Revista Piratininga - Número 03

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Vol.03 / 2020

Uma revista de divulgação científica que se apresenta como espaço para os que desejam debater sobre arte, especialmente, sobre arte e transcendência, buscando a interação entre públicos diversos, com os mais variados conhecimentos destes universos culturais e suas complexas relações.

Revista semestral do Museu de Arte Sacra de São Paulo e do IPAC - Instituto Paulista de Arte e Cultura, em parceria com Culturarte - Pensamento, cultura e linguagens. Volume nº 3 - 2020 ISSN: 2565-8763

Secretaria de Cultura e Economia Criativa

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Palavras do Diretor

Os tempos são difíceis – para cada um de nós e

sem quaisquer diferenças sociais e econômicas para todos. Mas o Museu de Arte Sacra de São Paulo não está inativo. Apesar de todas as inevitáveis e necessárias limitações impostas pelo momento, várias de suas atividades estão à disposição do público pelos mais eficazes meios eletrônicos. Assim também ocorre o terceiro número de sua consagrada revisa semestral Piratininga. Como sempre o conjunto dos seus colaboradores apresenta mais de uma dezena de artigos em que abordam os múltiplos aspectos da arte sacra no Brasil e seu profundo enraizamento em nossa história.

“servir, educar e prover cultura para todos”

PIRATININGA - REVISTA DO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO ISSN: 2565-8763 Diretor Editorial: José Carlos Marçal de Barros Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves Curadoria Editorial: José Luís Landeira Produção: Henrico Cobianchi

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Sua leitura estimula o conhecimento não apenas dos temas específicos, mas sobretudo uma reflexão, mais do que nunca essencial, sobre os caminhos percorridos pelo país ao longo de cinco séculos. Além da pertinência destes elementos, este número três da Piratininga é publicado em uma data mais do que auspiciosa. Trata-se neste mês de junho de 2020, da comemoração do cinquentenário do glorioso Museu de Arte Sacra de São Paulo.

MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros Diretor de Planejamento e Gestão: Luiz Henrique Marcon Neves Museóloga: Beatriz Augusta Corrêa da Cruz IPAC - INSTITUTO PAULISTA DE ARTE E CULTURA

Revisor: Pedro Paulo Sena Madureira

Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros

Colaboradores:

Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves

Rafael Schunk, Fabricio Forganes, Mary del Priori, Wilma Steagall de Tommaso, Sheila Perricone, Leonardo Caetano, Claudia Leal, Paulo César Giordano, Luciana Barbosa, Luciana Amendola, Mauro Ferreira, Paula Freire, Marcos Horácio Gomes, Hugo Allen, Cristina Cavaterra, Silveli Russo, Gonçalo de Vasconcelos, Silvana Borges e Andrea Rodrigues

CULTURARTE – PENSAMENTO, CULTURA E LINGUAGENS Diretores: José Luís Landeira / landeira@sapo.pt Marcos Horácio Gomes Dias / mhgdias@uol.com.br


Editorial E Piratininga chega ao seu terceiro número e na sua

primeira publicação com periodicidade semestral, marcando o momento do cinquentenário do Museu de Arte Sacra de São Paulo, ocasião que o número anterior já havia celebrado. Este número celebra, antes de tudo, a gratidão. Em primeiro lugar, aos muitos que se moveram, para além de suas obrigações, para torná-lo possível: telefonemas de trabalho ao domingo ou tarde da noite, pedidos inusitados nos grupos e redes sociais, colaborações das mais variadas que fizeram a revista acontecer, apesar dos muitos apesares. Nosso Dossiê Temático aborda o Brasil multicultural. Tema muito rico, que merece uma segunda e terceira visitas. Neste número, Rafael Schünk presta a devida homenagem a um dos primeiros e maiores artistas brasileiros, o Frei Agostinho de Jesus, lamentavelmente, ainda muito desconhecido pelo grande público. Fabrício Forg estuda conosco a contribuição africana na formação da religiosidade brasileira. Já Wilma Tommaso leva-nos a contemplar a arte indígena interpretada por Claudio Pastro no Santuário Nacional de Aparecida. Sheila Perricone detém-se na monumental pintura do forro da nave principal da Igreja de São Francisco em João Pessoa na Paraíba, como exemplo da grandeza deste país multicultural. Leonardo Caetano de Almeida conta-nos sobre uma das mais importantes devoções de São Paulo, hoje muito esquecida, e que deu origem a um dos mais antigos e tradicionais bairros paulistanos. O tema proposto por Leonardo faz boa passagem para a próxima seção da revista, Outros Olhares. Aqui encontramos a confluência das muitas áreas do conhecimento que dialogam com a Arte, particularmente, a Arte Sacra. Claudia Leal mergulha na discussão sobre o significado da Idade Média na construção da história da civilização ocidental. Paulo César Giordano Nogueira convida-nos a acompanhar a trajetória do Dead Can Dance e o diálogo possível com a transcendência que a música possibilita. Luciana Barbosa reflete sobre a preservação do sagrado no museu. A presença dos estudos literários dentro do campo da Arte Sacra é ainda incipiente. Na Piratininga, tem sido constante desde o seu lançamento.

Neste numero, a seção Literatura traz o artigo de Luciana Kreidel sobre o Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdam, como fruto prodigioso de uma quarentena. Os Campos da Arte deste número mostram que a própria Arte, como o Brasil, é uma linguagem multicultural. O pintor Mauro Ferreira, que merecerá uma exposição no MAS-SP, faz um depoimento e fala sobre o que a sua vocação para a arte. No papel de público atento, Paula Freire trata do Autorretrato crucificado de um dos nomes mais expressivos da arte portuguesa, Albuquerque Mendes, e revela-nos uma leitura sobre a dor de existir. E é também como leitores de arte que “Em foco”, seção constante dentro de Piratininga, aos cuidados do professor Marcos Horácio Gomes Dias, nos mostra uma interessante Nossa Senhora da Conceição, peça importante do acervo do nosso museu. O artigo de Cristiana Cavaterra poderia ter integrado o Dossiê Temático. Se não o fez foi apenas porque Marino Del Favero, o artista imigrante, vivendo sua experiência estética entre Brasil e Itália, traz-nos o sabor da arte sacra como campo privilegiado da arte. Silveli Russo conduz-nos em um breve percurso pela exposição “oratórios brasileiros em textos e imagens”. A seção Arte na Sala de Aula pensa as relações entre Arte, Museologia e Educação. Neste números, os professores Gonçalo Vasconcelos e Sousa e Silvana Borges tomam os seus cursos no Museu de Arte Sacra de São Paulo como objeto de reflexão e nos apresentam-nos informações valiosas tanto sobre a peritagem de ourivesaria religiosa, como sobre a origem das cores. A professora Andrea de Oliveira coloca-nos na esfera da educação formal e reflete sobre o ensino de Arte nas escolas, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, à luz do documento que norteia a Educação no país, a Base Nacional Comum Curricular. O Museu de Arte Sacra de São Paulo avança em meio às mudanças constantes a que somos sujeitos, inaugurando diversos modos de comunicação e formação, fazendo uso de plataformas virtuais. À internet, que será companheira dos próximos cinquenta anos do Museu, cabe aqui também a nossa gratidão. 5


O Museu de Arte Sacra de SĂŁo Paulo comemora 50 anos em 2020! Acompanhe nosso site e redes sociais e fique por dentro das novidades.

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Sumário SEÇÃO - DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL 8. Miniaturas beneditinas: Frei Agostinho de Jesus em pequenas dimensões 14. Negros Católicos ou Catolicismo Negro? A contribuição africana na formação da religiosidade brasileira. 20. Devoção e vida cotidiana à volta da rua Grande e da igreja do Carmo no século XVIII 24. Cláudio Pastro a inculturação e a arte indígena no Santuário Nacional de Aparecida 30. A pintura da nave principal da igreja de São Francisco em João Pessoa, Paraíba 36. Nossa Senhora da Penha: A Padroeira e a Cidade

SEÇÃO - OUTROS OLHARES 40. O começo da Idade Média: alta idade média, antiguidade tardia ou um período de trevas? 44. Podem os mortos dançar? 50. A preservação do sagrado no museu

LITERATURA 54. Elogio da Loucura, o fruto prodigioso de uma quarentena

SEÇÃO - CAMPOS DA ARTE 58. Depoimento: O pintor, por ele mesmo 62. O Autorretrato crucificado de Albuquerque Mendes: Uma leitura sobre a dor de existir 66. Em Foco: Nossa Senhora da Conceição 68. Das Danças Macabras à Lost Generation– Uma Crónica Optimista 72. Marino Del Favero entre Brasil e Itália - O pioneirismo na fabricação de arte sacra na capital paulista da Belle Époque 78. Um breve percurso pela exposição “Oratórios Brasileiros”

ARTE NA SALA DE AULA 82. Uma experiência singular: o curso de iniciação à peritagem de ourivesaria religiosa no cofre do museu de arte sacra de são paulo 86. O curso: Como se fazem as cores? 90. Muito além de traballhos: Repensando a arte na escola 7


Miniaturas Beneditinas: Frei Agostinho de Jesus em pequenas dimensões.

Frei Agostinho de Jesus | Nossa Senhora da Conceição Menina (20cm de Altura) - Coleção Particular Monumento a Frei Agostinho de Jesus em Santana de Parnaíba - Autoria de Murilo Sá Toledo - Foto: Creative Commons

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Rafael Schunk 1

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL

Um dos maiores artistas brasileiros é o frei Agostinho de Jesus. Dedicado à arte sacra, o escultor é responsável por inúmeros trabalhos feitos para o devocional privado e que dariam origem a uma das mais particulares expressões da arte sacra brasileira, os paulistinhas do século XIX.

ETZEL, E. Imagens religiosas de São Paulo: apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos, 1971. LEMOS, C. A. C. A imaginária paulista. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. SCHUNK, R. Frei Agostinho de Jesus e as Tradições da imaginária colonial brasileira – séculos XVI - XVII. São Paulo: Unesp, 2014. SILVA-NIGRA, C. M. Os dois escultores frei Agostinho da Piedade – frei Agostinho de Jesus e o arquiteto frei Macário de São João. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1971.

1 Mestre em Artes Visuais (UNESP), graduado em Arquitetura e Urbanismo, pesquisador, técnico em seguros de obras de arte, crítico, expógrafo, curador, colecionador de arte barroca e artista plástico.

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Janeiro o primeiro grande artista da América portuguesa: frei Agostinho de Jesus, discípulo do ceramista português frei Agostinho da Piedade (c. 1580-1661). Seguindo a vocação religiosa, inicia seus estudos no Mosteiro da Ordem de São Bento em Salvador, a abadia beneditina mais antiga do continente americano, fundada em 1582. Nesse recinto, o talentoso jovem entrou em contato com as imagens e bustos relicários de frei Agostinho da Piedade, trabalhos fixados entre 1619 e 1661. Passados alguns anos, Agostinho de Jesus segue para Portugal no intuito de receber suas ordens sacras, pois na época não havia bispos para ordenar sacerdotes em Salvador, única sede episcopal do Brasil até 1676. Ali, o primeiro mestre brasileiro contemplou a arte europeia em vários momentos estéticos, aperfeiçoando seus múltiplos talentos artísticos, tanto na escultura quanto na pintura. Retorna para o mosteiro da Bahia por volta de 16 de dezembro de 1634. Nesse período, acompanhou a feitura de duas grandes imagens retabulares de Nossa Senhora do Montesserrate (1635 e 1636), de frei Agostinho da Piedade. No Nordeste, uma das primeiras obras modeladas por frei Agostinho de Jesus foi O Menino Jesus de Salvador, no acervo do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, e O Menino Jesus do Recife, conservado no Museu do Estado de Pernambuco. A partir de 1641, começam aparecer as primeiras imagens datadas pelo artista na antiga Capitania de São Vicente (atual Estado de São Paulo). Em virtude das habilidades de pintor e ceramista, por volta de 1643 o monge-escultor foi enviado ao sertão paulista para o recém-fundado Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro de Santana de Parnaíba. Residindo nesse local por muitos anos, produzirá um extenso conjunto escultórico destinado aos altares desse priorado e para a nova igreja matriz da vila inaugurada em 1650. O bandeirante André Fernandes, um dos fundadores de Santana de Parnaíba (1580), foi o principal mecenas de Agostinho de Jesus, incentivando a realização das mais importantes obras religiosas desse grande mestre brasileiro. O ciclo da prata na América espanhola traficada de Potosí (cidade fundada em 1545 no antigo vice-reinado do Peru em atuais terras bolivianas) foi responsável pelo financiamento do início da arte colonial luso-brasileira. Desde o início do século XVII, os

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Anônimo | Nossa Senhora do Rosário (18,5cm de Altura) - Coleção Particular

Entre 1600 e 1610, nasce na cidade do Rio de

bandeirantes paulistas se deslocavam para a Província do Guairá e em terras paraguaias, traficando mão-de-obra indígena das missões jesuíticas e contrabandeando prata para São Paulo. André Fernandes doou grandes quantidades desse metal para o mosteiro de Parnaíba, patrocinando a arte do primeiro grande escultor destas terras. O mosteiro parnaibano possuía uma fazenda e olaria


chamada Santa Quitéria, localizada no antigo distrito de São Roque. Esse local produzia toda sorte de utensílios e testemunhou uma série de imagens modeladas por frei Agostinho de Jesus, que integra uma das primeiras tradições brasileiras de escultura religiosa documentadas na história nacional. A partir desse evento, forma-se um conjunto de discípulos que perpetuarão estilos e técnicas, formando uma escola de imaginária barrista entre o Alto e Médio Tietê, contendo estéticas predominantemente eruditas. Toda essa agitação social e artística acompanhará os sertanistas no processo de expansão do país rumo a Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. A união desses eventos históricos singulares transformou Santana de Parnaíba em um dos mais significativos berços da arte barroca na América portuguesa. Esse centro de produção cultural no Brasil antigo se tornou pioneiro por agregar diferentes fusões de povos, anunciando a sociedade mestiça, criativa, inventiva, sertaneja e original que os bandeirantes semearam em todo o país. O encontro de tradições artísticas indígenas, portuguesas, castelhanas, cristãs, orientais, mouras e judaicas resulta no nascimento da cultura brasileira. A tradição de esculpir imagens e relicários foi desenvolvida no mosteiro beneditino de Santa Maria de Alcobaça (Portugal) e transplantada para a Bahia por intermédio do artista português frei Agostinho da Piedade no começo do século XVII. Este, por sua vez, ensinou o brasileiro frei Agostinho de Jesus e, ao se mudar para o planalto paulista entre os anos de 1641 e 1643, exerceu o ofício de escultor nas olarias de Santana de Parnaíba, São Paulo e Mogi das Cruzes. Essa produção foi identificada e documentada pela primeira vez pelo historiador e monge beneditino dom Clemente Maria da Silva-Nigra entre as décadas de 1930 e 1940, quando trabalhou para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (antigo SPHAN). As pesquisas de Dom Clemente evidenciaram a importância de Santana de Parnaíba na formação da arte colonial luso-brasileira. A escola de imaginária do barro desenvolvida nessa região representa uma das mais importantes expressões culturais da era das bandeiras que dilataram as fronteiras da América portuguesa. A construção do mosteiro beneditino de Nossa Senhora do Desterro em Parnaíba representou um importante marco na história da arte brasileira, monumento infelizmente desaparecido no final do século XIX. Da antiga província espanhola do Guairá, hoje Estado

do Paraná, vieram artífices guaranis treinados nas missões e que entalharam os retábulos dessa igreja. A partir de Salvador, os padres beneditinos enviaram importantes terracotas do monge frei Agostinho da Piedade, a exemplo da imagem de Santo Amaro, hoje no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Frei Agostinho de Jesus reside em Parnaíba por aproximadamente oito anos (1643 a 1650), produzindo suas principais imagens e elevando a arte colonial a um período áureo. No Mosteiro de São Bento em Santana de Parnaíba, o monge-artista esculpiu as imagens de Nossa Senhora do Desterro, Menino Jesus, São José, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia, Santa Gertrudes, Santa Escolástica, provavelmente um Santo André (desaparecido) e peças destinadas a presépios. Para a igreja matriz de Parnaíba modelou todo o conjunto retabular seiscentista: Nossa Senhora dos Prazeres, Nossa Senhora da Purificação (sua obra-prima), Nossa Senhora do Rosário, Santo Antônio do Suru, Santana Mestra, Nossa Senhora da Piedade e uma importante série de iconografias marianas utilizadas em procissões solenes. As obras criadas em sua permanência neste local representam uma das mais significativas manifestações de arte brasileira do século XVII; profusões de anjos com olhares amendoados, mestiços, feições mamelucas, imagens de virgens e santos beneditinos contendo liberdade erudita, colorido intenso, tropical, sustentados por volutas representando nuvens. Algumas dessas obras, recolhidas pela Cúria Metropolitana de São Paulo, atualmente integram o Museu de Arte Sacra de São Paulo: Nossa Senhora da Purificação, Nossa Senhora dos Prazeres, Santana Mestra (antiga padroeira de Parnaíba), Virgem Menina e São Francisco de Paula. As esculturas de frei Agostinho de Jesus apresentam uma beleza feminina e terrena, aproximando e espelhando o homem com o divino. Em Santana de Parnaíba realizou o mais significativo conjunto retabular do Brasil seiscentista, local onde encontraremos no século XX o maior conjunto remanescente de obras-primas. A atuação de frei Agostinho de Jesus e seus discípulos na Parnaíba resultou na formação de uma das mais antigas escolas de escultura religiosa no Brasil, pela qualidade, antiguidade e originalidade das obras de arte remanescentes. Representa o encontro de um mestre com a cultura interiorana e original, distante dos modelos importados do reino, buscando uma identidade própria, nacional. 11


Por volta de 1650, desloca-se para Piratininga e executa quatro grandes esculturas na nova igreja do Mosteiro de São Bento de São Paulo financiado pelo bandeirante Fernão Dias Paes, o governador das esmeraldas: as imagens do Patriarca São Bento, Santa Escolástica, Santo Amaro e São Bernardo. Em 1652, modela a imagem de Nossa Senhora do Montesserrate, padroeira da cidade de Santos. No extremo leste de São Paulo, passando por Mogi das Cruzes e Vale do Paraíba, realiza um extenso conjunto de imagens retabulares: Nossa Senhora do Rosário (capela de São Miguel Paulista), Nossa Senhora da Ajuda (padroeira da cidade de Itaquaquecetuba), Relicário de Santo Antônio, Nossa Senhora da Assunção e Conceição (capela da Fazenda Parateí em Mogi das Cruzes, acervo do Museu das Igrejas do Carmo – MIC) e Nossa Senhora da Ajuda (Guararema). Deixou obras em Jacareí, Taubaté e Pindamonhangaba. Permanece no território paulista até aproximadamente 1654, trabalhando nas fazendas e olarias beneditinas da região do Rio Parateí (Mogi das Cruzes), São Caetano do Sul e Jurubatuba (atual bairro de Santo Amaro, São Paulo). O mais comovente conjunto de imagens modeladas por frei Agostinho de Jesus é o de Nossa Senhora da Piedade. Conservadas em coleções públicas e particulares, as pietàs do monge emocionam ao fixar a iconografia da descida da cruz no Gólgota. Algumas dessas esculturas apresentam um suporte nas costas das peças para fixação de um crucifixo, solo pedregoso, vegetação em baixo relevo, coroa de espinhos e a presença de uma caveira estilizada ao chão. O Cristo sempre esculpido em dimensões sutilmente menores às de Nossa Senhora é envolvido como uma criança morta nos braços da mãe. É o maior conjunto modelado pelo artista, juntamente com o devocional de Nossa Senhora dos Prazeres, Conceição e Rosário. O culto às virgens coroadas foi intenso, sobressaindo-se na produção dos beneditinos e santeiros laicos do planalto paulista durante os séculos XVI e XVII; estéticas provenientes da arte medieval-renascentista lusa, espanhola e francesa que interpretavam a Santa como Rainha e Mãe da Igreja. Retornando ao litoral fluminense, o artista confeccionou esculturas para templos no entorno da baía de Guanabara, entre as atuais cidades do Rio de Janeiro (Mosteiro de São Bento) e Duque de Caxias (Fazenda São Bento do Iguaçu). Destaque para a Virgem da 12

Aldeia de Mambucaba no acervo do Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis e um Santo Antônio da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Negros de Paraty (acervo do Museu de Arte Sacra de Paraty). Um dos últimos trabalhos datados por esse mestre é uma pequena imagem do Patriarca São Bento (1651), conservada no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Faleceu nessa cidade em 11 de agosto de 1661, sendo sepultado no cemitério do claustro beneditino carioca. Deixou para o Brasil um legado único e que passa a ser revisto em toda plenitude de significados, artista de atuação continental, gênese da arte sacra nacional. Ao contrário do que se deduz de um escultor retabular dedicado exclusivamente à produção de grandes vultos para altares de mosteiros, matrizes oficiais e ermidas, podemos observar em coleções particulares na cidade de São Paulo pequenas imagens realizadas por frei Agostinho de Jesus para o devocional privado. Constituem peças entre dez, quinze e vinte cm de altura, solicitadas por devotos bandeirantes e sitiantes para a veneração particular; encomendas pagas provavelmente como doações aos monges para obras assistenciais dos mosteiros. Essas pequenas faturas contribuíram para a subsistência do artista e seu trabalho. Podemos aferir igualmente que essas esculturas representavam protótipos ou ensaios para grandes imagens destinadas a igrejas e, levadas na bagagem do monge, foram estudos transportados para locais de difícil acesso; uma espécie de material de apresentação do escultor. Sabemos que, nas regiões onde não existiam olarias, o artista esculpiu modelos em barro ressequido, adaptando conforme as necessidades de cada localidade. Raras, as miniaturas beneditinas do grande mestre conservam as mesmas qualidades e proporções de peças monumentais representando iconografias de Madalena em meditação, Nossa Senhora do Rosário, Pietà e, sobretudo Nossa Senhora da Conceição. Esses trabalhos preconizam a imaginária paulista do período imperial: amplamente reproduzidas em oficinas laicas rudimentares e queimadas em fogões à lenha em barracões de sítios na época do café. No alvorecer do século XIX, o surgimento da imaginária sacra popular denominada paulistinha (pequenos santos em barro cozido policromado e base geométrica de interior oco) representou um desdobramento da produção desenvolvida por frei Agostinho de Jesus


nas olarias de Parnaíba e depois transplantada para a fazenda beneditina de Parateí em Mogi das Cruzes. Os santos paulistinhas são originários dessa área geograficamente localizada entre o Alto Tietê e Paraíba do Sul. Quase a totalidade dos temas beneditinos está presente na série em barro conhecida como paulistinha: Santa Gertrudes, São Bento com a serpente, Santa Escolástica, Santana Mestra, Santa Luzia, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora da Conceição, Prazeres e Rosário. Essa constatação parece indicar uma influência de frei Agostinho de Jesus na técnica de ocagem do barro, processo de cozimento e pintura dessas imagens que encerram a arte sacra de reminiscência colonial no Brasil. Presumimos que esse mestre não trabalhou isolado, deixando variados discípulos, todos anônimos, modeladores de santos em barro e, gerações adiante, por seus descendentes, que influenciaram decisivamente a confecção dos paulistinhas migrados de Mogi das Cruzes para o Vale do Rio Paraíba. Os principais centros produtores dessas imagens de dimensões reduzidas foram as cidades de Arujá, Santa Isabel, Itaquaquecetuba, Mogi das Cruzes, Guararema, Jacareí (áreas circundantes do Parateí) e locais mais distantes: São José dos Campos, Taubaté, Pindamonhangaba, Caçapava Velha, Guaratinguetá e vilas serranas nos caminhos para Caraguatatuba e Ubatuba, territórios influenciados pelo comércio peregrino ao santuário de Aparecida. A imaginária jesuítica foi menos influente em território paulista, ordem combatida pelos bandeirantes. Os jesuítas eram veementemente contrários à escravidão indígena, opondo-se aos sertanistas (comerciantes de mão de obra nativa). Os sertanistas, por sua vez, elegeram e patrocinaram os beneditinos (sacerdotes de vida monástica moderada e consagrada a Deus nos retiros dos mosteiros), tornando-se a grande ordem religiosa paulista do século XVII. O que restou como legado dos jesuítas no planalto, além da arquitetura dos aldeamentos, raras imagens retabulares e altares de conventos, foi o culto à Santa Cruz, desdobrando-se nas capelas de Santa Cruz das estradas, sítios e cruzeiros de acidentados espalhados em pequenas propriedades e rodovias por todo o Vale do Paraíba no ciclo cafeeiro – estética endêmica dessa região. A imaginária beneditina, por sua vez, expandiu-se e seus santos de veneração popularizaram-se ao redor dos primeiros modelos agostinianos reinterpretados

na arte paulistinha do século XIX, conquistando a devoção doméstica; verdadeiras miniaturas inspiradas em obras de altares oficiais. A escultura mais reproduzida do repertório de frei Agostinho de Jesus foi a padroeira da cidade de Santos, Nossa Senhora do Montesserrate: reduzida, fundida em estanho, ferro, metal, plástico, resina, biscuit, modelada em barro, papel, popularizou-se em pequenas dimensões e santinhos impressos entre os séculos XIX, XX e XXI, acompanhando as romarias ao monte sagrado que protege a região portuária. Um dos últimos artistas de paulistinhas e seu maior expoente foi Benedicto Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923), artista natural de Santa Isabel e um dos maiores santeiros populares do Brasil. A vasta e tardia obra de Pituba transportou para o século XX a alma barroca do homem simples no campo, apegado a tradições arcaicas e caipiras de quatro séculos passados, fundadas a partir da imaginária de frei Agostinho de Jesus. Dito Pituba trabalhou inicialmente imagens em terracota na olaria do pai; depois realizou oratórios, quadros de promessas, ex-votos, santos de roca vestidos por devotos, imagens para altares de igrejas, capelas de sítios, cemitérios e, na fase final, utilizou exclusivamente a madeira para entalhar pequenas esculturas pregadas em bases geométricas: cortava o cedro do mato, cuiúva, caixeta, pinho-de-riga (pinus sylvestris) provenientes de caixas de bacalhau, cordas de sapatos, metais, cobrindo os santos com gesso, cal, alvaiade, papel machê, fibras naturais, pigmentos vegetais, minerais, têmperas, vernizes e purpurinas; foi um dos precursores da reciclagem na arte, fruto do aproveitamento de materiais disponíveis no seu ambiente humilde. A imaginária conventual erudita brasileira nasce na Vila de Santana de Parnaíba em meados do século XVII. Nas gerações seguintes, essas tradições se extinguem sob feições populares miniaturizadas nas roças ensolaradas do Vale do Rio Paraíba do Sul no momento em que a arte brasileira se manifesta com vigor de modernidade. Os santos paulistinhas representaram o último sopro da cultura bandeirante em plena era industrial. 13


Negros Católicos ou Catolicismo negro?

