Maria Luiza, lugares, contextos — Diego Bresani

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Penteadeira de Maria Luiza. Novembro de 2016.


Maria Luiza, lugares, contextos

fotografias de

DIEGO BRESANI com desenhos de

MARIA LUIZA a partir das filmagens do longa-metragem Maria Luiza (2019) de MARCELO DÍAZ consultoria curatorial de BÁRBARA WAGNER e design de FELIPE CAVALCANTE e GABRIEL MENEZES

Diazul de Cinema e Diego Bresani Brasília 2021





Ainda lembro, muito tempo atrás, de meu querido avô Chiquinho, com seus mais de oitenta anos. Ao mostrar sua própria foto ele me dizia assim: “Tô na chapa!”. Era uma foto antiga, em preto e branco, quase dos primórdios da fotografia. Para entender essa pequena, mas sincera frase, continuei a conversa. Com sinceridade e simplicidade de ancião ele esclareceu de uma forma em que eu pude realmente entender o seu conceito e o significado. Para contextualizar, seria assim: a radiografia é chamada assim, de “chapa”, pelas pessoas mais antigas. Portanto, segundo meu avô, mostra por dentro da pessoa. Por outro lado, a fotografia (neste caso, em papel e preto e branco) e também chamada assim, de “chapa”, por meu avô, mostra o outro lado da pessoa. Ou seja, o de fora. — Maria Luiza










































A arte do desenho sempre me cativou. Quando criança, antes mesmo de entrar para a escola, já riscava as paredes de casa com carvão e imprimia figuras de pessoas, árvores, carros, aviões e até de letras. Tinha muita vontade de ter uma caixinha de lápis de cores, mas a escola ainda não havia chegado a mim. Usando a criatividade eu experimentava produzir minhas próprias cores para colorir. Por minhas mãos passava a alquimia do arco-íris. Vinha: o amarelo do açafrão; o vermelho, do urucum; o azul, do jenipapo; o marrom, da terra; o cinza, das cinzas; o preto do carvão. Assim eu tinha as tinturas rudimentares para meus desenhos. E eles ficavam ótimos nos quadros de tampas de caixas de sapato, segundo a minha percepção de criança. — Maria Luiza


























Adolescente, jovem, comprei pelos Correios a primeira câmera fotográfica. Era uma câmera muito simples, de foco fixo, rolo de filme em preto e branco. Minha primeira experiência com a fotografia foi a de documentar familiares e conhecidos. Algum tempo depois, tive uma nova câmera, também com foco fixo, mas dessa vez com rolo de filme em cores. Percebi que, além de fotografar a família, podia focar também no ambiente à minha volta, fazendo fotos mais criativas. Queria melhorar a qualidade das minhas imagens, por isso comprei uma câmera semiprofissional, com foco ajustável e rolo de filme. Senti a natureza se virar à minha frente numa gama enorme de possibilidades de imagens. Pouco depois tive mais uma câmera semiprofissional, mas desta vez digital. Há uma série de recursos eletrônicos para incrementar a fotografia, e uma enorme possibilidades de fotos que podem ser tiradas. Adorei! O mundo se iluminou para que eu o fotografasse! — Maria Luiza



















































Maria Luiza: uma singela revolução! Jaqueline Gomes de Jesus

Aprendi sobre como revoluções podem nos alcançar silenciosamente, e começar a nos mover a partir de singelezas, ao conhecer Maria Luiza. Ainda tenho o quadro na mente, se a minha memória não me falha ou confunde: no ano 2000 eu estava organizando materiais na sala do Grupo Estruturação, a mais antiga Organização Não-Governamental (ONG) de defesa dos direitos da população que hoje chamamos pela sigla LGBTI+ (para representar Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Intersexo e demais identidades, como Assexuais, Queer, entre outros) em atividade na capital federal (e posterior ao extinto Grupo Beijo Livre), quando ouço bem, bem próximos, os passos leves e a voz suave de Maria Luiza. Nós nos apresentamos e ela foi direta ao me relatar o seu martírio — o termo, para mim, cabia perfeitamente à situação, desde aquela época: para qualquer pessoa com um mínimo de empatia, seria evidente compreender a violência simbólica e a tortura psicológica aviltantes a que Maria Luiza estava sendo submetida, pelas pessoas com cargos de poder na instituição que ela amava e na qual trabalhava, servindo o povo brasileiro: a Aeronáutica. Por ser uma militar transexual, e após décadas de apagamento de si mesma, tendo enfim encontrado frestas para vivenciar, no exterior, quem ela era, apesar da ignorância e ódio dos que a cercaram ao longo do tempo,

Maria Luiza fora afastada de todas as suas funções nas Forças Armadas, e considerada incapaz definitivamente para as atividades militares. Invalidada! Foi esta uma das imagens que marcaram o início do meu século XX, a entrada quase diáfana de Maria Luiza não apenas no meu trabalho militante ou na minha reflexão acadêmica, mas também na minha vida, e cuja relevância só compreendi na década seguinte. Maria Luiza nasceu Maria Luiza, mas lhe identificaram como pertencente a um gênero com o qual não se identificava. Deram-lhe um nome que nossa cultura machista, sexista e transfóbica marca como próprio de garotos. Mesmo assim, ela construiu a si mesma. Eu fiquei triste e me senti impotente ao não poder auxiliá-la naquele momento. Estava de saída da ONG, envolvida em outras atividades e no penúltimo ano da minha graduação. Após esse episódio, só pude acompanhar a luta de Maria Luiza desde as notícias de jornal, redigidas principalmente pelo jornalista Marcelo Abreu, e as poucas redes virtuais que começávamos a acessar de forma mais estratégica. Ela sobreviveu, ela resistiu, ela encontrou mais apoiadores. O nome de Maria Luiza se repetia frente aos meus olhos, como em cada parágrafo deste texto. Anos depois foi a minha vez de me reconhecer plenamente, inspirada por mulheres como ela.


Numa noite do mês de fevereiro de 2011, quase no fim do meu expediente tardio em um prédio da Esplanada dos Ministérios, recebi uma visita que me alegrou extremamente: era o querido diretor de cinema Marcelo Díaz, que me procurou para conversar sobre o seu projeto de fazer um filme sobre Maria Luiza e sua luta. Queria eu poder lhe contar muitos detalhes para além do meu encontro com ela. Acabei contribuindo mais enquanto entusiasta dessa ideia tão relevante e pesquisadora no campo do gênero e das transgeneridades. Anos depois, já morando e trabalhando no Rio de Janeiro, fiz uma rápida passagem por Brasília, e ele aproveitou para gravar o meu depoimento, em um agradabilíssimo dia, no meio do gramado da Praça do Compromisso. Eu escolhi o local para lembrar do sofrimento de Galdino Jesus dos Santos, líder indígena da etnia pataxó-hã-hã-hãe que foi queimado vivo ali, em 20 de abril de 1997, e

com isso reafirmar a importância da memória dessa pessoa tão brutalmente violentada pela chamada “civilização”. Eis que, finalmente, volto a ver e ouvir Maria Luiza, em toda a sua suave potência, graças a mais um Marcelo! Mas dessa vez eu fazia parte desse relato, do falar sobre ela, que agora escrevo tão brevemente. Que estas poucas palavras lhe instiguem a também se inspirar com Maria Luiza, com a pessoa além do nome, com essa doce guerreira que fez jus à sua missão, enfim, vitoriosa. Creio que, conhecendo-a de fato, você também revolucione a si mesmo, encontre-se, no que quer que você seja, humanize-se e, com isso, assuma esse compromisso para com as vidas de todos, participe da transformação deste mundo geralmente tão triste e opressor, e cultive a felicidade de ser, simplesmente, gente!

Jaqueline Gomes de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB. Pesquisadora-Líder do ODARA - Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (CNPq). Coordenadora do Núcleo de Diversidade Marielle Franco – NDIVAS (IFRJ campus Belford Roxo). Ativista dos Direitos Humanos desde 1997, foi presidente do Grupo EstruturAção de Brasília, além de fundadora e presidente da ONG Ações Cidadãs em Orientação Sexual – ACOS e do Fórum LGBT do Distrito

Federal e Entorno. É autora e organizadora da coletânea “Transfeminismo: teorias e práticas” e dos livros “Homofobia: identificar e prevenir” (ambos publicados pela Metanoia Editora) e “Eu não sou uma mulher? e outros discursos” (Nandyala Editora), no qual traduziu discursos e falas de Sojourner Truth, ativista negra norte-americana do século XIX. Em 8 de março de 2017 recebeu a Medalha Chiquinha Gonzaga, honraria concedida pela Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro a mulheres com reconhecidas contribuições à sociedade, das mãos da vereadora Marielle Franco.


Memória, identidade e afeto Marcelo Díaz

Durante a definição da equipe do filme MARIA LUIZA, uma pessoa era chave nesse processo. Buscava alguém que, a partir da fotografia estática, tivesse a abertura para trocas e um olhar distinto do que viria da câmera de cinema. Alguém que propusesse uma reflexão acerca da forma de Maria Luiza da Silva se mostrar durante e entre os momentos de câmera rodando e que, muito além de um still, sugerisse um jeito particular de registrar o processo de realização do filme. E que, principalmente, durante nosso tempo com a personagem, estivesse conectado com o registro do passar do tempo. A ideia, com a câmera fotográfica, era registrar o dentro e o fora de quadro, as pausas, o instante, a espera e a interferência da filmagem no ambiente e na personagem. De alguma maneira, era entrar no espaço fílmico além do tempo da câmera de cinema e buscar os detalhes do universo de Maria Luiza em uma aproximação, por vezes, paralela ao filme. Essas imagens estáticas sugeririam suspensões no fluxo na narrativa, como um convite ao espectador para percorrer com os olhos as expressões da protagonista e seu universo. Para Maria Luiza da Silva, a fotografia sempre foi parte da expressão, da elaboração e da afirmação de sua identidade. Desde as fotos de seu arquivo de família até as fotos que tirava de si própria, sozinha, buscando

revelar-se ao mundo e a si. No decorrer do longo processo de criação do filme e de observação desta personagem em seu universo, eu procurava uma forma de entender e absorver isso, de como captar a forma particular de Maria Luiza performar e se apresentar. Pesquisei uma gama de fotoartistas, com identidades e olhares distintos e que também generosamente topassem direcionamentos. Diego Bresani tinha e tem, além disso, um potencial de enxergar além da mise-en-scène. De encontrar a performance no micro e no simples. Sua trajetória pelas artes cênicas, como fotógrafo, ator e diretor lhe trouxe uma vivência ainda mais particular que também contribuiu diretamente nessa escolha. Um artista de delicadeza e vivência impressionantes. Com um olhar contemporâneo e interessado em atravessar as expressões dos gêneros e das identidades, em desconstruir e desconstruir-se, em inspirar-se pelos sentidos e significados dos diferentes femininos e masculinos. As mais diversas fotografias de Diego saíram dessa experiência no set de filmagem e pelo espaço de vida de Maria Luiza. Pude vê-las e revê-las por todo o processo de montagem do filme e me instigava a ideia de que tivessem vida própria. Havia ali também uma jornada particular, uma performance e uma narrativa próprias, consequência do


mergulho pessoal de um artista pelo universo de uma mulher trans, militar, católica, cuja simplicidade complexa nos cativava (e cativa) a todo momento. Aqui está uma parte preciosa desse registro, que é também o registro de um momento de nossas vidas, muito inspirado no convívio com a querida Maria Luiza da Silva, com uma diversa gama de personagens dessa jornada e com a nossa tão especial equipe de filmagem, que muito contribuiu e nos inspirou neste processo. Durante as filmagens convidei Maria Luiza a fotografar sua vida, “seus contextos e seus lugares” com ideia de, talvez, incluir suas fotos na narrativa do filme. Entretanto, também durante a realização do filme ela me mostrou um tesouro guardado em seu apartamento. Lá estavam desenhos e pinturas de sua autoria, que nos guiariam por sua subjetividade, seu silêncio e sua resiliência. Os temas e personagens que retratara com seus traços, suas cores, por meio das folhas pautadas de seus cadernos e folhas avulsas, pulsavam mais profundamente o seu mundo particular, dos tempos de adolescência

em Ceres (GO), do fascínio pelo universo militar, da aviação, do cinema, das referências femininas e masculinas e da religiosidade. Ao ver essas imagens, Diego Bresani também entusiasmou-se e embarcou na ideia de incluí-las formalmente nas suas fotos e, mais adiante, neste livro, cuja narrativa ganhou sentido e profundidade maiores. A presente obra, que então começara como um livro de fotografias de Diego Bresani pelas filmagens de MARIA LUIZA – o filme, ampliou-se ao incluir o campo criativo de Maria Luiza da Silva e contribuir para revelar sua identidade artística e poética. Reverbera, assim, momentos imortalizados pela memória que a fotografia de Diego Bresani nos permite visitar e revisitar, associados aos traços de Maria Luiza, em tons de descoberta e revelação do seu olhar acerca da arte e da vida. Diego Bresani é para mim um dos grandes nomes da fotografia contemporânea, sem sombra de dúvidas. Sua generosidade e afeto com Maria Luiza e comigo estão em cada página desse livro. Diego e Maria Luiza são pessoas de luz. Muita honra tê-los nessa jornada!

Marcelo Díaz é brasiliense de sangue piauiense-paraguaio, diretor, roteirista e produtor. Busca realizar filmes como meio de transformação. Suas produções estiveram em mais de 60 festivais pelo mundo, em TV e plataformas de streaming. Maria Luiza, seu primeiro longa-metragem, estreou no É Tudo Verdade, principal festival de documentários da América Latina. Eleito Melhor Documentário no Merlinka Queer Film Festival (Sérvia), Melhor Documentário no Humano Film Festival (México) e Menção Honrosa no Latino & Iberian FF de Yale (EUA). Foi selecionado para diversos festivais como: FIDBA (Festival de Documentários de Buenos Aires); Chéries-Chéris/LGBTQ+ (Paris), TranScreen (Amsterdam); Seattle Latino (EUA), San Diego Latino (EUA), Festival de

Brasília, Geneva Queer (Suíça), Atlantidoc (Uruguai), OutFest Peru. Realizou filmes como: “Terra de Luz”; “Restrutural”; “Galeno, Curumim Arteiro”; “Desdobráveis” (Melhor Roteiro CineMube/SP e presente em mais de 20 festivais pelo mundo); “Oficina Perdiz” (Melhor Curta do DF/Festival de Brasília; Prêmio do Público no Festival de Curtas de SP, selecionado para mais de 30 festivais como Havana, Milão, Gramado, Sidney Latino, Antofagasta/Chile, Tiradentes, Cine Ceará). Realizou o filme-espetáculo “Aquilo que Não Podem Demolir Enquanto Eu Puder Falar” com a Cia. Teatro do Concreto (Festival Cena Contemporânea). É diretor da produtora Diazul de Cinema.



a partir das filmagens do longa-metragem Maria Luiza (2019) direção: Marcelo Díaz, produção: Diazul de Cinema www.marialuizafilme.com.br

Fotos Diego Bresani

Textos Maria Luiza Jaqueline Gomes de Jesus Marcelo Díaz

Desenhos Maria Luiza

Revisão de texto Morillo Carvalho

Consultoria artística e editorial Bárbara Wagner

Impressão Ipsis Gráfica e Editora

Coordenador de Conteúdo Marcelo Díaz

Agradecimentos especiais Ada Luana Benjamin de Burca Bianca Novais Carlos Henrique Siqueira Cícero Fraga Janaína Miranda Luiza Herdy Rodrigo Sombra Silvino Mendonça

Design Felipe Cavalcante Gabriel Menezes (Molde.cc) Produção Elisa Mattos (Desvio Produções Culturais) Assessoria de Imprensa Agenda KB

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Elaborada por Aline Graziele Benitez – Bibliotecária, CRB-1/3129

Maria Luiza, lugares, contextos / fotografias de Diego Bresani ; com desenhos de Maria Luiza. -- Brasília, DF : Ed. do Autor, 2021. ISBN 978-65-00-27001-3 1. Ensaios fotográficos 2. Forças Armadas 3. Fotografia 4. Pessoas transgênero – Identidade. I. Bresani, Diego. II. Luiza, Maria.

21-73556

CDD-779

Índices para catálogo sistemático: 1. Ensaios fotográficos : Arte 779

Este projeto é realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal.

Realização

Secretaria de Cultura e Economia Criativa


Penteadeira de Maria Luiza. Dezembro de 2017.


ISBN 978-65-00-27001-3


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