Odesencadeamentodomundo: anovalógicadaviolência
LeDéchaînementdumonde:Logiquenouvelledelaviolence FrançoisCusset
©FrançoisCusset,2018 ©n-1edições,2025 isbn 978-65-6119-047-3
Emboraadoteamaioriadosusoseditoriaisdoâmbitobrasileiro,a n-1ediçõesnãoseguenecessariamenteasconvençõesdasinstituições normativas,poisconsideraaediçãoumtrabalhodecriaçãoquedeve interagircomapluralidadedelinguagenseaespecificidadedecada obrapublicada.
coordenaçãoeditorial PeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearte RicardoMunizFernandes gestãoeditorial GabrieldeGodoy assistênciaeditorial InêsMendonça tradução© PedroTaam preparação FlavioTaam revisão FernandaMello ediçãoemLATEX PauloHenriquePompermaier capa IsabelLee
Areproduçãoparcialdestelivrosemfinslucrativos,parauso privadooucoletivo,emqualquermeioimpressooueletrônico,está autorizada,desdequecitadaafonte.Sefornecessáriaareprodução naíntegra,solicita-seentraremcontatocomoseditores.

Cetouvrage,publiédanslecadreduProgrammed’Aideàla Publicationannée2025CarlosDrummonddeAndradede l’AmbassadedeFranceauBrésil,bénéficiedusoutiendu Ministèredel’EuropeetdesAffairesétrangères. |Estelivro, publicadonoâmbitodoProgramadeApoioàPublicaçãoano 2025CarlosDrummonddeAndradedaEmbaixadadaFrança noBrasil,contoucomoapoiodoMinistériofrancêsda EuropaedasRelaçõesExteriores.
1ªedição|Agosto,2025 n-1edicoes.org
O DESENCADEAMENTO
DO MUNDO
François Cusset a nova lógica da violência
Tradução: Pedro Taam
1Asmetamorfosesdaviolência-mundo31
Prefácioàediçãobrasileira
Sairdoburaco1
françoiscusset
Aviolênciaémaisumaquestãodelógicaquedepulsão.Deracionalidadequedeespontaneidade.Maisdeinteressesbemdefinidosquedemoral.Emtodocaso,elaémuitomaisfunesta, edetodaumaoutraamplitude,quandoéobradosprimeiros,e nãodossegundos.Paracadacrimecometidosemrefletir,num momentodeimpulsividade,dramatizadoemseguidapelaimprensaepelosjuízes,quantoscrimessãonormalizadossemnenhumalarde?Paracadainjúriaproferidarepentinamente,por descontrole,quantosdiscursosoficiaisjustificamextensivamente aopressãodosmaisfrágeisporsuasupostainferioridade?Epara cadamanifestaçãoquesaidostrilhos,ouparacadaparcelaàs margensdasociedadequeousaresistiràordememvigor,quantaspilhagensestamesmaordemnãoperpetradiariamente,em todolugar,cadavezmais?Deumladoestáaviolênciaresidual, acidental,subjetiva,maisfrequentementereativae,emgeral, rapidamentereprimida;deoutro,aviolênciasistêmica,estrutural,racionalizada,maismortíferaeirrefreável,umavezque(se apresentacomo)legítima.Assim,oquesevêsãoduaslógicas distintasdaviolênciaesuarelaçãodesequilibradanasfavelasdo século xxi:deumlado,apequenacriminalidadequeenvenenaa vidacotidianae,deoutro,a“limpeza”policialcegaesanguinária dessascomunidadesparasatisfazeraoComitêOlímpicoInternacional,a fifa epotenciaiseleitores.Oumelhor,sãológicas diferentesquegovernamospequenosrouboseosconfrontos
1.Escritoem2019.
debairro,deumlado,e,deoutro,oassassinatoencomendado deMarielleFranco,emmarçode2018.Seficarmosnessasduas séries,adasviolênciaspontuaiseadasviolênciasestruturais, adapulsãoeadosinteresses,poderemosdizerqueamaisvelhaestratégiadosgovernantesparaobteroconsentimentodos governadoséadedesignarosprimeirosparajustificarossegundos,queosenquadram,osalimentame,aofazê-lo,dissimulam emboapartesuaprópriaviolência(aonormalizá-la,legitimá-la, sopesá-lacontraumriscosupostamentemaior)portrásdomedo quedeveríamostodosterunsdosoutros.