Pastoras do Rosário. Foto: Graziela Medeiros.

A contribuição africana na formação da religiosidade brasileira.

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Fabricio Forganes Santos1

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL

Neste trabalho faremos um percurso começando pelo catolicismo na África, passando pelo cotidiano das irmandades negras no contexto colonial e finalizando com os desdobramentos resultantes do encontro de diversos povos em solo brasileiro, na tentativa de entender o gene africano que ainda subsiste nas devoções católicas exercidas no Brasil.

HOONAERT, Eduardo. O cristianismo moreno no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1991 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil (1938). São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo II – Livro III MELLO E SOUZA, Marina de. “Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma reflexão sobre miscigenação cultural”. Revista Afro-Ásia, Núm. 28, p. 125-146. Bahia, Brasil: Universidade Federal da Bahia, 2002. MEREDITH, Martin. O destino da África. Cinco mil ano de riquezas, ganância e desafios. Tradução: Marlene Suano. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017. PACHECO, Ronilson. Teologia Negra: o sopro antirracista do Espírito. Brasília: Editora Novos Diálogos, 2019. THORNTON, John. “The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491–1750”. The Journal of African History 25 (2). Cambridge: Cambridge University Press, 1984, p. 147-167.

Fabrício Forganes Santos é mestrando da FAAC/UNESP, tendo como pesquisa a presença urbana negra a partir do estudo das igrejas de suas irmandades. Arquiteto graduado pela FAUS - UNISANTOS, já realizou trabalhos de curadoria no Museu de Arte Sacra de Santos e atividades de docência no Museu de Arte Sacra de São Paulo – MAS-SP.Participa desde 2017 na Comunidade do Rosário da Penha de França - SP, onde contribui na liturgia das celebrações romanas em rito inculturado afro.

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Congadas, Itamogi - MG. Foto: Graziela Medeiros.

A presença do Cristo Branco na África Negra (séculos XV-XVII)

Para uma melhor compreensão dos traços da identidade africana presentes no catolicismo brasileiro, há de se retornar à história da África no momento de ingresso do cristianismo em suas terras, tocando consequentemente em questões ligadas a colonização, escravidão e racismo, uma vez que ambos temas eram intrínsecos às estratégias utilizadas para alcançar os objetivos da coroa portuguesa. Contudo, ainda que o estudo do século XV seja fundamental pela presença marcante de religiosos no continente africano, há de se ressaltar que, conforme a tradição canônica, o primeiro contato dos povos negros com a doutrina cristã se realizou através do evangelista Mateus após a morte, ressurreição e ascensão de seu mestre Jesus Cristo, quando teria saído em missão pela África evangelizando e fundando templos cristãos ao longo do Rio Nilo, concluindo sua jornada na Etiópia, onde supostamente teria morrido. Neste último país, São Mateus haveria convertido a princesa Efigênia que, ao operar diversos milagres,conseguiria preservar o cristianismo nestas terras durante muitos anos, 16

estando a ela atribuída a fundação de uma ordem monástica e a conversão de Elesbão, membro de um reino africano também reconhecido como santo negro pela igreja católica. Para além da atuação de São Mateus na conversão de Santa Efigênia e Santo Elesbão, outro personagem bíblico citado no Antigo Testamento também se faria presente indiretamente na história do catolicismo na África, ao aguçar a curiosidade dos europeus devido a sua relação com tesouros africanos: a Rainha de Sabá (I Reis 10). Movida pelo interesse na descoberta e expropriação destes e de outros tesouros da África negra, sob o financiamento da Ordem de Christo, a coroa portuguesa organizaria investidas ao continente africano, enviando também levas de religiosos com o intuito de catequização dos povos negros. Neste contexto, junto com o colonialismo a igreja católica teria um papel fundamental na institucionalização da escravidão, disseminando o preconceito racial ao comparar os povos da África negra com os descendentes de Cam(Gênesis 9:21–22), fortalecendo o racismo e considerando justa, de certa maneira, a escravização destes povos. Além da falta de humanidade para com os negros ao apoiar a escravidão, a igreja católica também depreciaria as tradições religiosas dos povos africanos em suas tentativas de conversão ao evangelho do Cristo “branco”. Contudo, os ecos reverberados pelo encontro destes sacerdotes europeus com práticas ritualísticas ancestrais, tão alicerçadas quanto as bases da sua doutrina católica, desenhariam um novo cenário religioso nestas terras, com reações de aproximação ou repulsa que despertariam nos padres o consentimento à aculturação como respostas às pressões dos “negros evangelizados”. Dos grupos étnico-linguísticos que já habitavam o continente africano no século XV, os iorubás e os bantos merecem atenção, haja vista que algumas de suas terras seriam colonizadas por portugueses, favorecendo o contato destes africanos com o catolicismo seja a partir das igrejasfundadas ou simplesmente pela circulação de padres nas cidades ou povoados. Para os iorubás, o encontro com os sacerdotes católicos não geraria ecos relevantes, em parte porque eles não identificaram paralelo entre a devoção estrangeira e a tradição de culto aos orixás. Ainda que a Igreja tenha encontrado ambiente para a construção do castelo de São Jorge da Mina – que se configurou como um marco da presença portuguesa e católica em Gana –, não foram notadas grandes assimilações por parte destes africanos. Em contrapartida ao cenário católico na África ocidental, o catolicismo


entre os bantos pode ter tido melhor assimilação, pelos aspectos correspondentes entre ambas religiões e pela difusão promovida pelos reis africanos,estando o lugar do Congo como ponto de irradiação, e o século XVI como marco temporal da expansão do catolicismo na África subsaariana. A conversão do rei do Congo e seu batizado realizado em 1491 (Meredith, 2017, p. 120) teriam sido atos voluntários por parte de Nkuwu Nzinga – João I do Congo – e de sua corte, ainda que se tratasse de uma prática cristã que seria posteriormente combinada com aspectos da religião tradicional congolesa. Contudo, embora se tratasse de um reino dotado de uma corte “católica”, é possível que houvesse disputas sobre a permanência do catolicismo como religião oficial do país, ocasionando dissidências entre os próprios membros da família real. Tal cenário levaria a uma guerra que corroborou para a morte do rei João I em um campo de batalha, onde duas frentes duelaram, uma sob a proteção dos nkisis – representada por um dos filhos do rei do Congo – contra outra sob as bençãos de Nossa Senhora do Rosário e dos santos católicos – frente defendida pelo filho Afonso I, convertido à nova religião. Para além deste episódio, em outros momentos a presença da nova religião não teria sido harmoniosa, em parte pelos excessos na exploração promovida pela coroa portuguesa. Não obstante as questões políticas, haveria também divergências entre o clero local e as sedes diocesanas – Tomar e Funchal – e discordâncias na maneira discriminatória com que alguns padres estrangeiros atuavam junto ao povo, ocasionando o afastamento dos africanos a nova doutrina e o consequente florescimento de antigas religiosidades. No século XVII, o reposicionamento dos portugueses em Angola – pelas tentativas de invasão de outros países devido a lucratividade do negócio escravocrata – promoveu o direcionamento dos padres para a evangelização deste lugar, enfraquecendo consideravelmente o catolicismo no Congo, e ocasionando, por sua vez, o maior fortalecimento das religiões tradicionais congolesas. Ao transferir a diocese de São Salvador para acapital angolana em 1624, o rei de Portugal reduziria consideravelmente a presença de religiosos no Congo, forçando os congoleses a solicitarem padres ao papado. O pedido foi atendido. Contudo a chegada de sacerdotes diretamente de Roma pode ter selado o fim da expansão do catolicismo nestas terras, em parte pela intolerância às práticas aculturadas e pelo rigor com que estes exerciam seus ofícios religiosos (Thornton, 1984, p. 164). Se por um lado, na história da África o catolicismo

encontraria lutas e resistência frente a imposição de uma religião eurocêntrica, talvez por outro, a catequese pautada em narrativas bíblicas pode ter despertado gatilhos para encorajar novas lutas, a partir da interpretação destes textos desmembrada da mensagem dos missionários e fundamentada nas suaspróprias hermenêuticas, favorecendo a fundação de pequenos núcleos africanos onde circulava a tradição católica (Pacheco, 2019, p.16). Ainda que enfraquecido, o catolicismo teria sido preservado no Congo, sendo observado por viajanteso trabalho de catequistas, principalmente nas áreas mais rurais, até o final do século XVIII. Congo, Angola e Moçambique seriam importantes portas de entrada das incursões portuguesas e consequentemente do catolicismo até meados de 1750, época em que as explorações de europeus estariam dissociadas dos interesses católicos. Não obstante o território restrito dedicados a propagação da religião dos europeus, haja vista a dimensão do continente africano, as terras bantas foram reconhecidas pela Igreja de Roma como territórios católicos. E sendo estes os lugares de origem de muitos dos negros introduzidos como mão-de-obra escrava no Brasil, há suspeitas que parte destes africanos já tinham contato com o catolicismo antes do ingresso à colônia americana, também podendo considerar que, assim como defenderam alguns pesquisadores do tema, a adesão deste grupo ao catolicismo poderia atuar como forma de reconexão com suas ancestralidades a partir do resgate das práticas católicas africanas. Devoções negras na Terra do Pau-Brasil Os procedimentos de inserção do africano à condição de escravizado impeliam uma nova condição humana, utilizando-se da religião para apresentar o corpus sagrado a ser professado e, consequentemente, promover o apagamento da identidade de origem e o desligamento do estado religioso anterior. Como parte deste processo, o batizado seria fundamental, seguido pela adoção de um nome cristão e pela dissolução dos laços familiares africanos, haja vista que na nova conjuntura não haveria espaços para a perpetuação de vínculos anteriores. Contudo, ainda assim os africanos preservariam traços identitários, condição relevante para entender,por exemplo,as formas de adesão e assimilação do catolicismo entre os iorubás e bantos, principais grupos que circularam no Brasil. Nos vários portos brasileiros navios chegariam com negros oriundos de várias partes da África, grupos que se espalhariam por todo o território nacional 17


Congadas, Itamogi - MG. Foto: Graziela Medeiros.

objetivando os propósitos da coroa portuguesa. Na colonização do Brasil os serviços de evangelização também seriam uma premissa. Contudo tal preocupação estaria destinada aos povos nativos, neste caso indígenas, que mesmo utilizados como mão-de-obra escrava teriam a atenção dos religiosos. Não somente a constância da fé, mas a inserção em oficinas, por exemplo, fizeram parte do conjunto de estratégias dos jesuítas para a conversão dos nativos brasileiros, uma vez que no século XVI em qualquer lugar colonizado por portugueses, a pele preta implicaria ao ser humano a condição de servil. Aos negros escravizados, o contato com o catolicismo seria promovido a partir do ambiente em que estariam condicionados a trabalhar – rural ou urbano – estando o desenvolvimento de suas práticas religiosas ou o florescimento de tradições ancestrais de acordo com a maior ou menor presença e fiscalização dos sacerdotes. A investigação da população negra com o catolicismo em geral nos leva às Irmandades dos Homens Pretos , modelo de associação católica leiga organizado a maneira das confrarias portuguesas. Contudo, embora a fundação destes grupos se dassem em ambiente urbano, é provável que no Brasil a organização dos negros ao redor de uma devoção católica se tenha iniciado no meio rural, quando os primeiros africanos chegaram para trabalhar nos engenhos de cana-de-açúcar. Neste ambiente, os documentos produzidos pelos padres jesuítas revelam a pressão aos escravizados quanto ao exercício da reza do rosário, presença em missas e perseverança a um modo de vida católico-ocidental (Leite, 2004. p. 336). No entanto, à medida que outras temporalidades 18

econômicas se estabeleceram no Brasil e se fundaram vilas, os negros que viviam longe da costa passaram a conviver menos com os padres, tendo maior liberdade para o resgate de suas tradições religiosas e para a criação de outros “catolicismos”. No conjunto que comprova a aculturação católica pela comunidade negra, em sua maioria protagonizado por negros de origem banta, estaria a recriação de lendas, como o mito do resgate de Nossa Senhora do Rosário das águas, elaborado pelos negros mineiros (Lucas, 2014, p. 59), a decoração ou produção de santos católicos contendo símbolos sagrados da tradição africana, como os santos de nó de pinho do Vale do Paraíba ou a imagem de São Benedito com penacho encontrada no Baixo Amazonas (Mello e Souza, 2002, p. 134), e os rituais aculturados realizados em datas específicas – como o banho de folhas nos mastros das festas mineiras ou as danças africanas identificadas por viajantes. Para além destas inovações, das outras provas da assimilação do catolicismo por parte dos negros em contexto rural, cabe citar o serviço catequético destinado aos compatriotas escravizados ou libertos (Hoonaert, 1991, p.61), a presença de santos católicos nos quilombos conforme relatos como o do holandês Jan Blaer em 1645, ou mesmo a ereção de edifícios construídos para funções católicas, como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (século XVII) no quilombo de Ivaporunduva, cidade de Eldorado, em São Paulo. Já no contexto urbano, a contribuição dos povos africanos para o catolicismo ocorreu conjuntamente a atuação dentro das irmandades negras, estando a


constância destas práticas condicionada à vontade do clero local. Contudo, ao redor destas igrejas se estabeleceram importantes territórios negros, e o resgate de tradições ancestrais dos iorubás ou bantos se deu muito em razão das redes de sociabilidades firma das nestes enclaves urbanos. Certamente estes encontros possibilitaram recuperar os ritos fúnebres que marcaram o sepultamento dos confrades ou costumes ancestrais repetidos nas reuniões secretas das irmandades negras. Em ambos os casos, a ritualística católica estaria fundamentada nas particularidades de cada grupo, contudo verifica-se que os iorubás estavam mais propensos a manter ambas práticas religiosas de forma paralela, como por exemplo na devoção ao Senhor do Bonfim, Santa Bárbara ou Nossa Senhora da Boa Morte, cuja identificação com a mitologia dos orixás pode ter favorecido o transpasse da ritualística de ambas religiões, um costume ainda vigente no catolicismo praticado no Nordeste brasileiro.

Por mais de 300 anos o catolicismo no Brasil teve o leigo como protagonista, estando as devoções a mercê das escolhas de um povo, cuja identidade foi construída a partir de brancos, indígenas e negros, os dois últimos grupos majoritários no cenário colonial brasileiro. Sendo assim, seguramente a contribuição dos negros teria destaque na construção da religiosidade brasileira, podendo as práticas devocionais serem repetidas ao longo da história religiosa do país, ainda que encontrassem oposição, em costumes tão antigos que impossibilitam o conhecimento da estrutura fundadora original. Elaborado a partir de diversas fontes textuais e da experiência junto as irmandades negras, este trabalho revelou que o catolicismo pode ter sido voluntariamente assimilado por alguns dos africanos livres ou escravizados, produzindo uma nova prática que na contemporaneidade coloca um grupo de “negros católicos” como praticantes do “catolicismo negro”.

No caso do catolicismo com influência dos bantos, as contribuições puderam ter origem tanto na tradição religiosa local, no choque cultural entre o culto africano e a religião do colonizador, e no catolicismo aculturado praticado no Congo ou em Angola durante os dois primeiros séculos da presença portuguesa naqueles lugares. Em terras brasileiras foi aferida aos bantos a criação das guardas de congados e moçambiques, a ritualística por trás da eleição e desfile dos Reis do Congo, e a devoção aos santos negros venerados como seus ancestrais, legado relevante para o catolicismo popular brasileiro que encontra lugar ainda no século XXI, principalmente nas festas católicas do Sudeste do Brasil.

O preconceito racial, que marcou a colonização, instauraria preconceitos acerca deste catolicismo com raízes negras, provocando a repulsa dos que defendem o decolonialismo e a ojeriza daqueles que valorizam apenas o culto romanizado no século XXI. Somado ao objetivo primeiro de destruir paradigmas a partir do exercício de reconhecimento das diversas faces negras que compõem as tradições religiosas brasileiras, seja esta leitura umalerta para a urgência na defesa desse patrimônio material e imaterial, animando o poder público para a proteção destes bens, convocando e incentivandoos novos aprendizes para a continuidade destes ritos e, sobretudo, convidando o leitor para a experiência de vivenciar estas devoções na companhia dessa gente negra amável e cheia de fé!

Congadas, Itamogi - MG. Foto: Graziela Medeiros.

Negros Católicos ou Catolicismo Negro?

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Devoção e vida cotidiana à volta da rua grande e da igreja do Carmo no século XVIII Mais que um local de expressão da fé, uma testemunha da agitação, dos costumes e do desenvolvimento comercial e político da cidade do Rio de Janeiro na transição do período colonial ao imperial.

Mary del Priori1

Igreja de Nossa Senhora do Carmo Foto: Creative Commons Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Carmo Foto: Creative Commons: Creative Commons Interior da Igreja da Nossa Senhora do Carmo na aclamação da Princesa Isabel em 1887 - Foto: Marc Ferrez

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DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro. Guia da arquitetura colonial, neoclássica e romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000. DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994. SANTOS, José. Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé. História e Restauração. São Paulo: Editora Nacional, 2008. VAZ, Henrique Cláudio L. As raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

1 Doutora em História Social pela USP com pós-doutorado em Ciências Sociais pela Ècole des Hautes Ètudes de Paris. Mary del Priore é ganhadora do Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira.

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O local escolhido: A rua grande do pequeno

centro do Rio de Janeiro à época

Em janeiro de 1747, na presença do senhor bispo e dos membros da Câmara, foi lançada a pedra fundamental do templo dedicado a Nossa Senhora do Monte do Carmo. Nesta época, segundo um viajante de passagem, “o Rio de Janeiro não era grande”. Não por falta de espaço, pois, na parte traseira da cidade havia um agradável prado, rodeado por montanhas. O centro urbano, contudo, se concentrava exatamente na frente da futura igreja, ou seja, no largo do Paço, também conhecido como Terreiro da Polé, porque aí se erguia o pelourinho, temido por castigar ladrões e escravos. A rua mais frequentada, onde se encontrava o maior número de estabelecimentos comerciais, era, então, chamada pelos habitantes de rua grande. A hoje chamada 1º. de Março, por sua vez, era bastante larga e muito comprida, permitindo a passagem de até três carruagens ao mesmo tempo. O convento de São Benedito, cuja igreja era considerada a mais bonita, estava situado no fim dessa rua. No extremo oposto, se achava o convento dos jesuítas. “No meio da rua principal, do lado do mar, situa-se a casa do governador que – conta-nos o francês viajante - não é grande coisa. Há muitas outras ruas menores, mas que não deixam de ser bonitas, bem traçadas e repletas de casas bem”. O burburinho dos habitantes locais, dos escravos, do porto e do comércio A história da igreja, instalada no ponto mais importante da cidade, começou com música e festa. No dia em que tiveram início as obras, a praça do Largo do Paço estava enfeitada. Das janelas das casas pendiam os mais finos tecidos e melhores colchas da Índia. As ruas que dela saíam tinham sido atapetadas com capim cheiroso e folhas de laranjeiras. Um cortejo de tambores acordara a comunidade enquanto uma orquestra de trombetas, tambores e címbalos convidava o povo a se alegrar com a novidade. Repicavam, alegres, os sinos. Passavam os estandartes das irmandades religiosas. Alguns moradores caiaram e iluminaram as fachadas de suas casas com as chamadas “festivas luminárias”, panelinhas de barro contendo azeite de mamona e uma ponta de algodão que se acendia. Os mais pobres usavam cascas de laranja como recipientes. Mas o barulho das festividades que marcaram a inauguração da igreja servia, também, para encobrir a tensão que existia entre o bispo e as irmandades de N.S do Rosário e S. Benedito, ansiosas por estabelecer um templo para seus devotos, os mulatos e negros livres e escravos, que não podiam se misturar aos brancos livres. 22

A vista que se tinha da igreja, nesta época, dava para um pobre terreiro à beira-mar. Além dele, se viam as praias ainda desertas de Niterói e as várias ilhotas dispersas no fundo da baía. O embelezamento do Paço começou, em 1735, quando o governador Gomes Freire de Andrade resolveu construir aí a sede do governo: um prédio de dois andares feito em pedra lavrada. O terceiro piso, com 12 janelas, só viria a ser levantado, mais tarde, por D. João VI, em 1814. Em 1770, outra novidade: o vice-rei Luís de Vasconcellos mandou erigir um cais de atracação, com três escadas para o mar e uma rampa para embarcações. Ele foi inaugurado em março de 1789. Bem no meio do cais, dando para as águas da baía, pronto a abastecer com água potável tanto os navios que chegavam quanto a população, o chafariz “da pirâmide”, obra de mestre Valentim. Graças a todas estas modificações, o largo do Paço, com sua bela igreja, se tornou um dos lugares mais animados da pequena cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Diante das grandes portas de madeira lavrada do Carmo, cruzava a praça, em lombo de burro ou de escravo, tudo o que servisse como provisão nas embarcações: charque, açúcar, cachaça, tabaco e lenha. A cidade era um porto de escala para navios estrangeiros, e se tornou um ponto ainda mais vivo com o aumento do comércio internacional, a partir de 1808. Disputavam cada pedaço de chão de terra batida desde canoeiros a plantadores da roça que vinham expor seus produtos, passando por marinheiros e traficantes de escravos, carregadores brancos e de pés descalços, assim como escravos africanos, curvados sob o peso de fardos. Dezenas de escravos de ganho, com seus tabuleiros na cabeça, ofereciam alimentos preparados em casa, bebidas refrescantes ou frutas da estação. Na rua grande, se apertavam, lado a lado, lojas e empórios com seus produtos expostos à porta. Do fundo dos corredores vinha o barulho dos pregões e do vozerio de vendedores e compradores; uns expondo as mercadorias, outros, regateando o preço. Sacos de secos e molhados se acumulavam junto às gaiolas com galinhas, macacos, lagartos e porcos do mato. Um pouco mais abaixo, viam-se os tabuleiros do mercado de peixe, de onde partiam os gritos dos comerciantes oferecendo seus produtos a preço baixo. Um odor nauseabundo inundava as narinas de quem passasse. O mercado de escravos não ficava longe e era comum que vendedores expusessem sua mercadoria, para melhor análise do comprador, nas imediações do Arco do Telles. Das varandas fechadas com treliças, no segundo andar dos sobrados que cercavam a praça, mulheres observavam sem ser vistas.


