, ela precisa fazer comida. O narrador ainda destaca o problema financeiro, pois a mãe sempre reclama que dinheiro não sobra e a todo o momento chega uma conta para pagar. Ela precisou vender a geladeira para o espanhol da esquina. Após os domingos cansativos e cheios de briga com o marido, a mãe acorda na segunda-feira com os olhos inchados de choro e sono. Pouco sobrou para comer, pois as visitas, principalmente os sobrinhos ―arrasaram com tudo‖. Ela também fica preocupada com o menino, principalmente quando briga na escola e discute com o marido:


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― Vem cá, mulher, que bobagem é essa? ― puxa a mãe pelo braço. Seu filho está virando homem, escuta só, trata de acostumar, você não viu nada ainda – termina debochado. ― Não quero meu filho brigão não. ― Isso faz parte da macheza do homem. ― Você tem é de orientar, dar exemplo, e fica falando assim, mandando o filho ser marginal ― a mãe soluça alto. ― Que marginal, mulher! Está com titica na cabeça? Moleque que não apanha na rua não vira gente. (LEITE, 1989, p. 40).

Sempre que o pai se compara com o menino, a mãe rebate dizendo que ele não é exemplo, pois bebe até na segunda-feira. São vários os motivos para frequentes reclamações: o marido cheirando à cachaça ―― Desde de sexta não toma banho, é a pura morrinha ― mãe queixosa‖ (LEITE, 1989, p. 14); o hábito de não incentivar o filho a estudar e ainda atrapalhar obrigando o menino a ficar acordado até tarde no dia anterior à aula; o incentivo às brigas na rua; o machismo; o gosto por contar vantagem aos outros e tem ainda os problemas financeiros. O pai está desempregado e ainda compra cerveja e cigarros fiado. A mãe precisou vender a geladeira para o espanhol da esquina para pagar as contas que não param de chegar. Ela pensa em largar do marido, mas recua ao pensar nos meninos e no nome que tem a zelar, sofre por estar com a família naquela situação. Constatamos que a mãe é uma mulher frustrada por ter um marido alcóolatra, vício que gera uma série de problemas familiares como a situação financeira deteriorada, as frequentes brigas, a insegurança emocional para o filho. Falar sobre o sacrifício da felicidade pessoal para manter um casamento fracassado é uma constante das obras de Alciene Ribeiro Leite, a exemplo de outros contos como Alforria para as hortênsias. ―_ Cruz-credo, irmã, mulher largada cai na boca do povo‖ (LEITE, 1989, p. 13).

Essa frase define muito da psicologia da mãe. Trata-se de uma mulher frustrada, sente novo do marido, mas não vê alternativa diante das dificuldades enfrentadas. Infeliz, não tem grandes atitudes de carinho com os filhos.

A construção das personagens Segundo Beth Brait (1985), só podemos visualizar uma personagem, saber quem ela é, como se materializa, a partir do foco narrativo que ilumina sua existência. No caso


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de Filho de Pinguço, o narrador em terceira pessoa faz a focalização em relação ao menino, reproduzindo a voz dele e contando os acontecimentos a partir do ponto de vista do menino. O narrador é onisciente, pois conhece tudo e detém a voz narrativa, intercalando sua fala com os diálogos das personagens. É um narrador onisciente neutro, pois preza pela descrição dos conflitos das personagens sem intervir na história. Relata os fatos e angústias das personagens, mas não influencia o leitor com observações ou opiniões a respeito das personagens. As personagens emergem graças aos recursos de um narrador privilegiado, que, na sua posição de observador, mostra não apenas os movimentos que vão caracterizando as personagens, mas também diz o que elas estão sentindo ou pensando. O pai é apresentado como alcoólatra, fumante e desleixado. O menino por sua vez tem medo do pai bêbado e prefere o sossego dos dias em que ele não bebe. A mãe é uma mulher frustrada. Anão há integração familiar e cada um vive isoladamente suas angústias. As personagens são identificadas por suas ações, pensamentos e sentimentos expostos. A autora utiliza ainda elementos para fazer com que o leitor conheça as personagens: modo como a personagem fala, o que ela pensa e sente; a forma como age, além de descrever as suas peculiaridades psicológicas. É principalmente a partir dos conflitos e controvérsias que é feita a construção das personagens protagonistas (pai, mãe e menino). O narrador revela as angústias e as ansiedades do menino, por meio de discursos indiretos livres e monólogos interiores. Conforme Brait, a utilização do discurso indireto livre “é um artifício linguístico que dissipa a separação rígida entre a câmera e a personagem, uma vez que lhe confere autonomia para auscultar uma interioridade que não poderia ser captada pela observação externa‖ (Brait, 1985, p. 57).

Considerações Finais

Em Filho de Pinguço, as personagens são configuradas pelas ações e situações, visto que quase não há descrições físicas. Em uma sondagem mais psicológica, analisamos que os protagonistas são definidos pelos conflitos e contradições. Conforme


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a classificação das personagens feita por Forster (2004), em novelas as personagens geralmente são planas, ou seja, não costumam ser dotadas de profundidade, apresentando um só defeito ou uma só qualidade, consideramos que os protagonistas de Filho de Pinguço são personagens planas. Pai, mãe e menino são personagens estáticas, porque praticamente não alteram seu comportamento e também não evoluem psicologicamente ao longo da trama. São personagens definidas de um modo linear por um ou vários traços que as acompanham ao longo de toda a obra. Portanto, o pai é alcóolatra em toda a narrativa e, apesar de sentir muito pelo menino ser xingado de filho de pinguço, não muda seu comportamento. Manda o filho mais uma vez comprar bebida alcóolica, mas desta vez à vista. A mãe permanece infeliz e o menino continua vivendo seus conflitos do começo ao fim do livro. Como a trama é contada por meio das ações das personagens, estas são fundamentais para a composição de uma narrativa. Segundo Beth Brait (1985), só o texto é capaz de fornecer os elementos utilizados pelo escritor para dar consistência às personagens e estimular as reações do leitor. Ainda conforme Brait (1985), podemos visualizar uma personagem, saber quem ela é, como se materializa, a partir do foco narrativo que ilumina sua existência. No caso de Filho de Pinguço, o narrador em terceira pessoa constrói as personagens principalmente a partir dos comportamentos, conflitos e controvérsias.

Referências: BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. CASCUDO, Luís da Câmara. O nome tem poder. In: _______. Civilização e cultura. São Paulo: Global, 2004. p. 658-667. CANDIDO, Antonio et al; A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2002. FORSTER, E. M. Aspectos do romance. Trad. Sergio Alcides. 4. ed. rev. São Paulo: Globo, 2004. LEITE, Alciene Ribeiro. Alforria para as hortênsias. Ficções – contos inéditos, n. 2, 1987. LEITE, Alciene Ribeiro. Filho de Pinguço. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Lê, 1989.


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GOMES, Duílio. [orelha, 1ª]. In: LEITE, Alciene Ribeiro. Filho de Pinguço. 3. ed. Belo Horizonte: Lê, 1989. MOISÉS, Massaud. A análise literária. 16. reimpr. da 1. ed de 1969. São Paulo: Cultrix, 2007. SANDRONI, Laura. A década de 1970 e a renovação na literatura infantil. In: Instituto C&A; Fundação Nacional do livro infantil e juvenil (org). Nos caminhos da literatura. São Paulo: Peirópolis, 2008. p. 218-230.


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O REGIONAL COMO QUESTÃO: TRAÇOS DE REGIONALIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA Daniel Abrão (UEMS) Janaína Nunes Roque (UEMS) Resumo: O presente artigo tem como objetivo abordar o posicionamento da crítica literária brasileira diante do regionalismo da literatura sul-mato-grossense, acerca da obra do escritor Lino Villachá, cujo nome e obra mostram-se de significativa produtividade para o estudo de aspectos de regionalidade na poesia brasileira contemporânea, além de divulgar a sua fortuna crítica. Pretende-se realizar uma pesquisa teórica de sua poética com subsídio na poesia brasileira contemporânea, discutindo e analisando a sua temática através da crítica literária, tendo como foco problematizar por intermédio destes estudos, a ideia de regionalismo através da constatação de traços regionais na literatura brasileira contemporânea. Palavras-chave: Crítica Literária, Regionalismo; Lino Villachá.

Introdução Este artigo reflete sobre a fortuna crítica de Lino Villachá, escritor sul-matogrossense, nascido na cidade de Terenos- Ms em 15 de agosto de 1938 e falecido aos 56 anos em Campo Grande, capital do Estado. Aos doze anos de idade, foi acometido pela doença hanseníase. Os pais eram imigrantes colonos, que trabalhavam em Terenos. Sua mãe, descendente de russos e o pai, de origem argentina e filho de espanhóis. O sobrenome Villachá provém de uma vila na região da Galícia, de onde os avós paternos eram oriundos. Já os avós maternos Miguel, mais conhecido como Nikita e Luchia provinham da Bassarávia, na Romênia. A família de Lino mudou-se de Terenos para Campo Grande, vindo a morar no bairro São Francisco, próximo ao córrego Segredo. O Hospital São Julião reuniu e reeditou suas obras, em torno de cinco livros numa coletânea única. Um verdadeiro legado sobre a vida do escritor no hospital e sua poesia. Sua poesia é marcada sobre a sua luta contra a doença hanseníase, os amigos, o espaço do hospital e sobre o bairro São Francisco, onde há uma crônica intitulada Aos pés do São Francisco. Minha família viveu uma dúzia de anos no bairro São Francisco, de 1946 a 1948.Nosso casebre de tabuas ficava à beira da linha do trem, não muito longe do córrego Segredo, também chamado de Cascudo, por causa dos peixes desse nome, muito comuns em suas águas naquela época. (VILLACHÁ, 2009, p.155).


152 Nas recordações e sonhos, sempre estou de volta ao meu antigo bairro e me vejo correndo para o fundo do quintal, quando um trem apita na distância: taquitrac.... taquitrac... (VILLACHÁ, 2009, p. 155).

A fortuna crítica acerca das obras de Lino Villachá apresenta um considerável número de trabalhos publicados na década de 80, resgatadas in loco, sendo uma delas a entrevista com o escritor, publicada pelo Frei Neylor Tonin na Revista Grande Sinal, na cidade de Petrópolis, onde o mesmo discorre sobre um pouco de sua biografia, seu lado espiritual e a forma como o poeta lida com a doença, muito recorrente na sua poesia, que traz, além de outros aspectos, um misto de fé e desalento. Lino também discorre sobre a sua relação com os amigos, portadores da doença e da estrutura do hospital na época em que chegou ali. FREI NEYLOR: Eu diria, após ler seus dois livros, que seu pensamento é triste e forte, é um grito de dor e de esperança, um debater-se inconformado e, ao mesmo tempo, um ato de fé indômito. Por um lado, você me parece sempre pronto para chorar, mas de outro, você parece investir na vida todo o seu mundo de fez e esperança, de valor profundo que o anima. Quero crer que um verso seu diz bem o que sinto de você: ― Por que chorar o que se perdeu? [...] faço valer o pedaço que me ficou‖. Será que estou certo? LINO: Sim, está certíssimo FREI NEYLOR: Como foi o São Julião no passado? LINO: Desde 1941 até 1960, para os padrões específicos da hanseníase, da época, era igual aos demais. De 1960 a 1970 caiu no abandono: verbas não foram providenciadas, a fome, a miséria e a desordem grassavam. Ninguém se mexia. Os doentes se amontoavam. Foi quando o hospital esteve superlotado na expressão literal da palavra, leprosário.

Outro trabalho realizado, foi uma matéria em homenagem a Lino, intitulada como Lino Villachá: uma mensagem vitalícia de otimismo, publicada na Revista Destaque, elaborada pelo escritor Adelaido dos Anjos e também amigo de Lino. Ambos trocavam cartas e Adelaido realizava visitas a ele no hospital. A reportagem consiste em propagar as obras de Lino Villachá, estimulando o leitor a buscá-la, além de ressaltar que o poeta é um exemplo de vigor, numa linguagem impregnada de um certo lirismo, dedicada ao amigo. Aos que buscam emoção, sentimento, bálsamo às intempéries da vida através da poesia, ao ler e reler os livros de Lino, se deliciam com a tese que seus livros são para ser meditados, não destrinchados ao


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realismo cru. Este autor é o contato da magnificência espiritual e intelectual.

Por fim, a professora Nelly Barbosa Macedo publica um livro intitulado Trilhando Caminhos de Fé e Esperança. Também amiga do poeta, Nelly realiza um levantamento biográfico do escritor, onde traça um panorama sobre a sua vida e obras, desde o seu nascimento numa chácara em Terenos, a vinda dos seus avós para o Brasil família e a relação com eles, a infância pobre no bairro São Francisco, onde relembra a casa de tábua e as brincadeiras de infância, as figuras de Seu Boto, um homem acometido pela bacilo de Hansen ,tendo seu corpo e rosto desfigurados e Manoel Sabino, professor do poeta no Hospital São Julião. Além disso, a professora também comenta sobre o cotidiano de Lino, o trabalho como diretor na Escola Estadual Franco Delpiano e o amor ao hospital. Mas nem só de esperança, fé e dor a poesia villachaniana se caracteriza, pois Lino Villachá também retratou as mazelas sociais que afligem as minorias estigmatizadas, tais como os próprios hansenianos, onde o escritor se inseria, garotos de rua, drogados e miseráveis. Eu ouço o teu gemido e vejo em teus olhos tristes a solidão dos desamados. É preciso te pôr no colo, Afagar teus cabelos e te falar de amor. (MACEDO, 1997, p. 59).

Embora o escritor apresente a fortuna crítica apresentada acima, podemos levar em consideração que as suas obras ainda não foram pesquisadas no campo acadêmico brasileiro. Por esta razão, a obra de Lino despertou relevância por apresentar uma discursividade modernista, amalgamada a transformação social. Os críticos e escritores apresentados anteriormente, reuniram em seus trabalhos e livros, dados biográficos, além de se centrarem de modo geral sobre a vida do escritor no hospital e sobre os livros escritos, não avançando num estudo mais denso das suas obras. Grande parte dos escritos acerca do escritor Lino Villachá, apresentou o escritor apenas como ―Poeta da Esperança‖, tal como era conhecido pelos pacientes do São Julião, por transmitir a mensagem de dias melhores e força na batalha contra a doença. Sob outra perspectiva, nota-se que ao lado dessa observação feita, muitos destes críticos adaptaram o convívio do escritor no hospital, por ser portador da hanseníase, e teriam escrito as suas obras, partindo da relação do escritor com a doença e com o hospital. Em


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contraposição a essa ótica diminuída, que amalgama de modo inocente a obra à convivência do escritor no hospital, o estudo dessa pesquisa visa difundir a obra do escritor, através de uma investigação mais densa acerca de sua poesia. A produção poética de Lino está à margem do padrão acadêmico sul-matogrossense, apresentando mais propensão à traços que não se vinculam ao regional, apresentando um espirito inovador, se afastando da tradição e observando-a como um obstáculo, com o intuito de anulá-la e negá-la.Essa tradição seria a exibição do Pantanal sul-mato-grossense numa ótica idealizada, representada através de imagens que representam este ambiente Esta autonomia na poética de Villachá alude ao que Marcos Siscar discorre em A cisma da poesia sobre o abandono do que era rígido e o surgimento de gêneros poéticos que se opõem, tais como a linguagem criada por Manoel de Barros, a essência feminina em Adélia Prado e da mescla de simplicidade e ironia em Jose Paulo Paes. Além do mais, Siscar diz que o poeta ganha seu reconhecimento através dessa ―tradição peculiar‖. Ao movimento de abandono das posições politicamente radicais, corresponde o interesse pela combinação particular de matérias poéticas contrastantes. É o caso, claramente, da ―gramática‖ natural em Manoel de Barros (―Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto‖, em O Livro das Ignorãças, 1994); da mística do feminino em Adélia Prado (―Há mulheres que dizem:/ meu marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes. / Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, / ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. […] Coisas prateadas espocam:/ somos noivo e noiva. ‖, em Terra de Santa Cruz; da modéstia irônica em José Paulo Paes (―Pernas/ para que vos quero? […] Evidentemente, a suposta ―retração‖ das questões poético-políticas coletivas não resulta necessariamente em um empobrecimento da poesia. Mais particularmente, é menos exato dizer que a poesia brasileira perdeu alguma coisa – formulação que diz respeito muito mais a um julgamento de valor do que a uma proposta analítica – do que dizer que ela se tornou outra coisa, tomando sentido específico em um novo momento histórico. Ao que me consta, seria possível dizer que assistimos hoje a um deslocamento dos critérios pelos quais um poeta pode ser reconhecido como fazendo parte de uma série literária, de sua ―tradição‖. (SISCAR, 2005, p. 42).

A literatura regional é observada, sobretudo, nos padrões do século XIX, como um lado possível de se mostrar a realidade de um Brasil anacrônico e belo, sem que se note, diversas vezes, que a posição dos escritores é, de costume, a de um sujeito culto que se volta sobre o universo rural, em busca de retratar as suas belezas naturais. No


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século XIX e em parte do século XX, essa atitude se tornou habitual: quando discorriam sobre essas paisagens, tinham o intuito de captar daquele lugar, peculiaridades locais a partir do falar típico, dos costumes, das iconografias, buscando, com isso, caracterizar as particularidades desse universo, desprezando tudo que fuja a esses aspectos. De acordo com Antonio Candido, o regionalismo: [...] tende a anular o aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura, uma reificação da sua substância espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético do homem da cidade. (CANDIDO, 1975, p. 212-213).

Desde a sua origem, o regionalismo condiz com o da ideia de ser uma literatura piamente nacional, sendo uma questão que sempre vem à tona, podendo-se de fato falar que qualquer crítico atualmente que pretenda lidar de literatura contemporânea não tem como desprezar o assunto do regional. O comparecimento de aspectos locais sempre foi o delineador da ideia de literatura regional, como se isso definisse por si só este conceito, sem necessidade de uma melhor explanação. Vale ressaltar, que não cabe a literatura registrar informações sobre um espaço regional, tal como um documento. Qualquer que seja a aproximação com o real, um texto que se autonomeie literatura não deve ser tratado como documentário sobre uma região. Segundo Antônio Candido, o regionalismo pode ser compreendido no campo literário como um ―compulsivo comparecimento físico do meio; uma sociedade cujo assunto e rumo dependem dele. O regionalismo foi uma busca do tipicamente brasileiro através das formas de encontro, surgidas do contato entre o europeu e o meio americano. Ao mesmo tempo documentário e idealizador, forneceu elementos para a auto identificação do homem brasileiro e também para uma série de projeções ideais (CANDIDO, 2002a, p. 86).

Tratar do regional como ―questão‖, sem esconder seus impasses, dá a chance de abordá-lo sem as nódoas que lhe dão a impressão de um conceito antiquado. Todo escritor contemporâneo, ao ser indagado sobre uma possível ligação ao regional, nega-a intensamente, como se, caso viesse a afirmar, estivesse sob grave ameaça de enclausurar-se num tipo de reclusão insuperável. Isso acontece, acima de tudo, em razão da definição cultural que envolve este conceito. Essa definição se ampara, em geral, sob uma refutação de duplo sentido. Uma das razões, da formação do conceito de regional é a de se contrapor ao conceito de universal. No entanto, essas oposições são cada vez


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mais volúveis. Regional e universal, estrangeiro e nacional, não permanecem mais na presente condição das coisas. Em virtude da força semântica que o próprio conceito leva consigo, a ideia de o escritor ser encontrado com o regional já causa uma dificuldade, visto que esse encontro se opõe a mobilidade que o acerca da palavra esperada por qualquer escritor, que é universal. Deste modo, persiste o olhar de que ambas são opostas e incompatíveis. O surgimento de escritores como Manoel de Barros, Luiz Ruffato entre outros, e a maneira como se dá a crítica acerca deles, evidencia que seria necessário estar alerta a esses matizes para uma compreensão mais digna no que diz respeito às suas obras, que não devem impreterivelmente ser lidas como moldes de regionalismo literário. Para melhor entendimento das demarcações de um conceito, é imprescindível considerar a sua formação. No Brasil, renomados críticos brasileiros apresentaram os fundamentos do conceito de regional, tal como Antônio Candido. Segundo ele, fundamentando-se no regionalismo literário de Franklin Távora, este é oriundo da ―determinação da paisagem‖, em suma, do ―senso da terra‖ que se estabeleceu desde a literatura criada no Nordeste, este mesmo um conceito ―inventado. Já Erik Schøllhammer, em Um novo regionalismo? afirma que: Em algumas obras atuais, a questão regional abre mão do interesse pelos costumes, pela tradição e pelas características etnográficas para se tornar um campo de tensão entre o campo e a cidade, entre a herança rural e o futuro apocalíptico das grandes metrópoles. (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 78).

E ao colocá-la em prática, indica como modelo um escritor que usualmente não observamos como regional, que é Luiz Ruffato, pois a este lhe importa mais ligar a sistemática do regional à literatura urbana mostrada por determinada preocupação social. Esse conflito é o foco principal para um dos escritores que mereceu maior reconhecimento crítico na última década e que, sem ter sido rotulado de ―regionalista‖, preserva o olhar sobre sua região de origem e mostra forte interesse pela narrativização épica de sua história, assim como pela inclusão de características linguísticas específicas na construção dos personagens. Trata-se do mineiro de Cataguases Luiz Ruffato, que estreou com dois livros de contos, Histórias à remorsos e rancores (1998) e (os sobreviventes) (2000), este último ganhador do Prêmio Casas de las Américas com menção especial. Mas foi em 2001, quando lançou o romance urbano Eles eram muitos cavalos, que a atenção da crítica despertou de verdade. Aqui, claramente se conciliavam duas ambições aparentemente contraditórias: escrever um


157 romance comprometido com a atual realidade social do país, porém numa linguagem adequada à contemporaneidade. (SCHOLLHAMER , 2009, p. 78-79).

O lugar exótico, aqui, seria qualquer um evidenciado pelos impactos destes tipos sociais perdidos nos grandes centros urbanos, independente da região. A conexão com esse lugar, livre de costumes típicos, não se daria de forma direta. Se conferíssemos a ideia de regional livre de qualquer conceito, já não poderíamos fazer esta interpretação partindo de inúmeros escritores que tratam o espaço como um personagem principal, que o constrói a partir do seu olhar? Em suma, não seria esse o intuito da literatura de Hernani Donato, em ― Selva Trágica‘ senão mostrar o drama da extração da erva mate na região fronteiriça de MS, retratando a exploração dos ervais e as condições desumanas de trabalho dos ervateiros ali inseridos? Ou o Rio de Janeiro de João Gilberto Noll e Machado de Assis? Deixando de lado as belezas locais e suas características, essas literaturas, estão pouco interessadas em retratar o homem pantaneiro ou o sujeito local, sua fauna e flora, a partir do seu ‖ discurso, cenários e riquezas naturais. O que há de peculiar não é a apresentação dos espaços, mas a maneira como os sujeitos por ali caminham, sem que se possa negar que há, sim, uma abordagem diferente do espaço. De outro modo, a fala de Schøllhammer ajuda a resolver a desigualdade colocada ao lugar pelo fato de serem espaços distantes dos grandes centros. Sendo assim, é válido pensar que as ideias de ambiente, lugar, local, região, necessárias para a formação do conceito de regional, podem contaminar-se de outros sentidos. Na obra do escritor sul-mato-grossense Lino Villachá, destaca-se o comparecimento marcante do Hospital São Julião, localizado na capital Campo GrandeMs, do espaço sul-mato-grossense onde o poeta passou boa parte de sua vida e a descrição da vegetação, porém sempre realizada sob uma ótica bastante peculiar, visando distingui-la da representação regionalista, mais voltada para o tradicional. Mato Grosso. Estes cerrados tão vastos – uma multidão de braços retorcidos, tristes figuras escurecidas por um fogo que passou... Triste pedaço, como essa tristeza que está comigo. Não seria melhor ciprestes, cedros ou pinheirais? Eis que um sorriso me aflora nos lábios: Um pé de ipê explodindo em ouro No meio desses gestos de desespero e de dor... (VILLACHÁ, 2009, p. 33 -34).


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Em suas obras, o autor proporciona uma releitura do espaço onde viveu, alterando suas obras em um cenário de fluxo e convivência sua e de várias pessoas acometidas pela doença hanseníase. Sendo assim, a obra villachaniana manifesta não a busca de um imaginário constituído a partir da religiosidade e riqueza, historicamente conferidos a um espaço especificamente regional, mas sim da interpretação individual do poeta. Esse entendimento é alcançado através da leitura, que permite a emancipação social do leitor, instiga seus conhecimentos e o auxilia a meditar sobre seu pensamento acerca de onde vive e de si mesmo. Sendo assim, a literatura deve ser entendida como algo imprescindível no nosso dia a dia, pois sua relevância artística é a forma que conseguimos expressar nossos anseios, ideias e lacunas, mesmo que seja reinventando nossa realidade. No que lhe concerne, a realidade social, a reação e a história de cada período pode servir, muitas vezes, de inspiração para a manifestação artística e auxiliar na melhor compreensão da obra literária. De acordo com Antônio Candido, em Literatura e Sociedade: Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2006, p. 13).

Por fim, levando em consideração os trabalhos que compõem a fortuna crítica de Lino Villachá, de apresentar um pouco da vida e obra do escritor e esboçar traços da sua poesia com a poesia brasileira contemporânea, se desvinculando do regional, esta pesquisa tem como objetivo ampliar o foco desse estudo, dando um ponto de partida para a ampliação da pesquisa sobre a poética desse escritor, evidenciando deste modo, a pluralidade de criações literárias em Mato Grosso do Sul.

Referências: CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. v. 2.


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CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In:_____. Remate de Males. Unicamp: IEL/Revista do Departamento de Teoria Literária, 1999. MACEDO, Nelly Barbosa. Lino: Trilhando Caminhos de fé e esperança. Campo Grande: Ruy Barbosa, 1997. SISCAR, M. A cisma da poesia brasileira. In: Sibila, v. 5, n. 8-9, set. 2005. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. VILLACHÁ, Lino. Lino para sempre/Coletânea de crônicas e poesias de Lino Villachá. Campo Grande - Ms: Hospital São Julião,2009.


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A SUBVERSÃO DO IDEAL DO “PRÍNCIPE ENCANTADO” EM CONTOS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre os contos ―Por toda a vida‖, de Tremor de Terra (1967), de Luiz Vilela, e o conto ―A quinta carta‖, de Ivana Arruda Leite, de Ao homem que não me quis (2005). No conto do escritor mineiro, podemos perceber a desilusão da figura feminina com a realidade de um casamento tradicional de meados do século XX. Ao passo que o conto de Ivana subverte o código da memória machista, em especial o ideal de ―príncipe encantado‖, desconstruindo o modelo perpetuado pelo código patriarcal. O século XXI coloca em cena novas posturas femininas, em que os discursos machistas e ultrapassados são vistos por perspectivas satíricas e irônicas. A modernidade trouxe certo descentramento de papéis cristalizados pelo discurso patriarcal, ampliando os espaços de debates nas academias e vozes – como as das minorias éticas e sexuais – foram inseridas no centro dos discursos, promovendo e prevendo novos paradigmas. Palavras-chave: Contemporaneidade; Ivana Arruda Leite; Luiz Vilela; Ficção e História.

