Motus #4

Page 1

ADNELSON CAMPOS, CÉLIA REGINA DA SILVA, CHARLES BURCK, DÉBORA CARVALHO, EDUARDO SUSSUMO SMOZONO, GISELA LOPES PEÇANHA, GUILHERME BRASIL, JADE VAZ, JONATAN MAGELLA, MAGALI GUIMARÃES, MARA VANESSA TORRES, MARIA PIA MONDA, MAURO SÉRGIO SANTOS DA SILVA, PAULA PEREGRINA, PEDRO EMMEL, REJANE BARCELOS DA SILVA, RENATO MASSARI, ROBINSON SILVA ALVES, RONALDO DÓRIA JÚNIOR, WELLINGTON OLIVEIRA

MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL #4


MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL


ORGANIZADORA ALINE VIEIRA DE MELLO

MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL #4

AUTORES ADNELSON CAMPOS CÉLIA REGINA DA SILVA CHARLES BURCK DÉBORA CARVALHO EDUARDO SUSSUMO SMOZONO GISELA LOPES PEÇANHA GUILHERME BRASIL JADE VAZ JONATAN MAGELLA MAGALI GUIMARÃES MARA VANESSA TORRES MARIA PIA MONDA MAURO SÉRGIO SANTOS DA SILVA PAULA PEREGRINA PEDRO EMMEL REJANE BARCELOS DA SILVA RENATO MASSARI ROBINSON SILVA ALVES RONALDO DÓRIA JÚNIOR WELLINGTON OLIVEIRA

ALEGRETE, 2020


CIP – Catalogação na Publicação _____________________________________________________________________ M922 Motus : movimento literário digital #4 [recurso eletrônico] / Aline Viera de Mello (Organizadora). – Alegrete, RS: UNIPAMPA, 2020. 58 p. : il.

1. Poemas em prosa. 2. Contos. 3. Empatia na literatura. I. Mello, Aline Vieira de (Org.). CDU: 82-1 Ficha elaborada pela bibliotecária Marlucy Farias Medeiros - CRB 10/2067


Este é um produto do projeto de extensão Motus - Movimento Literário Digital da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus Alegrete, que visa intensificar o interesse pela literatura dos cidadãos e estudantes; incentivar a produção de obras literárias; selecionar e publicar obras literárias inéditas em Língua Portuguesa. O projeto Motus é vinculado ao programa de extensão Programa C e aos cursos Ciência da Computação e Engenharia de Software. Este livro é composto por dez poemas e dez contos selecionados através do concurso literário Motus #4, realizado na integra em formato digital. O concurso teve como tema “Olhar com os olhos do outro” e recebeu 195 obras, sendo 178 obras de autores residentes em 24 estados brasileiros e Distrito Federal e 17 obras de autores residentes em outros 10 países: Alemanha, Angola, Canadá, Israel, Itália, Japão, Moçambique, Portugal, Suíça e Uruguai. Embora todas as obras selecionadas abordem o tema proposto, a forma como o fazem é bastante distinta. Assim como são distintas as características dos seus autores. Há autores residentes em grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, mas também um residente na pequena Coaraci, de aproximadamente 21 mil habitantes, no interior da Bahia. Há uma italiana residente no Brasil e um brasileiro residente na Alemanha. Há jornalistas, engenheiro, administrador, web designer, ator, professores e estudantes. Há escritores experientes, com várias obras publicadas, mas há também escritores novatos. Todas as obras são acompanhadas por uma ilustração criada especialmente pela artista Amanda Gobus Lopes. Adicionalmente, todas as obras foram lidas e seus áudios estão disponíveis gratuitamente na plataforma SoundCloud. Além disso, todo o livro pode ser lido por leitores de tela, incluindo as ilustrações, devido ao uso do recurso de texto alternativo. Dessa forma, as pessoas com deficiência visual podem ter acesso ao conteúdo do livro na sua íntegra. Convido você a olhar com os olhos dos vinte autores selecionados. Boa leitura! Aline Vieira de Mello Coordenadora do projeto de extensão Motus


MOTUS - Movimento Literário Digital #4

Equipe Executora: Alexandre Alderete Alves Aline Vieira de Mello Aliriane Ferreira Almeida Amanda Gobus Lopes Amanda Meincke Melo Ana Lúcia Vargas Antônio de Freitas Valle Neto Caroline Monteiro da Silveira Dienefer Fialho dos Santos João Victor Santos da Costa Kauê Vargas Sitó Marileia da Silva Marchezan Marlucy Farias Medeiros Merlen Alves Naiana Brossard Fantinelli Paulo Antônio Berquó Farias Rosa Helena da Silva Martinez


MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL

A capa do livro 09 Maria Pia Monda A intrusa 11 Renato Massari A mulher preta 15 Jonatan Magella Jeferson Jackson 17 Ronaldo Dória Júnior Ao olhar, o olhar 21 Jade Vaz Consuetudinário 23 Mauro Sérgio Santos da Silva Do lixo a ressurreição 25 Célia Regina da Silva Eu sou o outro em você 27 Pedro Emmel Menina dos olhos 29 Gisela Lopes Peçanha Musa de poeta 31 Rejane Barcelos da Silva O cego narciso 35 Guilherme Brasil O homem que se misturava 37 Paula Peregrina O olhar do outro 39 Wellington Oliveira Olhos 43 Magali Guimarães Olhos de cabra bom 45 Charles Burck Olhos de fome 47 Robinson Silva Alves Ponto de vista 49 Adnelson Campos Sra Ebenezer 51 Mara Vanessa Torres Te vejo através dos vidros 55 Débora Carvalho Xisto nos olhos 57 Eduardo Sussumo Smozono



O guarda de guarda na porta, em intervalos irregulares, gritava um nome. Há cinco minutos, chamara o meu e, agora, lá eu estava, naquele enorme quarto branco, grades nas janelas e uma dúzia de pessoas, na maioria mulheres, sentadas em tantas mesas, confinadas em áreas cortadas por divisores de plástico, executando tarefas burocráticas ou complicando-as, dependendo do grau de eficiência. Convidada para sentar em uma mesa extemporaneamente vazia, enquanto esperava que alguém me atendesse, eu estava enganando aqueles momentos suspensos com a tentativa de terminar a leitura do livro que eu trouxe comigo. Uma tentativa nem agradável, nem válida para me distrair, pois, até agora, aquele livro havia se mostrado muito chato. Detesto ler livros ruins. Mas como saber se um livro é ruim? Deveria fiar-me da capa? Ater-me aos comentários dos outros? Os comentários são subjetivos e, embora um livro possa ser classificado como chato por muitas pessoas, alguém que decidiu publicá-lo, até apenas o autor, deve tê-lo considerado interessante. Então, não, a opinião dos outros não é suficiente. Confiar no conteúdo das primeiras páginas, do primeiro capítulo? E se o final fosse incrível? Um livro tem que ser lido do começo ao fim para entender e descobrir se é realmente feio. Só que, nessa altura, ele está lido, terminado, e o tempo está gasto e, então, perdido. No entanto, uma mulher chegou para atender-me e, depois de algumas formalidades rápidas, começou a bater os dedos no teclado do computador. Me surpreendi a observá-la com extrema atenção, coisa que raramente faço. Ela tinha uma cara normal, um rosto regular. Me perguntei como seria ter um rosto como o dela. Talvez, às vezes, espelhado-se, ela já desejou ser mais graciosa; talvez ela encontrava defeitos naquela fisionomia que eu considerava perfeitamente normal. Mas eu não tinha nenhuma dúvida sobre o que aquela mulher estava sentindo respeito ao meu rosto. Repugnância. Ela continuava batendo a ponta dos dedos no teclado, perguntando-me, de vez em quando, novas informações pessoais. Mas não me olhava. Após a primeira olhadela, ela desviara o olhar. Provavelmente, ela estava imaginando como seria sair de casa com um rosto como o meu. Se ela tivesse me perguntado, eu diria. Eu lhe contaria o que significa acostumar-se com as perguntas dos curiosos, com as risadinhas, com o horror. Eu lhe explicaria que o único conforto vem da indiferença. A indiferença é meu sentimento favorito. Aquele que ofereço e levo com ambas as mãos. A indiferença machuca somente as pessoas que dão importância às diferenças, mas quem se concentra em considerar todos iguais, em sentir-se igual a todos, não pode ser ferido. A mulher perguntou-me tudo o que tinha que perguntar. Carregou no botão de enter pela última vez. As mãos dela permaneceram suspensas no teclado por alguns segundos, indecisas sobre como voltar a ser úteis. Decidiu de passar ambas no cabelo. Depois, com a mão direita, tirou seus óculos. Usava um par de lentes que nada acrescentavam, nada removiam ao seu aspecto. Isso me pareceu estranho.


