SOBRE A PINTURA
Aulas de março a junho de 1981
Gilles Deleuze
Edição preparada por David Lapoujade
Aulas de março a junho de 1981
Gilles Deleuze
Edição preparada por David Lapoujade
Aulas de março a junho de 1981
SUR LA PEINTURE: Cours mars-juin 1981
Gilles Deleuze
David Lapoujade (org.)
© Gilles Deleuze, 2018 © n-1 edições, 2025 isbn 978-65-6119-056-5
Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.
coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes direção de arte Ricardo Muniz Fernandes gestão editorial Gabriel de Godoy assistência editorial Inês Mendonça tradução© Hortencia Lencastre preparação Fernanda Mello revisão Nicole Marcello projeto gráfico Isabel Lee
A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.
1ª edição | Setembro, 2025 n-1edicoes.org
Aulas de março a junho de 1981
Edição preparada por David Lapoujade
Tradução Hortencia Lencastre
LiSTA dAS AbREviAÇõES dAS EdiÇõES
uSAdAS E SuAS EdiÇõES bRASiLEiRAS
A catástrofe em pintura, de Turner a Cézanne [fbls, cap. xii] – Leitura de Cézanne – Os dois momentos de Cézanne: as condições pré-picturais como enfrentamento do caos e o ato de pintar como catástrofe – O quadro como síntese do tempo – Leitura de Klee – Os dois momentos do ponto cinza em Klee: o ponto cinza-caos e o ponto cinza-matriz das dimensões – A luta contra os clichés em Bacon e a noção de diagrama [fbls, cap. xi e xii] – O diagrama de Van Gogh.
Recapitulação da aula anterior – A bobagem do tema da página em branco– Método de Gérard Fromanger – Grito e vômito: a abjeção e o Negro do Narciso de Conrad [fbls, 23-24] – Michelangelo: figura contra figuração – Pintar as forças: a força de achatamento do sono em Bacon [fbls, cap. viii] – Análise de Pintura (1946) de Bacon: pássaro e guarda-chuva [fbls, cap. xvii] – As duas espécies de analogia: analogia comum (transporte de semelhanças) e analogia estética (ruptura de semelhanças). 9 17 19 55
As cinco características do diagrama – 1) o caos-germe 2) a característica manual – A mão liberada do olho –O diagrama como conjunto manual pincelada-mancha, oposto ao conjunto visual linha-cor 3) mancha e pincelada rumo às cores e às linhas picturais; o terceiro olho –4) produzir a imagem sem semelhança – O fato pictural e o maneirismo – 5) A via moderada – Recapitulação dos perigos do diagrama – O diagrama no seu máximo: perigo do caos e expressionismo abstrato – O diagrama no seu mínimo: perigo do código e pintura abstrata. Enfrentar o caos da vida moderna – A via moderada: a pintura figural como medida do caos [fbls, cap. xii].
Recapitulação: as três posições diagramáticas (via expressionista, via abstrata, via figural), confusão, código, diagrama [fbls, cap. xii] – O expressionismo e o diagrama manual (contra um espaço ótico puro) – O código da pintura abstrata – Unidades significativas e escolhas binárias – Manual, tátil e digital – Analógico e digital – Código digital e similitude – Analogia e semelhança – Bateson e os golfinhos – Enxerto de código sobre analogia – A modulação – Leitura do Ensaio sobre a origem das línguas de Rousseau.
Recapitulação e retomada das três formas de analogia: a analogia por similitude (física), a analogia por relação interna (orgânica), a analogia por modulação (estética) – O analógico e o digital – O conceito de modulação e suas variações: molde, módulo, modulação – Os espaços-sinais – O espaço egípcio (fundo, figura e contorno) – A conjuração egípcia do cubo.
AuLA dE 19 dE MAiO dE 1981
Propostas sobre o triângulo (genético) das cores de Goethe e o círculo (estrutural) cromático – Breve história do colorismo: Delacroix e os impressionistas – A forma, o fundo e o contorno – A bela Angèle de Gauguin – O olho háptico ou o terceiro olho: o retorno do Egito na pintura moderna – A morte do mundo egípcio e a disjunção dos planos [fbls, cap. xiv] – A arte grega, tátil-ótica.
AuLA dE 26 dE MAiO dE 1981
Breve recapitulação das aulas anteriores: analogia, modulação e espaços-sinais – Os gregos e a linha orgânica – O ritmo na escultura grega e o molde interior – Carne e cor – Os dois espaços: século xvi e século xvii (Wölfflin) – Modular a cor – Delacroix, os impressionistas e os pós-impressionistas.