Éassim,porexemplo,que,entreosséculos xvi e xviii,oOcidenteinventaoEstadomoderno,justificandoseumonopólio daviolêncialegítimapelanecessidademoralelegaldepuniras brutalidadesentreaspessoaseasinfraçõesaodireitodapropriedade–oqueinicialmenteseriampuniçõesaoscrimeseaos roubosacabouporsetornarascadeiasnasquaisopodercolocou oshomens,paradizercomoRousseau.Apontarparaoexaltado, operigosoouoincontrolávelafimdejustificaraviolêncianecessáriadasforçasdaordem,dasegurançaedocontroleéareceita maisvelhadadominação.Éoquemaisfrequentementeacontece.Mashátambémmomentosdeexceçãonahistóriapolítica mundial,quandoessaestratégiacalejada,feitaparareforçaros poderesemmomentosordinários,dálugaraumaoutrarelação entreessasduasséries.Trata-se,dessavez,depintaressadiferençacomoparâmetrodiabólico,comobodeexpiatórioabsoluto. Apartirdessereferencial,dá-seentãopartida,mecanicamente, aodesencadeamentodaviolênciadoMesmo–aviolênciadaIdentidadeedoSoberano–eautoriza-sesuairrupçãoparaalémdas amarrasdequalquermedidaoujustificativa,acarretandoefeitos induzidosdetorporpopularedealíviocatárticodiantedoespetáculodapunição.Porsuavez,essesefeitossãodestinados areforçarerecarregaropoderemquestãoesuacapacidadede encadearoconjuntodosistemasocial.Desencadeia-se,então,a violênciainstituídaàluzdodia,emvezdedisfarçá-lacomoforça depacificação;desencadeia-seessaviolênciaparapromovero
alíviocatárticodosdominadosetornarincontestávelaordem dos dominadores. Obodeexpiatório,aolongodotempo,vaimudandoderosto.PodeserojudeunaEuropadosanos1930;o negrosegregadonosEstadosUnidosnaviradadoséculo xx;opequenoconsumidordedrogasnasFilipinasdeRodrigoDuterte;ou –umclássico–omilitantesindicaleoativistasocialistanoChile dogeneralPinochet.Nessesdiferentescasos,emqueumaviolênciafantasmapermitejustificarumaviolêncianormalizada,eque seestabeleceentreasduasumequilíbrioimaginárioqueéoda ordemsocial(dasdemocraciasliberal-securitárias),trata-sede umciclocoercitivo-repressivohistéricoqueseinstaura,levando àacumulaçãodasviolências,asuaessencialização,àconstituição deumaordemsocialinteiramentefundadasobreumatalenergia transversal–quenãoémaismarginal,mascentral;equenãoé maisproibida,masobrigatória.Naescalacrescentedaviolência dosregimespolíticos–democraciadireta,democracialiberal, democraciasecuritáriademercado,populismoeleito,regimeautoritário,ditadura,fascismo–,podemosdebateropapeldessas experiênciastrágicas,felizmentenãomuitofrequentes:aúnica certezaéqueelasvêmdecima.Nãoédeespantarquesejatão dolorosoetãoarriscadopraticaraeducaçãolivreeopensamento crítico:aviolênciaacumuladaquesustentaessesregimes,exercidaepavoneadaaomesmotempo,paralisaasmentesnamesma medidaemquesubmeteoscorpos.
