Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores - Apresentação

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Ch’ixinakax utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores

Silvia Rivera Cusicanqui

© n-1 edições, 2021 isbn 9786586941692

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes

direção de arte Ricardo Muniz Fernandes

assistente editorial Inês Mendonça tradução e notas Ana Luiza Braga e Lior Zisman Zalis

preparação Graziela Marcolin

projeto gráfico Érico Peretta

A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou coletivo, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

1ª edição | São Paulo | dezembro de 2021 n-1edicoes.org

Silvia Rivera Cusicanqui

Apresentação

Sociologia da imagem: uma visão a partir da história colonial andina Ch’ixinakak utxiwa: uma reflexão sobre práticas e discursos descolonizadores 06 12 28 87

O outro bicentenário

Apresentação da primeira edição

Silvia Rivera Cusicanqui vive em La Paz, onde trabalha como socióloga e docente na Universidad Mayor de San Andrés. Publicou numerosos trabalhos sobre a história política e social da Bolívia, entre eles Oprimidos pero no vencidos, Las fronteras de la coca e Ser mujer indígena, chola o birlocha en la Bolivia postcolonial de los años 90. No começo da década de 1980, fundou o Taller de Historia Oral Andina [Oficina de história oral andina] e participou ativamente da editora Aruwiyiri. Atualmente, integra El Coletivo, grupo de investigação que publica uma revista “sazonal, alternativa e irreverente”.

Há algum tempo, Cusicanqui propõe uma metodologia inovadora para a análise histórica: a sociologia da imagem. As imagens têm o poder de construir uma narrativa crítica capaz de desmascarar as distintas formas do colonialismo contemporâneo. No contexto de um devir histórico que privilegia o textual em detrimento das culturas visuais, são as imagens, mais do que as palavras, que permitem captar os sentidos bloqueados e esquecidos pela língua oficial.

“No colonialismo, há uma função muito peculiar para as palavras: elas não designam, mas encobrem.” Por isso, a descolonização não pode ser apenas um pensamento ou uma retórica, pois as palavras costumam se desvincular das práticas. Pode-se falar contra o

racismo ao mesmo tempo que, subterraneamente, ele impregna e orienta nossas ações. De que outro modo, indaga Cusicanqui, se explicariam as irrupções racistas coletivas em Cochabamba e Sucre em 2007 e 2008?

Ao mesmo tempo, o registro visual nos permite descobrir os modos pelos quais o colonialismo se combate, se subverte e se ironiza, agora e sempre. É assim que os desenhos de um cronista do século xvii (que fazem parte deste livro) podem ser interpretados como verdadeiros flashbacks, a partir dos quais podemos repensar o passado por um novo olhar do presente. E vice-versa: porque a partir dessas imagens do passado, apartadas do ordenamento histórico oficial, é possível reabrir a pretensa objetividade do presente. Este procedimento de problematização visual é então duplamente potente, uma vez que nos fala de uma história viva que luta constantemente por irromper, submetida a um jogo de forças que a atualiza; e, além disso, nos conecta com as culturas visuais como potências de interpretação, desmistificação e contraponto das culturas letradas.

E o que são hoje as nossas cidades senão uma espécie de excesso de imagens, de transbordamento visual, uma promiscuidade de cenas, signos e situações?

A vida urbana contemporânea – em La Paz ou em Buenos Aires – nos conecta diretamente com outra

preocupação de Cusicanqui: o modo como o mestiço ou o ch’ixi dá conta de uma realidade em que “coexistem em paralelo múltiplas diferenças culturais que não se fundem, mas que se antagonizam ou se complementam”. Trata-se de uma mistura que não é isenta de conflito, já que “cada diferença reproduz a si mesma a partir da profundidade do passado e se relaciona com as outras de forma contenciosa”.

Em pleno auge das festividades bicentenárias em nosso continente, o índio não pode ser reduzido ao arcaico, nem pode o originário converter-se em mais um estereótipo. A atualidade de nossas cidades abigarradas1 não pode ser pensada sem esse conjunto de

1. O termo ‘abigarrado’ é utilizado por Silvia Rivera Cusicanqui em referência ao conceito de “sociedad abigarrada”, cunhado pelo teórico boliviano René Zavaleta Mercado, que indica a complexidade da convivência de diversos tempos históricos e realidades sociais e jurídicas nas sociedades atravessadas por processos coloniais. No prólogo da antologia La autodeterminación de las masas, Luis Tapia assinala que, em condições de abigarramiento, não é possível sustentar a validade de um único modelo teórico para explicar fatos que ocorrem segundo diferentes modos de significação, de maneira que uma explicação universal se converteria em uma forma de desconhecimento e dominação de uma realidade complexa. Analisando o contexto histórico andino em Las masas en noviembre (1983), Zavaleta propõe o abigarramiento como uma forma de sobreposição de “densidades temporais mescladas [...], com o particularismo de cada região porque aqui cada vale é uma pátria, em um composto no qual cada povo veste, canta, come e produz de um modo particular; e todos falam

deslocamentos territoriais que atravessam todo tipo de fronteiras (de países, ofícios, costumes, linguagens, comidas etc.). É nesse ir e vir incessante que se constitui a trama material de nossa vida diária.

O índio não deve ser pensado, portanto, em termos de uma identidade rígida, mas tampouco pode ser absorvido no discurso fictício do hibridismo. O ch’ixi, como alternativa a tais posturas, conjuga opostos sem subsumir um ao outro, justapondo diferenças concretas que não tendem a uma comunhão desproblematizada. O ch’ixi constitui assim uma imagem poderosa para pensar a coexistência de elementos heterogêneos que não aspiram à fusão e que não produzem um termo novo, superador e totalizante.

línguas e sotaques diferentes sem que nenhuma possa, por um instante sequer, chamar-se a língua universal de todos” (ZAVALETA, René; TAPIA, Luis. La autodeterminación de las masas. Siglo XXI, 2015. p. 2014). Algumas traduções literais do termo ao português poderiam ser ‘matizado’, ‘mesclado’, ‘heterogêneo’ ou ‘multicolor’. Na revisão de estudos sobre o autor em língua portuguesa, no entanto, o conceito é frequentemente encontrado sem tradução. Aqui, também optamos por mantê-lo no original ao longo do texto, tanto por sua riqueza conceitual e poética, que poderia equivocadamente ser reduzida à ambivalente noção de multiculturalidade, quanto por uma aposta pela contaminação entre vocabulários políticos latino-americanos [N.T.]

Com esta publicação conjunta das editoras Editorial Retazos e Tinta Limón, buscamos vincular essas elaborações com as realidades que aqui vivemos, que ocasionam situações complexas e singulares, nas quais se chega ao ponto de se justificar judicialmente a exploração do trabalho nas fábricas têxteis clandestinas em nome das “tradições andinas”. Mas também nos interessa desafiar esses discursos a partir das experiências de construção de novos territórios nos quais se reinventam as figuras do fazer coletivo - territórios que conjugam de outra maneira as formas comunitárias e a organização política autônoma. Estas premissas nos permitem relançar, aqui e agora, a pergunta pelas práticas de descolonização.

Junho de 2010

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