REVISTA MORFEMA

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MORFEMA | MERCADOS

MORFEMA

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revista de ensaios sobre o espaço

MERCADOS

lugar público onde negociantes expõem e vendem géneros alimentícios e artigos de uso rotineiro; estabelecimento onde se negocia determinada mercadoria; reunião de negociantes em lugar público; o conjunto dos negócios realizados, lugar importante em matéria de negócios e transações financeiras; centro de comércio, empório; concepção das relações comerciais baseada essencialmente no equilíbrio de compras e vendas, segundo a lei da oferta e da procura; lugar teórico onde se processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço; conjunto de consumidores que absorvem produtos ou serviços; o meio consumidor; conjunto de transações econômicas entre vários países ou no interior de um país.

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revista de ensaios sobre o espaço

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MERCADO E CIDADE Ricardo Ibrahim

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ARQUITECTURA DO MERCADO, OU MERCADO DA ARQUITECTURA Paulo Afonso

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O ANDAR DO MERCADO Rui Aristides

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ONDE ACABA O ALCATRÃO E A POEIRA SE LEVANTA Miguel Roque

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MERCADOS, OVERTONE SINGING E A ARQUITECTURA DO ESPAÇO ABSTRACTO Rui Santos

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DESCOBRIMENTOS, O CONTRIBUTO PORTUGUÊS Luís Gomes


MERCADO E CIDADE Ricardo Ibrahim

“Embora sendo um progresso da humanidade, o fenómeno da universalização constitui-se ao mesmo tempo numa espécie de destruição subtil, não apenas de culturas tradicionais, o que talvez não fosse um mal irreparável, mas igualmente daquilo que chamarei provisoriamente o núcleo criativo de grandes civilizações e de grandes culturas, o núcleo sobre cuja base interpretamos a vida, ao qual denominarei de antemão o núcleo ético e mítico da humanidade. É a partir daí que o conflito se instaura. Temos a impressão de que esta civilização mundial singular exerce simultaneamente uma espécie de erosão ou desgaste à custa dos recursos culturais que constituíram as grandes civilizações do passado. Esta ameaça expressa-se, entre outros efeitos inconvenientes, pela expansão diante dos nossos olhos de uma civilização medíocre que é a contrapartida absurda daquilo que acabei de denominar de cultura elementar. Em qualquer parte do mundo, encontramos o mesmo filme de má qualidade, as mesmas máquinas de venda automática, as mesmas monstruosidades de plástico ou alumínio, a mesma deformação da linguagem pela propaganda, etc. É como se a humanidade, ao aproximar-se en masse de uma cultura de consumo básica, tivesse igualmente estacionado en masse num nível subcultural. (…) Este é o paradoxo: como tornar-se moderno e voltar às raízes; como reviver uma civilização antiga e adormecida e participar da civilização universal.” Paul Ricoeur1

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O conceito de mercado, no seu sentido tradicional, o encontro regular de pessoas para a compra e venda provisões e outros bens, esse conceito pode ser considerado como um elemento quase perene à vida em sociedade, uma vez que há já desde milénios essa troca ocorre, e será bastante plausível afirmar que se repercutirá no futuro. Contudo, a materialização do conceito de mercado, essa sim, tem sofrido e continuará a sofrer alterações ao longo do tempo. Para estabelecer apenas dois exemplos extremos dessas alterações, basta-nos mencionar o facto da ideia de mercado, nos seus primórdios, se desenvolver através do ajuntamento de pessoas, relativamente informal e rudimentar; e de hoje termos chegado a um estádio de mercado onde podemos comprar bens através da internet. Contando então que neste texto nunca nos poderíamos debruçar sobre todas as vertentes e particularidades de cada tipo de mercado e sua materialização na sociedade, discorreremos algumas reflexões sobre os actuais mercados urbanos, no sentido de procurar estabelecer uma relação entre determinadas tipologias de mercados urbanos, e modelos de cidade que estes geram ou onde se enquadram. É necessário estabelecer desde o início que procuraremos não “romantizar” de forma incondicional a ideia de mercado tradicional, tal como o conhecemos nas vilas e cidades, digamos pelo menos desde os tempos medievais, localizado nalguma praça central, com a regularidade de 2 ou 3 dias por semana, e activo predominantemente na parte da manhã; tal ideia de mercado como local principal de troca

desvaneceu-se durante o séc. XX. Actualmente, tais mercados continuam a ter lugar nas nossas cidades, mas já não com o papel fulcral para a comoditas do dia-a-dia que tinha antes, mas sim como um complemento dos super e hipermercados. Essa tipologia de mercado tradicional não tem que desaparecer, ou apenas manter-se como uma espécie de ideia museológica, como muitas vezes assistimos actualmente a alguns desses mercados envolvidos duma “áurea gourmet”, no fundo nada mais do que uma reminiscência bucólica e nostálgica do que foi em tempos o papel e o carácter do mercado. É no entanto também verdade que em muitas cidades a ideia de mercado tradicional continua viva e em pleno funcionamento, notando, como acima referimos, que estes têm um papel complementar das redes de supermercados contemporâneas. É naturalmente com pena que muitos de nós assistimos ao desaparecimento, ou se quisermos esmorecimento, de um conceito urbano de tal riqueza social, comercial e precisamente, urbana. Contudo, os novos fluxos temporais da vida quotidiana nas cidades, bem como a progressiva extensão destas, forçam a adaptação dos mercados tradicionais, cuja criação/reactivação teria que passar obrigatoriamente pelo seu funcionamento em horários adaptados aos novos fluxos urbanos (nomeadamente coordenados com as horas normais de trabalho), bem como teriam que fazer parte duma grelha de mercados na cidade, cujos espaços necessários teriam que ser encontrados e articulados com o restante planeamento

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urbano. Tal criação/reactivação dos mercados tradicionais é plausível de ser desenvolvida; teria contudo que se enquadrar nos novos padrões do planeamento económico e de produção, querendo com isto dizer que, dado o facto de o mercado tradicional funcionar sobretudo com base em comerciantes/produtores individuais, dificilmente conseguiriam responder à demanda de consumo urbano contemporâneo; demanda essa fruto das dimensões relativamente extensas de muitas das cidades actuais, resultantes dos fluxos demográficos. Posto isto, o conceito de mercado tradicional como símbolo de grande significado e valor urbano e cultural, terá que se reinventar não tanto em termos espaciais - porque as suas tipologias espaciais tradicionais continuam a ser válidas e de grande riqueza arquitectónica e urbana – mas sim na relação entre as escalas de produção e consumo, onde seria possível termos mercados mistos no que diz respeito à produção individual e cooperativa, ou mesmo mercados destinados a uma e outra escala de produção. Assim, e antes de atentarmos sobre o que pode ser um modelo coerente e equilibrado de cidade enquanto “palco” das circunstâncias e elementos da sociedade urbana contemporânea, desviar-nos-emos brevemente apenas para realçar um fenómeno decorrente dos últimos 50 anos na sociedade Ocidental, e apesar de um pouco mais tardiamente no caso europeu: tratasse do flagelo dos centros comerciais. A primeira parte deste texto seria de certa forma inocente, se não atentássemos sobre o que se tem passado nas últimas décadas em determinados países e cidades

europeias, no que diz respeito às novas relações de consumo, distribuição e venda, em paralelo com a importância de termos como competitividade ou eficiência no vocabulário dos nossos tempos. Obviamente ainda falando sobre os centros comerciais, pode dizer-se que entre o início e o final do Séc. XX passámos dum extremo ao outro no que diz respeito ao carácter e materialização dos mercados em meios urbanos. Se no início do Séc. XX muitas economias nacionais se ancoravam ainda na produção local e regional para suprir as necessidades das suas populações, tendo este tipo de economias a sua natural repercussão no espaço físico, nomeadamente territorial e urbano; durante a segunda metade do Séc. XX, mais precoce ou tardiamente consoante os países, assistimos a uma transição brusca no que diz respeito às escalas e relações de produção e consumo, derivadas tanto do desenvolvimento do sistema capitalista avançado, como do modelo de globalização que daí resultou. Tal fenómeno teve naturalmente as suas repercussões nas formas e modelos de organização territorial e das cidades. Apesar de felizmente não se ter passado com o mesmo grau de intensidade em toda a Europa, uma das consequências mais visíveis para a ideia de mercado como espaço de troca nas cidades, resultante do processo atrás referido, foi o aparecimento intensivo dos centros comerciais, cujas dimensões vão sendo progressivamente mais desmesuradas – referimo-nos aqui naturalmente às grandes superfícies comerciais equipadas com hipermercados, restauração, e toda a panóplia de lojas de