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise comparativa entre os contos ―Por toda a vida‖, de Tremor de Terra (1967), de Luiz Vilela, e o conto ―A quinta carta‖, de Ivana Arruda Leite, de Ao homem que não me quis (2005). No conto do escritor mineiro, podemos perceber a desilusão da figura feminina com a realidade de um casamento tradicional de meados do século XX. Ao passo que o conto de Ivana subverte o código da memória machista, em especial o ideal de ―príncipe encantado‖, desconstruindo o modelo perpetuado pelo código patriarcal. O século XXI coloca em cena novas posturas femininas, em que os discursos machistas e ultrapassados são vistos por perspectivas satíricas e irônicas. A modernidade trouxe certo descentramento de papéis cristalizados pelo discurso patriarcal, ampliando os espaços de debates nas academias e vozes – como as das minorias éticas e sexuais – foram inseridas no centro dos discursos, promovendo e prevendo novos paradigmas. No conto ―Por toda a vida‖, de Luiz Vilela, temos um narrador heterodiegético, relatando os primeiros encontros de um jovem casal: Ele trabalhava numa carpintaria. Quando a sirene apitava às cinco horas ela corria para a janela da sala e ficava esperando-o passar na calçada. Ele surgia com o rosto já voltado na direção da janela, sabendo que ela estaria à sua espera. Cumprimentava-a com ligeira inclinação da cabeça, ao que ela respondia também com uma inclinação. Então ela deu o primeiro sorriso: ele ficou olhando muito perturbado, e sem saber o que fazer tornou a inclinar a cabeça. E na


161 tarde seguinte os dois sorriram ao mesmo tempo. (VILELA, 1972, p. 33)

A cena nos remete ao século XIX, época em que era comum as mulheres ficarem expostas à janela no anseio de se fazerem vistas pelo futuro marido. Memorável a passagem do romance Senhora, de José de Alencar, em que a mãe de Aurélia, preocupada com sua frágil saúde e com a possibilidade de deixar a filha sozinha, insiste para que ela fique à janela para arrumar um casamento. Trata-se de narrativas marcadas pelo estereótipo de feminilidade que prevê a felicidade da mulher exclusivamente em função de sua união com o homem. A história da cultura ocidental, ao consolidar-se segundo a tradição do saber masculino, destinou à mulher um lugar marcado feito de silêncio e de estereótipos, introjetando no psiquismo feminino a expectativa de corresponder docilmente a esses modelos. É neste lugar que vamos encontrar a mulher representada, ao longo da tradição literária, como aquela que deve sempre viver a espera, a submissão, o sofrimento, a saudade, a resignação. (CARVALHO, 1990, p.36)

Nesse paradigma, perpetuado por séculos, a mulher está sempre à espera de seu grande amor. E, aos ―moldes românticos‖, não faltam os obstáculos ao amor do casal do conto de Vilela. A mãe da mulher implica com o fato do rapaz, João, ser pobre. Reconhece que ele é um bom moço, aparentemente honesto. Mas insiste com a filha que isto somente não basta, é preciso também pensar em sua situação financeira: – Nós já somos pobres e você ainda namora um rapaz mais pobre do que nós? - falou a mãe, que não viu com bons olhos aquele namoro. – Que que tem isso, Mamãe? Ele é trabalhador, inteligente. – Isso não basta. Sem dinheiro ninguém vale nada hoje. É o dinheiro que manda. Em toda parte é assim. Você ainda é moça e inexperiente. É melhor casar com um homem bom e rico do que com um bom e pobre. Não estou desfazendo dele, parece até muito bom rapaz. Mas você ainda é inexperiente. Casar com uma pessoa pobre hoje não é bom negócio. (VILELA, 1972, p. 34).

Pelas palavras da mãe podemos notar perpetuada a visão machista de que cabe ao homem prover os bens materiais da família. Reitera o modelo patriarcal em que os únicos papéis destinados à mulher são os de mãe e esposa, atrelando a felicidade feminina à escolha de ―um bom partido‖, provedor de seu sustento e dos filhos, como se a mulher não fosse capaz de exercer diferente função social. Discordando, a filha vê sua felicidade aliada ao grande amor de sua vida, dizendo para a mãe: ―– Eu gosto dele. E ele gosta de mim.‖ (VILELA, 1972, p. 34).


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Podemos perceber o modelo machista, reiterado pela mãe, também na conduta do pai da garota. Diante das colocações da esposa:

O pai quase nunca falava. Escutava as conversas, presenciava as discussões, e ora concordava com uma, ora com outra. Chegava muito cansado do serviço. Dizia para a mulher que orientasse bem a filha e para a filha dizia que pensasse no que estava fazendo. E ia jogar baralho na casa dos amigos. (VILELA, 1972, p. 36).

No modelo patriarcal de casamento, a figura masculina sempre está cansada do serviço e cabe à mulher orientar bem os filhos. Afinal, este dá o duro no trabalho e precisa ter o seu momento de lazer com os amigos. Contrariando a todos os obstáculos, eles ―juravam amor por toda a vida [...]. Decidiram se casar e nada no mundo poderia impedir isso.‖ (VILELA, 1972, p. 35-36). Devido ao dinheiro curto, tudo na casa era modesto. Nos primeiros tempos, viveram muito bem, e felizes. Ela, em seu ―papel-de-mulher-do-lar‖:

Enquanto acabava de fazer a comida ela escutava-o no banheiro lavando-se e cantando músicas de carnaval. Largava um minuto as panelas, unia as mãos, e erguendo os olhos para o alto dizia baixinho: – Meu Deus, eu vos agradeço, eu vos agradeço... (VILELA, 1972, p. 37)

A figura feminina, em seus estreitos horizontes, não conhece papel social diferente ao de esposa e mulher. Sente-se acomodada a esta condição, afinal, não lhe ensinaram que podia exercer outras funções e que as tarefas da casa podiam e deviam ser divididas com seu cônjuge. Com os filhos a vida tornou-se mais difícil, mas ela contribuía, ficando até tarde da noite com o bordado para ajudar nas despesas. Vieram as primeiras desavenças. ―Ela queixou-se à mãe: toda tarde ele chegava meio embriagado. A mãe não teve meias palavras‖ (VILELA, 1972, p. 39), afinal ela a prevenira do mau casamento. O pai a consola: – Isso passa, minha filha, todo homem tem dessas coisas, todo homem gosta de tomar seu traguinho de vez em quando, seu pai mesmo não é assim? No entanto, modéstia à parte, não sou bom marido e bom pai? (VILELA, 1972, p. 39). Pelos excertos, podemos notar o comportamento do marido como algo aceitável, afinal ―todo homem tem dessas coisas‖. O homem precisa relaxar de seu dia estressante de trabalho, à mulher cabe aceitar.


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Eis que João teve uma promoção e o seu ordenado foi aumentado, então ele passa a se vestir melhor e a barbear-se todo dia. Sentiu-se orgulhoso com o cargo de gerente, afinal era bom dar ordens. A mulher continua bordando para fora e, quando o marido chega de noite das reuniões, ainda a encontra curvada sobre a máquina. Em vão, ela tenta manter diálogo enquanto João se mira no espelho, ―primeiro de frente e depois de perfil, antes de desatar a gravata.‖ (VILELA, 1972, p. 40). Ele admira os dentes, sente-se orgulhoso de sua imagem, não prestando muita atenção à mulher, respondendo por monossílabos. Dez minutos depois, ela já o encontra na cama dormindo.

No dia seguinte de manhã, é ela quem se olha no espelho, achando-se magra: – Magérrima – corrigiu-se. Branca. Branquela. Anêmica. E aqueles óculos – parecia uma velha. Como seria a outra? Cheia, macia, perfumada ... Ele a abraçaria, lhe diria palavras de amor, lhe daria beijos de despedida... – ―Reuniões‖ – e atirou os óculos com força na cama, sem coragem de quebrá-los. (VILELA, 1972, p. 40).

Não gosta da mulher anêmica e sem vida refletida no espelho. Não se reconhece como mulher. Sabe que as ―reuniões‖ são desculpas para os encontros amorosos do marido, mas não tem coragem de mudar a situação lamentável na qual se encontra. Neste sentido, a imagem dos óculos sendo atirados sobre a cama é muito significativa. Era extremamente difícil para uma mulher de meados do século XX rebelar-se contra uma situação considerada ―normal‖ pela sociedade. Só com a ascensão ao mercado de trabalho e as modificações geradas por movimentos como o feminismo, na década de 70, essa situação começará a se modificar. Também o espelho é elemento significativo nesta passagem. Enquanto o homem orgulha-se de sua imagem, sentindo-se poderoso, a mulher vê uma imagem ―branquela‖, desprovida de qualquer vaidade e autoestima. Na sequência da cena, a mulher desconta toda sua raiva no filho, gritando e correndo atrás dele com a correia na mão. Ao que o homem reclama, palitando os dentes do almoço: ―Você grita demais com esses meninos‖ (VILELA, 1972, p. 40). Ao que ela não responde, gritando mais ainda. Então, [e]le foi para a sala levando o jornal. Espichou os pés sobre a mesinha nova de fórmica, acendeu um cigarro e continuou a ler a notícia sobre o lançamento de mais um foguete espacial. (VILELA, 1972, p. 40). O homem é totalmente indiferente às frustrações da mulher e ao gerenciamento da família. A ele cabe simplesmente o papel de mantenedor financeiro da casa.


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Em maio de 1955, a revista Housekeeping Monthly publicou um artigo chamado ―o guia da boa esposa‖, que aconselhava sobre o que a mulher deveria fazer para ser

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boa esposa e mãe . São cerca de 18 dicas, dentre elas: Seja amável e interessante para ele. Seu dia foi chato e pode precisar que o anime e é uma das suas funções fazer isso; Seja feliz em vê-lo. O receba com um sorriso caloroso, mostre sinceridade e desejo em agradá-lo. Ouça-o; Minimize os ruídos. Quando ele chegar desligue a máquina de lavar, secadora ou vácuo. Incentive as crianças a ficarem quietas; Você pode ter uma dúzia de coisas a dizer para ele, mas sua chegada não é o momento. Deixe-o falar primeiro, lembre-se, os temas de conversa dele são mais importantes que os seus; Nunca reclame se ele chegar tarde, sair pra jantar ou outros locais de entretenimento sem você. Em vez disso, tente compreender o seu mundo de tensão e pressão dele, e a necessidade de estar em casa e relaxar; Não reclame se ele atrasar para o jantar ou passar a noite fora. Veja isso como pequeno em comparação ao que ele pode ter passado durante o dia; Não lhe faça perguntas sobre suas ações ou que questionem a sua integridade. Lembre-se, ele é o dono da casa e, como tal, irá sempre exercer sua vontade com imparcialidade e veracidade. Você não tem o direito de questioná-lo;

Concluindo com a ―pérola‖: Uma boa esposa sabe o seu lugar.

Podemos notar várias dessas dicas presentes na conduta feminina do conto de Vilela, principalmente as que dizem respeito ao bem estar do marido e ao fato da inexistência de reclamações por atrasos ou noites passadas fora. Não cabia à mulher reclamar, afinal ele era o ―dono da casa‖. Na mesma coletânea de 1967 de Luiz Vilela, Tremor de Terra, há ainda outro

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conto que dialoga com a ideia deste modelo patriarcal de casamento . Em ―Nosso dia‖, conto predominantemente estruturado em forma de diálogo, a mulher faz toda a preparação para comemorar o aniversário de casamento do casal. Elabora um bom jantar, arruma cuidadosamente a casa e carinhosamente tenta festejar com o marido, mas este não corresponde aos seus anseios. O homem é rude, trata asperamente a 1 Informações disponíveis em: <http://www.littlethings.com/1950s-good- housewife-guide-vcom/> e <http://awebic.com/cultura/guia-boa-esposa-1950/>. Acesso em: 10 de abril de 2016.

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Também o conto ―Nosso fabuloso tio‖, de Luiz Vilela, No bar (1968), é representativo deste modelo

3 conjugal baseado na submissão da figura feminina.


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companheira, que faz de tudo para agradá-lo. Enquanto ela feliz rememora a data do casamento, como ―um dia tão azul‖, o homem, muito mais interessado em comer e beber, com ―a boca lambuzada de gordura, os fios escuros da barba crescida brilhando‖ (p. 55), responde de modo monossilábico para a esposa, que insiste em puxar conversar e relembrar o dia do casamento. O auge da irritação do homem acontece quando a mulher comenta que comprara lírios para festejar a data, numa tentativa de reproduzir o cenário do casamento. Segue diálogo agressivo, em que, claramente, o homem demonstra sua insensibilidade: – Já vem você... Não precisa fazer essa cara de reprovação, não custaram tão caro assim; você nem sabe quanto custaram... – Não sei nem quero saber; estragaria minha digestão. – Se fosse uma bebida você não falava nada. – Claro, uma bebida... – Mas lírios... – Quê que eu vou fazer com lírios? – É, você não tem mesmo sensibilidade. – Ter sensibilidade com o dinheiro dos outros é fácil. – Pensei que o dinheiro fosse nosso. – É nosso, mas não para gastar à toa. Engraçado, então dou o murro lá na loja para você depois comprar lírios? Tem graça. (VILELA, 1972, p. 57).

Magoada, a figura feminina demonstra sua indignação, reclamando da indiferença do marido com os seus cuidados: ―Foi como se eu não tivesse feito nada disso. Uma palavra, esperava pelo menos uma palavrinha sua sobre o nosso dia, uma palavra de carinho, uma brincadeira... Nada.‖ (VILELA, 1972, p. 57). O homem pergunta à companheira se já acabara de falar e então pede para ela deixá-lo em paz para, em seguida, arrotar e continuar a comer. Pelo diálogo do casal, podemos perceber que à mulher cabe o papel de dona de casa totalmente submissa às grosserias do marido. Mesmo insatisfeita com a convivência não harmoniosa e o modo rude do homem, não resta muitas alternativas à figura feminina. Por não exercer função remunerada, o marido a acusa de gastar à toa o dinheiro que ele custa tanto a ganhar. Na década de 60, esse era o único espaço reservado à maioria das mulheres. O homem sempre dificultou a inserção feminina no mercado de trabalho, afinal, a partir do momento em que ganhassem espaço, o seu seria reduzido. Mas o direito ao trabalho remunerado — a despeito das dificuldades criadas pelos homens e a ala conservadora da sociedade — será a grande conquista para a


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mulher, uma forma de adquirir sua liberdade e autonomia, livrando-se da dependência econômica e abrindo caminho para uma convivência mais harmoniosa entre os pares. Em ―Nosso dia‖, temos o discurso machista, prevendo uma vida estressante para o homem trabalhador, responsável pelo sustento da família, em contrapartida às ―futilidades‖ da figura feminina, preocupada com toalhas novas para a mesa, lírios e adornos para a casa. Aqui vemos mulheres que, socialmente, não estão em nível de igualdade com os homens, pois precisam ser protegidas materialmente por eles, em decorrência de comportamentos impostos pelo regime patriarcal. A dependência econômica sempre foi um grande obstáculo para a emancipação da condição feminina. Originariamente, [o] marido possuía tanto a sua pessoa como os seus serviços, podia alugá- la (e alugou-a) de qualquer modo que lhe aprouvesse e guardar o lucro. Era-lhe permitido processar alguém por dinheiro a ela devido, e confiscá-lo. Tudo o que a mulher adquirisse pelo seu trabalho ou herdasse sob tutela tornava-se propriedade legal do marido. Com excepção do direito de propriedade, as mulheres solteiras tinham quase tão poucos direitos legais como as casadas. O princípio tutelar, frequente na jurisprudência ocidental, colocava a mulher casada numa condição de objecto durante toda a vida. O marido passava a ser uma espécie de tutor legal, como se com o casamento ela passasse a fazer parte da categoria dos loucos e atrasados mentais, que, de um ponto de vista legal, eram também considerados como «mortos aos olhos da lei». (MILLETT, 1975, p. 15).

As transformações pelas quais as mulheres lutam ainda hoje são consequência dessa inferiorizarão histórica do gênero e das formas de representação do papel delegado às mulheres nas sociedades patriarcais. Contudo, não há mais espaço na contemporaneidade para discursos que privilegiem tal condicionamento feminino. Os discursos contemporâneos colocam em cena não só a igualdade entre os gêneros, mas a convivência pacífica entre as diferenças de raça, credo, etnia, cor, cultura e comportamento; não há mais espaço para intolerâncias e posicionamentos discriminatórios. Em sua dissertação de mestrado, Da submissão à dominação: As mulheres na obra de Luiz Vilela, Aline de Sena argumenta que, inicialmente, a mulher foi tratada como uma propriedade que é passada do pai para o marido. A conduta patriarcal era endossada por muitas religiões. Dentre essas, destacavase o cristianismo, que declarava a mulher como origem do pecado. Juntamente com essa visão, foi dado à mulher um estigma, não apenas


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de inferior, mas de possível propagadora do mal. Caso não estivesse sob supervisão masculina, poderia causar problemas para o restante da sociedade. (SENA, 2010, p. 28).

Assim, o comportamento feminino era condicionado, sinalizando a preceitos de ordem religiosa, biológica e psicológica. A crença na superioridade masculina direcionou por longo tempo o relacionamento conjugal, estabelecendo as condutas da maioria dos casamentos. Ao homem cabia o papel de provedor e chefe de família; à mulher submissão absoluta, sua ação restringia-se ao lar. Será a partir da década de 60, com os avanços sociais, principalmente os acarretados pelo feminismo, que a mulher passará a ocupar novos papeis sociais.

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A organização familiar receberá nova

configuração, a divisão do trabalho doméstico e o cuidado com as crianças serão revistos e deixarão de ser responsabilidade exclusiva da mulher. Por outro lado, o homem deixará de ser o único responsável materialmente pela família. Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade (2004), considera o feminismo como um dos grandes avanços da segunda metade do século XX, ao acarretar profundas modificações tanto nas teorias sociais e ciências humanas quanto na organização da sociedade, questionando papeis e conceitos cristalizados. Hall argumenta que o slogan do feminismo era ―o pessoal é político‖, abrindo, assim, para a contestação política, novas áreas da vida social, como a família, a sexualidade, a divisão do trabalho doméstico e o cuidado com as crianças. A partir do momento em que a sociedade sofre mudanças, há reposicionamentos e reconfigurações em vários setores sociais, definindo-se novos paradigmas. Assim, os papeis reservados a homens e mulheres, pelo discurso patriarcal, estão sendo revistos e os discursos contemporâneos promovem e preveem novos comportamentos. Hall chama atenção para o fato de que, na modernidade tardia (segunda metade do século XX), ―as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades‖ (HALL, 2004, p. 9). Assim, os vários movimentos sociais e os debates propostos pelos Estudos Culturais, na segunda metade do século XX, contribuíram para uma nova organização da sociedade em que vozes, antes marginalizadas, são colocadas no centro das discussões. Na atual ordenação, são previstas novas posturas entre os gêneros, em que a

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Nesse contexto, as teorias do feminino, propostas por Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949), foram de grande relevância.


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mulher ocupa papel de igualdade nos relacionamentos amorosos e nos mais variados papéis sociais. Neste contexto, o conto ―A quinta carta‖, de Ivana Arruda Leite, de Ao homem que não me quis (2005), subverte, de modo irônico, o código da memória machista, em especial o ideal de ―príncipe encantado‖, desconstruindo o modelo perpetuado pelo código patriarcal, em ampla revisão da história, com a valorização da voz feminina anteriormente silenciada pelo discurso oficial. Transcrevemos o conto: ―A quinta carta‖ Certa vez uma cartomante me disse que eu não demoraria a encontrar o homem da minha vida. Eu o reconheceria de imediato. Nós nos casaríamos, moraríamos numa casa com gerânios na janela e teríamos um casal de filhos. O Grande Sacerdote, a quinta carta na casa sete, garantia isso. Dias depois, eu descia distraída a avenida Rebouças quando vi ao meu lado o Grande Sacerdote numa Belina branca. Sem dúvida, era aquele o homem por quem esperei a vida inteira. Podia adivinhar-lhe o corpo, o cheiro da pele, a voz. Nós nos casaríamos, moraríamos numa casa com gerânios na janela e teríamos um casal de filhos. Avancei em ziguezague no meio dos carros tentando alcançálo, mas o Grande Sacerdote deu seta e entrou à direita na Capote Valente. Foi assim, por uma fração de segundos, que eu perdi o homem da minha vida. O destino sempre cumpre o que promete, mas o trânsito nem sempre ajuda. (LEITE, 2005, p. 23 )

Percebemos uma voz feminina, que ironiza e satiriza o discurso do príncipe encantado, perpetuado ao longo de séculos. A narradora do conto coloca em cena a subjetividade da mulher contemporânea liberta das amarras cerceadoras do código patriarcal. Joga com as imagens da Belina branca — o cavalo branco — para construir a atmosfera de um conto de fadas às avessas. Afinal, em 2005, a Belina branca já era um modelo ultrapassado. Podemos pensar que a ideia do ―Grande Sacerdote‖, carta do tarô representativa de poder e sabedoria, dando seta e saindo da vida da personagem, de algum modo ironiza a imagem de poder e sabedoria delegada à figura masculina ao longo da história. Originariamente, [o] marido possuía tanto a sua pessoa [da mulher] como os seus serviços, podia alugá- la (e alugou-a) de qualquer modo que lhe aprouvesse e guardar o lucro. Era-lhe permitido processar alguém por dinheiro a ela devido, e confiscá-lo. Tudo o que a mulher adquirisse pelo seu trabalho ou herdasse sob tutela tornava-se propriedade legal do marido. Com excepção do direito de propriedade, as mulheres solteiras tinham quase tão poucos direitos legais como as casadas. O princípio tutelar, frequente na jurisprudência ocidental, colocava a


169 mulher casada numa condição de objecto durante toda a vida. O marido passava a ser uma espécie de tutor legal, como se com o casamento ela passasse a fazer parte da categoria dos loucos e atrasados mentais, que, de um ponto de vista legal, eram também considerados como «mortos aos olhos da lei». (MILLETT, 1975, p. 15).

Em ―A quinta carta‖ não interessa saber se o destino se cumpre, mas a postura irônica da personagem frente ao futuro que lhe escapa. Há claro diálogo com a famosa personagem de Clarice Lispector, Macabéa, de A hora da estrela (1977). Macabéa sai da cartomante entontecida por suas previsões, sonhando com o príncipe encantado, o gringo de ―olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos‖ (LISPECTOR, 1998, p. 77), que traria fortuna para sua vida miserável, e acaba sendo atropelada por sua Mercedes amarela. Em atitude sarcástica e irônica, a narradora do conto de Ivana diverte-se com os desencontros com seu príncipe encantado, em franca atitude de descrença deste imaginário, ―Foi assim, por uma fração de segundos, que eu perdi o homem da minha vida‖, para concluir de modo satírico: ―O destino sempre cumpre o que promete, mas o trânsito nem sempre ajuda‖. Diferentemente da personagem de Clarice, o destino não foi tão cruel com a personagem de Ivana, pois esta não condiciona sua vida à existência de um parceiro amoroso. Afinal, a vida segue seu curso. Podemos inferir da narrativa de Ivana uma crítica às condições oferecidas à mulher, cuja identidade se estruturava basicamente em torno dos ideais do amor e do casamento. Com o diálogo entre os contos de Vilela e Ivana, podemos perceber representações literárias da absoluta submissão feminina aos novos reposicionamentos sociais da contemporaneidade. À mulher do século XXI já não cabe esperar pelo homem que direcionará seus caminhos, cabe a ela traçar sua trajetória na sociedade, escolhendo seus papéis e funções, fugindo dos estereótipos.

Referências: CARVALHO, Lúcia Helena de O. V. A ponta farpada ou o lugar marcado da mulher no discurso da tradição. In: GOTLIB, Nádia Batella (Org.). A mulher na literatura. Vol. II. Belo Horizonte: UFMG, 1990. p. 35-41. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. LEITE, Ivana de Arruda. Ao homem que não me quis. Rio de Janeiro: Agir, 2005.


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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MAJADAS, Wania de Sousa. O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela. Uberlândia, MG: Rauer Livros, 2000. 204 p. MILLETT, Kate. Política sexual. Trad. Alice Sampaio, Gisela da Conceição, Manuela Torres. Lisboa: Dom Quixote, 1975. RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. Faces do conto de Luiz Vilela. Araraquara, SP, 2006. 2 v. xiv, 547 f. Tese (Doutorado, Estudos Literários) - FCL-Ar, Unesp. Disponível em: http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/fortuna-critica.html. Acesso em 15 de set. de 2015. RODRIGUES, Rauer Ribeiro. "Era aqui", ficção e sociedade em um conto de Luiz Vilela. Revista Alēre, UFMT, Tangará da Serra, MT, v. 6, n. 6, dez. 2012, p. 123-134. SENA, Aline de Jesus. Da submissão à dominação: As mulheres na obra de Luiz Vilela. Campo Grande, MS, 2010, 149 fls.. Dissertação (Mestrado, Estudos de Linguagens) — PPGMEL, UFMS. Disponível em: http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/fortuna-critica.html Acesso em: 14 de dez. de 2015. SOUZA, Eunice Prudenciano de. Em busca da infância perdida em "A Volta do Campeão". Cadernos de Semiótica Aplicada - CASA, v. 11, n. 2, dez. 2013. SOUZA, Eunice Prudenciano de. Em Luiz Vilela, a volta ao passado e à infância como reinvenção dos sonhos perdidos. XIII Congresso Internacional da Abralic, Campina Grande, 2013. VAZ, Paula Gerez Robles Campos. Configurações do amar: as afetividades em Luiz Vilela. 2008. 209 p. Mestrado. Universidade Estadual de Londrina – Letras. VILELA, Luiz. No bar. São Paulo: Ática, 1968. VILELA, Luiz. Tremor de terra. 3 ed. Rio de Janeiro: Gernasa, 1972. VILELA, Luiz. A cabeça. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. VILELA, Luiz. Você verá. São Paulo: Record, 2013.


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A VIOLÊNCIA EM UMA NOVELA DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Juliana Cláudia Teixeira Gomes Borges Amorim (UFMS/CPAN)

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Resumo: Este trabalho, embasado em pesquisa bibliográfica, versa sobre a temática da mulher na novela Filho de Pinguço, de Alciene Ribeiro Leite. Descrevemos as personagens femininas à luz da violência simbólica que sofrem, conceito proposto pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, de maneira a apontá-la e descrever de que forma se dá. Percebemos que, embora na novela se tratem de personagens secundárias, as mulheres retratadas são símbolos da denúncia de um mundo ainda marcado pelo machismo e dominação masculina, onde a mulher é objeto de desejo e desconsiderada como ser pensante dotado de direitos. A novela sugere um início da quebra da violência simbólica em algumas personagens, que já ensaiam as primeiras vozes de liberdade. No entanto, evidencia o quanto as mulheres ainda estão longe de romperem com o status quo patriarcal. Palavras-chave: Feminismo. Literatura Brasileira. Pierre Bourdieu. Violência simbólica.

Introdução

A novela Filho de Pinguço de Alciene Ribeiro Leite, lançada em 1983, classificada como literatura infantojuvenil, aborda uma ―cotidiana‖ tragédia familiar, com maturidade de enredo de gente grande e que merece estudo, como o que propomos nesse trabalho, e ainda outros, que certamente virão com o tempo. Por meio de pesquisa bibliográfica versaremos sobre a temática da mulher com o recorte da construção das personagens. Na obra, as mulheres são personagens secundárias, envoltas ― a nosso ver ― em situação de violência simbólica, conforme

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proposição teórica elaborada por Pierre Bourdieu (2002) , da qual nem se percebem vítimas. Acreditamos que tal tema desperte reflexões acerca da segregação feminina e, também, sobre o contexto violento em que se encontravam as mulheres do passado e ainda algumas no presente. Nosso objetivo é o de analisar a violência simbólica sofrida pelas personagens femininas, bem como descrevê-las e conhecer como se dá a opressão sofrida pelo universo feminino no âmbito familiar. Partimos do pressuposto ― e pretendemos, com 1 2

Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues. Utilizamos de Bourdieu (2002), o livro A dominação masculina.


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este trabalho, comprovar tal questão – que as mulheres da novela de Alciene internalizam a sociedade repressora que as envolve e sequer percebem a violência simbólica a que estão submetidas. Nossa proposição é de que as ―mulheres‖ de Alciene, embora em Filho de Pinguço se tratem de personagens secundárias, são símbolos de denúncia de um mundo ainda marcado pelo machismo e dominação masculina, onde a mulher é objeto de desejo e desconsiderada como ser pensante e dotada de direitos.