Ahistóriahumanaforneceumaterrívelvariedadedessescasos,donazismodequasecemanosatrásàstentaçõespopulistas mais“apresentáveis”dehoje,tendosemprecomodenominadorescomunsaopressãodasmultidões,àsvezesporelasmesmas, eumódioassumidoàdemocracia.Nessescasos,osmecanismos compensatórios,inibidoreseautorrepressivosquepossibilitama vidacoletiva,equejáforamteorizadosaseutempoporSigmund Freud,NorbertEliasouGeorgesBataille,sãosimplesmenteabolidos,suspensosouespezinhados–issoquandonãosãoabertamenteridicularizados,consideradosrestriçõescastradorasou meraimpotência.Éemumtalmomentodeexceçãoqueacaba
deentraroBrasilcomaeleiçãodeJairBolsonaro,umdesses momentos emqueocicloautorreguladordaviolênciadálugarao cicloquefazculminarabrutalidade,emqueaautorrepressãocivilseesvaidiantedaagressividadeboçal.Comoseuscongêneres DonaldTrump,RodrigoDuterte,RecepTayyipErdoğan,Vladimir Putin,NarendraModi,ViktorOrbánouaindaMatteoSalvini–todosjuntosdariamumabelafotoparailustrarnossomomento “pós-democrático”mundial–,Bolsonaroestábemàvontadecom seusimpulsosenosconvidaaliberarosnossostambém.Paraele, suasprovocaçõesinjuriosassãoprovasdesinceridadeemocional; noesforçoquesepodefazerpararepresarseusimpulsosvingativos,elesóvêfraqueza;nodebatedemocrático,sóvêimpotência retórica;nasreivindicaçõesdospobresedasminorias,vêapenas caosebalbúrdia.Poroutrolado,elevêapenasvirtudesnoculto daautoridadeporelamesma,vêapenasbenefíciosnapunição evê,comoúnicoprincípiodedireito,adefesaativadapropriedadeedoportedearmas.Tudooquepossibilitaavidacoletiva–sejao“processodecivilização”descritoporNorbertElias,essas normasde savoir-vivre impostasparaqueparássemosdenosmatar;ainibiçãosocialdapulsãodemorte,evocadapeloFreuddos últimosescritos,comoúnicofundamentopossíveldavidaem sociedade;ou,ainda,oinvestimentonecessáriodoexcedentede embriagueznoscultosreligiososounasartes,talcomodestacou GeorgesBataillenopassado–poisbem,aosolhosdessesvalentõesàmodaantiga,desseschefesdeEstadodepeitoestufado epossivelmentecomosdiascontados,todasessascoisasnão passamdedesculpase“frescuras”,elucubraçõesdeunsfrouxos decadentes,corrompidospeloexcessodeeducação.Quantoaos criminosos,nãosedeveprocurarofermentoquefazcomque semultipliquem:bandidobomébandidomorto.Quantoaos loucos,nãosedevetratá-losnemfalarcomeles:deve-setrancá-losnoshospícios.Aospobres,nãoseprometemaisnenhum bem-estar:devemservigiadosecontidos.Oshomossexuaisou osartistasnãodevemmaisserpermitidos:devemserperseguidos.Aosnegrosepardos,nãobastaalardearamentirahistórica
daemancipação:devemsermantidosàforçanabasedetodaa escala social,comorostoesmagadonochãopelabotadopolicial enquantoseusbolsossãorevirados.Aviolênciadominante,dessa vez,paroudeseesconder.Eocircuitocompletodesuacirculaçãosedesvelaemplenaluzdodia,paranossagrandetristeza.Ela nosencerra,nosata,nosenfeitiça,reduznossoshorizontesaté noscolocarnoburaco,esseburaconegrodaviolênciaemcadeia, nofundodoqualnãovemosmaisaluzdodianemoamanhã.
