11 minute read

RUA DOS SEBOS UMA VIA E MILHARES DE PALAVRAS

AYRTON CRUZ fotos

No Centro de Florianópolis, a Rua João Pinto – e seus arredores – se tornou um espaço característico dos sebos

Advertisement

texto LU ZUÊ fotos MARCO CEZAR, CARLOS BORTOLOTTI, SÉRGIO VIGNES E AYRTON CRUZ

De um lado da Praça XV de Novembro, o gigante poeta Cruz e Sousa abre os olhos atento às movimentações da cidade. O mural Cisne Negro, de Rodrigo Rizo, dá o indício do que encontraremos do outro lado da mesma praça: uma porta aberta aos livros e à leitura. Ali, bem na área central da Capital.

Com o trânsito de veículos limitado após a Rua João Pinto ser transformada em calçadão, a região – num raio de cerca de 200 metros que envolve também as ruas Saldanha Marinho, Vitor Meirelles e Tiradentes –, se tornou um lugar de comércio variado. Entretanto, um segmento em especial chama a atenção de bibliófilos e leitores ocasionais. Trata-se, evidentemente, dos sebos, lojas de livros usados que atraem consumidores tanto pelo preço mais acessível quanto pela quase infinita disponibilidade de gêneros e edições. Claro, também há espaços para revistas, gibis, discos de vinil, CDs e DVDs antigos, pôsteres e afins, mas o foco nos livros (principalmente naqueles de literatura) continua evidente.

Em Florianópolis, o Sebos Ivete é o mais antigo em atividade, atendendo desde 1992 na João Pinto. Se por muitos anos a loja seguiu sendo a única do ramo na rua, a partir da virada do milênio o cenário foi mudando aos poucos. A internet ajudou a popularizar o comércio de livros e objetos usados em geral, o que propiciou um ambiente muito mais convidativo aos empresários. Na João Pinto funcionam quatro sebos, e para um público cativo afeito às palavras impressas, a via ganhou o título informal de Rua dos Sebos.

AYRTON CRUZ foto

RUA JOÃO PINTO EM 2015

foto AYRTON CRUZ

História, cultura e comércio

JOÃO PINTO DA LUZ, FOTO DO BOLETIM COMMERCIAL – REVISTA MENSAL

DE INTERESSES

ECONOMICOS E

COMMERCIAES, EM JULHO DE 1921

BANCO DE IMAGENS DA CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS foto

João Pinto da Luz, o cidadão que dá nome à rua, nasceu na antiga Desterro em 1818. No século XIX foi deputado na Assembleia Legislativa Provincial de Santa Catarina por quatro vezes. Nesta “crônica urbana”, porém, entra como pauta principal o fato de João Pinto também ter sido um comerciante. Ao lado dos irmãos, José Maria da Luz e Jacinto José, apoiou a construção do Mercado Público de Desterro no exato local onde se encontra hoje, na já rebatizada Florianópolis.

A Rua João Pinto se localiza na região Leste do bairro Centro, que passou por uma série de eventos diferentes ao longo dos últimos vinte anos. Indiscutivelmente, o mais traumático para o comércio das redondezas foi a inauguração, em 2003, do Terminal de Integração do Centro (Ticen), que transferiu o imenso fluxo diário de usuários do transporte coletivo para as proximidades do Mercado Público. Assim, o terminal Cidade de Florianópolis ficou com um público extremamente reduzido, o que interferiu diretamente no comércio próximo.

BANCO DE IMAGENS DA CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS foto

CARLOS BORTOLOTTI foto

Após um período de certo abandono, a região Leste voltou aos holofotes com o Projeto Viva a Cidade. Realizado pela Prefeitura de Florianópolis em parceria com a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), que até o início da pandemia o projeto era muito ativo no sentido de de revitalizar e humanizar o Centro Histórico, com ênfase na Praça Fernando Machado e nas ruas Antônio Luz, Nunes Machado, João Pinto, Tiradentes, Travessa Ratclif, Victor Meirelles e Saldanha Marinho. Originalmente com uma dinâmica programação cultural promovida aos sábados – bastante limitada em tempos de restrições à aglomeração de pessoas –, a Rua João Pinto, em especial, assumiu para si um caráter de um corredor das artes, com feiras ao ar livre e lojas destacando seus produtos antigos e usados, que, como um bom livro, estão cheios de histórias para contar.