Geralmente, os óculos distorcem um rosto, o tornam mais ou menos interessante, o afiam, o alargam, o encobrem, o revelam. O rosto da mulher na minha frente, mesmo sem óculos, ou ainda mais, manteve-se normal. - Agora eu preciso te tirar uma foto.- Ela disse. Virou o computador assim que a webcam ficasse bem na altura do meu nariz. Pois ela hesitou por um instante. - Espera. Pode não ser necessário. Você não trouxe uma foto para o documento? - E não sem constrangimento, acrescentou - Uma onde você ficou mais bonita? - Pode tirar.- Repliquei sem afetação. Houve um clique. Após alguns segundos, minha cara apareceu na tela. Em todas as suas imperfeições. Vi-me como eu me via. Vi-me como ela me via. Vi-me como não queria me ver. Vime como eu nunca me vi e como sempre me viria. - Quer que eu tire outra foto? - Não. Essa ficou perfeita.- Respondi. Um rosto é como a capa de um livro, cuja beleza depende dos olhos de quem a olha e o lê. Essa é minha capa. Quantos, olhando para ela, adivinhariam o conteúdo por trás das formas? Quem se renderia na frente das amassaduras? Quem apreciaria? Quem sentiria desinteresse? A resposta para cada uma destas perguntas me deixa completamente indiferente. O conto “A capa do livro” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É italiana de Napoli e, desde 2015, belohorizontina por adoção, autora de dois livros de poemas e de inúmeros contos publicados em revistas italianas e brasileiras, adora se perder nos infinitos caminhos, construídos brincando com as palavras.


A presença constante da mulher na janela em frente a intrigava. Desde que alugou o apartamento há um mês, foi impossível não notá-la. Quando abria as cortinas pela manhã, Ivy a via. Se o fizesse às 7h, horário em que costumava levantar-se, a mulher lá estava. Se as deixasse cerradas até às 8h, quando as abrisse veria a mulher. E na volta do trabalho, no fim da tarde, ao escancarar as janelas para deixar o ar fresco entrar, junto com ele entravam os cabelos curtos, cor de caju, a face pálida, coalhada de verrugas, e os braços magros da estranha vizinha. Que fumava, bebia algo parecido com café e pousava por horas o olhar recheado de vazios no mundo. Mas o mundo parecia resumir-se a um só ponto: o pingo ausente no i maiúsculo de Ivy. Populoso, o bairro em que as duas viviam era uma floresta de concreto armado. Em algumas áreas não havia, entre os prédios próximos, distância que garantisse a muitos moradores um mínimo de privacidade. Era o caso de Ivy. As janelas principais do imóvel em que residia davam para uma área cercada por vários apartamentos. Entre eles, o conjugado da mulher. Como gostasse de registrar coisas em um notebook antigo e lento, Ivy começou a escrever algumas notas acerca da sua incômoda observadora, que passou a chamar de intrusa. A primeira delas foi sobre a curiosidade pela sua pessoa, talvez um dos motivos para a mulher não parar de olhá-la. Bem mais velha, a intrusa certamente devia medir cada centímetro do seu corpo de 27 anos e dos longos cabelos lisos que geralmente deixava soltos sobre os ombros. De uma brancura insípida e quase transparente, mesmo que quisesse, ela nunca teria a pele bronzeada de Ivy sol e mar. Isso bem podia lhe despertar uma ponta de inveja, alimentando mais o seu olhar curioso. Ivy não se achava propriamente bonita. Achava-se até um tipo comum, mas não era assim que os olhos da outra a viam. Talvez seu jeito agitado a fizesse se lembrar de alguma amiga de juventude. Por que não? Ou talvez a intrusa tivesse uma prima ou sobrinha parecida com ela. Como saber? Dois dias depois daquele registro, Ivy começou a pensar que a mulher podia ter interesse também em outras coisas, como na decoração da sua sala. Nada havia de diferente para ser visto, a não ser a grande cristaleira antiga que a avó mandara reformar e lhe dera antes de morrer. Pensou, então, na intrusa como alguém capaz de ter pelo móvel algum gosto ou recordação especial. Se fosse isso, até poderia vendê-lo, desde que ela lhe pagasse um preço justo. Mas logo descartou essa ideia, pois no conjugado não haveria espaço livre suficiente para acomodar a relíquia. E, por certo, qualquer valor, mesmo não sendo abusivo, seria considerado alto demais. Registrou essas observações no notebook. No domingo, Robert, seu namorado, abriu as cortinas verde musgo do quarto sem se dar conta de que estava nu. Muito constrangido por ter se deparado com a



mulher na janela defronte, imediatamente as fechou. Quando Ivy saiu do banho, contou-lhe o acontecido, que não deixou de merecer registro depois: “Aí, hein, Robert! Arrebentou...”. “Pô, gata, foi mal... Mas depois do nosso amorzão gostoso, eu queria mais é muito ar”. “Já não te falei? Ela não tira o olho daqui. Agora, vai querer ficar te olhando também...”. A fim de encerrar o assunto, o namorado lhe disse, com ironia, que a intrusa devia gostar de mulher, por isso prestava tanta atenção nela. Isso provocou em Ivy certa reação de descaso, mas ela intimamente não descartou a possibilidade. Já cogitara algo do tipo e se sentira mesmo desejada, embora não pretendesse fazer nada para estimular as fantasias do olhar enigmático, perturbador e vazio que a vigiava implacavelmente todos os dias. Quando terminava a semana, Ivy estranhou ao não ver a mulher na janela. Correu, então, para o computador e anotou isso. Mais surpresa, porém, ficou por também não ter sido observada nos três dias seguintes. Tomada pela curiosidade, foi até o prédio da intrusa com o propósito de saber se alguma coisa havia ocorrido. Como conhecesse cada detalhe da sua face macilenta, pôde descrevê-la ao porteiro como se fizesse um retrato falado. Depois de ouvi-la, o homem logo disse quem era a mulher: Dona Ruth, do apartamento 814. Tivera um AVC depois de completar 62 anos e fora internada às pressas. Querendo satisfazer o resto da curiosidade, Ivy perguntou se ele sabia por que Ruth passava tanto tempo na janela. O porteiro disse ser por causa do glaucoma diagnosticado tardiamente. A mulher lhe contara o problema, que já não podia resolver. Não tinha dinheiro para a cirurgia e nem tempo para esperar por ela em hospital público. Então lhe ensinaram uma simpatia: olhando o quanto pudesse para um ponto fixo, a doença regredia. Ao chegar a casa, Ivy apagou todos os registros feitos sobre Ruth no notebook. Com uma mistura de revolta e remorso, olhou-se no espelho redondo do quarto e teve a sensação de que a intrusa não era outra senão aquela que via agora a sua frente. O conto “A intrusa” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É Doutor em Educação e professor universitário aposentado. Como autor de ficção, tem algumas obras publicadas: “Sentimentos, Sabores, Semblantes” (Poesia - Editora Baraúna, 1a. ed. 2009; 2a. ed. 2020); “Vida, Um Glossário Poético” (Poesia - Editora Baraúna, 2015) e "Montagens Cariocas" (Contos - Editora Autografia, 2019).