A autora e a novela

Nascida em 1939, Alciene Ribeiro Leite é mineira de Ituiutaba e iniciou sua carreira como escritora de literatura em 1976, nas páginas do Suplemento Literário de Minas Gerais. A primeira obra teve como título Eu choro do palhaço e, lançado em 1978, foi considerado o melhor livro de contos daquele ano pela União Brasileira de Escritores. Com mais de 20 títulos no mercado, a escritora atua também como ghost-

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writer , revisa textos, realiza leituras críticas e nos anos 1990 e 2000 escreveu obras espíritas autorais. Desde 2010, retomou as obras ficcionais e tem um romance inédito em que talvez faça uma síntese da ficcionista dos anos 1970/1980 com a tendência espiritualista das duas décadas seguintes. Conforme Amaral e Rodrigues (2014), Alciene não concluiu, na adolescência, o estudo secundário, antigo ginásio, e só voltou aos bancos escolares em 1967, concluindo o curso Normal em 1971 e se licenciando em História em 1975, aos 37 anos de idade. Ao lado da trajetória doméstica, como mãe de três filhos, e da trajetória escolar e acadêmica retomada, foi líder estudantil, fundou grêmios, criou jornais, militou em teatro amador e presidiu um Centro de Estudos, que recebeu o nome de Sérgio Buarque de Hollanda. Filho de Pinguço, lançado em 1983, foi apontado na época como o único texto brasileiro destinado a adolescentes e jovens cuja temática tratava, sob ótica terna e com profundo sentimento, do problema do alcoolismo. Considerado um livro tenso, de texto trabalhado e envolto de emoções, rendeu à autora o Prêmio Coleção do Pinto. A

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Aquele que escreve para outras pessoas, por encomenda e mediante um contrato entre as partes, sobre os mais variados assuntos.


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escritora também receberia, ao longo dos anos, outras premiações, como o Galeão Coutinho e União Brasileira de Escritores, e ainda o selo ―Altamente Recomendável

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da FNLIJ‖, esse para o livro infanto-juvenil Drácula Tupiniquim. Por sua trajetória de vida e sob a condição de resgate do ―ser mulher também para o mundo‖, temos que a obra de Alciene não deve encerrar apenas mais uma história para jovens, sob linguagem simples e clara, mas também tratar-se de texto denunciativo e reflexivo acerca dos problemas enfrentados por aquele ―novo‖ Brasil dos anos 80 e de seu mais genuíno representante: o povo brasileiro. Nas 48 páginas da edição de 1989, temos o retrato de uma família pobre, imersa em um novo paradigma social e político do país tropical daquela época e que, à margem da sociedade dominante, tem seus membros como algozes e vítimas uns dos outros, e que sofre calada um dos mais cruéis tipos de violência: a simbólica. A história começa no domingo com o pai alcoolizado desde sexta-feira. O menino é o responsável por pegar, sem pagamento, bebidas e cigarros para o pai no botequim do bairro, de propriedade do português senhor João. Lá, se sente envergonhado por não levar dinheiro e é alvo de chacotas por parte do comerciante e de alguns de seus fregueses. E, é lá que também ―sonha‖ em comprar alguns doces expostos na vitrine, sem ter coragem de comprá-los fiado, mesmo com autorização paterna. Em casa depara-se com a ―ameaça‖ da violência do pai, ora contra ele, ora contra a mãe. Essa, por sua vez, tem no menino o depositário de suas reclamações, que também reclama para as irmãs, quando chegam para uma visita. Durante a história sabemos que o menino é também ridicularizado na escola, alvo de piadinhas realizadas por colegas, que culminam em uma briga na segunda-feira, após o fim de semana prolongado. Após ser chamado de ―filho de pinguço‖, agride e também é agredido fisicamente por um dos colegas, chegando a casa machucado. Lá é recebido pela mãe com curativos, lágrimas, lamentações e recomendações para que não se envolva em brigas pelas ruas. Na chegada do pai é tratado por esse com respeito pela valentia, pois associa o comportamento agressivo do filho a ato de bravura e macheza. Por fim, o pai é humilhado pela mãe e pelo menino ao revelarem a razão da briga: o filho ter sido chamado de ―filho de pinguço‖.

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Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.


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As mulheres brasileiras e o século XX

A ideia de ser disseminadora do pecado, herdeira da primeira fêmea da história da humanidade, também contribuiu para que a mulher brasileira carregasse ao longo de 400 anos todo tipo de violência causada principalmente pelo macho da sua espécie. Conforme Mary Del Priore (2011), ainda em meados do século XX, continuavase a acreditar que ser mãe e dona de casa era o destino natural das mulheres, cabendo à masculinidade a iniciativa e a participação no mercado de trabalho e, também, a força e o espírito de aventura. Sobre o comportamento, ainda não importavam os desejos ou a vontade de agir espontaneamente, mas as regras e as aparências. Priore (2011) afirma que a medida da felicidade conjugal era baseada no bemestar do marido, e esse seria resultado das ―prendas domésticas‖ da companheira, afinal, a mulher ―conquistava pelo coração e prendia pelo estômago‖. A boa esposa seria a que não criticava, que evitava comentários desfavoráveis, a que se vestia sobriamente, a que limitava passeios quando o marido estivesse ausente, a que não era muito vaidosa nem provocava ciúmes no marido. As personagens femininas em Filho de Pinguço, situadas em meados do século XX, já estudam, já podem sair de casa sem a companhia dos homens e, ainda que sob resmungos, já se mostram contrariadas e fazem pequenas reclamações. Todavia, continuam sob violência dos seus pares ou mesmo por outras mulheres, ainda são vistas como objeto sexual e ainda devem respeito e obediência aos companheiros. A vontade desses, sobretudo se sexual, deve ser atendida em detrimento da falta de desejo da companheira, pois o importante, acima de tudo, era conservar o casamento, pois uma vez largada, caberia à mulher ser entregue à solidão e maledicência da sociedade. O referente histórico se presentifica, ficcionalizado.

A mulher em Filho de Pinguço Com exceção da ―mãe‖, que está presente ao longo de toda a narrativa, muitas das personagens femininas são citadas uma única vez. São elas: tias Marlene e Marina; prima Sílvia e tia Luíza, a professora.


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Sobre as personagens femininas de Filho de Pinguço não há quaisquer descrições físicas, sobretudo que as diferenciem. Percebemos que elas são os ―enfeites‖ ou ―atrizes secundárias‖ no teatro puramente masculino. São representadas como objetos de desejo, mães, esposas, cuidadoras do lar, empregadas e, em decorrência disso, não apresentam ações genuínas ou próprias, autônomas (aspas nossas). Por não termos suas descrições físicas, nãos as sabemos bonitas, feias, magras ou gordas, mas suspeitamos que nem mesmo elas se descreveriam, porque seguem a rotina, parecendo conformadas com a vida que levam, e seguem pobres, cuidam dos filhos e, às vezes, quase às escondidas, reclamam da própria sorte. Maria Quartim de Moraes (1975) já havia mencionado que de todas as armadilhas prontas para aprisionar o sexo feminino não existe outra maior do que a sensação de solidão, impotência e fracasso individual com que a mulher enfrenta as dificuldades em se amoldar aos ―padrões femininos‖; em viver seu ―destino de mulher‖.

A autora considera, ainda, que a dificuldade em encontrar a própria identidade no quadro estreito das características psicológicas femininas específicas, como criar filhos, provocar paixões ou cozinhar, só é superada pela de se posicionar socialmente, de se entender como mais uma sofrendo os mesmos problemas e vivendo as mesmas perplexidades. As personagens são iguais a tantas outras mulheres que, apenas para se manterem ―situadas‖ socialmente (mães, esposas, filhas), sofrem caladas, e mesmo quando falantes, ao se perceberem sofredoras, seguem a vida, criando filhos e maridos, e cozinhando comida e gente, ―cozinhando‖ elas mesmas, vítimas de silenciosa violência simbólica. Ao longo da novela ―presenciamos‖ violência, sobretudo emocional, pois que as mulheres parecem existir para os homens apenas como objetos. O castigo imposto a elas

é de total ―abandono‖. Michel Foucault (1987) afirma que também as formas de punição mudaram ao longo dos séculos. Não seria mais o corpo a ser punido, mas a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deveria suceder um castigo sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições: Momento importante. O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são substituídos. Novo personagem entra em cena, mascarado. Terminada uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea. (FOUCAULT, 1987, p. 20).


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Acreditamos que as mulheres de Alciene são vítimas de uma violência silenciosa, cada uma sob uma forma, mas todas violentadas. Sem reconhecimento, quase sem voz, sem vontade. Sob a definição bourdieusiana de violência simbólica, dissertaremos sobre a forma como tais personagens são na novela vitimadas pelos homens. Vasconcellos (2002), quando em seus estudos sobre o sociólogo Pierre Bourdieu, aponta que o francês tentou desvendar por meio do conceito de violência simbólica o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como ―natural‖ as representações ou as ideias sociais dominantes. [...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante [...] de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento [...] (BOURDIEU, 2002, p. 5-6).

As personagens de Alciene são mulheres comuns, que apesar das reclamações parcas de algumas delas, não parecem perceber que são vítimas de violência, já que não consideram possíveis quaisquer mudanças, tampouco exigem direitos. Agem como se não houvesse outra forma de agir. Eis o referente ao qual o universo ficcional se refere: A sexualidade feminina é prisioneira, portanto, dos estreitos limites sociais em que se desenrola a vida da mulher. A sociedade fragmenta o indivíduo tanto por causa do modo em que as condições materiais de existência são produzidas e reproduzidas (separação do produtor dos meios de produção; atividade econômica orientada pela busca do lucro e não pela satisfação das necessidades do homem), quanto pela divisão sexual das atividades e da vida social de modo geral. A esfera pública – o mundo do trabalho, da política, do poder e da autoridade – é essencialmente masculina, enquanto que a ―realização pessoal‖ da mulher encontra-se comprometida com o espaço em que se situa a esfera privada (a casa, o lar). E se a dicotomia público/privado é vivenciada pelo homem de maneira a privilegiar a ―realização‖ no trabalho (no público) e, secundariamente no privado (lar-mulher-efilhos sendo sinônimos de ―repouso e refúgio do guerreiro‖) a mulher recebe a esfera privada como locus apropriado para a história de sua vida (MORAES, 1975, p. 70, grifos nossos).

Parece que tudo conspira para a manutenção do silêncio e do silenciamento da mulher e do feminino. Sob dogmas passados pela Igreja, pelas mães e mães de suas


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mães, e de umas para as outras, ou pelo sistema político econômico vigente, cujo grande ―mantenedor‖ é o homem, essas mulheres simplesmente aceitam seu destino.

As personagens femininas

Neste tópico, apresentamos de forma sucinta, as personagens femininas da novela Filho de Pinguço, enfatizando a violência simbólica e a estrutura subliminar, social, familiar e psicológica, que as constrange, e o grito libertador que pulsa em cada uma, que lateja se manifestando de algum modo nas entrelinhas do narrado, pela focalização aderente do narrador ao drama feminino. A “mãe” A personagem mãe tem voz – na verdade, resmungos. É por meio deles que demonstra em alguns momentos sua inquietação, longe de ser uma indignação, diante da violência sofrida e, por algumas vezes, chegou a empurrar o marido, mas talvez por medo ou desconhecimento, acaba por empurrar a vida para garantir a diversão da televisão e da novela preferida. Já no início da obra a vemos reclamar do domingo, como sendo o dia no qual mais trabalha, trabalho que não é reconhecido nem mesmo pelo filho. Moraes (1975) lembra que, se em períodos passados a unidade doméstica constituía a célula produtiva das sociedades, a separação histórica entre lar e local de trabalho processou-se concomitantemente às transformações no processo de produção, levando à perda de importância do papel econômico da família. Se por um lado a produção fora de casa tornou-se sinônimo de trabalho, as atividades realizadas no lar passaram a não ter valor, uma vez que foram então consideradas como prolongamentos naturais das características específicas (biológicas) do sexo feminino. Para a autora, o trabalho doméstico perdeu toda a aparência de atividade produtiva, pois é realizado fora do processo capitalista de produção e circulação de mercadorias. Entretanto, as tarefas no lar também absorvem tempo e dispêndio de energia, apesar de estarem mistificadas sob a capa do ―natural‖, da ―vocação‖ feminina. A ―mãe‖ mesmo reconhecendo que não vive um bom casamento e considerando o marido um ―traste‖, diz não o abandonar por temer pelos filhos, quando na verdade,


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enfatiza que não o faz por ter um nome a zelar, no que é corroborada pela irmã. Mais vale aguentar a situação a ser uma mulher ―largada‖ na ―boca do povo‖: [...] ―Inferno é o meu, que tenho um nome a zelar, os meninos; não fosse, largava o traste ―mãe. ―Cruz-credo, irmã, mulher largada cai na boca do povo ― tia Marlene. [...] (LEITE, 1989, p.13).

Mesmo bêbado, sem tomar banho, o marido reclama seus direitos de ―esposo‖, enfatizando que se o faz, faz sob reconhecimento jurídico e religioso sobre a posse da ―mulher‖, de seu corpo, de seu ―sexo‖. O desejo do homem é justificável. Se ele exige a atenção da mulher também para a relação sexual é porque é esperado que seja assim, posto que todo homem brasileiro tem por direito sua bebida, seu esporte e sua mulher. Bourdieu (2002) afirma que o princípio da inferioridade e da exclusão da mulher, a ponto de fazer dele o princípio de divisão de todo o universo, não é senão a que estabelece a dissimetria fundamental, ou seja, a do sujeito e do objeto, do agente e do instrumento, instaurada entre homem e mulher no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo principal é o mercado matrimonial. A ―mãe‖ não tem interesse na continuação do diálogo com o marido, tenta se esquivar, mas é repreendida, tal a um empregado pelo seu patrão, quando na falta de uma tarefa executada. O marido, aqui na condição de sujeito, reclama seus direitos sobre o objeto que lhe pertence: [...] ―E daí, deixo o feijão queimar e depois, o quê que eu dou para seus filhos comer? Cerveja por acaso? Cerveja? Ah, me larga, que coisa, nem tomou banho, escovou dente. ―Está importante a madame, cheia de pose hem? Mas tem obrigação comigo, que diabo. Sou seu marido na igreja e no cartório. E comigo é na hora do pinicão. Sustento você para quê, hem, para quê? Para bater perna na rua, maldizer da vida alheia? Uma bisca sem serventia, só isso que você é, uma bisca [...] (LEITE, 1989, p.20, grifos nossos).

As reclamações do marido são para ele justificadas pela justiça dos homens e da igreja. A mãe por outro lado, não percebe que, mais que uma trabalhadora do lar, é uma escrava, pois não tem dia para descanso. E os dias se repetem sem que ela perceba a própria rotina.


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Foucault (1987) afirma que o corpo também está diretamente mergulhado num campo político. Para o autor, as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais: [...]. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e, no entanto, continuar a ser de ordem física [...] (FOUCAULT, 1987, p.29).

A mãe não está satisfeita com a vida que leva, mas com o intuito de preservar a cria e o próprio nome, aceita a violência imposta pelo marido, para além do desejo de liberdade. Com exceção de alguns resmungos, a vida segue sua normalidade, ainda que tenha medo e indignação. Cabe ao narrador, por suas estratégias narrativas, pela escolha lexical, pelas opções textuais, pelos significados discursivos construídos pelos efeitos de sentido gerados pela arquitetura da novela, indiciar o suspiro pela liberdade e a crítica à opressão. 

Tias Marlene e Marina Essas são as irmãs da ―mãe‖ que aparecem aos domingos com a filharada. Tia

Marlene tem marido mulherengo e tia Marina, um que não trabalha. Elas e a irmã (―mãe‖) tentam defender como sendo ―sua‖ a desgraça maior. Para tia Marlene, a ―mãe‖ do menino está melhor com um marido ―beberrão‖, do que ela que tem um que é mulherengo. Para tia Marina seu sofrimento é ter o marido em casa à toa, sem trabalho. O que ambas concordam é que pior seria ficar sem o marido, pois sem eles, seriam ―mulheres largadas‖.


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As tias são a representação da violência silenciosa e esta é para elas mais que justificada, pois dispensa justificação. Para Bourdieu (2002), a própria ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça e que tem distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos sexos: reserva-se o mercado público aos homens e a casa – o domus, a vida restrita – às mulheres. Para essas mulheres, a liberdade não é maior do que o medo da solidão ou da maledicência. Acabam por seguir a vida sem muito questioná-la e esperam passivas pela morte, único meio capaz de arrebentar os grilhões que as prendem a maridos inúteis, que desprezam.

Prima Sílvia Prima Sílvia personifica o desejo do primo, o ―menino‖. Na paquera com ela,

afirma que a prima ―é receptiva, claro‖. Prima Sílvia ainda é jovem, mas já é vista como objeto da dominação masculina. Para a figura masculina, tanto do ponto de vista do pai, quanto do menino, ela é tentação e, portanto, objeto de desejo e malícia. Como o pinguço é retratado de modo derrisório por seus gestos, por suas palavras, pela embriaguez, pelo equilíbrio físico precário e moralmente deplorável, seu desejo quase incestuoso, sua fala exaltadora do desejo masculino sem freios e sem respeito ao desejo ou ao não-desejo feminino, eleva por antítese aqueles a quem agride. Prima Sílvia, personagem evocada e passiva, ganha foros de agredida e desperta sentimento compassivo por oposição ao bêbado que a descreve. 

Tia Luiza (a professora) Tia Luíza é professora tendo, portanto, estudado mais que as outras personagens.

Ainda que sofra violência como outras mulheres de hoje, pelo fato de ―abandonar‖ o lar, filhos ou marido, para trabalhar, isso não fica evidente na história. Ela não está mais dentro de casa e, na sala de aula, onde exerce sua autoridade sobre os alunos, mostra-se dotada de força e capacidade.


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― Toda bebida que contém álcool é uma bebida alcoólica. Atenção aqui, todo mundo, não é só ele não ― bate na mesa. ― A palavra se explica, bebida alcoólica, contém álcool. ― Escreve no quadro: álcool/ alcoólica. ― Cerveja tem álcool, hem tia? ― um gaiato perguntou lá atrás. ― Tem... cerveja tem álcool... ― olhou de soslaio para o menino, caiu em si. ― Vamos ao ponto, quem não entendeu a fotossíntese? ― Voltou-se cúmplice para ele: ― Qualquer dúvida me procure depois da aula, viu? (LEITE, 1989, p.15).

Sob posição firme com os alunos ao perceber que a dúvida surgida tinha o propósito de constranger um deles e tal qual a figura materna, Tia Luíza demonstra compaixão para com o aluno agredido e esclarece que poderia ajudá-lo a sanar dúvidas também em outro momento, longe das chacotas dos colegas. A compaixão, com o sentido de se colocar no lugar do outro, como o faz a professora, também a liberta da rede de violência simbólica de outras personagens femininas. Na dor do outro, numa espécie de catarse, ela sai da posição de vítima e se torna autora da sua história.

Considerações Finais Ainda que, em Filho de Pinguço, a personagem central seja um menino, sobretudo pela evidência do título, e ainda que estejam ao fundo da cena, sob personagens secundárias, são as mulheres que mereceram nossa atenção e estudo neste trabalho. Para descrever a novela de Alciene Ribeiro Leite, tivemos contato com a fortuna crítica de sua obra, fortuna ainda incipiente, e nos debruçamos sobre os poucos dados biográficos disponíveis. O conceito teórico central de que nos valemos para o estudo das personagens foi o de violência simbólica, proposto por Pierre Bourdieu (2002). Apesar de ter sido lançada no final do século passado, em 1983, a obra apresenta temáticas atuais e relevantes para a sociedade, como o problema do alcoolismo, que atinge milhares de famílias brasileiras, e a condição feminina. Tratam-se, em sua maioria, de mulheres segregadas pelos afazeres domésticos, cuidados com os filhos e com o marido; elas estão ―presas‖ à televisão, mas também, e principalmente, submetidas à violência simbólica, imposta ora pelo companheiro, ora pelo filho, ora pela família, ora por certo difuso entorno social, ora por outras mulheres. São vistas apenas pela função de organizadora do lar e como objeto de desejo. Ainda que insatisfeitas, demonstrando isso aqui ou ali e de modo mais evidente quando com


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outras mulheres, preferem aceitar os maus tratos de que são vítimas; no caso da mãe, prefere a verborreia do marido, sua bebedeira e a falta de dinheiro, a viver sozinha, passando a ser considerada ―largada‖ pela sociedade. A violência na obra é contra a alma, já que a mulher tem suas vontades e desejos desrespeitados e é vítima constante de maus tratos e desprezos. O trabalho dentro de casa não é visto como uma função útil e, sob o império do casamento, é obrigada a servir ao marido, seja na mesa ou na cama. Alciene Ribeiro Leite, em sua obra e na construção ficcional das personagens femininas de Filho de Pinguço, é a voz feminina falando por outras mulheres. Conforme sua trajetória de vida e profissional, iniciada tardiamente, há de ter percebido, ou algumas vezes vivenciado, pequenas lacunas na vida de muitas mulheres. Há um início da quebra da violência simbólica em algumas personagens da novela. Umas já estudam, algumas já ensaiam as primeiras vozes de revolta, mas ainda estão longe da liberdade (toda elas!).

Referências:

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PRIORE, Mary Del. Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. VASCONCELLOS, Maria Drosila. Pierre Bourdieu: a herança sociológica. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, abril/2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n78/a06v2378.pdf >. Acesso em: 17 fev. 2016.


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ALGUNS ELOQUENTES SILÊNCIOS NA LITERATURA MODERNISTA BRASILEIRA Julio Augusto Xavier Galharte (UFMS/CPAN) Resumo: Trata-se de uma análise em torno de alguns dos polissêmicos silêncios que se evidenciam nos escritos de três autores do Modernismo brasileiro: Mário de Andrade, Manoel de Barros e Clarice Lispector. Será dada atenção ao procedimento desses autores de criarem personagens ou sujeitos poéticos afeitos à mudez com diferentes matizes de significação, ora negativos, ora positivos, já que eles podem mostrar a falta de palavras ante atmosferas bélicas ou a imersão no quietismo de vibrações místicas, só para mencionar alguns exemplos. Existe também o silêncio associado aos próprios autores que desejam que os leitores apreendam não só o dito no texto, mas também o não dito, perseguindo tesouros semânticos no subtexto, numa dinâmica da ―palavra pescando a não palavra‖, como sugeriu Lispector. O eixo teórico desta análise acopla algumas reflexões de Walter Benjamin (―O narrador‖), George Steiner (―O repúdio à palavra‖ e ―O poeta e o silêncio‖), Santiago Kovadloff (O silêncio primordial) e Eni Orlandi (As formas do silêncio: no movimento dos sentidos). Palavras-chave: Silêncios; Mário de Andrade; Manoel de Barros; Clarice Lispector.

―Eu escorregava nesses silêncios‖. (Angústia, de Graciliano Ramos).

Três importantes escritores brasileiros, Mário de Andrade, Manoel de Barros e Clarice Lispector, manifestaram fundo apreço pelo tema do silêncio, matizando seus significados. O pluralismo semântico é a marca da suspensão verbal. Eni Puccinelli Orlandi, em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, indica: “Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‗um‘, para o que permite o movimento do sujeito‖. (ORLANDI, 1995, p. 13). Com o intuito de comprovar que o mutismo não se reduz ao que é ―um‖, mas se amplia em universos plurais, Eni indica que ele pode sugerir introspecção, resistência, exercício do poder, contemplação, derrota da vontade, etc. (ORLANDI, 1995, p. 44). Um exemplo da quietez que revela derrota da vontade pode ser encontrado em um trecho de Macunaíma, de Mário de Andrade, obra lançada em 1928: o silêncio avulta-se quando o protagonista e seus irmãos, depois de procurarem em vão a muiraquitã, um amuleto dado por Cy a Macunaíma, deixam-se abater por um calado desânimo.


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Em outra passagem do romance, a inarticulabilidade volta a se aliar ao abatimento, mas dessa vez está relacionada à saudade que o protagonista sente da sua amada, que virou estrela, distanciando-se dele: (Macunaíma) Gritava: — Lembrança! Lembrança da minha marvada! não vejo nem ela nem você nem nada! (...). As lágrimas pingavam dos olhinhos azuis dele sobre as florzinhas brancas do campo. (...). O herói não podia mais, parou. Cruzou os braços num desespero tão heróico que tudo se alargou no espaço pra conter o silêncio daquele penar. (ANDRADE, 2004, p. 156-157, o grifo é meu.).

O quietismo pode associar-se não só à tristeza, mas tem a possibilidade de apoiar-se em seu contrário, ou seja, na alegria, às vezes envolta no humor, como numa passagem risível dessa obra. No mato, em meio à algazarra dos pássaros, Macunaíma impõe silêncio: Era uma bulha de águas deuses e passarinhos que nem se escutava mais nada e a igarité meio parava atordoada. Mas Macunaíma assustando os legornes riscava de quando em vez um gesto diante de tudo e gritava: — Era uma vez uma vaca amarela, quem falar primeiro come a bosta dela! Dem-de-lem chegou! O mundo ficava mudo não falando um isto e o silêncio vinha amulegar a mornidão da sombra na igarité. (ANDRADE, 2004, p. 132-133).

Macunaíma, como notou Flávio Aguiar (1988, p. 30), inicia-se e finaliza-se com o silêncio. Nessa obra (cujo protagonista passa seus seis primeiros meses de vida sem falar), polissêmicos mutismos podem ser detectados em outras passagens, além das já mencionadas. É o caso de um trecho em que a suspensão da palavra se associa ao calor do sol e à preguiça típica do protagonista: ―Principiou um calorão (...). Macunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo... – Ai... que preguiça...‖ (ANDRADE, 2004, p. 66). ―E o silêncio alargando tudo...‖, essa frase resume bem as amplidões semânticas do quietismo em Macunaíma, pois ainda há nessa obra ―o silêncio sagrado‖ (ANDRADE, 2004, p. 61), ―o silêncio fatigado‖ (ANDRADE, 2004, p. 63) e ―um silêncio imenso‖ que ―dormia à beira-rio do Uraricoera‖. (ANDRADE, 2004, p. 161). Nos livros de poemas de Mário os silêncios também multiplicam-se em seus significados. Em ―O grifo da morte‖, do Livro azul (1941), surge o ―silêncio monótono‖ e, em Clã do jabuti (1927), a quietez, ao deslocar-se por Belo Horizonte, muda de


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significado de acordo com os espaços pelos quais passa: ―Um silêncio repleto de silêncio/ Nas invernadas, nos araxás/ No marasmo das cidades paradas.../ (...) Silêncio brincalhão salta das árvores,/ Entra nas casas desce as ruas paradas/ E se engrossa agressivo na praça do Mercado‖. (ANDRADE, 2013, p. 247; 250). Em Remate de males (1930), aparece outro sentido para o silêncio, pois o sujeito poético afirma que há ―o mutismo exaltado dos astros‖ (ANDRADE, 2013, p. 352). Ainda em Remate de Males, no poema ―Danças‖, o sujeito poético afirma: ―Converso pouco e escuto muito‖ (ANDRADE, 2013, p. 308) e no ―Improviso do mal da América‖, do mesmo livro, surge esta afirmação: ―meus ouvidos vão escutar amorosos/ Outras vozes de outras falas, de outras raças, mais formação, mais forçura‖. (ANDRADE, 2013, p. 374). Assim, evidencia-se, nesses casos, o silêncio da escuta, ou seja, aquele ligado ao autor desses versos, que emudecia para ouvir as falas e as histórias populares do Brasil. Há também mutismos nas narrativas curtas de Mário de Andrade, como naquelas reunidas no livro Contos novos (1947). Em ―Atrás da Catedral de Ruão‖, por exemplo, aparecem os quietismos de cunho negativo, como o ―silêncio infeliz‖ (ANDRADE, 1993, p. 58), ―os silêncios desagradáveis‖ (ANDRADE, 1993, p. 63) e ―o silêncio torvo‖ (ANDRADE, 1993, p. 69). No entanto, em ―Frederico Paciência‖, outro conto do mesmo livro, surge um silêncio com sentido positivo: a mudez amorosa. Antes da interpretação da narrativa, atentemos para o que seria esse tipo de mutismo. Em uma passagem do seu Diário, Soren Kierkegaard afirma: ―O amor gosta do silêncio‖ (apud: KOVADLOFF, 2003, p. 173). O ensaísta Santiago Kovadloff amplia a discussão: A autêntica eloqüência do silêncio amoroso se desdobra fora da consciência subjetiva, no seio da gestualidade corporal; na carícia lenta que traça seu itinerário, no fervor de um beijo, no arrebatamento de um abraço, na vertigem da penetração, na ascenção do gozo e na esmagadora dissolução do orgasmo. (KOVADLOFF, 2003, p. 163164).