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retalho e de serviços, sem esquecer o seu “aporte cultural”, encarnado nas múltiplas salas de cinema para filmes blockbuster. Os efeitos de tais centros comerciais para o conceito de mercado tradicional, bem como para a escala de mini e supermercado, são visivelmente nefastos. No plano da competitividade meramente economicista – que tem sido muitas vezes uma condutora privilegiada das políticas urbanas – a lógica de acumulação e monopolização dos hipermercados deixam obviamente os mercados e supermercados numa posição de grande vulnerabilidade. Contudo, os efeitos destas grandes superfícies vão muito para além do plano económico, bem com do aniquilamento das antigas relações de troca nas cidades. Este modelo comercial, primeiramente desenvolvido na América do Norte, origina de forma quase imediata a morte do conceito tradicional de cidade – nomeadamente a cidade de escala europeia, vinda dos tempos medievais – bem como tem o efeito pernicioso do aumento incomensurável do uso do transporte individual, que não deixa de ser outro paradoxo relativamente à ideia de cidade enquanto aglomerado social e colectivo. Este modelo tem ainda como consequência (ou é consequência de) uma diminuição drástica dos níveis culturais das sociedades/populações onde se inserem, já que, ao funcionarem como caixas ruidosas aglutinadoras de “tudo” o que necessitamos para o nosso dia-a-dia, as pessoas deixam necessariamente de passar, na cidade, por equipamentos colectivos e culturais de enorme importância para a vida em sociedade, tais como tea-

tros, museus, salas de concerto, cinemas independentes, bibliotecas, câmaras municipais, cafés, galerias, e também, mercados; todos esses equipamentos centrais para a reiteração da memória colectiva da sociedade e das populações em particular. Ora, ao não terem a necessidade de passar por equipamentos como os anteriores, para o acto das suas compras ou “burocracias” quotidianas, tais equipamentos e instituições caiem em esquecimento e desuso, uma vez que longe da memória, longe do hábito. As consequências de tal ethos urbano e social estão à vista de todos: apatia social, política e cultural e consequente individualização da vida, tendo como consequência mais grave o fim da percepção de que vivemos em sociedade e como tal de que a capacidade crítica é-nos um bem precioso. Assim, é essencial prevenir que a força e presença avassaladoras das grandes superfícies de retalho não nos alienem por completo a dignidade da vida de proximidade urbana, que prevaleceu de forma mais ou menos harmoniosa durante séculos, e que foi sem dúvida um dos factores para muitos dos nossos avanços civilizacionais. Para tal, cabe às populações (se assim o entenderem), através dos seus representantes políticos e dos responsáveis pelo desenvolvimento e planeamento urbano, o estabelecimento de medidas e legislação que regulem de uma forma mais reflectida e responsável, o desenvolvimento de grandes superfícies comerciais nos centros bem como nas periferias próximas dos centros das cidades.

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defendida a necessidade da continuidade do espaço urbano, no sentido de que para desempenharmos as nossas tarefas quotidianas e lúdicas – para além do trabalho – não sermos obrigados a lapsos temporais e espaciais, tais como termos que sair da cápsula que é o apartamento, “enfiarmo-nos” na cápsula que é o automóvel, e após percorrida uma determinada distância e intervalo de tempo, encontrarmo-nos numa grande cápsula, que é o centro comercial ou hipermercado. O programa de mercado, bem como de mini e supermercado, são um elemento fulcral na senda da coesão e continuidade urbana. Em termos programáticos, é indiscutível a sua centralidade na vida quotidiana, uma vez que a aquisição de produtos alimentícios ou de uso quotidiano, é uma das actividades mais frequentes e regulares no modo de vida moderno. Quanto à sua oportunidade como catalisador de urbanidade, enunciaremos algumas das razões que, em nosso entender, os torna num tópico incontornável na discussão sobre os modelos de funcionamento e desenvolvimento da cidade. A sua escala de pequena e média dimensão permite aos mercados tradicionais, bem como aos mini e supermercados, uma fácil integração na malha já construída e sedimentada. Dada precisamente a sua dimensão pequena e média, são necessários em maior número, distribuindo-se de forma polarizada e normalmente respondendo às necessidades locais - respondem à necessidade ao invés de criarem uma necessidade - uma vez que estes são necessários em toda a extensão urbana, contribuindo também para que desequi-

A ESCALA DO MERCADO COMO GERADOR DE URBANISMO DE PROXIMIDADE Urbanismo de proximidade trata-se, como o próprio nome indica, de um modelo de cidade assente na proximidade dos programas e serviços, no sentido de potenciar a circulação lenta ou de velocidade mediana (pedonal, ciclo viária, autocarro, eléctrico), gerando assim a activação e enriquecimento das redes de espaços públicos urbanos. Tal modelo implica escalas de comércio e serviços mais reduzidas e consequentemente mais repartidas, nomeadamente pelos centros e periferias urbanas, como contraponto à aglutinação de tais actividades em determinados pontos nodais da cidade. Este modelo de cidade tem sido relativamente bem sucedido em muitas cidades de pequena, média e inclusive grande escala no centro da Europa, bem como em Espanha. A consequência mais imediata e visível de tal modelo urbano é o uso e vivência contínua das ruas e praças, onde o “nível 0” da cidade (rés do chão) se estabelece como uma malha dinâmica onde a vida prevalece; gerando assim um sentimento de pertença comum dos cidadãos à sua cidade, bem como um maior sentido de vida colectiva no espaço público. Mais, programas “nobres” da cidade, tais como equipamentos governamentais e culturais, ao estarem rodeados dessa vivência, passam também eles a ser parte integrante e activa desse ciclo de usos. Voltando ao tema do mercado, foi atrás

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líbrios e desigualdades entre centros e periferias sejam atenuados. Esta polarização pode motivar o “contra-argumento” já conhecido de que a concentração de meios possibilita uma maior poupança e eficiência, nomeadamente económica. Este argumento é apenas parcialmente válido, já que beneficia apenas os investidores nas grandes superfícies comerciais e infra-estruturas que delas resultam, ao invés da cidade e da comunidade enquanto tais. Na verdade, a polarização dos mercados, mini e supermercados gera normalmente a oportunidade de actividades no seu entorno, uma vez que as pessoas passam a deslocar-se ao supermercado do seu bairro ou da sua zona, tendo obrigatoriamente que passar pelos troços de cidade que separam a sua casa ou o seu trabalho do supermercado, tornando assim esses troços de cidade potenciais geradores de actividades comerciais, de serviços ou culturais. Ora, é assim deduzível que esse potencial de actividades adjacentes às grelhas de mini e supermercados gera oportunidades de negócio e trabalho a um número considerável de pessoas. Tal como já foi aflorado anteriormente, há também que notar o papel que o conceito de cidade (cidade de proximidade) atrás desenvolvido tem na oportunidade do desenvolvimento das redes de transportes colectivos. Funcionando como a antítese do modelo Norte-americano (mais precisamente do modelo californiano), onde o automóvel funciona como o principal meio de transporte passível de satisfazer as necessidades e fluxos dos cidadãos, uma vez que esse modelo urbano se baseia em centros

comercias aglutinadores de actividades dispersos territorialmente, e articulados através de vias rápidas com os restantes programas urbanos; o modelo do centro da Europa, já denominado de “urbanismo de proximidade”, potencia o uso dos transportes colectivos, dada a malha mais densa e contínua. O aporte social, urbano e ecológico de tal política de transportes, é indiscutivelmente central na resposta aos modelos e índices demográficos das populações urbanas contemporâneas. Há assim a reter a oportunidade dos mercados de escala pequena e média como geradores de urbanidade, no sentido de suportarem o desenvolvimento de uma cidade mais contínua, onde o desenvolvimento económico se assenta num modelo mais horizontal em termos de oportunidades, potenciando de forma mais directa as produções locais, regionais e nacionais, originando um maior equilíbrio no denominado “mercado global”. Claro está que os mercados não desenvolvem per se tal modelo de cidade de proximidade, uma vez que a sua planificação terá obrigatoriamente que estar enquadrada em estratégias abrangentes dos demais elementos urbanos (habitação, transporte, cultura, lazer, trabalho), com vista a uma coesão urbana mais optimal em termos sociais e de meios. Contudo, dada a sua importância e centralidade na vida quotidiana, os mercados serão sem dúvida um dos elementos chave para pôr em marcha tal inversão ou desenvolvimento deste modelo de cidade. Tal como vimos na História os mercados localizados nas praças centrais das cidades, funcionando como um importante