Quando viu aquela mulher preta em sua casa, Clara pensou em chamar a Polícia. Estava arrumando o cabelo para ir à faculdade e flagrou o vulto no banheiro. Quase queimou-se com a chapinha. Clara não aceitaria uma invasora em seu apartamento. Estava adorando a solidão de morar sozinha, sobretudo porque não precisava lidar com a rotina religiosa dos pais evangélicos – pais que só aceitaram sua mudança sob a condição de fazerem uma fiscalização semestral. Clara até era cristã, mas parara de pensar nisso desde os trotes, quando foi iniciada no sabor do sexo e da cerveja. Estava inclusive apaixonada por um veterano. Por fim, havia um monte de autores ingleses pela frente em seu curso de Letras. Não teria tempo, portanto, para a mulher preta que se escondera em seu banheiro. Contentou-se em ignorá-la. Não queria guerra com gente dessa estirpe. Tal convivência velada deu-se exatamente até o dia em que o veterano por quem se apaixonara apareceu com outra caloura numa festa. Clara sentou no sofá, ligou um rock inglês dos anos noventa bastante melancólico e chorou. Chorou de tremelicar o corpo. Foi então que a mulher preta finalmente saiu do banheiro. Agachou-se, secou suas lágrimas, ergueu-a. No rádio, ela trocou o britpop meloso por um samba, e os pés de Clara dançaram automaticamente, como se soubesse o ritmo há anos ou milênios. Dali para frente, a alegria penetrou em casa: Clara descobriu a capoeira e o jongo; feijoada e caruru; novas roupas menos austeras, mais cores e estampas; o cabelo começava a tomar sua forma original; por fim, Clara aprendeu com a mulher preta qual era seu orixá e foi a essa altura também que descobriu um novo amor – mas isso não teve a ver com negritude, porque a melhor forma de falar do amor entre negros é falando do amor e basta. Quando Clara pensou que da mulher preta só viriam comidas, danças e religiosidades, a nova moradora jogou na escrivaninha um calhamaço de textos de Filosofia e Literatura africanas, que foram devorados em poucos dias. Isso sem falar na vez em que Clara sentiu o corpo pulsando de desejo e foi através do corpo da mulher preta que ela descobriu um prazer voraz. Cristã, antes tocava-se com receios. Agora, extasiada de um orgasmo infinito, Clara estava apaixonada pela mulher preta escondida em sua casa. Foi então que a mãe de Clara anunciou que viria fazer a fiscalização semestral. A moça desesperou-se ao imaginar que os pais descobririam a nova moradora. Clara escondeu a mulher preta dentro do guarda-roupas. Fica aí e não sai até eu mandar! Depois, foi até o banheiro e fez sua primeira chapinha após semanas. Porém, em frente ao espelho, vendo o próprio cabelo ficar liso, viu o vulto novamente. Então era isso: seria preciso matar a mulher preta. Agora a coragem chegara. A coragem não. O medo. Medo de sua família fanática tirá-la da faculdade. Tirar sua liberdade. Clara perseguiu a mulher preta pela casa toda, mas foi em frente à geladeira que a alcançou. Encostou-a na porta inox espelhada. Olhou-a nos olhos


e, de súbito, achou-se semelhante a ela. Tirando a cor de pele, ambas eram idênticas: boca, nariz, cabelo. Até as dores eram a mesmas. Clara perdoou-a por ter escapado do guarda-roupas e também se perdoou por tê-la aprisionado lá, pensado em chamar a Polícia ou até mesmo em matá-la. Ato contínuo disse a ela: esparrame-se pela casa, minha amiga, você me ensinou tanto. E que se dane a fúria dos meus pais imbecis. Mas os pais não vieram para a fiscalização. Só veio a mãe. Chorosa, disse que tinha descoberto a traição do pai de Clara com uma varoa. Outra. E pediu à filha que colocasse um hino da harpa cristã a fim de obter consolo, porque a vontade é tirar a própria vida. Foi aí que Clara chamou a mulher preta. Sua mãe assustou-se. Mas quando a visitante foi até o som e colocou um samba, as três dançaram em roda até o riso jorrar feito café expresso. Depois, as três no sofá, Clara contou tudo à mãe: experiências sexuais, alcoólicas e também o que aprendera com a mulher preta. A mãe assustou-se de começo, mas, no fim das contas, disse que a filha estava certa por aproveitar a juventude. Quanto aos ensinamentos da mulher preta, ok, na igreja dela também já havia capoeira gospel e uma feijoada santa aos domingos que ajudava a pagar o salário do pastor. Conhecer a tudo, reter o que for bom, Clarinha, tchau, tchau. Clara ficou feliz com a reação positiva. Mas confessa: ficou ainda mais feliz quando a mãe foi embora. Afinal, Clara ama a solidão de seu apartamento. E até nesse quesito a mulher preta a ajuda. Porque a mulher preta não é outra pessoa, senão a própria Clara. A própria Clara, de frente ao espelho, descobrindo-se preta mulher. O conto “A mulher preta” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Nasceu em 1990. Publicou seus contos em Vidas irrisórias (2018) e a dramaturgia Desculpe o transtorno (2019). É dramaturgo e roteirista. Teve contos selecionados em revistas e antologias, como a Sarau Subúrbio, o Repertório de utopias, do Itaú cultural, e a MOTUS, da UNIPAMPA/RS. Organiza o Aleatórios, um jogo literário que valoriza o conto. Realiza esporadicamente oficinas de escrita e organiza coletâneas independentes. Dá aulas de História na rede pública.


Quem anda de trem no Rio de Janeiro sabe que é difícil passar imune a todos os produtos anunciados ao longo do trajeto. Alguns vendedores anunciam suas mercadorias de um jeito tão chamativo e engraçado que é quase impossível não comprar. O “shopping móvel”, aliás, virou música cantada pelo Zeca Pagodinho: “Tem sempre tudo no trem que sai lá da central/ Baralho, sorvete de coco, corda pro seu varal/ Tem canivete, benjamim, tem cotonete, amendoim/ Sonho de valsa e biscoito integral”. Mas nem só de vendedores ambulantes vivem os trens da Supervia: há também os artistas. Cantores, violonistas, saxofonistas, violinistas, dançarinos, poetas, rappers fazendo freestyle de ótima qualidade, improvisando sobre o que observam dos passageiros, dos camelôs, do mundo. Arrancam risadas e aplausos. São, normalmente, um alívio muito bem-vindo para o nosso cansaço físico e mental de todos os dias. Dizem que as janelas dos ônibus e trens botam a gente meditativo como o diabo. E é verdade. Mas os pensamentos aos poucos vão perdendo espaço para o sono, que vem chegando devagar, pesando as pálpebras. Durmo, e não raro o silêncio da minha viagem é interrompido por essa massa de trabalhadores e artistas que ganham a vida entre um vagão e outro. Dia desses acordei meio assustado ao som de Billie Jean. A música alta vinha do meio do vagão, atrás de onde eu estava. Sonolento, demorei um pouco a entender o que se passava. Virei-me rapidamente e vi um jovem dançando, imitando os passos do Rei do Pop. A canção terminou, ele se apresentou, agradeceu. Pediu a todos que o seguissem nas redes sociais. Soltou outro sucesso na caixa e continuou sua apresentação. O rapaz era extremamente desajeitado. Confesso que me senti constrangido por ele, não pude evitar. E me senti mal por isso. Concentrado, ele fazia o seu pequeno show e nem parecia se dar conta das risadas abafadas, dos olhares debochados. Ou talvez percebesse, sim, mas não ligava. Não sei. Sei que, ao mesmo tempo, senti uma puta inveja dele. Se eu tivesse metade dessa autoconfiança... Um passageiro que estava afastado chegou mais perto para ver melhor. Estava bem vestido, usava uma calça social bonita, um sapato reluzente. Ele ria um risinho nojento. Pegou o telefone no bolso e começou a filmar. Adicionei mais um sentimento ruim à minha lista do dia, ódio. Queria poder quebrar o telefone dele e dos demais que faziam o mesmo, estilhaçá-los em mil pedaços. As pessoas - nem todas - são péssimas hoje em dia. Quase ninguém pensa em como é estar no lugar do outro. Estão sempre prontas para transformar o sofrimento, a dor, o suor e o esforço alheios em piadas, que serão compartilhadas depois nos grupos do Whatsapp.