No conto ―Frederico Paciência‖, Juca, que é o narrador e protagonista, e Frederico Paciência experimentam várias situações reveladoras do silêncio amoroso. Eles não chegam a conhecer sua ―esmagadora dissolução do orgasmo‖, apontada por Kovadloff, pois não têm relações sexuais, apesar de desejá-las, mas suspendem a


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palavra para eloquentes abraços e caminhadas de mãos dadas. Em todas essas situações, eles nunca verbalizam seu amor, que, apesar de silenciado, é intensamente sentido. Esses dois adolescentes, colegas de escola, gradualmente se aproximam a tal ponto de, em um certo momento de convívio, elaborarem planos e fazerem juras:

O abraço ficou cotidiano em nossos bons-dias e até-logos. Agora falávamos insistentemente da nossa ―amizade eterna‖, projetos de nos vermos diariamente a vida inteira, juramentos de um fechar os olhos do que morresse primeiro. Era um jogo de cabeças unidas quando sentávamos pra estudar juntos, de mãos unidas sempre, e algumas vez mais rara corpos enlaçados nos passeios noturnos. (ANDRADE, 2015, p. 88).

Quando o pai de Frederico Paciência falece, o silêncio amoroso intensifica-se. Quieto mas solícito, Juca oferece a sua companhia sem verbo ao rapaz triste: Fui eu a consolar e consegui o mais perfeito dos sacrifícios, fiquei muito mudo ali. O melhor alívio para a infelicidade da morte é a gente possuir consigo a solidão silenciosa de uma sombra irmã. Vai-se pra fazer um gesto, e a sombra adivinha que a gente quer água, e foi buscar. Ou de repente estende o braço, tira um fiapo que pegou na vossa roupa preta. (ANDRADE, 2015, p. 92, os grifos são meus).

O futuro de Juca e Frederico reservou-lhes a separação. Aquele manteve-se em São Paulo enquanto este foi para o Rio de Janeiro, por vontade da mãe. Dias antes da viagem, já cônscios do afastamento vindouro, eles ficam ―mudos, muitas vezes abraçados, cabeças unidas‖ (ANDRADE, 2015, p. 93), empenhados em evitar o verbo: ―Quando um dizia qualquer coisa, o outro concordava depressa, porque, mais que a complacência da despedida, nos assustava demais o perigo de discutir‖. (ANDRADE, 2015, p. 93). ―Frederico Paciência‖ teve um longo período de escrita, que foi de 1924 a 1934. O livro em que ele foi inserido é o já mencionado Contos novos, publicado postumamente em 1947. A obra anterior de narrativas curtas é Os contos de Belazarte, lançado em 1934. Nela há uma história que tem algumas coincidências com a de Juca; seu título é

―Túmulo, túmulo, túmulo‖ e foi escrita em 1926. A relação entre Juca e Frederico Paciência é muito parecida com a de Belazarte e Ellis, protagonistas de ―Túmulo, túmulo, túmulo‖, já que é de cunho especial, diferente daquela estabelecida com seus outros amigos, ganhando dimensões maiores e mais profundas, gerando inclusive desejos de contatos físicos.


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O narrador e protagonista, Belazarte, indica que, em um período de sua vida, em que estava ―mais endinheirado‖ teve esta vontade: ―ter um criado só pra mim‖ (ANDRADE, 2008, p. 83). Ele o encontra em um bonde. É Ellis, um negro ―extraordinário de simpático‖ com ―olhos sossegados‖ que ―adoçavam tudo que nem verso de Rilke‖. (ANDRADE, 2008, p. 83). Uma relação ambígua se estabelece entre os dois personagens que, como Juca e Frederico Paciência, silenciam sobre seu amor e seus desejos, mas os sentem com intensidade. O narrador reflete: ―Ellis tomou conta de mim duma vez. (...). Estava tomando um lugar muito grande em minha vida‖ (ANDRADE, 2008, p. 86). O quietismo amoroso é mencionado em uma passagem do conto: ―Às vezes eu chegava em casa sorumbático, moído com a trabalheira do dia, Ellis não falava nada, (...), porém não arredava pé de mim, descobrindo o que eu queria pra fazer‖. (ANDRADE, 2008, p. 86, o grifo é meu). O amor de Ellis e Belazarte, em sua ―vida silenciosa‖ (ANDRADE, 2008, p. 91),

é intenso, mas surge uma personagem que os afasta temporariamente. É Dora, com a qual o primeiro passa a namorar e com quem acaba se casando. Um filho nasce da união dos dois, mas, posteriormente a mulher e o rebento falecem. Assim, os dois túmulos dos três sinalizados no título do conto evidenciam-se ao leitor. O terceiro túmulo do título é o de Ellis, que só morre depois de ter sua testa tocada pela mão de Belazarte. Antes disso, o narrador, ante os lábios fechados e o corpo quieto do moribundo, tenta aceitar o ―silêncio da morte‖ (ANDRADE, 2008, p. 95). Há, então, a inarticulabilidade ligada ao óbito. A psicanalista Jacqueline Moulin, no seu ensaio ―Um silêncio tão lento... um silêncio de morte‖, afirma: ―Estranho silêncio este no qual nos deixa o discurso interrompido...‖. (MOULIN, 2010, p. 163). Não se ouvem mais as palavras e a vozes daqueles que a morte abraça. Com a boca atingida pela imobilidade letal, aquele que falece permanece na quietude, como mostra o poema ―O morto - II‖, de Manoel de Barros: ―Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos./ Sentado como um doutor/ Veja que respeito nutre pelo silêncio./ Que morto!‖ (BARROS, 2013, p. 74, o grifo é meu). Manoel de Barros era um admirador das palavras e dos silêncios de Mário de Andrade. A leitura manoelina de Macunaíma e dos livros de poemas do escritor paulistano reflete-se em vários escritos das primeiras obras do autor cuiabano.


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O texto citado, ―O morto - II‖, de Barros, pertence à sua obra Poesias, lançada em 1956. Nesse livro, Manoel dedica ao autor de Pauliceia desvairada o poema ―Na rua Mário de Andrade‖, em que se lê o seguinte: ―Na rua Mário de Andrade/ vou andar (...)/ Vou ir com Macunaíma‖. (BARROS, 2013, p. 78). Como um pintor, Barros cria formas multicoloridas nesse poema, tentando se aproximar do silêncio imagético das artes plásticas: ―Se houver flores nessa rua/ Mário de Andrade – a todos nós/ ela agradará/ Se houver sobrados líricos/ com janelas azuis ou verdes – pronto!/ Nada mais necessário será/ para nutrir uns sonhos brancos...‖. (BARROS, 2013, p. 80). Não por acaso, na sequência, o pintor Jean-François Millet é citado: ―No fundo vê-se o pai lendo/ as suas coisas -/ a esposa diligencia o almoço/ Haverá uma estampa do camponês/ de Millet/ e os filhos brincando – que ternura‖. (BARROS, 2013, p. 80). A arte pictórica pode ser vista como uma reverência ao silêncio e essa idéia não é nova, ela já aparece no Górgias, de Platão. Para o pensador, enquanto a retórica se apresenta como a arte da palavra, esta é eliminada na pintura, que se apresenta como uma silenciosa manifestação da alma do artista. Mario Praz, em Literatura e artes visuais, mostra como Plutarco se impressinou com a afirmação de Simonides de Cós, na qual apontava que a pintura era ―a poesia muda‖. (CÓS, apud PRAZ, 1982, p. 3). Retomando ―Na rua Mário de Andrade‖, de Manoel de Barros, o título do livro no qual esse poema está inserido dialoga com o de uma obra de Mário, que é exatamente Poesias, publicada em 1941, reunindo os textos de Losango cáqui, Clã do jabuti, Remate de males, A costela do grã cão e Livro azul. O livro anterior a Poesias, de Barros, é Face imóvel (1942), que foi enviado pelo autor a Mário de Andrade, pois existe um volume dessa obra, com a dedicatória de Manoel, no acervo da biblioteca do criador de Macunaíma, localizado no Instituto de

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Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo . O título dessa obra manoelina (Face imóvel) dialoga com o de um poema de outro importante autor modernista: ―Os rostos imóveis‖, do livro José, de Carlos Drummond de Andrade. No caso do texto drummondiano o tema principal é a morte, que aparece, por exemplo, no poema ―Lembrança de uma mulher que morreu‖ de Face imóvel. Esse e mais dezesseis outros poemas da primeira edição dessa obra de Barros 1

A dedicatória é esta: ―Mario de Andrade, quantas vezes, nesta minha admiração por você, fiquei vendo seus gestos de longe, ouvindo sua voz... Parecia-me, a mim, que quem escrevia aquelas coisas não era um homem de carne e osso. of. o autor Manoel de Barros. Rio, 16-10-42. Escritório Irmãos Barros Ltda. Mato Grosso – Corumbá‖.


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não foram republicados, até o momento, nas suas reedições. Há, então, nesse caso, o silêncio textual, relacionado ao corte de alguns poemas do livro. Em Face imóvel, o silêncio de fonte histórico-política é o destaque; inclusive, toma assomo o mutismo bélico, já que o livro foi lançado em plena segunda guerra mundial (1942). Mas o que seria esse mutismo bélico? Seria o que Modesto Carone, em A poética do silêncio, usando as palavras de Paul Celan, apontou como o ―pavoroso emudecimento‖ (CELAN, apud: CARONE, 1979, p. 101), ligado aos campos de concentração e a outras barbáries geradas pelos combates mundiais. Dessa espécie de quietismo também tratou Adorno, de quem é esta célebre frase: ―Depois de Auschwitz era barbárie escrever poesia‖. Outro pensador da escola de Frankfurt também se pronunciou com relação a esse tipo de silêncio, mas tratando da primeira guerra mundial: Walter Benjamin, em ―O narrador‖. Ele enuncia: ―No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável‖. (BENJAMIN, 1994, p. 198). Manoel de Barros, em Face imóvel, explora intensamente esse mutismo. Em ―Poema do menino inglês de 1940‖, por exemplo, é mencionada uma realidade de bombardeios, perda e silêncio: ―A rua onde eu morava foi bombardeada. (...). Ontem de tarde eu vi o pai de Katy, voltando do trabalho – e nunca mais o verei. Porque por onde ele passou as ruínas fumam silenciosamente...‖ (BARROS, 2013, p. 35). Em ―Ruas antigas‖, poema que consta só da primeira edição de Face imóvel, a referência à primeira guerra mundial é direta: ―Ó velhas ruas provincianas, quantos homens já vos pisaram pálidos e firmes,/ no começo deste século, ouvindo os rumores de uma guerra interminável...‖ (BARROS, 1942, p. 26). Os silêncios ganham outros e muitos sentidos da primeira à última obra de Manoel de Barros. No livro estreante, Poemas concebidos sem pecado, lançado em 1937, lê-se: ―Entrar na Academia já entrei/ mas ninguém me explica por que que essa torneira/ aberta/ neste silêncio de noite/ parece poesia jorrando...‖. (BARROS, 2013, p. 15). Nesse caso, o silêncio noturno evidencia e valoriza o som da torneira aberta, pois os barulhos do dia não permitiram notá-lo. Aparece, então, o mutismo da escuta, pois quietamente ouvem-se, nesses Poemas ..., as torneiras noturnas; mas não só: as falas do povo são também objetos de audição do sujeito poético manoelino. O eu-lírico escuta, por exemplo, o cantar de Claudio, um arameiro, ou seja, aquele cuja função é colocar arame farpado para cercar as fazendas: ―De noite na rede


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estirada/ Nos galhos da árvore/ Claudio cantava cantarolava:/ Ai, Morena, não me escreve que eu não sei a ler‖. (BARROS, 2013, p. 24). Ocorre, então, o silêncio para ouvir as torneiras noturnas e o canto dos arameiros. No livro, também são ―audíveis‖ os falares de boiadeiros, pescadores, prostitutas, etc. O resultado é um livro avesso ao preconceito, que registra e valoriza o dizer popular e/ou pantaneiro, apontando termos e expressões como: ―frechou‖, ―sesso‖, ―disilimina‖, ―negro é igual com branco‖, ―a gente matávamos bentevi a soco‖, ―voltou de ateu‖, ―disaparta‖, ―num‖ (no lugar de não), ―home-de-bem‖, ―passá um taligrama‖, ―té a volta‖, ―véia‖, ―vãobora‖, etc. Outros silêncios podem ser ouvidos na obra de Barros, como os do Pantanal. Em O guardador de águas, de 1989, são escutados, por exemplo, o ―silêncio de garças‖ (BARROS, 2013, p. 236) e ―o silêncio a gerânios‖ (BARROS, 2013, p. 245). Ganha destaque, nesse contexto pantaneiro, o ―silêncio líquido‖ (BARROS, 2013, p. 242), que pode ser lido na escrita pré-verbal de Bernardo, que ―escreve escorreito, com as unhas, na água, o Dialeto-Rã‖. (BARROS, 2013, p. 224), que é ―falado por pessoas de águas, remanescentes do Mar de Xaraiés‖, (BARROS, 2013, p. 224). Essa viagem às entranhas silentes do Pantanal faz o viajante se aproximar dos horizontes primevos, tão buscados pelos sujeitos manoelinos, como o de Livro sobre nada (1996): ―Carrego meus primórdios num andor./ Minha voz tem um vício de fontes.

Eu queria avançar para o começo./ Chegar ao criançamento das palavras‖. (BARROS, 2013, p. 315). Com essa movimentação, aproxima-se do universo do silêncio pré-verbal, evidenciado no poema ―Ascensão‖ do livro Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001): ―Como não furar lona de circo para ver os palhaços?/Como não ascender ainda mais até na ausência da voz? (Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)‖. (BARROS, 2013, p. 380-381). Trata-se no caso do silêncio primevo, ou seja, aquele de caráter mítico, anterior à invenção da linguagem. Gilberto Mendonça Teles, na introdução do seu livro A retórica do silêncio, afirma: ―Para a mitologia mais primitiva (a sumérico-babilônica, por exemplo), as coisas só tinham existência quando os deuses pronunciavam o nome delas. (...). Antes do nome, o caos, o silêncio‖. (TELES, 1989, p. 16). Na trajetória da humanidade, Eni Puccinelli Orlandi entende que o homem nos tempos primevos, com seus mitos, estava mais ligado ao silêncio enquanto o ser contemporâneo, envolvido com as ciências, está mais próximo à palavra, conhecendo o


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―exílio do silêncio‖. (ORLANDI, 1993, p. 38). Isso porque ―no mito, a significação prescinde da explicação cabal de seus modos de significar‖. (ORLANDI, 1993, p. 38). Mergulhados em ambientações de cunho mítico, os sujeitos poéticos de Barros desejam a não-palavra ancestral, evidenciada em Retrato do artista quando coisa (1998): ―Agora só espero a despalavra: a palavra nascida/ para o canto – desde os pássaros./ A palavra sem pronúncia, ágrafa‖. (BARROS, 2013, p. 341). E mais: ―Quero o som que ainda não deu liga./ Quero o som gotejante das violas de cocho‖ (BARROS, 2013, p. 341). A despalavra transbordaria uma música sem verbo provinda do canto dos pássaros e dos acordes da viola de cocho. Esta última é explicada em uma nota de rodapé do poema citado: Estão registrados nas anotações antropológicas do mestre RoquetePinto os sons gotejantes da viola de cocho. A expressão é conhecida entre os índios guatós da beira do Cracará. A viola de cocho é levianinha e só tem quatro cordas feitas de tripa de bugio. É com ela que se acompanha o cururu, dança de origem indígena, disseminada entre os ribeirinhos do Cuiabá e do rio Paraguaio. (BARROS, 2013, p. 341).

Tanto o silêncio anterior à palavra quanto o musical são encontradiços nas obras de uma autora muito admirada por Barros: Clarice Lispector. No primeiro romance dessa autora, Perto do coração selvagem, publicado em 1943, lê-se: Eu estava sentada na Catedral numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pudesse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. (...). As paredes compridas e altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devolviam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas trespassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. (LISPECTOR, 1998a, p. 7172).

Primeiro o silêncio do ambiente, depois música (que não é sinônimo de pensamento), e novamente o silêncio primeiro: ―O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que iniciara, como uma inspiração‖. (LISPECTOR, 1998a, p. 72). ―A música penetra no silêncio e dele se nutre. Absorve-o, assimila, o transforma e o devolve‖, afirma o crítico Kovadloff (2003, p. 70), que cita Vladimir Jankélévitch: ―a música é o silêncio audível‖ (Jankélévitch, apud: KOVADLOFF, 2003, p. 69).


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O narrador de Parábolas, de Kafka, ouve uma música muda: ―As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio‖. Segundo o crítico George Steiner, o escritor moderno recorre ao silêncio da música, tentando aproximar ao máximo a sua escrita de um canto sem palavras, por causa do quadro histórico em que vive: Aguça-se no artista da palavra a noção de desgaste verbal, ocorrendo um destaque à inarticulabilidade. Para o crítico, isso se deve à noção de uma certa exaustão de recursos verbais na civilização moderna, de uma brutalização e desvalorização da palavra nas culturas de massa e na política de massa contemporâneas. (STEINER, 1988, p. 65).

Assim, segundo o crítico, para fugirem do verbo desgastado, vários escritores aproximaram-se da música, como T. S. Eliot, em Four quartets e Hermann Broch, em Der Tod des Vergil (STEINER, 1988, p. 48), e eu complementaria: Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem. Nessa obra, além do silêncio musical há também aquele de cunho místico. A personagem Lídia afirma: ―(...) só este silêncio é minha prece, Senhor, e não sei dizer mais; sou tão feliz em sentir que me calo; foi em silêncio que nasceu em mim uma teia de aranha tenra e leve: esta suave incompreensão da vida que me permite viver‖. (LISPECTOR, 1998a). A estudiosa Márcia Sá Cavalcante Schuback, em ―Quando da palavra se faz silêncio‖, mostra o mutismo ligado à Teologia Negativa. Para os representantes dessa teoria mística, o dizer humano era imperfeito e limitado para falar sobre a natureza de Deus, que teria uma linguagem perfeita e livre do limite. Assim, o que recomendavam era a economia do verbo e, na sequência, a sua suspensão. É o que Schuback mostra, citando Mestre Eckhart: Agora não se trata nem mais de concisão, mas de um inteiro cessar da palavra e do pensamento. (...), à medida que nos aproximamos do cimo, o volume de nossas palavras se apaga. No final da última subida, estaremos inteiramente em silêncio e unidos ao inefável.

Clarice dialoga com os teólogos negativos não só em seu primeiro livro, mas também nos posteriores. Em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), a enunciadora constata: ―Mas a palavra de Deus era tal mudez completa que aquele silêncio era Ele próprio‖. Para Ângela Pralini, de Um sopro de vida (1978), o homem deve ser todo mudez para conversar com Deus: ―Quando a gente fala com Deus não


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deve usar palavras‖. Em Água viva (1973), o silêncio divino chega a gerar temor: ―Lê a energia que está no meu silêncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silêncio‖. Os mutismos de Lispector são diversos e transformam-se intensamente em seus sentidos, às vezes em um mesmo livro. É o caso de O lustre, lançado em 1946, pois despontam nele o ―silêncio pesado de mormaço‖ (LISPECTOR, 1999, p. 11), o ―silêncio impalpável‘ (LISPECTOR, 1999, p. 71), o ―silêncio recolhido e atento‖ (LISPECTOR, 1999, p. 119), o ―silêncio flutuante‖ (LISPECTOR, 1999, p. 176), o ―silêncio espesso‖ (LISPECTOR, 1999, p. 186) e o ―silêncio sorridente‖ (LISPECTOR,

1999, p. 237). Em A hora da estrela (1977), o narrador Rodrigo S. M. afirma: ―este livro é um silêncio‖. Sobre a protagonista, Macabéa, ele indica que ela é ―extremamente muda‖. Em um trecho dessa obra, lê-se: ―Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. (...). Quanto a mim estou cansado. Talvez da companhia de Macabéa, Glória e Olímpico. (...). Tenho que interromper esta história por uns três dias.‖. (LISPECTOR, 1995, p. 88). Depois desse período, a continuação urge e o narrador afirma: ―e agora emerjo e sinto falta de Macabéa. Continuemos: -É muito caro?‖ (LISPECTOR, 1995, p. 87-88). O tema do impasse entre a continuidade ou a interrupção da escrita intensifica-se nas últimas obras de Lispector, pois as dificuldades ligadas à expressão e à narração parecem aumentar e, se se leva em consideração que a referência a esse problema não deve estar presente nos textos de modo aleatório, é bem possível que ele seja parecido com aqueles enfrentados pela própria escritora, associados a tempos emergenciais e geradores de uma certa crise no escrever. A ameaça de interrupção de um texto ou da carreira da escritora aparecem várias vezes tematizada nas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, nas quais Clarice, por mais de uma vez, afirmou escrever por uma questão de sobrevivência, como em ―Anonimato‖: ―Eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada‖. (LISPECTOR, 1984, p. 92). Ao vincular-se a um jornal, Clarice teve de modificar seu processo de criação vendo-se obrigada a escrever regularmente, sem interrupção e num prazo curto, o que tornaria seus textos mais fragmentários, sem tempo de serem submetidos a tantas revisões. Sendo assim, talvez essas ameaças de interrupção da escrita por parte dos enunciadores dessas crônicas surjam como resposta a outra espécie de ameaça, a da liberdade de quem escreve.


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Isso parece ocorrer também em outro livro de Clarice, A via crucis do corpo (1974), encomendado por seu editor. A autora deveria escrever uma obra com apelos ao erotismo e à violência nas suas histórias. O resultado é um livro no qual os narradores por várias vezes anunciam que precisam interromper a história em andamento para fazer alguma outra coisa, o que exatamente não importa (comer, fumar), o que interessa é a necessidade de parar por algum momento. Parece que no texto ―Antes da ponte rioniterói‖, há uma referência a um possível motivo da ocorrência de tais momentos incômodos: ―Mas esta história não é da minha seara. É da safra de quem pode mais que eu‖. (LISPECTOR, 1998b, p. 57). Quando o silêncio não interrompe o fluxo verbal do narrador ou enunciador, ele estanca as conversas dos personagens. É o que ocorre algumas vezes com Macabéa e Olímpico, em A hora da estrela, quando o diálogo se torna inviável, e com a mãe e a filha do conto ―Laços de família‖, do livro homônimo, quando a mudez só registra a dificuldade de expressão do afeto entre as duas. Existe, também, nas obras de Lispector, o silêncio que se aloja na própria palavra. Assim, cabe ao leitor buscar o não-dito atrás do dito, como se pode apreender em Um sopro de vida: ―as palavras que digo escondem outras – quais?‖ (LISPECTOR, 1994, p. 13). Assim, há na palavra o que é aludido, ou seja, o que é silenciado: ―A potência significante da palavra é dada pelo silêncio que ela contém e provoca: por aquilo que subentende e não diz, por aquilo que sugere, por aquilo que alude‖. (SCIACCA, 1966, p. 30). Trata-se da relação entre a palavra e a não-palavra, que Clarice tematizou em ―A pesca milagrosa‖, texto publicado primeiramente na seção ―Fundo de gaveta‖, da primeira edição de Legião estrangeira, em 1964, e depois inserido em uma passagem de Água viva (1973): Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando esta não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podiase com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa analogia: a não palavra ao morder a isca, incorporou-a.

A não palavra de Clarice Lispector, a despalavra de Manoel de Barros e ―o silêncio alargando tudo‖ de Mário de Andrade só constatam que para esses autores a suspensão do verbo é um tema tão fundamental quanto o fluir dele.


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Silêncios muitos os de Mário, Manoel e Clarice que na sua polissemia revelam facetas várias da vida, dos seres, da escrita. Em seus textos, os quietismos mantêm um mudo diálogo com o enigma e a simplicidade, com as tragédias históricas (como a guerra) e o tempo primevo, com o erudito e o popular, com o fim e o princípio da vida.

Referências: AGUIAR, Flávio. ―A grande fome do romance brasileiro: os sessenta anos de Macunaíma e os cinqüenta de Vidas secas‖. Leia, julho de 1988, p. 30-31. ANDRADE, Mário de. Contos novos. (Edição especial). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. _______. Os contos de Belazarte. Rio de Janeiro: Agir, 2008. ______. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. (33a. Edição; texto revisto por Telê Porto Ancona Lopez). Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2004. ______. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. BARROS, Manoel de. Face imóvel. Rio de Janeiro: Editora Século XX, 1942. ______. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2013. BENJAMIN, Walter. "O narrador". Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. Vol. 1 [Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; pref. de Jeanne Marie Gagnebin]. SP: Brasiliense, 1994, p. 197-221. CARONE, Modesto. A poética do silêncio. São Paulo: Perspectiva, 1979. KAFKA, Franz. O silêncio das sereias. (Tradução de Modesto Carone). Folha de S.Paulo, domingo, 6 de maio de 1984. Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/kafka2.htm. Consultado em 30 de abril de 2016. KOVADLOFF, Santiago. O silêncio primordial: ensaios. [Tradução de Eric Nepomuceno e Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. LISPECTOR, Clarice. Água viva. 11ª. edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. ______. A descoberta do mudo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ______. A hora da estrela. 23ª. edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. ______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.


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______. Um sopro de vida. 10ª. Edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. ______. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b. MOULIN, Jacqueline. Um silêncio tão lento… um silêncio de morte. In: NASIO, J.-D. O silêncio na psicanálise. Tradução de Martha Prado da Silva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010, p. 163-172. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993. SCHUBACK, Márcia Cavalcante. Quando a palavra se faz silêncio. Por uma fenomenologia do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996. SCIACCA, Michele Federico. Silêncio e palavra. Rio Grande do Sul, 1966. STEINER, George. ―O poeta e o silêncio‖. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. (Tradução de Gilda Stuart e Filipe Rajabally). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. ___________. ―O repúdio à palavra‖. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. (Tradução de Gilda Stuart e Filipe Rajabally). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. TELES, Gilberto Mendonça. ―Introdução‖. Retórica do silêncio: teoria e prática do texto literário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.


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O ESPAÇO NARRATIVO NA OBRA DE ALCIENE RIBEIRO LEITE ATRAVÉS DA LEITURA DO ROMANCE NOS BEIRAIS DA MEMÓRIA

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Karina de Fátima Gomes (UFMS/CPTL) Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL) Resumo: O presente trabalho objetiva fazer a apresentação da obra da autora Alciene Ribeiro Leite, com análise da obra Nos Beirais da Memória, tendo como objeto de estudo o espaço narrativo como elemento constitutivo da obra literária. A análise da produção de Alciene Ribeiro Leite é importante pois nos dá a dimensão do papel desta escritora a partir da década de 70 e como, paulatinamente, esta foi ganhando espaço entre leitores infantis, juvenis e adultos. Podemos concluir que a literatura de Alciene mostra uma superação da dependência da mulher em relação ao trabalho e às relações interpessoais, muito embora, nos romances, essas questões ainda sejam apresentadas sob uma ótica masculina, porém a autora consegue muito sutilmente, com fineza e estilo mostrar o seu posicionamento através dos diálogos e falas da personagem ―mãe‖. O espaço na obra Nos Beirais da Memória, como já exposto, funciona como plano de fundo para as ações, pensamentos, divagações das personagens, pois uma das características mais marcantes da obra de Alciene são os diálogos e os pensamentos das personagens, as internalizações, e o espaço funciona como local onde as narrativas acontecem, oferecendo poucos conflitos. Para os estudos foram usados como referencial teórico Gaston Bachelard e Antonio Dimas. Palavras-chave: Espaço; Memória; Romance.