A devoção, os costumes e as relações entre homens, mulheres e escravos Em quase todas as esquinas da rua grande era possível encontrar um pequeno nicho com uma imagem da Virgem ou de outros santos, imagem que permanecia iluminada por uma lanterna durante a noite. Todo final de tarde, o povo se reunia em torno dessas imagens para cantar o rosário. Até as prostitutas que ofereciam seus favores aos passantes, próximos ao Arco do Telles, não admitiam começar a trabalhar antes de findas as Ave-Marias. Um marido jamais caminhava ao lado de sua esposa na rua grande ou em qualquer outra. Ele seguia alguns passos à frente, sempre com sua espada à mostra sob o manto. A esposa se fazia acompanhar algumas vezes dos parentes ou dos amigos e, impreterivelmente, de muitas negras e mestiças que a seguiam em fila indiana; essas escravas usavam vestidos e traziam os cabelos cobertos por um lenço ou por uma peça de musselina. Mesmo quando carregadas em cadeiras ou redes, as mulheres não dispensavam tal cortejo, como registraram vários viajantes estrangeiros. Os escravos que circulavam nas imediações do Paço - contam, também, os viajantes - mostravam o abandono em que viviam. Os homens andavam quase nus, vestidos com um calção ou, quando às voltas com suas lidas diárias, com um simples pano. Alguns tinham, contudo, uma camisa e um casaco. Os negros libertos, entretanto, portavam as mesmas vestes e o mesmo manto dos brancos. As mulheres vestiam saia e um tipo de camisa, parecida com as nossas camisas de homem, cuja frente era aberta e ligada por um colete. Elas não ousavam aparecer na rua durante o dia. Só era possível vê-las aos domingos e em dias de festa, na missa. Algumas poucas tinham liberdade de sair no final da tarde para cantar o rosário. Quando saíam de casa, portavam sempre uma grande capa de lã medindo aproximadamente duas varas de altura por uma de largura, independentemente do calor que fazia. A capa era ajustada de tal modo que a diagonal ficava no meio das costas.Uma das pontas era utilizada como um capuz semelhante àquele dos carmelitas e agostinianos; a ponta oposta servia para esconder o rosto; as duas outras cobriam os ombros e os braços, cruzando-se sobre a cintura. As negras usavam, na rua ou no campo, um chapéu para se protegerem do sol. Evitava-se mostrar o rosto , sobretudo, que elas levantassem os olhos para eles. Uma mulher que encarasse um homem era considerada uma despudorada!

A construção da igreja animaria uma outra atividade social importante: a missa diária e em dias de festa. As mulheres chegavam por volta das sete horas da manhã, acompanhadas de familiares e escravos. Sentadas no chão, esperavam o momento de se confessar conversando entre si e chupando laranjas. Os ofícios eram longos e acompanhados de música. Por vezes, se ouviam até acordes de músicas profanas. O famoso músico Padre José Maurício, mulato e pai de cinco filhos, executou na igreja do Carmo peças que rivalizavam com a produção musical europeia da mesma época. Eram momentos em que as igrejas ficavam magnificamente iluminadas. Abundam relatos de viajantes estrangeiros contando com que ansiedade este momento era aguardado, por ser uma das raras oportunidades para as mulheres se vingarem do excessivo ciúme dos seus maridos, escapando ao estado opressivo em que viviam. As igrejas eram, de fato, lugares onde jovens enamorados trocavam sinais e aproveitavam o escuro de alguns altares para se beliscar, outrora um gesto de afeto. Ou para se enviar recados. E, no escurinho dos ofícios, como dizia um padre, “por vezes, Deus dava licença ao Diabo”. Conclusão Para os habitantes do Rio de Janeiro do século XVIII, a rua grande e a igreja do Carmo significaram um espaço privilegiado em que o território urbano se revestia de sociabilidades plurais. A rua grande invadia o espaço sagrado da igreja, graças às vozes dos escravos oferecendo seus tabuleiros, dos comerciantes anunciando seus produtos, dos dialetos estrangeiros dos vários navegantes que por sua porta passavam, do choro dos africanos ao desembarcar na terra estrangeira. Ela era palco de trabalho, de relações afetivas, de discussões, de espetáculos e mesmo de morte. Já a igreja do Carmo traduzia a devoção e a identidade religiosa de toda uma população. Dela saíam as mais importantes procissões: a do enterro, na noite da Sexta-Feira da Paixão, com tochas, archotes, e cantos fúnebres, e a de Corpus-Christi, com a tropa militar formada e a presença de São Jorge, guerreiro armado e a cavalo. Mas o espaço sagrado foi também cenário de acontecimentos políticos importantes. Elevada a Capela Real em 1817, o Carmo foi o palco do casamento de D. Pedro I com Leopoldina de Habsburgo. E também foi onde, já elevada a catedral, o imperador jurou, em 25 de março de 1824, a primeira Constituição brasileira. 23


Cláudio Pastro:

Altar e baldaquino do Santuário Nacional de Aparecida. Foto Thiago Leon.

A inculturação e a arte indígena no Santuário Nacional de Aparecida

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Profa. Dra. Wilma Steagall De Tommaso1

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL

Quem vai pela primeira vez ao Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecidase impressiona primeiro pelo tamanho monumental do edifício e, ao entrar, se depara com uma arte bela e tão diferente da maioria das igrejas. Cláudio Pastro, artista que revestiu a Basílica interiormente usou a fauna e flora brasileiras e também elementos da arte afro-indígena. Nesse artigo pretendo contar por que elementos da cultura indígena em seu aspecto simbólico permeiam o piso e alguns aspectos das paredes interiores do Santuário Nacional de Aparecida e por que motivos o artista fez essa opção. A Basílica de Aparecida é o maior Santuário Mariano do mundo e, além do povo brasileiro, acolhe muitos estrangeiros que se encantam com a beleza que lá encontram.

MACIEL, José Mauro. Mãe Aparecida no Brasil: história, devoção e missão. Aparecida: Editora Santuário, 2018 MORAES, Francisco Figueiredo. O espaço do culto à imagem da Igreja. São Paulo: Edições Loyola, 2009. PASTRO, Cláudio. Guia do espaço sagrado. (1a Ed. 1993). São Paulo: Edições Loyola, 2007. TOMMASO, Wilma Steagall De. O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus Editora, 2017.

1 Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui experiência nas áreas de Educação e Filosofia, com ênfase em Arte-Sacra

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Coluna do baldaquino com a representação do anjo-índio. Arquivo da autora.

Piso desenhado em zigue-zague - forma indígena de representação da água. Arquivo da autora.

O Concílio Vaticano II e a inculturação

na obra de Cláudio Pastro

Cláudio Pastro (1948-2016) artista sacro brasileiro nascido em São Paulo, Capital, desenvolveu e realizou o projeto iconográfico interiordo Santuário Nacional de Aparecida desde o ano 2000. Seu projeto a princípio causou estranhamento a muitos que estavam habituados culturalmente à tradição da arte barroca. Cláudio se autodenominava um artista pós Concílio Vaticano II, pois se inspirou nos documentos conciliares os quais sugerem que a arte sacra que reveste as igrejas deve conter elementos que expressem a cultura de cada povo em sua nação. Não foi, portanto, uma extravagância de Pastro, mas a compreensão deuma demanda conciliar que o inspirou a utilizar-se de elementos das culturas afro-indígenas assim como a fauna e a flora brasileiras. Desde o início de sua carreira, o artista dizia que sempre gostou da arte primitiva e desejava mostrar como a arte indígena genuinamente brasileira é primitiva 26

e bela. Ele não compreendia por que em nossa arte sacra não entrava o elemento negro nem índio, dizia que a arte barroca sempre foi uma arte branca, salvo a latino-americana espanhola que ainda adotou um pouco mais da cultura indígena. Mas na arte de origem portuguesa, o índio e o negro não entravam. O Concílio Ecumênico Vaticano II (1961-1965), no capítulo VII da Constituição da Liturgia, Sacrosanctum Concilium, estabelece o princípio do reconhecimento da liberdade estilística dos artistas e correlativamente o direito de adotar uma arte sacra que fale a linguagem de sua época e de sua região. Pode-se dizer que a Igreja Católica renuncia a toda ideia de programação ou de regulamento romano da arte e admite que a arte cristã, na Europa como nos ex-países das missões, deve se adaptar, evoluir, ou mesmo se reinventar continuamente, pois uma programação normativa e centralizada da arte é impensável e até indesejada. O Concílio se ocupou, sobretudo, de resolver o problema da arte de inspiração cristã fora da Europa ou


pelo menos de indicar em que direção ela deveria buscar essa solução. Um bom caminho seria seguir pela ideia de uma inculturação do Evangelho nas linguagens da arte. A obra iconográfica de Cláudio Pastro permeada por traços que remetem à cultura afro-indígena, à fauna e à flora brasileiras, servindo-se da liberdade criadora, sem porém, deixar as fontes, como aquelas da Igreja primitiva, as que a tradição considera como as mais antigas e legítimas da origem cristã,a iconografia Bizantina e a arquitetura Românica, bem como a arte paleocristã, todas ricas em simbolismo. Por meio de pinturas chapadas, com pinceladas curtas e marcadas, intenta uma concepção de arte que se torne signo de um sagrado que se manifesta na vida do fiel, acrescentando traços regionais. Nas declarações conciliares referentes à arte, os depoimentos feitos por Pastro e sua autodenominação como artista “pós-conciliar” de arte sacra ficam transparentes. Podem-se distinguir alguns aspectos referentes à arte no Concílio presentes na obra do artista tais como a volta às fontes, a nobreza da arte, o lugar que ocupa na fé cristã, a arte como ministério, o serviço à liturgia, a relação entre a liberdade da arte e a inculturação. O Brasil é país de dimensão continental e com uma população composta ao início por brancos, indígenase afrodescendentes e ao lado destas etnias foram surgindo os caboclos e mestiços. Pastro, seguindo as indicações do Concílio Vaticano II, coloca elementos simbólicos das culturas afro-indígenas nas paredes do Santuário criando uma arte de beleza ímpar que encanta os milhares de romeiros de todo o Brasil que visitam a Mãe Aparecida. Os católicos brasileiros veem em Nossa Senhora Aparecida, nossa Mãe – Rainha – Padroeira, forte elo e pertença à Igreja. A pequena imagem encontrada nas águas do Rio Paraíba do Sul pelos pescadores em 12 de outubro de 1717 parecia aos olhos dos que a viam, um retrato personalizado da miscigenação brasileira. Possui traços europeus e está vestida à moda dos brancos, com cabelos indígenas e de cor negra. A Água e o Altar da Basílica de Aparecida A água, um dos elementos vitais do homem, permeia

o Antigo e o Novo Testamentos como exemplo de vida e morte, nascimento e purificação. Contém toda simbologia em si, ocorre no Batismo e na Eucaristia. Segundo Pastro, esse sinal deve ser bem explícito no recinto litúrgico e nas celebrações. Em uma igreja, o altar é fundamentalmente o elemento mais importante e em quase todas as religiões tradicionais ocupa uma posição central para onde espontaneamente converge toda a atenção da assembleia. Deve ser fixo, o que reforça sua centralidade e por motivos bíblicos usa-se a pedra como marco da manifestação de Deus. Na Eucaristia os cristãos celebram também a Última Ceia, por isso o altar também é a mesa, celebra-se a ceia do Ressuscitado. Aí a Palavra torna-se carne para vida de cada cristão; no século IV já dizia São Cirilo de Jerusalém: “o altar é Cristo”. O presbitério da Basílica é representado por círculos de água, tipo indígena, sai da pedra central e corre em todas as direções: Norte, Sul, Leste e Oeste. Esse centro foi feito no dia nove de agosto de 2001. A ideia do altar é baseada na leitura de Ezequiel (47, 3-6), onde do altar jorrava água para os quatro cantos da Terra e fertiliza a terra. É o Espírito que fertiliza a terra. O piso central do presbitério com a representação indígena da água e o piso entre as arcadas e de todos os barrados em um movimento de águas indicam a ação contínua do Espírito Santo que dá vida a este espaço, que é um lugar por excelência batismal. Entrar no Santuário é mergulhar no Cristo que é a fonte da Vida Nova. Há também no piso a referência às águas do Rio Paraíba do Sul, onde a imagem foi encontrada. Entre as arcadas externas, no piso do adro principal, temos o brasão da Basílica. A forma indígena de cestaria simboliza a terra brasileira que recebeu o Mistério cristão. Cláudio Pastro em depoimento a Zenilda Cunha esclarece: “em Aparecida, o espaço nuclear do Santuário foi concebido na forma circular, perfeita, indicando-nos o Mistério Divino aí celebrado e, nesse ponto central, tem-se o Altar de granito maciço de forma quadrada, a forma humana, limitada. É o Verbo de Deus que se fez Homem e habitou entre nós; o Cristo, Novo Adão que nos devolveu o Paraíso. Sendo o Cristo o Altar, d’Ele parte seu Espírito, movimentando a forma das águas no piso, o qual está em zigue-zague, forma indígena de 27


No baldaquino: o índio e a rã (muiraquitã)

Muiraquitã. Acervo do Santuário Nacional de Aparecida.

Baldaquino ou cibório são quatro colunas ou a suspensão do teto que pode ser quadrado ouredondo que fica sobre o altar. O monumental baldaquino da Basílica de Aparecida foi inaugurado em 12 de outubro de 2017 na comemoração dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora da Conceição pelos três pescadores. Nas quatro colunas que sustentam a cúpula central sobre o presbitério estão representadas a fauna e a flora das regiões do Brasil: Mata Atlântica; Caatinga; Cerrado; Floresta Amazônica e Mata de Araucárias. A presença de quatro anjos indica que o Altar e a Eucaristia é o centro na fé nos quatro pontos da Terra. Os anjos representam as raças brasileiras: negro, branco, mulato e o indígena.

representação da água; que como um entrelace de cestaria faz-nos unir com Deus e envoltos pela sua Graça que nos cobre.Porém, pode-se dizer que o Altar é uma pedra jogada no lago, criando ondas que se espalham em toda a Basílica; quanto mais próximos do círculo do Altar, estamos mais próximos de Cristo, que é Vida, que torna-nos santos.”O zigue-zague mostra a água em movimento, a presença do Espírito Santo. Ao fazer uma água no chão, no piso da Basílica de Aparecida com influência indígena, mostrou de uma maneira muito sutil e elegante a inculturação, pois inculturação significa a íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas. Segundo as palavras do artista, a representação indígena, assim como a encontrada nos capitéis dos tijolos de revestimento interno, é uma homenagem, o respeito aos irmãos indígenas que viviam nestas terras e acolheram o Mistério Pascal, o Cristianismo. 28

“A rã é símbolo da Ressurreição, em todos os povos primitivos, porque a rã (tanto nos nossos índios, como nos astecas, como nos povos africanos), quando começa vir a seca, ela vai se colocando no barro, na lama, o que vai sobrando de úmido e ela aguenta até mais ou menos uns dois anos, ela fica como uma folha de papel. Na primeira chuvinha, ela renasce. Todas as culturas primitivas têm a rã.” Nas paredes do Baldaquino estão representados muiraquitãs (rãs) no estilo marajoara com tons de verde e azul. Em todos os povos primitivos da América Latina são símbolos da Ressurreição. Correspondem à Terra Indígena que acolheu o Cristianismo. Conclusão Cláudio Pastro afirmava que, a arte indígena, arte budista, arte africana são sacras, pois não são concebidas para o comércio, mas para celebração do rito. É isso que diferencia a arte sacra da arte religiosa. O artista admirava a arte dos nossos indígenas e sentia muita satisfação ao revestir as paredes das igrejas com elementos dessa rica cultura. O presbitério e o baldaquino do maior Santuário do Brasil mostram a Palavra de Deus em formas e cores, as raças do povo brasileiro e as belezas da fauna e da flora: tudo converge em comunhão com a majestosa cúpula central de 1800 m2 em mosaico, a Árvore da Vida que é Cristo, nossa Salvador.


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Forro pintado da Igreja de São Franciso, João Pessoa - Paraíba | Foto Creative Commons.

A pintura da nave principal da Igreja de São Francisco em João Pessoa na Paraíba

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Sheila Perricone1

BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. 1º volume. Trad. Glória Lúcia Nunes. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1983 OLIVEIRA, Carla Mary S. O BARROCO NA PARAÍBA, Arte, Religião e Conquista. João Pessoa: Ed. Universitária – UFPb, 2003

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL

A monumental pintura do forro da nave principal da igreja de São Francisco em João Pessoa na Paraíba tem influência do Rococó e destaca-se pelo efeito trompe l’oeil, pela profusão de cenas e figuras que preenchem todo o espaço e pelos simbolismos e alegorias característicos do Barroco, mas que hoje escapam ao observador. Estes simbolismos e alegorias serão detalhados no texto, em especial as do medalhão central.

TIRAPELI, Percival Arte Brasileira- Arte Colonial – Barroco e Rococó do séc. XVI a XVIII, São Paulo: IBEP, 2011 TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao início do século XIX: maneirismo, barroco e rococó. In: ZANINI, Walter (coord. e direção editorial). HISTÓRIA GERAL DA ARTE NO BRASIL, vol. 1, Cap. 3. São Paulo: IMS, Fundação Djalma Guimarães, 1983. VALLADARES, Clarival do Prado. Aspectos da Arte Religiosa no Brasil – Bahia, Pernambuco, Paraíba. Rio de Janeiro: Ed. Spala para Construtora Norberto Odebrecht S.A., 1981. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Trad. Glória Lúcia Nunes. Rio de Janeiro. Ed. Record. 1983, vol. 1. p.149 in fine. OLIVEIRA, Carla Mary S. “A Glorificação dos Santos Franciscanos” do Convento de Santo Antônio da Paraíba: Algumas questões sobre pintura, alegoria barroca e produção artística no período colonial. Revista de História e Estudos Culturais Outubro/Novembro/ Dezembro de 2006. Vol 3. Ano IIII. OLIVEIRA, Carla Mary S. Alegoria Barroca: Poder e Persuasão, através das imagens na Igreja de São Francisco ( João Pessoa - PB). Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Ibero-Americano – Novembro de 2006 OLIVEIRA, Carla Mary S. Circulação de artífices no Nordeste colonial: indícios da autoria do forro da igreja do convento de Santo Antônio da Paraíba - Pág. 10

1 Advogada, mestre em Direito Bancário Internacional pela Universidade de Boston, participa de cursos de História da Arte desde 2015, dedica-se à pesquisa independente de História da Arte.

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Detalhe - Forro pintado da Igreja de São Franciso, João Pessoa - Paraíba | Foto da autora.

A igreja de São Francisco de João Pessoa faz parte

de um complexo arquitetônico, hoje Centro Cultural de São Francisco, que abrange também o convento de Santo Antonio (e o claustro), a capela da Ordem Terceira de São Francisco (Capela Dourada), a capela de São Benedito e a casa de oração da Ordem Terceira de São Francisco. O complexo foi tombado pelo IPHAN em 1952. A fachada da igreja é considerada um dos exemplos arquitetônicos mais esplendorosos da América Latina com uma das mais belas decorações em estilo rococó, segundo Germain Bazin . Adentrando na nave da igreja, a primeira coisa que salta aos olhos é o teto pintado em madeira policromada que reproduz um templo imaginário, com colunas, arcos, balaustradas, abóbadas e figuras de bispos, cardeais e papas, anjos músicos tocando trombetas, querubins, a Santíssima Trindade, a Virgem Maria, a figura de São Francisco no centro circundado por quatro outros santos mártires franciscanos. Estima-se que a pintura tenha sido feita entre 1765 e 1770.

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São 312 metros quadrados de pintura em todo o forro da nave principal que retrata a vida e glorificação de São Francisco. Hoje a pintura é intitulada “Glorificação dos santos franciscanos” ou “Glorificação de São Francisco”. O painel é monumental, com características próprias, de uma beleza que impressiona. E as representações dos temas são de extrema sensibilidade emotiva. Uma característica da pintura que somente se descobre com mais propriedade no piso superior, na parte onde fica o coro , é que se trata de uma pintura trompe-l’oeil , pois em qualquer lugar da nave ou do setor do coro em que o observador se posicionar, a figura eclesiástica o estará fitando, as colunas e balcões pintados estão sempre no mesmo ângulo em que o observador estiver posicionado dando a sensação de que a pintura se move, de que a arquitetura do templo retratado faz parte da arquitetura da igreja e se eleva até o céu, o qual parece ter sido aberto revelando as cenas celestiais. Não obstante, a pintura é plana. Todo o forro da nave central tem esses efeitos de


ilusão de ótica, talvez com o objetivo de criar a ilusão de que o Paraíso está ao alcance dos homens, como se o céu estivesse se abrindo sobre os fiéis (uma das características da pintura trompe l’oeil). A pintura do forro tem visível influência rococó o que se comprova pelos ornamentos decorativos em estilo de concha (rocaille) das cartelas e dos medalhões (rocalhas), como também pela utilização de cores suaves (rosa esmaecido-salmão, verde claro, azul claro acinzentado, marrom terroso) e pelo uso da cor rósea da pele das figuras eclesiásticas e do púrpura de suas vestes. A autoria da pintura é incerta. Os historiadores têm divergido desde meados do século XX: uns atribuem a José Joaquim da Rocha, fundador da escola baiana de pintura; outros indicam nomes como José Soares de Araújo e José Teófilo de Jesus. A historiadora Carla Mary S. Oliveira refuta fundamentadamente esses nomes e defende que foi Manuel de Jesus Pinto, um escravo alforriado, pintor e dourador. Todavia, fato é que não existe documentação que comprove a contratação dos pintores, não havendo assim como atestar a autoria da pintura. Em que pese tal fato, assim como ocorria na iconografia religiosa da Idade Média, na verdade, não era importante o nome do pintor, mas sim o que as imagens representavam e transmitiam aos fiéis e frades que frequentavam a igreja e o convento. O simbolismo da pintura e estatuária barroca estava centrado em fazer com que os fiéis se inspirassem no comportamento que as imagens transmitiam, ou seja, o objetivo das imagens era servir de exemplo, de instruir os fiéis, aumentando-lhes a fé, estimulando a prática devocional. A pintura no forro da nave principal tinha esse objetivo e com certeza também o de ensinar os dogmas e rituais católicos; além disso, o tema retratado no medalhão central criava para os fiéis a ilusão de visualizar o Paraíso. Nesse sentido, saber o nome do pintor não iria fazer diferença para atingir tais objetivos. Os principais momentos da vida de São Francisco foram pintados em quatro medalhões (rocalhas) localizados nas duas pontas e nas laterais da cena

principal que está retratada num medalhão central em forma elíptica. A cena do nascimento (junto ao arco do cruzeiro do altar-mor) indica um local rústico como uma manjedoura, com um potro branco olhando o nascimento do Santo que está deitado sobre o feno e tem uma auréola ao redor de sua cabeça. É uma representação alegórica que remete ao nascimento de Cristo, sendo, todavia, altamente improvável que seja o local de nascimento do Santo porque São Francisco era filho de um rico mercador de tecidos na cidade de Assis. A cena é emoldurada por uma rocalha de tonalidade amadeirada que dá a impressão de ter sido esculpida, mas como já dissemos, trata-se de uma pintura plana. Veem-se ainda dois bispos com a mitra e o cajado posicionados ao lado da moldura. Sobre o arco do templo imaginário, uma cartela cinza azulada com uma estrela de sete pontas – talvez uma alegoria da predestinação de São Francisco à vida de fé ou do simbolismo do número sete e seus múltiplos ligado ao infinito usado nas parábolas de Jesus . Os anjos mensageiros apoiados sobre escudos (cartelas), um com monograma IHS e outro com o monograma M de Maria, tocam as trombetas de onde saem fitas brancas com versos latinos: Jesu dulcis memoria”(doce lembrança de Jesus) e “et macula non est in te” (e em ti não há mácula.). Os outros três medalhões (rocalhas) retratam a renúncia às riquezas e às futilidades da vida, o recebimento dos estigmas de Cristo e a abertura do túmulo com o corpo intacto de São Francisco, o que provava a sua santidade. Em cada um desses medalhões existem alegorias. Próximo à rocalha da estigmatização também há dois anjos tocando trombetas que assopram fitas brancas nas quais se lê em latim “Terra inqua haec Religio Stat, terra sancta est” (“é santa a Terra em que esta religião está”) e “Stigmata Dii Jesu in corpore meo porto” (“trago em meu corpo os estigmas de Jesus”). É possível que o primeiro verso do dístico tenha relação com o estabelecimento da ordem franciscana na Paraíba, o que tornaria aquela terra santa.

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Detalhe - Forro pintado da Igreja de São Franciso, João Pessoa - Paraíba | Foto da autora.

