Dia da Mulher - Imaginária Feminina

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na, centrada nesse desígnio superlativo da Mãe de Jesus e transposta a uma galeria ainda maior de santas e mulheres de virtude (a hagiografia bollandiana, por exemplo, enriqueceu ainda mais todo o santoral feminino, logo as suas reproduções artísticas…), conferiu à mulher uma posição de relevo na produção escultórica em Portugal. Todavia, a qualidade da imaginária portuguesa depois de Trento, até meados do século XVII, não traz grande qualidade, privilegiando a mediação e evocação, a catequese e a pedagogia e menos a estética, não se comparando à produção coeva de Itália, Espanha ou França, por exemplo. Mas os valores eram por toda a Europa mais de catequese do que de exercitações plásticas ou elucubrações estéticas por parte dos artistas. A Inquisição não deixava espaço para mais… O século fradesco e beatífico que foi a centúria de Seiscentos proporcionou um crescimento incrível da imaginária feminina em Portugal, já não somente mariana mas também mais diversificada em termos de temas, figuras e alegorias, com maior expressão dramática e teatral, maior encenação e vigor dinâmico, que a policromia, o douramento e os panejamentos iriam cada vez mais sublimar, pelo menos até meados de Setecentos, quando o rococó começa a marcar presença. No Barroco Deus é Luz, que o ouro dimensionava ainda mais em brilho e força espiritual. Mas a mulher, figurada divinamente na forma, proporção e beleza em Maria, como nas santas mulheres, também o foi talvez ainda mais, como já o Apocalipse prenunciava. A policromia acentuaria ainda mais essa luminosidade, como os “S” das roupagens (recorde-se aqui a “Senhora da Boa Morte” do Carmo de Beja, supremo encanto da imaginária barroca portuguesa, com o seu magnífico trabalho de panejamento), como se vento soprasse nos flancos, os cabelos a esvoaçar, caídos em cachos sobre os ombros, como nas “Madalenas”, em que o essencial são os cabelos do MSML. Os esgares de ascese gozosa e arrebatada, de divino Amor inflamado, qual a “Santa Teresa de Ávila” em Êxtase, de Gianlorenzo Bernini, em Roma, ganham maior força na imaginária barroca. E o que dizer, opostamente, da força hierática, estática e disciplinada das santas monjas, como a S. Escolástica do MSML, com uma solidez espiritual incrível, um poder telúrico que a verticalidade das dobras do hábito negro beneditino reforçam… De facto, no Museu de Santa Maria de Lamas, a imaginária barroca portuguesa assume claramente as duas linhas de força da estética religiosa pós-tridentina, ou da fé na arte: ascese arrebatada e solidez vertical, céu e terra, dor e prazer, amor e sofrimento, encanto em êxtase e disciplina/rigor. Ou S. Escolástica e Santa Maria Madalena… Ou as duas dimensões numa só figura, Maria, personificação por excelência da atitude penitencial (como Madalena também) que a Igreja tentava inculcar nos fiéis como na sociedade em geral… Particularmente na Imaculada Conceição, talvez no Rosário, Maria é também paradigma barroco no MSML. Em Portugal, do século XVII, cumpre evocar aqui uma das obras maiores da imaginária feminina lusitana, de Fr. Cipriano da Cruz: uma notável Mater Dolorosa, actualmente conservada no Museu Machado de Castro, em Coimbra. Mas no Barroco nem tudo foram “pérolas” ou “fulgurância intensa”, como diria José António Falcão. Valeu também muitas vezes mais o que se pretendia representar e ilustrar do que o apuro estético, a gramática de linhas e formas. O conteúdo supera, ou justifica, as formas, o que faz com que os atributos, por exemplo, fossem cada vez mais importantes. Daí que se detectem muitas vezes deficiências na expressão escultórica portuguesa, com muitos santeiros a copiarem inúmeros modelos e gravuras em grande escala, sem preocupações estéticas ou artísticas, apenas o de fazer imagens votivas e canonicamente correctas. Nem sempre se reproduziam de forma correcta os modelos da tratadística para Maria e as Santas, quase sempre com base em autores espanhóis e italianos, como Montañez, Molanus, Gilo da Fabriano, Paleotti, Palmireno, entre outros. Nem sempre se deu atenção a Plotino (Enéades, I, 6), talvez: A simples beleza de uma cor é devida a uma forma que domina a escuridão da matéria e à presença de uma luz incorpórea que é razão e ideia. (…) São as harmonias imperceptíveis ao sentido que fazem as harmonias sensíveis, podendo, através delas, a alma intuir a sua beleza, já que elas lhe revelam o idêntico no diferente. (…) Portanto, bastem estas coisas sobre as belezas sensíveis, imagens e sombras, que, de algum modo, escapam e descem à matéria, ordenando-a e comovendo-nos com o seu aspecto.

FRAGMENTOS SOBRE A IMAGINÁRIA FEMININA NA ICONOGRAFIA RELIGIOSA PORTUGUESA. 28, 29 DA IDADE MÉDIA AO BARROCO Vítor Gomes Teixeira


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