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50. De médico e de louco todo mundo tem um pouco (poesia

50 De médico e de louco todo mundo tem um pouco

Maria, a pobre louca

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A patomimia que marca a existência humana parece se manifestar mais intensamente nos aglomerados urbanos – as grandes cidades.

Na infância daquela época, ninguém precisava eventos programar. Ao seu tempo e ao acaso as crianças se ajuntavam para brincar. Na rua ninguém era dono de nada, nem se agia de antemão. Livres, as pipas empinavam, bolas jogavam e ali rodavam pião.

Nas ruas escuras da alpina vila certo marasmo logo surgia, depois da agitação diária quando então a noitinha caía. Após o jantar apressado, no campinho os meninos se ajuntavam para quebrar a apatia. Ali, as coisas mais loucas maquinavam.

A única luz acesa era a da farmácia - bem para lá afastada! Na calada da noite, escondida na mata, a perversa molecada arrastava por um fio de pipa a réstia de cebola encharcada, qual serpente molhada. O rastro medonho a rua cruzava.

Pavoroso grito aflito fez-se ouvir! E a vizinhança logo acudir. A moça que vira a cobra apenas gaguejava, já quase rouca. Mas, ninguém se importava e para casa voltava, dizendo: - Era apenas a Maria Louca!

" - Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor." Dito por Riobaldo (protagonista) de Grande Sertão: Veredas, livro de Guimarães Rosa escrito em 1956.

O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão, na terra de Carcará¹

Migrante de Sobradinho* (BA) onde perdeu tudo o que podia amar, enquanto lá vivia acreditava na profecia, que o sertão iria virar mar. De baixa estatura e de alta indignação, pela vida seca de então sofrera a desventura de ver o seu amor virar sertão.

Pela vida desvairado, e desprezado por viver em completa solidão, andava pelas ruas daquela alpina vila como alguém sem compaixão. Subindo o Morrinho com seu cavalo carregado com um porco que jazia, sôfrego de dura sina aos pedaços ali vendia para a piedosa freguesia.

Espíritos de porco se apoderavam da gurizada logo que o homem vinha. Ele então se descontrolava ao ouvir seu apelido nas bocas depravadas. Com a peixeira na cintura com destreza empunhada, logo se avexava pelo tremendo acinte dito por aquela molecada: - Botininha!!

Aquele rixoso apelido tinha origem em seu indefectível botim, que já gasto o acompanhava desde a época de Sobradinho. Porém, nada justificava o preconceituoso e tremendo desatino. Não dele, desesperançado nordestino, mas dos endiabrados meninos!

¹Carcará, do tupi karaka'rá (Caracara plancus) é uma espécie de ave de rapina da família dos falconídeos. (*) Sobradinho – nas vozes de Sá, Rodrix & Guarabyra.

Gasparin, vulgo Cervejinha!

Chapéu havana, sapatos gastos, e com paletó xadrez encurtado, dinheiro no bolso roto ganhado por guarda-chuvas consertados. Gasparin em sua existência vestia sempre aquela roupa simplista. Subia a ladeira, descia o Morrinho, na custosa faina diarista.

De idade avançada, as mãos trêmulas enrugadas pelo labor diário. Pele do rosto* crispada e pernas castigadas, por um repouso exigiam. Barriga vazia, querendo repasto para casa voltava ao sol do meio-dia. E na padaria a secura satisfazia: nas brahmas gastava seu salário.

Nas ruas daquela alpina vila em rodas as meninas entoavam: “ - Chuva e sol: casamento de espanhol!” E replicavam: “ - Sol e chuva: casamento de viúva!” Guarda-chuva ele tinha e também um apelido pelo hábito repetido: Cervejinha!!!

Embaixo do braço a Brahma¹ gelada, sentado no degrau da escada. Ali mesmo entornada! E já esvaziada ao balcão retornava. A gente da vila onde todos se conheciam, de antemão já sabia: na hora do almoço, Gasparin na padaria, a cena se repetiria…

Na sua Itália distante talvez ele gostasse de uma cerveja alemã. Mas, no torrão brasileiro, o guarda-chuveiro da Brahma era fã. No cotidiano, direto no gargalo, matara quem queria lhe matar: a sede e a fome, que ao meio-dia já não podia controlar.

(*)"Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, (...)

Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; (...)

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida a minha face?".

Retrato, Cecília Meireles² .

“[…] Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.”¹ Cecília Meireles

¹Brahma é uma marca de cerveja brasileira criada em 1888, no Rio de Janeiro, pela Manufactura de Cerveja Brahma Villiger & Companhia, que depois mudaria de nome para Companhia Cervejaria Brahma, e depois seria sucedida pela AmBev. ²Cecília Meireles (1901-1964). Poetisa, professora, pedagoga e jornalista, cuja poesia lírica e altamente personalista, freqüentemente simples na forma mas contendo imagens e simbolismos complexos, deu a ela importante posição na literatura brasileira do século XX. http://apoesiadobrasil.blogspot.com.br/2012/03/cecilia-meireles-1901-1964.html

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