Esses santos correspondem a símbolos de evangelização nos quatro continentes. O Santo Franciscano da Ásia segura uma coluna em lugar de um crucifixo como fazem os demais. Isso pode denotar a origem oriental do cristianismo sendo a Ásia então o “pilar histórico” da fé cristã, segundo Carla Mary S. Oliveira. O que diferencia esta pintura das demais pinturas franciscanas em outras igrejas é que Santo Antônio e o mártir asiático (com as alegorias da Europa e da Ásia) fitam diretamente a Virgem e a Santíssima Trindade, não prestando atenção às mulheres a seus pés, enquanto que os outros dois mártires franciscanos (com as alegorias da América e da África) tem o olhar direcionado para as mulheres, com a mão direita levantada, como num gesto de controle. Esta simbologia significa que na Europa e na Ásia não era necessária tanta vigilância da fé cristã, ao contrário da América e da África.

O Medalhão Central No medalhão central vê-se a Santíssima Trindade e abaixo dela uma alegoria da Virgem Maria empunhando o emblema da ordem Franciscana com uma das mãos e com a outra um ramo de lírios brancos (significando pureza), rodeada por querubins. O conjunto derrama bênçãos sobre São Francisco que está a seus pés. A figura de São Francisco de Assis irradia feixes de luz de seu coração para quatro santos mártires franciscanos que têm a seus pés mulheres ajoelhadas cujos trajes representam a Europa, a África, a América e a Ásia, todos sobre nuvens suspensas. Essas mulheres são personagens alegóricas dos continentes da ação missionária. À direita de São Francisco está Santo Antonio de Pádua e a seus pés uma mulher representando a alegoria da Europa; à esquerda, um santo mártir do Marrocos com a alegoria da África; no canto inferior esquerdo da pintura, São Francisco Solano; apóstolo da América do Sul com alegoria de uma indígena; e no canto inferior direito da pintura, um santo mártir do Japão com alegoria da Ásia no Oriente. 34

Uma curiosidade é que as figuras pintadas dos quatro bispos diocesanos, dos quatro cardeais e dos quatro papas estão sentadas sobre a balaustrada do templo pintado, com as pernas penduradas para fora, de forma quase displicente, jocosa e até desrespeitosa. Carla Mary S. Oliveira questiona se isto não seria uma forma de crítica velada da ordem franciscana à hierarquia eclesiástica de Roma, através da ridicularização, mostrando talvez a própria superioridade da ordem. Sabe-se que nas suas origens os franciscanos tinham divergências com a Santa Sé relacionadas ao próprio reconhecimento da ordem e aos conflitos de poder entre as ordens. O total de doze figuras, remetendo aos apóstolos de Cristo e a sua missão após a sua morte, também poderia denotar uma crítica à ação missionária da Igreja de Roma. Essa representação foi possível porque capitania da Paraíba estava distante do polo econômico que era a capitania de Pernambuco, à qual estava anexada, o que dificultava um controle mais impositivo pela Igreja de Roma. Todas estas alegorias e simbolismos dão um novo ângulo de visão à essa belíssima obra de arte que é a pintura do forro da nave principal da Igreja de São Francisco de João Pessoa. Parece evidente, pois, que admirar uma obra de arte vai muito além do simples olhar, alcançando um conceptualismo que se retira do próprio contexto histórico da obra.


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Imagem de Nossa Senhora da Penha - Foto: Creative Commons

Nossa Senhora da Penha:

A Padroeira e a Cidade

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Leonardo Caetano de Almeida1

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL

Não é a primeira vez em que São Paulo é assolada por uma epidemia. O fato ocorreu repetidas vezes, por causas distintas, ao longo de sua história quase cinco vezes centenária. Em algumas dessas situações calamitosas, nos séculos XVIII e XIX, o refúgio, a esperança e o remédio encontrados pela população da cidade convergiam para a fé. Munícipes e devotos vindos de outros lugares apegaram-se a Nossa Senhora da Penha, já afamada pelos prodígios que operava desde o século XVII por meio de sua imagem milagrosa, preservada na antiga igreja edificada na colina da Penha de França, distante cerca de 9km do núcleo central de São Paulo. Tais foram os efeitos e a eficácia dessa devoção à Virgem da Penha, que a mesma Senhora foi aclamada popularmente e, mais tarde, com reconhecimento pontifício, Padroeira da cidade de São Paulo – tradição que atravessou séculos e cercanias, chegando aos nossos tempos, muito embora alguns a desconheçam...

ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. Memória e Tempo das Igrejas de São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010. BOMTEMPI, Sylvio. Penha Histórica. São Paulo: Universidade Cruzeiro do Sul, 2001. HENRIQUE, Pedro. Da Capela à Metrópole. São Paulo: São Paulo Imagem Data, 1997. LINGUITTE, Hedemir. Santuário de Nossa Senhora da Penha: sua história, seus sacerdotes e sua gente. São Paulo: s/editora, 1969. MARTINS, Antonio Egydio. São Paulo antigo: 1554 – 1910. São Paulo: Paz e Terra, 2003. SOUZA, Ney de (Org). Catolicismo em São Paulo: 450 anos da presença da Igreja Católica. São Paulo: Paulinas, 2004.

1 Graduado em Letras pela PUC-SP e em Filosofia pela PUC Campinas. É professor da rede particular nos Ensinos Fundamental e Médio, estudioso de Arte Sacra e associado/articulista da Academia Marial de Aparecida.

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U ma missa celebrada na Festa Litúrgica da Conversão do “Apóstolo dos Gentios”, a 25 de janeiro,

em 1554, marcou o início de um aldeamento jesuítico liderado pelo Padre Manoel da Nóbrega, Irmão José de Anchieta, dentre outros. Em torno da Capela do Senhor Bom Jesus e do Colégio, fundados pelos jesuítas no Planalto de Piratininga, desenvolveu-se a Vila de São Paulo, que se converteria, séculos mais tarde, na Metrópole que hoje conhecemos, polo financeiro, de tecnologia e cultura, mas repleta de desafios socioeconômicos, ambientais e de planejamento urbano. A partir do seu Centro Histórico, precisamente do triângulo formado pelas igrejas das Ordens dos Beneditinos, Franciscanos e Carmelitas, a cidade foi se expandindo para além do Tamanduateí e Anhangabaú. No alto de uma colina a leste da Vila, numa região que servia como ponto de paragem de tropeiros e caminho para quem ia às Minas Gerais ou ao Rio de Janeiro, próximo ao Ribeirão Aricanduva, localizada antes da Aldeia de São Miguel do Ururaí (hoje, bairro de São Miguel Paulista), no ano de 1667, um milagre aconteceu e correu toda a São Paulo de outrora. De acordo com uma narrativa apregoada pela piedade popular há séculos e parte do folclore paulistano, um viajante francês, portando uma imagem de Nossa Senhora, pernoitou no alto daquele penhasco. No dia posterior, seguindo sua viagem, notou que a referida imagem não mais se encontrava entre os seus pertences. Voltando à sua procura, encontrou-a no cume da colina onde passara a noite. Guardou-a e retomou viagem. O fato misterioso, entretanto, repetiu-se. Atento à vontade do Alto, entendeu que a Mãe do Senhor havia escolhido o altaneiro penhasco para sua morada e local onde derramaria graças aos que a Ela acorressem. Ergueu o homem piedoso, então, uma capela para abrigar a milagrosa imagem de Nossa Senhora da Penha de França, em torno da qual se desenvolveu o bairro homônimo e a Paróquia. Historicamente, registra-se que o Padre Jacinto Nunes Siqueira construiu, em 1668, época de sesmarias, em sua propriedade, no alto da dita colina, uma capela para abrigar uma imagem miraculosa da Virgem da Penha. Sabe-se que o princípio do culto à Virgem da Penha remonta ao século XV, a partir do encontro milagroso de uma imagem de Nossa Senhora, em 1434, no cimo de uma serra denominada “Penha de França”, na Província de Salamanca, norte da Espanha, onde se ergueu o primeiro Santuário de Nossa Senhora da Penha do mundo. De lá, a devoção se irradiou para toda a Europa. A invocação “Nossa Senhora da Penha”, por intermédio dos colonizadores portugueses, chegou ao Brasil, onde foram erguidos importantes santuários em honra da Virgem, primeiramente no Espírito Santo (em 1560), depois no Rio de Janeiro (em 1635) e, finalmente, na capital em 1667, como acima relatamos. 38

Em pouquíssimo tempo, a devoção a Nossa Senhora da Penha em São Paulo ganhou vigor, a ponto de o outeiro onde se encontrava a sua igreja ser denominado como “Colina Santa”, “Cidadela religiosa dos paulistanos” ou “Bairro dos Milagres”. No entorno da igreja, instalaram-se também famílias que, atraídas pelo excelente clima da região, realizavam tratamento de doenças respiratórias. A Imagem e o Milagre da Porta O então bispo do Rio de Janeiro, Dom José de Barros Alarcão, em visita pastoral a São Paulo no ano de 1685, ciente da popularidade de Nossa Senhora da Penha, decidiu transferir a bendita imagem da Virgem de sua capela no distante bairro da Penha de França para uma Casa que ele já idealizava, no centro da cidade, como “Recolhimento de Nossa Senhora da Penha”. A decisão do Bispo recaiu como um apocalipse sobre os humildes moradores da Penha. Chegando o trágico dia previsto para a lastimosa transladação da imagem para o Recolhimento, os habitantes do povoado da Penha acorreram à capela logo cedo e a encontraram com as portas trancadas. Caíram em prantos, acreditando que a imagem já teria sido levada às escondidas para a cidade. Mas eis que as portas da capela, milagrosamente, abriram-se sozinhas. E lá estava a imagem milagrosa no altar mor, intacta. Mesmo não dando crédito ao fato miraculoso, o bispo acabou desistindo de seus planos e deu o nome de Santa Teresa ao Recolhimento. Digna de especial atenção como elemento representativo e singular da arte seiscentista na cidade de São Paulo, a veneranda imagem trazida pelo viajante francês para a cidade de São Paulo em 1667 possui uma identidade iconográfica que se cristalizou e tornou-se um símbolo da fé paulistana. A escultura, hoje conservada no nicho central da Basílica, possui profundo simbolismo teológico. A procedência dessa imagem, sua datação e o artista que a confeccionou são incertos. Com aproximadamente 75 cm, trata-se de uma belíssima escultura em madeira policromada e dourada, com olhos de vidro, (provavelmente) do início do período barroco (brasileiro?), contando, seguramente, com mais de 350 anos, típica da imaginária do século XVII. Nela encontramos, dentre suas técnicas de ornamentação, a carnação, o esgrafito, a pintura pincel e o pastiglio. Seus atributos são as coroas da Mãe e do Menino, o cetro e o manto de tecido com formato triangular. A Padroeira da Cidade A fama dos muitos milagres de Nossa Senhora da Penha atravessou São Paulo, motivando paulistanos e


moradores de outros lugares a organizarem romarias imensas para a Penha de França, a fim de pagarem promessas e ofertarem bens preciosos à Mãe de Deus como gesto de louvor e gratidão. Isso fez com que, nos séculos XVIII e XIX, inúmeras vezes, a população e a Câmara Municipal recorressem à Virgem da Penha para sanar as secas e epidemias, sobretudo de varíola, que assolavam a São Paulo de outrora. Os vereadores, assim, solicitavam ao Bispo de São Paulo ou ao Cabido da Sé Catedral para que a imagem milagrosa de Nossa Senhora fosse transladada da Penha à antiga Sé ou à Câmara, de onde a Mãe de Deus agia em favor da cidade, cessando, milagrosamente, as secas ou doenças – o que lhe rendeu o título de Padroeira da cidade de São Paulo por aclamação popular (mais tarde reconhecido pelo Papa São João Paulo II na bula com a qual elevou a nova Matriz da Paróquia da Penha à dignidade de Basílica Menor). No centro da cidade, a imagem era honrada com inúmeras homenagens, missas, novenas, pregações e procissões majestosas realizadas com a presença de um sem-fim de devotos. Acredita-se, ainda, que as conhecidas Avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia foram abertas, entre outras razões, para facilitar a transladação da imagem à antiga Sé e o afluxo dos romeiros ao Santuário da Penha, os quais iam agradecer a intercessão da Padroeira da cidade, especialmente durante as vultosas festividades de setembro. A tradição das peregrinações da imagem à Sé cessou, segundo consta, em 1876. Vale lembrar, contudo, que, recentemente, em 2015, quando grave crise hídrica se abateu sobre a cidade, mais uma vez, a imagem de Nossa Senhora da Penha foi transladada à Sé. Surpreendentemente, durante a procissão que a conduziu da Igreja da Consolação à Catedral, uma chuva regou o Centro Histórico. Ainda em relação a esses episódios de invocação da Padroeira da cidade em épocas críticas, é importante apontar que, neste ano de 2020, devido à atual pandemia, no dia 8 de abril, Quarta-feira Santa, comemoração mensal de Nossa Senhora da Penha, a imagem da Mãe de Deus foi conduzida numa espécie de “procissão-desfile” em carro aberto pelas ruas da Paróquia da Penha, a fim de que Nossa Senhora aplacasse a terrível epidemia. Como o momento exige isolamento social, a imagem não pôde ser transladada até a Sé, como nos séculos passados, para o povo rezar diante dela. A Paróquia, as Igrejas e a Festa A Freguesia de Nossa Senhora da Penha foi criada em 15 de setembro de 1796 por determinação da Rainha de Portugal, Dona Maria I. Caracterizava-se por suas ruas estreitas e de traçados antigos (preservados até hoje), que, com o tempo, tornaram-se repletas de

pontos de venda de artigos religiosos ou de vestidos de noivas em decorrência da grande quantidade de pagamento de promessas e matrimônios realizados no Santuário. Aos 5 de março de 1905, Dom José Camargo de Barros, então bispo de São Paulo, entregou a Paróquia da Penha aos cuidados dos missionários redentoristas, a fim de que dessem a ela a importância que haviam conseguido para o Santuário de Aparecida. Assim, as romarias, que já eram numerosas, aumentaram muito, e a Matriz da Penha, em 1909, foi elevada a Santuário Arquidiocesano, o primeiro da cidade. Com os missionários redentoristas à frente da Paróquia até 1967, as comemorações da Padroeira, o Santuário e o bairro ganharam imensas projeções. Foi um período de florescimento espiritual com a instituição de associações e irmandades religiosas; a construção de convento, de imenso seminário, do Hospital Nossa Senhora da Penha, de grandes capelas; além da edificação da nova e magnificente Igreja Matriz (atual Basílica, cuja pedra fundamental foi lançada em 1957). A Festa da Padroeira é realizada, há séculos, aos 8 de setembro (comemoração litúrgica da Natividade de Maria). No passado, a Festa refletia em praticamente todo o cotidiano da cidade e movimentava os mais diversos setores, para muito além do religioso: diversões profanas, hospedagem, alimentação, comércio de artigos religiosos e de outros gêneros, mudanças na rede de transporte, politicagem e até crimes. Destaque em São Paulo, as comemorações chegaram a reunir centenas de milhares de romeiros vindos de todos os recantos da cidade e também de fora dela. Ainda hoje, a Festa da Penha tem o seu brilho e congrega milhares de romeiros, peregrinos e devotos durante a solene novena e, principalmente, na procissão magna do grande dia 8, quando também se comemora o aniversário do bairro com uma programação recreativa e cultural. O monumental edifício da Basílica (nos dizeres do povo, Igreja Nova da Penha), o primitivo Santuário (designado, informalmente, como “Igreja Velha”, atual Santuário Eucarístico da Diocese de São Miguel Paulista) e a bissecular Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (símbolo de resistência e identidade cultural e étnica) constituem uma paisagem singular e repleta de significados, um complexo religioso sem igual em São Paulo, felizmente preservado graças a um recente tombamento do Centro Histórico do bairro, em fevereiro de 2018, pelo CONPRESP. Tanto a Basílica quanto o antigo Santuário (com arquitetura, elementos artísticos e acervos encantadores e repletos de particularismos dignos de serem explorados e compreendidos) estão, imponentes, voltados para o centro da cidade, como a indicar que, do alto daquela Colina Santa, a Senhora da Penha vela e olha sem cessar pelo “Planalto de Piratininga” a Ela confiado. 39


O Começo da Idade Média:

Jheronimus Bosch | São Jerônimo - Museu de Ghent

Alta idade média, antiguidade tardia ou um período de trevas?

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Claudia M.M.Leal1

OUTROS OLHARES

Examinamos aqui a transição da Antiguidade para a Idade Média sob as diferentes perspectivas historiográficas especializadas. É importante notar que apesar da maior disponibilidade de novas interpretações e de fontes históricas, a inexistência de uma leitura conclusiva e definitiva continua possibilitando interpretações diversas.

AMARAL, Ronaldo. A antiguidade tardia nas discussões historiográficas acerca dos períodos de translatio. Alétheia - Revista de estudos sobre Antiguidade e Medievo, volume único, Janeiro/Dezembro de 2008. AMARAL, Ronaldo. A Idade Média e suas controversas mensurações: Tempo histórico, tempo historiográfico tempo arquétipo. Revista Fênix Janeiro/abril 2012. ECO,Umberto. Idade média: Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos. Portugal: Dom Quixote, 2010. FRANCO JUNIOR, Hilário. Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005. LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SILVA, Paulo Duarte. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: Considerações sobre as noções de Antiguidade tardia e Primeira Idade Média. RevistaSignum 2013, vol.14, n.1

1 Mestranda em História Social da PUC-SP, Aluna do MAS-SP. Especialista em História Antiga e Medieval pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro- NEA/CEHAM-UERJ-RJ; Especialista em História da Arte-Teoria e Crítica pela FPA- Faculdade Paulista de Artes de São Paulo.

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Jheronimus Bosch | Navio dos Loucos, Museu do Louvre, Paris.

Tema discutido com alguma insistência pelos

medievalistas que, fundamentados por suas eleições metodológicas e ideológicas, apontam a dificuldade em problematizar o começo do período medieval em suas análises. Nessa perspectiva, Jerôme Baschet (2006) ressalta em seu livro: A Civilização Feudal, a tradicional periodização da Idade Medieval, em que cita o ano de 476 como um período balizador, ano em que se deu a queda do Império Romano do Ocidente. À vista disso, diferentes autores que tratam do período medieval evidenciam uma verdadeira “batalha historiográfica”. Assim, encontram-se os defensores do conceito de “Antiguidade Tardia”, principalmente Peter Brown e Henry-Irénée Marrou, os partidários das noções coetâneas de “Primeira Idade Média” e os que admitem a possibilidade do termo “Alta Idade Média”, destacadamente Le Goff e Wickham. A historiografia brasileira sustenta um profícuo e crescente interesse pelo assunto. Assim, autores concordam ou contestam as diversas terminologias.Neste sentido,o historiador brasileiro Hilário Franco Júnior(2005) propõe a noção de Primeira Idade Média, embora pouco usadaacademicamente, como mais adequada para uma 42

fase , que segundo ele, com “feição própria”, nem tanto antiga, mas ainda não medieval, deste modo,por este viés historiográfico, o autor discute e elenca os motivos pelos quais ele e outros autores defendemesta posiçãocomo: a herança romana clássica, herança germânica e o Cristianismo. Para Ronaldo Amaral (2008), os produtos historiográficos e suas implicações vão além de escolhas conceituais, mas das vontades e necessidades ideológicas de uma época,o historiador ainda destaca que a intenção de uma periodização deste período, decorre da compreensão das estruturas políticas, sociais e culturais e não dos eventos medievais.Sendo assim, a partir desta premissa, se os historiadores admitem uma “Primeira Idade Média”, pode-se conjecturar um segundo, terceiro ou múltiplos medievos. Deste modo, convém notar neste contexto, que o período histórico de cerca de mil anos entre a Antiguidade e a Época Moderna deve ser diferenciado devido às particularidades, percebido em sua pluralidade, contrapondo-se, deste modo, a ideia de uma Idade Média compacta, única e absoluta, conforme ressalta o professor José Luís Landeira. A respeito do termo Alta Idade Média abordado neste estudo, principalmente usado por Le Goff e Wickham, o historiador Paulo Silva (2013) mostra que a expressão guarda em seu bojo valores e princípios contemporâneos, e explica que a locução em inglês pode assumir uma conotação indeterminada, pois Early Middle Ages pode ser aplicado ao período imediatamente sucessivo ao fim do Império Romano do Ocidente, como também à formação dos reinos romano-germânicos ou, o que é mais comum, estar mais diretamente associada ao período carolíngio pela historiografia ocidental. À vista disso, segundo os historiadores, a tradicional divisão entre Alta e Baixa Idade Média hoje em dia é pouco usada academicamente Outros autores referem-se ao momento histórico instaurado após a dissolução do Império romano, como Antiguidade Tardia, uma transição entre Antiguidade e medievalidade. Defendida por muitos pesquisadores, foi uma expressão alternativa para adequar-se ao primeiro momento do período medieval. O termo sugerido por Auerbach e Stroheker encontrou em Henry Irénée Marrou e Peter Brown seus maiores defensores, em uma proposta intitulada “projeto tardoantigo” – estes autores conduziram um processo que colocou a expressão na ordem do dia entre as publicações acadêmicas e suas linhas editoriais (SILVA,2013).


A partir disso, José D’assunção de Barros(2009) fundamenta esteargumento aos crescentes estudos da história cultural, do imaginário, da economia e demografia. Mas, afinal, esse intervalo logo após a desintegração do Império Romano foi de rupturas ou de continuações? Percebe-se uma disputa historiográfica acerca da matéria, autores levados por suas especialidades históricas elaboram seus pareceres e posicionam-se contra ou a favor dessa concepção. O historiador Silva, mesmo constatando que a noção da AntiguidadeTardia colabora com o afastamento de exageros gerados pelo conceito Dark Ages, julga a forma inconveniente do uso da terminologia, pela dificuldade de precisão cronológica,como também entende que as assertivas de “continuidade” são excessivamente genéricas. Em contrapartida, o professor Ronaldo Amaral encontra razão para o uso da sentença, pressupõe uma evolução de muitas de estruturas sociais e mentais, e não uma mudança total e suficiente. Conforme Amaral (2008), as mudanças econômicas, políticas, sociais, religiosas nem sempre, ou quase nunca, são simultâneas. Neste sentido, Le Goff (2005) entende que não houve mudanças abruptas, nem radicais nos primeiros séculos da Idade Média, e prefere a continuidade e o aceite da Antiguidade Tardia; portanto, participa da escolha e endossa o conceito alegando que embora o período possuísse características culturais distintas, as transformações ocorreram de maneira gradual. Os autores explicam que o termo Idade Média se origina pela escrita de seus primeiros difamadores, que para valorizar suas intenções artísticas, arquitetônicas e filosóficas caracterizaram este período como “trevas” e “flagelo cultural”, “verdadeiro interregno entre a Antiguidade e os tempos então modernos.” (SILVA, 2013) E todos os séculos do Medievo foram de “trevas”? Há um consenso entre os medievalistas em destacar que, em parte, este modelo de decadência física e cultural, de terrores sem fim, fanatismo, intolerância, pestilências, fomes e de carnificinas, pode ser aplicado ao período após a “queda” do Império romano até aproximadamente o Renascimento Carolíngio, mas há quem enxergue de uma forma diferente e sublinhe um certo “progresso”: o nascimento das línguas que falamos hoje, por exemplo, uma civilização romano-germânica, figuras como Boécio, Beda e os mestres da Escola Palatina de Carlos Magno, e monges irlandeses que convertidos ao cristianismo, fundaram mosteiros onde estudaram os textos antigos (ECO,2010). Entretanto, os humanistas não enxergaram deste

modo. Assim, reis enfraquecidos, fragmentação política, barbárie, superstição e a ignorância foram os símbolos desta época. Com um preconceito indisfarçado, esses homens valoraram a Antiguidade e apregoavam seu retorno. Deste modo, Segundo Hilário Franco Junior, estava criado o mito historiográfico da “Idade das Trevas”. Conforme os historiadores, vale lembrar que somente a partir da crítica iluminista do século XVIII a Idade Média seria definitivamente depreciada, o período em que a expressão: Dark Ages se infiltrou permanentemente no pensamentoda época. Assim, Voltaire e Rousseau denunciavam o obscurantismo, o fanatismo e a intolerância característicos da Idade Média, sob tutela da igreja católica. Denis Diderot foi além: afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais felizes”, seguindo este argumento, o pensamento iluminista “antiaristocrático e anticlerical, acentuou o menosprezo à Idade Média. (SILVA,2013) Entretanto, o romantismo não quis saber de “trevas”, desse modo, no século XIX houve uma exaltação, tanto no âmbito material quanto no intelectual, de uma Neo-Idade Média, a exemplo do neotomismo. Em consequência destavisão estereotipada da Idade Média, fizeram dela a “origem das nacionalidades”, conforme os autores, a partir de um projeto burguês de hegemonia e reconstituição do tecido social e político. Assim, admitindo uma fuga do racionalismo, e embalada por Wagner, a historiografia não ficou isenta e afirma ter sido a civilização feudal “a coisa mais elevada que a Europa tinha produzido.” Este apanágio repercute até nos dias de hoje, afinal, quem não se apaixonaria pela Idade Média de Umberto Eco, Duby e Huizinga? E pelo maravilhoso de Le Goff ? Alerta Ronaldo do Amaral. Os historiadores medievalistas apresentam em suas análises algumas vertentes acerca da passagem do mundo antigo para o mundo medieval, período cercado de ambiguidades e complexidades, que dependendo do viés historiográfico, enxerga-se um fim ou um começo, assim sendo, os autores acreditam que as terminologias propostas encontraram e encontrarão razões em suas defesas. Portanto, no que tange a esta eleição, definida muitas vezes por um juízo ideológico, nem tanto por questões objetivas, as definições terão seus lugares assegurados nas pesquisas historiográficas, pois invariavelmente haverá argumentos e justificações em uma “Alta Idade Média”, em uma “Antiguidade Tardia” ou em uma “Primeira Idade Média”. 43


Podem os mortos dançar?