1 – Alciene Ribeiro Leite e sua obra

Nascida em Ituiutaba, Minas Gerais, no ano de 1939, teve o auge de sua carreira nas décadas de 1980 e 1990. Por nome de batismo Alciene Maria Ribeiro Leite de Oliveira, escolheu seu nome literário em homenagem ao esposo Rodolfo Leite de Oliveira. Alciene, além de escritora se dedicou ao jornalismo durante mais de 20 anos, como colaboradora de grandes jornais da capital Belo Horizonte. Das suas produções, podemos destacar sua primeira coletânea de contos: Eu choro do palhaço, de 1979, tendo sido premiado com o Galeão Coutinho, da União Brasileira de Escritores, como o melhor livro de contos de 1978. Em 1980 lança o livro O João Nosso de Toda Hora, outra coletânea de contos.

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Trabalho desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN / UFMS).


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Lança em 1983 o primeiro livro infanto-juvenil: Filho de Pinguço, o enredo conta a história de um menino perdido diante da realidade da vida, com um pai alcoólatra. O livro foi ganhador do prêmio Coleção do Pinto. Lança então diversos títulos dedicados ao público infanto-juvenil: O Mágico do olho verde (1984), Borracha Nele! (1986), Tecelã de Sonhos (1977), Ora Pipocas! (1988 e reedição em 2013), Um Jeito Vesgo de Ser (1988), Drácula Tupiniquim (1989), Idéias as Pampas (1990), Moça Baleia (1990), A Coelhinha Chué (1991), Condão de Gira-Mundo (1991), O Astronauta de Konsolanto (1992), Bicho de Goiaba (1992), A coelhinha Dodói (2002), Troca-Troca (2010). Publicou também o livro de poesias: Exercícios de Aprendiz (1990). No gênero romance publicou em 1988 a obra Nos Beirais da Memória, em 1989 a obra ...E Tudo se Repete, e em 1993 Um Pouco de Luz. Participou de pelo menos 9 antologias de contos:

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 Nossa Mensagem, com o conto De Como Engolir Sapos (1977)

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 Queda de Braço, com o conto Vinte Anos de Amélia (1977)

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 Presença do Conto , com o conto A Ponta do Novelo (1979)

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 Cidade e Caminho, com três contos O Gran Finale, Sonho Quebrado e

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 Histórias Mineiras, com o conto Ave Maria das Graças Santos (1984)

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 Contos da Terra do Conto, com o conto Doutor de Almas (1986)

 O Fino do Conto, com o conto Um Porvir Alemão (1988)  Flor de Vidro, com o conto De Como Engolir Sapos (1991)

Reveillon da Hipocrisia (1982)

 Amor à Brasileira, com o conto Super Homem (1987)

Também publicou O Livro de (Quase) Todos (2004), com a vida de personalidades de sua terra natal Ituiutaba. Em 1989, no lançamento de Nos Beirais da Memória, Nelly Novaes

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Coelho afirmou sobre sua obra:

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Nelly Novaes Coelho, paulistana, nascida em 1922, logo depois da eclosão da Semana de Arte Moderna tem como paixões desde a infância a literatura e a música. Iniciou sua carreira acadêmica em Letras já na maturidade, na Universidade de São Paulo. É doutora, livre docente e professora titular oficialmente "inativa", devido à aposentadoria compulsória, porém ainda está em plena atividade. Pesquisadora e crítica literária, criou em 1980, na área de Letras da USP, a disciplina de literatura infantil, em nível de graduação e pós-graduação, visando a formação especializada dos professores que se destinam à educação de crianças.


200 Firme domínio da escrita fabuladora – Linhagem do genial RosaCapacidade de se manter na fronteira entre o imaturo, abrindo os olhos pra vida e já amadurecida pela experiência e pela reflexão... (COELHO, in LEITE, 1989, p. 3).

2- O romance Nos Beirais da Memória

O romance Nos Beirais da Memória da autora mineira Alciene Ribeiro Leite, publicado no ano de 1989, foi uma obra participante do Concurso Nacional de

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Literatura ―Cidade de Belo Horizonte‖ , tendo sido premiado em 2º lugar no ano de 1988, tendo como membros da comissão julgadora Libério Neves, Carlos Herculano Lopes e Manoel Lobato. O romance narra a história de dois irmãos, Zinho e Neném, e sua paixão pela bicicleta Angusmilda, elevada ao status de personagem na narrativa, ―...estrela maior de toda essa história.‖ (LEITE, 1989, p. 7). Anatol Rosenfeld (1973, p. 27) explica que ―A descrição de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer pode resultar, talvez, em excelente ―prosa de arte‖. Mas esta excelência resulta em ficção somente quando a paisagem ou o animal [...]se ―animam‖ e se humanizam através da imaginação pessoal.‖, este é o caso da bicicleta Angusmilda, que é umas das personagens da narrativa. O autor narra em primeira pessoa, pela voz do irmão Zinho, sendo um romance memorialista, que retrata a história de vida dos meninos e seus familiares, seus anseios e desejos, além de traçar um perfil da sociedade da época. A narrativa inicia com o autor personagem na falando de si próprio, e começando a traçar suas lembranças, do irmão, da infância, dos diálogos familiares. A narrativa conta a história dos dois irmãos, sua vida na zona litorânea, os anseios de meninos, a passagem da infância para a adolescência, a luta para economizar dinheiro para a compra da bicicleta Angusmilda, o tio que presentei o sobrinho, seu

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O Concurso Nacional de Literatura ―Cidade de Belo Horizonte‖ premia autores brasileiros ou naturalizados que se dediquem ao conto, à poesia, ao ensaio, ao teatro e ao romance, tendo sua primeira edição no ano de 1947, na comemoração do cinquentenário da capital Belo Horizonte, sendo o concurso literário mais antigo do país.


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afilhado, com a bicicleta, o ciúmes do irmão Zinho por Neném e Angusmilda, e o trágico final da história, onde um caminhão mata Neném atropelado enquanto este passeava com seu amor maior, a bicicleta. Ambientado na zona litorânea, os irmãos percorrem a área com muita propriedade e conhecimento, vasculhando cada cantinho, conhecedores dos animais da região, frequentadores das areias da praia, dia e noite. A definição de período cronológico se dá pela colocação da mãe e do filho

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Neném em diálogo que menciona o presidente José Sarney) , sendo as histórias e fatos narrados no romance (infância de Zinho e Neném) passados no período do governo do citado presidente (entre 1985 e 1990). As personagens pai e mãe não são nomeados no romance, porém a presença dos dois é constante, nos diálogos e nos posicionamentos (principalmente os sociais). O enredo é escrito sem linearidade, muitas vezes a autora interrompe a narrativa para fazer uma espécie de autoanálise ou de análise social, como no trecho abaixo, em que fica nítida a posição da personagem ―mãe‖ incentivando a leitura e da personagem Zinho demonstrando seu perfil leitor: ―Mãe compra, vez ou outra, o dinheiro dando, livro ou revista para nós. Gostava de livro fininho, com muita figura colorida. Ainda gosto da turma da Mônica. Mas ando viciado em policial, aventura, mais quando é briga no espaço, disco voador, nave espacial e tudo, coisa de muito suspense e movimento. De parado basta eu, enrustido nos meus próprios pudores, sustos e medos, não fosse o Neném para me empurrar.‖ (LEITE, 1989, p. 15). O enredo da história é bastante simples, porém a linguagem utilizada pela autora, com uso de linguagem rebuscada e metafórica, enriquece a obra, que se mantém atual até hoje. Umberto Eco afirma que: Temos ação (dramática ou narrativa) quando temos mimese de comportamentos humanos, quando temos um enredo, através do qual as personagens se explicitam e assumem uma fisionomia e um caráter, e quando, sempre através do enredo, tomo fisionomia e caráter uma situação produzida pela interferência variada de comportamentos humanos. (ECO, 2011, p. 218).

A obra a Alciene tem essas características. O romance é baseado em conto da mesma autora, publicado no ano de 1978, intitulado Eu choro do palhaço, na coletânea

4 José Sarney , nascido José de Ribamar Ferreira de Araújo Costa, é um advogado, ex-político e escritor brasileiro. Foi o 31º presidente do Brasil (1985-1990).


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de contos de mesmo título. O conto já trás a temática da saudade e as características memorialísticas.

3- A análise do espaço em Nos Beirais da Memória

O romance Nos Beirais da Memória se passa na área litorânea, em uma vila de pescadores. O grande foco da obra não é o espaço, mas sim as personagens, os diálogos e as interlocuções entre eles. O espaço serve como plano de fundo, como ambiente socializador e acolhedor dos acontecimentos entre os dois irmãos e sua bicicleta Angusmilda. Bachelard (1993) aborda o espaço a partir do conceito de topos: para ele os espaços tópicos são os espaços do conforto e os atópicos são os locais do desconforto, da tristeza, da insatisfação, e os espaços utópicos são os espaços do desejo. Todos esses espaços se mesclam na narrativa de Alciene. De acordo com Antonio Dimas: Entre as várias armadilhas virtuais de um texto o espaço pode alcançar estatuto tão importante quando outros componentes da narrativa, tais como foco narrativo, personagem, tempo, estrutura etc. É bem verdade que, reconheçamos logo, em certas narrações esse componente pode estar severamente diluído e por esse motivo, sua importância torna-se secundária. Em outras, ao contrário, ele poderá ser prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante. Uma terceira hipótese ainda, esta bem mais fascinante!, é a de ir-se descobrindo-lhe a funcionalidade e organicidade gradativamente, uma vez que o escritor soube dissimulá-lo tão bem a ponto de harmonizar-se com os demais elementos narrativos, não lhe cedendo, portanto, nenhuma prioridade. (DIMAS, 1987, p. 5-6)

O espaço, assim, é um componente funcional que ajuda na análise e na interpretação de um texto, apresentando o mesmo grau de importância de todos os outros componentes estruturantes da narrativa, o que exemplifica a interdependência das microestruturas narrativas. Segundo Bachelard:

É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fosseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas


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quanto mais bem especializadas. Mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade. (BACHELARD, 2008, p.29).

É no espaço que se dará toda a realização das ações das personagens em Nos Beirais da Memória. O molde da história é o espaço, e é ele que carrega toda a natureza da narrativa, neste caso a liberdade dos meninos Zinho e Neném pela Vila e pela praia, e por todos os espaços externos da localidade onde residem, demonstram os contatos sociais das personagens, seus encontros e desencontros. A vila de pescadores onde a história se passa é o exemplo disso: ―A Vila se enche de todo tipo de pessoa, se movimenta em mil novidades e Neném e eu nadamos de braçada‖ (LEITE, 1989, p. 11). A Vila peca por rara diversão se o cristão carece de criatividade, bem delas, as mal amadas. Daí a gula, circo ou procissão, quermesse, eleição, retreta, desastre, comício, tudo bem. Suam os sovacos, tal o prazer nas antecipações lá delas do espetáculo: eu romper em deslavado choro, igual o palhaço. (LEITE, 1989, p. 71). ―Meu irmão não gozou os louros daquela vitória, apesar da volta triunfal à Rua da Praia, nos braços da galera‖. (LEITE, 1989, p. 40)

Segundo Bachelard (2008, p. 26), a casa faz com que o homem se fortaleça, faz com que não se perca, mantendo-o firme em meio às tempestades do céu e da vida. Ela é o primeiro mundo do ser humano e, em nossas lembranças, um grande berço, mas o que ocorre no romance Nos Beirais da Memória, não é exatamente o que Bachelard (2008) afirma, pois a casa torna-se o espaço de ―confinamento‖, em que as personagens se sentem presas, sentindo falta da liberdade que tem no espaço da praia e outros já mencionados. Nos espaços que se referem à praia há uma sensação de liberdade: − Agora vamos surfar! – Neném, mais animado do que nunca. − Você é doido, água gelada, e a prancha? − eu pergunto da prancha e me traio, já aderi. [...] A água nem estava fria, uma delícia, indo e vindo, vindo e indo, riso abafado em espuma, cachoeira nas caras lambidas de sal. (LEITE, 1989, p. 54-55).

A liberdade também é expressa pela janela da casa, espaço utilizado por Neném e Zinho para as fugas noturnas, os passeios pela praia e pela Vila. A janela tem papel


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interessante na narrativa, pois liberta, mas se mantem calada, silenciosa, nunca denunciando as fugas dos meninos: ―Pela fresta da janela, fiapo de lua bate no rosto de Neném. Ele se vira de chofre na cama, foge da luz, resmunga. Vai acordar.‖ (LEITE, 1989, p. 41). ―- Vamos de janela, um pulo e pronto, rapidinho, um pé lá, outro cá, janela e cama de novo.‖ (LEITE, 1989, p. 43). ―A taramela rodou suave e a madeira deslizou macia nas dobradiças.‖ (LEITE, 1989, p. 43).

Na obra a Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade, cuja função primordial é abrigar e proteger. Bachelard afirma que o sótão é o que faz a casa estar enraizada no solo profundo, de resto inquietante e terrível, da terra e das rochas. ―No sótão, a experiência diurna pode sempre dissipar os medos da noite‖. (BACHELARD, 1993, p. 37). A casa descrita por Alciene na obra Nos Beirais da Memória não é detalhada, para que o leitor consiga visualizar cada uma de suas partes, mas é espaço de aconchego, de conversas familiares, de assistir televisão e até mesmo refletir. Um dos espaços da casa descritos inicialmente na obra é a escada. Para Bachelard: Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas palavras tesouros inencontráveis. Subir e descer nas próprias palavras é a vida do poeta. Subir muito alto, descer muito baixo é permitido ao poeta que une o terrestre ao aéreo. (BACHELARD, 1989, p. 155).

A personagem de Nos Beirais da Memória não se movimenta na escada, tem até mesmo a ―bunda dormente‖, de tanto tempo que fica ali, parado, ―espremido‖, mas tem espaço no pensamento, como espaço de reflexão, e de toma de decisão, como se estar na escada fosse fazer com que ―subisse‖, com que conseguisse seus objetivos: Penso aqui agora, coisas, bobagens. Nada têm a ver com o lá dentro de casa. Não acho melhor que fazer, a bunda dormente, espremida no degrau da escada. Faz tempo sentei na porta da sala, ouvido alerta, coração apertado, adiando o impulso de sair, tomar uma providência qualquer. (LEITE, 1989, p. 7).


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O quarto é o espaço da casa onde os pensamentos das personagens acontecem. Reflexões sobre a vida, sobre a questões diárias, sobre os conflitos juvenis enfrentados pelas personagens aparecem nas entrelinhas dos diálogos, quando os irmãos parecem estar sozinhos nos aposentos. Poucos detalhes sobre os cômodos aparecem na narrativa, porém, uma citação chama a atenção, pois fala do tamanho da casa, doa quarto. Quando os meninos ganham a bicicleta Angusmilda, a mesma é elevada ao status de personagem, gente, quase da família, e a noite acompanhou os meninos para o quarto, porém a mãe não aceitou: Mãe não quis ela no nosso quarto. - Atravanca a casa, já tão pequena, o lugar dela é no quartinho lá de fora. (LEITE, 1989, p. 33).

O lugar de Angusmilda era fora da casa, no quartinho de despejo, mas como, se ela era para os meninos uma pessoa da família? O quartinho de despejo abriga aranha, rato, barata. Neném, chora na cara, obedeceu. Mas com engenharia de teima, venceu logo. Só um dia e a alavanca achou a resistência, onde ele concentrou energia, malícia, todo tipo de artimanha. Inventou arranhão de rato na pintura, teia de aranha interferindo no desempenho, ovo de barata nas engrenagens. Ainda mexeu em telha, obrou goteira, o diabo. Recurso de mãe foi revogar a ordem, o dito pelo não dito. (LEITE, 1989, p. 33, 34).

O quartinho de despejo representa a solidão, o escuro, e a bicicleta não podia ficar lá, pois tinha que ter lugar de prestígio na casa, dada a sua importância para as personagens (Neném e Zinho). Podemos perceber como o espaço influência as personagens, que se aventuram longe da casa, sentindo-se livres, e como se sentem acolhidos e aconchegados dentro do espaço familiar, apesar de declarado pequeno e simples na narrativa. Na obra, tempo, espaço e personagem juntos, demonstram intenções na narrativa, todos, juntos, compõe o todo da obra, sendo que um não caminha sem o outro. Toda narrativa se dá em um tempo e espaço, e o espaço amplo da obra Nos Beiras da Memória se dá até mesmo no desfecho da história, com a morte do menino atropelado, com a rua larga, ampla, como que engolindo o menino, explorando com muita riqueza a questão espacial.


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Considerações finais

A análise da produção de Alciene Ribeiro Leite é importante pois nos dá a dimensão do papel desta escritora a partir da década de 70 e como, paulatinamente, esta foi ganhando espaço entre leitores infantis, juvenis e adultos. A mulher, com a evolução da história, passou por transformações em várias instâncias, moral, afetiva, econômica, intelectual, e essas transformações foram importantes para definir a posição de um gênero até então muito discriminado na sociedade. É nesse ponto que este trabalho tem sua principal reflexão: A mulher como personagem na literatura, realizando uma comparação da evolução da mulher na história e na literatura, isto é, uma comparação da evolução da mulher na história e na literatura a partir de sua diferentes características, sob o olhar então de Alciene, que faz um paralelo da mulher na história – vida real – e na literatura – ficção. Podemos concluir que a literatura de Alciene mostra uma superação da dependência da mulher em relação ao trabalho e às relações interpessoais, muito embora, nos romances, essas questões ainda sejam apresentadas sob uma ótica masculina, porém a autora consegue muito sutilmente, com fineza e estilo mostrar o seu posicionamento através dos diálogos e falas da personagem ―mãe‖. É possível observar também, por meio dos estudos apresentados acima, como a obra de Alciene Ribeiro Leite ganhou diversos espaços no campo literário, especialmente na publicação de contos e obra infanto-juvenis, além disso, a obra de Alciene é sempre muito elogiada e apreciada, pois a grande maioria de seus livros apresentam uma qualidade estética inquestionável, além de grande percepção feminina da realidade e das relações sociais. O espaço na obra Nos Beirais da Memória, como já exposto, funciona como plano de fundo para as ações, pensamentos, divagações das personagens, pois uma das características mais marcantes da obra de Alciene são os diálogos e os pensamentos das personagens, as internalizações, e o espaço funciona como local onde as narrativas acontecem, oferecendo poucos conflitos.


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Referências:

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PROCESSOS E DINÂMICAS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO NA PRODUÇÃO CONTÍSTICA Marcos Rogério Heck Dorneles (CPAQ/CPTL/UFMS) Resumo: Apresentação acerca de algumas interações entre o pensamento filosófico e a produção contística na literatura brasileira e portuguesa. No trabalho, são apontados como objetivos da pesquisa levantar parte do percurso de consolidação da produção contística brasileira e portuguesa; arrolar as vertentes principais; e distinguir diferentes tipos de ação recíproca entre os universos da literatura e da filosofia, tais como antecipação, simultaneidade, condicionamento etc. A pesquisa foi disposta no eixo temático de ―Literatura e estudos interdisciplinares‖. O trabalho foi realizado por meio do estudo de textos teóricos, críticos e literários, em que se estabeleceu a alternância entre o prosseguimento de princípios fundamentais e a atribuição provisória de proposições. Resultam dos estudos o destaque às variações de forma, tema e cosmovisão, e a proeminência do imbricamento entre as oscilações da produção literária e os deslocamentos do pensamento filosófico. Palavras-chave: Contos. Filosofia. Literatura.

Introdução Em face da História, rio sem fim que vai arrastando tudo e todos no seu curso, o contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação. Alfredo Bosi.

A discussão acerca das origens, características e delimitações da modalidade literária de narrativa curta denominada conto é controversa, complexa e remota. Embora o conto tenha alcançado um considerável grau de prestígio a partir da segunda metade do século XIX com as produções de Edgar Allan Poe (1997), Guy de Maupassant (1983), Anton Tchekov (1999), a situação de mutabilidade e instabilidade nos âmbitos de produção e de compreensão da arte contística é um continuum. Pois, não existem denominadores comuns suficientes e capazes de abarcar e sintetizar decisivamente a amplitude e as especificidades dessa configuração literária. A composição textual do conto oscila de maneiras diversas (elementos constitutivos, feitio, linguagem, temática etc) de acordo com as prioridades e objetivos a serem buscados no processo de escrita. Assim, a organização textual do conto pode: estabelecer diálogos com outros gêneros e subgêneros do universo literário; buscar matérias sociais e culturais distintas; modular a expressão linguística mais condizente a um determinado propósito; fundar projeções críticas a fatos e momentos distintos. Nesse horizonte, Alfredo Bosi (1981) destaca o caráter proteiforme do conto como a sua


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peculiaridade essencial, porque possibilita sob uma única modalidade aproximar proposições e cosmovisões muitas vezes contrárias e antitéticas. Essa plasticidade e adaptabilidade é objeto de estima e de incompreensão, uma vez que abrange ao abrigo de uma terminologia objetos extremamente díspares. Sob a rubrica de conto, situam-se narrativas largas, como algumas novelas de Guimarães Rosa e de Alexandre Herculano, e, por outro lado, da mesma maneira, alguns contos curtos de Dalton Trevisan e de Maria Judite de Carvalho; cabendo à figura do autor a precedência para definir a denominação a ser adotada. À sombra da mesma chancela, dispõem-se a escrita de uma prosa mais poética, como a de Raul Brandão, e, de outra parte, a elaboração enxuta de textos de Graciliano Ramos. Também com o amparo da designação conto, outras variações se dão de forma bastante elástica, nas quais são adotadas técnicas diferentes quanto à utilização de alguns elementos constitutivos (narrador e foco narrativo), por exemplo, na predominância de diálogos em contos de Ernest Hemingway, ou, em contrapartida, na intrusão acentuada da figura do narrador em contos de Machado de Assis. Não menos debatida é a questão acerca de quais origens e demarcações seriam as que determinariam uma genealogia definitiva do conto, uma vez que se fragmentam em linhagens distintas: consuetudinária, fruitiva, didática, literária etc. Conforme Hermann Lima (1952), nos primórdios da cultura humana, as primeiras versões escritas das narrativas curtas tinham nas fábulas tradicionais e nos contos extraordinários de feitos heroicos e grandiosos o seu ponto de propulsão inicial. Assim sendo, vinculavamse à propagação de costumes e de representações sociais coletivas inerentes a uma determinada tradição. São produtos dessa vertente as fábulas de Esopo (2010), o livro Kalila e Dimna (1975), tradução árabe de narrativas ancestrais indianas feita por Ibn AlMuqaffa, e histórias antecessoras às obras Ilíada (2001) e Odisséia (1950), de Homero, e Metamorfoses, de Ovídio (1983). Rompendo o paradigma de predomínio da transmissão de valores sobre o pendor da fruição artística, a produção de narrativas curtas no final da Idade Média e no início do Renascimento na Europa vê surgir uma nova conformação de contos. Conforme Nádia Battella Gotlib (1985), com a criação de algumas obras de Boccaccio, Chaucer e Cervantes, ainda que se mantenha a inflexão do conto oral, dá-se primazia ao caráter estético por assentar como diretriz principal a elaboração artística, não privilegiando o processo de transmissão de costumes.


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Rendendo espaço à disposição e ao desígnio de especificação do fazer literário, no século XIX, a arte das narrativas curtas vê crescer a especialização da figura do contista. Notadamente, erigem-se as proposições e realizações do escritor e crítico literário Edgar Allan Poe, conforme discorre Gotlib: O fato é que a elaboração do conto, segundo Poe, é produto também de um extremo domínio do autor sobre os seus materiais narrativos. O conto, como toda obra literária, é produto de um trabalho consciente, que se faz por etapas, em função desta intenção: a conquista do efeito único, ou impressão total. Tudo provém de minucioso cálculo. (GOTLIB, 1985, p. 34)

Com isso, ao serem assinaladas algumas peculiaridades na produção do conto escrito, são propiciadas condições gerais para a impulsão da arte contística. Poe estabelece como meta a busca da unidade de efeito, isto é, a manutenção de um mesmo tom, tempo e espaço no decorrer da narrativa. Desse modo, o escritor indica como superioridade hierárquica ou como idiossincrasia pessoal a predileção por contos que realizem a sustentação de uma unidade interna com o desenvolvimento da tensão na narrativa. Não obstante a exclusividade da propensão a uma tendência elegida por Poe, a partir desse momento, o conto alcança um grau de robustez em sua constituição formal e de reconhecimento nas modalidades literárias. Além da discussão acerca das origens, características e delimitações literárias, o estabelecimento do exame das diferenças, semelhanças e relações do conto com o modo de pensar de um grupo social, nação ou circunstância histórica possibilita conhecer alguns meandros da sua produção narrativa. Mais especificamente, certas interações entre o pensamento filosófico e a elaboração de contos. Nesse caminho, a confluência dos saberes literário e filosófico apontou diferentes formas de relacionamento, das quais destacamos a antecipação, a simultaneidade, o condicionamento, o confronto, a transposição etc. Nas literaturas portuguesa e brasileira o percurso de consolidação da produção contística está bastante vinculado ao desdobramento de diferentes tipos de ação recíproca com o universo do pensamento filosófico. Na península ibérica, parte do surgimento das narrativas curtas está associada ao desenvolvimento de uma das ramificações literárias europeias, que tem a sua base no deslocamento, reaproveitamento e transformação de textos e obras gregas, árabes, judaicas, persas e hindus. Nesse caminho, Massaud Moisés (1981) aponta a vertente didática reconfigurada e iniciada pelo médico, escritor e astrônomo Pedro Alfonso de


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Huesca. Sua principal obra, Disciplina clericalis (apud MOISÉS, 1981), é uma coleção de exemplos ou contos exemplares escritos em latim, nos quais são traduzidos e reempregados textos de origem grega, árabe e hindu para o contexto medieval cristão do século XII, e tem como fontes principais provérbios de filósofos, fábulas, sentenças morais e exemplos. Essa coletânea de Alfonso de Huesca influenciou uma grande porção de escritores nos séculos seguintes, como Boccaccio, Chaucer, Don Juan Manuel, Shakespeare e Cervantes. Em Portugal, os primeiros estágios de desenvolvimento de uma das formas arcaicas de contos se deram com narrativas que tinham suas raízes na recorrência à fábula, na apresentação das linhagens de famílias nobres e na exposição de doutrinas ascéticas por meio de coletâneas de exemplos. Desse modo, na conjuntura medieval cristã, esses escritos tinham como paradigma filosófico e princípios de ação as proposições do neoplatonismo e da escolástica. Massaud Moisés destaca a compilação de alguns textos medievais, como Nobiliários, realizada por Alexandre Herculano, e as coletâneas Horto do esposo (séc. XIV) de autor anônimo, e Castelo perigoso (séc. XIV) de autoria desconhecida (apud MOISÉS, 1981). Numa relação de condicionamento apriorístico da atividade narrativa, esses textos se fundamentavam no caráter didático para explanar determinada elaboração intelectual, uma concepção de mundo e certas regras de conduta. O período renascentista foi bastante profícuo ao desenvolvimento das modalidades literárias em Portugal. Dentre vários expoentes das mudanças, emerge a figura do escritor Gonçalo Fernandes Trancoso, considerado o primeiro contista português. Em sua obra assinalam-se traços da literatura de Boccaccio e de Don Juan Manuel e da filosofia de Plutarco. No entanto, desenvolveu um estilo de escrita mais próximo à oralidade de sua época e inclinado aos acontecimentos e casos recorrentes na península ibérica. Embora adotasse o viés moral e didático, Trancoso discorre a vida cotidiana em suas peculiaridades, diferenciando-se, assim, da anterior tradição dos exemplos quanto à coleta da matéria inicial para a composição das narrativas, conforme pontuam António José Saraiva e Óscar Lopes: A simplicidade da sua redacção, em que se nota uma grande insistência na coordenação sindética, muitos discursos directos com fraseologia popular, provérbios, o ingênuo realismo de certos pormenores, denotam uma cultura popular (...). Muitos dos contos estão localizados em lares burgueses de terras portuguesas, com tal particularização que a história social do


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século XVI deve necessariamente recorrer ao seu testemunho (SARAIVA, LOPES, 1986, p.539).