Oquefazumhomempolítico–e,portrásdele,osmarqueteirosqueovendem,osconselheirosqueoinstruem,osinteressesqueoescolherameosmilhõesdeeleitoresqueviramneleo “Messias”–quandocelebra,emseupaís,aherançalamentável daescravidãoedaditadura,doracismoedatortura?Quefazum homemquechamade“propaganda”ademonstraçãocientífica implacáveldodesastreecológicoemandamento,equalificade “depravações”asvanguardasurbanaseasmilitânciassexuais? Quefazumhomemquerepetequeumpolicialquenãomata nãoéumpolicialdeverdade,queumcidadãodesarmadoécomo umcorposemmúsculosequeumasociedadebarulhenta,fervilhantedenovosdireitosereivindicaçõesminoritárias,deveria sertratadacomosetratampresidiáriosemrebeliãonumpátio decadeia?Oqueessehomemestáfazendo?Oqueexatamente eleestádizendo?Quandogritaqueaovelhadesgarradaprecisa dopastoredoscães,queoinadequadoprecisadecassetetee decadeia,elerepeteasmaisvelhasladainhasdodespotismoe, defato,nãodizabsolutamentenadadeoriginal–issotudose passaquatroséculosdepoisdo Leviatã deThomasHobbes;150 anosdepoisdaeradosimpériosedosnacionalismos;emenos deumséculodepoisdosfascismoseuropeus.Oqueelefazconsisteemdizeremaltoebomsomoqueosdominadorespolidos ebem-educadosnãoconfessamsenãoemvozbaixa,emdizer oqueasclassesquedirigemomundoeaatualordemplanetáriaqueremqueelediga,oqueelasqueremouvirnovamente,o quequeremverdifundidoeinstauradoemtodososlugares–a fimdequeaordemtriunfedefinitivamentesobreocaoseque
seafasteorisco,mortalparaeles,deumaresistênciapopular,de umlevantedemocrático,deumdesejocoletivoematodejustiça social,ou,simplesmente,oriscodequevejamdiminuídos,ou mesmoapenasatenuados,suasposseseseuspoderes.
Porque,paraqueocandidatodemagogotenhasetornadopresidentedefato,foinecessário,antesdovoto,aespantosacumplicidadedaseliteseconômicas,políticasemidiáticas,quelhes concederam,deformadiscricionária,seussilêncios,suasneutralidades,seusapoiosdeclaradosouvelados.Bolsonaro–essa marioneteautopromovidadeumaordemmundialaqueserve comzelo–demonstraporsimesmo,pelatristehistóriadesua ascensão,alógicafundamentalmente energética quepresideacirculaçãocontemporâneadaviolência,noempregocompletoou, poroutrolado,norepresamentodaviolênciaemnossassociedades:deumlado,ocírculovirtuosodaautonomiapopulareda catarseimaginária,essecicloqueéhojeunanimementeproibido eameaçadodedestruiçãonosrarosenclavesemquealgunsainda oexperimentam(ossem-terra,oszapatistas,ativistasruraisou dasfavelas,jovensautônomosnaEuropaounaAméricadoNorte queseinstalamnumazona“adefender”…);deoutro,ocírculo vicioso,ubiquamenteencorajado,dapredaçãocapitalistacontagiosa,doorgulhoidentitárioobrigatório,dobastãoquefazas cabeçasbaixaremedaprisãoquecondenaàreincidênciatodos osencarcerados.Cicloastuciosodaderivaçãooucicloloucodo reforçoinfinito.Círculovirtuosodocomum,quederivaerecanalizaparaaautonomiacoletivaapartesocialdasfrustrações individuaiscontraocírculoviciosodaseparação,dadispersãoindividualista,dopatriotismoexcludenteedarivalidadeneoliberal detodoscontratodos.Aviolêncianãocirculadamesmamaneira nosdoiscírculos,nãotemamesmalógicaemcadaumdeles:ela écompensadaemumepromovidanooutro;érestringidaemum esacralizadanooutro;emum,ésublimadaaoserexteriorizada,e, nooutro,éreforçadaaoserincorporada.QueumaelitedeoportunistasnoBrasilpretendareatarcomoselementosmaisbrutaisda históriadopaísnãosignificaqueesseselementosnãopossamser