De onde estiver e a qualquer tempo, Cruz e Sousa sorri satisfeito com aquele pedacinho da cidade que respira cultura, livros e literatura.

BANCO DE IMAGENS DA CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS foto BANCO DE IMAGENS DA CASA DA MEMÓRIA DE FLORIANÓPOLIS foto

Ivete, a pioneira da João Pinto

Quando ainda morava em Blumenau, Ivete Berri foi “estimulada” por um amigo, proprietário de um sebo, a abrir sua própria loja. “Ele conhecia meu amor pelos livros e pela leitura, e disse que me ensinaria tudo, me daria dicas, me mostraria os caminhos. Mas havia uma condição: não poderia ser em Blumenau! Eu teria que escolher outra cidade, e vim para Florianópolis”, lembra a alfarrabista.

Ela conta que depois de pesquisar, não conseguia entender como não existiam sebos na Capital, especialmente naquela região, onde funcionava a Faculdade de Educação (Faed). Encontrou o endereço ideal – uma esquina da Rua João Pinto, próxima à Secretaria de Estado da Educação –, e lá está até hoje, conhecida por todos e cada vez mais apaixonada pelas preciosidades que tem na loja.

E não são poucas. Entre as cerca de 20 mil obras que possui, cita uma réplica de um caderno de anotações de Leonardo da Vinci, um livro sobre Michelangelo, as revistas de fotonovelas que lia na adolescência e muitos gibis, tudo “muito bem organizado”, como faz questão de frisar. “Diferente do que muitas pessoas imaginam, os sebos não são lugares sujos, bagunçados, com amontoados de livros e revistas misturados. Mas o cliente de sebos sabe que precisa garimpar, olhar com calma, procurar”, conta Ivete, que tem clientes que frequentam a loja desde o início. “Alguns eram adolescentes quando começaram a vir, cresceram, casaram, tiveram filhos, e continuam vindo”, comemora Ivete, que tem prazer em trabalhar.

Se no início ela ficou apreensiva com a chegada de novos parceiros de ofício à região, hoje encara com muita naturalidade o que não considera concorrência, mas sim parceria, até porque normalmente as pessoas passam de loja em loja procurando o que desejam, e entre seus clientes estão também proprietários de outros sebos.

Assim como todos, Ivete precisou se adaptar às mudanças impostas pelos decretos restritivos de enfrentamento à pandemia, que mudaram o cenário da cidade e as relações comerciais por quase dois anos. Mas ela nunca reclamou... pelo contrário: conta que por isso começou a vender também pelo Instagram. “E continuamos a vender muito. Na Itália, lá no início da pandemia, os primeiros comércios que abriram logo depois do lockdown foram as livrarias, porque as pessoas precisavam de leitura em casa. E vi isso acontecer aqui também: muitos jovens vieram até o sebo para comprar livros e revistas para os pais e avós passarem o tempo seguros dentro de casa, enquanto não podiam ainda andar por aí”, comenta.

AYRTON CRUZ fotos

MARIANA E MARIA CLÁUDIA

SÉRGIO VIGNES foto

MARIA CLÁUDIA E TASSO CLÁUDIO SCHERER

foto AYRTON CRUZ

“Desterrados” na Tiradentes

Fotógrafo profissional, Tasso Cláudio Scherer morou desde pequeno na rua João Pinto, e sempre cultivou um grande amor pelos livros. “Meu sonho sempre foi ter um sebo no lado Leste do Centro Histórico de Floripa, tanto porque temos várias lojas ligadas a esse comércio por perto, quanto porque acredito que é necessário dar atenção a essa região que é tão linda e histórica. Foi com as obras de minha biblioteca particular que abri a Desterrados. Começamos a reforma do local em 2017, e abrimos a loja em 2018”, conta Tasso, que mantém um acervo de aproximadamente seis mil livros, entre eles a 3a edição impressa do “Grande Sertão – Veredas”, uma doação de uma cliente fiel e “muito amada”.

A Desterrados é um sebo diferenciado. Trata-se de um espaço que reúne vários tipos de artes, como fotografias, trabalhos artesanais e manuais, e no segundo piso funciona um ateliê de cursos e minicursos, e oficinas. “Já tivemos cursos para criação de portfólio para fotógrafos e artistas, de encadernação, oficinas de cinema e até saraus literomusicais e até um curso de cerãmica – com aulas individuais – com o Marco Oliva”, acrescenta Tasso.