Gostaria de ter podido voltar a dormir. Gostaria de ter tido concentração suficiente para retomar a leitura do livro que trazia na mochila. Quero muito não sentir nunca mais o peso no peito que me acompanhou pelo resto daquela viagem. Infelizmente, entre o querer e o poder, entre os nossos sonhos e a realidade há, muitas vezes, um vão intransponível. Um vão maior e muito mais perigoso que aquele entre o trem e a plataforma. O conto “Jeferson Jackson” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É carioca, tem 35 anos na presente data. Faz rabiscos que às vezes viram desenhos, soa acordes desafinados no seu violão e, sempre que tem inspiração, deixa que seus dedos longos corram em textos tristes que vai inventando.



Como Evaristo, nasci "rodeada de palavras". E que palavras! Nelas vi um novo mundo Novas pessoas Novos olhares "... as palavras ditas libertam". Como Machado, não delibero meus sentimentos]. E que sentimentos! Puros e impuros De um coração ardente pelo mundo! "Os melhores amores nascem de um minuto"]. Como Drummond, Tenho em mim todas as dores do mundo]. E que mundo, "Raimundo"!] Ora florido Porém muito moribundo Ao olhar para você Sei que posso tudo. O poema “Ao olhar, o olhar” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Aquela que declara amor eterno à literatura, principalmente a Machado de Assis, seu escritor favorito. É natural de Nilópolis (Baixada Fluminense), mas foi criada no bairro de Guadalupe, Rio de Janeiro. Atualmente, trabalha como Auxiliar Administrativo pela UPA Irajá. Além disso, está retomando os estudos em Letras-Português/Literaturas pela UFRRJ, com pretensão de desenvolver pesquisa em Literatura Comparada/Universal e Afro-brasileira.



Quando não eu há um outro dentro de mim. Esse não me sei; aquele, tampouco. O outro é o que me acusa de estar! Consuetudinário espasmódico de outrem grávido do que nunca vejo em céus corrompidos: astros repletos, sombras incertas, espectros de ser.

vivo a esmo lá. Nos desertos que ergo, perco-me; e é aí que me salvo. Quando não eu há um outro dentro de mim. Esse não me sei; aquele, tão pouco... O outro sempre me acusa de estar! Em seus olhos, me vejo caminhar.

Professorando-me a carrapato de longa data O poema “Consuetudinário” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Professor de Filosofia. Analista Pedagógico. Articulista. Poeta. Membro da Academia de Letras e Artes de Araguari - ALAA. Membro da União Brasileira de Escritores. Contato: mauro.filos@hotmail.com Blog: https://poesiadecamalear.blogspot.com/ Instagram: https://www.instagram.com/poesiadecamalear/



Na tela, a câmera, em plano fechado, detalha os traços marcantes de Estamira. O olhar fita o horizonte. Trata-se de mulher negra de meia-idade com rosto sujo, cabelos desgrenhados. Ela vocifera palavras, frases, ditos, muito autênticos sobre os valores falidos da sociedade; os quais denomina como o “verdeiro lixo”. O discurso ora pende para a filosofia, ora para a poesia. Ao fundo da cena, o foco nas montanhas de resíduos revela o tipo de uso do local. Para o hoje extinto maior aterro sanitário da América Latina, no Jardim Gramacho, seguiam, diariamente, 10 mil toneladas de dejetos da capital fluminense. Como caçadores, milhares de famílias, homens, mulheres e crianças negras sobrevivem do que é desprezado pela cidade vizinha. Estão abaixo da linha de pobreza, onde reina a desigualdade social. Não são vistos. Estão escondidos no chorume da cidade. Corredor de hospital na zona sul do Rio de Janeiro. Em cima de maca de ferro, Estamira está coberta por lençol branco. A haste com apoiador, indica que está tomando soro. No banco ao lado, está sentado, Ernani, um de seus filhos, que sem pregar o olho, toma conta da quantidade de gotas que saem do frasco transparente. Seu rosto revela misto de apreensão e cansaço. Já estão ali há vários dias. A mãe é diabética e hipertensa. Estão em busca de socorro, para tratamento das doenças crônicas dela. Agravadas pelo quadro de esquizofrenia, com momentos intermitentes de lucidez. O nome famoso, de personagem título de documentário não a livrou dos descasos da saúde pública. Pelo contrário. Se tornou vítima. Após dias no corredor do hospital, esperando por internação, faleceu ali mesmo, na passagem entre pacientes e pessoal do serviço de saúde. Ernani pretende enterrála perto da avó, no cemitério do Caju. Ainda não sabe muito bem, se o fará, precisa resolver com outros dois irmãos. No lixão, ela encontrava razão de viver. Foram 20 anos, fuçando objetos abandonados, que deixaram de ter serventia para quem os jogou fora, mas que em suas mãos ganhavam valor, significado. A catadora de lixo fez dele sua vida, seja para reciclá-lo, para ganhar dinheiro, para fazer amizades. Dos e com os cacos se reconstruiu. Sua história, contada na tela do cinema, toma corpo, faz sentido, cria discurso. O "lixo fala", ganha voz pelo olhar pontiagudo da ora contadora delirante. O conto “Do lixo a ressurreição” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Jornalista carioca, professora e pesquisadora da UFSB. Feminista negra, acredita na potencialidade do diálogo com a juventude, em especial, com as mulheres. Sonha com o dia que os avanços tecnológicos, imbricados com os avanços sociais, promovam vida mais "" humana"". Vislumbra a escrita literária como libertação, voz e criatividade.



Somos um, eu receio Tua pupila dilata e me serve de espelho O poema “Eu sou o outro em você” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Também conhecido como Papel e Luneta, tem 22 anos, cursa antropologia. É fascinado por poemas que passam uma infinidade em poucas linhas. Escreve majoritariamente trovas e haicais inspirados em experiências que para ele transcendem o verbo.



Deixa que eu te leve na retina alegre na mão que escreve pingando tinta tecendo vida tirando as vendas que não me despem. Deixa que eu te revele meus olhos fundos que são lascivos conchas impuras e que te enxergam como eu te quero. Faz que minha verdade essa obscenidade minha pouca sanidade te convençam de mim e te penetrem. Eu te olho e não me vês não me tocas, e eu te sinto nossos pequenos gestos do meu ínfimo infinito. Essa pureza santa desalmada e mundana lanterna sonhadora sou pérola, em sua lama. Somos os dois, um só pedaços, desigualdade dividindo um amor inteiro mas que só de mim, faz parte; pois sou eu: a única metade.


Moro numa trincheira a sobreviver (sem ser guerreira) no seco desamor... salivo, águo, erma. Minha lente tem a luz que bebe da tua cegueira. A lágrima, é a sede. O poema “Menina dos olhos” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Natural de Niterói, RJ. Escritora. Com expressiva carreira literária, venceu o Prêmio Rubem Alves da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto SP, em 2015; Menção Honrosa - Prêmio Escriba de Contos 2019; Premiada: Prêmio VIP de Literatura, em 2017 e 2019; Semifinalista: Prêmio Uirapuru de Literatura 2019. Conquistou prêmios em Universidades brasileiras, tais como: Universidade Metodista de SP, Universidade Federal do Pampa/RS, Universidade de Brasília e UNICAMP. Até a presente data, acumula 70 premiações em Concursos Literários.


Eu sempre quis ser musa de poeta Princesa de história de castelo trajada com o meu melhor vestido e toalha na cabeça pra imitar o cabelo liso Eu sonhava com meu cavaleiro na janela fazendo serenata dedilhando o violão meu príncipe e seu cavalo branco batendo no portão Eu ligava o rádio e sonhava quem um dia ia sentar e escrever sobre meus olhos de cigana oblíqua e dissimulada Os caracóis dos meus cabelos que seu coração abrigava ou se questionar sobre o que fazer com essa tal liberdade no meio dessa solidão sem mim O tempo passou e o verso nunca veio nem serenata nem violão só a solidão virou refrão não demorou até eu perceber que não servia pra musa de poeta Musa de poeta não tem olhos tristes cansados da lida Musa de poeta não tem em seu rosto marcas de uma vida sofrida Muito menos vincos embaixo dos olhos que viram canais quando as lágrimas rolam e que quando frequente com o sal e o tempo vai queimando formando uma trilha escura na face Musa de poeta não tem rugas de preocupação nem o cansaço estampado na face que faz sempre te darem uns bons anos amais do que se tem Musa de poeta não tem calos nas mãos de pegar no pesado nem as palmas descascadas provocados pelo uso constante de produtos de limpeza forte pra caralho Musa de poeta não é gorda de peito caído e com caroço nas costas Não possui celulite ou o corpo cheio de estria Musa de poeta nunca ouviu falar em henê tão pouco tem o casco da cabeça ferido de guanidina nunquinha já saiu apressada com cabelo pingando de creme nem sequer chegou perto de um pente quente Musa de poeta não esconde as finas linhas cicatrizadas no pulso com pulseirinhas de macramê Musa de poeta não sentiu o ardor na bunda ao se lavar ou uma dor pesada no útero após ser violada nem foi dormir com a alma fragmentada após ser estuprada nem a garganta arranhada de unha ao deixar o almoço todo na privada Nem teve que arrumar casa com a cara quebrada evitando chorar Musa de poeta não sabe que chorar arde mais Musa de poeta nunca dormiu na rua e acordou com o bicudo da PM gritando acorda cracuda desgraçada Nem preparou as marmitas da família de madrugada Musa de poeta não cheira mal no ônibus lotado depois das onze quando larga o trabalho e a patroa não deixa se lavar Musa de poeta nunca bateu boca com PM Nem teve sua casa arrombada Nem levou sucata pro Bangu



Nunca invadiu ratão Nem se amou no parlatório Musa de poeta nunca ficou desempregada desesperada nunca teve currículo rasgado nem vendeu docinhos pra arrumar trocados Musa de poeta sempre preenche os requisitos Musa de poeta não foi mãe aos 18 Nem se viu sozinha na hora do parto Musa de poeta sabe o que é ser sozinha? E diante de tanta impossibilidade sentei e me veio uma ideia louca vi na folha em branco uma possibilidade e de palavra a palavrões estrofes foram saindo versos e prosas foram surgindo e no afã de minha plenitude individual Fiquei plena Virei eu mesma musa do meu próprio poema O poema “Musa de poeta” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Também conhecida como Rainha do verso, é atriz, poeta e slamer. Estudante de letras pela UFRJ, é moradora do Complexo da Maré. Os elementos para compor sua obra são retirados dos becos e vielas por onde transita. Rainha é integrante do coletivo Slam das Minas RJ e é uma das organizadoras do Slam Maré Cheia.



Olhar com os olhos de alguém É desvestir-se de si É desistir de ser flor Para virar colibri E voar pra mais além E deixar sua própria rima Sua métrica segura Seu complexo de obra prima Mas desolhar-se é custoso Pois que o espelho é ardiloso E quase sempre indulgente E o seu canto mavioso É um conselho perigoso E o que faz desver-se urgente O poema “O cego narciso” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É um apaixonado por palavras. Formado em Marketing, foi redator publicitário por anos até decidir seguir o antigo sonho de ser ator, pois no teatro descobriu que a palavra, além de escrita, também poderia ser materializada. Durante todo esse caminho a poesia sempre foi sua companheira, guiando não apenas suas mãos, mas seu olhar. Hoje Guilherme se debruça sobre os palcos, as crônicas e os versos, possuindo um livro de poesias finalizado e um projeto de crônicas em fase final.



Aconteceu quando Wendel atravessava as faixas brancas de um lado ao outro da rua. Olhava para os pés: passos, um pé, outro pé, ritmo, tempo, movimento, desvio de corpos. Todos os pés eram seus. Mas, logo, ele era também asfalto. Quente de mormaço, sentia todos os pés sobre si – passando –, tinha faixas brancas em suave relevo sobre a sua cabeça – pisado, homem, asfalto, cheio de pés. Esmagada centopeia. Também os pensamentos eram todos seus. Todos os ruídos saíam crânio falante de Wendel e a ele se referiam. Era impossível decifrar tantas vozes simultâneas, dispersas e incompreensíveis, como aves migrantes a comunicar-se em seu canto animal. Não havia mais linguagem compreensível – ele ainda era um homem, centopeia e asfalto, mas um homem. Passou um pássaro. Agora ele também era um pássaro voando em direção ao fio elétrico. Um pássaro solitário, perdido na cidade – um pouso errático, um choque inofensivo. Era pássaro e era homem: um grito contido – pássaro ou homem? Perdido em meio à multidão, mantinha passos de máquina, enquanto vagava algo além do pensamento: sua própria identidade estava em risco. Ele sabia. Apressou a caminhada. Desejava fechar os olhos para que o mundo não continuasse a invadi-lo. Antes era um corpo. Agora, o que era? A solidão persistente de outrora o esfolara. Era um homem rasgado, rico de brechas e sem defesa que resistisse às intensidades da mais simples manifestação de vida. Sentia o vento e ventava. Lufadas wendelicas balançavam as folhas das árvores. Sentia as texturas, penetrava os elementos, doce clorofila, rostos suados – sentia e secava gentilmente, atrapalhava cabelos com graça, fazia roupas dançarem, derrubava objetos leves, elevava as bolhas de sabão disparadas pela arma de brinquedo da criança, até que ganhassem o céu e explodissem delicadamente com a pressão, gotículas glicerinas espalhadas no ar que Wendel movia. Era bonito ser vento. Contudo, logo era também o excremento grudado em seu sapato. É difícil ter atenção sem os limites de um corpo. Todos os olhos fixavam o seu rosto e julgavam, sabia ele, juiz de tudo – a face o denunciava. Era flagrante! Todos sabiam que ele não era mais um homem! Seus passos apertados voltaram pelo mesmo caminho de onde vieram. Era preciso voltar aos limites da casa. Pensamento infeliz: tornou-se ele casa – quartos, sala, banheiro, cozinha, móveis, imóvel. Já não podia correr. Sua estrutura rígida estava solidamente estancada pelos alicerces. Sentia a decoração, era ele decorado,


paredes marfins, prataria, madeira, estofado, pedra. Sentia o interior, do vazio às paredes. Concreto. Cheirava a cimento seco-velho, ferragem, sólido demais. Poderia algum dia sair dali? A sorte lhe sorriu sorrateira. Passou diante de si um ciclista. Tornou-se bicicleta. Era roda de borracha rolando pelo asfalto incansavelmente. Queimava. Os pés do homem atlético o pedalavam, a respiração ofegante do sujeito fazia cócegas em seu guidom, gotículas de suor o impregnavam. Estava quase lá... Então, vieram os relâmpagos! “Oh, não! Chuva não!”. Wendel temia a chuva. Tronar-se líquido. Escorreria pelo ralo, misturar-se-ia ao esgoto. Espalhar-se-ia tanto, assim, líquido, que não sabia se poderia voltar a si. Talvez, nunca! Evaporaria com o sol, iria direto para o céu misturado a sabe lá quantos gases tóxicos. Precisava continuar bicicleta até que viesse a chuva. Relâmpagos entre as pedaladas convocavam Wendel. Esforçava-se em concentrarse na bicicleta. Estava quase na esquina de casa. Desejava que o ciclista prosseguisse na direção desejada. Entretanto, ele desviou e Wendel tornou-se árvore na encruzilhada. Estava próximo. Há um quarteirão apenas. Todavia, enquanto árvore, tudo o que podia fazer era erguer seus braços de galhos e folhas eclipsadas. Invadido pelos raios, era também para-raios. Tudo indicava que logo se tornaria chuva. Desapareceria. Bem, ao menos lavaria a alma da cidade. Não parecia tão ruim. Começava a se conformar. Quando vieram as primeiras gotas, antes que com elas ele se misturasse, veio em sua direção uma moça com um guarda-chuva lilás. Ela parou ao lado de Wendel e ofereceu carona. Por uma questão de civilidade, ele teve que deixar de ser árvore e para-raios. Voltou a ser homem para agradecê-la. Estava bem perto! Caminharam, lado a lado. Novamente agradecendo, ele indicou que estava na porta de casa. Ela se foi com um sorriso e Wendel tornou-se sorriso de moça gentil, tão forte, tão intenso, que passou pela portaria, sorrindo. Subiu pelo elevador, sorridente. Chegou ao apartamento – sorrisos abrem portas e se espalham pela janela. Sorria para a chuva: meio homem, meio moça, de tudo o que nesse dia fora, sorriso inteiro. O conto “O homem que se misturava” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É escritora e artista visual, nascida em Belo Horizonte, residente no Rio de Janeiro. Mestranda em Artes Visuais no PPGAV-UFRJ. Autora do livro Terras Secas (Pandorga, 2017). Professora, pesquisadora e editora de pesquisa e projetos na Revista Desvio.


Maria das Dores, 39 anos. O Sol mal nasceu e Maria afasta o sono com uma caneca cheia de café amargo. A lida vai começar. Cortar cana-de-açúcar pra usina. A safra foi boa e tem bastante serviço. Maria e mais vinte e cinco companheiros vão trabalhar na colheita. Maria é boia fria. Trabalho duro que acaba com as costas. A foice é perigosa. Ela já viu gente perder os dedos da mão. Não é nem oitos horas e a fadiga agride. O suor cega os olhos. A colheita persiste. João Henrique, 14 anos. Parada pro almoço. Comer o que a mãe preparou. Carne cozida, mandioca e feijão. João está cansado e sujo. A poeira preta cobre todo o seu corpo. A tosse sempre presente. João pensa em se mudar. Deixar a carvoaria e não voltar mais. Um dia vai, com fé em Deus. E vai poder comprar um celular bacana. João sofre de pneumoconiose, mas ainda não ouviu essa palavra. Ele nunca terá um smartphone. O horário do almoço acabou. Antonio, 31 anos. A salina parece um deserto. Dunas de sal a perder de vista. Ao longe, a visão do oceano. As mãos de Antonio estão doendo. As latas cortam a pele e o sal queima as feridas. Ele perdeu a conta de quantas viagens fez com a lata na cabeça. Trabalho bruto e agressivo. Ele se deixa levar pelos pensamentos... Antonio vai comprar um presente para sua noiva, Dorotéa. Ela adorou aquele vestido verde da butique. A tarde vai se acabando e o turno acaba. Antonio carrega um pacote embaixo do braço. Suas mãos ainda ardem. Matilde, 42 anos. Matilde está voltando para sua casa. A segunda condução, lotada como sempre. Três horas para ir trabalhar e outras três para voltar. Matilde é empregada doméstica, babá. Cuida dos filhos da família de classe média alta e mal vê os seus. O barraco ainda está longe. A ladeira é o último desafio. Chega em casa cansada e dorme cedo. Sono sem sonhos. Matilde acorda às quatro.



- Caramba! Não ficou legal. Henrique olha desanimado para o monitor. Seu texto não está fluindo. O escritor está com dificuldades. Como representar a visão de mundo de outra pessoa sem parecer caricatural? Soa tão estereotipado... a boia fria cansada... o menino da carvoaria... - Acho que vou dar um tempo por hoje. Vou beber umas pra abrir as ideias. E, quem sabe, encontro uma Dorotéa? Henrique, 47 anos. O conto “O olhar do outro” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É escritor de contos. Gosta de expressar ideias e sentimentos em textos concisos.



Há olhos que veem para além do que reflete na retina olhos que acreditam na inconstância respeitam o diverso, a distância para eles, nem tudo carrega o determinismo da sina de íris multicolor estão abertos para o acaso para o contraditório e para o inusitado abertos à palavra e ao amor e por enxergarem para além do que reflete na retina veem com os olhos do outro nunca olham os outros de cima. O poema “Olhos” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É doutora em Psicologia e professora na Universidade de Brasília, é autora de livros, capítulos de livros e artigos científicos ligados à sua área de formação. Como poetisa, participou da Primeira e da Segunda Coletânea Poética do Guará (Brasília/DF). Autora do livro Vida em Versos (2014) e Aldravias Desvairadas (2019). Em 2016, participou com dois poemas da coletânea do Celeiro Literário Brasiliense: Leia-me - Colheita 1.



Eu não gosto de vento que venta por trás e nos pega no cangote, parece bode no cio e manga chupada no caroço, Eu prefiro ser o vento solto, e olhar pelos olhos dos outros Eu caminhei mil léguas pelos agrestes do sertão, via de tudo um pouco e pouco de coisa muita, e queria saber como cada um vê à sua maneira Vi o andarilho curtindo couro de onça vesga, deu sorte ele, pois que ela ao dar o bote, errou, porque via dois sujeitos, um onde tinha um e outro onde nada tinha Eu também vi pelos olhos dela, não era cega, era vesga Vi muito calango de metro e meio e caatinga espirrando rapé, pé de chulé e bicho solto, gambá catingueiro não precisa de toca, cheiro ruim se espalha melhor ao vento, muito cuidado onde pisa, cobra morta ainda guarda veneno, boi solto se espeta no mato, mas cuida de não morrer no cutelo do dono, E vi pelos olhos de cada um os assombros e as maleitas de cegar os olhos da alma Assim assomo mundo inteiro, sem medo de nada. Só temi vira lata, cachorro louco no meio da estrada, pois não era cão que nada, era homem virado lobisomem. Corri primeiro, soube da história toda depois, causo de virar os olhos de cego Na birosca do Torto, comi torresmo e bebi pinga de jatobá, mas ainda estou a espirrar o pelo do “coisa” sem nome. Vira e mexe me dou com essas boas novas, fiz amigos e inimigos tiro da conta, alguns fizeram feito vento torto de encher os olhos de ciscos, quiseram me pegar desprevenido, mas o bom cabrito não berra e está sempre atento ao bote do lobo. Mandinga feita não corre boato, chega com cuidados e de surpresas, se eu tenho as costas largas uso riscados de novena de Santa Madalena, a mãe maior dos que caminham pelos matos, a que nos dá mil olhos para não ser pego distraído. Canto nos caminhos e nos caminhos faço amigos, mas não gosto de nada que vem por trás, raramente é coisa boa, notícia ruim, queixas de gente escabreada, tiro de garrucha, e coisa de queimar a rosca. Bem, vou dormir cedo a lua quando vem nos quer deitado, a estrada é longa, mas a vida é boa para quem não tem cabrestos, quando a estrada não presta, a gente voa, ou ver pelos olhos dos outros a dor ou o amor que chega e entende como cada um pensa e vê a vida. O conto “Olhos de cabra bom” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Pseudônimo do escritor Wilson Costa, natural de Salvador, Bahia, criado no Rio de janeiro, aposentado, romancista, web design, poeta, artista plástico e fotógrafo. Tem livros publicados identificado com os dois nomes, Charles Burck e Wilson Costa. Possui o blog Charles Burck: https://charlesburck.blogspot.com/



Famintos navegantes Vagam no nada Procuram caminhos Na impossível jornada

Vítimas indefesas Ficam sem pão Alimento negado Na soberba opressão

Sedentos tropeçam Prisioneiros da morte Encontram a dor A mais fria sorte

Tombam mortos No prepotente porão Mundo cruel De devastação

Náufragos do destino Na fria desolação Rumam sem rumo No árido chão

Sedentos por vida Encontram o destino A sina cruel Nos olhos do menino

Padecem na vida Angustiantes ais Caem inertes No frio cais

Olhos que suplicam Tristeza que consome Olhos de súplica Olhos de fome.

O poema “Olhos de fome” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É natural de Coaraci/BA, onde deu seus primeiros passos literários, tendo ao longo do tempo conquistado algumas premiações e diversas participações em antologias. É formado em Filosofia, Licenciatura em Humanidades e atualmente cursa Gestão Cultural.



Em minhas primeiras aulas de contabilidade eu não fazia ideia de quantos lançamentos analisaria em toda uma vida. Tudo parecia muito simples: debitar uma conta, creditar outra. Nada que a matemática básica e a lógica não permitissem executar com extrema simplicidade. Mas lidar com pessoas, isto é mais difícil. Eu sou do tempo em que o contador era chamado de “guarda-livros”. Por falar em livros, ainda guardo comigo os Livros Diário e Razão da primeira empresa em que trabalhei, preenchidos com todo o cuidado e com a caligrafia ensaiada durante horas e horas, em milhares de linhas de centenas de cadernos que usei. Guardeios depois que a empresa foi fechada pelo seu proprietário. Tudo evoluiu muito, o mundo é mais digital, mas as pilhas de papéis em meu escritório parecem não ter fim. Um amigo meu, adepto das histórias de teoria da conspiração, acredita que a legislação contábil e fiscal desse meu país foi ditada por empresas de papel e celulose. Eu defendo a teoria de que dominação global permanece viva e está sendo conduzida através de sistemas ERP. Quem sabe estes dois ramos de pensamento e alguns outros tenham se aliado ao Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas para complicar a vida das pessoas e das empresas. A ansiedade de quem governa pela arrecadação de tributos torna tudo confuso e difícil. Assim, a fiscalização, as auditorias geram ainda mais encargos para aqueles que contribuem. Cansado de tudo isto, resolvi me tornar auditor. Eu cobraria ao invés de ser cobrado. Puro engano. Há quem controle quem audita. Assim, tive que defender as contas da empresa para quem eu prestava serviços. Com toda a minha experiência eu me sentia muito seguro em relação ao trabalho. Foi um longo tempo de preparação e organização de pilhas e pilhas de documentação, muita informação digitalizada e depois incontáveis horas de explicação. Era eu quem fazia a interface com o chefe da equipe de auditoria externa. Todos os dias, ao final do expediente, eu encontrava o Otávio, o auditor-líder, e perguntava: – Está tudo bem? – Tudo bem! – respondia ele com um leve e simpático sorriso. E assim foi até o último dia: uma pergunta e uma resposta, simples. Me senti com o dever cumprido. Em trinta dias eu receberia o relatório. O tempo foi passando e acabei por esquecer momentaneamente da espera pelo resultado, até que certo dia, na volta do almoço, encontrei o pacote com o relatório sobre a minha mesa. Abri-o rapidamente. Fui logo ao final do último volume. Já no primeiro parágrafo da conclusão meu coração gelou. Não era possível. Dezenas de supostas irregularidades apontadas. Eu tinha explicação para cada uma delas, documentos que poderiam justificar cada um dos pontos. Agora explicar que focinho de porco não é tomada seria mais difícil. Minha empresa encontraria problemas junto a seus clientes e acionistas. Peguei o telefone e liguei para o sujeito.


– Olá, aqui é o Fausto, o responsável pela equipe de auditoria interna da KWY! – Sim, me lembro. Já recebeu os relatórios? – Esta é a razão da minha ligação. – No que posso ajudá-lo? – perguntou-me Otávio com certa indiferença e ensaiando um bocejo. – Durante o trabalho da sua equipe, todos os dias, ao final do expediente eu lhe perguntava se estava tudo bem. Você sempre me respondia: “tudo bem!”. Agora recebo todas essas constatações, tratadas como anomalias! – Sim, tudo bem, como lhe disse. – Não estou entendendo! – Tudo bem para mim, péssimo para você! Uma questão de ponto de vista – debochou o sujeito. O conto “Ponto de vista” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

Administrador, 57 anos, mora em São Mateus do Sul/PR. Possui mais de cem contos publicados em antologias impressas e digitais. www.adnelsoncampos.com.br. Assina a coluna Prismas em www.gazetainformativa.com.br/category/prismas/. É autor de Histórias que as estrelas contam - um pouco de astronomia para adolescentes.


Havia uma senhora muito conhecida naquela pequena cidade. Infelizmente, não por seus predicados, que eram desconhecidos de toda gente, mas sim pela sua lista de defeitos — um ato de terrorismo à parte. Em outros tempos, tempos que já se despediram do calendário, a mencionada senhora era chamada pelo seu nome de batismo: Helena. Com o arrastar dos anos, o esquecimento da gentileza e a avareza evidente, reforçados por um casamento próspero em moedas e infeliz em sentimentos, transformaram Helena em “Sra. Ebenezer”. Curto e grosso. Sra. Ebenezer ficou viúva antes dos cinquenta anos. Sem filhos ou protegidos, guardou a fortuna que lhe coube com a ferocidade de um puma. Não frequentava festas, eventos beneficentes ou visitava amigos e parentes. Sua única ocupação era ir à missa aos domingos e administrar as propriedades que o marido deixou. Algumas pessoas tentaram se aproximar da Sra. Ebenezer, mas foram rechaçadas ou ignoradas. — Não tenho tempo para jogar conversa fora — ela repetia toda vez que tentavam abordá-la. Nem mesmo os sobrinhos ou as irmãs, a única família que lhe restava, conseguiam tirar-lhe um sorriso ou afeto. — Sem jeito. Aquela ali já está morta e enterrada. Só que ainda não sabe disso — diziam para si mesmos quando se cansavam das investidas mal sucedidas. O fato é que, depois de todos aqueles anos isolada, a Sra. Ebenezer não se deu conta de que ainda não estava morta e nem enterrada, mas em breve estaria. Tudo começou com uma sucessão de desmaios. Depois vieram as náuseas, tonturas, dores e visitas constantes a médicos e hospitais. O resultado foi desanimador. Trancada em casa, apenas com a ajuda de uma cuidadora que com muito custo se permitiu contratar, a rica viúva passava os dias olhando para o teto, com o rosário nas mãos, esperando a hora fatídica chegar. Certo dia, quando a luz do amanhecer ainda não havia despontado, Sra. Ebenezer viu o que parecia ser uma sombra recostada em sua poltrona favorita. Pensando tratar-se da cuidadora, a velha disse: — Posso saber o que está fazendo sentada na minha poltrona? Sem se virar, o vulto respondeu: — De que vai te servir este objeto? Morto não precisa de poltrona. Morto? Ela teria escutado bem? Tomada pelo pânico, Sra. Ebenezer tentou se mover da cama, mas não conseguiu. — Oh, Meu Deus! Então é verdade... Eu morri! A iluminação pública adentrou pela abertura da cortina. O vulto tinha o rosto de uma jovem mulher. Um rosto familiar... Familiar demais. — Quem... Quem é você? A sombra caminhou até a velha convalescente. Sem hesitar, falou: — Olhe nos meus olhos, Helena!