AuLA dE 2 dE JuNHO dE 1981
Os regimes de cor e suas características – Os três métodos da colorimetria – Os regimes de cor em pintura: o regime Renascimento – O duplo regime do século xvii, regime Caravaggio, regime Rubens – O duplo percurso do círculo cromático – Seurat e Pissaro – Cézanne e a cor – Van Gogh, Gauguin e o tom rompido: a cor-estrutura e a cor-peso. ÍNdiCE dOS NOMES
As aulas dadas por Gilles Deleuze (1925-1995) dos anos 1970 até meados dos anos 1980 são indissociáveis da criação do Centro Universitário Experimental de Vincennes (Cuev) no outono de 1968. “Vincennes” foi criada por decisão do ministro da Educação Nacional, Edgar Faure, em resposta ao movimento estudantil de maio de 1968. Segundo os termos do ministério, tratava-se de conduzir uma “experiência piloto”, de propor aos estudantes e assalariados não acadêmicos formações interdisciplinares emolduradas por diplomas novos e uma organização pedagógica inédita. Esse novo espaço foi logo percebido como uma continuação e um prolongamento dos movimentos de maio de 1968. Ali, encontravam-se estudantes, trabalhadores, desempregados, militantes, visitantes estrangeiros, artistas, curiosos etc.
A história movimentada de “Vincennes” prosseguiu até agosto de 1980, quando, segundo ordem de Alice Saunier-Seïté, ministra das Universidades (que se opunha extremamente à existência do Centro), e com o apoio de Jacques Chirac, prefeito de Paris, os prédios foram derrubados em três dias.1 Foi o começo daquilo que Guattari chama de “anos de inverno”.2
A universidade foi transferida para Saint-Denis e o ensino foi retomado em um novo local, no terreno de um modesto iut. 3 Embora convidado por Michel Foucault – a quem fora confiada a direção do Departamento de Filosofia no momento da sua criação –, por conta de graves problemas de saúde Deleuze só foi para Vincennes no início do ano escolar
1. Sobre a criação do Centro Universitário Experimental de Vincennes, ver o documentário de Virginie Linhart, Vincennes, l’université perdue, Arte France, Agat Films & Cie. 2016.
2. Félix Guattari, Os anos de inverno: 1980-1985, trad. bras. Felipe Shimabukuro. São Paulo: n-1 edições, 2022.
3. Instituto Universitário de Tecnologia. [ n . t .]
6. A última aula de Deleuze foi na terça-feira, 2 de junho de 1987.
de 1970-1971.4 Nesse intervalo, como Foucault tinha sido eleito para o Collège de France, François Châtelet, amigo de todas as horas, assumiu a direção do departamento. Para atender à saúde muito frágil de Deleuze, foi permitido que ele desse apenas uma aula por semana, terça-feira pela manhã. No primeiro ano, o curso foi sobre “A lógica de Espinoza” e depois sobre “Lógica e desejo”. São as primeiras apresentações saídas da sua colaboração com Félix Guattari – que ele encontrou no verão de 1969 –, e que iriam levar à publicação do Anti-Édipo, em 1972. A aula durava cerca de três horas, com uma pausa.5 Tendo sempre recusado ensinar num anfiteatro, Deleuze deu suas aulas num prédio pré-fabricado até o último curso, em junho de 1987.6
Em 1979, numa obra coletiva consagrada à defesa de Vincennes, cuja existência estava então muito ameaçada, Deleuze assim concebia seus cursos e defendia as práticas pedagógicas inovadoras de Vincennes:
Na situação tradicional, um professor fala a estudantes que começam ou já têm um certo conhecimento de uma disciplina. Esses estudantes também participam de outras disciplinas; há igualmente estudos interdisciplinares, mas secundários. De um modo geral, os estudantes são “julgados” pelo seu nível em uma ou outra disciplina abstratamente considerada.
Em Vincennes, a situação era diferente. Um professor de filosofia, por exemplo, fala para um público composto por diferentes níveis, com matemáticos, músicos de formação clássica ou pop, psicólogos, historiadores etc., mas, em vez de
4. O ano escolar francês começa em setembro. [n t.]
5. Sobre a percepção que Deleuze tinha do público das suas aulas, podemos nos referir ao L’Abécédaire de Gilles Deleuze, de Claire Parnet, na letra P de professor. Sobre o ensino de Deleuze em Vincennes, ver o capítulo xix de François Dosse, Gilles Deleuze, Félix Guattari, biographie croisée, La Découverte, 2007 [ed. bras. Dosse, Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada, trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2010].