São narrativas onde é possível encontrar experiências referentes a várias categorias sociais e estratos sociais, tais quais calceteiros, vizinhos malquistos, mãe viúva, padre ermitão, tabelião, mercador etc. Conquanto tivesse o intuito de confirmar e propor um modelo pretérito de vida, Trancoso alia de uma forma diversa a sua cosmovisão à prática escrita, ao adotar a corporalidade do bulício diário das vibrações sociais. Não obstante esse influxo literário inicial que prossegue nos períodos subsequentes, a atividade da composição contística em terras portuguesas alcança uma escala de produção maior apenas no século XIX. Nesse século, o incremento da geração de narrativas curtas se dá por intermédio do avanço das técnicas tipográficas, do aumento do público leitor e do crescente prestígio dos prosadores. Massaud Moisés (1981) destaca duas vertentes principais, em que a produção de contos se bifurca com as obras de Rodrigo Paganino, Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis (corrente popular), e com as narrativas de Alexandre Herculano e Rebelo da Silva (corrente historicista). Salientamos como expoentes predecessores e influenciadores dessas duas vertentes os trabalhos de Paganino e de Herculano. As histórias criadas pelo médico e jornalista Rodrigo Paganino segmentam-se por intermédio de uma visão de mundo sustentada num modo de viver rural e na preservação das tradições cristãs, e se delimitam na simplicidade do vocabulário, na recorrência aos casos e no estabelecimento de uma simulação de uma convivência íntima e agradável entre o personagem Tio Joaquim e os demais personagens. A literatura de Alexandre Herculano oscila entre a adoção de um estoicismo, o qual propugna a renúncia de um destino individual em prol da pátria e da religiosidade (VECHI, 1994) e a preferência a teorias platonizantes de manifestação de arquétipos ideais (SARAIVA, LOPES, 1986). Desse modo, Herculano registra suas narrativas sob o viés da exaltação do espírito da nacionalidade, em circunstâncias localizadas em diversos momentos do passado, tais quais as guerras de reconquista, os conflitos entre a monarquia e o papado, o surgimento do reino português. Para tal, faz uso de componentes maravilhosos e fantásticos, alarga a demarcação temporal e espacial, hibridiza gêneros literários, aproxima à organização da novela, enfatiza algumas excentricidades dos costumes medievais e idealiza a coragem e a valentia das


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personagens. Por exemplo, em Lendas e narrativas (1964), o conto ―A dama pé-decabra‖, situado no período das guerras de reconquista, relata a paixão de um nobre ibérico por uma misteriosa mulher com pés forcados, semelhantes aos de uma cabra. Além disso, a narrativa é dividida em três partes, alterna duas histórias, instituindo recuos e avanços no tempo, e intercala momentos narrativos com trechos em verso e com várias digressões do narrador. Nos quatro últimos decênios do século XIX, predomina na produção contística portuguesa a composição narrativa de sabor realista e naturalista, como nas obras de Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Trindade Coelho, e Abel Botelho (apud SARAIVA, LOPES, 1986). São narrativas que se alicerçam nos postulados taineanos, proudhonianos, comteanos, tais quais os condicionamentos da literatura a fatores extratextuais, a predominância de uma doutrina política utópica e a busca de uma sistematização positivista da escrita. Nos contos ―No moinho‖ e ―Singularidades de uma rapariga loura‖, de Eça de Queirós (2008), e ―A velha‖ e ―A ruiva‖, de Fialho de Almeida (1988), é possível observar essa preponderância de proposições filosóficas e científicas sobre o arbítrio da composição literária. Não obstante o pendor para um apriorismo da cosmovisão realista e naturalista, a produção contística consolida-se como modalidade literária autônoma e orgânica, conforme discorre Moisés: Julgada em conjunto, a produção realista na área do conto revela, antes de mais nada, uma etapa aguda de literalização da fôrma: o conto [...] agora alcança a sua maioridade literária. [...] o conto realista, mesmo quando subordinado aos preceitos científicos, em voga no tempo, mira a alvos nitidamente estéticos, quer nos seus temas, quer no estilo. Adquire, por assim dizer, foros de expressão nobre de arte, a par do romance e da poesia, e passa a ser encarado pelos escritores não como estágio para a criação de obra mais complexa e volumosa, mas como fim em si. (MOISÉS, 1981, p.19).

Assim, nesse intervalo de tempo, a elaboração de contos em Portugal alcança e adota um conjunto de procedimentos que possibilitam delimitações e contornos próprios de expressão literária: busca-se a noção de unidade narrativa, aumenta-se a importância de recursos constitutivos (narração, descrição, diálogo), e se possibilita ao embate de atribuição universal dar lugar ao conflito da personagem. No Brasil, as origens das narrativas curtas se encontram nos casos, causos, contos populares, fábulas, lendas, histórias e historietas (ROMERO, 1954). Na maioria das vezes, essas narrativas são originárias de grupos sociais diversos, de procedência geográfica problemática e de expressão oral. Além disso, contribuem para assinalar os


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seus traços a diversidade da ascendência autóctone, eurasiana e africana, e a longevidade dos seus temas. Por outro lado, o princípio dos contos realizados na literatura escrita circunscreve-se a um período bem mais recente e a um quadro socioeconômico muito mais restrito. Nessa delimitação, pode-se fixar o início da produção contística na primeira metade do século XIX, e na divulgação realizada em periódicos da época. Em seus estudos sobre o conto brasileiro, Herman Lima (1997) sinaliza que o processo inicial dos primeiros contos escritos nesse período ainda não registra especificidades próprias à modalidade, pois, ainda não revelam uma qualidade literária na sua feitura narrativa. Além disso, parte desses contos se aproxima da novela, quanto à extensão, como no caso do ficcionista, poeta e historiador Joaquim Norberto de Souza e Silva; e, outra parte, abeira-se da crônica, quanto à determinação do enredo, como na produção de narrativas curtas do jornalista, tradutor e ensaísta Justiniano José da Rocha. Não obstante esses projetos iniciais, Lima (1997) situa no desdobramento da ficção romântica o fortalecimento da produção contística no Brasil. Para isso, o crítico estabelece o conjunto de narrativas da obra Noite na taverna, publicada em 1855, de Álvares de Azevedo, e o livro Lendas e romances, de Bernardo Guimarães, lançado em 1871, como representantes iniciais da elaboração do conto brasileiro. Acerca daquele trabalho ficcional de Álvares de Azevedo, o ensaísta destaca os procedimentos composicionais: A importância desse livro decorre de que as diversas histórias que o compõem, algumas de perene beleza literária, como o conto de Bertram, obedeciam já aos requisitos duma composição depurada, de plano definido e proporções equilibradas, a despeito da delirante concepção das suas personagens e de suas situações em permanente paroxismo (LIMA, 1997, p. 47)

Nesse caminho, o crítico situa essa obra de Álvares de Azevedo como divisor de águas das narrativas curtas na ficção brasileira quanto à elaboração estética, e como decurso de absorção e transformação das obras de Alfred de Musset, Lord Byron e José Cadalso. De outra parte, Lima também destaca o viés paroxísmico das circunstâncias em que são dispostas as personagens, tomadas por um pendor trágico, porém, inversamente, sem os desígnios e os propósitos edificantes dos destinos heroicos. Primeiramente em jornais, depois, em livros, a produção contística de Machado de Assis também se inicia nesse período de desdobramento da ficção romântica no


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Brasil. No entanto, após os dois primeiros livros de contos, na fase dita madura da sua obra, seus trabalhos atingem um grau de desenvolvimento singular, ao evidenciar uma habilidade e uma sagacidade nessa modalidade literária (ASSIS, 1973). Pois, o escritor tanto propicia a produção de contos de atmosfera como a elaboração de contos de episódios; além de proporcionar narrativas com temas, contextos e épocas bastante diversas, realizados sobre uma sutil camada de ironia e humor. Repercutindo essa amplitude, José Guilherme Merquior (1996) salienta algumas subdivisões na produção contística de Machado de Assis: os contos ―anedóticos‖, baseados em acontecimentos singulares; os contos de análise caracterológica, voltados para o detalhamento psicológico e para o desenho moral; os contos de estudos da mulher, o chamado ―eterno feminino‖; e os contos filosóficos, relativos a indagações universais do ser humano, com recorrências expressas ou tácitas a filósofos ou a correntes filosóficas, em especial aos postulados de Schopenhauer e Pascal. Assinaladas e expostas algumas das etapas de surgimento e de consolidação da produção contística portuguesa e brasileira, selecionamos alguns contos do livro Papéis avulsos, de Machado de Assis (1973), e da obra Serão inquieto, de António Patrício (2000), para observarmos alguns aspectos relacionados à interface entre literatura e filosofia nesses escritores. Os contos e ―Teoria do medalhão‖ e ―O espelho (esboço de uma nova teoria da alma humana)‖, do terceiro livro de contos de Machado de Assis, realizam-se sob a constelação de um contraste supostamente fortuito entre a postura magnânima adotada pelos personagens e o ridículo propiciado pelas suas ações. Realizado em modo dramático, isto é, somente por meio de diálogos, o conto ―Teoria do medalhão‖, no intervalo de sessenta minutos (entre às 23h e à meia-noite), relata uma conversa entre pai e filho acerca da imperiosidade de ser medalhão. A conversação evolui em direção aos cuidados a serem tomados e às atitudes a serem evitadas para se alcançar tal intuito. Dentre as quais, evidenciamos o debilitamento das virtualidades da filosofia ao ser dimensionada como mero adorno: - Nenhuma filosofia? - Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. ‗Filosofia da história‘, por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.(ASSIS, 1996, p.17)


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Assim, o texto concretiza uma crítica mordaz às noções gerais que regiam a vacuidade do intelectual mediano da segunda metade do século XIX, e estabelece uma relação de solidariedade implícita aos estudos filosóficos. Em ―O espelho‖ (ASSIS, 1996) a composição se efetua pela alternância entre narração e diálogos. Também envolvida à noite, a narrativa é constituída por meio de um debate de verniz metafísico e transcendental entre quatro ou cinco personagens iniciais. São senhores de prestígio lucubrando acerca de questões ditas insolúveis do universo, até que o debate chega à demanda sobre a natureza da alma. Nesse ponto, Jacobina, um personagem avesso a discussões, expõe de maneira exemplificada a sua concepção de dualidade da alma (exterior e interior). Para tal, desdobra-se uma segunda narrativa, numa época em que esse personagem fora nomeado alferes da guarda nacional. Jacobina narra a sua subordinação e dependência à maneira privilegiada como os outros o viam enquanto alferes, portanto, a predileção e a preponderância da alma exterior sobre a interior. Desse modo, no conto, ao representar negando, o espelho corporifica uma necessidade intrínseca (a aceitação) e dimensiona um infortúnio iterativo (a fragmentação). Benedito Nunes situa a composição de algumas narrativas curtas de Machado de Assis no âmbito da reelaboração e da transformação da filosofia cética de Enesidemo e de Agripa (MONDOLFO, 1965), ao associá-las a segmentos temáticos recorrentes: Na composição temática dos enredos ingressam motivos interrruptivos da certeza, que têm força de convicção à dos tropos relacionados pelos céticos, como razões especiais para a suspensão do assentimento. Vamos destacar alguns dos que se salientam nos contos: o espelhismo do Eu, que reflete a pose exterior, social, na identidade interior, pessoal, em ‗O espelho‘, de Papéis avulsos, e a contraparte do esvaziamento da identidade pessoal ao isolarse o indivíduo do espelhismo gregário em ‗Só‘, de Outros contos; a soberania da opinião, a ‗boa solda da instituição doméstica‘, ou o poder da linguagem gerando a autoridade e a verdade das ideias correntes e a evidência das ideias metafísicas e dos narizes metafísicos, como em ‗O segredo do Bonzo‘; produção dos lugares-comuns e das frases feitas em ‗O anel de Polícrates‘ e ‗Evolução‘. (NUNES, 2012, p. 134.)

Nessa relação de contos machadianos, Nunes aponta o diálogo com alguns tropos dos antigos céticos. Porém, segundo o crítico, na literatura machadiana a suspensão do assentimento não leva à imperturbabilidade ou à ataraxia, mas, diferentemente, conduz à inquietude e ao humor.


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O conto ―Diálogo com uma águia‖, de António Patrício (2000), está inserido no livro Serão inquieto, numa coletânea de cinco contos e de uma reunião de aforismos. A narrativa se institui por meio da alternância entre narração e diálogos. No entanto, o destaque se dá ao insólito da conversa entre o narrador-personagem e a águia, à diminuição da importância da ação externa, e ao primado da temática do acorrentamento do desejo do ser humano. Tendo como epígrafe um trecho de Assim falava Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (1997) - ―Écris avec du sang et du apprendras que le sang est esprit‖. ―Escreve com sangue e aprenderás que sangue é espírito‖. -, o conto perfila uma série de críticas realizadas por uma águia enjaulada ao comportamento acanhado e culpado (quanto aos desejos e pulsões), e venal (quanto à destruição dos recursos naturais) do ser humano. Reverberando tópicos das filosofias vitalistas de fruição da vida e criação estética, a exposição da águia ocorre de tal maneira como se os seus postulados fossem uma projeção das expectativas do narradorpersonagem em relação ao mundo. Porém, a situação se inverte e o narradorpersonagem cobra coerência da águia ao sugerir soltá-la para que realizasse aquilo que propõe. Nesse ponto, dá-se a surpresa, a águia também se conformou à vida segura que leva e, sarcasticamente, ri de seu interlocutor. Nesse diapasão, o conto concretiza ironicamente a distinção radical do papel do filósofo em relação ao do pregador, ao reiterar a desconfiança e a dúvida como paradigmas fulcrais da ação filosófica e literária.

Considerações finais

Neste trabalho foi possível expor um breve percurso da evolução do contos das literaturas portuguesa e brasileira até os momentos de consolidação da produção contística nos dois países, arrolando algumas vertentes de criação e assinalando diferentes maneiras de ação mútua entre os universos da literatura e da filosofia, como antecipação, simultaneidade, condicionamento e transformação. De outra parte, foi realizado um exame de contos de Machado de Assis e de António Patrício, nos quais foi possível detectar alguns procedimentos literários de transformação e de solidariedade em relação a tópicos e proposições da filosofia.


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THEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. Trad. Boris Schnaiderman. 4. ed., rev. São Paulo: 34, 1999. ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil - Folclore brasileiro. 2. Ed. anotada por Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954.


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BREVE CARACTERIZAÇÃO DO ESCRITOR CORNÉLIO PENNA Maura Camargo Oliveira (UEMS) Márcio Antonio de Souza Maciel (UEMS)

Resumo: A investigação aborda a caracterização do escritor modernista Cornélio Penna. Cornélio Penna é um autor de difícil caracterização nos limites do Modernismo brasileiro uma vez que sua obra transita entre o viés psicológico, intimista e elementos surrealistas. O objetivo da presente pesquisa, em fase de elaboração, é tanto realizar uma visada sobre parte da fortuna crítica do escritor como, também, observar como o mesmo é caracterizado pela crítica brasileira. Entre os críticos estão Mário de Andrade, Alfredo Bosi e Antonio Cândido, dentre outros. Na medida do possível, por fim, contribuiremos para a apresentação de Cornélio Penna, no contexto historiográfico do Modernismo no Brasil, assim como, igualmente, apresentar as principais caracterizações frequentemente atribuídas ao escritor e à sua obra. Palavras-chave: Caracterização; Cornélio Penna; Modernismo.

INTRODUÇÃO O Modernismo foi uma escola literária que retratou uma ―nova forma‖ de ver o mundo. No início do século XX, o mundo passava por inúmeras transformações e isso se refletiu, também, nas diferentes manifestações artísticas, dentre elas, a Literatura. É na Europa, por meio das Vanguardas, que encontramos argumentos em favor de uma reorganização da tradição literária o que proporcionou novas formas estéticas de representação e uma delas é a emergência do Modernismo. Como aponta Lúcia Helena, É no período compreendido entre os acontecimentos que geraram a explosão da primeira (1914-1918) e da segunda (1939-1945) Guerras Mundiais que vemos surgir os movimentos artísticos denominados vanguardas. [...] Reveladoras de uma época, as vanguardas têm hoje um significado histórico. São o sintoma de um mundo em crise, tematizando nas obras que produziram e sintetizando nos seus manifestos. A destrutividade de que se revestem muitos de seus programas, na sistemática agressão à velha ordem dos valores estéticos e culturais, é indicadora do abalo da sociedade européia, submersa no ciclo da violência (HELENA, 1996, p. 39).


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É na violência desse novo mundo entre guerras que os ideários das vanguardas se constituem como a tentativa de reorganização da tradição. Novos valores estéticos, uma nova forma de ver o mundo é apresentada, pois, era preciso criar novos mecanismos para entender e sobreviver em uma nova configuração social, muitas vezes, regida pela violência, pelos questionamentos que permeavam a vida de um novo homem. O Modernismo no Brasil, oficialmente, começou na ―Semana de Arte de 22‖ em

São Paulo, porém, em 1917, existiram indicadores dessa renovação na arte nacional. A partir da polêmica exposição de Anita Malfatti, encontramos elementos das Vanguardas Europeias, como comenta Lúcia Helena,

Um dos episódios que registra a divergência na recepção dos primeiros sinais da arte moderna entre nós é a polêmica provocada pela exposição da pintora Anita Malfatti, em São Paulo, em 1917. Monteiro Lobato publica um artigo (A propósito da exposição Malfatti, O Estado de S. Paulo, 20 dez. 1917) em que ataca duramente a pretensão modernista de Anita. Recém-chegada da Alemanha e tendo também estudado nos EEUU, suas obras apresentam traços do Expressionismo e do Cubismo, que modificam a antiga ―arte do retrato‖ e da descrição da natureza (HELENA, 1996, p. 43).

Nas palavras de Lúcia Helena, é possível delinear, a partir de Malfatti, aspectos da ―arte moderna‖ como, por exemplo, a incorporação crítica de elementos da tradição. Ocorre, no entanto, que a sociedade paulista e seus críticos ainda não estavam preparados para a ―arte moderna‖, por isso, a exposição recebeu inúmeras críticas. A partir da exposição de Malfatti, o Modernismo no Brasil, por conta disso, começa a tomar corpo e ganha contornos mais definidos, somente, na Semana de Arte Moderna de 1922. Compreendida historiograficamente como marco oficial do Modernismo brasileiro, ―semana foi o estopim de um processo que, se já se iniciara antes dela, apenas se consolidará depois, através dos manifestos, revistas e obras que lhe deram seguimento‖ (HELENA, 1996, p.50). Os objetivos do Modernismo Brasileiro, expostos na Semana de 22, possuem muitos pontos que dialogavam com os das vanguardas europeias e apresentariam, também, como principais propostas: renovação estética, busca pela renovação temática na focalização do cotidiano e na valorização do coloquial e regional, tendo como preocupação o fortalecimento de uma arte que valorizasse a cultura brasileira.


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O movimento modernista trouxe à Literatura Brasileira o conceito de modernidade artística: a ideia de que a liberdade formal que defendiam deveria levar a uma concepção crítica da realidade do país. A linguagem seria parte integrante e ativa dessa realidade e não um mero ornamento, como entendia a literatura acadêmica. Ao escritor modernista competiria trabalhar a linguagem de forma reflexiva. Não se admitia mais a separação entre forma e conteúdo, aspectos indissociáveis da palavra. Desenvolvido de maneira crítica e criativa, o trabalho artístico do escritor deveria propiciar uma nova visão de país. [...] Os modernistas também foram influenciados por correntes artísticas européias –o vanguardismo- mas com uma diferença fundamental: preocupavam-se com a pesquisa e a reflexão sobre a linguagem. Deveriam criar na prática dessa pesquisa e na construção do texto artístico o nosso próprio código literário. (ABDALA JUNIOR; CAMPEDELLI, 1997, p. 198-199).

O Modernismo trouxe à tona a busca por criar uma arte verdadeiramente brasileira. Uma de suas propostas é a expressão artística que dialogasse com o ―mundo brasileiro‖ e será, nessa ―nova‖ perspectiva, que a poesia e a prosa ganham ―novas‖ formas, estéticas e temáticas. Nomes como: Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, entre outros, dão testemunho da diversidade de estilos no Modernismo. É, pois, no contexto diversificado do Modernismo que o escritor Cornélio Penna tece sua obra literária. Marcas do momento histórico no qual o escritor viveu são perceptíveis em sua obra, porém, sob um olhar literário e esteticamente elaborado. Os ―mundos‖ das obras de Cornélio Penna podem suscitar imagens de um mundo real, porém, o diálogo acontece a partir de uma ressignificação do mundo real para o ficcional, através dos enredos, personagens, espaço e tempo que o autor nos apresenta. Este mundo ficcional é construído através de elementos que singularizam a expressão artística, para além do uso referencial da linguagem. O conceito de literariedade, seguindo o raciocínio de Chiklovski (2011), compreende a propriedade específica de construção da linguagem literária. Este processo, por sua vez, implica em uma apropriação individual, própria a cada autor, dos elementos linguísticos matizados em diferentes formas de expressão artística. O trabalho com a linguagem e a manipulação do real imediato está intrinsicamente associado aos mecanismos de construção do literário. Em outros termos,


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a literariedade compreende o fazer literário e sua complexidade é a própria diversidade do fazer literário, entendido como manipulação artística da linguagem. Como bem sabemos, a arte em geral não possui a obrigação de ser referente com o mundo real e nem significar alguma coisa, ela é por excelência autônoma. É baseado nessa autonomia da arte e da multiplicidade de procedimentos estéticos próprios ao literário, sobretudo no Modernismo brasileiro, pois, que entendemos a obra de Cornélio Penna, sob a égide dos processos de significação do literário. É a partir dos elementos que dialogam com a tradição literária que críticos tecem a crítica sobre a obra de Cornélio Penna. No presente texto, abordaremos alguns nomes, pois, se trata de um trabalho de pouco fôlego e optamos, por conta disso, por apresentar trabalhos mais ―divulgados‖ em compêndios literários e alguns livros. Há muitos estudos que se debruçaram sobre a diversidade de nossas produções modernistas como: A história Concisa da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi; O modernismo (1975), de Afonso Ávila; História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna (1974), de Mário da Silva Brito. No entanto, sabemos que avaliar o número extenso de escritores e obras modernistas é tarefa árdua e, muitas vezes, os estudos acadêmicos acabam por privilegiar escritores que tiveram uma expressividade maior no contexto literário. Não estamos aqui para desmerecer os vastos e importantes trabalhos que têm seu valor para a difusão de conhecimento e pesquisa, mas buscamos, nesse trabalho, conforme já dissemos, apresentar o escritor Cornélio Penna, a partir das principais críticas realizadas por alguns estudiosos. Nascido em Petrópolis, no dia 20 de fevereiro de 1896, no Rio de Janeiro, Cornélio Penna é filho do médico Manuel Camilo de Oliveira Penna e D. Francisca de Paula Marcondes de Oliveira Penna. Cornélio Penna viveu parte de sua infância em Itabira/MG e Pindamonhangada/SP. Com o passar dos anos e, depois da morte do pai, fixa-se em Campinas/SP, de onde sairia, depois, para o Rio de Janeiro, em 1919. A partir desse ano, já bacharel em Direito, mora no Rio de Janeiro e trabalha como jornalista, começando a pintar e desenhar. Entre 1922 e 1930, abandona a pintura e se dedica à literatura. Cornélio Penna foi funcionário público da Justiça e se casou com Maria Odília Queiroz Mattoso, com quem teve uma vida reclusa, e morreu em 1958, na capital fluminense. Escreveu Fronteira (1935); Dois romances de Nico Horta (1939); Repouso (1949) e A menina morta (1954). Suas publicações compreendem


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cronologicamente as primeiras décadas do século XX e sugerem ligações com o

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romance psicológico no universo modernista. Começamos pelo escritor e, também, crítico literário, Mario de Andrade, que no capítulo ―Romances de um antiquário‖, presente no livro O empalhador de Passarinho, de 1946, aborda a produção literária de Cornélio Penna. No texto é apresentado os romances de Cornélio Penna: Fronteira (1935) e Dois romances de Nico Horta (1939).

O escritor descreve sua impressão sobre os dois romances de Cornélio Penna, sendo ambos construídos através do ―tenebroso, do mistério, do mal-estar‖ (ANDRADE, 2002, p.125). No capítulo dedicado ao escritor Cornélio Penna, observamos que o escritor/crítico realiza uma análise/impressão dos dois romances já citados, de forma particular, e destaca o tom psicológico presente na produção literária de Penna.

Apesar dos seus exageros e nebulosidades, apesar do seu gosto pelo estudo dos anormais e mesmo do metapsíquico, o princípio psicológico de que Cornélio Pena se utiliza, vem lembrar aos nossos romancistas a hipótese riquíssima de dois e dois somarem cinco. Ou três. E esta me parece a principal contribuição deste romancista (ANDRADE, 2002, p.126).

O escritor de Macunaíma, por fim, observara o tom psicológico marcante na obra de Cornélio Penna. Assim como o escritor/crítico, temos Antônio Cândido que destacará, também, o teor psicológico na produção literária de Penna, ―Cornélio Pena e Lúcio Cardoso, igualmente marcados pelos valores católicos, constroem universos fantasmais como quadro das tensões íntimas‖ (CANDIDO, 1989, p.204).

Além do engajamento espiritual e social dos intelectuais católicos, houve na literatura algo mais difuso e insinuante: a busca de uma tonalidade espiritualista de tensão e mistério, que sugerisse, de um lado, o inefável, de outro, o fervor; e que aparece em autores tão diversos quanto Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, na ficção (CANDIDO, 1989, p.188).

Para Candido (1989), Cornélio Penna utilizava de elementos espirituais, misteriosos e fantasmais, remetendo ao psicológico. Também, aponta que Penna fez parte de um grupo, católico, que possui valores que remetem ao catolicismo em sua 5 Neste estudo, com relação às informações biográficas relativas a Cornélio Penna, tomamos como base a obra Um romance entre fronteiras: uma leitura do primeiro romance de Cornélio Penna de Terezinha Aparecida Perón Bueno.

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obra. Mesmo agregando uma característica que Mario de Andrade não apontou, observamos que em ambas descrições aludem para o teor psicológico, introspectivo presente na obra de Penna.

Trata-se do espaço do subsolo, grosseiramente correspondente ao que tem sido chamado romance psicológico e/ou da angústia religiosa... Por espaço do subsolo entendemos o que comporta, em relação não exaustiva, Cornélio Penna, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso e que, atualmente, se prolonga em certo Autran Dourado (ÁVILA, 2002, p.71).

Esses aspectos predominantes na obra de Cornélio Penna, psicológico e introspectivo, é destacado pela maioria dos estudos relacionados à obra de Penna, pois, é uma característica presente, também, em outros romances, principalmente, daqueles comumente atribuídos a década de 1930, do Modernismo. Para Bueno (2009),

Um dos hábitos conhecidos dessa crítica pioneira é assinalar a conversão de Cornélio Penna ao catolicismo, ocorrida1 em 1935, acrescentando-se que comungara no mosteiro de São Bento. Hoje esses dados, que nos soam estranhos, talvez funcionem como um índice para que se veja como funcionara a crítica ideológica, que teria marginalizado os romances do autor de 30. São ocorrências cujo registro, no entanto, se conserva, sendo curioso que a opção declarada do autor pelo catolicismo naquele ano seja sempre citada junto à data de publicação de Fronteira, tendo isso provavelmente corroborado para acentuar o viés religioso do romance, como um determinante direto em sua recepção crítica, e influindo, é claro, no julgamento dos que ainda viriam, vistos todos eles como romances católicos, pela chamada crítica de esquerda. (BUENO, 2009, p. 16).