atravessados,nemquesejamdestinadosavoltarindefinidamente paraassombraranação(e,maisamplamente,todoocontinente sul-americano),massimplesmentequeosverdadeirosmestres daordemdomundo,essesquefrequentamo fmi,aCasaBranca, BruxelasouaBolsadeXangai,preferemconfiarasrédeasaessa gentedoquearriscaraderivademocráticaouasocializaçãodas riquezas–damesmamaneiraqueosgrandesindustriaisalemães de1933preferiramHitleraRosaLuxemburgoeque,em1973,o economistaultraliberalFriedrichvonHayekestimava,depoisdo golpedeEstadodePinochetcontraoChiledemocráticodeSalvadorAllende,queaditadura“podeserumsistemanecessário duranteumperíododetransição”eque,casoocorresse,o“totalitarismo”nãoeraodosmilitaresouodaraça,masodeumademocraciaquehaviasetornadoincontrolávelnofimdosanos1960.Se estivessevivo,HayekteriavindocorrendoparabenizarBolsonaro.
Estelivropassaemrevistaoestadoatualdomundoparacaptaraíasnovaslógicasdaviolência,seucircuitoimaginárioinédito, suajustificativarenovadaetambémoquadroeconômicoúnico queaíseaninhaequeospromove.Issoporqueaviolêncianãoé maisoacidentedosistemaeconômico,aexceçãodeumcapitalismodevotadoa“pacificarosmodos”,mas,maisdoquenunca, seumotor,seumotivo,desdesuaorigempredatóriaatéseuhorizontedeconcorrência:“liberemsuasenergias!”–éoquenos recomendamosempreendedoresdesucessoeosinvestidoresdo mercadofinanceiro,ospolíticosdeextremadireitaeosgurusdo desenvolvimentopessoal,os youtubers,os influencers,os hooligans etodososchefesdecartéis.Semdúvidanãoéporacasoqueesse éoslogandomomento.Estelivro,publicadooriginalmentena Françaemmarçode2018,poucosmesesantesdaeleiçãopresidencialnoBrasil,dialogadealgumamaneira,mesmoacontragosto, comoquesepassahojenopaís.Adurasequênciapolíticaqueo Brasilexperimentahojeé,deumasóvez,oexemplo,aconsequêncialógicaeaformaatualmaisdramáticadetodososfenômenos complexos,amplamentenovosesempreentrelaçadosqueeste livroexplora.Masessa sequência podecomportarigualmente,
numfuturopróximooumaisdistante,aexceção:oreatamento feliz,areversãoinesperada–issoseaomenosopaísfizerdeseu povomúltiploumentraveàordemintrinsecamenteoligárquica queacabadechegaraopoder.Porque,nasequênciadetaiscatástrofespolíticas,anovaordemsempreacabagerando–frontal, subterrâneaoulateralmente–aresistênciaearecusa.E,mais ainda,acabagerandoareinvenção,noseiodasobrevivênciacomum,mesmoamordaçadaevigiada,deumdesejocoletivode outracoisa,umdesejoautônomoepartilhado.Umarodadade azar,sabemos,nãocondenaaodesespero:ofioqueessahistóriae essateoriadaviolênciaseguemé,hoje,antesdetudo,umfiodialético,ofiodeumentrechoque,deumacirculaçãodeumextremo aooutro,daaçãoàreação,daopressãoàrecusadesesubmeter–circulamos,comodiziaFrantzFanonem Oscondenadosdaterra a respeitodaviolênciadescolonial,“docanhãoaofacão”.