“colocar entre parênteses” essas outras disciplinas, para ter um acesso melhor àquela que se quer aprender, os ouvintes, pelo contrário, esperam da filosofia alguma coisa que irá lhes servir pessoalmente ou virá coincidir com suas outras atividades.
A filosofia vai lhes servir não em função de um nível que eles possuiriam nesse tipo de saber, mesmo que seja um nível zero de iniciação, mas em função direta da sua preocupação, isto é, das outras matérias ou de um material que eles já dominam um pouco. É, portanto, para eles mesmos que vêm buscar alguma coisa em um aprendizado. Dessa forma, o ensino da filosofia orienta-se diretamente sobre a questão de saber em que a filosofia pode servir para matemáticos ou músicos etc. – até mesmo, e principalmente, quando ela não fala de música nem de matemática. Esse tipo de ensino não é de forma alguma de cultura geral, mas pragmático e experimental, sempre fora dele mesmo, exatamente porque os ouvintes são levados a intervir em função das suas necessidades ou do que têm a acrescentar.
A presença de numerosos trabalhadores e inúmeros estrangeiros confirma e reforça essa situação […]. Não há ouvinte ou estudante que não chegue com domínios próprios, que a disciplina ensinada deve “tomar para si”, em vez de deixá-los de lado. É o único meio de captar uma matéria nela mesma e do interior. Longe de se opor às normas exigidas pelo ministério, o ensino em Vincennes deveria fazer parte dessas normas. […]. Atualmente, esse método está ligado, de fato, a uma situação específica de Vincennes, a uma história de Vincennes, mas que ninguém poderá suprimir sem fazer desaparecer também uma das principais tentativas de renovação pedagógica na França. O que nos ameaça é uma espécie de lobotomia do ensino, dos professores e dos alunos, à qual Vincennes opõe uma capacidade de resistência.7
7. “Em que a filosofia pode servir a matemáticos ou até mesmo músicos – mesmo e principalmente quando ela não fala nem de
No momento da aula, Deleuze tinha diante de si apenas breves notas e alguns livros dos quais citava trechos (ou até mesmo páginas arrancadas dos livros quando eram grossos demais). Ele nunca redigiu nenhuma aula. A redação era exclusivamente consagrada aos livros, artigos e entrevistas. Mas, no Abecedário, Deleuze explica que preparava muito as aulas e as repetia “na cabeça”:
É como no teatro, é como nas canções populares, há repetições. Se não repetimos muito, não nos inspiramos. Mas uma aula significa momentos de inspiração, senão não quer dizer nada […]. E também conseguir achar interessante aquilo que dizemos. Mas não é simples conseguir achar interessante ou apaixonante aquilo que dizemos. E, nesse caso, não é vaidade. Não significa se achar interessante a si mesmo. É preciso achar apaixonante a matéria da qual estamos tratando, manipulando. Então, às vezes, é preciso se dar verdadeiras chicotadas […], é preciso se esforçar até o ponto onde somos capazes de falar de alguma coisa com entusiasmo. É isso a repetição.8
As aulas foram quase sempre o laboratório dos livros vindouros, cujo material é apresentado de outra forma, num outro ritmo, com uma clareza diferente dos livros. É outro modo de apresentação dos conceitos filosóficos, como ele dizia sobre Leibniz, cuja densidade das apresentações variava de acordo com os leitores. Nesse sentido, as aulas não duplicam os livros, mas exploram-nos de outra maneira, sob uma nova luz, esclarecendo algumas passagens complexas por sua excepcional pedagogia, graças também às suas digressões, às pistas
música nem de matemática”, em Deux régimes de fous , texto 19, pp. 152 sq. (texto publicado inicialmente numa obra coletiva sob a responsabilidade de Jacqueline Brunet, Bernard Cassin, François Châtelet, Pierre Merlin, Madeleine Rebérioux, Vincennes ou le désir d’apprendre, Ed. Alain Moreau, 1979, pp. 120-121) [ed. bras. Dois regimes de loucos, trad. bras. Guilherme Ivo. São Paulo: ed. 34, 2016].
8. L’Abécédaire de Gilles Deleuze, Claire Parnet, letra P de professor.
finalmente abandonadas ou modificadas nos momentos de inspiração variável. Desenvolvimentos que nos livros estão condensados em algumas linhas ou algumas páginas são longa e pacientemente expostos nas aulas. O leitor de Deleuze encontra ali, com frequência, explicações que, por sua grande clareza, ajudam em uma compreensão renovada dos livros.