Túmulo de François Raspail, Cemitério Père-Lachaise, Paris | Alegoria usada na capa do album Within the Realm of a Dying Sun.

Aqui detemo-nos na trajetoria do Dead Can Dance e o diálogo possível com a transcendência que a música possibilita.

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Arthur Schopenhauer

Paulo César Giordano Nogueira1

OUTROS OLHARES

Quando ouço música, a minha imaginação compraz-se muitas vezes com o pensamento de que a vida de todos os homens e a minha própria vida não são mais do que sonhos de um espírito eterno, bons e maus sonhos; de cada morte é o despertar”.

SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo: o amor – a morte – a moral – a religião – a política o homem e a sociedade. São Paulo: EDIPRO, 2014.

Jornalista pela Fac. Com. Social Cásper Líbero, mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Univ. Católica de São Paulo- PUC-SP.

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Em tempos de pandemia, a morte é um tema recor-

rente e inevitável que muitos preferem evitar. Talvez seja melhor assim; reclusos em casa, vivendo uma fastidiosa quarentena, tudo o que queremos é fugir um pouco da realidade e nada melhor do que a arte para distrair a mente e acalmar o coração. Aqui detemo-nos na trajetoria do DeadCan Dance e o diálogo possível com a transcendência que a música possibilita. Diz Schopenhauer que a música é a mais deliciosa de todas as artes. E completa: “Não há outra que atue mais diretamente, mais profundamente, porque também não há outra que revele mais diretamente e mais profundamente a verdadeira natureza do mundo. Ouvir longas e belas harmonias é como um banho de espírito: purifica de toda a mancha, de tudo o que é mau, mesquinho; eleva o homem e sugere-lhe os pensamentos mais nobres que lhe seja dado ter, e ele então sente claramente tudo o que vale, ou antes, quanto poderia valer”. Recorri a Schopenhauer porque não encontrei melhor definição para a arte musical do DeadCan Dance e é espantoso como as palavras do filósofo se adequam perfeitamente à obra dessa dupla de músicos às vésperas decelebrar 40 anos de carreira. Lisa Gerrard e Brendan Perry, vocalistas e multi-instrumentistas são a alma do DeadCan Dance, projeto surgido no início dos anos 1980 no cenário pós-punk inglês. Começaram muito pobres; partiram da Austrália e foram viver numa área degradada de Londres, onde teriam mais chances de divulgar seu trabalho. Passaram inúmeras tardes nas bibliotecas locais estudando música e o pouco dinheiro que lhes sobrava, investiam na compra de instrumentos e aparatos musicais. E dessa dificuldade nasceu o DCD. O que diferencia o DCD de outras bandas ou músicos, além do virtuosismo da dupla, é o apreço pela pesquisa, pelos novos conhecimentos e pelo enorme desejo de conhecer as mais diversas culturas do mundo. O trabalho deles vai além da música e envolve a pintura, a fotografia, a literatura e o cinema. É fruto deles, por exemplo, uma das cenas mais tocantes do documentário Baraka (Ron Fricke, 1992), com a canção Host of Seraphim, música do 4º álbum da dupla, The Serpent’sEgg. Baraka abriu as portas definitivamente para o DCD; vale lembrar que o primeiro álbum, DeadCan Dance, foi lançado em 1984, seguido de Spleenand Ideal (1985) e de Within the Realmof a Dying Sun (1987). Este último, um dos mais apreciados pelos fãs, é um marco na história musical da dupla: a ruptura do 46

estereótipo punk-gótico e o mergulho na música clássica romântica do século XIX e na música cerimonial religiosa. Nesse trabalho também conseguimos apreciar mais acentuadamente a influência das Vozes Búlgaras na técnica vocal de Lisa, nas melhores canções do álbum: Dawn of the Iconoclast e Cantara. O quarto álbum, The Serpent’s Egg(1988), traz influências da música do leste europeu, do Oriente Médio, gótico, folk, canto gregoriano e a presença mais marcante de instrumentos antigos da música medieval. MotherTongue, uma das canções mais marcantes desse álbum, foi usada no programa Música daNova Era, apresentado por Mirna Grzich nos anos 1980, na Rádio Eldorado de São Paulo e foi possivelmente o primeiro lugar onde o DCD foi divulgado por essas terras. A importância de Mirna Grzich no cenário new age/world music no Brasil há de ser sempre evocada. Deixou muitas saudades. AION abre a década de 1990 para o DCD e traz na capa uma cena da tela de Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias. É um dos discos mais belos da dupla, com muita influência da música medieval e do barroco: canto gregoriano, gaitas de fole,sessão de cordas (violas de gamba), hurdygurdy...O cenário não poderia ser mais mágico. Uma viagem no tempo e talvez a mais bela versão de Saltarello que você ouvirá na vida. A essa altura, a inevitável pergunta: qual o gênero musical do DCD? Pós-punk, dark, gótico, world music, neo-clássico, new age, art rock... De certa maneira, todos se encaixam na obra da dupla, mas o certo é que o DCD faz uma música inclassificável. Em uma entrevista recente, Brendan Perry disse que eles procuram o que há de universal em todas as culturas: “Nós não aderimos a nenhum estilo particular, filtramos nossas influências musicais, sejam elas históricas ou regionais através de nós mesmos, porque somos apaixonados por elas; somos atraídos mais pelas coisas que nos conectam e coisas que todos temos em comum, em oposição ao que nos diferencia. Essa é a inspiração por trás do desejo de viajar por nosso gênero e é como trabalhamos”. E por que DeadCan Dance? A resposta vem impressa na contracapa de um dos álbuns, retirada da obra Harmonies of Heavenand Earth, de Joscelyn Godwin: 01 - Into the labyrinth 02 - Dead can dance 03 - The serpents egg 04 - AION 05 - Within therealm of dying sun 06 - Anastasis


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“Na maioria dos instrumentos musicais, o ressonador é feito de madeira, enquanto o gerador de som real é de origem animal. Em culturas onde a música ainda é usada como uma força mágica, a fabricação de um instrumento sempre envolve o sacrifício de um ser vivo. Desse modo, a alma desse ser se torna parte do instrumento e, nos acordes que surgem, os cantores mortos que estão sempre presentes entre nós, se fazem ouvir”. Os dois próximos álbuns do DCD trazem influência africana e ecos da cultura minoica, da região do Mar Egeu. IntotheLabyrinth (1993) abre com Yulunga (Spirit Dance), canção misteriosa que ganhou um vídeo extraordinário, com imagens retiradas de Barakae que merece ser visto. E Lisa, que costuma cantar em idiomas inventados (tem nome: idioglossia), interpretaa capellaThe Wind thatShakestheBarley, canção irlandesa do século XVIII, quase uma oração. Depois de um bem sucedido disco ao vivo em 1993, o fantástico TowardtheWithin (também lançado em vídeo, imperdível), chega Spiritchaser (1996), um álbum enraizado em ritmos transcendentais, na opinião de Lisa. Diz Brendan Perry que à época buscavam algo que os empolgasse, algo que de certa maneira permitisse “ouvir os espíritos conversando”. As canções demonstram isso claramente. Nierika (na cultura huichol do México a nierika é um importante artefato ritual e uma visão metafísica, um ancestral coletivo), DedicacéOutò (baseado em um ritmo vodu haitiano, outò significa “espírito do tambor”), The SnakeandtheMoone Sonofthe Stars são transes percussivos, com uma foça telúrica arrebatadora, é preciso deixar-se levar, um chamado. Depois de Spiritchaser, o DCD só volta a lançar um álbum de estúdio em 2012, Anastasis, palavra grega para “ressureição”. O hiato de dezesseis anos trouxe uma sonoridade mais etérea, distante da energia terrena do trabalho anterior. Dessa vez os mistérios vêm dos cantos da Grécia, Turquia e norte da África, como a belíssima Kiko, onde Lisa incorpora as cadências hipnóticas dos vocalistas marroquinos. A mais bela canção desse álbum talvez seja ReturnoftheShe-King, que remete muito ao trabalho que Lisa aprimorou em suas premiadas incursões nas trilhas sonoras de obras cinematográficas, uma belíssima peça musical. O último álbum lançado pelo DCD foi Dionysus, em 2018, o nono trabalho de estúdio da dupla e o primeiro álbum conceitual de sua carreira.Dionysus foi inspirado nas antigas festividades europeias originárias das celebrações do deus grego Dionísio. É o resultado de um projeto de pesquisa de dois anos de Brendan, após uma viagem com seu irmão a Calanda, na província espanhola de Teruel. 48

A história é interessante: no feriado da Semana Santa, os irmãoschegaram ao povoado espanhol e, depois de conseguirem dois tambores, se juntaram às pessoas na festividade local, a Rompida de la Hora, que existe desde os tempos da Inquisição, tocando na rua das 8 horas da noite da Sexta-feira Santa até as 6 da manhã do dia seguinte, bebendo vinho e comendo azeitonas que as pessoas lhes ofereciam. Diz Brendan sobre a experiência: “Você simplesmente entra em transe depois de algumas horas tocando e percebe, vagando pelas ruas, encontrando com outros grupos de tambores, que há milhares deles tocando por esses pequenos povoados e eles estão cobertos de sangue; nossas mãos estavam abertas em feridas e nós não sentíamos nada, estávamos completamente abstraídos da dor. Essa foi uma experiência dionisíaca e parte dessa celebração é atingir ekstasis”. A ideia conceitual de Dionysus nasceu depois que Brendan leu O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche. “Foi uma revelação para mim, me levou a percorrer uma jornada” se recorda o músico. “Ele fala das duas correntes de energia e modos de pensar, o apolíneo e o dionisíaco que, quando combinados, criam a arte mais sublime. (...) Fico surpreso quando vejo pessoas ainda celebrando esses costumes pagãos muito antigos nesses locais remotos ao redor do mundo, celebrando a natureza e o plantio, a primavera e a colheita...quando perdemos o contato com a natureza e os ciclos naturais, perdemos uma parte de nós mesmos.” Dionysus é uma obra para ser experimentada no recolhimento; conceitualmente, explora as tradições folclóricas da Europa e as fronteiras da linguagem. É um disco de dois atos e sete movimentos, representando as diferentes facetas do mito de Dionísio e seu culto: a chegada do deus do leste pelo mar; a dança das bacantes e rituais de expansão da mente; cerimônias de colheita, a jornada para o submundo e muito mais. Musicalmente, é o DCD em sua plenitude, o que mais se pode pedir? Há muito ainda a ser explorado na obra do DeadCan Dance. Deixamos de fora a arte conceitual das capas de seus álbuns, as letras de suas canções, os trabalhos e projetos solos da dupla- tão instigantes quanto os do próprio DCD - o método de pesquisa na construção de sua obra, todo um universo fascinante, afinal são quarenta anos de estrada. Quarenta anos fazendo os mortos dançarem.


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A Preservação do Sagrado no Museu A importância das instituições museais no processo de salvaguarda do patrimônio religioso histórico, artístico e cultural da Igreja Católica.

Interior do Museu de Arte Sacra | Arquivo MAS. Retrato de Dom Duarte Leopoldo e Silva | Acervo Museu de Arte Sacra.

Luciana Barbosa1

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OUTROS OLHARES POMIAN, K. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. 1. Memória-História. Porto: Imprensa Oficial – Casa da Moeda, 1985. CARVALHO, A. C. Rememoração: arte religiosa como documento histórico. Coleções do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo, 2015. MENESES, U. T. B. de. Do teatro da memória ao laboratório da História: A exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 2, n. 1, p. 9-42, 01/94. ROQUE, M. I. O Sagrado no Museu. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011. GUARNIERI, W. R. C. Museologia e Identidade. São Paulo, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010. 1 v. CAMPOS, A. A. Arte Sacra no Brasil Colonial. São Paulo: COM ARTE, 2012.

1 Mestranda PPGMus-USP, Especialista em Jornalismo Cultural, Jornalista e Técnica em Museologia.

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Vista frontal do Mosteiro da Luz e Museu de Arte Sacra - Foto: Acervo MAS

O Museu de Arte Sacra (MAS), equipamento da

Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, foi criado a partir do convênio firmado entre a Cúria Metropolitana e o Estado em 28 de outubro de 1969, a fim de estabelecer um local apropriado para a guarda do acervo sacro pertencente ao antigo Museu da Cúria. O local escolhido foi a ala esquerda térrea do Mosteiro de Nossa Senhora da Imaculada Conceição da Luz, fundado e construído por Frei Antonio de Sant’Anna Galvão em 1774, e ocupado pelas irmãs Concepcionaistas. A opção pelo Mosteiro da Luz sinaliza uma escolha preservacionista, uma vez que o edifício de taipa de pilão sobreviveu às mudanças urbanas da cidade de São Paulo, sendo um dos últimos patrimônios arquitetônicos do período colonial. Além disso, o Mosteiro passou por um restauro para receber o novo museu que estava se formando. O acervo do recém-criado Museu de Arte Sacra, instalado em 29 de junho de 1970, foi formado por objetos do antigo Museu da Cúria, alguns poucos itens das irmãs Concepcionistas, o acervo do Museu dos Presépios e objetos adquiridos para compor o perfil da instituição. De acordo com o historiador Krzysztof Pomian, 52

uma coleção pode ser entendida como “qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público” . Os objetos de arte sacra possuem uma importância social na medida em que são mediadores do discurso entre espaço e tempo, “estabelecendo uma relação de ordem existencial e não cognitiva, de contato com a realidade transcendente, do visível e do invisível” . Ulpiano Bezerra de Meneses também discute esta dicotomia tempo/espaço ao afirmar que o museu pode trabalhar as duas dimensões, porém o tempo sempre existirá, uma vez que é no presente que estes objetos são postos como objetos históricos e que assim devem responder aos anseios contemporâneos. A Igreja Católica sempre buscou preservar seus bens culturais por compreender, desde tempos antigos, a importância de seu patrimônio histórico-cultural na missão de catequizar e registrar sua história como testemunho da humanidade. Para proteger estes bens, a Igreja desenvolveu mecanismos dentro de sua legislação eclesiástica ao longo dos anos, por meio de bulas, constituições, cartas circulares e documentos gerais que buscavam aproximar o clero


“A apresentação do objeto litúrgico ou devocional como documento do culto é tardia no contexto da história da museologia de iniciativa civil, mas foi determinante ao longo da evolução dos tesouros eclesiásticos. Sem descurarem a antiga funcionalidade devocional, os tesouros começaram, desde finais do século XIX, a aplicar normas de conservação, segurança e exposição museográficas, que podem ser paralelamente definidos como museus de religião” (ROQUE, 2011, p.13). Ainda que os objetos sacros carreguem sua função original da sacralidade da liturgia, a partir do momento que se tornam musealizados, eles passam a ser entendidos como objetos portadores de sentido e significado histórico.A preservação desses bens culturais deve garantir não só a sua conservação física, mas sua simbologia histórico-religiosa como testemunhos de experiências diretamente ligadas às noções de identidade, herança e patrimônio cultural. Conforme Waldisa Russio Guarnieri, a identidade é um caráter orgânico que impõe seus registros na memória/consciência coletiva de forma dinâmica e contínua, sendo esta memória não apenas uma perspectiva do passado, mas o registro do presente e a possibilidade do futuro. Os museus refletem as transformações humanas e seus discursos e coleções indicam os interesses das práticas sociais vigentes. Dentro da perspectiva de um museu de arte sacra, ou mesmo um museu sob a tutela da Igreja, é preciso se manter fiel às funções museológicas acrescentando uma dimensão

eclesial ao desenvolvimento de suas atividades, uma vez que para além da produção artística, deve-se ter a compreensão espiritual do trabalho, pois só se pode compreender “a arte sacra a partir da fé que a motivou, da teologia que lhe é subjacente”. E o objeto, quando musealizado, tem essa função documental, transformando-se em fonte de informação primordial para seu entendimento como produção do meio. São os procedimentos de salvaguarda e comunicação dos museus que consolidam a transformação desses objetos religiosos em herança cultural.

Imagem de São Paulo em Barro Cozido - Pertenceu a primeira Igreja do Pateo do Colégio - Foto: Acervo MAS

às práticas de preservação necessárias. A mistura do sagrado e profano nos tesouros da Igreja, desde a Idade Média, elevaram o status dos objetos para além de seus valores simbólicos, uma apreciação estética. Conforme comenta Maria Isabel Roque, esse novo olhar estético dado aos objetos religiosos permitiu a isenção da interpretação de suas simbologias litúrgicas, passando a serem vistos como um agente da memória ao serem transferidos para um “universo civil e profano” , tendo como catalizador os museus. Ao se pensar nas primeiras coleções eclesiásticas, estas foram fundamentais como iniciativas de preservação e exposição museográfica:

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Elogio da Loucura, o fruto prodigioso de uma quarentena

Hieronymus Bosch | A Extração da Pedra da Loucura - Museu do Prado, Madrid.

A obra genial de Erasmo de Rotterdam, o “príncipe dos humanistas”, para quem todos os homens são loucos. Felizmente!

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Erasmo de Rotterdam, “Elogio da Loucura”, 1509

LITERATURA

“Na minha opinião, o homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura. (...) Eu não saberia dizer se haverá, em todo gênero humano, um só indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade.”

Luciana Amendola Imbriani Kreidel 1

CHEVALLIER, Jean-Jacques. “As Grandes Obras Políticas de Maquiavel aos Nossos Dias” 6ª edição. Rio de Janeiro: Agir, 1993 FOUCALT, Michel. “História da Loucura”. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. NOGARE, Pedro Dall. “Humanismos e Anti-Humanismos”. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. ROTTERDAM, Erasmo de. “Elogio da Loucura”. Tradução de Paulo M. de Oliveira. São Paulo: Edipro, 1995. “Os Pensadores – Erasmo de Rotterdam”. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1972.

1 Advogada. Estudante de História da Arte desde 2007. Aluna dos cursos do MAS.

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Vittore Carpaccio | A Cura dos Loucos, Galleriadell’Accademia, Veneza.

Erasmo de Rotterdam escreveu “Elogio da Loucura”,

sua obra mais emblemática, em sete dias, durante uma crise de cálculo renal que o obrigou a um repouso forçado. Obra instigante, escrita no contexto da crescente inquietação quanto aos valores medievais que gerou asnovidades do Renascimento em diversos campos: novas leis científicas, novas expressões artísticas e literárias, novas ideias políticas e religiosas e, inclusive,a descoberta de uma nova terra, a América. Intelectualmente, a essência do Renascimento foi o Humanismo, corrente centrada na valorização do homem e de suas faculdades mentais, a partir de estudos de fontes da Antiguidade clássica e da exploração do mundo natural pela ciência, separando as questões terrenas das espirituais, e, dessa forma, rejeitando o controle religioso sobre as preocupações materiais humanas. Isso, contudo, não significa que a religião ou Deus tenham sido rejeitados pelos humanistas, tendo havido, a partir de Erasmo de Rotterdam, uma grande ênfase no estudo dos textos bíblicos. Quem foi Erasmo de Rotterdam? Desidério Erasmo nasceu em Rotterdam, em 1469. Filho ilegítimo de um padre católico, teve sua primeira educação em uma comunidade religiosa católica de irmãos de vida comum, em que os participantes procuravam orientar suas vidas pelos ideais apostólicos do Cristianismo primitivo, despojando-se de bens materiais e buscando ascese espiritual. Em 1487, entrou na Comunidade dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, na cidade holandesa de Steyn, onde foi ordenado padre em 1492, aos 25 anos. Apesar do sacerdócio, foi um grande crítico da vida monástica, da imoralidade do clero e da Igreja Católica, bem como dos costumes sociais. Entre 1500 e 1509, dedicou seu tempo aos estudos de teologia em Paris (então o principal centro da Escolástica, mas já soba influência crescente do Renascimento italiano), na Inglaterra (onde fez amizade com o importante humanista Thomas More, autor de “Utopia”), nos Países Baixos e na Itália, países em que o

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ambiente intelectual impregnava-se do Humanismo. Procurou seguir uma vida de acadêmico independente, alijando-se de tudo o que pudesse interferir com a sua liberdade intelectual e literária. Seus livros em latim, grego, holandês, inglês, francês e italiano atraíam leitores por toda a Europa. Buscando a renovação das fontes da Igreja, traduziu o Novo Testamento para o grego, texto este que abriria caminho para a Reforma Protestante. Escreveu, também, obras que propunham uma reforma eclesiástica radical. Apesar de suas críticas à Igreja Católica e de sua simpatia por parte do libelo luterano, tinha críticas a ambas as posições, pois, apesar de defender alterações na doutrina, não desejava uma cisão na Igreja Católica. Por outro lado, como humanista, rejeitava a predestinação defendida por Lutero . Em razão dessas e de outras divergências, optou por não tomar partido aberto de nenhum dos lados. Em vista disso e das perseguições que estava sofrendo em razão de suas ideias e escritos, instalou-seem Basileia, na Suíça, em 1514, momento em que começaram a eclodir as querelas entre católicos e protestantes, ali permanecendo até a ocasião de sua morte, em 1536. Em seus escritos, destacam-se sua finura de observação, ironia, bom humor, sátira cáustica, crítica incisiva, elegância e fluente latinidade. Erasmo foi, em seu tempo, o maior apóstolo da tolerância e da liberdade de pensamento, o que fica patente em sua principal obra, o satírico texto “Elogio da Loucura”, de 1509. A obra A experiência pessoal de Erasmo de Rotterdam diante das dificuldades da pobreza e da bastardia, da rigidez da vida monacal, do luxo e da libertinagem de bispos, do furor criminoso dos príncipes em guerra e da miséria aflitiva do povo levou-o a escrever o “Elogio da Loucura”, obra em que critica os “juristas minuciosos, filósofos escolásticos, nobres arrogantes, bispos luxuriosos, negociantes sórdidos e estúpidos” e outros cujas ações disparatadas, para Erasmo, eram motivadas unicamente pela estultícia (tolice). O autor decidiu, então, valer-se de sua pena para elogiar a loucura, por


reconhecê-la como força motriz dos atos humanos. Uma talpreocupação com a loucura não era, contudo, algo inédito. Na Idade Média, a loucura e os loucos já preocupavam os espíritos, povoando escritos de Sebastian Brant e pinturas de Hieronymus Bosch e de VittoreCarpaccio . Nessas obras, a loucura é identificada com o pecado, o que reflete uma angústia tipicamente medieval. Na obra de Erasmo, contudo, a loucura é associada com a verdadeira sabedoria e perde seu caráter trágico e metafísico, transformando-se no espírito crítico, na razão que troça de si própria e que convida os homens à reflexão, pois já não é mais a assustadora encarnação do pecado. No livro, a Loucura (substantivo próprio, com letra maiúscula) explica que são seus sequazes vários artifícios dos quais os homens se utilizam para tornarem mais brandas as agruras de suas vidas, tais como a adulação, o esquecimento, a embriaguez, a imperícia, o amor-próprio, a volúpia, a irreflexão, a delícia, o riso, o prazer e o sono profundo. Valendo-se da Loucura, os homens esquivam-se de sua razão e a ignoram quando lhes é conveniente, o que lhes poupaas aflições, inquietações e tristezas decorrentesda razão e lhes traz a verdadeira felicidade. Para a Loucura, a racionalidade máxima é incapaz de trazer qualquer felicidade. A personificação literária da loucura revela haver uma “loucura sábia”, imanente à razão, que a ouve e a reconhece, e uma “loucura louca”, que recusa a loucura própria da razão, mas que, rejeitando-a, duplica-a. Como humanista, não se ocupa Erasmo da “loucura louca” e sim da “loucura sábia”, a “Loucura”,verdadeira consciência crítica do homem, que lembra a cada um a sua verdade e que reina sobre tudo o que é humano. Só ela alegra os homens, expulsando a tristeza da alma humana. Sem ela, cada homem passaria a ser intolerável aos demais. Nenhum ofício ficou a salvo da língua mordaz da Loucura, mas a crítica mais incisiva foi reservada à Igreja e às práticas de seus membros à época: padres brutos, envolvidos em querelas, dados ao concubinato, pouco instruídos e muito pobres; bispos recrutados na nobreza, que frequentemente dedicavam-se à guerra para proteger seus interesses financeiros, ou que serviam como conselheiros dos príncipes, deixando de visitar as dioceses; e papas adeptos de todas essas práticas pouco religiosas. Em todos os níveis, era frequente a venda de sacramentos e indulgências. Costuma-se atribuir a Erasmo a afirmação de que, nas igrejas da Europa, havia lascas de madeira tidas como originárias da verdadeira cruz de Cristo em quantidade suficiente para construir um

navio, e que, além disso, estavam em adoração, em diferentes pontos da Europa, cinco tíbias do jumento que levara Cristo a Jerusalém, bem como doze crânios de São João Batista. Erasmo, avesso a todas estas práticas, ensina, pela boca da Loucura, que “a perfeição cristã está nos sentimentos, na alma, não nas vestes”. Para ele, a renovação do homem viria do retorno à leitura e ao entendimento dos textos bíblicos e da retomada dos únicos preceitos legados por Cristo: fé e caridade (ou espírito e virtude, como preferiam os epicuristas).É por esta razão que ele despreza a filosofia escolástica, por terdesvanecido o sentido original do Cristianismo, entregando-se a ritos formalistas, como as cerimônias, os jejuns, as privações e as obras meritórias. Ele despreza, também, a sabedoria teológica, que torna os monges aptos à prática dos debates verbais, mas não da fé e nem da caridade. Por tais crenças, Erasmo é, hoje, considerado um dos precursores da Reforma Protestante. Nomeando a Loucura como a autora do texto, Erasmo pôs-se a salvo e não se comprometeu. Se questionado a respeito de seu texto sarcástico e crítico, poderia argumentar que o escrito não era obra sua, mas de “Dona Estultícia”. Afinal, “quem poderá pintar-me com mais fidelidade do que eu mesma?”, pergunta a Loucura. E, ademais, quem poderia toma a sério a Loucura? Entretanto, se ainda houvesse descontentes, poderiam observar “como é bonito e vantajoso ser acusado de loucura”, sentença bem mais branda que a dos que, no texto, são acusados de corrupção e de vícios. Ao atacar o pensamento medieval em suas bases, Erasmo buscava uma eficaz reforma da doutrina cristã. Não possuía, contudo, aquele grão de loucura que ele mesmo achava necessário para fazer o mundo caminhar mais depressa. Preferia atacar o mal de maneira intelectual, dirigindo sua ironia sutil aos mais eruditos. Como verdadeiro humanista e fruto da nova forma de pensamento da época, Erasmo acreditava na capacidade da razão humana de distinguir claramente entre o bem e o mal, colocando no livre arbítrio(a “loucura sábia”) de cada um a fonte do autêntico pensamento religioso e da opção moral. A leitura do “Elogio da Loucura” faz rir em alguns trechos, choca em outros, mas faz refletir em todos. Texto curto, mas instigante, que nos convida a conhecer mais sobre Erasmo de Rotterdam, pensador que nos legou a crença de que, acima de todos os valores, devem estar o homem e sua inteligência livre(e, felizmente, eivada de loucura). 57


Paisagem | Foto do autor.