Com o início da pandemia, Tasso passou a trabalhar de casa, cuidando das vendas on-line e da seleção de obras, e quem passou a “tocar” o negócio presencialmente foram as filhas Mariana e Maria Cláudia, de 24 e 19 anos, que assumiram as redes sociais e a administração do negócio. “Ele curtiu essa ideia de a gente levar o negócio. E nesse momento de volta à normalidade temos planos, como ampliar nossa grade de cursos, trabalhando com literatura/ redação, yoga e desenho... Além disso, realizar workshops e, quem sabe, abrir um café”, explica Maria Cláudia. “E em breve vamos lançar também um site para comercializar as fotos de nosso pai”, completa Mariana.

E nós ficamos sempre ansiosos pelas novidades!

foto MARCO CEZAR

RODRIGO SARUBBI

Curadoria cuidadosa para reunir acervo diferenciado

Criada em 2007 pelo então estudante de Direito, Rodrigo Sarubbi, a Elemental Livros Usados já teve diferentes endereços e nomes antes de chegar à rua João Pinto. A trajetória começou no vizinho município de São José, e quando buscou sua morada na Ilha foi primeiro para a Galeria Comasa, pegando emprestado dela o nome.

Segundo Sarubbi, a existência de muitos sebos na rua João Pinto – e em seus arredores – foi determinante para uma nova mudança, quando nasceu, então, a Elemental Livros Usados. “No início da faculdade eu precisava de um ganha-pão, e como frequentei sebos desde a infância, achei que seria algo que eu saberia fazer bem”. E como faz...

Com um acervo de cerca de 10 mil itens entre livros, quadrinhos e material audiovisual, a Elemental oferece também aos clientes alguns itens colecionáveis, como os bonequinhos Funko, uma paixão pessoal. “Pago minhas contas, sou limpinho e a barba branca não me deixa mentir a idade, mas quando o assunto são esses bonequinhos cabeçudos volto a ter 10 anos”, conta. Mas Rodrigo faz questão de frisar que o foco mesmo são os livros. “Esses itens chamam atenção apenas das pessoas que curtem esse universo. Eu pessoalmente coleciono e resolvi oferecer parte do meu acervo para o público. É meio que um agrado!”, explica, acrescentando que, em seu entendimento, o grande diferencial da Elemental está na curadoria cuidadosa. “Tentamos ter os melhores livros, quadrinhos, CDs, DVDs e LPs usados da cidade, o que quero crer que em geral conseguimos”, complementa. Entre eles, destaca uma obra especial: Finnegans Wake, último romance do irlandês James Joyce, publicado em 1939. A obra foi escrita em Paris, levou 17 anos para ser concluída e é considerada um dos marcos da literatura experimental. “Temos aqui a obra completa, em cinco volumes. Coisa fina!”, opina.

Ao longo desses 15 anos em que a loja existe, Sarubbi identificou características específicas nos clientes. A grande maioria é composta por frequentadores fiéis, mas mesmo entre eles existem aqueles que entram mudos, passeiam pelas prateleiras e saem calados. Outros, tornaram-se grandes amigos, e às vezes vão lá para conferir as novidades e, tão importante quanto, bater um bom papo. Por outro lado, ele é enfático quando aponta a característica essencial para ser proprietário de sebos: “Ler. Se possível, ler muito”.

A pandemia trouxe desafios para todos, mas durante o período, a estratégia de Rodrigo Sarubbi para manter a loja em atividade foi “apertar o cinto” e seguir todos os protocolos sanitários, garantindo a segurança da equipe e dos clientes. No instagram (@Elemental_ livros_usados), um cuidado especial com a composição das fotos para divulgar os produtos, a maioria delas feita pela esposa, Gabriela.

“Apesar de todas as mudanças que tivemos que impor à rotina, como nossas vendas não são muito volumosas, durante aquele período continuamos usando os Correios para as entregas. E foi interessante perceber que uma coisa não mudou: a relação entre nossas vendas online e presenciais seguiu sendo a mesma de antes. Cerca de 70% de nossos clientes preferem vir à loja”, conta. E quem não iria preferir?

ADRIANO CRIPPA

AYRTON CRUZ foto

foto AYRTON CRUZ

This article is from: