REVISTA MORFEMA

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MORFEMA

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revista de ensaios sobre o espaço

P L A N O

Desde as primeiras manifestações de vontade de permanecer que o homem começou a transformar a sua envolvência, procurando conforto e projectando os seus desejos. Nasce o plano como manifestação desse devir. Do mais pequeno utensílio ao desenho de grandes cidades, o plano foi sempre expressão de hábitos, culturas, filosofias e políticas, mesmo quando não mais quis ser que instrumento para a resolução dos problemas e necessidades da crescente entropia civilizacional. Idealizações visionárias de um mundo melhor, ou revivalismos descrentes do progresso tecnocrático, utopias ou distopias da condição humana, o plano é expressão maior da nossa necessidade de imaginar, de projectar constantemente, a nós, ao espaço que habitamos e à forma como com ele interagimos. Porque de facto, homem é sonho, e sonhos planeiam-se.



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Plano Luís Gomes

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O Xadrez do Plano Ricardo Ibrahim

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Homem é Sonho Rui Aristides

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Ciudad Territorial Chinchaycocha Gabriel Vergara

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Do Palheiro ao Plano: Percurso Sonoro Rui Santos

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Cesar Marique: Viagem, Plano, Vida Miguel Roque

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PLANO Uma Descoordenada Coordenação Luís Gomes

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PLANO • LUÍS GOMES

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O XADREZ DO PLANO

Ricardo Ibrahim

Estávamos a terminar mais um daqueles almoços solarengos à beira da água, substanciado pelo peixe grelhado e regado a vinho branco. A conversa fluía solta como de costume, sem matriz, sem nenhum tema para concretizar, e dessa forma, despropositada, deambulante, ao sabor do whisky na chávena do café, fomos mergulhando em mais um confronto de perspectivas distintas, em alguns momentos díspares, mas que também, e como quase sempre nas nossas conversas, não faria sentido serem defendidas sem que a outra se tentasse afirmar. Como de costume, não chegámos a nenhum veredicto, a nenhum consenso absoluto ou admissivelmente perene. Ficámo-nos pela às vezes consensual, às vezes desconfortável, mas sempre complexa zona acinzentada, aquela que se afasta dos extremos, dos dogmas generalistas, e que de alguma forma tenta alcançar o maior número de pontas soltas, todas as nuances, para no final se esbarrar uma vez mais na enfadonha barreira da condição humana, nas condicionantes que cada indivíduo aporta à sociedade e com as quais a define, através do seu ethos, através das suas ideias, através da sua ganância ou da sua inoperância,do seu esclarecimento ou da sua apatia; sendo que uns a definem - à sociedade - com mais veemência do que outros, ou se quisermos, essa capacidade de definir é proporcional ao poder de cada indivíduo na sociedade; sendo válido também o seu reverso, cada sociedade baliza com maior ou menor veemência a capacidade de emancipação e liberdade dos seus indivíduos. Discutíamos o território, mais concretamente o seu planeamento. Eu, como era costume, tendia para argumentos de índole mais racionalista e materialista, defendendo que sem um território minimamente planeado e organizado, é normalmente mais difícil às populações contemporâneas alcançarem determinados níveis de prosperidade e bem-estar. Desde a revolução agrícola e do consequente início do planeamento das plantações, não faltam exemplos de como certos avanços civilizacionais estiveram ligados a determinadas formas de planeamento ou de organização do território e exploração inteligente dos seus recursos. Se primeiro se deu a sedimentação agrícola na Mesopotâmia, já os romanos desenvolveram as estradas, as pontes, os aquedutos. A Idade Média viu o surgimento das cidades muralhadas com as suas ricas soluções de 6


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loteamento adaptável ao longo do tempo e à medida das necessidades, quase nunca rigidamente ortogonal, deixando portanto algum espaço ao improviso, gerando assim as adoráveis ruas sinuosas, as pracetas e recantos dos actuais “cascos históricos”; não obliterando os desafios que aí se impuseram relativos aos padrões de higienização contemporâneos. Apesar de que hoje em dia esses cascos se vêm nas mais das vezes transformados em aglomerados museológicos para turista ver, porque, com alguma razão, não lhes apetece deambular pela disciplinada e repetitiva cidade moderna, com as suas linhas rectas, ruas muitas vezes demasiado largas, uma repetição monótona de cruzamentos, em suma, a percepção de um plano pré-estabelecido que muitas vezes não deixa espaço para excepções à sua regra, excepções essas que, se bem doseadas, poderiam desanuviar esse sentimento de plano impositivo e exaustivo. Entretanto os ingleses tinham despoletado a possibilidade da produção em massa resultante da Revolução Industrial, que tantas melhorias trouxe a muitos aspectos da vida humana, mas que ao mesmo tempo criou precisamente o conceito de massa, tanto que hoje até a música ou a comida são feitas em massa. Efeito de massa esse também derivado quer do aumento exponencial da população humana bem como do aumento da sua experança média de vida. Voltando à organização do território, lá estava eu a defender que é necessário pensar e organizar o território, que até do avião se conseguem distinguir os diferentes países sobre os quais voamos pelos seus padrões territoriais, e sem grandes surpresas o tipo de padrão já nos avisa para o quão bem ou menos bem vivem as suas populações, sobretudo em termos materiais - naturalmente, o tema do planeamento e da organização da cidade também ele de certa maneira se enquadrava nestes meus argumentos, apenas noutra escala. Mas já o Gervásio se começava a mexer na cadeira, inquieto com tanta certeza de que uma coisa é necessariamente o resultado da outra, ou que existem soluções generalistas e absolutas, e iniciava a sua exposição sobre as consequências que um excesso de organização e de planeamento poderiam ter na forma de ser das populações, na forma como as pessoas dessas populações se relacionam entre si, nos seus “índices de espontaneidade”, na sua capacidade de viver o presente sem pensar em demasia no futuro, porque isso nos priva do presente, tal como a nostalgia do passado. Foi assim que a conversa se agarrou ao seu fio condutor, segundo agora me vou lembrando. Por um lado o acordo sobre o facto de que o planeamento em muitos aspectos trouxe e traz melhorias - sobretudo materiais, mas não só - à vida dos seres humanos; por outro lado, a ideia também consensual de que não só o material toca apenas numa parte da nossa existência, como o excesso de planeamento pode aportar limitações à nossa criatividade, à forma como nos relacionamos entre nós e com o meio que nos rodeia, e também à nossa liberdade individual, no sentido de podermos viver de acordo com os nossos próprios

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desejos e princípios, sendo que neste último ponto poderíamos começar a aflorar os temas da democracia e da anarquia, mas não fomos por aí. Nesta altura eu aludi para o facto de que, uma vez que somos cada vez mais, e temos necessariamente que coabitar uns com os outros, o planeamento adquire um papel preponderante, nomeadamente através da densificação urbana por exemplo, porque uma das alternativas - utópica e simplista, entenda-se - seria irmos cada um para o seu pedaço de terra viver isoladamente. Mas como somos já tantos neste planeta, se cada um fizesse isso imagine-se o que restaria de Natureza digna desse nome, para não falar dos pobres dos animais, cuja opinião só não entra nesta conversa por estes não serem capazes de exprimir a sua opinião, pelo menos por meio de palavras. Existem dados estatísticos que prevêem uma estabilização da população mundial nos onze biliões de pessoas lá para 2050, e nesse caso, se de facto o crescimento da população mundial estabilizar, será mais fácil desenvolver modelos de ocupação e exploração territoriais que permitam uma maior variedade de opções dados os maiores índices de previsibilidade. Mas regressando à discussão do território na contemporaneidade, a questão poderia talvez passar por que estratégias de planeamento adoptar consoante os determinados contextos e os seus aspectos característicos; aqui não me referia tanto às questões materiais do planeamento territorial, mas sim à sua vertente política, por exemplo à verticalidade vs horizontalidade do planeamento, bem como à sua capacidade orgânica, no sentido de ser mais adaptável e flexível dada cada situação específica, sem deixar de cumprir o seu papel agregador e integrador. No fundo, defendia a oportunidade de se tentar desenhar e coordenar possibilidades de planeamento que tivessem a capacidade de colocar em confronto os conceitos de bottom up e top down no sentido de se desenvolverem ideias de planeamento mais democráticas e participativas. Fazendo no entanto a ressalva para a importância da credibilidade das disciplinas especialistas precisamente no campo do planeamento. O Gervásio anuiu positivamente a este ponto, e em jeito complementar, aludiu para a maleita do planeamento homogéneo da humanidade que acontece nos nossos dias, apesar de essa homeneização se ter iniciado há séculos, ou mesmo milénios, consoante quisermos considerar os inúmeros “cruzamentos de civilizações” distintas ao longo da História. Contudo, a homogeneização actual é mais avassaladora, assente num afunilamento de valores e crenças, tidas como universais, sem que se atente sobre as diferenças culturais e históricas, ou ainda sem que se deixe espaço à tentativa de formas alternativas de organização, seja social, política, económica ou territorial. No fundo, ele estava a notar para a abusiva imposição de um modelo de sociedade que se vive nos nossos dias, e que se torna a cada dia mais esmagadora, dada a força dos mecanismos que veiculam essa imposição, sejam as novas tecnologias mediáticas que muitas vezes criam

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dependentes em estado vegetativo; sejam determinadas corporações globais cujos logotipos encontramos nos locais mais inesperados, quais polvos aniquiladores de identidades e costumes locais; seja a vassalagem através do trabalho, baseado na ideia perversamente criada de que não há trabalho para todos, mas que ao mesmo tempo admite que a canalização da riqueza do trabalho dos que trabalham seja usufruída por uns poucos, não nos libertando da sórdida necessidade de viver para os outros, como expôs Oscar Wilde; prova disso é a subsistência das exacerbadas assimetrias sociais a nível global. Obviamente, também eu tive que anuir positivamente à pertinência desta questão, já antevendo que a conversa tendia a extrapolar a esfera do território. Nesta altura ambos olhámos para a água, com aquelas caras de quem não sabe bem de que cartuxo puxar a seguir. Veio-me então à cabeça a questão da responsabilidade, que significa basicamente a tentativa de estabelecer até que ponto a situação concreta de cada indivíduo é resultado da sua acção individual e da sua responsabilidade, e que parte dessa situação é resultado do planeamento da sociedade em que o indivíduo se insere. Esta questão é também válida se “aumentarmos a escala” para o nível da população ou nação; até que ponto a situação concreta de cada população é fruto da sua acção e da sua responsabilidade colectiva, e que parte dessa situação é fruto das forças e modelos globais actuais. Mais uma vez me começou a “cheirar” a cinzento. Pela cara do Gervásio, podia ver que lhe “cheirava” ao mesmo. O que me passava agora pela cabeça era a ideia algo difusa de que, actualmente, os indivíduos, populações ou nações com maior capacidade de planeamento e organização, estão a conseguir viver mais prosperamente do que os indivíduos e populações que não se adaptaram a essa forma de encarar a vida e a organização social e económica, tendo as primeiras também, actualmente, uma maior capacidade de imposição dos seus modelos às segundas. A imposição dessa adaptação é ilegítima. Mas a rejeição dessa imposição por parte dos que não a desejem só se tornará possível através de dois feitos: primeiro, que os indivíduos e populações que almejam outra ou outras formas de organização não se coloquem numa situação de dependência em relação aos indivíduos, populações ou organizações impositivas, dependência essa normalmente do foro materialista; ao mesmo tempo, têm que ser capazes de, colectivamente, gerar modos de organização alternativos que lhes permitam a emancipação dos seus ideais de vida individual e colectiva, permitindo-se assim viver em concordância com esses ideais. Neste momento, sem sentir a necessidade de rebater os pontos anteriores, o Gervásio achou oportuno introduzir o tema do consumismo na conversa. Apenas para expor em forma de parêntesis a ideia de que nas sociedades mais prósperas dos nossos dias – prosperidade essa normalmente assente em níveis

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de organização e planeamento mais consistentes, como referido anteriormente - os seus elevados níveis de produtividade geram frequentemente um superavit financeiro que pode ser sentido inclusive nas suas classes médias. Estas muitas vezes encontram no acto da aquisição uma forma de satisfação recorrentemente vazia de razão, mas que as faz alimentar a convicção alienante de que essa conduta ou esse modo de vida tem um sentido em si mesmo, e como que fecha o círculo, ou seja, trabalhar para consumir e consumir para trabalhar. Aqui o ponto não será forçosamente questionar a necessidade ou a quantificação do trabalho; existe obviamente a necessidade de trabalho e a sua quantificação será proporcional a essa mesma necessidade. O que estávamos a tentar discutir neste ponto é o limbo entre quantidade de trabalho e satisfação do conforto material, ou seja, se uma pessoa ou sociedade querem atingir um determinado padrão de conforto material, será necessariamente através da sua produtividade que se torna possível atingir esse conforto. Por outro lado, é possível perceber em muitas pessoas e nalgumas sociedades a vida numa espécie de “roda solta”, isto é, como referi acima, o facto de o seu desejo de aquisição contínua se traduzir na necessidade de certa forma artificial - de trabalhar incessantemente apenas com o intuito de alimentar esse desejo. Aqui tornou-se necessário notar, ainda que muito genericamente, as distinções entre sociedades, como por exemplo no caso europeu, onde as diferenças existenciais entre o Norte e centro da Europa face ao Sul da Europa são ainda visíveis. Derivado de muitos factores com certeza, dois dos quais poderão ter que ver com o clima e até certo ponto com a religião (protestantismo/catolicismo), é perceptível uma conduta mais pragmática relativa ao materialismo e ao consequente conforto terreno por parte das sociedades do Norte; conduta essa necessariamente associada ao valor dado ao trabalho que permite esse “conforto” material. Numa espécie de pequeno interregno, aqui naturalmente ambos concordámos que a liberdade individual é um pilar absoluto numa civilização emancipada; cada indivíduo deve poder viver segundo as suas próprias crenças e valores, conquanto esses não colidam com a liberdade, respeito e justiça para com os demais. Contudo, muitas crenças podem ser percebidas como patológicas quando vistas de fora, à distância, sejam elas materiais ou existenciais. Resumindo, o que o Gervásio queria notar com o tema do consumismo era a ideia de que um intenso planeamento e organização da vida de determinada sociedade, nomeadamente através do planeamento económico e do trabalho, parecer traduzir-se numa exacerbação do aspecto material da vida, ou melhor dizendo, no aspecto materialista da vida; gerando um círculo vicioso onde factores mais existenciais e de conforto psicológico ou social são descurados em prol duma ideia hermética, mas aceitavelmente confortável, ainda que alienada, que é o

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facto de o desejo irracional de adquirir nos limitar a capacidade de observar mais atentamente as riquezas naturais e as riquezas não materias à nossa volta. Essa incapacidade espelha-se quer em termos sociais quer em termos ecológicos (no sentido lato do termo), mas também através da dificuldade de nos observarmos a nós mesmos, de termos o tempo e sobretudo a predisposição para reflectirmos sobre o nosso modo de vida, já que, ainda que cheguemos à conclusão de que nada mudaríamos nesse modo de vida, fá-lo-íamos de forma consciente e não como uma espécie de ovelhas absortas na corrente das tendências. Terminado o parêntesis do consumismo, resolvi introduzir na conversa o tema da segurança. A sensação de segurança é um dos principais factores contribuidores para os índices de felicidade das populações. Seja a sensação de segurança em termos de saúde, a sensação de segurança em termos financeiros, a sensação de segurança da nossa integridade física, a sensação de segurança na liberdade de exprimirmos as nossas opiniões, etc. Partes dessa sensação de segurança não dependem, de todo, do planeamento, nem de factores materiais; a segurança da integridade física ou da liberdade de expressão resultam directamente de factores políticos, dos níveis de educação e de emancipação das sociedades. Já a segurança de saúde ou a segurança financeira, para dar apenas dois exemplos, essas sim dependem de factores materiais, que estão necessariamente ligados ao tema da produtividade. Por um lado, eu começava por dizer que o planeamento social, através do desenho legislativo que permita o acesso satisfatório à saúde, à educação, bem como uma rede de segurança social que nos permita viver com dignidade no caso dos imprevistos e fatalidades, que em qualquer momento podem acontecer, todas essas “seguranças” são normalmente mais garantidas em sociedades com níveis de organização mais elevados, assentes em níveis de produtividade também elevados, que permitem precisamente os meios materiais para desenhar redes de segurança e de acesso mais generosas. Essa segurança é também consequência de menores índices de corrupção no seio dessas populações, permitindo uma horizontalização social mais efectiva, através duma distribuição mais justa e equilibrada da riqueza. Pela expressão do Gervásio, creio que ele entendeu que eu defendia que, de alguma forma, o planeamento legislativo, fiscal e económico seria sempre necessário como garante do alcance das “seguranças” atrás referidas. Neste ponto interessou alertar para a relativa indiferença de se tratar de um Estado mais socialista ou mais liberal, conquanto seja um Estado justo por meio da regulação. Veja-se os exemplos da Suíça e da Suécia, dois Estados distintos quanto ao seu papel publico-privado, mas onde a segurança é sentida de forma muito similar. Sem surpresa minha, já o Gervásio se preparava para a retaliação, como eu esperava e desejava, porque tinha a perfeita noção de que os meus argumentos

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não eram completos, não cobriam todas as possibilidades. Pelo que ele começou por notar uma espécie de ideia de facto, de que nessas sociedades mais planeadas, mais organizadas se quisermos, há uma tendência para o individualismo e para uma conduta de vida mais “maquinal” do que nas sociedades menos planeadas e menos organizadas. Existe nas primeiras normalmente menos espaço para o inesperado ou para a surpresa, para o lado mais poético e metafísico da vida. Eu anuía com a cabeça, porque compreendia perfeitamente o que ele queria dizer; estava a referir-se ao confronto daqueles dois gráficos que definem pessoas e sociedades, um representado por uma linha horizontal, constante, confortável, mas por vezes aborrecida, o outro representado por picos positivos de euforia, mas também porpicos negativos de dramatismo, por picos negativos de confronto e de inquietude, mas também por picos positivos de sensação de harmonia ou “orgia colectiva”. Mais uma vez ambos perdemos o nosso olhar no mar, sem saber como seguir, onde nos posicionarmos… Onde estaria o equilíbrio? Haveria um equilíbrio? Seria necessário um equilíbrio? E onde é que o planeamento de determinada sociedade passa a fronteira depois da qual esse planeamento interfere com as liberdade individuais. Até onde deve prevalecer o contracto social, e a partir de onde se deve instituir a liberdade individual. E talvez uma das questões mais agudas, quais os limites onde a liberdade e poder de alguns indivíduos ou organizações interfere e entra em conflito com a liberdade e poder de tantos outros? O mesmo se podendo perguntar em relação a populações e nações. Serão necessários certos tipos de códigos de conduta ou de salvaguardas préestabelecidas para que o curso de História não nos dirija para uma humanidade “monocromática”? Serão possíveis sistemas políticos alternativos ainda mais avançados do que a democracia sob a égide dos quais haja um maior sentimento de justiça, de prosperidade e de bem-estar? Nesta altura as nossas caras pareciam feitas de betão. Ainda assim, esta conversa teria durado muitas mais horas, sempre com pontos e contra pontos sobre os lados mais salutares e os lados mais artificiosos da ideia de planear em tantos aspectos e vicissitudes da existência individual e colectiva.

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HOMEM É SONHO

Rui Aristides

Ao contrário do bom-senso, o estudo do espaço organizado não nos dá acesso a mudanças culturais fixas e intemporais, que podemos deleitar da distância segura do presente. Antes, é do persistente conflito no definir de um presente e, como tal, de um passado, que o espaço nos fala. (Rujio Molleriau, Para os perplexos, 1934) Desde o início dos tempos, dizem homens, que o Homem, que é um gaijo normal mas com uma maiúscula, criou o que se veio a chamar de cidade. Arando um pedaço de terra, escolhendo o lugar para a casa, erguendo espaços colectivos, tentando permanecer numa paisagem, o mesmo gaijo de maiúscula articulou planos, o Plano, a organização do espaço, pelos vistos uma cidade em devir. Cidade e Comunidade tornam-se aqui dois lados da mesma moeda, planeada e forjada pelo mesmo gaijo de maiúscula. Este artigo é acerca das questões: que é isto do plano que existe desde sempre e tem uma cidade lá dentro? E porque é que sonha com homens? Avançarei por partes genericamente organizadas assim: cidade? plano? homem? Primeiro, então, lido com alguns problemas de partida quando dizemos que plano e cidade são indissociáveis ou que o segundo está contido no primeiro. Depois, lido com a questão de planear, o que é esta actividade, como podemos descrevê-la e que questões levanta. Por fim, discuto como é que plano, cidade e sociedade se encontram muito frequentemente no gaijo com maiúscula. A história é tanto um mérito de existência colectiva, bem como um arrastar de malentendidos, por isso, grande parte deste ensaio de opinião, é só o que eu acho1, é acerca de mal-entendidos sobeja e victoriosamente reproduzidos por gaijos. Supostamente com raiz na palavra latina afflare, achar é aqui o acto de cheirar o rastro da caça, mas também o acto de soprar vento, no fundo é bufar, que é o que este artigo é: um bufo prolongado acerca de homem ser um sonho e de haver uma cidade quando acordamos. 1

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Cidade bff? Nem tudo o que se planeia tem a ver com a cidade ou cidades. A cidade não é condição para o plano, embora este seja condição para a cidade - dizem os críticos da cidade informal ou de lata ou dos operários pós-modernos, ou líquidos, depende da preferência. Ao longo do tempo, no entanto, cidade e plano passaram a compor um padrão de significado com ambições globais. Na medida em que se começou a articular comunidade com cidade de forma mais frequente, planear passou a implicar uma cidade, imaginada, concreta ou desejada. Pois neste esquema de pensamento, planear como actividade comunitária já seria à partida um repensar da forma colectiva por excelência: a metrópole. Isto em termos abstractos mas, fácilmente, damos corpo a esta inferência dominante se pensarmos na ideia, hoje comum, de que a maioria da população habita cidades. Um exemplo concreto de como o plano implica cidade, mesmo indirectamente: hoje planeio cozinhar um caril de bróculos, nada tem a ver com cidade. Criar este caril não implica pensar na cidade, projectar uma sua ideia de funcionamento ou, ainda mais elaborado, traçar-lhe um plano, ou implica? O problema é que vou ter que obter os ingredientes para o caril e, claro, ter uma receita, para não falar nos vários utensílios de cozinha, no gás que utilizo para cozinhar e na água que precisarei. Esta chega ao meu caril através de um complexo sistema de abastecimento metropolitano, regional, com vários pontos de pressão e tratamento; sofisticadamente desenvolvido para fazer aparecer, aí está, a cidade. Gás, é mais ou menos semelhante, para não me repetir. Quanto aos ingredientes que precisarei para criar o caril, pois de facto terei que pensar na cidade, ter uma visualização do seu funcionamento, distribuição e fluxos, bem como dos seus limites e barreiras. Para conseguir obter os vários ingredientes vou ter que fazer um plano urbano, uma pequena cidade só para o meu caril: um trajecto. Os ingredientes, por sua vez, fizeram longos trilhos em várias outras cidades e infra-estruturas inter-metropolitanas para eu poder sequer conceber planear fazer um caril. Creio ser claro o ponto: um caril nada tem a ver com a cidade mas, até tem. Dir-me-ão, “mas isso é porque vives numa cidade e não numa aldeia na India.” Ao que eu responderei, “sabias que 90% da população mundial vive em cidades.” A questão que quero salientar, no entanto, não é o significado deste número mas que a cidade não só é concebida como sonho especificamente humano, é concebida como berço da civilização em si – se tal coisa existir; pessoalmente considero espécie uma palavra melhor para auto-definição. Como é que reza a história? Muito atrás no tempo haviam grupos de pessoas que andavam de um lado para o outro, seguindo os ciclos produtivos da paisagem para sobreviver. Chamámos nómadas a estas. A uma dada altura, algumas destas

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pessoas planearam umas enxadas e começaram a ficar só num sítio. Começa o sedentarismo. Mas estas pessoas ainda não se chamavam civilização, não viviam ainda em cidades. Eram apenas uns grupos, comunidades, que se fixaram numas zonas férteis e até nem viviam mal. A uma dada altura este plano foi tão bem sucedido que começou a concentrar bastante gente e é então que surge a cidade. A esta concentração de gente já chamámos civilização e tornou-se habitual representar a identidade humana como tendendo para o urbano, para a cidade. Claro está que desta identidade em movimento histórico, alguns homens excluíram todos os que não se queriam juntar à festa urbana. A lista é grande, tão grande quanto os livros de dupla entrada usadas por esclavagistas, maior até. A verdade, no entanto, é que uma maioria das civilizações antigas, ou pelo menos aquelas das quais temos registos, venceram a fome, a violência e a mortalidade através de cidades: Assírios, Egipcios, Persas, Gregos, por aí a fora. Esta história deu razão a uma ideia poderosa: se civilização é aquilo que nós, como colectivo mortal, aspiramos ser então é nas cidades que o demonstramos; é lá onde resiste e se projecta uma história de sobrevivência e desejo. Creio não ser necessário lembrar que os aldeões indianos, que não precisam de pensar na cidade para fazer um caril, nada tiveram a ver com isto. Aliás, esta poderosa ideia é especificamente “Ocidental” ou, em termos menos pretensiosamente geográficos, branca, uma ideia de gente branca: Gregos, Romanos, etc.2 No fundo, uma ideia esculpida daqueles gaijos com maiúscula designados de berço da civilização branca. Podemos contemplar a utilidade prática de tal ideia. Por exemplo, quando alguns Portugueses chegaram às margens Atlânticas das Américas não foi preciso um grande salto do intelecto para perceber que a gente que lá vivia era claramente pouco civilizada; aliás, que não tinham civilização sequer, não sabiam nada e, por isso, não se importariam com uma série de violências organizadas para fins civilizacionais. A maioria vivia em barracas, outros nem barracas tinham, viviam debaixo das árvores, andavam para ali sem plano, nem rei. Primeiro mal-entendido: que o casamento entre civilização e cidade resulta de um amor orgânico, natural e inelutável. Há aqui e, pelos vistos, ainda durante muito tempo, uma longa história de conflito real, não intelectual, entre cidade e aldeia.3 No esquema das grandes simplificações que nos ajudam a viver bem num planeta profundamente desigual, Sim, eles eram todos mais moreninhos do que retratados por actores Norte Americanos e Ingleses em filmes de Hollywood, no entanto, eram suficientemente brancos para usarem isso como distinção e marco de superioridade sobre povos mais escurinhos e ,também, mais brancos. A este propósito ver Vitruvius, Ten Books on Architecture, Cambridge: Harvard University Press, 1914: book VI. 3 Para uma história da cidade que navega, nervosamente, este conflito ver Lewis Mumford, The City in History, London: Penguin Books, 1991. 2

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é agradável e instrumental poder equiparar uma a civilização, desenvolvimento e grandeza, e outra a retardo, pasmaceira e limitação. Afinal de contas, prefiro planear fazer um caril de bróculos e, para isso, ter que visualizar toda uma cidade, do que não ter outra coisa para comer senão caril de bróculos.4 Mas para isto funcionar bem, convém estar do lado da civilização urbana. O que torna o enamoramento entre plano, civilização e cidade tão pouco inofensivo é uma velha interpretação do dito berço da civilização branca. Na realidade, este é talvez um primeiro, senão o primeiro, afrodísiaco para a badalhoquice que plano, civilização e cidade fazem juntos. Reside na resposta para a questão: a que é que os Gregos chamavam cidade? Polis, claro. Acontece, porém, que também chamavam polis a comunidade, aliás, uma tradução mais rigorosa da palavra seria: agrupamento das pessoas de uma terra em colectivo organizado ou comunidade política. Politeia, palavra origem de política, fazia o par da polis. Não havia aqui nenhuma cidade, talvez lugar fosse uma tradução mais rigorosa. Independentemente disto, vários homens optaram por inverter o sentido geneológico: invés de politeia implicar um agrupamento organizado de pessoas, cidade implicou politeia. Os não citadinos, por dedução, não teriam então politeia, bárbaros! Não por acaso, Aristóteles categorizou de bárbaros aqueles sem polis. Aliás, este filósofo é parte fundamental de um mal-entendido fundador: To distinguish the different forms of association we must use an analytic or genetic method, tracing successively the association of the household, that of the village, and the of the polis. The polis, or political association, is the crown: it completes and fulfils the nature of man: it is thus natural to him, and he is himself ‘naturally a polis-animal’; it is also prior to him, in the sense that it is the pressupposition of his true and full life.5 Podemos ver aqui toda a estrutura lógica para associar plano com cidade, com civilização, com superioridade. A polis precede o próprio pensamento, o próprio plano, como destino da elevação humana. Acontece, no entanto, que ao longo do texto, Aristóteles nunca fala de cidade, não descreve polis como se se tratasse de Atenas. Refere-se sim a associação humana, estado, organização com sentido. Os estudiosos, talvez justificadamente, pensaram: pois isto não quer dizer cidade mas Aristóteles era Ateniense, por isso, muito provávelmente ao dizer polis como a mais elevada criação do homem - eram só homens que gostavam muito de rapazinhos - queria dizer cidade; para além disso, ele referePropositadamente exagerado para fins retóricos. Há muito mais, mas muito mais, a comer numa aldeia indiana do que caril de bróculos. 5 Aristole, Politics, trans. Ernest Barker, New York: Oxford University Press: 2 (book1, chapter 2). 4

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se a polis como uma coroa, tal qual a Acropolis.6 Como disse anteriormente, este pensamento foi bastante útil pois havia por aí muita gente que não era nada elevada por implicação, mulheres, bárbaros, escravos, déspotas sentados em cima de reservas de ouro, prata e ferro, entre muitos outros. Mas vamos assumir que esta interpretação de polis não tem tal sentido político – de defesa da superioridade de uma comunidade sobre outra para os fins dos poderosos da primeira – o que é que a realidade histórica nos diz de optarmos por associar polis a Atenas ou a uma “coroa”? Diz que optámos por enraizar a ideia de cidade num estado desigual, guerreiro e, muitas vezes, colonial, sem problemas em desvastar comunidades vizinhas, quando estas ameaçavam o seu monopólio comercial, por exemplo. Pois Atenas era precisamente tudo isto, os seus filósofos-reis defensores de regime, arquitectos de uma civilização que queria aparecer superior. Na realidade, a Grécia antiga era maioritariamente vivida em vários pequenos aldeamentos, ajuntamentos, cidades difusas umas, outras muralhadas, quase sempre em guerra umas com as outras, mas maioritariamente colaborando no tecer de uma região rica em experiências existências. Só alguns destes ajuntamentos praticaram violentas ambições imperiais, entre eles Atenas. Segundo mal-entendido: que a cidade é o destino natural da comunidade política, da paz, veículo da libertação humana. Quando alguém vos disser que 90% da população mundial vive em cidades, duvidem; se calhar é um imperialista, quase de certeza chauvinista. Ou então respondam, “se calhar 90% da população vive em aldeias que resolveram juntar administrativamente e chamar cidades, e apenas 10% vivem mesmo em cidades.” Que a cidade é complexa demais para caber no seu próprio nome é simples de perceber; agora que a cidade é a natureza política do gaijo com maiúscula, o mais elevado produto deste,7 a condição de emancipação per se, já é puxar a perna. Cuidado. Plano ou planta? Vamos então para algo mais inofensivo: o plano. Que tem a problemática natureza da cidade a ver com planear? À partida nada. Planear cozinhar um Akros quer dizer em Português “ponto elevado,” “pico” ou “summit” em Inglês e corresponde, na Grécia antiga, às zonas mais comuns de implantação de aglomerados, aldeias e futuras cidades. Foi em grande medida a geografia que determinou o relativo isolamento e, como tal, paz, bem como a formas dramáticas e contemplativas das cidades e aglomerados Gregos. Curiosamente, foi nas regiões de grandes planícies que houve tentativas de coligar várias cidades-estado em federações de cidades. 7 Como disseram vários ilustres gaijos ao longo da história como, por exemplo, o incontornável antropólogo Francês Claude LéviStrauss em Os Tristes Trópicos. 6

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caril de bróculos é um plano urbano, implica organização de espaço citadino, principalmente no sentido em que eu sou um habitante da urbanidade moderna e, como tal, o sonho do caril de bróculos emana dessa condição. Voltamos à aldeia indiana. Se lá vivesse, o meu projecto de caril não seria urbano. Logo, há planos que não envolvem o urbano. A enxada planeada por uns nómadas há milénios atrás não era urbana à partida, no entanto, o seu efeito foi urbano, no sentido em que fez-aparecer, na cadeia de acções que permitiu e influenciou ao longo do tempo, aglomerados humanos eventualmente interpretados como urbanos. Será que isto quer dizer que todo e qualquer plano que involve a organização é tendencialmente urbano? Como alguns arquitectos gostam de lembrar: já nascemos arquitectos, somos todos espacialistas à partida, no sentido em que mal existimos, existimos em espaço organizado. O próprio útero é um espaço organizado, dirão os mais existencialistas. Como veremos mais à frente, há muito a dizer da nossa relação com o útero espacializado mas, por agora, voltemos à natureza arquitectónica da existência. Seguindo esta lógica, de facto e como anuncia o presente editorial, o acto de transformar espaço pela acção do nosso corpo é já um plano, mesmo que não seja desenhado ou concebido como um plano, no sentido moderno. É importante lembrar que a própria deslocação no espaço constitui uma organização do espaço: disto lembraram-se os modernistas ao “descobrir” a promenade architecturale como estrutura compositiva. A questão é, então, a partir de quando e de que elemento ou acção, algo tão natural quanto a deslocação se transforma num plano? Aqui terei que dar uns toques de filosofia clássica. Após Descartes tornou-se mais comum, para as elites iluminadas, conceber a acção humana como aquela que é conduzida pelo cogito ou o pensamento racional que emana do cérebro; e pensavam que vinha mesmo só daí. Gerouse então a divisão entre mundo sensorial e pensamento: os homens viviam no mundo através do seu pensamento, que tendia para um ideal católico; as mulheres ainda não tinham disto na altura. De um lado, a realidade concreta e crua, do outro a elevação racional, a única forma de existência promovendo um caminho, paradoxalmente, empírico para a salvação. Os iluministas, por sua vez, como Kant e Schiller, sem demolirem este central edifício da mundivisão branca masculina, procuraram retraçar a ponte entre pensamento e o sensorial. Aqui chegou-se à coisidade inelutável das coisas, por um lado e por outro, ao acesso a esta coisa apenas através do pensamento. Parece a mesma ideia avançada por Descartes mas, não é. Aqui o pensamento não existe em si mas, como subjectividade que resulta da interação com leis universais: a moral kantiana. Igualmente importante, implicado nesta ideia aliás, esteve a noção de que o pensamento não existe simplesmente num plano próprio e paralelo à realidade

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sensorial mas, pelo contrário, cria inúmeras dependências com esta pois está continuamente a refazê-la: o próprio pensar sobre o mundo e a sua coisidade é a transformação dele. Coisidade deixa então de ser algo inacessível, para ser uma instanciação do pensamento. Dito de forma simples: criamos o mundo só de pensar nele. Como o mundo nos cria sem pensar em nós é outra questão, uma que estes iluminados não conseguiram responder conclusivamente. É a partir destas teses iluminadas que a ideia que fazemos de planear, do plano, se altera de forma radical. Adquire direcção, especificamente direcção moral. Há um percurso para o plano subjectivo dos homens; não, as mulheres ainda não tinham disto na altura. Plano passa a ser entendido como algo muito mais perto daquilo a que os arquitectos chamavam projecto: uma antevisão desenhada para fins instrumentais muito especificos e à qual corresponderia uma estrutura moral, um conjunto de leis, uma hierarquia de existência. Para os iluministas eu não deveria dizer que “planeava” cozinhar um caril de bróculos, isso não qualifica como plano mas, simplesmente, como ímpeto sensorial: desejo. Ambas as palavras têm aqui um divórcio persistente: plano e desejo. Homens planeiam, mulheres desejam. Plano traz consigo hierarquia e um sentido de mudança estrutural, desejo é apenas diário, fugaz, contingente, sem base nas universais leis morais que um pequeno alemão descobriu há três séculos atrás. Por isso, o plano não nasce de um devir natural, animal, que nós humanos partilhamos com os outros habitantes do planeta e o planeta em si, como complexo sistema de vida. É muito raro ouvir um humano dizer que aquele cão planeou comer o resto do seu almoço; ou que uma sapateira planeou mudar-se para o Recife após muita ponderação dos perigos na travessia atlântica; ou ainda que uma bactéria planeia governar o mundo através de lentas coligações com outras bactérias. Animais não fazem planos, a Natureza não faz planos, ao contrário, é um plano feito por homens divididos em complexas tensões entre dominação-subjecçãoautonomia.8 Ou assim aprendemos da boca de homens iluminados com planos. É aqui que a questão atrás formulada se torna muito complicada. Como é que algo tão simples e natural quanto o movimento, a deslocação, se transforma em plano? A resposta mais imediata, fazendo curvas rápidas e apertadas em torno de possíveis controvérsias: quando se projecta como lei e quando digo lei refirome a uma forma de conter a comunidade, não ao artigo nº10 do código cívil 1078 de Novembro de 1974; se bem que isto é, nada mais, nada menos, que um corpo externo para regular um interior comunitário, de forma não muito diferente da cidade, embora com menos pedra, ferro, betão e gastos de todo o género. Dito de outra forma: a deslocação diz-se plano a partir do momento em Por exemplo, entre o útero e a existência, o facto de todos nascermos de mulheres mas, haver uma rejeição essencial da feminilidade para que possa existir masculinidade; entre escravo e senhor, o reconhecimento da autonomia individual e a sua sistémica rejeição através de sistemas de apropriação de força de trabalho que envolvem despersonalização. 8

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que estrutura uma comunidade, faz parte do seu sentido de ser, ajuda a construir a sua direcção planeada, impõe uma hierarquia, articula um sistema de inclusões e exclusões. Um exemplo, talvez não ideal mas, ilustrativo: passear. Passear tem formas que se podem distinguir entre planeadas e não planeadas, isto é, como fazendo parte de uma lógica comunitária ou de uma lógica anti-comunitária. Se digo “vou dar um passeio” estou a propor fazer algo que se insere nas práticas colectivas aprovadas: se este passeio envolver principalmente caminhar de mãos nos bolsos ou braços atrás das costas, em linhas rectas, traçadas por urbanistas e engenheiros, ou abertas entre campos de relva ou de areia. Durante este passeio não vou, obviamente, assaltar ou violentar ninguém; também não vou andar aos ziguezagues ou em curvas contínuas; muito menos vou a saltar o percurso todo. Isto é, vou passear como historicamente se veio a construir o plano do “passeio.” Em culturas protestantes e nortenhas, posso também dizer que vou passear mas, de forma mais selvagem, isto é, sem seguir rectas traçadas por outros. A isto chama-se outings, trails, entre outras formas de exploração pelos pés e normalmente envolve ir para a “natureza.” Também isto, apesar do seu carisma “selvagem,” tem um plano, isto é, faz parte de um plano de sociedade que retém uma ligação “pura” com a natureza como virtude moral e física. Associadas a estas formas de passear podemos identificar inclusões e exclusões. Não é toda a gente que “faz sentido” passeando: ver um adulto envelhecido a passear a cidade ao entardecer, sozinho, é diferente de ver uma criança de 9 anos a fazer a mesma coisa. Encontrar um turista alemão branco, devidamente equipado com vestimento de desporto, a fazer um trail no Gerês é totalmente diferente de encontrar um luso-angolano da Cova da Moura, vestido normalmente, a passear por esse mesmo caminho. Exclusões que se aplicam por vezes de forma mais agressiva a mulheres: em que cultura é que não é estranho, duvidoso ou pecaminoso ver uma mulher passear sozinha ao entardecer? A questão central aqui, no entanto, não é quantas formas de passear podemos dizer fazerem parte de um plano e que sistemas hierarquicos organizam mas, como algo tão natural como andar, por um pé à frente de outro, se transforma de desejo sensorial para plano racional. E como isto, por sua vez, organiza sistemas de inclusão e exclusão, distribuição de autonomias e responsabilidades; estrutura um colectivo e os vários indivíduos. Por isso, quando alguém diz que o plano é tão natural quanto respirar, é melhor dar um passo atrás, respirar fundo, e talvez caminhar um pouco pela cidade ao entardecer, pois não é garantido que todos sejamos “naturais.” É uma artimanha ou, dito de forma mais leve, um aforismo, semelhante ao dos arquitectos: o de que já nascemos todos arquitectos pois existimos no espaço desde o primeiro momento. Normalmente, isto é algo que se diz para justificar a essencialidade e importância existencial da actividade

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daquele que o diz9 – um arquitecto moderno a mostrar os seus projectos de casas e museus, por exemplo – e não para discutir a problemática e polémica relação entre arquitectura e construção: nem toda a construção é arquitectura. Até agora ainda não vi nenhum arquitecto referir-se a essa questão fundacional – a de que somos todos arquitectos à partida – para falar de forma não acusatória de chamados bairros informais: bairros de lata, casas modernas construídas de forma não estritamente legal, etc... Claro que as formas históricas destas mesmas arquitecturas informais que foram institucionalizadas, já se consideram arquitectura: as casas de granito dos nossos bisavôs; as casas de terra dos Masai, os iglôs de esquimós, etc... Só isto já nos diz muito de como se naturaliza e desnaturaliza secções preponderantes da realidade dada, isto é, da natureza em função de um plano. 3º mal-entendido: que planear é orgânico, natural a todos os credos, géneros, idades, cores de pele e, claro, inofensivo. Na realidade, isto é, no sítio onde vivemos em concreto, ano 2017 na Europa, especificamente Portugal, planear envolve uma série de amestragens históricas: hierarquias violentas, naturalizações de práticas dominantes, argumentos hegemónicos. Nem todos os humanos que procuram transformar a sua envolvência recebem o título, por outros humanos mais dominantes, de planeadores. Basta pensar em todos os deslocados e desalojados que o século XX criou para o detrimento de “planos” de melhoramento da sociedade, planos estes que vinham susbtituir a “ausência de planos” dos que iriam receber os primeiros pela força. Historicamente falando, nem todos os devires foram e são considerados planos, apenas uma infíma percentagem, apropriadamente selecionada para definir “civilização.” O plano é um artifício, uma fabricação históricamente enraizada e sempre aberta a conflito. De natural tem muito pouco ou, dito de outra forma, tem aquilo que planeia naturalizar. Um problema de falo? Finalmente podemos concentrar-nos no tema central que aqui me traz: como é que cidade e plano se relacionam com a ideia de que “homem é sonho”? Da forma mais directa possível. Cidades e planos são historicamente pensados e executados por homens para homens. Tão simples quanto isto. Ou seja, parece Se somos todos arquitectos à nascença então pode-se partir do princípio análogo que a arquitectura também lá está na nascença do humano, ou seja, que é parte integral e indivisa do acto de ser, logo, porquê arquitectos? Porquê criar uma elite entre a multitude? 9

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que homem é mesmo o único sonho, o que para uma cultura homofóbica como a Portuguesa, bem como qualquer cultura Europeia, é um pouco paradoxal ou talvez irónico. Por outro lado não é nada de ambas, pois fundámos a cidade na polis que, como sabemos, era pensada, feita e governanda por homens que gostavam muito de homens, especificamente de rapazinhos.10 Questionarão os herdeiros da homofobia estrutural do “Ocidente”, cansados do politicamente correcto das polémicas de género: “só falta dizer que a cidade, o plano e a arquitectura têm sexo? Como se houvesse arquitectura masculina e feminina?” Há mesmo e têm mesmo. O que é a arquitectura e, por extensão, a cidade e o plano? Não é uma extensão do ser humano, uma potencialização da sua capacidade transformadora ou então uma segunda pele? Em qualquer um destes casos é um artifício biónico que mistura carne com cimento, é algo hibrido, não se distinguindo de quem o cria e de quem o vive, muito menos do ambiente que transforma. Ora, reconhecendo isto, temos também que reconhecer que arquitectura, bem como a actividade de planear cidades, foi e é historicamente uma profissão masculina. Mas para além desta longa história, que não desaparece quando nos apetece, a própria linguagem, significado e morais da prática de organizar o espaço é masculina. A sua epistemologia é a de homens a conquistar, transformar e dominar espaço. Por isso não é tão simples quanto fazermos umas edições especiais acerca de mulheres arquitectas ou criar cotas para mulheres nas academias e empresas. Após tudo isto faltarão talvez umas décadas, talvez uns séculos, se as constantes da experiência se mantiverem, para que possamos dizer que a epistemologia da actividade já não é hegemónicamente masculina. É isto que os herdeiros da homofobia que, reconhecendo a herança, se dizem sensíveis à polémica de género, não percebem: apesar de dizer coisas como “as mulheres foram e são historicamente escravizadas, exploradas e subestimadas”, ainda não perceberam que falam a partir do seu lado da história. Para dizer um exemplo recente e famoso, é como a resposta de Ricardo Araújo Pereira, no Governo Sombra, à polémica dos livros escolares diferentes para rapazes e raparigas. Tanta inteligência, estudo, criatividade e crítica, para acabar a defender a ideia de que é o sexo masculino que é desvalorizado. A hegemonia vive de raízes profundas e sofisticadas, não se quebra o feitiço com umas palavras bonitas, algo que muitos esquecem ou não sabem. A estes recomendo que voltem a ler Gramsci mas, em vez de capitalismo, leiam masculinidade branca. Se quisermos adoptar uma perspectiva Freudiana, a nossa cultura masculina é fundada e mantida viva a partir de uma tensão fundacional entre nascermos de Para os Gregos antigos a relação erótica com a pureza juvenil desempenhou um papel central na construção social de virtude, vitalidade e do sagrado. A este propósito ver Michel Foucault, The History of Sexuality: the will to knowledge e The History of Sexuality: the use of pleasure, respectivamente volume 1 e 2, London: Penguin Books: 1998. 10

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mulheres mas termos que rejeitar a feminilidade, especificamente a da mãe, para nos afirmar-mos como masculinos. O útero tem que ser desnaturalizado. Nada torna isto mais claro que a curiosidade científica de Leonardo da Vinci ao estudar o útero e o embrião. Preocupado com perceber a posição corporal do feto, a sua alimentação, bem como o seu ritmo de gestação, Leonardo transforma o útero em máquina. Não por acaso ele era inventor de máquinas eficientes, nomeadamente de guerra. Olhando para os seus desenhos, é como se pudéssemos conceber o nascimento sem o ser vivo que o possibilita, a mulher. É como se, a partir deles, pudéssemos projectar úteros mecânicos e assexuados, criar humanos limpos de associações de género. Sinto-me tentado a explicar esta forma de violência sobre o feminino e o seu papel fundacional para a existência como o comediante Norte-Americano Louis C.K. a expõe: “Acho que já percebi porque é que nós somos tão maus para as mulheres. Nós nem sempre governámos a terra. Muito antigamente, acho que as mulheres governavam isto tudo e eram más para nós. Estavámos a passar na rua e elas batiam-nos nos pénis e gozavam-nos. Até que a uma dada altura, um homem bateu numa mulher e percebeu que podia fazer isso. Eu posso bater na minha mãe! A partir daí governámos nós.” Até parece que foi verdade, dada a quantidade de sofrimento a que nós homens historicamente votamos as mulheres. É que não basta dizer que as oportunidades não são iguais quando, por exemplo, de entre profissionais e intelectuais conseguidos, a voz masculina é lembrada e celebrada e a feminina votada para um esquecimento anacrónico. É o caso, por exemplo, entre Robert Venturi e Denise Scott Brown. A mensagem da última nos anos 60 era bem mais revolucionária que a do Robert, no entanto, é a complexidade e contradição deste que é lido nas aulas de teoria e história de arquitectura. Não convém destruir demasiado do edifício epistemológico da profissão que é, como uma breve passagem pelos manuais de história demonstra, cem por cento masculina. A Denise não tinha hipóteses, bem como muitas outras mulheres brilhantes. Aliás, a maioria das mulheres aceites como heroínas no panteão da civilização têm algo de assexuado, hibrido, masculino ou de outra forma periférico aos padrões masculinos de feminilidade. Mas não é só nas diferenças de reconhecimento que se joga esta coisa de que só sonhamos com homens. É na própria cidade, na sua vivência diária e histórica que promovemos este homem-sonho sobre outros. A rua, esse espaço essencial em qualquer cidade, aglomerado, aldeia, ajuntamento, com mais ou menos infraestrutura, mais ou menos beleza e proporção, é na nossa cultura e em muitas outras um espaço essencialmente masculino. A rua não só é historicamente um espaço de homens, como a sua própria identidade, como motivo espacial abstracto, é masculina e rejeitante de feminilidade.11 Lembram-se do exemplo atrás acerca de passear: não fica bem a uma mulher, de qualquer idade, passear

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sozinha pelas ruas ao entardecer. Dirão os tais herdeiros da homofobia que descrevi acima: “Oh, que estupidez, hoje em dia, volvidos muitos anos desde a ditadura clerical de Salazar, as mulheres andam à vontade na rua, várias idades, várias vestimentas, mais despidas, menos depidas.” Andarão mesmo à vontade? Porque é que quando uma ou mais mulheres, ao passar na rua e dado que estejam vestidas “normalmente” para uma mulher “Ocidental” hoje em dia, se transformam no foco de muitos, senão de todos, os olhares masculinos. Podem ser mais ou menos bonitas, mais ou menos despidas, mas lá estão os olhares concentrados de homens, muitas vezes acompanhados de “bocas,” movimentos corporais simbolizando abertura para acasalamento, entre outras performances de controlo sexual sobre a rua. Não, de facto, as mulheres estão mesmo à vontade (sarcasmo). Não deverá passar pela cabeça da maioria masculina que muitas mulheres, antes de sair de casa, planeiam os seus trajectos com cuidado, têm que praticar respostas corporais e verbais aos abusos recorrentes. Nem que seja o aprender a andar de cabeça hirta e decidida, há toda uma educação sexual que nós homens fazemos as mulheres tomar ao frequentar esse espaço tão nosso, a rua. Aliás, até à muito pouco tempo atrás seria possível traçar cidades inteiramente diferentes para mulheres e para homens. Isto é, se mapeássemos os trajectos e espaços ocupados por ambos os géneros numa média ou grande cidade, chegaríamos à conclusão de haver duas cidades. Em boa verdade, ainda é possível ver este mapa hoje-em-dia, com menos clareza nas grandes cidades mas, com extrema luminosidade, em certos lugares mais “tradicionais.” E claro, a própria casa, o antro doméstico, é sexualmente dividido e controlado; menos desde o advento da planta livre mas, mesmo assim, produtor de espaços de diferentes domínios sexuais. De facto, “Homem é sonho,” infelizmente o único sonho.

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Ver Miguel Vale de Almeida, Senhores de Si: uma interpretação antropológica da masculinidade, Lisboa: Fim de Século, 2ª ed., 2000.

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CIUDAD TERRITORIAL DE CHINCHAYCOCHA

Gabriel Vergara El presente estudio ha sido elaborado como parte del perfil de inversión pública para una escuela de nivel inicial en el centro poblado de Huayllay en el departamento de Pasco, Perú, el cual en una primera instancia y sin entrar en el detalle del proyecto arquitectónico, analizó el territorio en el que se ubicará la futura escuela. Antes de indagar en las respuestas a las preguntas sobre ¿En que consiste dicho territorio? Y ¿cómo funciona y cual es su relación con sus ciudades y habitantes?, me ha sido necesario acotar el alcance sobre el cual quisiera enmarcar la noción de territorio y vincularlo al concepto propuesto por Neil Brenner, “Operational Landscapes” el cual se refiere a los espacios no urbanizados - que producto de la urbanización capitalista - se han transformado en zonas de alta intensidad con presencia de infraestructuras de gran escala que operan y explotan el territorio de forma intensiva. Situación que a su vez está profundamente entrelazada al proceso de urbanización en las grandes ciudades. Una urbanidad total en que los bordes de lo urbano y lo no urbano se diluyen. Me interesa particularmente esta definición ya que bajo ella, el territorio en estudio es claramente representado. Su intensa explotación minera favorece principalmente a la ciudad de Lima, desde la cual se administran y concentra la capitalización de dichos recursos, conviviendo ambos en una retroalimentación que requiere de nuevas formas de abordar los proyectos urbanos y arquitectónicos que en el se proyecten. Dentro de este marco, se puede considerar que los territorios alto andinos como lo son las regiones de Pasco y Junín son parte de esta lógica operacional en la cual Lima - y otras ciudades - se ven beneficiadas de la explotación de los territorios en desmedro de estos. El historial de conflicto entre las comunidades locales y la capital de Perú parece indicar que esto efectivamente es así. Es por ello que el presente estudio busca generar una visión territorial alternativa al desarrollo que se ha venido implementando históricamente en esta región. Un nueva visión en la cual el territorio sea entendido como un medio de desarrollo no solo para la gran industria minera sino que también para las comunidades que habitan en él. 26


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Punto de Partida, el Conflicto La ciudad minera de Cerro de Pasco ubicada a 220 kilómetros al noreste de Lima se encuentra en un conflicto medioambiental que ha llevado a evaluar en varias ocasiones la reubicación de la ciudad. Debido a esto, en el año 2008 fue promulgada la ley Nº 29293 en la que “se declara de necesidad pública e interés nacional la implementación de medidas para lograr el desarrollo urbano sostenible concertado y la reubicación de la ciudad de Cerro de Pasco”. Esta ley dio paso a la conformación de una comisión que se encuentra evaluando tres alternativas para la reubicación de la ciudad: Villa Pasco (a 12 km de la actual ubicación), Vicco (a 20 km) y Ninacaca (a 30 km). La presión por desplazar la ciudad se ha vuelto aún más fuerte debido a la existencia de planes para la ampliación del tajo de la mina (la cual se encuentra al tope de su capacidad productiva) sobre los terrenos que ocupa actualmente la ciudad. La situación medioambiental de Cerro de Pasco es crítica. El área urbana se encuentra al borde del tajo de la mina desde el cual se generan los contaminantes que se expanden directamente sobre la población, (se estima que 9 de cada 10 niños menores de 12 años presentan altos índices de metales pesados como plomo, cesio y talio en la sangre)1. Por otro lado, otras zonas del territorio no se encuentran exentas de los efectos de la explotación minera. Importantes áreas presentan altos índices de contaminación tanto del aire como de la tierra y el agua. Existen actualmente sobre el territorio 24 pasivos ambientales2 en estado inactivo, muchos de ellos próximos a ríos y otros afluentes, generando una alta contaminación con metales pesados principalmente en el sector norte del humedal Chinchaycocha. Todo esto ha provocando perdidas en la calidad de los suelos agrícolas y ha puesto en peligro la supervivencia de varias espacies (algunas endémicas) que habitan en él. La reubicación de la ciudad de Cerro de Pasco significaría mover alrededor de 65.000 personas y todos los equipamientos e infraestructura urbana que ello implica. Podría ser esta una oportunidad inigualable para pensar el territorio en su conjunto. Una oportunidad para pensar en un desarrollo integral en términos económicos, sociales y medioambientales.

Reporte Final: Exposición a metales pesados en niños y mujeres en edad fértil en tres comunidades mineras, Cerro de Pasco, Perú, 2007 Department of Health & Human Services 2 Son considerados pasivos ambientales aquellas instalaciones, afluentes, emisiones, restos o depósitos de residuos producidos por operaciones mineras, en la actualidad abandonadas o inactivas y que constituyen un riesgo permanente y potencial para la salud de la población, el ecosistema circundante y la propiedad. 1

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El Territorio Hoy El territorio en estudio abarcar un área geográfica que comprende a un conjunto de poblados y ciudades cuya población se estima en 116.000 habitantes. Dicha región corresponde a una planicie que se ubica a 4.300 msnm y se caracteriza por la presencia de lagos de sierra, siendo el más importante de estos el humedal Chinchaycocha. Este conjunto de lagos y lagunas conforman la cuenca que da origen al río Mantaro. Los principales centros poblados se ordenan alrededor del humedal Chinchaycocha. Este sistema cuenta con una carretera principal y un servicio ferroviario de carga que conecta las ciudades de Junín y Cerro de Pasco. La población de esta región es principalmente urbana (87%), esto debido fundamentalmente a la concentraciones urbana que generan los pueblos mineros de Rancas, Colquijirca, Huayllay y la ciudad de Cerro de Pasco. El resto de los poblados como Vicco, Ninacaca, Carhuamayo, Junín y Ondores se encuentran menos relacionados a la minería por lo que presentan una economía más local, principalmente ligada a la agricultura de subsistencia y la ganadería. Caracteristicas Socio-Economicas Debido a su lógica operacional, el territorio en estudio presenta un notable desequilibrio entre la riqueza que genera la explotación de sus recursos minerales versus el escaso desarrollo y bienestar de la población local. Sus indicadores de desarrollo humano, tales como pobreza, analfabetismo y (el más dramático de todos) la desnutrición infantil, dan cuenta de este problema: Un 40% de su población se encuentra por debajo de la línea de la pobreza,3 concentrándose esta en los distritos de Ninacaca, Huayllay, Chaupimarca y Carhuamayo. Estos índices de pobreza se correlacionan con las tasas de analfabetismo4 la cual promedia un 6,7% y se concentra mayoritariamente en los distritos de Ninacaca, Junín y Carhuamayo, todos con una tasa mayor al 10%. Por otro lado y producto de estas cifras, existe una preocupante tasa de desnutrición infantil,5 la que alcanza un 33,4% de la población menor de 5 años y cuyas consecuencias sobre la población solo son medibles al largo plazo. Pobreza total: Comprende a las personas cuyos hogares tienen ingresos o consumo per cápita inferiores al costo de una canasta total de bienes y servicios mínimos esenciales. 4 La tasa de analfabetismo considera a la población mayor de 15 años que no sabe leer ni escribir, Censo nacional de población y vivienda, INEI 2007 5 Mapa de desnutrición crónica de niñas y niños menores de cinco años a nivel provincial y distrital, INEI 2009. 3

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Actividad Economica Existe un enorme desequilibrio entre la actividad minera y el resto de las actividades en términos de generación de dinero, siendo la zona norte del territorio la que concentra la totalidad de la actividad minera y por ende las mayores concentraciones de población. Sin embargo, al comparar las cifras de actividad económica respecto a la población económicamente activa se observa que a pesar del enorme domino de la minería, solo el 14% de la población se dedica a actividades directamente relacionadas con esta. Habiendo actividades como la agricultura, la ganadería o el comercio que poco aportan en términos económicos, pero que ocupan a un importante porcentaje de la población (28,5%). Esta problemática conlleva una gran desigualdad entre las actividades mineras y la población que desempeña otras labores. Por lo tanto, se hace necesario el desarrollo de actividades económicas alternativas y complementarias que generen ingresos dignos y nuevas oportunidades de desarrollo a los habitantes de este territorio. Propuesta para un Territorio Integrado “Ciudad Territorial” La población que habita actualmente los centros poblados del Sistema Chinchaycocha, clama por que los beneficios generados por la explotación del territorio que habitan sean distribuidos de forma más equitativa, así como por la generación de nuevos polos de desarrollo sustentables y alternativos. Ante estas aspiraciones ciudadanas, cabe preguntarse si la inminente reubicación de la ciudad de Cerro de Pasco podría abrir la oportunidad a un nuevo modelo de desarrollo y gestión del territorio que no involucre necesariamente reubicar a la totalidad de la población en un solo punto (lo cual solo mantendrá el desequilibrio y las desigualdades de oportunidades e ingresos que existen actualmente), sino que implique un modelo de ciudad-territorio en el cual la población a desplazar sea distribuida dentro de los pueblos ya existentes. ¿Podría esto generar la posibilidad de proyectos de inversión que mejoren las actuales condiciones urbanas de dichos centros poblados?, por otro lado, ¿Podría este modelo equilibrar las oportunidades de desarrollo de la población, evitando la dependencia exclusiva de la actividad minera y generar nuevas actividades como el turismo sustentable (reservas ecológicas) o la manufactura de productos ganaderos (lana, leche, etc.)? Considerando el enorme potencial del territorio en términos naturales, paisajísticos y culturales. La propuesta de “Ciudad Territorial” aporta una visión

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de desarrollo que busca integrar estas distintas potencialidades del territorio bajo una idea de sistema de poblados integrados. Este modelo implicaría en principio reforzar las infraestructuras existentes, (como carreteras y transporte público) para abarcar la totalidad del territorio y a sus 116.000 habitantes. Esto daría paso a un anillo de centros poblados en torno al Humedal Chinchaycocha cuyo perímetro tendría como máximo un tiempo de recorrido de 1 hora y 20 minutos,6 por otro lado, permitiría que cada pueblo y ciudad funcione de forma complementaria al sistema ya que los equipamientos de escala regional podrían distribuirse en los centros mayores mientras que los equipamientos locales, podrían ser ubicados dentro de los pueblos de menor tamaño, permitiendo así, reforzar la complementariedad del sistema en su conjunto. Para visualizar esta idea, se ha producido una imagen collage que reúne todos los elementos que actualmente conforma y que se podrían incorporar a este territorio, un imaginario que se proyecta hacia un futuro escenario. Al centro, el humedal Chinchaycocha es el elemento paisajístico que caracteriza este territorio, el cual en primer lugar debería considerar una recuperación natural a través de un adecuado manejo de los pasivos mineros y de un programa de fitorremediación que permita recuperar la calidad de los suelos y del agua. Nuevas áreas boscosas podrían ser parte de este paisaje, las cuales permitirían aislar las zonas mineras de las áreas urbanizadas. Estas últimas podrían generar espacios urbanos y arquitectónicos que consideren las características de las construcciones y culturas locales. Por otro lado, el potencial natural del territorio propiciaría un desarrollo ganadero más intensivo y un aprovechamiento de las riquezas naturales a través de un turismo sustentable que saque partido de la reserva nacional de Junín y del santuario natural “Bosque de Piedras de Huayllay”. Llevar adelante un plan urbano y territorial de estas dimensiones, implica una compleja coordinación entre múltiples actores que en muchos casos tiene intereses contrarios y visiones divergentes, haciendo infructuoso cualquier avance hacia un desarrollo planificado. Sin embargo, (y sin perder de vista el hecho de que el territorio puede ser entendido bajo la lógica de ciudad-territorio) avanzar en una agenda de proyectos de pequeña escala que permitan materializar esta idea desde abajo hacia arriba, puede ser un camino a seguir. En ese sentido, los futuros proyectos como la escuela que se buscan construir deberían ser una herramienta de intervención concreta en el territorio, siendo este, el marco bajo el cual sea planteado su desarrollo.

Este tiempo es considerando un transporte público sobre carretera asfaltada a 80km/h. Nota: todas as imagens são propriedade do autor do texto 6

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DO PALHEIRO AO PLANO Percurso Sonoro Rui Santos

Este artigo surge com o propósito de explorar o contraste entre uma estrutura urbana existente e a relatividade da sua experiência pessoal. Porém, este exercício não será explorado por um conjunto de argumentos escritos mas pelo formato audio, através da sobreposição de uma impressão sonora pessoal sobre as gravações de um quotidiano normal. Para esse efeito foi escolhida a cidade que actualmente habito, a cidade de Espinho, cuja história de consolidação urbana se enquadra de uma forma bastante interessante neste exercício. O artigo divide-se em duas partes: a primeira aborda sucintamente as primeiras fixações urbanas e o seu processo de formação até ao período em que surge um dos instrumentos de consolidação urbana mais importantes de Espinho, a “Planta da praia, freguezia e concelho de Espinho,” pelo Eng. Bandeira Neiva em 1900; a segunda parte consiste já na experiência sonora, na qual o registo da impressão pessoal sobre os sítios por onde passa foram gravados apenas num take, após uma primeira audição. Este audio contínuo é uma junção de audios retirados dum percurso que se inicia no Bairro dos Pescadores, atravessa a afamada feira de Espinho, cruza os Paços do Concelho e o Jardim Municipal, continuando pela Rua 19, desemboca no passeio da marginal para novamente terminar no mar. 1. Do Palheiro ao Plano – uma breve história As primeiras fixações na praia de Espinho surgem em inicios do séc. XVIII como resultado da actividade piscatória, mais propriamente a arte xávega, onde grupos de pescadores denominados de “companhas” oriundos do Furadouro aqui se foram fixando, primeiro sazonalmente e mais tarde definitivamente, a fim de explorar esta actividade e tendo Espinho como ponto estratégico entre Porto e Aveiro para a comercialização dos bens marítimos, essencialmente a sardinha. As primeiras infra-estruturas de apoio a esta prática materializavam-se em cabanas de madeira, denominadas de “palheiros,” essencialmente compostos por entabuamentos horizontais em madeira de pinho. Menciona Carlos Gaio que “por volta de 1840, o núcleo habitacional concentrava-se junto ao mar, as habitações eram de madeira (vulgarmente designadas de “palheiros”), amontoavam-se sem ordem e

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do palheiro ao plano • rui santos

Fig. 01. Espinho - Bairro dos Pescadores © Alberto Ferreira Fig. 02. Espinho - Praia de Banhos © Emílio Bilel & C.

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disseminavam-se pelo areal numa encruzilhada de ruelas.”1 Na Europa Ocidental, o costume de frequentar a praia como programa lúdico e de bem-estar só começou a tomar contornos de um hábito civilizacional, primeiramente pelas elites burguesas, a partir de finais do séc. XVIII, inicios do séc. XIX. Crê-se originariamente trazido de Inglaterra, onde a vilegiatura termal era já um costume consolidado entre as práticas burguesas, fruto dum cuidado crescente com a higiene individual e colectiva, em especial o banho, que passou a ser visto como prática saudável, a par com o crescimento por parte da Medicina de tratamentos à base de água do mar. A valorização do ócio e do prazer por parte da burguesia liberal em Portugal a partir das primeiras décadas do séx. XVIII foi definitiva na implementação de novos padrões comportamentais e sociais, entre os quais a vilegiatura marítima. Por volta de 1830 começam a surgir os primeiros banhistas e certas zonas de praia começam então a ser transformadas em estâncias balneares, frequentadas acima de tudo por esta classe social. Para além das previlegiadas condições geográficas que Espinho oferecia ao turismo balnear, que se revelou definitivo no fenómeno de fixação e desenvolvimento urbano, foram também cruciais para o processo a construção da estação de caminho-de-ferro (na recém planeada ligação ferroviária Porto-Lisboa) e a presença da maior fábrica de conservas da Península Ibérica, a Brandão, Gomes & Ca. A atracção de um crescente número de pessoas, desde residentes a veraneantes, e consequente necessidade de resposta de ordenamento e expansão leva à encomenda, em 1870, do primeiro levantamento topográfico de Espinho, o “Plano dos Melhoramentos de Espinho,” levado a cabo do Engenheiro José Coelho Bandeira de Melo, onde é proposto o primeiro plano para este aglomerado urbano. O traçado consiste na restruturação dos palheiros dispersos e das futuras expansões através da sobreposição de uma malha ortogonal de ruas e quarteirões alinhada com a via de caminho de ferro. Os quarteirões que coincidissem com as ruas seriam demolidos, enquanto que a restante malha seria re-enquadrada nesta nova morfologia. São ainda visíveis a tracejado as linhas que marcam os avanços do mar (1872, 1889, 1892 e 1896), que foram causando muita destruição nestas fixações, ao ponto de pouco restar do núcleo inicial de palheiros por finais do séc. XIX. Espinho torna-se progressivamente num polo urbano emergente resultante: 1) de uma maior autonomia administrativa com a passagem a concelho e anexação de algumas freguesias ao seu redor; 2) do continuado e crescente interesse pela frequência balnear, que se prolongava a várias zonas do país, inclusivamente à Galiza graças à ligação férrea; 3) da demarcação de um estilo de vida considerado civilizado pelos círculos burgueses e de um desígnio colectivo bon-vivant, que acabou por imprimir 1

GAIO, Carlos M. (1999) A Genese de Espinho. Campo de Letras, Lisboa.

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Fig. 03. Planta de 1870 © Castro, 2005 Fig. 04. Planta de 1900 © Arquivo Municipal de Espinho

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um conjunto de dinâmicas sociais e culturais que exigiram uma resposta ainda mais abrangente do ponto de vista do planeamento urbano, desde infra-estruturas a equipamentos colectivos e espaços públicos (alguns especializados na relação entre o lazer e o mar, tal como o foram mais tarde as piscinas municipais e o tratamento do espaço público à beira-mar) que sustentassem uma dinâmica social emergente, de renovados interesses e costumes, cujos quotidianos iam assumindo o território à imagem dessas novas interacções com o espaço. A isso responde a “Planta da praia, freguezia e concelho de Espinho,” elaborada em 1900 pelo Eng. Bandeira Neiva, que será certamente um dos mais determinantes elementos da organização urbana da cidade de Espinho. A proposta continua as premissas de José Bandeira de Melo, prosseguindo com o planeamento da expansão da vila, demarcadamente para nascente, novamente através de uma malha ortogonal composta por quarteirões de diferentes dimensões, sendo que o tamanho destes seria tanto maior quanto mais se afastassem do núcleo central, em direcção a nascente. A extremidade sul, particularmente a nascente da linha, obedece a uma subdivisão em parcelas cada vez mais pequenas quanto mais se afastem do centro. As principais ligaçoes viárias mantêm-se, contrastando com o desenho regrado. Este instrumento definiu um tipo de traçado fortemente abrangente e determinante no que respeita à morfologia da massa de edificado que nos chega até aos dias de hoje. Ao se participar deste sistema urbano não se pode deixar de notar que o mesmo serve interessantes pressupostos, particularmente na sua experiência de grande escala e na sua relação morfológico-geológica, tais como: os contínuos enfiamentos que visualmente nos trazem o mar ou outro elemento desde grandes distâncias; ruas francas ladeadas de construcção de baixa densidade, que se tornam consequentemente ensolaradas e convidativas ao uso pedestre; a fácil localização de qualquer zona da cidade através da lógica do sistema numérico de ruas. As constantes comunicações visuais que esses enfiamentos estabelecem acabam por sugerir um convite de promenade em direcção ao mar, que vai acontecendo ainda enquanto submersos na ortogonalidade, ao qual a cidade responde com a baixa densidade dos edifícios de 1ª linha de construcção e o desenho do espaço público à beira-mar, acolhendo com desafogo a expectativa do transeunte e dando espaço de contemplação ao principal elemento urbano da cidade, o mar. Contráriamente, a regularidade na organização do edificado a uma grande escala não se repercute quando, actualmente, vamos reparando nos edificíos e espaços públicos que ocupam cada quarteirão e vão, por vezes em diálogos mal conseguidos, compondo essa macro-homogeneidade.

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2. Breve Impressão (sonora) Para ouvir: https://soundcloud.com/user-128921085/do-palheiro-ao-plano-percurso-sonoro A segunda parte do artigo consiste num ficheiro audio que explora o contraste da sobreposição de uma impressão sonora pessoal sobre a experiência sonora do quotidiano da cidade. Este exercício torna-se mais interessante pelo paralelismo entre a forte imposição de uma malha rígida e a morfologia dispersa dos palheiros que consituíam o principal núcleo habitacional, que encontra semelhanças na singularidade criada entre as estruturas urbanas e a experiência pessoal das mesmas.

Fig. 05. Percursos © Rui Santos, © Google

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1. Bairro dos Pescadores . 00:00

Fig. 06. Espinho - Voltando da Pesca © Alberto Ferreira Fig. 07. Espinho - Praia de Banhos © Emílio Bilel & C.

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2. Feira . 04:44

Fig. 08. Espinho - Feira Š Alberto Ferreira

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3. Jardim e Paços do Concelho . 09:22

Fig. 09. Espinho - Câmara Municipal de Espinho © AR

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4. Rua 19 . 11:18

Fig. 10. Espinho - Chiado © Emílio Bilel & C. Fig. 11. Espinho - Café Chinez e Assembleia © Emílio Bilel & C.

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5. Marginal Marítima . 14:45

Fig. 12. Espinho - Esplanada © Alberto Ferreira

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CÉSAR MANRIQUE Viagem, Plano, Vida Miguel Roque

No número 1 desta revista falei ao de leve de César Manrique, a propósito de um conjunto de arquitectos modernos que a par de Jean-François Zevaco explorou a hipótese de um modernismo tropical muito ligado à paisagem atlântica. Debruço-me agora com mais pormenor sobre a arquitectura construída ou sonhada por ele para a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, entendendo-a como um plano, o plano da sua vida artística. Um plano de defesa da sua terra natal, contra a especulação imobiliária e o turismo que já nos anos de 1950 considerava desenfreado. Mas ao contrário de muitos activistas que, quando confrontados com este tipo de agressões durante o século XX cerraram conservadoras fileiras contra qualquer forma de progresso (económico, urbano, humano, paisagístico, etc.), Manrique desenvolveu ao longo da sua vida modos de progresso alternativos, capazes de competir - sim, competir ombro-a-ombro - com as formas de desenvolvimento ortodoxo que, no caso das ilhas Canárias, resultaram em caos urbanístico e - nas últimas décadas o desinteresse e abandono da indústria do turismo em função da destruição dos ecossistemas naturais que foram, na origem do fenómeno turístico, a razão do seu sucesso. Utilizando uma expressão que todos conhecemos, em muitas ilhas das Canárias mataram a galinha dos ovos de ouro para lhe extraírem todo o ouro de uma só vez. Fatidicamente, ficaram sem ouro e sem galinha. Pressões semelhantes ocorreram em Lanzarote, mas os resultados distintos que foram alcançados devem muito a César Manrique e à arquitectura que construiu ou sonhou para a ilha. Ele, que desistira em 1945 do curso de arquitectura para estudar belas artes em Madrid, que foi aclamado como pintor em Nova Iorque onde viveu entre 1964 e 1966 e onde terá desenvolvido um sentimento de grande repulsa pela artificialidade da vida nova-iorquina por oposição à verdade das coisas e à pureza das gentes de Lanzarote, regressa então a Lanzarote com o objectivo de converter a sua ilha natal “en uno de los lugares más hermosos del planeta”, objectivo que perseguiu com notável sucesso entre a década de 1960 e o dia 25 de Setembro de 1992, quando morreu num acidente de automóvel perto da sua antiga casa em Taiche, já então a sede da Fundação César Manrique.

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As estradas têm de ser feitas como se pegasses numa carpete e a estendesses pela paisagem Cesar Manrique

O autor agradece à Fundación César Manrique pelo modo como o recebeu em Lanzarote e pelo inestimável apoio prestado.

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Tudo Começa Numa Viagem Os primeiros pensamentos sobre arquitectura e planeamento que conhecemos de Manrique datam de 1963, quando acompanhou o arquitecto espanhol Fernando Higueras numa viagem pela ilha a propósito de uma encomenda que o governo de Lanzarote lhe tinha feito para a realização de estudos arquitectónicos para o desenvolvimento turístico da ilha. Dessa viagem ficaram para a posteridade alguns esquissos e fotografias da ilha em que os dois lançaram as bases para o modelo de desenvolvimento que Manrique haveria de prosseguir toda a sua vida. Nesses esquissos, Manrique e Higueras apresentam três visões para a expansão turística da ilha. Em seguida apresentamos a memória descritiva de cada um dos projectos, escrita posteriormente por Higueras.2 Ciudad de las Gaviotas Desde o Risco de Famara, a 600 metros de altura e cortado a pique sobre a praia inacessível que existe a seus pés, é impressionante o panorama sobre as ilhas Graciosas, Montaña Clara, Alegranza e o Roque Del Oeste. A chegada a esta falésia, situada junto ao mar, faz-se quase imperceptivelmente mediante uma suave pendente desde o interior da ilha pelo que ninguém imagina que, do outro lado, e em corte absolutamente vertical pode contemplarse repentinamente, como uma vista aérea, o azul turquesa do mar que rodeia estas ilhas. Com o intuito de respeitar a paisagem, pensamos criar umas plataformas informais escavadas no terreno, pouco antes de chegar ao borde do precipício, instalando ali uns jardins e piscinas afundados para que, desde ali se abrissem umas perfurações verticais que chegassem à base do Risco, ao nível da praia. Instalando galerias horizontais a diferentes alturas ao longo da falésia, o visitante ficaria surpreso, crendo estar a descer ao centro da terra. Um sistema de elevadores conduziria comodamente os habitantes deste conjunto urbano desde os jardins superiores aos diferentes arranha-céus (ou melhor dito, arranhainfernos) subterrâneos e abertos ao mar, como uma imensa colónia de cavernas Guanches em forma de mexilhões encrostados no Risco de Famara.

AAVV (1972) Revista Arquitectura, nr. 164. Colegio Oficial de Arquitectos de Madrid, Madrid. (Trad. livre do autor do texto) Figs. 01, 02, 03. Ciudad de las Gaviotas © Fundacion César Manrique 2

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Montaña Bermeja Visitamos Montaña Bermeja, com a sua belíssima praia de areia negra, isolada entre dois mares de lava laterais e a própria Montaña. Esta praia era quase inacessível desde terra e precisamente por isso mantém a sua beleza incontaminada. Existia a ideia de edificar naquela praia aproveitando a suas magnificas condições naturais. Então pensamos projectar, sem que se notasse a prevenção da edificação e para isso, idealizamos o seguinte: os dois mares de lava que limitam a praia estão cobertos de poços cristalinos que os fazem totalmente intransitáveis; têm um extenção enorme, mas uma profundidade de apenas três ou quatro metros. A lava aqui é macia, pelo que bastaria o peso de um rolo compressor simples para que se abrissem ruas enterradas a 3 metros no mar de lava. Do mesmo modo poderiam criar-se diversos espaços, que apenas cobrindoos com o sistema tradicional da ilha produziriam diversas casas e apartamentos com os seus pátios e jardins enterrados ele tal forma que, ao não sobressair do mar de lava, ficariam protegidos dos ventos e apenas visíveis do alto da Montaña Bermeja, como telas brancas estendidas sobre o terreno de onde se acederia à praia por ruas encastoadas na lava. Tudo o resto para além de não se modificar a paisagem desde os pontos de vista normais, ficaria de acordo com a arquitectura e agricultura locais, que se afundam no terreno, criando maravilhosos jardins escondidos e protegidos do vento.