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elemento simbólico para as populações, no sentido de sedimentar o significado de comunidade; e tal como vemos hoje os centros comerciais como agregadores de comércio, serviços e uma “espécie de lazer”, onde o anonimato e o alheamento do meio ambiente e territorial envolvente são por demais evidentes; a escala de urbanismo de proximidade poderá sustentar um compromisso entre progresso e a preservação de identidades e de uma certa ética social e urbana, tão representativas da nossa civilização europeia, ou se quisermos, Moderna, e que permitiram assinaláveis índices de prosperidade e desenvolvimento social e cultural.

NOTAS 1. Ricoeur, Paul. Universal Civilization and National Cultures, 1961.

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ARQUITECTURA DE MERCADO, OU O MERCADO DA ARQUITETURA Paulo Afonso

“De uma cultura entendida como um olhar diversificado sobre a realidade e parte inseparável das nossas vidas, passamos a uma cultura convertida em artigo de consumo produzido em massa.” Juhani Pallasma1

Entende-se o mercado como uma construção humana que obedece a certas leis e regras que o regulam, sistemas sociais complexos e heterogéneos. A expressão provém do latino mercari (trocar, comerciar, comprar) que, por usa vez, procede de merx (cujo genitivo é mercis) – i.e., mercadoria. Neste caso em particular, falamos de mercado enquanto “lugar teórico onde se processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço”. É pretensão de este pequeno ensaio não encontrar uma resposta para uma questão específica, mas sim gerar uma reflexão sobre o papel e postura do arquiteto enquanto agente cultural no mercado de arquitetura contemporâneo global, mas também como agente económico (e profissional liberal) tendo entendido o quão vasto é este mercado e as possíveis fratu-

ras que podem derivar de este raciocínio. Mais que uma resposta, pretende-se opinar, gerar discussão. O problema da crise do subprime de 2008, com grande impacto no mercado imobiliário, conduziu nos últimos tempos a uma reflexão sobre o ambiente construído, ao mesmo tempo que se assistiu, em grande parte devido à crise das dívidas soberanas e à dificuldade no acesso ao mercado bancário, a um abrandar ou mesmo estagnação do mercado da construção nos principais países do mundo ocidental. No entanto, em grande parte dos chamados países em vias de desenvolvimento, a indústria da construção desenvolve-se a grande velocidade, em grande parte devido ao grande êxodo urbano que tais países vivem (conta-se que aproxima11


damente 54% da população mundial vive em cidades). Com o advento da globalização, os modelos urbanos e arquitetónicos ocidentais são emulados, assistindo-se ainda a uma diversificação do campo de atuação de vários arquitetos. Por um lado, nem sempre os melhores modelos são importados, ao mesmo tempo que o espaço é regido tendo em conta lógicas de mercado, como é patente na segregação espacial decorrente das cidades brasileiras ou no vasto número de arranha-céus anónimos das cidades chinesas; pelo outro, novos espaços e programas estão hoje ao alcance dos arquitectos, como as zonas vítimas de desastres naturais ou comunidades rurais ou de difícil acesso, espaços que até hoje se desenvolveram maiormente por técnicas de construção tradicionais e autóctones vernaculares e raramente eram alvo do trabalho de arquitectos. Ao mesmo tempo, na passagem do século XX pra o século XXI, vimos o foco da arquitectura passar de uma preocupação formal (cujo apogeu pode ser relacionado com conceitos como star architecure, ou o bilbao effect) para uma refundação da disciplina e do seu impacto mais efectivo na sociedade e do seu entendimento enquanto práctica social, ou seja, arquitectura enquanto objecto formal versus uma arquitectura “moral” e, quizás novamente, funcional, entre estética e ética. Não será alheio o debate que opõe as prácticas de Zaha Hadid ou Frank Gehry com o trabalho de Jan Gehl ou os novos colectivos e prácticas como Francis Keré ou TYIN Tegnestue. Dizia-nos Giorgio Grassi, numa recente entrevista, “agora fala-se de Gehry, da

Hadid, que não têm nenhuma expressão cultural (…) esta situação de os arquitectos quererem todos tornar-se artistas. Eu já não sei se estou em Milão, o em Berlim, ou em Londres – é tudo igual! (…) não têm nenhuma relação com o que é a vida quotidiana. E a vida quotidiana é também a sua história, com as suas mudanças, que amadurecem com o tempo”. Vivemos um tempo no qual de facto estamos em todos os aspectos do nosso quotidiano confrontados com uma cultura de consumo, imediata, individualista. Recordando as palvras de Bachelard, uma hiper realidade, uma cultura da imagem, consumida frenéticamente. Como contraponto a esta realidade, quase podemos admirar o esforço de Rem Koolhas na recente Bienal de Veneza em voltar a atenção para os fundamentos da arquitectura, a unicidade dos elementos que a conformam em contraponto a um “catálogo” de elementos repetidos e repetitivos. O culto da imagem leva-nos a produzir arquitectura vazia, sem significado nem significante, sem relação entre interior e exterior, entre contentor e conteúdo, perdendo-se muitas vezes a noção do espaço e do seu negativo, a construção enquanto tal, física. Citando Braudillard, “signs without meaning”. O mercado típico cinge-se ao uso privado de bens, e como tal assistimos a uma mercantilização da arquitectura, como producto consumível, como forma, perdendo assim muitas vezes o seu significado. Ora a arquitectura tem sentido na sua relaçao, muitas vezes esquecida, na sua continuidade espaço e tempo, na qual o arquitecto deve ser um agente cultural e

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não um um mero “escultor” de cascas vazias sem significado. O espaço perde o seu sentido em detrimento de um producto meramente estético. A linguagem/forma deve ser a consequência, o meio, e não o objectivo. Quizás importe aqui referenciar a eterna discussão entre se a arquitectura é arte ou não. Para tal, apoia-mo-nos nas palavras de Pallasmaa: “a arquitectura é uma expressão artística e não é uma arte, ambas coisas ao mesmo tempo. A arquitectura é uma arte na sua essência por ser uma metáfora espacial e material da existência humana, mas não é uma forma de arte pela sua segunda natureza, que é a de um artefacto instrumental no qual primam a utilidade e a racionalidade. Neste mesmo dualismo reside a essência exacta da arte arquitectónica.” Como ele tão bem nos recorda as palavra de Louis Kahn, “um pintor pode conceber quadradas as rodas de ym canhão para expressar a futilidade da guerra. Um escultor também pode molda-las quadradas. Mas um arquitecto deve fazê-las redondas.”. Não queremos com isto dizer que o arquitecto não deve responder ao mercado, e que a formalidade dos edificios deixe de ter significado. Deve, no entanto, manter-se um equilibrio. Porque nesta realidade de consumo (e em tempos de crise, como os que vivemos hoje) nós, arquitectos, somos profissionais liberais. Temos um ofício que nos permite viver num mundo no qual nós também, enquanto individuos, estamos “obrigados” a consumir o nosso dia-a-dia. E esta é uma discussão que ainda não está completamente enraizada no discurso sobre o papel do arquitecto e a sua metodologia.