Na obra de Cornélio Penna, a religiosidade é uma linha temática polêmica uma vez que a tensão religiosa encontra pontos de contato com a sensualidade e, por vezes, o erotismo. Bosi (1994) comenta que a narrativa do autor aproxima-se dos

[...] romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito. Exemplos, os romances psicológicos em suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, auto-análise...) de Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins [...] (BOSI, 1994, p. 392).


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Compreendemos que a subjetivação do herói, nos romances psicológicos de Cornélio Penna, ultrapassa questões puramente emocionais em direção a novos arranjos temáticos que problematizam o espaço social do qual emergem. Nas afirmações de Bosi (1994), Cornélio Penna é visto como sendo de um grupo de autores que faria parte de uma ambiência regionalista, mas que traz como especificidade o traço introspectivo. Para o crítico, o cenário literário entre 1930 a 1945 é ambientado em um conjunto eclético de tendências que se fundem como influência na literatura brasileira. Para o autor,

Entre 1930 e 1945/50, grosso modo, o panorama literário apresentava, em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento da lírica moderna no seu ritmo oscilante entre o fechamento e a abertura do eu à sociedade e à natureza (Drummond, Murilo, Jorge de Lima, Vinícius, Schmidt, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Emílio Moura...). Afirmando-se lenta, mas seguramente, vinha o romance introspectivo, raro em nossas letras desde Machado e Raul Pompéia (Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, José Geraldo Vieira, Cyro dos Anjos...): todos, hoje, ―clássicos‖ da literatura contemporânea, tanto é verdade que já conhecem discípulos e epígonos. E já estão situados quando não analisados até pela crítica universitária. A sua paisagem nos é familiar: o Nordeste decadente, as agruras das classes médias no começo da fase urbanizadora, os conflitos internos da burguesia entre provinciana e cosmopolita (fontes da prosa de ficção). Para a poesia, a fase 30/50 foi universalizante, metafísica, hermética, ecoando as principais vozes da ―poesia pura‖ europeia de entre-guerras: Lorca, Rilke, Valéry, Eliot, Ungaretti, Machado, Pessoa [...] (BOSI, 1994, p. 386).

Observamos que a obra de Cornélio Penna é tida como representação de um regionalismo que utiliza, por sua vez, de elementos psicológicos em um percurso narrativo introspectivo e subjetivo, o que aproximaria sua produção ao que Bosi denomina por ―romance introspectivo‖ (1994, p. 386). Verificamos que o escritor é caracterizado sempre apontando para o psicológico, introspectivo, misterioso, estranho, espiritual, dentre outros epítetos. Todavia, apesar de concordarmos que Cornélio Penna possua tais características em sua obra, devemos ressaltar que sua obra não pode ser enquadrada rigidamente a partir de uma única característica somente, pois, como já mencionado nesse trabalho, a arte é ―autônoma‖, e foge de enquadramentos intransigentes. Esta investigação, de uma parte da crítica do escritor Cornélio Penna, é uma forma de demonstrar como o escritor é caracterizado e enquadrado, porém, não é nosso


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objetivo classificar o escritor como apenas um escritor introspectivo/psicológico, uma vez que sua obra é de um valor e diversidade que excede a qualquer classificação rígida que venhamos a realizar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme a nossa proposta de investigação, apresentamos o escritor Cornélio Penna e sua caracterização a partir da crítica literária brasileira, porém, como o trabalho é de curto fôlego apresentamos algumas críticas, pois, entendemos que para a proposta de artigo essa abordagem cumpre seu propósito. Contribuímos, desse modo, para a apresentação do escritor Cornélio Penna, no contexto historiográfico do Modernismo no Brasil, ele está inserido no ―modernismo de 30‖, juntamente, com escritores enquadrados como introspectivos e psicológicos. Apresentamos as principais caracterizações frequentemente atribuídas ao escritor e à sua obra: introspectivo/a; psicológico/a; insólito/a e católico/a. Queremos entender, por fim, que a pesquisa contribuiu para a valorização do escritor, ao focalizar parte de sua fortuna crítica, pois, Cornélio Penna é um escritor pouco conhecido do público, em geral.

Referências: ABDALA JUNIOR, B.; CAMPEDELLI, S, Y. Tempos da literatura brasileira. 5 ed. São Paulo: Ática,1997. ANDRADE, M. O empalhador de passarinho. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p.125128. ÁVILA, A. O modernismo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 37 ed. São Paulo: Cultrix, 1994. BRITO. M, S. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. BUENO, T. A. P. Um romance entre fronteiras: uma leitura do primeiro romance de Cornelio Penna. 2008. Número de folhas: 151 f. (Dissertação- Mestrado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-05032010124616/pt-br.php Acesso em: 17 de maio de 2016.


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CANDIDO, A. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. Disponível em:<http://pt.scribd.com/doc/27946060/CHKLOVSKI-V-A-artecomo-procedimento-InTeoria-da-Literatura-Formalistas-Russos>. Acesso em: 22 jul. 2014.

HELENA, L. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo: Ática, 1996


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CONTADORES DE HISTÓRIAS: ARQUINARRADOR E O NARRADOREDITOR EM ENTRE AMIGOS, ROMANCE DE LUIZ VILELA Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL) Resumo: O romance Entre Amigos, do escritor mineiro Luiz Vilela trata-se de uma longa conversa entre cinco amigos que se encontram para beber cerveja, comer amendoim torrado, linguiça calabresa, entre outros quitutes. Narrado através de um longo diálogo entre esses amigos, em único fôlego, conduzido por um narrador heterodiegético, que constantemente muda o foco narrativo, de modo que as cinco personagens acabam, também, por se tornarem ―narradores‖. Entremeando e organizando essas ―pequenas narrativas‖, podemos observar a presença, nos dizeres de Ismael Cintra, de um arquinarrador e /ou um narrador-editor explícito. Dessa maneira, o que se pretende com o presente trabalho é analisar o romance Entre Amigos de Luiz Vilela, à luz da teoria do narrador e do foco narrativo, de modo a demonstrar a presença do arquinarrador, entidade narrativa constante na obra do escritor, e dos multi-focos narrativos, utilizados por Vilela, para construir um efeito de sentido de ―ângulos diversos‖ da sociedade brasileira do começo dos anos 80 e uma maior ―ilusão‖ de realidade para o leitor. Nos valeremos das teorias sobre o romance enquanto gênero literário dos teóricos Mikhail Bakhtin, György Lukács, Lucien Goldmann, e dos estudiosos das ―vozes‖ no romance como Oscar Tacca, Wolfgang Kayser e o já citado Ismael Cintra, para melhor demonstrarmos a proposição acima levantada. Palavras-chave: Luiz Vilela; Arquinarrador; Entre Amigos.

Introdução O escritor e crítico literário Caio Fernando Abreu, em uma resenha sobre o romance (assim chamado pelo autor, mas novela, para Caio) Entre Amigos de Luiz Vilela, publicado em 1983, escreve: ―Eles falam. Numa noite qualquer de fim de semana de uma cidade provinciana (que tanto poderia ser Belo Horizonte como Porto Alegre ou Curitiba). Falam sem parar. [...] Falam coisas às vezes assustadoras‖. (Abreu, p. 75). Além de falarem muito ―deixam emergir alguns fragmentos de verdades sobre si mesmos‖ (ABREU, 1983, p. 75). A história em questão é uma longa conversa entre cinco amigos que se encontram para beber cerveja, comer amendoim torrado, linguiça calabresa, entre outros quitutes. O espaço é único: o apartamento de um deles: Marcos, casado com Rita, moça simples e boa dona de casa. Os outros personagens são um escritor do Rio de Janeiro, Ezequiel, aparentemente solteiro, e um outro casal: Crisóstemo, mais conhecido como Pipa, um comerciante, casado com Leila, professora. Esta conversa é conduzida por um narrador heterodiegético, que constantemente muda o foco narrativo, de modo que os


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cinco personagens também se tornem ―narradores‖, tornando-se assim, esse narrador, nos dizeres de Ismael Cintra, um arquinarrador, ou um narrador-editor explícito. A extensa Fortuna Crítica do livro, analisada na monografia ―O gênio e o urubu‖ do professor Rauer Ribeiro Rodrigues, aponta o fato de os personagens ―contarem histórias‖ o tempo todo, tornando-se ―narradores‖. Em outra resenha sobre o livro, publicada também no ano de seu lançamento, 1983, no jornal O Estado, de Santa Catariana, Salim Miguel observa que ―Utilizandose de um artifício ficcional, Vilela vai intercalando causos narrados por um ou outro personagem, causos que são motivados pelo papo e pelas recordações e que adicionam um esclarecimento ao que vem sendo abordado‖. Outro crítico, John Parker percebe que o narrador é substituído pelos personagens, ―que em determinados momentos também assumem o papel de narradores‖. O escritor Luiz Vilela em entrevista concedida por ocasião do lançamento do livro faz declarações que iluminam a compreensão da obra, ao elucidar o seu modo de construção de suas narrativas e do seu modo de pensar a literatura, a sua e a feita, na época, no Brasil. Diz Vilela que ―Dentro das minhas possibilidades, estou procurando captar ângulos diversos (grifo meu) daquilo que conheço da sociedade brasileira hoje‖. O que, a nosso ver, justifica a escolha dos multi-focos narrativos. Diz anda que pretende mostrar as diversas mudanças, sejam físicas e morais, de uma cidade do interior, ―que começa a pagar o desenvolvimento com a moeda da violência, das drogas, do homossexualismo, da desumanização, enfim‖. Ressalta ainda que a literatura de qualidade, seja no Brasil, seja no exterior, está buscando mostrar que ―a tragédia está mesmo é no banal‖ e que ―Caminhar em direção à realidade é uma tendência não só da literatura brasileira hoje, mas de toda moderna literatura digna desse nome‖, e completa que ―o grande tema da literatura contemporânea é o cotidiano. É da sua descrição que nasce inclusive a denúncia do pior sintoma dos tempos atuais: a perda da identidade. O resto é escapismo‖. E, a nosso ver, a perda da identidade parece ser o ―grito sufocado‖ que os personagens de ―Entre Amigos‖ querem externar, uns aos outros. Dessa maneira, o que se pretende com o presente trabalho é analisar o romance Entre Amigos, de Luiz Vilela, à luz da teoria do narrador e do foco narrativo, de modo a demonstrar o uso do arquinarrador e dos multi-focos narrativos, utilizados por Vilela, para construir um efeito de sentido de ―ângulos diversos‖ da sociedade brasileira do começo dos anos 80 e uma maior ―ilusão‖ de realidade para o leitor.


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A Teoria O arquinarrador e o foco narrativo (narrador-editor) Cada vez mais tem surgido teorias a respeito do narrador. Teorias estas que às vezes se contradizem, principalmente por deixar confuso a ideia exata do que é o narrador e suas funções dentro da trama romanesca. Wolgang Kayser tenta resolver o problema com uma definição exata do que é o narrador: ―O ‗narrador‘ não é o ‗autor‘, mas um personagem de ficção no qual o autor se metamorfoseia, é um papel adotado por ele no ato da criação romanesca. O narrador é o personagem cuja função é narrar‖ (KAYSER, 1970, p. 498). Partindo desse pressuposto de ―metamorfose‖ que o narrador adquire dentro da trama fictícia, Ismael Cintra, no artigo ―Dois Aspectos do Foco Narrativo‖, se detém nos efeitos e na importância do narrador e do foco narrativo para uma análise eficaz de uma história de ficção, seja conto, romance ou novela. Ismael Cintra, para desfazer algumas discordâncias teóricas acerca dos muitos conceitos sobre narrador e foco narrativo, cria um neologismo, o arquinarrador, que segundo ele, ―nunca inteiramente concretizado na ficção, a não ser por uma série de índices que prenunciam a sua figura (os verbos discendi, por exemplo), o ‗arquinarrador‘ tem a sua voz oculta entre as demais vozes e a sua imagem diluída nas personagens. Com isso, ele desfruta, para dizer com Kayser, do privilégio da onipresença e da onisciência‖ (CINTRA, 1981, p. 6). O narrador impessoal, segundo Cintra, tem por objetivo causar o efeito de ―ilusão de realidade‖, não exercendo nenhum tipo de comentário, e apesar de poder ser onipresente e onisciente, abstêm-se em nome dos seus personagens. Eles são o foco principal da narrativa, eles serão os narradores, o romance cria, assim vida própria, com o autor-implícito e o arquinarrador, apenas organizando o modo de contar e quem vai contar, valorizando muito mais o foco narrativo em detrimento do próprio ato de narrar. Com efeito, o narrador manifesta-se apenas como uma voz impessoal, deixando para os personagens a missão de contar o que pensam, sentem ou fazem, sem nenhum juízo de valor por parte do narrador, que apenas organiza a ordem dessas ações. Para Wayne Booth, o autor-implícito é uma ―espécie de diretor de cena que permanece nos bastidores da obra não se deixando ver, a não ser através de uma série de índices como a escolha (edição?) e as constantes alterações do foco narrativo, a ordem da narração, etc‖ (BOOTH, 1970, p. 289).


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Ainda com relação a essa ―voz narradora‖ que se abstém do narrar em detrimento do narrar dos personagens, Ismael Cintra afirma que ―o autor está neste exato momento presentificando uma força mediadora e transformadora em toda a história. Esta voz narradora impessoal fica subordinada ao ‗autor-implícito‘, visão momentânea do autor‖ (CINTRA, 1981, p. 7). O narrador impessoal e organizador de pequenas narrativas assume máscaras, portanto, passíveis de variação, segundo Cintra, encontrando-se por trás dele suportes para essas mutações, suporte esse que governa os diferentes focos de visão e ordena o discurso, escolhendo, dispondo e alterando no decorrer da narrativa as funções e posição do narrador ou narradores, propriamente ditos. Ora, se esse narrador, que está acima do narrador ou narrador explícitos, apenas organiza os discursos de modo a privilegiar, cem por cento dos focos narrativos, pode-se chamá-lo de narrador-editor, e quando aparece, sutilmente na narrativa, um narrador-editor explícito. Ismael Cintra, ainda concentrando-se no problema das variações do ponto de vista, chama a atenção para o fato de que ―o ponto de vista ou os pontos de vista uma vez que podem variar muito numa obra, não passam de uma variação de um olhar mais amplo e abrangente, a ótica do arquinarrador‖. (CINTRA, 1981, p. 8). Acrescenta ainda que ―o acesso a uma possível visão global da história só é permitido graças as visões parciais e relativas fornecidas pelo ponto de vista explícito e por aqueles que deixaram de ser atualizados na narrativa‖. Vale citar neste sentido a experiência de alguns escritores que escolhem as diversas personagens de suas histórias com narradoras. O teórico ressalta ainda a importância do foco narrativo como metodologia fundamental para se analisar uma história de ficção. Ainda com relação à categoria ―Arquinarrador‖, segundo Ismael Cintra, um neologismo criado por ele, diz: ―Na codificação da história pelo arquinarrador, portanto, o escolher determinado foco significará sempre ocultar outros possíveis. E esse gesto não dependerá, com certeza, apenas do arbítrio do arquinarrador; a pertinência da escolha poderá ser julgada pela carga de valores a veicular‖. (CINTRA, 1981, p.8) Cintra ressalta ainda, ao final do seu trabalho sobre o foco narrativo, que a escolha deste é uma questão ideológica, pois a escolha do foco narrativo incide diretamente com a o efeito de sentido que se quer passar para o leitor, e no caso dos múltiplos focos narrativos escolhidos pelos autores, sobretudo na modernidade, causam um efeito de maior realidade na trama romanesca. Diz ele que ―nesta relação entre o ser


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(a conotação ocultada) e o parecer (a conotação privilegiada) pode-se localizar uma função ideológica‖. (CINTRA, 1981, p.9) Outro estudioso a trabalhar as inquietações do romance moderno e as funções do narrador, sobretudo a do romance objetivo e o narrador impessoal, Oscar Tacca, no livro

As vozes do romance, observa que a estrutura do romance Além de uma questão de planos e de ‗perspectivas‘, é também uma questão de polifonia e de ‗registo‘, alguém conta um acontecimento – fá-lo com a sua própria voz; mas também cita, em estilo direto, frases do outro, imitando eventualmente a sua voz, a sua mímica e até os seus gestos; por momentos resume, em estilo indireto, algumas das suas expressões, mas a sua própria voz, inconscientemente , denuncia, nas inflexões, o contágio da voz do outro; às vezes, na reprodução das afirmações que lhe atribui surge o acento da sua própria paixão. Um bom ouvido, distingue-o. E, frequentemente, é na sutileza desse registo que reside o prazer que nos causam algumas narrativas ‗imparciais‖. (TACCA, 1983, p. 30).

A consciência reduz-se ao olhar, diz ele, acrescentando que ‖não há mais ‗eu‘, este converteu-se num olhar que se ignora, olhar do homem na primeira manhã de si mesmo e do mundo; mas esse puro olhar não é um olhar inocente; há que fazer um esforço para ver assim‖. (CINTRA, 1981, p. 31). Afirma ainda que o narrador pode se utilizar da visão ou visões que um determinado personagem ou vários personagens têm do mundo. É das diferentes vozes que o narrador modula através da sua, como num sutil jogo de espelhos. Da livre seleção e da combinação do que contar e do como contar é que nasce o foco narrativo, mas a visão do narrador determina, explícita ou veladamente, a perspectiva do romance. Com o romance moderno, segundo Cintra, o foco narrativo ganha em intensidade, pois o narrador se esvai diante da grandeza da realidade, tornando-se assim uma ―testemunha‖, que nada pode fazer apenas contar a ―tragédia do cotidiano‖, para usarmos as palavras de Vilela. Esse narrador registra apenas as formas de pequenas fatalidades. Oscar Tacca, no livro As vozes do romance, diz: A narração ganha uma vibração humana se o narrador, em lugar de se conceder a si próprio um ponto de vista privilegiado para a sua informação, se cingir àquela que podem ter os personagens; se, renunciando a visão onisciente, optar por ver o mundo com os olhos deles. As coisas, os fatos e os seres tomam, imediatamente, a forma e o sentido que têm para cada personagem, não para um juiz superior e


234 distante. O narrador não decreta, mostra o mundo tal como o veem os seus heróis. Distribui, pois, um caudal de informação equivalente à destes: Renuncia àquilo a que James chamava a ‗majestade encoberta da irresponsável qualidade do autor‘. Esta forma exige, naturalmente, uma maior participação do leitor, que deve estar alerta: o que se diz não é o que é, segundo Deus ou um espectador imparcial, mas aquilo que os personagens creem que é. (TACCA, 1983, p. 73).

É a visão do herói, ou as visões dos heróis do mundo é que interessam ao narrador, ―contar‖ com os olhos deles, apresentar o mundo através de múltiplos ângulos, para que a vida seja compreendida em sua totalidade. Wayne Booth, em A Retórica da Ficção, afirma que ―a manipulação do ponto de vista pode revelar o significado de uma obra‖. (Booth, 1970, p. 288). E vai além, dizendo que: ―pelo tipo de silêncio que mantém, pelo modo como deixa aos personagens a tarefa de resolverem os seus destinos ou contarem as suas histórias, o autor pode conseguir efeitos que seriam difíceis ou impossíveis se se apresentasse a si próprio, ou a um porta-voz fidedigno, falando-os direta ou autoritariamente‖. (Booth, 1970, p. 288). O ―ar de naturalidade‖ alcançado pelo narrador impessoal é importantíssimo para o mistério da leitura pela primeira vez, portanto essa ―consciência desprivilegiada‖ conseguida através desse narrador cria muito mais o efeito de realismo, ou hiper-realismo que se quer alcançar. A trama, com a utilização do arquinarrador, adquire aspectos de lucidez absoluta, unicidade de efeito, ausência de complicações subjetivas ou variações de tom, observador externo e impessoal. Booth afirma que uma das glórias da ficção é conseguir englobar precisamente o tipo de complexidade sem perda de clareza nem de intensidade. Mas essa complexidade só pode ser intensa se os elementos que a compõem forem feitos intensos, cada um a seu modo.

O Livro

No romance Entre Amigos, Luiz Vilela optou por um narrador heterodiegético, uma testemunha ocular dos acontecimentos narrados ali, uma espécie de ―voyeur‖ de uma longa cena: uma conversa entre amigos em uma noite de um fim de semana, em uma cidade prosaica do interior. A trama, quase inexistente, nos apresenta cinco amigos,


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que ―narram‖ suas experiências, angustias e taras, sempre partindo dos problemas enfrentados por uma cidade que está crescendo e paga por seu progresso. Esse narrador, apenas observa, sem jamais julgar seus personagens, pelo contrário, faz deles, os ―verdadeiros‖ narradores da história, como podemos ver logo na abertura do livro, que já começa com o diálogo entre os personagens em curso, sem sabermos qual foi o início definitivo daquilo tudo: − A cidade progrediu muito – disse Marcos: − imagine você que há menos de cem anos isso aqui era uma aldeia de índios... − Estou imaginando – disse Ezequiel; − agora prédios, carros, barulho... − Você precisa ver é quando os meninos apostam corrida – disse Rita: − aí sim, essa rua vira um inferno; quem quer dormir, pode desistir. (VILELA, 1983, p. 8). Está aqui exercendo o papel de ―editor‖ dos múltiplos focos narrativos, como se fosse uma ―entidade‖ maior, que está ali apenas para dizer a hora de cada personagem-narrador ―contar‖ suas histórias, que juntas, em uma espécie de caleidoscópio, ao final, configura-se como uma só. Por isso, em Entre Amigos, temos, nos termos de Ismael Cintra, um ―arquinarrador‖, ou um ―narrador-editor‖, para usarmos outro termo, que nos parece ser mais adequado, levando em conta, que o ―arquinarrador‖ também é o contador da história, mas em Entre Amigos, ele ―organiza‖ a ordem das histórias, retirando-se quase totalmente de cena, delegando ―apenas‖ os múltiplos focos narrativos:

Marcos olhou para Ezequiel: − Já pensou se tivesse... Ezequiel riu. − Uma coisa nós devemos ao Gregório – disse Pipa; − isso ninguém pode negar; a Campanha de Saneamento Moral. (VILELA, 1983, p. 9)

Podemos dizer, então, que se trata de uma romance onde o foco narrativo é a instância narrativa que exerce maior predominância. A figura do ―narrador-editor‖, em

Entre Amigos fica mais evidente pela escolha do único cenário escolhido pelo autor: a sala do apartamento de Marcos e Rita. O narrador, como um mero espectador de uma cena de teatro, fica limitado a esse único espaço, que vai sendo desnudado aos poucos. Somente na página 17, vemos


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um indício da sala: ―– Pois é... – Marcos recostou-se na poltrona‖. (VILELA, 1983, p. 17). E só na página 18 é que vemos alguns detalhes do cenário: ―Marcos se levantou e foi até a janela: ficou olhando lá embaixo a cidade iluminada‖. (VILELA, 1983, p. 18). Um indício de que se trata de um apartamento, palavra não mencionada pelo narrador. Depois: ―Marcos não respondeu; pegou a cerveja na mesinha do centro encheu seu copo; depois o de Ezequiel e o de Pipa, esvaziando a garrafa‖. (VILELA, 1983, p. 18). E por fim, a citação de outro cômodo da casa: ―Rita se levantando para ir à cozinha buscar outra cerveja: - nunca te vi assim‖. (VILELA, 1983, p. 18). Note que há a referência à cozinha, mas o narrador não nos diz o que acontece lá. A sala nunca fica vazia, mas alguns personagens ―saem de cena‖, e quando isso acontece, o narrador se limita a reproduzir as falas dos personagens que ficaram na sala. Como podemos ver no exemplo abaixo: − Ah, Cris, vamos mudar de assunto. − Vamos – disse Pipa se levantando: − vamos mudar de assunto, e vamos dar uma mijada... – e ele se encaminhou para o banheiro, balouçante, os braços arqueados sobre a brilhante calça de tergal furtacor. Marcos se levantou também: − Vou buscar mais uma cerveja; ô pessoal que bebe. Pegou a garrafa e foi. − Toda vez que eu vejo alguém falando em emagrecer – disse Rita, [...] (VILELA, 1983, p. 31).

Outros espaços são citados pela fala dos personagens: como o lado exterior do apartamento, a cozinha, a estante de livros de Marcos que está em outro cômodo, entre outros. Esse ―narrador-editor‖, diferentemente de alguns textos (contos, romances e novelas) de Luiz Vilela, que se ―esconde‖ sob a máscara do ―puro‖ diálogo, este se explicita, mesmo que timidamente, em momentos pelos verbos ―discendi‖, ou em momentos com a falta dele, predominando assim o discurso direto: − Pra você é − disse Leila. − Você acha?... − Não estou falando disso, Crisóstomo; estou falando de engordar; pra você amendoim é um veneno; você não sabe que amendoim é das coisas que mais engordam? − Sei; tou careca de saber isso. (VILELA, 1983, p. 30).

. Em apenas um trecho, o narrador utiliza o discurso indireto: ―Rita respondeu da cozinha que já estava indo; logo apareceu‖. (Vilela, 1983, p. 46).


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No romance Entre Amigos, Luiz Vilela se vale da consciência de todos os cinco personagens para mostrar a sua visão de mundo. O narrador-editor, ao se valer dessas ―cinco consciências‖, constrói, em uma perspectiva cambiante, um caleidoscópio sobre o mundo, sobre a sociedade que se observa. Mostradas de modo tão diferentes, as cinco personagens arroladas constituem, em grau diverso, cinco figuras de notável individualidade; e isso indiscutivelmente, porque cada uma foi apresentada, dispondo-se com coerência os meios escolhidos para descrevê-la: eles mesmos. Ismael Cintra, ao apontar como o ―arquinarrador‖ se comporta diante de seus personagens diz, ―Qualquer diálogo, ou palavra de um personagem se traduz, assim, na suspensão, no abandono da atitude narrativa‖. (CINTRA, 1981, p.8) Em Entre Amigos os personagens, o tempo todo, ora um, ora outro, assumem uma atitude narrativa. Essa

―atitude narrativa‖, atribuída a diversas personagens, confere uma maior credibilidade à história que se quer contar, pois Vilela quer assim, causar um maior efeito de realidade a essa história. . Em Entre Amigos, mesmo mantendo uma visão ―dita‖ onisciente, o arquinarrador, não só vê o mundo com os olhos dos personagens, mas deixam que eles contem como veem o mundo, todos eles, adquirindo assim uma dimensão muito mais humana, daí a fundamental importância da escolha dos múltiplos focos narrativos. Vilela, em Entre Amigos, escreve um romance onde todas as partes da ação prestam-se a ser representadas, e quando nos mostra as ações a serem relatadas, estes relatos veem dos personagens, numa mutação constante do foco narrativo. Diante desse narrador, os personagens que estão ali, diante dele, falam sem parar, e contam suas histórias, cabendo a esse narrador, apenas o papel de organizá-las. O personagem Crisóstomo, mais chamado pelos amigos de Pipa, ilustra, em uma fala, essa necessidade premente que eles têm de falar, de contar suas experiências: − Vamos falar – disse Pipa, espichando as pernas e cruzando as mãos sobre a barriga; − vamos falar. Eles não falam mal da vida da gente? Então vamos falar mal da vida deles. Todo mundo fala mal de todo mundo. Já viu alguém que fala mal de todo mundo? Eu nunca vi. Então vamos falar, todo mundo falar mal. Quer coisa mais gostosa do que falar mal dos outros? É a coisa mais gostosa que existe. (VILELA, 1983, p. 28).

E é o que eles mais fazem, falar e contar pequenas histórias:


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O personagem Marcos, apontados por muitos críticos, como um dos alter egos de Vilela, é o que mais conta ―causos‖ e experiências, todos com uma dose de acidez e ironia. Sua primeira ―narrativa‖ é a da tia Celina, uma senhora que fora assaltada: ― – A propósito – lembrou Marcos, − há um caso ótimo: uma velhinha aí que foi assaltada essa época‖. (VILELA, 1983, p. 10). A expressão ―há um caso ótimo‖ é uma marca desse narrador, que prepara os seus ―ouvintes‖ para a história que se vai narrar, uma moldura narrativa. Outra história que ele conta é a do Russo e do Nadim, um ―causo‖ clássico de bullying escolar e homossexualismo. Mas a maior história é uma espécie de metaficção, a história fictícia que Marcos imagina poder acontecer com o Raposo, diretor da faculdade onde dá aula: − O pior é que nada disse vai adiantar... Quando chegar o dia dele... Vocês sabem como o Raposo vai morrer? Sabem? Não. Vocês não sabem. Mas eu sei. Vai ser numa noite, no começo da noite, quando ele chega na Faculdade. O Galaxie preto, seu reluzente Galaxie preto, acabou de parar. (VILELA, 1983, p. 60).

E nas páginas posteriores, ao modo de um conto curto, narra, de forma tragicômica com toques de sadismo sexual a morte de Raposo. A ―atitude narrativa‖ de Marcos é a que mais se sobressai, suas ―histórias‖ contêm todas as características da narrativa curta. Não é à toa que muitos críticos o apontaram como um dos ater egos de Vilela, ao lado de Ezequiel. Ainda conta outras duas menores, como é o caso dos bois no caminhão (p. 63) e o veneno de barata (p. 65). Outro personagem a contar várias histórias é Pipa. E as duas histórias que conta se relacionam com o preconceito que tem contra os homossexuais, para ele um problema advindo do crescimento da cidade. A primeira história, mais curta, é o relato de uma experiência que teve quando deu carona a um homossexual: ―− Esses dias um me pediu carona na estrada. Eu dei; dei porque não sabia que ele era, é lógico. Depois é que eu vi, depois que ele já estava dentro e começou a conversar comigo. Imagina, um rapazinho, devia ter no máximo uns dezessete anos. E bicha, bicha louca mesmo‖ (VILELA, 1983, p. 21), e a história maior é a do Rosinha, um colega de escola também homossexual, que ele, Pipa, e outros colegas abusaram sexualmente. O relato de Pipa, o que dura mais, está cheio de características narrativas, de um contador de ―causos‖ nato: ―Já te falei no Rosinha?‖ (VILELA, 1983, p. 22), ―Bão: esse dia, nós três, eu, o Furunco e o Taturana, passamos a conversa no Rosinha‖ (VILELA,


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1983, p. 23). E quando interrompido por outro personagem: ―Calma – disse Pipa, − vamos devagar: não ponha o carro adiante dos bois‖. (VILELA, 1983, p. 23). Rita, a mulher de Marcos, é outra personagem a assumir, ainda que em menor grau do que o marido, uma ―atitude narrativa‖, ao ―narrar‖ duas pequenas histórias. A primeira é a da Irmã Guilhermina: ―− Toda vez que eu vejo alguém falando em emagrecer – disse Rita, − toda vez que eu vejo alguém falando em regimes, essas coisas, eu lembro da Irmã Guilhermina lá no colégio: ‗Vamos perder uns quilinhos?‘‖. (VILELA, 1983, p. 31). Rita, a partir daí conta a história da sua professora de Educação Física, que se insinuava para ela. Temos aí outra história de homossexualismo, tema que parece preocupar todos os personagens. Ou seria a presença do ―autor-implícito‖ preconizada por Booth? E por conta da história da Irmã Guilhermina, Rita lembra de outra história da sua infância, a de Sô Jerônimo, um vaqueiro da fazenda de seu avô que passou mal e teve que ser levado às pressas para o hospital. Chegando lá ―descobriu, simplesmente, que o Sõ Jerônimo não era Sô, era Sá‖. (VILELA, 1983, p. 38). Os personagens Leila e Ezequiel também assumem uma ―atitude narrativa‖, contando, ao longo da história, apenas uma história cada um, mas que se mostram altamente eficazes no efeito de sentido que Vilela pretende fazer e que culmina na explosão de violência da cena final. Leila, conta como foi violentada pelo pai: ―– Meu pai um dia me pegou masturbando. Eu tinha nove anos. E aí sabe o que ele fez? Me segurou na cama, me segurou, abriu minhas pernas e: meteu a mão; ele me bateu tanto, tanto que eu quase desmaiei‖. (VILELA, 1983. p. 49). Ao longo de três ou quatro páginas, entremeadas pelas observações e interações dos outros personagens, ela narra essa experiência brutal e significativa para o seu momento de libertação ao final do livro. Outro em ―atitude narrativa‖ é Ezequiel, também considerado pela crítica um alter ego de Vilela, o único escritor dos cinco. Também, à maneira de um pequeno conto, Ezequiel conta a história do encontro entre dois professores que tinham a mesma deficiência nas pernas, só que em lados opostos e por ironia do destino vão trabalhar na mesma escola e no mesmo horário, causando constrangimento aos dois, até que por determinação de alguém da direção da escola, um foi transferido para outro horário. A narrativa de Ezequiel é a que mais se aproxima do ato de narrar, e se revela, nesse micro relato, um ―contador de causos‖ nato, o que se evidencia na moldura clássica escolhida por ele para começar a sua narrativa:


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– Bom: era uma vez um colégio, e nele havia um professor que mancava da perna direita. Todo dia, na hora de começar sua aula, lá ia o professor pelo longo corredor do colégio, mancando de sua perna direita, e quando terminava a aula, lá vinha ele, pelo longo corredor do colégio, mancando de sua persona direita (VILELA, 1983, p. 74).

Uma história, que pelos seus elementos narrativos, destoa das demais histórias contadas pelos outros personagens, por ter características literárias óbvias, como o ―era uma vez‖, as marcas temporais definidas, um conflito claro entre dois personagens; e pelo jeito de narrar tem ―ares‖ de lenda, quase infantil em sua simplicidade, mas que diz tudo, inclusive sobre o caráter de Ezequiel, um defensor da literatura. Narrativas e narradores tão díspares um dos outros, mas que formam um todo coeso e coerente, por apresentar histórias de si mesmo, por construírem, eles mesmos, e não o ―arquinarrador‖ suas imagens, ao apresentarem histórias com temas que tanto os inquietam, histórias que juntas compõem um microcosmo dessa sociedade que Luiz Vilela, em sua entrevista diz querer revelar. Problemas de uma cidade que cresce e que se agigante assustadoramente sobre seus habitantes, lhes causando o espanto, a dor, o inconformismo, trazendo-lhes a liberdade, sobretudo do pensamento.

Conclusão

As categorias do narrador e do foco narrativo no romance, sobretudo no romance contemporâneo, são as mais estudadas, contendo assim várias nomenclaturas, algumas delas excludentes. As categorias de ―narrador-implícito‖, ―autor-implícito‖, ―arquinarrador‖ são relativamente novas, em estudos de Wayne Booth, Oscar Tacca, Friedman e mais recentemente com Ismael Cintra, todas advindas dos estudos e romances de Henry James, o pioneiro nessas categorias, e que a nosso ver se aproximam e explicam os efeitos de sentido que Luiz Vilela procurou fazer ao escolher um narrador heterodiegético, altamente impessoal, em seu romance Entre Amigos. Indo além dessas categorias, trouxemos o conceito de ―narrador-editor‖ da professora Eunice Prudenciano, que a nosso ver explica melhor esse ―arquinarrador‖, que se anula completamente, mas que o tempo o vemos manipulando e editando os múltiplos focos narrativos, cinco no caso desse romance. Esse narrador cede a sua voz às cinco outras ―vozes‖, para utilizarmos Tacca, vozes essas que se tornam verdadeiros


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narradores, com ―atitudes narrativas‖ bem definidas, ―contadores‖ de histórias, causos, experiências, angústias e se configuram como cinco maneiras de contar uma mesma história: a caótica e profunda influência do crescimento de uma cidade do interior sobre a vida de seus habitantes. Uma história contada com a utilização dos vários ângulos que Vilela, em entrevista, afirmou querer fazer naquele momento da sua poética.

Referências: BOOTH, C. The retoric of fiction. Chicago, The University of Chicago Press, 1970. CINTRA, Ismael Ãngelo. Dois aspectos do foco narrativo. São Paulo, Revista de Letras, Unesp, 1981. KAYSER, Wolfgang. “Qui raconte le roman?”, Poétique 4, Paris, Seuil, 1970. TACCA, Oscar. As vozes do romance. Trad. GOUVEIA, Margarida Coutinho. Coimbra: Livraria Almendina, 1983 VILELA, Luiz. Entre Amigos. São Paulo: Ática, 1983.


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O GRANDE DESASTRE DE AVIÃO DE HOJE: UMA ANÁLISE DE CORPOS, DE LUIZ VILELA Rodrigo Andrade Pereira (UFMS/CPTL) Resumo: O presente artigo tem por finalidade a análise do conto ―Corpos‖, da coletânea Você Verá de Luiz Vilela à luz da história do conto, tendo por referenciais teóricos Baktin, Sophia Angelides, Julio Cortazar, Edgar Alan Poe, Charles Kiefer e Ricardo Piglia, utilizando suas análises e concepções sobre o conto moderno. Como percurso analítico, no primeiro momento aborda-se a história do conto, desde as inscrições na caverna, passando pelo surgimento do conto moderno, com Edgar Alan Poe e Tchekhov, até os nossos dias. E em um segundo momento, utilizando-se da base teórica já apresentada, tem-se a análise do conto acima citado, situando-o na poética do autor e, sobretudo, na historiografia do conto moderno. Palavras-chave: Conto, Luiz Vilela, Poe, Tchekhov

Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Jorge de Lima

Muitos teóricos discutem, até hoje, quais são os limites do conto, onde ele termina e onde começa a novela ou o romance, o que o diferencia da crônica, quais os aspectos que fazem dele um conto e não outro tipo de narrativa. Num movimento de idas e vindas, com momentos de auge e outros de puro esquecimento, o conto tem acompanhado, desde os primórdios, o avanço da humanidade através do tempo, num meio que, na maioria das vezes, é hostil e nada propício para criar, ouvir ou ler esse tipo de narrativa. Partindo das inscrições nas cavernas, das narrativas quase guturais ao redor das fogueiras, passando pelos relatos de antigas culturas, pelo tremendo impulso dado pelos jornais no século XIX, chegaremos aos nossos dias, mergulhando rapidamente no conto breve e até nos contos publicados na Internet que, muitas vezes, fogem dos padrões e estão criando novos formatos dentro deste tipo de narrativa. Passando pelas narrativas orais em volta do fogo na pré-história, o conto mágico do Egito, as Mil e uma noites na Pérsia e o Decameron na Idade Média e com os contos publicados nos jornais do século XIX, chegamos ao que se chamou de conto moderno, como Nádia Gotlib destaca em seu livro A teoria do conto:


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Este é o momento de criação do conto moderno quando, ao lado de um Grimm que registra contos e inicia o seu estudo comparado, um Edgar Allan Poe se afirma enquanto contista e teórico do conto. Portanto, enquanto a força do contar estórias se faz, permanecendo, necessária e vigorosa, através dos séculos, paralelamente uma outra história se monta: a que tenta explicitar a história destas estórias, problematizando a questão deste modo de narrar – um modo de narrar caracterizado, em princípio, pela própria natureza desta narrativa: a de simplesmente contar estórias. Essa inserção de contos nos jornais e o surgimento de autores que começaram a discutir a realidade do conto modificaram e projetaram este tipo de narrativa, que ganhou nova força, adaptando-se aos novos tempos. Pressionados pelo pouco espaço disponível nos jornais, os escritores tiveram que reduzir, compactar cada vez mais os textos, sintetizando, concentrando ao máximo a história para que fosse possível publicá-la no espaço destinado para tal fim. Foram os jornais que popularizaram o conto no mundo ocidental, fazendo dele um precioso produto cultural. Naquele século, marcado pelo ―apego à cultura medieval, pela pesquisa do popular e do folclórico, pela acentuada expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas inúmeras revistas e jornais‖ (GOTLIB, 1999, p.7-8).

É quando o gênero se desenvolve e ganha ares modernos, principalmente com as teorias de Edgar Allan Poe, que além de contista, torna-se também um forte teórico do conto. Com as suas resenhas sobre o Twice-told tales de Nathanael Hawthorne, desenvolve o que se convencionou chamar mais tarde de ―conto de enredo‖. No mesmo século XIX surge também outro grande contista, Anton Tchekhov, que através de suas cartas a amigos, escritores e críticos, construiu a sua teoria sobre o conto e o teatro. Através de suas anotações pode-se construir a definição de ―conto de atmosfera‖. Julio Cortázar, outro grande contista, expôs em seus estudos a dificuldade de se definir o que é conto, assim como outros grandes teóricos do conto, como Horácio Quiroga e Mário de Andrade. Machado de Assis, um dos nossos maiores contistas, disse: ―É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade‖. Nádia Gotlib, em seu Teoria do Conto, lembra Cortázar e o cita:

Se não tivermos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fuga cidade numa permanência, Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância


244 que um grande conto tem em nós, e que explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes. (GOTLIB, 1999. p. 7).

Gotlib aponta para três acepções de conto que Cortázar levantou ao estudar a obra de Poe: ―1. relato de um acontecimento; 2. narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. fábula que se conta às crianças para diverti-las‖. Nádia Gotlib ainda diz que: Antes, havia um modo de narrar que considerava o mundo como um todo e conseguia representá-lo. Depois, perde-se este ponto de vista fixo; e passa-se a duvidar do poder de representação da palavra: cada um representa parcialmente uma parte do mundo que, às vezes, é uma minúscula parte de uma realidade só dele. O que era verdade para todos passa ou tende a ser verdade para um só. Neste sentido, evoluise do enredo que dispõe um acontecimento em ordem linear, para um outro, diluído nos feelings, sensações, percepções, revelações ou sugestões íntimas... Pelo próprio caráter deste enredo, sem ação principal, os mil e um estados interiores vão se desdobrando em outros.... (GOTLIB, 1999. p. 8-9).

E desse modo de narrar ―como um todo‖ até a diluição dos ―feelings‖ é que se tem a passagem do conto de enredo para o conto de atmosfera. O conto moderno, portanto, se dará a partir desses dois motes, surgindo então grandes nomes do conto. Guy de Maupassant, seguidor de Poe e discípulo de Flaubert, faz contos de enredo onde pessoas comuns vivem momentos extraordinários, com uma tensão crescente com fôlego para o leitor respirar, oferecendo um final que é ―um punhal no coração‖, de efeito surpreendente. Em seguida surge outro grande contista americano, mas bem diferente em estrutura e motivos narrativos: Ernest Hemingway. Frases curtas, por vezes muitos diálogos, muitas descrições. O caráter dos personagens e as pistas sobre suas histórias pessoais vêm muito mais cifradas em descrições de ambientes e narrações de atos simples. A esse efeito, Hemingway, em entrevista, chamou de ―iceberg‖, onde os elementos mais significativos estão ―submersos‖ no texto, ficando na ―superfície‖ apenas a trivialidade dos acontecimentos do cotidiano. James Joyce apesar de ter escrito um dos romances pilares do século XX, ―Ulisses‖, também foi um excelente contista, e contribuiu para o avanço das técnicas da narrativa curta com as suas ―epifanias‖. Em ―Stephen Hero‖ Joyce diz que suas epifanias correspondem a: ―Uma manifestação súbita, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente. Ele acreditava que cabia ao


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homem de letras registrar estas epifanias com cuidado extremo, visto que elas mesmas são os momentos mais delicados e evanescentes‖. (Joyce, 1993, p. 113) É de Joyce que vem a influência para duas grandes contistas do século XX e que expandiram o conceito de epifania e radicalizaram o monólogo interior preconizado pelo escritor irlandês: Wirgínia Wolff e Katherine Mansfiel. Nessas escritoras podemos perceber nuances experimentais do conto de enredo e de atmosfera. O conto de Franz Kafka, apesar de dialogar com seus predecessores e ser grande devedor, principalmente dos contos de Poe, apresenta inovações estéticas bastante interessantes. As narrativas kafkianas cruzam duas histórias das quais emerge uma alegoria, (o que parece ser o mote do conto Corpus) e, ao modo de Piglia, que diz que o conto conta duas histórias, sendo a primeira a evidente e a segunda a secreta, Kafka narra a história secreta e obscurece a segunda, como podemos observar no magistral ―As Sereias‖. E seguindo esse contexto que no Brasil no começo da segunda metade do século XX que surge Luiz Vilela, que ao lançar o seu primeiro livro Tremor de Terra, já tinha sido leitor de todos esses contistas que elevaram e inovaram a técnica da narrativa curta. Nesse primeiro livro, Vilela já nos entrega contos à maneira de Poe, à maneira de Tchekhov, à maneira de Hemingway, à maneira de Joyce e à maneira de Kafka, trazendo contos, portanto, à sua maneira, confirmando assim T.S. Elliot, onde o escritor não deve esquecer a tradição literária que veio antes dele, mas entregando o seu talento individual. Em Tremor de Terra, Vilela já é o ―mestre do diálogo‖, mas senhor de uma técnica narrativa do conto como poucos. E em 2013, mais de quarenta anos depois da publicação do seu primeiro livro, Luiz Vilela lança a coletânea Você Verá, livro que ganhou inúmeros prêmios e ficou em segundo lugar no Prêmio Jabuti na categoria Contos e Crônica. Livro elogiadíssimo sobretudo por manter a firmeza técnica já apresentada em Tremor de Terra, e por entregar algo novo do que vinha fazendo em seus livros anteriores, como os contos O Bem, O que cada um disse, Noite Feliz, o magistral conto que dá título à coletânea, Você Verá, e o primeiro conto de Vilela a abordar as novas tecnologias e mídias, principalmente a internet, ―Corpus‖, objeto da nossa análise. A história de ―Corpos‖ é contada através de vozes que comentam entre si imagens de corpos retirados de um acidente de avião. O horror da morte toma diferentes proporções a cada fala, muitas descabidas, dos observadores virtuais do desastre. ―Olha esse aqui: tripas. Que coisa horrorosa.‖ A sensibilidade maior dos curiosos é de alívio:


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morreu?, antes ele do que eu. Horror, piedade, compaixão e alívio são aspectos importantes da trama. O computador, com sua lente virtual, propicia a distância necessária para a leitura das imagens se tornar suportável. Tudo que precisamos saber encontra-se nos diálogos, e a narrativa parece se contar, dispensando um elemento narrador específico. A narração é completamente ausente, dispensando inclusive os verbos discendi por outras vezes utilizado por Vilela. Assim como em outros contos, este começa ex abrupto e com a cena em decurso: ―Rapaz... Putz!... O trem foi feio, hem?‖ ―Claro; um acidente em que morreram quase duzentas pessoas, o que você queria?‖ (VILELA, 2013, p. 85). Podemos afirmar, assim como em outros contos de Vilela, que apesar de ser um narrador completamente ausente, a figura do arquinarrador, ou do autor implícito se faz presente, utilizando a voz das personagens para expressar opiniões suas, utilizando-as como alter-egos: ―Não há mais nada proibido. A internet mostra tudo: de gente transando a gente morrendo, de gente matando a gente nascendo. Tudo‖. (VILELA, 2013, p. 91). Este arquinarrador modula as vozes das personagens, estes também ―narradores‖, pois o foco narrativo cambiante se esvai ora pra um ou pra o outro. Dois homens, em um espaço indefinido, só sabemos, pelos diálogos, se tratar de uma sala, quase no fim da narrativa: ‖Agradável? Agradável aqui, no vídeo, a gente vendo nesta sala com ar condicionado.‖ (VILELA, 2013, p. 87) estão, diante do computador, vendo as fotos postadas na rede virtual, de um acidente de avião. Percebemos isso, não no começo da narrativa, mas quando a conversa, entre os dois, já está adiantada: ―Coitado... Será que ele já caiu com a barriga aberta assim, por causa da pressão da queda, ou será que foi depois que o avião caiu?‖. (VILELA, 2013, p. 85). Durante esse diálogo vamos conhecendo a outra história, a do acidente do avião. Pelas fotos, os dois personagens vão elucubrando como poderia ter sido o acidente e quem, provavelmente, eram os passageiros. Em atitude voyeurística, os dois homens ―admiram‖ as fotos, ora com expressão de surpresa e sadismos, ora com expressão de horror, usando em seus palavreados vocábulos que beiram o grotesco: ―Olha esse aqui: as tripas. Que coisa mais horrorosa...‖. (VILELA, 2013, p. 85) ―Está parecendo barriga de porco, é igual quando meu tio matava porco, lá na fazenda, aquela tripaiada em cima da mesa de madeira...‖. (VILELA, 2013, p. 85). ―Carca! Olha a perna, olha a perna daquele ali... Está parecendo um pedaço de pau preto...‖. (VILELA, 2013, p. 86).


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O tempo da primeira história, o diálogo, é o tempo presente, e percebemos isso apenas pelos verbos utilizados pelos personagens, e obviamente a segunda história é anterior à diegese. Os personagens, antes de verem as fotos, se informam sobre a tragédia do avião, o que os ajuda a preencher lacunas para contar um ao outro a segunda história: ―Tinha uma moça muito bonita, eu vi no jornal. Acho que ela estava viajando para participar de um concurso de miss‖. (VILELA, 2013, p. 88). E o espaço da segunda história, inicialmente o avião, mas este cai em mata fechada: ―Também, caindo de não sei quantos mil metros de altura... Se não fosse essa mata aí, essas árvores, não sobraria nada, nem pedaços‖. (VILELA, 2013, p. 89). Ricardo Piglia em seus diários afirma que ―a história já está no real, e é preciso poder reconstruí-la e narrá-la como se não a estivéssemos inventando, como se já fosse verdadeira‖ (PIGLIA, 2000, p.87). Os dois personagens de ―Corpos‖ utilizando-se do real, as fotos que estão vendo da tragédia, reconstroem essa ―segunda‖ história, à maneira deles, chegando a imaginar situações como esta: ―A gente fica pensando, né? A gente fica pensando: o sujeito está lá, curtindo a sua Coca e comendo o seu sanduíche, ou então recostado na poltrona, feliz da vida, olhando, pela janelinha, o céu azul lá fora, a aeromoça passando...‖ ―Não é mais aeromoça: agora é comissária; comissária de bordo‖ ―Tudo tranquilo, tudo perfeito. E de repente um barulho, o susto, o pavor, o desespero, a gritaria. E então o estrondo, a dor, e pronto, mais nada, acabou-se tudo, fim.‖ (VILELA, 2013, p. 90).

A ―reconstrução‖ dessa história é tão vivaz para eles, que um acredita na imaginação do outro, embarcam nas ―narrativas‖ sobre o acidente que contam, que realmente acreditam que aconteceu assim, exatamente como o jogo do escritor e do leitor, do poeta de Fernando Pessoa, que acredita na dor fingida a ponto de realmente se tornar dor. A conversa constitui de diversos comentários, interjeições e reações, por vezes diversas e contraditórias entre si, sobre as fotos que estão vendo, a ponto de refletirem sobre o próprio ato de ver fotos alheias, e trágicas, na rede social, estabelecendo comentários altamente contraditórios com as próprias atitudes ―Quem será que pôs isso na internet, hem?‖ ―Não sei...‖ ―Devia ser proibido, né?‖ ―Proibido?‖

―Pensa: se fosse você ou alguém de sua família que estivesse aí: você gostaria que todo mundo estivesse vendo?‖


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―Eu não‖. ―Eu também não. É por isso que eu digo: devia ser proibido‖ (VILELA, 2013, p. 91).

Neste trecho, mais uma vez, vemos a presença do arquinarrador, onde, através da mudança do foco narrativo, estabelece uma crítica à um comportamento da sociedade: a de ver fotos alheias e dizer, na própria voz do personagem, que aquilo devia ser proibido, ilustrando muito bem o paradoxo de ideias por que passa a sociedade contemporânea. Muito além de ser um conto datado, é um retrato da contemporaneidade. Claramente um avanço no que se refere aos temas pelos quais Luiz Vilela já tratou. À moda dos contos de Hemingway, a segunda história está submersa, mas muito rente à superfície, e vai sendo trazida à tona, pela imaginação e suposição dos personagens, comportamento inerente ao ser humano, que ao se deparar com ―narrativas‖ incompletas, vai preenchendo as lacunas, em evidente ―atitude narrativa‖ para ficarmos com os dizeres de Ismael Cintra. Essas lacunas vão sendo preenchidas por pequenas narrativas, as histórias dos passageiros. A primeira é a do ―gordo‖, ou que eles acham que era um gordo: ―O cara era gordo; ele morreu segurando a barriga...‖. ―É...‖. ―Coitado... Será que ele já caiu com a barriga aberta assim, por causa da pressão da queda, ou será que foi depois que o avião caiu?‖. (VILELA, 2013, p. 85). O uso da palavra ―Será‖ ratifica essa tentativa de preencher lacunas para essa ―história real‖ que estão vendo e contando. Depois o que teve a perna carbonizada, o outro que estava sem cabeça, mas pelo jeito do olho eles imaginam que estava vivo quando o avião caiu. O comentário sobre os parentes acharem que podia ter alguma sobrevivente. Outra ―história‖ imaginada por eles é a da moça bonita que estava indo para um concurso de miss, fato tal que aguça ainda mais a curiosidade dos dois em ver as fotos dela e constatar se realmente ela era bonita ou não. As crianças, que eles imaginam que podem ter sido levadas pelos bichos da mata, pois não encontraram fotos delas e a última foto é a de um pedaço do avião. Cada foto é motivo para se indiciar uma história a ser contada e um comentário por vezes espantoso, por vezes sarcástico, mas sempre uma atitude, de ambas as partes, do horror a que estão presenciando, mas não desistem de ver as fotos, como se o voyeurismo do grotesco fosse algo ―encantador‖ a ponto de não conseguirem parar de


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olhar, apesar de saberem que aquilo é errado, de que se fosse com eles não gostariam que outras pessoas o fizessem. Vilela, neste conto, parece querer dialogar com o magistral poema em prosa ―O grande desastre aéreo de ontem‖, que também conta um acidente de avião pelo prisma dos passageiros, onde um narrador observa aquilo tudo horrorizado, e ao nosso ver, faz o mesmo tipo de crítica de Vilela, ao apontar o paradoxo pelo qual passa a sociedade contemporânea: ―E há poetas míopes que pensam que é o arrebol‖. (LIMA, 1980, p. 237). Um conto com duas histórias, como preconizou Piglia, sendo que a segunda está submersa, vindo à tona pelos personagens da primeira, como teorizou Hemingway, sendo que a primeira história é uma típica narrativa de atmosfera, à la Tchekhov, sem trama e sem final, com seus personagens permanecendo os mesmos ao final da narrativa, e a segunda uma típica narrativa de enredo, à la Poe, mesmo que preenchida as lacunas pelos personagens da primeira, se revelando ter um efeito único, a tragédia inevitável. Tudo isso contado à maneira de Vilela, com seu olhar arguto diante das idiossincrasias da sociedade, mostrando seu voyeurismo, seu horror e encantamento diante do grotesco.

Referências: ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchekhov: Cartas para uma poética. São Paulo: Edusp, 1995. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 223 CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974. GOTLIB, Nádia Battlela. Teoria do Conto. Editora Ática: São Paulo: 1990. 52 p. JOYCE, James. Epifanias. Trad. B.S. Pinheiro, in Revista da Letra Freudiana, Rio de Janeiro, Relume–Dumará, ano XII, nº 13, 1993 pp 113- 119. KIEFER, Charles. A poética do conto. Editora Nova Prova: Porto Alegre, 2004 LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 2 v, v. 1, p. 237. LUKÁCS, George. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 34, 2000. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1995. p. 84.


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PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 87. POE, Edgar Allan. Essays and reviews. New York: Literary Classics of the United States, Inc.: 1984. VILELA, Luiz. Tremor de Terra. São Paulo: Ática, 1977. VILELA, Luiz. Você Verá. São Paulo: Record. 2013. p. 85.



Terminou-se de preparar estes Anais do 6ยบ Seminรกrio do GPLV em 22 de agosto de 2016, tendo ele sido disponibilizado no site do GPLV na mesma data.


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