Figs. 04, 05. Montaña Bermeja © Fundacion César Manrique

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Resort em Playa Blanca Finalmente na Playa Blanca, a poucos quilómetros de Arrecife e num zona de praias magnificas, ainda que sem atrativos geológicos especiais, pensou-se na necessidade de. Projectar 1500 apartamentos, 800 bungalows, 200 vivendas, um hotel de 120 quartos e um edifício experimental. Tendo em conta os imperativos de: a topografia do terreno com restos de antigos círculos vulcânicos abertos ao mar; ventos predominantes dês terra; e falta de agua na localidade (entretanto resolvida), concebemos o conjunto urbano que se pode ver nas fotografias na qual, adaptando-se à urografdia do terreno, se criaram nucrios residenciais sobre os cones vulcanicos abertos ao mar, escalonando os diversos tipos de apartamento que ficariam assim protegidos dos ventos. Com esta disposição não se obstruiria a vista para o mar dos apartamentos nem das estradas de acesso. Ruas pedonais aterraçadas conduziriam através dos cones negativos os habitantes às suas casas, todas elas abertas ao mar e com esplendidas vistas sobre ele. Todas estas vivendas possuiriam grande terraços ajardinados aproveitando a cobertura das vivendas contíguas do nível inferior. Está Lançado o Plano Com estas três propostas César Manrique e Fernando Higueras definem com um elevado grau de utopia - e um não menor grau de ingenuidade - as bases para o desenvolvimento do turismo de Lanzarote. Os esquissos sobre fotografia aqui apresentados e produzidos naquela viagem funcionaram para Manrique como um guião para os quase 40 anos que estavam para vir.

Figs. 06, 07. Playa Blanca © Fundacion César Manrique

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Maqueta da Proposta para a Playa Blanca

Imagem dos Vinhedos Tradicionais da Ilha

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Plano Em Marcha Casa em Taiche, 1968 César Manrique não tarda em querer pôr em prática aquelas ideias e em meados da década de 1960, ao passear perto da aldeia de Taiche descobre no subsolo umas abobadas que se formaram a partir de bolhas de ar presas em lava de erupções ocorridas na ilha no século XVIII. Cesar compra aquele terreno - conta-se que o dono do terreno o oferece por ser um terreno sem qualquer utilidade - e inicia a construção da sua casa, hoje a sede da Fundação César Manrique. A casa divide-se em dois níveis: da lava para cima, volumes brancos com cantarias de lava negra - inspirados na arquitectura tradicional da ilha - estabelecem as funções domésticas básicas: sala, cozinha e quartos; da lava para baixo espaços de trabalho e lazer ocupam as grandes borbulhas vulcânicas, transformadas em luxuriantes salas de estar, jardins e a piscina. A meio piso, César Manrique construiu/esculpiu o seu atelier, de relação fácil com as borbulhas do ócio, mas com uma grande janela ao nível do mar de lava negra que, sendo mais dura que o vidro invade o interior da casa.

Planta do Piso Térreo

Planta do Piso -1

Corte pelas Borbujas Vulcânicas

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Figs. 08, 09, 10. Casa en Taiche © Fundacion César Manrique Figs. 11, 12, 13. Casa en Taiche © Miguel Roque

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Jameos del Agua, anos 1970 e 1980 A palavra jameo refere-se a uma abertura num tubo vulcânico que se forma quando se dá o colapso da sua cobertura. O Túnel de la Atlántida é um destes tubos com 6km de comprimento no nordeste de Lanzarote. As autoridades locais desafiaram César Manrique a intervir nos jameos deste tubo vulcânico, por forma a tornar estas estruturas visitáveis e utilizadas como centro cultural e recreativo. Manrique volta a pegar no conceito do aldeamento para a Montaña Bermeja, e propõe intervenções mínimas para que aqueles espaços sejam apropriáveis pelo ser humano e utilizáveis para o programa proposto. O espaço natural é suficientemente dramático para que com pequenos gestos ao nível do tratamento do chão, de jardinaria, de iluminação e de mobiliário se alcancem os objectivos pretendidos: um restaurante, um bar, uma piscina, um auditório, tudo parece existir desde a criação daquele fenómeno geológico; a arquitectura serve exclusivamente para que o visitante possa ter a oportunidade de olhar para a natureza e de ser esmagado por ela.

Corte simplificado do Tubo de la Atlantida, com um Jameo no centro da imagem

Fig. 14. Tubo de la Atlantida © Arquivo do Ayuntamiento de Arrecife. Figs. 15, 16, 17. Jameos del Agua © Miguel Roque

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Hotel las Salinas, 1973 Dez anos depois daquela viagem, Fernando Higueras conclui a única obra que se construiu do plano que realizou para a Playa Blanca. Esse plano, tinha por base a forma como os agricultores locais protegiam do vento as suas plantações: muros circulares de pedra vulcânica semienterrados nas encostas dos vulcões permitiam o crescimento de plantas alimentadas pelos ricos solos vulcânicos. Utilizando esta lógica, Higueras concebe uma super-estrutura em betão armado que, na paisagem, imita um cone vulcânico. A composição escalonada dos pisos oferece amplos espaços exteriores a cada quarto que aproveita a cobertura do piso inferior sem que a relação com o mar seja obstruída. O acesso aos quartos faz-se por galerias que circundam um enorme átrio descoberto, onde um jardim luxuriante concebido por César Manrique aproveita a proteção do vento que o próprio edifício lhe confere. Como dirá Fernando Higueras mais tarde, é esta riqueza que a natureza de Lanzarote oferece quando a protegemos do vento.

Fig. 18. Hotel la Salina © Fundación César Manrique Figs. 19, 20, 21. Hotel la Salina © Miguel Roque

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Mirador del Rio, 1973 Nesse mesmo ano, por encomenda das autoridades da Ilha, César Manrique inicia a construção de um restaurante/miradouro no extremo norte da ilha, incrustado numa falésia sobre El Río, um estreito de mar entre Lanzarote e o ilhéu de Graciosa. Este edifício é um protótipo do que seria a Ciudad de las Gaviotas sonhada por Higueras e Manrique em 1963: um volume incrustado na falésia, nunca visível desde terra, acessível através de um túnel na rocha através do qual se acede a uma plataforma escavada na rocha onde foi instalado o restaurante. Este espaço é definido por dois círculos interceptados e um grande pano de vidro, que é a única parte visível do edifício na paisagem.

Planta ao nível do restaurante

Fig. 22. Mirador del Rio © Fundación César Manrique Figs. 23, 24, 25, 26. Mirador del Rio © Miguel Roque

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Consequências do Plano O conjunto de projectos apresentados serve aqui para ilustrar uma acepção da ideia de plano totalmente singular, a que poderemos chamar de plano da vida artística de César Manrique. A selecção de alguma da sua arquitectura visou dar corpo à ideia de um plano que se inicia de forma idealista e abstracta nos esquissos da viagem de 1963 com Fernando Higueras e que vai ganhando consistência e relevância ao longo dos anos através da construção de protótipos que vão testando o plano inicial. Em toda a obra de Manrique (não só nas obras aqui apresentadas nem só nas suas obras de arquitectura, mas também na pintura e no design) há um determinismo cujo objectivo foi possibilitar a utilização humana da natureza mas evitar o domínio do homem sobre ela. Por isso defendia a necessidade de turismo em Lanzarote, mas defendia a baixa densidade das estruturas que o acomodavam; por isso se opunha militantemente aos grandes resorts e propunha pequenas unidades hoteleiras disfarçadas na paisagem; por isso explicava aos trabalhadores que asfaltavam as estradas que tinham que o fazer de modo a que o asfalto se confundisse com uma carpete desenrolada sobre a lava. Em suma, Cesar não era contra o turismo e acreditava que era seu dever mostrar Lanzarote ao mundo. Acreditava que a ilha deveria ser uma escola, um lugar ocupado por uma cultura sensata, um laboratório onde ensaiaram modelos de sobrevivência alternativos aos dominantes e tomou para si a hercúlea tarefa de por em prática estas ideias. Uma outra característica do que vimos a chamar plano de César Manrique é que este não se esgota na sua própria obra. Podemos encontrar em Lanzarote diversos exemplos da contaminação das suas ideias, obras que de certo modo continuam a propor protótipos daqueles primeiros esquissos. Um dos exemplos mais paradigmáticos é o aldeamento de Caleta de Famara. Segundo me contaram no local, em 1975 um alemão comprou um enorme terreno no sopé da falésia de Famara onde construiu cerca de 200 casas baseadas no conceito do aldeamento para a Playa Blanca de Manrique e Higueras. Um arquitecto alemão de sobrenome Oyen desenhou em cada lote do aldeamento uma casa de forma semicircular, semi-enterrada na encosta, orientando cada casa por forma a que o muro que a delimita proteja o jardim da casa dos ventos que ali são constantes. Embora a construção de muros de separação dos lotes enfatize a geometria demasiado dura do complexo e desvirtue a organicidade do conjunto, a forma como aquela urbanização de baixíssima densidade permite ao homem apropriar MANRIQUE, Cesar (1974) Lanzarote: arquitectura inédita. Ind. Gráf. Valverde, Arrecife. Fig. 27. Famara, 1980 © Arquivo do Ayuntamiento de Arrecife Fig. 28. Famara © Google, 2019 Figs. 29, 30. Famara © Miguel Roque 3

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Imagem aérea de Famara em 1980

Imagem aérea de Famara (c) Google, 2019

Imagem de Famara com o Risco de Famara ao fundo

Casa-tipo em Famara

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(mas não dominar) um lugar com a beleza e singularidade de Famara, confirmam a contaminação dos princípios de Manrique. Uma outra característica deste plano é a forma como Manrique utiliza a arquitectura tradicional Canária (e mais concretamente Lanzarotenha) quando necessita de complementar volumetricamente a natureza. A tradição local funciona assim como uma segunda natureza, que por ser fruto do conhecimento acumulado durante séculos deve ser não só preservada como utilizada complementando a primeira. Por isso produziu um levantamento da arquitectura popular local.3 O livro é um repositório de sistemas construtivos, tipologias, materiais e estilos arquitectónicos tradicionais da ilha, que Manrique utilizará sempre que precisa de construir novo. Um outro exemplo destas contaminações é a forma como certos gestos espaciais criados por Manrique passaram a ser utilizados na construção doméstica de Lanzarote. Um bom exemplo é a casa do artista local Ildefonso Aguilar. Desenhada por si para ser casa, escritório, atelier e estúdio de música, a casa ocupa um lote num mar de lava negra. A forma como uma onda deste mar de lava entra na casa, ajudando à acústica do estúdio de música, a forma como as janelas au longueur do atelier se abrem ao nível do mar de lava exterior ou a forma como os percursos exteriores da casa se adaptam ao chão vulcânico, dãonos uma ideia de que o modo de fazer de Manrique passou também ele para o léxico das tradições de Lanzarote, garantindo assim a perpetuação daquilo a que neste ensaio vimos chamando o plano de vida de César Manrique.

MANRIQUE, Cesar (1974) Lanzarote: arquitectura inédita. Ind. Gráf. Valverde, Arrecife.

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Edição: Luís Gomes, Miguel Roque Ensaios: Gabriel Vergara, Luís Gomes, Miguel Roque, Ricardo Ibrahim, Rui Santos, Rui Aristides. MORFEMA Nº5 PLANO | DEZEMBRO 2018 ISSN 2183-7694 geral.morfema@gmail.com

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