Como se constrói, como se arquitecta, para um mercado que, em geral, privilegia a forma, no qual se vende a imagem ou a marca? Não optando por situações extremistas, estar contra o mercado ou a favor do mercado. Não é uma posição de concluio, de sim ou não. Nós, enquanto arquitectos, somos parte do mercado, somos parte de uma mesma sociedade, que têm, mesmo sendo questionáveis ou não pessoalmente, certos valores aos quais temos forçosamente de atender. Podemos ser outsiders por convicção, podemos ser fashion designers por disposição. Somos, no entanto, todos arquitectos. E não devíamos estar fora da discussão ou refugiar-nos numa bolha abstracta. Grande parte do problema da disciplina está efectivamente no extremar das partes. E de facto a discussão deveria ser não desde o ponto de vista teórico da disciplina da arquitectura, mas do seu ponto de vista práctico. Porque acabamos por referirnos e discutir uma pequena percentagem do ambiente construido mundial. Koolhaas debate o papel do arquitecto nomercado, relacionando mesmo a sua carreira profissional às volatilidades que a aarquitectura enfrenta devido à sua íntima associação com o mercado financeiro das últimas décadas, relacionando o papel do arquitecto com esse mesmo mercado e a apresentação dos mesmos enquanto vendedores. Como o mesmo afirma, estamos sujeitos às virulência do mercado, mas podemos, através do exercício da arquitectura, contribuir para “enriquecer a nossa pobreza espiritual”. Vemos países como a Dinamarca, por exemplo, onde se bem que a arquitectura

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de excelência seja menos escassa que em outros países, mas a maioria dos edificios mantém unm nivel mínimo de qualidade exigido, com as obras de interesse público questionadas e discutidas publicamente. Nem todos somos o Siza. Não podemos, nem devemos, todos aspirar a fazer “a” obra de arquitectura, a atingir o nivel de excelência que os “mestres” conseguem (não devemos, no entanto, esquecer que o mercado da arquitectura de autor é também ele um mercado). Devemos, isso sim, esperar a atingir esse mínimo que faz com que o ambiente que desenhamos e o espaço que construímos tenha sentido e significado, não seja um espaço de contrastes mas de confluências. E esse trabalho tem que ser assumido e feito desde dentro do mercado, e não à parte do mesmo. Isso leva-nos a discussão de dois factores que têm muito que ver com a questão do mercado, que é o abrandamento da economia de mercado e a condição pública das sociedades. Podemos no entanto argumentar que mesmo os estados estão “presos” a uma condição de economia de mercado, como é de facto visível pela recente crise das dividas soberanas. Outro argumento que podemos discutir é o da democratização da arquitectura, que deixou de ser, como o foi em outros séculos, pertença dos abastados e do poder, económico e religioso. A arquitectura democratizou-se, e é nessa democratização que avançou no movimento moderno e a qual segue cada vez mais rápida que nós, arquitectos, nos perdemos, ou melhor, onde perdemos o enfoque do papel que ocupamos, na ideia de sermos únicos. Porém, estes factores, apesar de não serem

externos à reflexão a que nos propomos, nos levariam a explorar temas que não decorrem neste artigo. Devemos, pois, entquanto arquitectos, ser contra ou a favor do mercado, como devemos movernos no mercado da arquitectura? Acreditamos que seja necesário também entender a ambiguidade do mercado, ou melhor, das suas consequências prácticas, e é nessa ambiguidade que devemos mover-nos. Um exemplo fáci lde compreender. Várias fundações ou organizações patrocinam obras de arquitectura em zonas pobres de países menos desenvolvidos. Se bem que essa arquitectura tenha um impacto social muito grande, não nos podemos esquecer que grande partes dos financiamentos derivam por explorações de produtos que podem não ser, em muitos casos, éticamente correctas, ou esbanjam mesmo grandes quantidades de dinheiro inicialmente dedicado ao programa que advogam em luxos e excessos de gestão. Esse é, no entanto, algo que nós, enquanto arquitectos, não podemos controlar. Nós não controlamos o mercado, o que sim controlamos é o papel que temos dentro desse mercado. À semelhança de Koolhas, quando o acusam de construir para o regime chinês, autoritário e autocrata, mas através do qual pode desenvolver um trabalho arquitectonico que gera um impacto positivo no ambiente construído. E como tal, voltamos às mesma questão que discutimos antes, é tudo uma questão de equilibrio. De compromisso. E, sem dúvida, de vontade. Qual o serviço que nós, arquitectos, queremos prestar no mundo de hoje. Qual o papel que temos

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enquanto arquitectos, e não menos importante, como e o que é ser arquitecto nos dias de hoje? E para isso, temos que entender o mundo, temos que entender o mercado. Hoje em dia, ser arquitecto já não é só ser arquitecto. Mais do que nunca, temos que ser arquitectos, gestores, agent provocateur, negociantes, mas, mais que tudo, temos que ser, como sempre fomos, agentes de cultura.

NOTAS 1. Pallasma, Juhani. Una Arquitectura de la humildad. Fundación Caja de Arquitectos, 2010, p.16 (tradução do autor)

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O ANDAR DO MERCADO Rui Aristides

Das duas uma, ou o mercado é aquela coisa abstracta, universal, imortal, quase metafísica que sobe e desce ao sabor de uns fluxos de nome e natureza mística – este é o mercado com “M” -; ou é aquele sítio na cidade onde gente anda para lá a trocar legumes por moedas. Nalgumas cidades este mercado ainda é central para muita gente, sua constituição física e ideia própria de vida urbana/rural. Noutras é um espaço de bio-suplementos luxuosos que muito anima a cena urbana, como dizem alguns. Estes são os mercados com “m”. Nem um, nem outro são mercado, aliás, são duas definições diferentes de mercado, mas nenhuma explica bem o que constitui o mercado, pois reduzem os seus vários significados. O primeiro é demasiado abstracto e matemático, o segundo é demasiado especifico e orgânico. Ora, mercado é andar, a pé, de carroça, de dromedário, de barco, de bicicleta, nos carris, de camião TIR, pelo ar e derradeiramente pela “nuvem”, ou onde os bits vão para conhecer outros bits. A massa do mercado, isto é, a maioria da sua materialidade e ser, é deslocação, apenas uma porção reduzida desta massa em deslocação é afincada no território com a solidez da arquitectura. Logo, o Mercado “metafísico” e o mercado “orgânico” são apenas versões ou partes muito reduzidas

deste todo. São muy estreitos óculos para “ver” essa massa em movimento. Alugando da cristandade, o primeiro é como o Nosso Senhor, sempre lá, o segundo é como Cristo, sempre cá, na cruz. Falta, pois, falar do terceiro elemento desta outra santa troika, aquela “única pomba feia no mundo” como dizia Fernando Pessoa (O Guardador de Rebanhos VIII): o espírito santo. Para os desactualizados com a escritura cristã, o espírito santo é aquela entidade que não tendo corpo, habita em todos os fieis, segundo Coríntios (9:19) habita literalmente nos corpos dos fieis.1 O aparecimento do espírito santo na terra está então associado ao aparecimento da Igreja enquanto instituição, enquanto massa de crentes, rezas e promessas, peregrinações, cruzes, pedra, reboco e fogo. Ou seja, dizer que falta falar do espírito santo do mercado, dado que os outros dois sujeitos da trindade já estão amplamente cobertos por especialistas e profetas, pretende-se mesmo descobrir o corpo concreto dos seus fieis, suas peregrinações e as cruzes, pedras e reboco que vão deixando. O fogo fica para uma próxima. AZEITEIROS Antes do investimento continuado do estado português na construção de caminhos de ferros, a maioria dos portugueses recebia os seus bens consumíveis, pregos, 16


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sabão, açúcar, por exemplo, pela iniciativa de uma carroça puxada por mulas ou cavalos. Salvo os meios urbanos a bem ou a mal consolidados, como Lisboa, Leiria, Coimbra, Aveiro, ou seja, as cidades do litoral, a grande maioria dos portugueses que habitava no interior do país não tinha acesso à maravilha do transporte em massa por comboio. A limitação era resolvida como sempre tinha sido resolvida desde as caravanas mouriscas. Gente, que ora por vontade ou necessidade, resolvia fazer da sua vida uma contínua viagem entre o litoral, onde paravam os comboios, e os vários interiores do país. Gente que tomava para si o cargo de levar os bens necessários e outros nem tanto, para a ruralidade portuguesa. O comboio chegava a Coimbra de madrugada. Os viajantes já lá estavam à espera deste, com as suas carroças de madeira e suas mulas e cavalos dormitando. Mal o comboio parasse, eram trocadas as notas promissoras e as moedas pelas mercadorias, carregadas a custo nas carroças. Trocavam-se também as afinidades, as anedotas, as notícias e estórias que vinham da cidade, apenas um porto de passagem para os carroceiros. Mal estavam carregadas as carroças, seus condutores lá as navegavam pelas estradas sinuosas por montes e montanhas até à Beira Alta. Um destes viajantes, ainda jovem, fazia todo o caminho até o Nordeste de Viseu e suas pequenas vilas e aldeias agrícolas, como Paranhos da Beira, no conelho de Seia. Nesta última, pernoitava na hospedaria de uma senhora lá da terra, com quem fazia negócio. A hospedaria era um edifício simples e modesto, de dimensões

igualmente modestas e de aparência semelhante às casas-fábrica - pois não era a casa burguesa do lazer e privacidade mas uma casa de lavoura - dos agricultores da aldeia. Um portão de dimensões generosas para a passagem de carroças. Ao lado uma sala comum onde tanto se servia refeições bem como dormidas. Por uma porta atrás de um balcão de improviso chegava-se aos armazéns de igualmente modestas dimensões. Antes do petróleo, da massificação industrial e suas formas de consumo, o que era levado para estas terras contava-se sem aritmética. Estes eram os “mini-mercados” do interior de Portugal. O jovem viajante aí dormia, depois de entregar as mercadorias e comer a sua ceia de caldo verde, pão e chouriço. Pela matina, despertava para tratar dos animais e fazer-se à estrada, voltava para Coimbra, onde carregava de novo a carroça, ouviria estórias, depois voltando pela estrada sinuosa ao armazém da senhora de Paranhos da Beira. E assim era, dia sim dia sim. De todos os bens que estes viajantes transportavam que, apesar das dimensões condicionadas das carroças, eram muitos, houve um que lhes deu o nome, pois mercadores ou vendedores-ambulantes, por alguma razão, não pegou. A estes viajantes chamavam-se de azeiteiros, pois traziam azeite, além de tudo o resto. Durante muito tempo, eram conhecidos como os homens e as mulheres do azeite, até que deixaram de o ser. RIO ACIMA Quem diria que uma certa combinação de carvão e ferro; minas, trabalhadores e lucro; crenças progressistas na tecnologia,

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antigas estruturas de poder e muito clientelismo; tudo isto junto e abanado num composto sem igual, poderia tirar o título de azeiteiro aos que traziam o azeite. Em 1882 a linha de caminhos de ferro da Beira Alta era inaugurada. Seria a primeira linha a fazer a ligação entre Portugal e França, por onde o Sud-express, famoso transportador de emigrantes e afins viajantes, se tornaria um dos principais meios para os êxodos portugueses, ou diásporas, como alguns gostam de dizer. Mondego acima, esta linha viria a redistribuir os movimentos de pessoas e coisas pelos vários aglomerados da Beira, pelo menos naqueles que decide tocar. Mas os carris não tocavam em muitos sítios. Nelas, modesta vila a Sul de Viseu, estranhamente, foi tocada pela máquina e seu ferro mágico. Uma pequena e negligenciável vila no panorama da reorganização económica liberal que Portugal então empreendia seria elevada a centro, mas centro de quê? Em Nelas vivia o General José de Tavares, da aristocrática família Tavares, há dois séculos com raízes físicas na vila, o que hoje se designa o largo do General José de Tavares, bem no coração da vila. Este general, dizia-se, era próximo do regime e, como tal, energizava pressões e influências eficazes. Pois uma destas foi a propósito do ferro, carvão e movimento que por aí vinha modernizar o país. O general tinha, pois, uma grande afeição pela sua terra e suas gentes e, por isso, lá energizou para que o comboio passasse por Nelas, especificamente a escassos metros da sua residência, a Casa de Tavares. Deduz-se que o general muito poupou de tempo,

paciência e cavalos, no seu labor, nas suas amantes e no merecido turismo interno. A providência levaria o comboio a Nelas. A ciência, afinal, é manienta, amiga do amigo e aquece ao sol como todos os outros animais que com ela partilham o planeta, factos que parecem não ter passado ao lado do nosso azeiteiro. Este último, nos seus hábitos viajeiros, entre as suas coisas e estórias, terá antevisto essa providência do comboio. É caso para dizer que tinha o ouvido no carril. Passa-se que Paranhos, aldeia onde tinha concentrado muito do seu viver, e não só no sentido profissional, pois ao longo das suas estadias tinha-se apaixonado pela filha da lojista. Já que Paranhos era próxima de Nelas, nem era tarde, nem cedo e o empreendedor assim se revelou. Desconfiando da futura passagem do comboio em Nelas, o azeiteiro fez as devidas preparações para fixar o seu negócio na zona. Casaria com a filha dos donos da hospedaria, braço direito da empresa comercial que aos poucos se revelava. Tomaria o capital necessário de empréstimo a uma família ilustre da zona. A carroça seria finalmente poupada às montanhas de Coimbra até Paranhos e passaria apenas a fazer os curtos percursos entre a estação de Nelas e as pequenas aldeias em torno. Assim, a sua visão e empreendorismo deram-lhe o luxo de abandonar o título de azeiteiro, agora era comerciante, armazenista, homem de negócios. Foi por estas vias, coincidências, visões e ambições, que o nosso antigo azeiteiro mandou construir os imponentes armazéns que ainda hoje desenham a presença urbana, mais que o próprio edifício da

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estação, dos caminhos de ferro em Nelas. Estes armazéns são um conjunto de hangares que cresceram uns dos outros com coerência formal e à medida que o negócio e o volume de mercadorias foi expandindo. Começou com um hangar industrial de carácter neo-clássico, feito de paredes de pedra rebocadas e demarcadas com pilastras que perfazem a altura da fachada. Portões imponentes de fábrica e pé-direito próprio de um hangar industrial urbano da época. O edifício dá directamente para a linha, com o seu próprio cais, facilitando as descargas. Deste núcleo, o edifício cresceu para os lados, no entanto, manteve sempre o seu austero aparelho de pedra rebocado, ritmado e animado por pilastras simples, e de dimensões imponentes. Numa fase mais tardia, o negócio progrediria à medida que o edifício-fábrica-armazém conquistava o outro lado da rua, que tinha sido aberta de propósito para servir o armazém. Aos poucos, mas logo desde a primeira pedra, este tornar-se-ia o maior distribuidor da região limítrofe, maior que os de Viseu ou da Guarda. Fazendo inveja aos armazéns do Porto e Coimbra, a sua massa de pedra, ferro, madeira e reboco cristalizou as oportunidades do azeiteiro e seus hábitos viajeiros numa sedentária máquina de mercadorias. Tantas noites mal dormidas, tanto descer e subir de montes, namoro à mistura, conversa com fiscais de linha e maquinistas, à acrescentar as vontades e influências de um general, e os créditos de uma nova burguesia local, tudo isto nos traz à formação deste mercado na passagem

do século XIX para o XX. À medida que as pedras eram levadas de carroça para o novo edifício, os azeiteiros deixavam assim de existir, transformados pelo carvão, o vapor e a nova maquinicidade das mercadorias. CAVALOS E CAVALOS Guerras, Americanos do Norte, Soviéticos e Árabes, antigos interesses europeus à mistura, na viragem do holocausto o planeta era lentamente e, por vezes, velozmente desenhado para usufruir de uma nova era de progresso mercantil; um progresso que aproveitava de um outro holocausto, desta feita da própria natureza e seus milénios de armistício biológico. O processamento de petróleo já tinha sido inaugurado no mercado de energia anteriormente à primeira guerra mundial, mas era posição de pouca importância nesse mercado, comparado, por exemplo, ao seu irmão mais novo , o carvão.2 Na década de 1920, empresas Alemãs, Holandesas, Belgas, Francesas, Inglesas, Norte-Americanas inauguravam o que se veio a caracterizar de corajosas campanhas nos desconhecidos desertos arábicos, por aventureiros cientistas e prospectores. Os depósitos de ouro negro eram descobertos, mapeados, incluídos numa nova geopolítica do mundo ocidental e, como tal, do mundo, por eles propulsionada, sem sequer terem sido explorados. Os texanos e os californianos destilavam da terra à mais tempo o poder desta energia e os seus precoces efeitos no mapa mundo, bem como outras, mais modestas, prospecções de iniciativa Europeia, mas eram iniciativas nacionais, comprimidas por antigos conservadorismos.

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A segunda grande guerra mobilizaria as técnicas de morte que fizeram do petróleo um mercado energético em si mesmo, desde então indissociável do sangue, ossos e sonhos partidos que passariam a integrar a sua escura constituição.3 Dos B52s e Messerschmitts, tanques Panzer e Sherman, submarinos e porta-aviões, a matéria negra passou a fluir para os novos modelos da Ford, Audi e Peugeot, para máquinas-de-lavar, barcos de turismo e de prospecção, plásticos e congelados. As indústrias da afluência, antigas indústrias de guerra, precisavam então de se converter no conforto material que virá a caracterizar os estados-providência do pós-guerra, para que a estabilidade do mundo ocidental fizesse o seu caminho pelo emprego assegurado, o transporte individual e o moderado luxo da recentemente abastecida classe média. Claro, os árabes, os africanos, os indianos e muitos outros orientais e sulistas, continuaram a andar a pé e de bicicleta, a comer feijão e a lutar as suas batalhas com armas da primeira guerra mundial. Um sacrifício necessário para a estabilidade do mundo nos auspícios de uma reorganização dos antigos impérios, sob a tutela dos colonos emancipados a oeste. Auto-governação, autonomia, soberania sobre as oportunidades económicas eram as palavras de ordem, mais ou menos sombreando sussurros racistas, domesticadores, segregacionistas, nacionalistas e federalistas. Seja como foi, estes princípios de ordem encontram muitos corpos para habitar, nomeadamente o de camiões, verdadeiros transformers de afluência. Para quê limi-

tar a afluência aos lugares tocados pelo ferro das locomotivas que, durante um período, ainda tentaram transformar-se em máquinas a petróleo. Com camiões, feitos do ferro das antigas frotas de guerra, pneus processados do petróleo, cobre das pedreiras tornadas “económicas” por esse mesmo fluído, não era preciso continuar a dar ao ferro sobre a terra a hegemonia da distribuição. A estrada viria, também ela processada do petróleo, a abrir os caminhos entre montes, bosques, aldeias e ideias, para que não escapasse nada ao mapa da afluência, mas muito escapou e escapa, como é sabido. Por estas vias, energizadas pelo fluído negro e suas capacidades transformadoras, o camião criará o vazio expectante para o supermercado. As matérias chegam ao porto, não é preciso um exército de estivadores, as máquinas alimentadas a petróleo tratam do assunto, adia-se a antiga frente popular dos estivadores. O camião com seu camionista chega, recebe a carga e parte de novo, tudo em pouco tempo. A autoestrada torna-lhe o percurso claro. Depois mais obscuro nas intenções, segue por uma antiga estrada onde outros cavalos passaram. Um velho que ainda se lembra daquela vez que foi espancado por um GNR, por ter acendido um cigarro fora de telheiro, acena com os olhos a máquina que trará algo que sempre desconhecerá, não por ignorância mas por uma continuidade que resiste aos fragmentos. O camião chega à vila, a estrada precisará de receber novo alcatrão, a orgia de pesadas rodas leva a antiga calçada a mostrar-se desafiadora. Aproxima-se do armazém em cores coloridas, com grandes insíg-

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nias, descarrega. As matérias vão para as prateleiras através de um pequeno monta-cargas, distribuído por um funcionário de etiqueta no peito, pedindo desculpas entre os olhares pensativos e abstraídos dos compradores. As caixas de pagamento alinhadas, qual turfe de compradores, correndo para os seus Ford, Audi e Peugeot, pelo negro fluído feito caminho até ao seu bungalow feito família. A vila de Nelas recebe os seus supermercados, brilhantes armazéns, cuspidos directamente da cadeia que começa algures na antiga fazenda brasileira e por barcos, portos, camiões e alcatrão que faz deles a cidade que neles não há. O antigo e imponente armazém do antigo azeiteiro, agora fazendo tijolo, herdado pelos seus, lá está junto ao ferro sobre a terra, ensombreado pela cidade que lhe vira costas, talvez sem querer. Pedra maciça, portões de ferro pintados de azul, pilastras enobrecidas pelo tempo, a massa precipita o silêncio que habita os seus compartimentos. Pressões, baixas margens de lucro ou mesmo alguns défices de difícil vencimento, misturado com falta de visão, ao contrário do seu antepassado, os herdeiros demoram a perceber as necessidades tornadas verdade pelo fluído negro. Tardiamente, lá contratam um engenheiro para restruturar parte do antigo complexo no sentido de dar uma face retalhista, mais contemporânea, ao austero edifício distribuidor. E assim, a fachada mais próxima da estrada que vem do centro de Nelas é agora revestida a metais baratos pintados de cores garridas, pontuados por um pórtico que só não tem de pós-moderno o nome, este

é Supermercados Mathias. A continuidade do azeiteiro e sua história encontra assim o seu passo nos corpos e cadeias do fluído negro, irmão tardio dos outros armazéns brilhantes, turfes de clientes que nos trazem a chinela chinesa. Mas a história é uma amante vingativa e o lugar do antigo armazém nos novos movimentos mercantis está para estes como o seu parque de estacionamento está para os carros dos clientes. Amontoados num apertado e íngreme vazio criado pela demolição de um antigo prédio, entre a rua e os carris, apitando e chocando com frequência, a custo permitindo os modernos servirem-se do antigo feito novo supermercado. Azeiteiro não mais, os óleos são outros. …autor sai da sala com os papeis soltos na mesa sem uma nota, a não ser a seguinte: sentidos agradecimentos a José Manuel Lopes de Almeida, residente de Nelas de longa data, principal fonte desta estória e quem muito para ela contribuiu, sem o saber.

NOTAS 1. tipo parasita intestinal, o que não seria incomum na época, cada novo movimento de intestino uma predestinação divina. 2. mais novo no sentido geológico. 3. Anteriormente, outros teriam vertido sangue para a destilação dessa forma de energia revolucionária, mas eram sofrimentos de “outros”, alheios à sociedade que se contava.

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ONDE ACABA O ALCATRÃO E A POEIRA SE LEVANTA Miguel Roque

O que aqui proponho é que considerem que estamos exactamente ao meio da fronteira, com uma perna em Marrocos e outra em Ceuta, e que o nosso corpo se partiu ao meio e iniciou uma viagem simultânea em sentidos opostos. Pelo caminho, encontramos cidades. Dentro dessas cidades observamos a sociedade e o espaço que as rodeia. Ao lermos esses lugares urbanos, descobrimos um código que nos permite ligar toda a história da humanidade a partir de um só edifício, à semelhança de um hipertexto. Como estamos com o nosso corpo em dois lugares diferentes, encontramos um link entre dois edifícios de cidades diferentes e a partir dele confrontamos não só duas arquitecturas como também duas sociedades. Materializando este exercício ubíquo,

imaginemos que metade do nosso corpo parou na esquina na esquina da Rue d’Agadir com a Rue Forat em Casablanca e a outra metade parou a meio da Rua dos Descobrimentos em Santa Maria da Feira. Estamos perante dois mercados contemporâneos entre si, construídos em contextos muito diversos mas cuja arquitectura partilha a aderência ao Movimento Moderno. Do lado de cá, o Mercado de Santa Maria da Feira (1953-1959) de Fernando Távora (1923-2005). Do lado de lá, o Marché d’Alimentation de Casablaca (1960?-1973) de Jean-François Zevaco (1916-2003). Na Rue d’Agadir há crianças que saem da escola e velhas que vêm ao mercado fazer as últimas compras do dia antes de irem preparar o jantar para toda a família. Há barulho de carros e motas em constante 22


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Fotografia do Mercado de Santa Maria da Feira

conflito nas ruas em volta. Tudo acalma quando a voz dos Muezins desce dos minaretes para chamar a cidade para os seus deveres religiosos, mas rapidamente se reestabelece o bulício. Apesar de Casablanca ser uma cidade milenar, os edifícios que hoje existem são posteriores ao terramoto de 1755 que destruiu completamente a cidade e são maioritariamente contemporâneos ao período em que o país se transformou num protectorado Francês, entre 1907 e 1956. É neste período que se desenvolvem os planos urbanísticos que hoje constituem as principais centralidades de Casablanca. Uma dessas centralidades é a zona circundante ao Parc de la Ligue Arab onde a Rue d’Agadir desagua. O Marché d’Alimentation remata uma esquina desta rua. À mesma hora, na Rua dos Descobrimen-

tos não passa ninguém. As poucas lojas no rés-do-chão dos prédios de rendimento da rua têm placas a dizer vende-se, aluga-se ou trespassa-se na montra. Há uma escola perto, mas não se ouvem crianças. Há uma loja de flores no mercado, tudo o resto está ao abandono. No largo do Convento dos Lóios, ao fundo da rua, há uns cafés onde velhos jogam às cartas. Apesar de o mercado se localizar perto de duas grandes estruturas como o Convento dos Lóios e o Castelo de Santa Maria da Feira, a principal relação urbana que estabelece é com a pequena escala do casario da Rua dos Descobrimentos e do riacho que ali passa. Perante o alinhamento dessas casas, o mercado recua para que dele se possa ter uma visão de conjunto, enfatizando o caracter público do edifício naquele contexto urbano. 23


Fotografia do Marché d’Alimentation de Casablanca

As estratégias de implantação dos dois edifícios partilham a simplicidade na composição, apesar de formalmente serem diferentes. O Marché d’Alimentation é constituído por 12 coberturas distribuídas de forma aleatória por uma plataforma elevada do nível dos passeios, onde pousam paralelepípedos de betão pré-fabricado que formam uma grelha de corredores. É no interior destes contentores - que até formalmente se parecem às cápsulas da Torre de Nakagin em Tóquio (1972) – que estão as lojas do mercado bem como todos os programas necessários. O Mercado da Feira é composto por 4 coberturas rectangulares em torno de um pátio onde se articulam as diferentes cotas do terreno. Debaixo das coberturas distribuem-se os diversos tipos de vendas e arrumos necessários ao funcionamento do mercado. É sobretudo no detalhe dos materiais que se estabelecem as relações com o lugar: o uso de betão à vista ou pintado nas coberturas e no mobiliário urbano, os azulejos finos em algumas superfícies, o fecho das coberturas sobredimensionados para a correcta protecção

solar dos utilizadores e o fontanário à cota mais baixa do pátio que – presumo - recolhe as águas pluviais que caem pelas gárgulas das coberturas. Távora e Zevaco são arquitectos da mesma geração, que viveram e trabalharam nas margens de um espaço cultural marcado pelos avanços que a industrialização trouxe ao centro da Europa. Diria de forma simplista que enquanto o Português explorou com a sua arquitectura um modernismo do lugar – com o sucesso que a escola que ajudou a criar ainda hoje demonstra – o Marroquino participou da emergência de um modernismo tropical que naquele espaço geográfico tem em César Manrique um outro exemplo notável. Ambos os mercados representam experiências radicais quando lemos o conjunto das obras dos seus autores. Enquanto construía o Mercado da Feira, Távora estava envolvido do desenvolvimento do Bairro Social de Ramalde (1952-1960) e preparava-se para o momento de síntese que é a Casa de Ofir (1957-1958). Neste contexto, pode-se dizer que o Mercado é

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MORFEMA | MERCADOS

um projecto que pretende modernizar a sociedade, mais do que ser um projecto moderno. No caso de Zevaco, o Marché d’Alimentation representa o último exercício de um modernismo ortodoxo patente em projectos como a Estação Termal de Sidi Harazem (1960) e das Villas en bande d’Agadir (1969). A partir do Marché, Zevaco desenha a Villa Zevaco (1975) e as Villas Zniber (1988) onde sintetiza uma nova hipótese de modernidade, ligada à paisagem e à condição tropical e Atlântica de Marrocos.

para trocar ideias mais do que mercadorias, não passa de um desejo incapaz de se concretizar. Não podemos garantir se por falta de homens ou de ideais.

Planta do Mercado de Santa Maria da Feira

Regressemos agora à fronteira de Ceuta com Marrocos. De um lado está um magote de táxis cujo movimento levanta poeira. Do outro um autocarro para Ceuta. Depois desta viagem hipotética salta-nos à memória a pujança da sociedade marroquina e o ocaso da sociedade portuguesa assim como a harmonia do Mercado da Feira e a degradação do Marché d’Alimentation. De um lado um espaço público sobrelotado, mantido pela solidariedade intergeracional de estruturas familiares coesas. Apesar de estar degradado e descontextualizado, continua a ser um bem essencial para os habitantes dos bairros vizinhos que ali se encontram não só para se abastecer como para conviver. Do outro lado o Mercado da Feira, abandonado por uma sociedade que pode desperdiçar a sua qualidade espacial e construtiva. Para essa sociedade, o abastecimento de produtos frescos é feito através das grandes superfícies comerciais, fechadas, seguras, higiénicas e amenas. A ideia prosaica de um lugar onde os homens se reúnem

Planta do Marché d’Alimentation de Casablanca

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MERCADOS, OVERTONE SINGING E A ARQUITECTURA DO ESPAÇO ABSTRACTO Rui Santos

planta em que se vai desenhando. Não é porém um aninal selvagem, é um cuja trela a segura o poder da influência humana, pois se os 0’s e 1’s são os traços que o compõem, o arquitecto é o conjunto das influências que o esquiçam. Por ser criação dessa influência, que a compõe a sociedade, seria de esperar que o intuito fosse a amestração desta casa-animal de modo a que ela executasse as manobras artísticas que satisfizessem os mais variados “fetiches” do aglomerado humano. Curiosamente, a sociedade foi erguendo os bits deste Ser sem se aperceber que se trancou lá dentro e, entretanto, parece não conseguir encontrar a chave. Certo que os mercados protegem-nos do frio, chuva, intempéries, mas não nos deixam vir cá fora apanhar sol; no máximo vamos até ao quintal despejar o lixo e constatamos que está um lindo dia, mas não passamos a cerca. É o melhor que fazem, por enquanto. Ainda assim, aprisionados na nossa própria criação, conseguimos vislumbrar o desenvolvimento de algumas valências humanas, as que a largura da moldura nos permite. Porém, o desenho desta entidade, por razões que só a ganância que alimenta a influência deverão conhecer, parece ter erros projectuais (ou,

A troca de uma coisa por outra coisa é ainda a forma mais pura de mercado. Esses dois objectos nus, como “coisa” per se, constituem o valor mais nuclear que se lhes pode conferir. É e será sempre actual, mas não corrente. A transfusão desse valor para um veículo móvel de troca como o dinheiro (físico ou digital) generou uma nova forma de mercado, uma que ocupa o espaço virtual e que se foi e vai desenvolvendo como uma entidade em si. Esta entidade assume e desassume posições num eixo abstracto de muito mais coordenadas que x, y e z, coordenadas algumas ainda incomensuráveis à consciência humana, cujas consequências se tornam ainda mais imprevisíveis dada a sua natureza metafísica. E as consequências derivam senão dos bloqueios e desbloqueios, dos muros, paredes, janelas e portas que os “mercados” vão esquiçando nesta folha multi-dimensional, das oportunidades/incentivos/ insinuações vs descontinuações/desencorajamentos/barreiras. Este ser composto por papel, 0’s e 1’s é portanto um animal arquitectónico no sentido em que, em constante mutação, usa a continuidade vs descontinuidade de situações para controlar uma determinada conjuntura humana, com diferentes envolventes a cada “ponto cardeal” da

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chamemos-lhe, opções) de arquitectura de capa da Casa Cláudia: desenhou janelas e portas demasiado amplas para os Factor X’s, os automóveis, Lady Gaga’s e Tony Carreira’s, os condomínios turísticos à beira-mar (quando não em cima dele), as tardes da Julia, os blockbusters, o alcatrão e as casas dos segredos, para a ofensiva pouca vontade de não se estacionar à porta de tudo aquilo que se quer fazer na vida; outras, demasiado pequenas ou inexistentes, para aquela montanha lá ao fundo onde daí para trás existem dimensões e qualidades da co-existência humana que quem aqui mora nem sonha que existem, e quando sonha, acorda com o ranger das madeiras gastas; ou para a árvore de fruto que, todos os anos e pela sua Natureza, simplesmente dá. Através de uma destas pequenas janelas fui pseudo-xamanisticamente surpreendido por uma técnica milenar que o meu imaginário nunca iria supor que existia (não fosse essa janela) denominada Overtone Singing. Crê-se ter originado na Mongólia e basicamente consiste no canto de 2 ou mais notas ao mesmo tempo, produzindo resonância harmónica através das cordas vocais. A República de Tuva, na Ásia Central, outrora parte do Império Mongol, é hoje um dos países que pinta as suas raízes culturais através desta técnica musical: “Overtone singing é uma mímica no sentido em que os seus sons e estilos podem ser associados com os elementos de uma determinada paisagem, porém não busca imitá-los mas estilizá-los”; “para os habitantes de Tuva, esta técnica expressa o pensamento dentro do campo sonoro. E é por isso que, para

a maioria de nós – e mesmo das pessoas que ouvem – evoca associações aos sons da Natureza, sejam os de uma montanha, um rio ou uma floresta.”. A janela para alguns destes fenómenos de extraordinária riqueza cultural, artística, mística, parece ser cada vez mais estreita, prestes a encerrar-se num plano opaco. É neste preciso momento que corremos o risco de deixar de vislumbrar esse tipo de paisagens que, pela sua Natureza antípoda, ou melhor, divergente, vai esticando o espectro daquilo que achamos que conseguimos ser como indivíduo e como colectivo; e se um dia decidirmos redesenhar um enfiamento visual para essa paisagem, ela pode já ter mudado e, no seu lugar, encontramos uma versão Coreana do Gangnam Style. Há uma esfera de infinitos pontos à volta da casa-animal, mas enquanto aqui vivermos, a finidade e afinidade para com os mesmos é limitada pela sua arquitectura abstracta e suas escolhas de perspectiva. Enquanto estas escolhas vão sendo consistente e irresponsavelmente vincadas e impressas no consciente e sub-consciente pela conduta duma globalização que tem mostrado a sua pior face da moeda, o monocórdico, arrisca-se a Humanidade a uma realidade onde não há espaço para a continuidade de tradições que lhe vão relembrando as suas infinitas possibilidades de criação. Há o perigo dos mercados assassinarem a tradição; há o perigo de nos tornarmos Confortably Numb.

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DESCOBRIMENTOS, O CONTRIBUTO PORTUGUÊS Luís Gomes

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Vi o interesse da história a despertar em mim nas pedras talhadas das igrejas e monumentos, nas esculturas das personagens dos grandes feitos que os livros relatavam, ali e “acoli”, um pouco por todo o lado, pelas cidades que então ia descobrindo. Via a história tomar vida em pedra e imaginava-a capaz de se reformular permanentemente, como se o desenlace temporal, a efectiva herança de quem as patrocinou, se fosse materializando, nesse meio aparentemente inerte. Banhando-se nas águas do Tejo, vejo-o ali desde sempre, desde que as primeiras naus zarparam,1 na procura desse novo Mundo, e quis ver a pedra do Padrão viva, tomar a forma do contributo desse feito maior do nosso povo, os Descobrimentos. E que feito foi esse que não o de abertura de novos mercados? Novas “nodalidades” um pouco por todo o Mundo, onde a troca de bens e ideias fundamentaria a nossa ainda que breve prosperidade? Pois bem, é quase um lugar-comum atestar da importância que o comércio teve no desenvolvimento de povos, regiões, mas esquecemo-nos muitas vezes do quanto nos influenciou biologicamente, enquanto espécie. Para tal basta ponderarmos que sem o “incremento de tempo” que a troca permite, não teríamos a possibilidade de desenvolver novas capacidades/ especializações e, com isso, o nosso próprio cérebro. “A inovação muda o mundo mas só porque ajuda na divisão do trabalho e encoraja a divisão do tempo...Este é o maior tema da história: a metástase da troca, a especialização e a invenção assim suscitada, a “criação” do tempo”.2

Contudo, nos nossos dias “mercado”/”mercados” assumem uma definição mais difícil, desde logo porque se outrora estes significavam lugar, sítio onde a troca comercial se possibilitava, hoje, graças às novas tecnologias de informação, o lugar deixa de ser necessidade e o mercado pode existir no mundo digital, no não-lugar. Quiçá esta própria desmaterialização seja uma das razões para esta desconfiança latente, essa conotação negativa que os “mercados” hoje assumem, e que eu não deixo de partilhar. Deveras, se muitos exemplos há do benefício da troca na experiência humana, muitos outros também poderiam ser dados que atestam dos perigos do “aprisionar” da actividade comercial, na tentativa do seu controlo e centralização, o que despoleta a diminuição dos proveitos generalizados dessa nobre arte e, com isso, a prosperidade de povos e regiões.3 Algo que acredito que se passe hoje, desta feita à escala global, onde poucos especulam o destino de muitos. Foi com este pano de fundo que quis dar vida ao Infante e a todos os seus camaradas, transportando-os para os dias de hoje, oferecendo um cru vislumbre da herança do seu empreendimento. Representados com os distintos símbolos que os individualizam, que os especializam, eles próprios são fruto da troca, da especialização, da melhoria, sendo também impulsionadores dessa intrínseca necessidade do ser humano de se relacionar, “...uma certa propensão da natureza humana... para negociar, regatear e trocar uma coisa por outra” (Adam Smith, “A Riqueza das Nações”). Mas tal como anteriormente

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dito, as sombras que tentam o seu controlo, não procurando outra coisa que não o proveito próprio, têm o poder de nos fazer ver nos mercados a causa maior da nossa “...perpétua oscilação entre felicidade e miséria”.4

NOTAS 1. Sabendo o autor que o monumento foi erguido pela primeira e de forma efémera em 1940, integrado na Exposição do Mundo Português. 2. Matt Ridley. O Otimista Racional. Bertrand Editora. pág. 65. 3. indem, págs. 215-239. 4. T. R. Malthus. Ensaio sobre o Princípio da População. Publicações Europa-América. 1999 Ilustração do autor.

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MORFEMA Nº1 | MERCADO | ABRIL 2015 Editor: Miguel Roque Textos: Luís Gomes, Miguel Roque, Paulo Afonso, Ricardo Ibrahim, Rui Aristides, Rui Santos Contacto: geral.morfema@gmail.com


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