Depoimento: O Pintor por ele mesmo

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Mauro Ferreira1

CAMPOS DA ARTE

500 anos é o tempo que nos separa da talvez mais prolífica era da produção artística da história, justificando-me antes de uma arrelia contrária; o vigoroso movimento impressionista do século XIX, ou a revolução conceitual da arte contemporânea ante outros, igualmente importantes, não no sentido do valor intrínseco da expressão artística, mas em sua dimensão quantitativa e não qualitativa. Antes de mais, gosto muito de me autodenominar “pintor”, posto que a arte é uma virtude, e toda qualidade e vicissitude são percepções exclusivas do outro, submeto-me assim a essa verdade, sem nenhuma inconformidade pessoal.

BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. 1º volume. Trad. Glória Lúcia Nunes. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1983 OLIVEIRA, Carla Mary S. O BARROCO NA PARAÍBA, Arte, Religião e Conquista. João Pessoa: Ed. Universitária – UFPb, 2003 TIRAPELI, Percival Arte Brasileira- Arte Colonial – Barroco e Rococó do séc. XVI a XVIII, São Paulo: IBEP, 2011 TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao início do século XIX: maneirismo, barroco e rococó. In: ZANINI, Walter (coord. e direção editorial). HISTÓRIA GERAL DA ARTE NO BRASIL, vol. 1, Cap. 3. São Paulo: IMS, Fundação Djalma Guimarães, 1983. VALLADARES, Clarival do Prado. Aspectos da Arte Religiosa no Brasil – Bahia, Pernambuco, Paraíba. Rio de Janeiro: Ed. Spala para Construtora Norberto Odebrecht S.A., 1981.

Jornalista pela Fac. Com. Social Cásper Líbero, mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Univ. Católica de São Paulo- PUC-SP.

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Paisagem | Foto do autor.

Pintura, ainda que figurativa. É em Flandres no século XVI, importante cen-

tro de comercio e finanças da Europa, especificamente na cidade portuária de Antuérpia com uma população beirando 90.000 habitantes (menor que o bairro paulistano do Itaim Bibi) possuía mais de 350 pintores, excluindo-se escultores e gravadores, precisamente 1pintor profissional para cada 257 habitantes! Evidentemente que o mercado não se circunscrevia ao burgo, mas toda multidão de visitantes e viageiros do comércio e finanças. É fácil depreender que “artista” naqueles tempos tinha um significado bem diverso do conceito que temos hoje, seria um homem das artes, um artífice das imagens, em suma, a única forma de registro visual da época. O oficio de pintor era uma profissão muito respeitada e vital para sociedade européia, um trabalho que tinha lá suas dificuldades, posto que além da aptidão natural haveria de ter um amplo conhecimento técnico, como um engenheiro, não fosse assim, as obras deste período não estariam hoje em museus com um estado de conservação e integridade admiráveis! A técnica usada era tão complexa que os artistas atuais 60

tão cheios de comodidades, que deixam os conhecimentos pertinentes a cargo dos engenheiros químicos das fabricas de tintas, dificilmente conseguiriam produzir trabalhos aceitáveis do ponto de vista técnico. A engenhosidade destes artistas permitiu a eles até prever um envelhecimento das pinturas pela acidificação das tintas, usando painéis alcalinos de gesso e cola animal que compensavam essa alteração de PH, que estava longe de ser uma técnica com a colaboração do acaso. O pintor tinha o encargo de registrar a história, as passagens bíblicas e mitológicas, também eternizar as personalidades e nobres de época, alguns com brilhantismo, outros com a técnica. É relevante olharmos para a precificação da obra destes artífices e as regras de mercado eles estavam sujeitos. Leonardo da Vinci referia-se jocosamente ao hábito de pintores que colocavam preços em seus trabalhos pelo volume de ouro e azul. Leonardo referia-se ao azul “Lápis Lázuli” uma pedra preciosa e o ouro em lâminas usado nas dourações, mas a pintura era um pouco mais, “uma cosa intellettuale”, como gostava de dizer. A Pintura no século XVI tinha valoração em grande


São Paulo | Foto do autor. Paisagem | Foto do autor.

monta subjetiva, alem de tamanho e autor, o preço correspondia a quão desejável era a obra, uma subjetividade que encontra eco hoje. A figuração tinha seus encantos, era uma unanimidade a idéia da incorruptibidade do Belo, filosoficamente ligado ao o universo Platônico, onde a beleza refletia a divindade, a verdade. Em minhas elucubrações penso que eu seria um artista que não conseguiu dominar plenamente as suas ferramentas, ainda obsidiado pela perenidade da figuração, uma teimosia onde os elogios têm essencialmente uma similaridade com as surpresas e o enlevo de belas fotos. Um raciocínio naturalmente estóico me deixa alheio aos elogios e críticas sem o que qualquer colega sofre pela superficialidade e uma competição inútil com a fotografia. Vamos lembrar do incensado Brueguel, pintor de Antuerpia crítico ácido da hipocrisia na sociedade da época, apesar do reconhecimento como um genuíno artista, teve a dignidade de sua obra conspurcada, diminuída pelo mercado quando seus quadros foram usados por falsários e revendidos como obras de Hieronymus Bosch, artista que o precedeu e alcançou preços muito altos. Subjetivo e Cruel. Bruguel com certeza se banqueteou com os pincéis no recolhimento do estúdio e vendeu o quadro na plenitude de sua saciedade, o mesmo não podendo ser dito de seus possuidores. Voltando a mim, objeto desta auto apresentação, vou mostrar-lhes junto ao Museu de Arte Sacra de São Paulo um pouco do “pintor Mauro Ferreira”, gosto disso! Por sua vez não gosto de adjetivações como; que perfeição! Parece uma fotografia! Uma curiosidade; pouquíssimas paisagens minhas retratam locais que de fato existem, não sou afeito ao “Plein air”, com as devidas escusas, eu sou um profissional de estúdio, imagino minhas atmosferas, gosto de colorir o sol com minhas cores, mover montanhas e vales, pintar luminosas sujidades! As criticas apressadas me chegam aos montes, principalmente, quando interpreto cenas urbanas, coisas do tipo; Nesta época não existia esse edifício, desconheço a marca daquele carro ou nessa década não existia isso ou aquilo... A verdade é que eu invento placas e produtos dos reclames, prédios que não existem para, mesmo assim, vocês reconhecerem, sentirem familiaridade. Sente-se ao meu lado, experimente esse poder, querer e criar um mundo como você gostaria que ele fosse, sentir saudades do que não foi vivido, onde a luz é moldável e sujeita ao seu humor. Isso é ser pintor, é meu gozo, quanto a eu ser artista, é com você.

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Autorretrato Crucificado | Albuquerque Mendes - Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

O Autorretrato crucificado de Albuquerque Mendes:

Uma leitura sobre a dor de existir

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Paula Freire1

CAMPOS DA ARTE

Vi, pela primeira vez, o “Autorretrato Crucificado”, de Albuquerque Mendes, na exposição, “Do Tirar Polo Natural, Inquérito ao Retrato Português”, no Museu Nacional de Arte Antiga, em julho de 2018. Senti uma espécie de arrepio que nenhumas das suas outras obras, até então, me tinham provocado. Na minha experiência estética, o que senti foi aquilo a que Deleuze chama “um feixe de sensações” e que aquela obra não era mais do que uma “captura de forças” que ali se encontravam expressas.

DELEUZE, Gilles (2011), Francis Bacon Lógica da Sensação, Orpheu Negro, Lisboa. NIETZSCHE, Friederich (1997) O Nascimento da Tragédia e Acerca da Verdade e da Mentira Relógio D’Água Editores, Lisboa. Catálogos Albuquerque Mendes: Confesso (2001) Fundação Serralves / Edições ASA, Porto. Linha do Horizonte (2008) Catálogo de Exposição de 25 artistas portugueses. Realizada em janeiro em 2008, no âmbito das comemorações dos duzentos anos da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil. Edição Ministério da Cultura / Instituto das Artes, Lisboa.

1 Empresária, consultora e professora de Market Research. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas - Universidade de Lisboa. Mestranda em Estética e Estudos Artísticos na Universidade Nova de Lisboa.

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Autorretrato Crucificado | Albuquerque Mendes - Coleção Museu da Farmácia, Lisboa.

como a sua pintura. O seu corpo de artista confunde-se, muitas vezes, com o corpo da própria obra. Desta forma, o que presenciamos no “Autorretrato Crucificado” não é o corpo reconhecível de matriz clássica, um corpo atlético, com proporções perfeitas, um corpo apolíneo, como o dos heróis ou deuses gregos. Assistimos a um desfazer do corpo clássico, que nasce com a modernidade, e que aqui se traduz num corpo doloroso, desvalido, que se humaniza, que parece à beira de se desfazer, ou no limite do desfalecimento, evocando a própria morte. A sua pintura está muito longe das premissas enunciadas por Leon Battista Alberti, no Séc. XV, segundo o qual não deve haver qualquer diferença visual entre uma pintura e ver pela janela o que a pintura mostra. Vem ainda ao encontro do pensamento aristotélico, no sentido em que a arte não é meramente figurativa, mas tem uma forma de abordar o mundo que não se compagina com um modo epistémico de descobrir a natureza das coisas.

Albuquerque Mendes: Autocrucificado Vi, pela primeira vez, o “Autorretrato Crucificado”, de Albuquerque Mendes, na Exposição, Do Tirar Polo Natural, Inquérito ao Retrato Português, no Museu Nacional de Arte Antiga, em julho de 2018. Senti uma espécie de arrepio que nenhumas das suas outras obras, até então, me tinham provocado. Na minha experiência estética, o que senti foi aquilo a que Deleuze chama “um feixe de sensações” e que aquela obra não era mais do que uma “captura de forças” que ali se encontravam expressas. Albuquerque Mendes é um artista plástico português, nascido em Trancoso, em 1953. É um dos raros artistas portugueses que, no início dos anos 70, começou a fazer performance. Sobre ele, escreve, em 2001, João Fernandes, atual diretor artístico do Instituto Moreira Sales: “Figurando nesses festivais [de performance] ao lado de artistas como Beuys, Vostell ou Orlan, ligando as suas prestações a temáticas místicas e simbólicas próximas do Accionisme Vienense, profundamente ritualizadas, (…) mereceram-lhe o reconhecimento (..)“. A performance é, nele, tão importante 64

O “Autorretrato Crucificado” de Albuquerque Mendes, não pretende ser a imagem da imagem de Cristo. Não pertence ao mundo da iconografia religiosa. Pertence a outro mundo, ao mundo da arte, tal como as Caixas de Brillo ou Latas de Sopa Campbell, de Warhol; não pertencem ao mundo das listas de compras on-line, em tempos “covidianos”. A “Autorretrato Crucificado” é uma obra perturbadora, inquietante, no sentido dionisíaco; não é, antes pelo contrário, uma obra serena, racional, elaborada segundo uma lógica apolínea. O apolíneo manifesta-se neste trabalho no equilíbrio proporcionado pela geometrização da cruz e pelo brilho que é dado pela introdução de pontos de luz, através de velas, distribuídas num perfeito equilíbrio formal. A figura, que foi “arrancada à figuração”, vai dar-nos uma “imagem sensação”. O que vemos não é o corpo do artista numa cruz, o que vemos é a “sensação”. A este propósito, Deleuze fala da aprendizagem que obtém através da pintura de Cézanne, transpondo–a para a pintura de Bacon, e que nós encontramos neste “Autorretrato Crucificado”: “O que está pintado dentro do quadro é o corpo, não na medida em que o corpo está representado como um objeto, mas na medida em que é vivido como experienciando um determinada sensação, aquilo a que D. H. Lawrence chamava a “maçanidade da maçã”.


O tema da crucificação em Albuquerque Mendes Tal como em Francis Bacon, o tema da Crucificação não está necessariamente ligado a um tema religioso (embora com ele possa ser relacionado). Bacon considera o tema da Crucificação como uma poderosa imagem da qual se pode extrair toda a classe de emoções. Daí, ter recorrido a esse tema com muita frequência. Nesta obra, o artista arranca a figura ao domínio do figurativo. O sangue e as feridas que vemos não é o sangue de Cristo Crucificado, mas um sangue que sai de um corpo em sofrimento. As figuras são libertadas do seu papel representativo. Não é a história de Cristo, do Filho de Deus, que veio à terra para salvar o homem, que morre na cruz e ressuscita para voltar ao Reino dos Céus. A autorrepresentação cruxificada, recorrente na obra de Albuquerque Mendes, trata do sujeito e da sua crise, mas também evoca a pintura como um corpo despedaçado e agonizante. O que nos dá este “eu Crucificado“ é uma descida até ao infra inconsciente. É um “objeto” que provoca um bloco de sensações e que ao contactarmos com ele, através da experiência estética, nos deixamos afetar. O que o artista pretende é tornar sensível a ideia de dor e de sofrimento humano, na medida em que torna sensível o que não pode ser expresso num conceito. O que é a dor? O que é o sofrimento? E a angústia? O que esta pintura permite é que cada um de nós sinta, em cada momento, uma desorganização do corpo. A força desta pintura tem a capacidade de intervir diretamente no sistema nervoso sem passar pela mediação do racional. Não precisamos processar informação sobre a história de Cristo ou sobre as vivências do artista para experienciarmos uma sensação de sofrimento ao contactarmos com a obra. Os autorretratos crucificados de Albuquerque Mendes são um tema recorrente, da maior relevância no conjunto e para a compreensão da sua obra. Muitos deles foram expostos no Brasil quer em exposições individuais, como a Exposição Céus, em 1996, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, como em exposições coletivas, onde se destaca “Da Cartografia do Poder aos Itinerários do Saber”, na Oca do Ibirapuera, organizada pelo Museu Afro Brasil, em 2014. 65


CAMPOS DA ARTE

Em Foco: Nossa Senhora da Conceição Marcos Horácio Gomes Dias

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1 Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é professor e curador de exposições do Museu de Arte Sacra.

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Imagem - Acervo do Museu

ossa Senhora da Conceição ou Imaculada Conceição. Século XVIII. Imagem de autoria anônima. Essa devoção foi muito difundida após o Concílio de Trento, pois foi, justamente, um dos dogmas mais atacados pelos protestantes. O culto a Nossa Senhora da Conceição foi oficializado, em Portugal, por D. João IV, em 1646. Desde então, torna-se a padroeira do reino e seus cultos tornam-se atos oficiais e obrigatórios.Seu culto foi difundido no Brasil, principalmente, pelos franciscanos, que sempre se apegaram ao preceito da Imaculada Concepção. Essa invocação foi uma das mais importantes na colônia portuguesa, pois foram eleitos diversos templos e nomes de vilas em seu nome. A mulher do Apocalipse contribuiu com os elementos astrais da representação da Imaculada.


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Sandro Botticelli | A Primavera, Galleria degli Uffizi, Florença, Itália.

Das Danças Macabras à Lost Generation

Uma crônica otimista

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Hugo J. Allen 1

CAMPOS DA ARTE

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1 Licenciado em economia pela Universidade de Coimbra e pรณs-graduado em economia europeia pela mesma universidade.

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Detalhe - Escola de Atenas | Rafael Sanzio, Stanza della Segnatura, Vaticano, Itália.

Que há dias em que é preferível não se sair da

camaé o que terádepreendidoNedeljko Cabrinovic. Azar número um –a bomba que tinha por destino a primeira viatura do cortejo, ricocheta e acaba por explodir sem atingir o alvo pretendido provocando,sim,duas dezenas de feridos e uma comoção generalizada que colocaum ponto finalàquela atabalhoada tentativade regicídio. Azar número dois – a pílula de cianetoque era suposta rematar a carreira do frustrado terroristaem grande final dramático,ou seria de contrafacção ou teria por certo a data expirada,que não o tivesse misericordiosamente levado uma tuberculose dois anos depois sabe Deus quantos mais teria ainda durado. Azar número três –ir por esses dias o rioMiljaka para onde se atirou, já desconfiado da eficácia duvidosa do cianeto, seco como o Atacama e por muita que seja a determinação nunca foiproezasimples conseguir alguém afogar¬-se em dez centímetros de água. Estivessempois nas mãos de Nedeljko Cabrinovic os destinos do mundo ainda a 70

Primeira Guerra Mundial estaria hoje por ocorrer. Mas não estavam, que o destino dá voltas de cão. Quis a fortuna (ou a falta dela)que naquele dia, horas após os trabalhos de Cabrinovic, o motorista do Arquiduque Francisco Fernando tenha cortado à esquerda quando se esperavadele que virasse à direitae que,na diligência de fazer marcha-atrás, o motor da viaturase tenha ido abaixoprecisamente junto ao café onde Gavrilo Princip, um dos companheiros do malfadado Cabrinovic, se refugiara para afogar as mágoas dos desaires damanhã.Este, sem acreditar nas dádivas que a sorte lhe oferecia, não se fez rogado e disparou os tiros que mudaram a história do século XX. Quando o planeta acordou do pesadelo não se reconheceue condoeu-sepor fim dosvinte milhões de almas que terão sucumbido pelo caminho emvão. A expressão é comummente atribuída a Gertrude Stein que reza a lenda a terá ouvido da boca dum mecânico – Lost Generation. Uma geração atordoada por uma guerra que em quatro


anos transportou o mundo de 1870 a 1940 – um conflitoinauguradoem uniformes de gala ao som de música inspiradora, paradas militarese infantarias de baioneta em punho e que culminariaem poucos anosnahedionda chacina que uma nova metodologia militar de tanques, aviação e armas químicasnão só tornou possível como deixou escancaradasas portas para a outra guerra mundial que se havia de seguir. Esta geração perdida que vivenciauma barbárie de morte sem nexode tal dimensãonão se saberámais rever nos valores tradicionais da coragem, do patriotismo e do optimismo que lhe tinham sido vendidos. O que se segue é uma época de excessos, hedonismo, decadência, impotência e niilismo que a escrita de F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingwaye doutros colocam a nu. É provável que a obra mais emblemáticana qual estes tópicos se encontram escrutinados e que mais popularizou o conceito da Lost Generationseja o romance que Hemingway publicou em 1926 – The Sun Also Rises.Ainda assim, longe de se deixar cair num retrato a preto e branco duma geração sem aspirações nem ilusões ou num vórtex de pessimismo, o livro expõe o estoicismo e a força moral dum grupo de indivíduos que, não obstante corrompidos pelas experiências da guerra, não eram de todo destituídos de futuro. Não por acaso o título, tomado por empréstimo ao livro de Eclesiastes, que realça esta fénix inerente ànatureza humana que não deixa a cada momento de insistirem renascer com a mesma infalibilidade com que o sol se levanta no horizonte a cada dia. Ou segundo o próprio, nem era tanto acerca duma geração perdida, mas mais sobre a terra que permanece para sempre. Foi assim após a Primeira Guerra Mundial como foi assim de cada vez que os Cavaleiros do Apocalipse foram deixados à solta. Na sua mais recente encarnação estes vieram reavivar a memória dos distraídos que guerra, fome e peste não são graças concedidas apenas aos desafortunados do mundo mas que aparecem também com frequência pelo hemisfério norte. De momento ninguém sabe nem pode prever quais as consequências a longo prazo da recente pandemia de Covid-19. Dependendo da duração, da mortalidade, da descoberta ou não

duma vacina ou de tratamento eficazes, o impacto terá uma maior ou menor dimensão, mas que o sol ciclicamente se erguerá, e com ele a fénix humana,é um dado que a história tem atestado. Algumas das imagenssurreais do início da recente pandemia na Europa exibiama cidade Veneza como uma modernacidadefantasma depurada das hordas de turistas que tendem a caracteriza-la. Veneza que não é de todo alheia aos efeitos de pestes e pragas, que perdeu 60% da sua populaçãonos anos que se seguiram ao início da Peste Negra no Velho Continente em 1347 e que ofereceu a mundo a palavra quarantena (derivada do período de isolamento requerido às tripulação dos navios durante as épocas de epidemia nos séculos XIV e XV)serve para todos os efeitos como metáfora ajustada ao papel insubmisso da arte face ao morticínio das frequentes vagas de peste que assolaram Itália e o resto da Europa até ao final do século XVII ‒ precisamente aí pintou Tintoretto as suas obras mais emblemáticas na Scuola Grande di San Rocco, dedicada ao santo protector contra a peste. Quatro séculos com o espectro da morte a farejar com uma assiduidade tenebrosa que não obstaram ao florescimento do Renascimento e do barroco. Não é grande surpresa constatar que a arte funciona num primeiro registo como cronista dos acontecimentos. A Peste Negra gerou um filão de obras onde a orgia do mórbido impera a cada momento – com danças macabras nas quais a morte conduz os diferentes estratos da sociedade ao seu destino inexorável e universal. Mas num segundo registo serve também como paleta de novas possibilidades. Boccaccio e Petrarca tanto descreveram a agonia da condição humana abreviada pela peste como o prazer de estar vivo e os encantos da Natureza. E Botticelli foca-se mais em nascimentos e primaveras que invernos e enterros. Poucas pessoas observam hoje o tecto da Capela Sistina ou A Salas de Rafel ou a Lição de Anatomia de Rembrandt ou as telas de Ticiano conscientes de que a ameaça do contágio assombrou a vida dos homens que deram vida a essas obras. O que sobrou deles foi mais importante. De igual modo os escritores da Lost Generation perceberam que nenhuma geração está inteiramente perdida e que o melhor dela sobrevive para a posterioridade. 71


Marino Del Favero entre Brasil e Itália

Capa do Catálogo Ilustrado de 1904.

O pioneirismo na fabricação de arte sacra na capital paulista da Belle Époque

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Cristiana Antunes Cavaterra 1

CAMPOS DA ARTE

Após anos me deparando com imagens sacras e altares de cores pastéis e tipologia intrigantes (nem barroco, nem rococó, nem neoclássico) colocadas em igrejas ecléticas paulistas e mineiras, finalmente em 2015 pude “decifrar o enigma”! De quem seriam aquelas obras? Como se espalharam por aqui? E o mais intrigante, como poderiam existir tantas obras com aquelas características e quem seria o artista que conseguiria produzir tanto assim?

CAVATERRA, Cristiana Antunes. Os Catálogos Ilustrados: devoção, iconografia e comercialização de obras sacras na Belle Époque brasileira. Mariana, MG, 2017. Monografia. Faculdade Arquidicosesana de Mariana Dom Luciano Mendes. 71 p. CAVATERRA, Cristiana Antunes. Marino Del Favero, escultor e entalhador (1864 - 1943). São Paulo, 2015. Dissertação – Universida Estadual Paulista - Instituto de Artes. 499 p. CAVATERRA, Cristiana Antunes. Marino Del Favero, un “quasisconosciuto” scultorecadorino ativo tra Italia e Brasile: prime indagine. Archivio Storico di Belluno Feltre e Cadore, anno LXXXVII n. 359 luglio-dicembre 2016 – pp. 61-78. Il Brasile i gli Italiani: Pubblicazione dei “Fanfulla” Firenze: R. Bemporad&figlio, 1906. 1187 p. Marino del Favero & Irmão - Esculptor e Entalhador em madeira. [São Paulo], 1904. 14 p. Circular Publicitária. Marino del Favero - Estabelecimento de esculptura e entalho. [São Paulo], 1911. 3 p. Circular Publicitária. PICCAROLO, Antônio.; FINOCCHI, Lino. O Desenvolvimento Industrial de S. Paulo Através da Primeira Exposição Municipal. São Paulo: Pocai &Comp, 1918.

1 Mestre em Artes – IA-UNESP; Esp. História da Arte Sacra – FAM Conservadora e Restauradora de Obras de Arte – FAOP Contato: cavaterra.cris@gmail.com

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Maria Madalena de Marino del Favero - Santuário da Penha - Foto: Acervo da autora.

Descendente de uma família importante e de alto nível cultural, tem em sua ascendência paterna três religiosos, o tio materno escultor, e sua foi família financiadora da pavimentação da Chiesadella Madonna dellaDifesa em San VitodiCadore. Em 1877, aos treze anos de idade, Marino Del Favero parte para Veneza para estudar na Accademiadi Belle Arti e trabalhar com seu tio Giovanni Battista De Lotto em seu recém aberto atelier de escultura e entalhe, após este ter trabalhado por 20 anos junto do escultor Valentino PancieraBesarel. Em 1891, De Lotto fecha o estabelecimento e Marino Del Favero retorna com o tio para o Cadore, onde permanece por cerca de um ano, produzindo algumas obras escultóricas.

No final do século XIX, a produção artística sacra na

capital paulista torna-se escassa, poucos ou quase nulos são os nomes conhecidos de artistas sacros ainda em atividade na região.Por outro lado, a crescente imigração proporciona a vinda de muitos artistas europeus que irão fixar residência em São Paulo deixando uma vasta produção artística como legado. Um destes artistas é o italiano Marino Del Favero. Filho de Matteo Del Favero e Orsola De Lottodi G. Antonio, ambos sanviteses, o escultor e entalhador Marino Stefano Del FaveroGorio nasce em 3 de março de 1864 em San VitodiCadore, no norte da Itália. Teve dois irmãos, Anna Maria e Ermagora Giuseppe Fortunato e casou-se em 1887, sempre em San VitodiCadore, com Anna Maria Pordon “Pioaneto”, (San VitodiCadore, 1867 - São Paulo, 2/12/1943). Da união, nasceram quatro filhos, Stella IginiaOrsola, CleliaMaddalena, Guido Amedeo Matteo e Maria Flora, única nascida no Brasil. Fato curioso e pouco conhecido é que a mãe de Marino Del Favero, Orsola De Lotto, era irmã do escultor Giovanni Battista De Lotto “Minoto” (San VitodiCadore, 25/02/1841- 12/03/1924), reconhecido em todo o território italiano e seu futuro mestre. 74

No final de 1892, em data ainda imprecisa, Marino Del Favero aos 28 anos de idade chega com sua família ao Brasil, onde no ano seguinte funda o “Estabelecimento de Esculptura e Entalho” no centro da cidade de São Paulo, inicialmente na Rua Barão de Itapetininga, no antigo número 5, e após o ano de1904, na Rua 7 de Abril, no antigo número 106, onde o artista constrói um pequeno edifício para sua moradia nos andares superiores e oficinas com pequena loja no andar térreo, como mostra uma fotografia publicada no livro Il Brasile e gliItaliani de 1906 à pág. 1043,onde o artista expunha não somente seus característicos retábulos de madeira dourada e marmorizada e imagens sacras de tamanhos diversos, crucificados, sacrários e Cristo Morto, mobiliário civil e toda sorte de esculturas e entalhes (Fig. 1). Outras fotografias publicadas na Revista Santa Cruz em 1904, revelam as oficinas, depósitos e sala de exposição do estabelecimento de Marino Del Favero, mostrando além de suas obras, funcionários, o próprio artista e o modo de produção de suas obras. Durante os cinquenta anos do funcionamento de seu estabelecimento, Marino Del Favero publicou anúncios em jornais, revistas e almanaques, e utilizava papéis timbrados e decorados para seus orçamentos e recibos. Fonte de muitas ilustrações relativas aos projetos e as obras do estabelecimento de Marino Del Favero é o raro, e talvez único, exemplar de um catálogo comercial ilustrado, encontrado em um arquivo privado no Cadore, Itália, datado de 1904 (Fig. 2). Com 14 páginas ricas em imagens e informações fornecidas pelo próprio artista, o catálogo descreve bem o estilo e a tipologia


Sala de exposição permanente.

Marino del Favero e equipe em 1911.

das suas obras, o relacionamento do artista com seus clientes, o funcionamento do estabelecimento, os serviços oferecidos e preços praticados, além de certificados assinados por seus clientes sacerdotes e bispos. Outra preciosa fonte de imagens e informações que permitiram individualizar as obras no Brasil e compreender a filosofia de trabalho do escultor-entalhador, são as duas únicas páginas de um outro catálogo ilustrado, datado de 1911, também este raro e talvez único no Brasil, proveniente de uma coleção privada de Minas Gerais. Artista e empresário O Estabelecimento S. Marco, ou Officina, ou Atelier ou Casa Marino Del Favero, nomes pelos quais a empresa era conhecida, foi um premiado e reconhecido estabelecimento de onde saíram obras de características únicas, de notável cura técnica e artística. Recebeu um vasto elenco de certificados expedidos por sacerdotes e bispos para os quais trabalhou, tendo participado de ao menos 18 mostras, nacionais e internacionais, sendo premiado em muitas.

Em 1917, na ocasião de sua participação na Exposição Industrial de 1917, Piccarolo e Finocchi, afirmam que o estabelecimento de Marino Del Favero contava com 25 empregados, em sua maioria imigrantes italianos, “entre os quaes há especialistas de esculptura em madeira, pintores, douradores, decoradores, etc.” (PICCAROLO; FINOCCHI, 1918, p.256). Entre estes empregados, são conhecidos os nomes de Sciannamea (Itália - ?), Enrico Santorsola (Nápoles, 25/03/1877 - ?), Guido Ducci (Itália, 1865 – São Paulo, 1902), Francisco Ferreira, o “Chico Santeiro” (Cunha 03/12/1893 - Aparecida, 17/11/1980). Alguns destes, não identificados, aparecem em uma fotografia publicada no Catálogo Ilustrado de 1911 (Fig. 3). Escultor-entalhador, Marino Del Favero transformou sua obra não só em um trabalho artístico, mas também em uma empresa de sucesso, onde outros artistas podiam trabalhar e aprender, servindo ao novo e crescente mercado de Arte Sacra no Estado de São Paulo e outras regiões brasileiras, com a qualidade e peculiaridades subjetivas dignas dos artistas criadores. Em um período onde a industrialização começa a 75


crescer na cidade de São Paulo e conseqüentemente a qualidade das obras poderia ser prejudicada pela quantidade de peças a serem produzidas em escala industrial, o empresário parece ter sido cauteloso em manter a qualidade e unidade estética e estilística de suas obras, fato pelo qual nunca deixou de ser procurado em toda a existência de seu empreendimento. Suas obras, mesmo aquelas mais simplificadas e de modelos repetitivos, primam pela qualidade escultural e pictórica. É visível que mesmo nas obras que não saíram das mãos do escultor-entalhador, mas sim de seus funcionários, existe um padrão de qualidade e estética peculiares. São inúmeras as igrejas e dioceses que adquiriram seus retábulos, mobiliário sacro, e, em maior número, suas imagens sacras; mas é certo que um grande número de devotos particulares adquiria suas imagens de qualidade superior para adornar oratórios e salas de visita. Mesmo após ter imigrado para o Brasil, Marino Del Favero continuou mantendo contato pessoal e laborativo em sua terra natal, visto que participara de Exposições Internacionais na Itália mesmo após sua mudança para o Brasil. A qualidade de suas obras de arte e seu desempenho como empresário de sucesso são atestadas pela sua participação em ao menos dezoito exposições das quais tem-se conhecimento, sendo premiado em muitas delas. Dentre estas, uma foi realizada em uma residência particular, duas foram realizadas em vitrines de estabelecimentos comerciais, um concurso público, nove exposições nacionais oficiais e cinco exposições internacionais. O nome de Marino Del Favero aparece em várias listagens de trens noturnos no trajeto Rio de Janeiro - São Paulo publicados em periódicos de época, o que faz supor que o escultor transportava e acompanhava suas obras aos locais de destino. São inúmeras as esculturas em madeira, carton-piérre e gesso policromados executados por Marino Del Favero e sua oficina. Algumas ocupam o camarim de seus retábulos e outras estão espalhadas por igrejas, capelas e oratórios particulares por todo o Brasil. Notas em jornais da época mostram que Marino Del Favero executava imagens sacras de grande porte dos padroeiros de igrejas, e costumava participar da missa de inauguração e da entrega de suas obras, sendo que algumas destasele oferecia em doação às igrejas. São 76

imagens com características marcantes, e devido à quantidade e laborabilidade dos materiais empregados nestas obras, é possível afirmar que Marino Del Favero encarregava-se do risco e realização das imagens mais importantes, maiores e com detalhamento estrutural e proporções humanas superiores, além de qualidade pictórica superior às imagens menores, executadas geralmente em gesso ou carton-piérre, materiais mais econômicos e tecnologia de produção mais simples, possivelmente moldadas a partir de matrizes do escultor e executadas por seus funcionários, e por estes motivos, destinadas ao comércio por preços mais acessíveis. As fotos históricas da Sala de Exposições Permanentes das oficinas de Marino Del Favero mostram, ainda, que o empreendimento do escultor possuía um acervo bastante variado de imagens, retábulos e sacrários para mostruário e “pronta-entrega” aos clientes. Uma vida italiana no Brasil A fachada da residência e oficina de Marino Del Favero ainda existe à Rua 7 de Abril, no atual número 356. No local, atualmente funciona uma galeria de lojas de brinquedos antigos no térreo, e nos quatro andares superiores funciona um escritório de advocacia, sendo o último andar uma construção recente. Vivera até o dia 23 de junho de 1943 em sua residência, nos pavimentos superiores de suas oficinas à Rua 7 de Abril, 356, aos 79 anos de idade, depois de 50 anos ininterruptos de atividade artística e comercial no Brasil. Diferentemente de muitos artistas italianos que permaneceram no Brasil por um breve período de tempo, Marino Del Favero permanece por toda sua vida, deixando além de muitos descendentes um imenso patrimônio artístico constituído por altares, imagens sacras, via crucis e mobiliário religioso, encontrados nos estados de São Paulo e Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Argentina. Pioneiro na industrialização da arte sacra em São Paulo com a introdução de imagens fundidas em cartón-pierre, Marino Del Favero nunca deixou de ser considerado e considerar-se um verdadeiro artista.


Museu de Arte Sacra de São Paulo Av. Tiradentes, 676 - Luz (Ao lado do Metrô Tiradentes). Estacionamento gratuito: Rua Dr. Jorge Miranda, 43 Visitação: de terça a domingo das 09h às 17h. Sala Presépio Napolitano: das 10h às 11h, e das 14h às 15h. Ingresso: R$ 6,00 (Inteira) | R$ 3,00 (meia entrada nacional) Gratuito aos sábados | Isenções: crianças de até 7 anos, adultos a partir de 60 anos, professores da rede pública, pessoas portadoras de deficiências, membros do ICOM, policiais e militares.

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Figura 1 - Oratório Doméstico | Madeira recortada, entalhada e encerada, século XIX - Acervo Coleção Casagrande

Um breve percurso pela exposição Oratórios Brasileiros

Textos e imagens

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Silveli Maria de Toledo Russo 1

CAMPOS DA ARTE

“Oratórios Brasileiros em Textos e Imagens” é o título da exposição temporária que foi aberta ao público na Sala Multiuso da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da Universidade de São Paulo, no dia 12 de fevereiro de 2020. Promovida pela BBM-USP e a Coleção Casagrande, e sob minha curadoria, a mostra selecionoucinquenta e nove oratórios, produzidos no Brasil, nos séculos XVII e XVIII, e que atualmente se constituem como um importante testemunho da dimensão simbólica e artística aplicada às obras de arte de tradição barroca.

ETZEL, E. Imagens religiosas de São Paulo: apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos, 1971. LEMOS, C. A. C. A imaginária paulista. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. SCHUNK, R. Frei Agostinho de Jesus e as Tradições da imaginária colonial brasileira – séculos XVI - XVII. São Paulo: Unesp, 2014. SILVA-NIGRA, C. M. Os dois escultores frei Agostinho da Piedade – frei Agostinho de Jesus e o arquiteto frei Macário de São João. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1971.

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Professora e Pesquisadora no Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Pensando a exposição Os estudos sobre as representações da arte barroca

no Brasil destacam a pluralidade cênica em torno de sua feitura, no sentido de iluminar programas estilísticos, códigos imagéticos e atributos simbólicos, reiterando a importância da análise das dinâmicas culturais estabelecidas entre a Península Ibérica e o Brasil nos três primeiros séculos, de seus artistas e escolas. A História da Arte é sem dúvida uma disciplina de grande significância para o entendimento de nossa sociedade, de seus usos e costumes e de suas crenças. Nessa perspectiva e com vistas a uma possível articulação entre a Coleção Casagrande e a Brasiliana, a exposição selecionou também um raromaterial textual e iconográfico sobre a história do Brasil, salvaguardado na biblioteca, para ser exposto junto aos oratórios. Entre os materiais disponibilizados pela BBM, estão manuscritos setecentistas e oitocentistas relacionados à Igreja, a exemplo dos Compromissos de Irmandades religiosas , associações religiosas em que se congregavam os leigos do catolicismo colonial e cujo objetivo precípuo era o de promover e perpetuar a devoção a um santo e, até mesmo, exercer a prática assistencial. No âmbito de tais representações discursivas e imagéticas, além dos documentos relacionados à Igreja, julgou-se interessante expor também outras narrativas textuais e iconográficas.Há, portanto,documentos produzidos a partir das observações de renomados memorialistas estrangeiros,em suas vivências no Brasil, que registraram o oratório como um importante aglutinador das práticas da religiosidade. Como exemplo, trago as aquarelas de autoria do desenhista e pintor inglês Henry Chamberlain (1796-1844) e as gravuras/litografias (1839) de Thierry Frères elaboradas com base nos desenhos que o artista francês JeanBaptiste Debret (1768-1848) produziu ao longo de sua permanência no Brasil (1816 a 1831). Os Oratórios na Exposição A exposição aproxima os visitantes das práticas religiosas e da devoção católica na sociedade colonial e abre espaço para uma válida troca de ideias no domínio do patrimônio bibliográfico e do intercâmbio artístico e da interlocução patrimonial acerca dos objetos de cunho

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devocional produzidos no Brasil de outrora. [Fig. 1] Oportunamente, expõe-se os oratórios devocionais que per si representam a expressão de fé ao agregarem os fiéis devotos para as práticas da oração e meditação, com um singular repertório de imagens religiosas, em esculturas e pintura, corroborando o entendimento do universo simbólico da vida cotidiana e dos costumes no interior das moradias na sociedade colonial brasileira. [Fig. 2] O simbolismo que permeia a natureza física desses objetos religiosos e de suas respectivas imagens revigora o caráter espiritual “de lugar” que assinala a presença divina entre os crentes e que enseja a comunicaçãoentre o terreno e o celestial - entre o homem e a divindade. Diante do oratório doméstico, enaltecia-se o santo de devoção e se criava um conjunto de condições materiais para os indivíduos ou grupos familiares praticarem a religiosidade diária no interior de suas moradias. Forçoso lembrar, neste ponto, que no âmbito diário das práticas devocionais,outra modalidade de oratório se faz presente, cujo funcionamento é de caráter provisório e eventual como objetivo de atender aos fiéis que se encontravam em viagem, e possibilitando deste modo fazer celebrar e orar em sítios afastados e despovoados. [Fig. 3 e 4] O jesuíta austríaco Antônio Sepp von Rechegg (16551733), em seu livro de relatos sobre suas experiências vividas em terras sul-americanas, intitulado “Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos”e escrito entre o final do século XVII e início do século XVIII, informa que nos procedimentos de instalação de uma nova redução havia habitualmente a presença de oratórios portáteis que acolhiam imagens religiosas de pequeno e médio porte. O religioso acrescenta que na espera da construção ou conclusão de uma igreja ou capela, tais oratórios comumente elevavam-se a altares, permitindo, desse modo, que os ritos litúrgicos pudessem ser celebrados no transcorrer da fase inicial de implantação de uma nova redução e até mesmo em circunstâncias similares, nos acampamentos temporários ou nas instalações provisórias. É digno de ser observado também outro importante relato do jesuíta Sepp; este,em ocasião da fundação da redução nomeada de São João Batista, em 1697: “Trouxe comigo da Redução de São Miguel o chamado altar portátil, com cálice e demais paramentos: sobre eles cotidianamente ofereço a Deus o santo sacrifício da missa, ajudado por dois indiozinhos com sobrepeliz.” Não se pode esquecer de mencionar que o oratório elevado a altarera acompanhado da pedra d’ara ou pedra


Figura 2 - Oratório Lapinha Aberto | Fonte: Acervo Coleção Casagrande Figura 3 Fig. 5

Fig. 4

sagrada, que, por sua imprescindibilidade, podia ser posta sobre uma mesa ou qualquer outro suporte conveniente durante as celebrações,atingindo a importância de altar;de sagrada mesa em que se oferece a Deus o Sacrifício da Missa. O oratório supracitado integra também o grupo dos oratórios presentes, comumente denominados de “algibeira” ou “balas de cartucheira”, afigurando-secom pequenas dimensões, que variam entre 10 a 25 cm de altura, e acolhemimagens de santos, usualmente entalhadas na superfície interna das peças [Fig 5]. Neste âmbito itinerante, há também os oratórios de esmoler que, circunscritos ao espaço urbano,eram destinados a arrecadar recursos para a construção de templos para associações religiosas ou mesmo prestar auxílio aos que necessitavam da caridade alheia. Sobre o uso e feição dos oratórios portáteis, várias outras descrições puderam ser oportunamente colhidas a partir dos memorialistas estrangeiros, dentre as quais se apresenta uma breve narração do desenhista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), em Viagem Pitoresca através do Brasil (1825-1830). “Ao referir-se aos costumes dos habitantes do país, discorre que: a fim de estender os benefícios da Igreja às fazendas mais longínquas e solitárias, bem como aos escravos que nelas habitam, há padres que, em certas épocas do ano, percorrem o país, carregando um pequeno altar que coloca no lombo do cavalo ou da besta”. É possível perceber toda essa dinâmica ao apreciar os ricos e rarosexemplares de documentos e objetos religiosos que integram a exposição eque se apresentam como testemunhos da experiência diária do sentimento deesperança e fé, providos ditosamente de elementos plásticos que simbolizam essa rica ligação afetiva dos crentes com o sagrado.Por fim, fácil notar que em meio a tradições diversas, a fé na América portuguesa reuniu condições para o programa de manufaturas artísticas cujas característicasviriam a se revelar em manifestações híbridas, típicas da vida ao longo da empresa colonizadora.

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Uma experiência singular:

Sala do Cofre - Museu de Arte Sacra - Foto: Iran Monteiro

Curso de iniciação à peritagem de ourivesaria religiosa no cofre do Museu de Arte Sacra

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OUTROS OLHARES

Gonรงalo de Vasconcelos e Sousa1

1 Universidade Catรณlica Portuguesa. Escola das Artes. Professor catedrรกtico, investigador integrado do CITAR (EA-UCP).

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Ao longo dos últimos vinte anos temos vindo a lecio-

nar dezenas de cursos livres em Portugal e no Brasil sobre temas relacionados com artes decorativas, em especial sobre a história da prataria e da Joalharia. Em muito poucas ocasiões, no entanto, nos foi possível ministrar cursos sobre matérias relacionadas com uma introdução à peritagem de ambas as áreas, tendo por base os acervos de peças de instituições museológicas . Os objetivos destas últimas formações centraram-se num programa dividido em duas partes: numa primeira fase procedemos à lecionação teórica de algumas questões terminológicas, técnicas e de nomenclatura; numa segunda parte, era importante que os frequentadores do curso, munidos de todos os cuidados, e com a supervisão atenta do docente e de técnicos do respectivo museu, pudessem verificar na prática alguns dos ensinamentos ministrados, através do manuseio dos objetos, o que se veio a concretizar. Em Portugal, tal veio a suceder na Fundação Medeiros e Almeida, em Lisboa (prataria e joalheria), e no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto (prataria e joalheria). No Brasil, decorreram no Museu Costa Pinto, em Salvador (prataria), e na Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, com base no acervo do núcleo museológico aí existente (prataria e joalharia). Um outro curso sucedeu no Museu de Arte Sacra de São Paulo em maio de 2016. Esta formação intitulou-se “Iniciação à peritagem de ourivesaria religiosa”, obrigando a criteriosas medidas de segurança, que foram estritamente seguidas. As sessões teóricas tiveram lugar, como habitualmente, no anexo do museu destinado a formações e cursos livres, tendo as sessões práticas acontecido no interior do respectivo cofre, uma experiência singular que dá o mote a este breve artigo. Em virtude do seu número, os participantes foram divididos, na parte prática, em duas turmas, sendo o balanço final de grande entusiasmo pela experiência única de lidar, aprender e contactar com peças históricas. No final de cada sessão os exemplares eram cuidadosamente contados e verificados, sendo recolocados nas vitrines do museu. Todo este processo, para além do acompanhamento das técnicas do museu, teve a vigilância da respectiva equipe de segurança. No processo de manuseio das peças foi solicitado aos participantes o uso de luvas, por questões de boas 84

práticas de conservação, mas também o uso de lupa para melhor observação de pormenores, designadamente das punções existentes em alguns deles. Aos participantes foram disponibilizados documentos com a indicação das marcas de ensaiador e de ourives , o que constituiu um dos desafios mais interessantes desta formação. Iniciemos pelas peças de joalheria observadas, em que nos detivemos na identificação do processo de execução de algumas joias dos séculos XVIII e XIX, designadamente ornamentos em forma de flores (figs. 1 e 2), pendentes, brincos, com gemas brasileiras, mas, em algumas peças, segundo modelos europeus (fig. 3). Noutras peças, e quando para tal existiam condições, pudemos verificar as distintas partes que as compunham, como no caso dos breves de ouro (figs. 4 e 5) ou outros pormenores técnicos, como a soldagem, nomeadamente numa Nossa Senhora da Conceição oitocentista (fig. 6). Nos objetos de prataria, e para além de questões técnicas e estilísticas, os participantes puderam igualmente averiguar tipologias e épocas (figs. 7-8), bem como compreender pormenores técnicos (fig. 9), nomeadamente o modo de articulação das diferentes partes de uma peça. A parte mais relevante foi, contudo, a possibilidade de descobrir e identificar as punções de ensaiador e de ourives em várias tipologias, sendo de referir marcas portuguesas e diversas brasileiras, designadamente do Rio de Janeiro dos séculos XVIII (fig. 10) e XIX (fig. 11). Por outro lado, procedeu-se ao reconhecimento de elementos ornamentais, designadamente do Barroco, Rococó (fig. 12) e Neoclássico, evidenciados em determinados exemplares analisados, para além de características do trabalho argênteo do Brasil império. Para além de constituírem experiências de uma grande utilidade pela ligação dos públicos às peças das instituições museológicas, estes cursos, organizados ocasionalmente e com os devidos cuidados, possibilitam uma mais-valia para o estudo dos próprios acervos. Neste caso particular, representou também uma excelente oportunidade para despertar o interesse pelo estudo da prataria histórica brasileira, que possui, no acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, excelentes testemunhos de várias épocas históricas.