Do conjunto das aulas dadas por Deleuze dispomos atualmente de poucos anos completos, mesmo que o material sonoro seja considerável. Das aulas dos anos 1970-1979, estão acessíveis, no essencial, apenas as gravações e transcrições de Richard Pinhas, ouvinte regular e amigo próximo de Deleuze.9 Como ele não assistia a todas as aulas, as lacunas são, às vezes, importantes. É apenas a partir de 1980 que dispomos da quase totalidade das gravações, quando a universidade foi brutalmente transplantada para Saint-Denis.
A qualidade sonora das gravações é relativamente boa, com algumas exceções.10 Como os gravadores eram colocados na mesa de Deleuze, certas intervenções do público, muito longe dos microfones, são inaudíveis. Além disso, a aula sofre regularmente breves interrupções – o tempo da troca das fitas cassete.
Nossa edição propõe a transcrição mais fiel possível dessas gravações com a preocupação de evitar dois obstáculos. Não quisemos conservar toda a dimensão oral das aulas, reproduzindo as interjeições, hesitações, retomadas, ou incorreção da língua falada – primeiro porque essa fala existe, disponível on-line, e também porque o estrito respeito da oralidade teria
9. O conjunto das transcrições e das gravações de Richard Pinhas está disponível no site webdeleuze (https://wwwwebdeleuze.com) e no YouTube.
10. Sobre a situação e o conteúdo das aulas podemos nos referir ao livro de Frédéric Astier, Les cours enregistrés de Gilles Deleuze –1979-1987, Sils Maria Éditions, 2006. Além do site de Richard Pinhas, o conjunto das aulas está acessível no site da Biblioteca Nacional da França (https://gallica.bnf.fr).
Esta tradução procurou seguir as mesmas diretrizes. [ n . t .]
11.
prejudicado a legibilidade do texto. Essa mesma preocupação com a legibilidade nos levou ora a modificar certas formulações deliberadamente incorretas que Deleuze gostava de usar (como: “que é que Kant está dizendo, e isso serve pra quê?”), ora a conservá-las para não quebrar o ritmo da apresentação. O outro obstáculo teria sido, inversamente, suprimir toda dimensão oral. Tomamos então o partido de preservar a oralidade desde que ela não atrapalhasse a leitura, propondo, em resumo, uma forma escrita que conservasse as inflexões da frase oral, como Deleuze fazia quando redigia as entrevistas que concedia.11 Finalmente, em relação às transcrições existentes que às vezes contêm erros ou lacunas, propomos uma versão completa e corrigida.
No que diz respeito às intervenções dos ouvintes, elas foram integradas ao corpo do texto cada vez que Deleuze as prolongava. Caso contrário, são reproduzidas em nota ou brevemente resumidas entre colchetes. Além disso, mencionamos (com sua concordância), o nome dos interventores quando identificáveis.
Igualmente entre colchetes, assinalamos as passagens inaudíveis e as interrupções devido à troca das fitas cassete, indicando o tempo da gravação a que isso corresponde, assim como a duração das interrupções mais longas. Estão ainda entre colchetes as palavras, grupos de palavras ou frases acrescentadas pelo editor para a legibilidade (palavra que falta, construção gramatical modificada etc.).
As notas têm um objetivo estritamente informativo: ora assinalam o uso que Deleuze pôde fazer de um termo, de uma noção ou de um autor, remetendo aos livros que os mencionam significativamente, ora indicam as referências explícitas ou implícitas utilizadas nas aulas. Nessa ocasião, citamos às vezes longamente os textos mencionados, para que o leitor pudesse ver o uso que Deleuze fazia deles durante suas aulas.
Finalmente, certas notas citam trechos de outras aulas que se referem estritamente àquilo sobre o que ele está falando.
Enfim, quando um desenvolvimento da aula se aproxima de perto de um livro, assinalamos no corpo do texto o título abreviado do livro e as páginas referentes – por exemplo, para Francis Bacon [fbls, 39-40]
A edição das aulas não teria sido possível sem o apoio, os encorajamentos e a confiança dos detentores dos direitos de Gilles Deleuze. Somos profundamente agradecidos a eles.
Agradecemos igualmente para a edição desse curso a Pierre Butic por sua preciosa ajuda, a Richard Pinhas por seu inestimável trabalho, assim como a Anne Querrien, Pascale Criton e Odette Lazrak.