Defato,enquantoalgunssetornamcélebresporresponderà violênciaresidualcomaviolênciasistemática,aomalcomomal, esustentamseupodersobreessalógicacumulativa,outros,ao contrário,eestessempremaisnumerososdoqueosprimeiros, inventamrespostasativas,enãosomenteretóricas,aessaconjunturainfernal:àviolênciaconstanteesistêmica,respondem comaofensivapontualedeterminadacontraumpoderiníquo; àbrutalidadetornadaabsoluta,replicamcomumaviolênciaestratégica,instrumental,efêmera,semprearticuladacomdiversas outrasformasdeaçãoedeoposiçãoàordempolicialecapitalista. Éassimqueretomamemsuasprópriasmãosseudestinocoletivo, éassimqueextirpamdeseudestinoafatalidade,aimpotênciada dominaçãosistêmica,daordemdominantecomoaúnicaalternativa,odiosaeidentitária,alardeadaemtodolugar.Eles saemdo buraco,emsuma,namedidaemqueconseguemrecanalizarvirtuosamente,emdireçãoàinsubmissãotenazeàcapacidadecomum eofensivadeagir,ocircuitodeenergiasocialhipertrofiadoqueé odasvidasassujeitadas,tantodosbrasileiroscomoodetodasas outrasvidascontemporâneas,nasnossassociedadesdecontrole narcísicasehiperconsumistas.Ereemergem,poucoapouco,
paraaluzdodia,namedidaemquefazemderivar,emdireçãoa uminimigocomum,ocircuitorelacionalpetrificadoeasrelações sociaisviciadasquerepresamhoje,emtodolugar,aviolênciaretornadadoressentimentoeairaautodestrutivadosubalterno. Emumapalavra:elesseretiram,comosemprenosretiramos.
Ahistória,queincluiahistóriadosvencedores,nuncadeixaa estesaúltimapalavra:elaestárepletadessaslutasfrágeis,desses sobressaltosdedignidadeedessasrevoltasdesesperadasquemostramquesempretentamos,mesmoemvão,mesmodofundodo poçoedaderrota,nosretirardoinsuportável.Eénosretirando quefazemoscomqueahumanidadeavance.Comoemtodosos grandessobressaltosprogressistasatravésdahistóriahumana, dospoetashumanistasdoRenascimentoaostrabalhadoresda revoluçãoindustrial,dassufragistasdoséculo xix aosmilitantes dosdireitoscivis,dosquelutarampelaindependênciadascolôniasàsmultidõesindignadasdas“primaverasárabes”,podemos àsvezesesconjuraraondamaléficadaviolênciasistêmicapela magiadeumacentelha,peloefeitodeumaaçãocoletivadecidida esustentadaporumdesejojusto:aofeitiçodaviolênciaestrutural,semprerespondemos,deumamaneiraoudeoutra,comuma operaçãodedesenfeitiçamentoativo,ofensivo–arevoltaébria dequemnãotemmaisnadaaperder,equepreferemorrerdepé doquesobreviverdejoelhos.Essarevoltapopularqueaordem domundochamahabitualmentede“violência”,paramelhor desqualificá-la–comosãochamados“violentos”osprimeiros grevistasdasminasdecarvão,osmilitantesanticoloniais,osque resistiramàocupaçãonazista,osagitadoresantissegregação,os sans-culottes de1789ouasmultidõesdeSowetoaofimdoregime doapartheid.Queodestinodaviolênciasistêmica,naterrível formaquetomounoBrasilde2019,possasereverteremimpulso populardejustiçaeemancipação–equealeidecirculaçãoda energiasocial“violenta”possaenfimmudardesentido,esejuntaraocírculovirtuosodaautonomiaedaresistênciaativa.Ainda nãochegamoslá.Maséfrequentementequandomenosesperamosqueacontecem,subterraneamente,asgrandesreviravoltas.