Fig. 1

Fig. 2

Fig. 3

Fig. 4

Fig. 5

Fig. 6

Fig. 7

Fig. 8

Fig. 9

Fig. 10

Fig. 11

Fig. 12

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Estudo de Velรกsquez Final - Foto: Acervo da Autora

Como se fazem as cores?

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Silvana Borges 1

OUTROS OLHARES

Este artigo aborda os aspectos teóricosda construção obra de arteno cursoprático ministrado no Museu de Arte Sacra de São Paulo sobre a metodologia da pintura barroca em óleo sobre tela sob o enfoque dos antigos manuais e tratados de pintura que mantiveram registrados o processo utilizado pelos pintores na produção das cores.

AFONSO, Luis Urbano (ed.). The Materials of the Image: As Matérias da Imagem. Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Universidade de Lisboa, 2010. BAILÃO, Ana.As técnicas de reintegração cromática na pintura: revisão historiográfica. Revista Ge-conservación no.2, 2011, pp. 45-63, ISSN:1989-8568. BARRETT, Sylvana &STULIK, Dusan C. An Integrated Approach for the Study of Painting Techniques, in Historical painting techniques, materials, and studio practice, edited by Wallert A. et all. USA: The Getty Conservation Institute, 1996, pp.6-11 FRASER, Tom &BANKS, Adam. O guia Completo da Cor. São Paulo: Editora SENAC, 2007. GARIFF, David. Os pintores mais influentes do mundo e os artistas que eles inspiraram. São Paulo: Girassol, 2008.

1 Arquiteta especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais, membro doInternational Council of Museums– ICOMe pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP. Desde 2014 é docente do Museu de Arte Sacra de São Paulo com o projeto “Expressões na Arte Sacra”, uma proposta de estudo iconográfico do acervo museal associado à prática de técnicas artísticas seculares.

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Estudo de Caravaggio - Foto: Acervo da autora.

Os tratados da pintura A escolha da temática do curso “Como se fazem as cores?” faz referência ao “O Livro de Como se Fazem as Cores”. A obra tratade uma compilação de receitas datada do século XV, um texto técnico português escrito durante a Idade Média que abrange a preparação de materiais artísticos (AFONSO, 2010). Dentre os vários tratados de arte que chegaram até a atualidade com especificações sobre a pintura, está uma importante referência: Il Libro dell’Arte escrito em 1390 por Cennino Cennini (1370-1440). Cennino relata que todo artista deve saber que são sete as cores naturais; quatro que são da natureza das terras: preto, vermelho, amarelo e verde; e outras três,que são cores naturais, mas requerem a assistência da arte: branco, azul ultramarino e amarelo nápoles. A assistência da arte se refere a alguns processos alquímicos envolvidos na produção desses pigmentos. Apesar do modo de preparo das cores com óleo de linhaça já ser descrito no século XII por Teófilo, o Presbítero (c.1070-1125) em seu Schedula diversarum artium, foi apenas em meados do século XV que os artistas utilizaram o suporte em tecido para pintura à óleo, com uma tela esticada em um bastidor. Os receituários e as metodologias artísticas continuaram a ser registrados nos manuais de pintura, servindo como referência para artistas da Idade Moderna à Contemporânea. A teoria das cores O filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) em seu tratadoDe Coloribus foi pioneiro em descrever uma teoria da cor, identificando quatro cores: amarelo, vermelho, roxo, verde e azul; correspondentes aos quatro elementos: terra, fogo, vento e água.O autor 88

romano e filósofo Plínio, o Velho (23d.C. - 79d.C.), em sua obra Naturalis Historia, afirmou que o pintor na Grécia Clássica usava apenas quatro cores: preto, branco, vermelho e amarelo. Quanto a utilização da cor pelos romanos, nada menos que vinte e nove pigmentos foram identificados nas ruínas de Pompéia. Apenas em 1666 a cor foi definida enquanto fenômeno físico pela observação de Isaac Newton (1643-1727) deque a luz branca era composta por todas as cores do arco-íris e podia ser identificada e ordenada, utilizando pela primeira vez a palavra “espectro” para a matriz de cores produzida por um prisma de vidro.A cor como fenômeno físico é percebida pelo nosso cérebro ao identificar os sinais vindos da nossa visão, resultantes da reemissão da luz refletida pelos objetos, a teoria das cores basicamente trabalha as relações entre cor e luz. Denomina-se a cor-luz, o sistema aditivo de cor baseado na chamada luz visível,a cor é vista e percebida ao ter seu comprimento de onda refletido pelos objetos. Na pintura se visualizam as cores no sistema subtrativo, baseado em pigmentos, a cor-pigmento refere-se a substância usada para imitaro fenômeno físico da cor-luzobservado na natureza. “A razão para a diferença é que, quando vemos as cores de uma pintura, não estamos olhando para uma luz emitida naqueles comprimentos de onda, mas para uma luz refletida pela superfície”(FRASER&BANKS, 2007, p.26). Ou seja, o que se enxerga na natureza, nas cores dos objetos, nada mais é que a cor-luz refletida, e o que os artistas realizam na pintura, é simular a cor-luz através do uso da cor-pigmento com a sobreposição ou justaposição das camadas de tinta, onde as infinitas possibilidades de misturas entre as cores foi sempre um desafio. A construção da pintura à óleo A construção da pintura por sobreposição de camadas transparentes de cor preserva o matiz, intensidade, brilho, luminosidade e saturação das cores puras; é como realizar a sobreposição de vidros coloridos, que resulta numa mistura óptica e não física da cor, e cuja percepção visual é muito distinta. Tal resultado só foi possível aos artistas com o surgimento da técnica de pintura à óleo, um veículotransparente que criava uma ilusão de naturalismo e profundidade muito maior que as técnicas anteriores. Uma pintura é composta de elementos que podem ser separados para estudo, sendo possível isolar e definir qualidades únicas e estabelecer marcadores para o estudo da técnica de um artista. É a observação desses


marcadores que fornece a chave para a provável construção de efeitos visuais de umapintura (BARRETT & STULIK, 1996). Os marcadores observados nas obras escolhidas para o curso, realizadas entre os séculos XVI e XVIII,são o underpainting, uma camada de subpintura de definição dos valores tonais, e a sua base de imprimação colorida. É interessante perceber como a predominância da cor de base confere uma unidade visual dos estratos da pintura. Em pinturas do período barroco é possível observar essacor baseexposta em algumas regiões da obra, oque contribui na composição e na percepção da cor. O campo da conservação e restauração de obras de arte tem considerado essa mesma dinâmica de construção de camadas de pintura na reintegração das lacunas de perda pictórica. O processo é denominado como “continuidade de estrutura” e “baseia-se na reconstrução estratigráfica da obra, isto é, seguir a mesma sucessão de estratos que os da obra a intervir” (Philippot e Philippot, 1960 apud BAILÃO, 2011, p.48). A proposta do curso é produzir as cores pela reconstrução desses estratos da pintura, em obras cujos artistas exploraramessa característica, que pode ser observada em imagens de alta resolução da obra original, tanto sob o aspecto ópticoda sobreposição de camadas de cores transparentes, como das áreas de subpintura expostas. Essa metodologia de construção da pintura à óleofoi iniciada pelos artistas da Escola Flamenga, e aprimorada pela Escola Veneziana de pintura, com destaque para a técnica pioneira de Ticiano(c.1473/90 – 1576), referido como o fundador da pintura moderna. Ticiano iniciava as suas obras colocando uma camada base de uma cor normalmente acastanhada, que servia de fundo para a pintura construída com transparências, chamadasde velaturas de cor, sua inovação foi a sobreposição de impastos e do frottage, ao criar texturas com o arrastar do pincel. Muitos pintores barrocos se inspiraram no senso de coloração de Ticiano, e sua obra teve grande influência na pintura de Velázquez (1599-1660), que ao estudar a paleta do mestre veneziano declarou que o branco, vermelho e preto, eram todas as cores que um pintor precisava. Essas cores foram utilizadas na realização do estudo de um detalhe da pintura “Rokeby Venus” (1647), cujo processo foi exemplificado durante o curso.“As formas na pintura de Velázquez parecem incrivelmente detalhadas e realistas, mas eram muitas vezes compostas por rápidas e espontâneas pinceladas. Vista de perto [...] consiste em nada mais do que uns

poucos traços hábeis de cor” (GARIFF, 2008, p.66). Apesar das variações de estilo e objetivos entre os pintores barrocos, eles exploraram uma variedade impressionante de efeitos visuais baseados no retorno ao naturalismo e no envolvimento com o poder expressivo da luz, cor e movimento. Efeitos estes reproduzidos no estudo realizado no curso de um detalhe da obra “São Jerônimo Escrevendo” realizada por volta de 1605 por Caravaggio (1571-1610), comuma paleta de cores próxima do original. O exercício demonstrou que uma única cor possui um conjunto de características que não podem ser analisadas de forma isolada, e que uma cor pode ser modificada pelas cores circundantes a ela. Razões para o estudo das técnicas artísticas Pesquisadoras do Instituto Getty de Conservação, em Los Angeles, exemplificaram as razões de como o estudo das técnicas artísticas são importantes (BARRETT&STULIK, 1996): - Os historiadores da arte podem usar o conhecimento detalhado da técnica de um artista e sua evolução no desenvolvimento ao longo da carreira no processo de autenticação; ou em estabelecer uma cronologia para as obras conhecidas de um determinado artista; - Artistas de vários períodos históricos foram capazes de alcançar efeitos visuais específicos pelo uso de materiais artísticos especiais ou pela aplicação metódica detécnicas de pintura. Como a documentação detalhada raramente está disponível para auxiliar os artistas de hoje a aprender as etapas necessárias para recriar um determinado efeito visual, eles podemse utilizar de pesquisas para aprenderdominar essas técnicas. - Os conservadores de museus, a fim de garantir uma estratégia de trabalho segura ao planejar um tratamento de conservação ou restauração, contam com informações específicassobre pigmentos, meios de ligação e materiais, incluindo os de restaurações anteriores, resultantes do conhecimento das disposições estruturais desses materiais. Para o público do Museu de Arte Sacra de São Paulo, o estudo de técnicas artísticas seculares no curso prático proposto visapropagar o conhecimento das metodologias e materiais artísticos tradicionaisenvolvidos na construção da obra de arte,valorizar o papel desempenhado pelo espaço museológico como importante centro de educação e pesquisa na ampliação e disseminação do conhecimento, e proporcionar um momento lúdico no desenvolvimento da expressão artística de cada participante. 89


Muito além de trabalhos:

Crianças brincam no chão da escola | Foto da autora.

Repensando a arte na escola.

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Andrea Rodrigues de Oliveira 1

ARTE NA SALA DE AULA

Valorizar a arte e refletir sobre seu ensino nas escolas, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental, à luz do documento que norteia a Educação no país, a Base Nacional Comum Curricular, é a intenção – e o convite – desse artigo.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de Rezende. Arte na educação escolar. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2010. FERRAZ, Maria Heloísa C. de T.; FUSARI, Maria F. de Rezende. Metodologia do ensino de arte: fundamentos e proposições: 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2009.

Instigantemente curiosa. Pedagoga por formação. Professora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental por opção, e professora de arte para realizar um sonho – e semear outros.

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Arte para quê? Porquê? Reviso esse artigo em plena pandemia causada pelo

COVID-19, resguardada em casa. Por companhia, além do trabalho remoto, tenho filmes, livros, músicas, visitas virtuais a museus que nunca visitei e “lives” sobre Da Vinci. Tenho arte como companhia. Ela se impõe de mansinho, sem nem percebermos, e quando nos damos conta, ela se tornou tão necessária quanto o ar que respiramos. Arte é vida! E é por este tipo de vida e sua necessária presença nas escolas, com currículos que a levem a fazer parte da vida de nossas crianças e jovens, levando-os a experiências potencialmente transformadoras, que partilho essa reflexão. Mais do que nunca, é preciso pensar, discutir e conversar sobre arte na escola, valendo-nos do novo documento que norteia a Educação no país, compreendendo as oportunidades oferecidas, a janela aberta. Desde a pré-história, o ser humano faz arte: as pinturas em cavernas, as esculturas e os desenhos que mostram humanos em rodas no que parecem ser danças são o registro da importância da expressão artística desde os tempos remotos. O ser humano e a arte sempre caminharam, se desenvolveram e evoluíram juntos. Você consegue imaginar um mundo sem música, artes visuais, escultura, dança, teatro, literatura, arquitetura, fotografia, cinema ou sem qualquer outro novo tipo de arte que, certamente, surgirá? Difícil imaginar o ser humano vivendo sem arte, até mesmo na realidade mais distópica possível. Isso porque, todos os dias, é possível ver crianças, desde muito pequeninas, procurando se expressar, se comunicar, interagir com outras 92

pessoas e com o mundo através da arte. Elas exploram seus corpos em movimentos dançados, fazem sons ritmados em suas brincadeiras, “rabiscam” paredes, imitam pessoas e personagens, param para ouvir e contar histórias. Elas percebem, desde cedo, que a arte faz parte de suas vidas. E por quê? Porque a arte, a nossa necessidade de expressar e registrar percepções e sentimentos, é imprescindível! A arte transcende o tempo e o espaço, dando-nos a oportunidade de olhar de forma diferente – e até nos conectar com – os tempos e as civilizações que não mais existem, bem como nos permite criar sentidos para o nosso próprio tempo e espaço, explorando diferentes olhares e percepções. Muitas vezes, é a arte – sendo crítica, alerta ou sonho – que nos tira dos cômodos lugares em que nos colocamos para nos fazer pensar, repensar, agir, sonhar. Se a arte é parte tão intrínseca do ser humano, seria lógico supor que estivesse fortemente presente na escola – espaço de socialização, de interação, de construção de conhecimentos, de experimentação, de questionamento, de sonhos –. Infelizmente, esta ainda parece não ser a realidade em todas as escolas. Eu – e provavelmente você, leitor deste artigo – vivenciamos um ensino de Arte que ou era um amontoado de técnicas sem sentido ou a confecção de trabalhos todos iguais, feitos, geralmente, para “enfeitar” a escola em datas festivas ou para enviar às famílias em datas comemorativas. Ou, ainda, a memorização de músicas e ensaios de teatrinhos para apresentações na escolaou para fixar conteúdos das aulas “mais importantes”, como Ciências, Português ou História, por


exemplo. Isso quando a arte não se resumia a ocupar um tempo ocioso com o tal desenho “livre” – como se este pudesse ser “preso” ou “escravo” –. Michelangelo, Da Vinci ou Aleijadinho, por exemplo, apareciam nas aulas de História ou Literatura; Bach, Mozart ou Villa-Lobos, só se as famílias tivessem o hábito de ouvir música erudita. Crescemos conhecendo várias técnicas e procedimentos artísticos, sem saber, no entanto, sobre suas origens (incluindo aqui a sociedade e o contexto histórico), como foram (ou são) usadas e quais artistas se valeram (ou se valem) delas em seus trabalhos e estudos artísticos, por exemplo. Crescemos sem conhecer, pensar ou discutir arte na escola, na Educação Básica. Somos frutos de uma época que via a arte como Educação Artística, como uma atividade educativa, e não como componente curricular “sério”. Essa já não deveria ser mais a realidade do ensino de Arte no Brasil desde 1996, quando esta passou a ser componente curricular obrigatório na Educação Básica.Apesar da conquista de trazer Arte como uma disciplina nos currículos, de termos tido mudanças em maior ou menor intensidade, ainda se pode perceber a pouca valorização que lhe é conferida tanto dentro quanto fora do espaço escolar. E esseacanhadoreconhecimento não acontece pela falta de gostar de arte, mas pelo fato de a grande maioria das pessoas não ter tido a oportunidade de conhecê-la ou por não perceber ouentender a sua importância na formação de nossas crianças e jovens. E é contra essa parca valorização e pela presença plena, absoluta e universal desse saber artístico nas escolas que se deve continuar lutando. A BNCC e o ensino de Arte Em 2017, foi homologada a Base Nacional Comum Curricular(BNCC). Este documento regulamenta as aprendizagens essenciais a serem trabalhadas nas escolas públicas e privadas brasileiras da Educação Infantil e do Ensino Fundamental (o texto do Ensino Médio foi homologado em 2018). Partindo dessa Base, estados, municípios e redes privadas de ensino são obrigados a reconstruir seus currículos. São novos tempos que se abrem à nossa frente, e a escola não pode mais enxergar o processo de

ensino-aprendizagem, o espaço escolar, os conteúdos, os estudantes e os professores como há cem anos. A necessidade de um novo modelo de escola, inclusiva e inovadora, aberta aos novos cenários que se descortinam dia após dia na sociedade, e que assegure as aprendizagens essenciais a todos os estudantes, diminuindo as abissais desigualdades de nossa sociedade, é mais que urgente. Para além de toda crítica que possa ser feita, a BNCC do Ensino Fundamental traz a Arte como componente curricular obrigatório, fazendo parte da área de Linguagens, junto com Língua Portuguesa, Educação Física e Língua Inglesa (nos anos finais do Ensino Fundamental). Por que Arte aparece na área de Linguagens? Como a própria BNCC esclarece, “As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens: verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e, contemporaneamente, digital.Por meio dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas ecom os outros, constituindo-se como sujeitos sociais.” (BNCC, p. 61). O componente curricular Arte, na BNCC do Ensino Fundamental, traz quatro linguagens: Artes Visuais, Música, Dança e Teatro. Cada uma dessas linguagens compõe uma unidade temática. Além delas, como novidade, aparece uma quinta unidade temática: Artes Integradas. Esta tem por objetivo valorizar a integração das quatro linguagens através da realizaçãode projetos de trabalho e do uso de tecnologias, valorizando as matrizes estéticas e culturais e o patrimônio cultural. Todas as unidades temáticas presentes na BNCC têm seus próprios objetos de conhecimento – entendidos como conceitos, conteúdos e processos – que se relacionam às habilidades, às aprendizagens essenciais esperadas. A área de Linguagens tem seis competências específicas da área a serem desenvolvidas nas escolas, e cada uma das linguagens presentes na BNCC tem suas próprias competências.Ao ler as competências específicas de Arte (nove, ao todo) para o Ensino Fundamental, fica claro o propósito de um ensino para além de somente tecnicismos ou livre expressão. O documento propõe, para a elaboração dos novos currículos, um ensino de Arte que a valorize e a reconheça como fenômeno cultural, histórico e social. 93


Crianças brincam no chão da escola | Foto da autora.

É possível, ainda, perceber como efetivamente espera-se que o ensino de Arte aconteça nas escolas através da presença – nas competências específicas deste componente curricular – de palavras e expressões tais comoludicidade, percepção, expressividade, imaginação, autonomia, crítica, autoria, trabalho coletivo e colaborativo. Tais palavras e expressões apontam um caminho no qual o protagonismo dos estudantes, por meio de experiências, vivências, partilha e busca de saberes artísticos, fica evidente. Essas intenções presentes nas competências específicas ficam mais claras ainda ao observarmos alguns objetos 94

de conhecimento presentes nas quatro linguagens (Artes Visuais, Música, Dança e Teatro). Um deles é Contextos e Práticas, que se refere à contextualização das produções artísticas, uma vez que elas acontecem em uma determinada conjuntura histórica, social, cultural e econômica. E, por ser a arte uma atividade humana – portanto, cultural –, ela se dá em interação com a sociedade na qual o artista está inserido. Ao ter contato com uma produção artística devidamente contextualizada, os estudantes têm condições de compreendê-la – e respeitá-la – como fruto de sua época. Elementos da linguagem é outro objeto de conhecimento comum às quatro linguagens. Esse objeto de conhecimento diz respeito aos elementos formais

Crianças brincam no chão da escola | Foto da autora.

Os novos currículos devem propiciar, nas habilidades propostas, situações em que os estudantes possam explorar, conhecer, fruir e analisar produções artísticas e culturais em diferentes sociedades, tempos e espaços, pesquisando e conhecendo diferentes matrizes estéticas e culturais, em especial as que formam a identidade brasileira, valorizando o patrimônio artístico nacional e internacional, material e imaterial, em uma clara intenção de entender – para respeitar – diferentes visões sobre o mundo. É notória, também, a preocupação com a elaboração de currículos que contemplem a relação entre as linguagens da arte em práticas integradas e com uso de novas tecnologias, que podem tanto propiciar essa integração quanto serem recursos eficazes para registro, pesquisa e produção.


constitutivos de cada linguagem artística. São esses elementos, essas partes que, juntas, compõemuma obra de arte, em qualquer uma das linguagens. Conhecendo os elementos de cada linguagem, os estudantes têm como compreender como os artistas os utilizaram em suas produções, ampliando as referências para suas próprias criações. Em comum às quatro linguagens, temos ainda o objeto de conhecimento Processos de Criação que, de modo bastante simplificado, é o caminho que o artista percorre para chegar a uma produção artística, a busca por seu próprio percurso como forma de “resolver” um problema artístico. O ensino de Arte nos anos iniciais Tudo que você leu até agora diz respeito a todo o Ensino Fundamental, do 1º ao 9º ano (estudantes de 6 a 14 anos). Fica mais fácil pensar nessas intenções quando se fala nos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), etapa em que os estudantes já têm condições de fazer abstrações e análises, certo? Errado. Obviamente, as crianças dos Anos Iniciais (1º ao 5º ano) ainda não têm a maturidade necessária para fazer análises de produções artísticas no sentido em que nós, adultos, podemos conceber. Mas tudo tem um início, como em qualquer outra área do conhecimento. Ninguém, por exemplo, interpreta um texto escrito sem saber o que é um texto ou sem aprender a ler. O mesmo acontece em Arte, e, para isso, precisamos deixar de menosprezar as capacidades de nossas crianças e lhes oferecer oportunidades e encaminhamentos adequados às suas faixas etárias para que possam fruir, conhecer, refletir e fazer arte. As crianças dos Anos Iniciais precisam ter contato com produções artísticas de diferentes tempos, espaços e autores para observar, admirar, conhecer, considerar, examinar, valorizar e dialogar com essas obras. Elas precisam conhecer os elementos que compõem essas produções, os diferentes materiais e suportes que podem ser usados na criação, bem como precisam entender que os autores dessas obras, dessas produções artísticas percorreram um caminho para chegar ao produto final, um caminho que é único, mas que traz traços de provocações e interações com outros indivíduos.

Ao proporcionar esse contato, esse aprendizado às crianças dos Anos Iniciais, o ensino de Arte possibilita a ampliação do repertório imagético e estético delas e lhes dá “ferramentas” para lerem,construírem significados e conversaremsobre obras de arte, ultrapassando a barreira do simples julgamento, do gosto ou não gosto. Esse processo também lhes dá oportunidade e condição de descobrirem seus próprios caminhos de expressão, sua poética pessoal. Obviamente, tudo isso deve ser feito de maneira lúdica, como a própria BNCC nos diz, e em interação com os colegas, aprendendo a respeitar e valorizar o percurso de cada um e do grupo. O caminho para um ensino de Arte pleno, alçado ao protagonismo junto aos outros componentes curriculares, que proporcione vivências e experiências significativas nas diferentes linguagens e ultrapasse a prática de uma simples atividade educativa desde os Anos Iniciais, está na BNCC. O que a BNCC traz para nossas crianças é uma oportunidade e tanto, que provavelmente eu e você, leitor, não tivemosdurante o tempo em que estávamos na Educação Básica. Cabe às instituições, na elaboração de seus currículos, contemplar, respeitar e até ampliar o que este documento propõe. Mais do que isso: cabe a nós, professores, rompermos com padrões cristalizados em práticas tradicionais e ousarmos mudar, pois de nada adiantam belas propostas escritas em documentos se estas não se tornam realidade em salas de aula. Já pensou em quão maravilhoso seria ver nossas crianças, de escolas públicas e privadas, crescerem se expressando também através da arte? Vê-las em espaços físicos ou virtuais, destinados ou não à arte, contemplando e conversando, respeitosamente, sobre as produções artísticas e seus autores? Ver aqueles pequenos olhos brilhando – e, às vezes, lacrimejando – ao contemplar, ouvir e/ou sentir uma obra de arte? Um sonho? Talvez. Sou uma sonhadora, caso contrário, não seria educadora. E é pela concretização de sonhos que nós, educadores, trabalhamos todos os dias.

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