Perplexa, pois há muitos e muitos anos não era chamada pelo seu primeiro nome, a mulher olhou. Então, ela viu crianças desnutridas e famintas clamando por uma migalha de pão. Viu mulheres e homens sujos, procurando restos na lata de lixo. Viu inúmeros doentes terminais gemendo e amargando uma vida que não viveram. Ela também pôde ver a necessidade de alguns de seus familiares, de rostos desconhecidos, humilhados, dominados, pessoas que só precisavam de uma chance... Por fim, Sra. Ebenezer viu as mãos calejadas da zeladora do colégio estadual. Isolda era o seu nome. Antiga colega de escola, sempre esnobada por Helena por conta de sua condição social. Uma mulher muito pobre que trazia nas costas mais portas fechadas do que ventos de esperança, mas que soube criar oportunidades para ajudar outros necessitados. Havia muita vida no corpo frágil de dona Isolda. Quando o dia amanheceu, a cuidadora entrou no quarto para executar os procedimentos de praxe na Sra. Ebenezer: remédios, café da manhã e o banho quente. Ao chamar a viúva, não obteve retorno. Então, pressentindo que o fim chegara, ela se aproximou da cama. Ao lado, na mesinha de cabeceira, havia uma carta. Antes de cerrar os olhos para sempre, Helena Ebenezer dividiu a sua fortuna entre as irmãs, os sobrinhos, a cuidadora e outras instituições filantrópicas. Uma parte significativa dos bens foi reservada em nome de Isolda Crafilda. Havia um bilhete endereçado a ela. No instante em que Isolda viu a letra, ela reconheceu a autoria. “Desculpe por tudo, Isolda. Anseio para que, em uma próxima oportunidade, eu aprenda a ver o mundo com os seus olhos. Com carinho, sua amiga Helena.” Isolda sorriu. Naquela pequena cidade, havia uma senhora muito conhecida por todos. Uma creche ganhou o seu nome. Costumavam chamá-la de “Creche da Tia Leninha”. E assim, Sra. Ebenezer passou a ser simplesmente “Leninha”. O conto “Sra. Ebenezer” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É jornalista, escritora e crítica cultural, dedica-se também ao estudo avançado de Teoria Literária e Literatura Comparada. Autora de livros de terror/suspense sobrenatural, acredita em enigmas e tem fascínio por observações silenciosas.



Eu te procuro em todo canto. No canto da sala, No canto, eu ouço teu canto. No entanto, A vista não permite que eu te atinja. Eu vejo dos teus olhos, E o vidro que tu usas me embaça. Eu olho, eu noto, E num segundo, te perco. Há vidro em meus olhos Que me arrancam as pupilas. Há vidros, eu te digo, e te perco de novo. Te procuro com meus olhos feitos de areia Que escorregam pelas tuas mãos. Te encontro deitado, no canto. Teu peito infla e o meu murcha. Te olho com meus olhos, esses mesmos olhos, E o que enxergo está diante de você. O fogo em meio ao gelo A perdição que há entre os muros e os postes sem luz. O peso de uma cruz. Eu te vejo, com seus próprios olhos, E te vejo doer naquele canto. Eu não consigo te levantar com o olhar; Teu peito murcha e meu infla mesmo perdendo o ar. O poema “Te vejo através dos vidros” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É de Maceió, Alagoas, do nordeste brasileiro. Estudante de economia, se expressa desta forma: através da escrita.



Sem aviso, vem atroz, És sorrateira e mortal. Tua fome é veroz, É ganancia imoral. É tão previsto o imprevisto... A dor vem em procissão, Não há luz, nos olhos o xisto! O ranço, asco aluvião. São as lágrimas nas Gerais Das Marias, Marianas. Vidas que não voltam mais. Presas em vasas profanas. Insólita inabalável, Ruiu na corrupção. E quanto Vale, o inefável? Quanto Vale, a abnegação? O poema “Xisto nos olhos” encontra-se narrado no perfil do projeto Motus na plataforma SoundCloud.

É mineiro, engenheiro, professor, ator amador, palhaço e contador de causos e histórias. Tem trabalhos em haicais, contos, poemas e trovas selecionados em vários concursos literários nacionais e internacionais, assim como publicações em antologias, também tem participações como ilustrador.


Nasceu em Alegrete-RS. Ilustradora e Engenheira de Software. Desde a infância, sempre teve uma criatividade muito grande e desenhar era uma das formas de se expressar. Sempre gostou de passar horas desenhando e olhando animações e isso sempre foi uma grande fonte de inspiração. Participou de todas as edições da Motus. Atualmente faz ilustrações por encomenda e ministra aulas de aquarela online. Frequentemente posta suas ilustrações nas redes sociais. Conheça um pouco mais do seu trabalho no instagram @amanda_gobus.


A equipe do projeto Motus agradece a todos os autores que olharam com os olhos do outro e participaram do concurso literário Motus #4, em especial, aos vinte autores que tiveram suas obras publicadas. Agradecemos à artista Amanda Gobus Lopes que, com sua sensibilidade, criou ilustrações inspiradas em cada obra, em cada olhar. Agradecemos à Alexandre Alderete Alves, Aliriane Ferreira Almeida, Kauê Vargas Sitó, Marileia da Silva Marchezan, Paulo Antônio Berquó Farias e Rosa Helena da Silva Martinez, que nos ajudaram a selecionar as belas obras que compõem este livro digital. Agradecemos à Marlucy Farias Medeiros, bibliotecária do Campus Alegrete e responsável pela ficha catalográfica. Agradecemos à Aline Vieira de Mello, Aliriane Ferreira Almeida, Amanda Meincke Melo, Ana Lúcia Vargas, Merlen Alves e Naiana Brossard Fantinelli que emprestaram sua voz e emoção na leitura das obras que se encontram disponíveis na plataforma SoundCloud. Agradecemos aos estudantes Antônio Freitas Valle Neto, Caroline Monteiro da Silveira, Dienefer Fialho dos Santos e João Victor Santos da Costa que colaboraram na diagramação e elaboração dos textos alternativos, permitindo tornar este livro acessível. Agradecemos à professora Amanda Meincke Melo, coordenadora da comissão local de extensão do Campus Alegrete e à Universidade Federal do Pampa pelo apoio. Por fim, agradecemos a você que lê esta página e acredita no poder transformador da literatura. Esperamos que você tenha enxergado com os olhos do outro e convidamos você a compartilhar este livro sem moderação!


MOVIMENTO LITERÁRIO DIGITAL


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.