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ano III • n. 6 • maio 2010


ISSN 1982-2766

Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina

Domínios da Imagem, Londrina, ano III, n. 6,

maio

2010


Universidade Estadual de Londrina Reitor: Cesar Antonio Caggiano Santos Vice-ReitorA: Cristiane Vercesi DIRETOR DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Ludoviko Carnascialli dos Santos CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Cristiano Gustavo Biazzo Simon COORDENADOR DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: José Miguel Arias Neto EDITOR RESPONSÁVEL: Alberto Gawryszewski – UEL • Terezinha Oliveira – UEM • Edméia Ribeiro – UEL COORDENADOR DO LEDI: Alberto Gawryszewski – UEL

CONSELHO CONSULTIVO Célia dos Reis Camargo – UNESP • Daniel Russo – Université de Borgnone • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Stella Maris Scatena Franco – UNIFESP • Terezinha Oliveira – UEM

CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Ailton José Morelli – UEM • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Luciene Lemkhul – UFU • Luis Felipe Viel Moreira – UEM • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Manoel Dourado Bastos – UDESC • Maria Cristina Pereira – USP • Maria Paula Costa – UNICENTRO • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Miriam Paula Manini – UnB • Rejane Barreto Jardim – UFPEL • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Edições Humanidades IMAGEM DA CAPA: Paulo Menten

TIRAGEM: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR.

Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral

ISSN 1982-2766 1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio


Sumário

Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo.............................................................................7 Adriana Maria de Souza Zierer

Lago dos Cisnes de Matthew Bourne: práticas do olhar de suas imagens dançantes.......... 23 Alba Pedreira Vieira

O Amigo da Onça entre as Fronteiras do Público e do Privado (1956-1961)....................... 39 Ana Flávia Dias Zammataro

Por trás da imagem, ‘o olhar’: o uso da fotografia em estudos culturais................................ 53 André Camargo Lopes

A Disputa do Imaginário: as representações do cangaço no cinema nacional (1950)......... 67 Caroline Lima Santos

El Icono de la Santísima Trinidad de Andréi Rublev: aproximación al estudio de la expresión artística del misterio trinitario en el icono bizantino de la Santísima Trinidad de Andrei Rublev.............................................................................................................................................. 75 Cecilia Inés Cibeira

A Apreensão Espacial na Sociedade Italiana do Pós-Guerra.................................................... 85 Denaldo Alchorne de Souza

Imagens do Cotidiano da Escola para Todos (ou Escola Inclusiva) em Finais do Século XX: tempo e espaço como focos de análise...................................................................................... 91 Fabiany de Cássia Tavares Silva

As Imagens que Surgem pela Força da Escrita: o Auto de Suassuna – do Medievo à Crítica Social........................................................................................................103 João Evangelista do Nascimento Neto

Historia Social Y Cine: una aproximación al período 1955-1976 a través de Los Traidores ............................................................................................................113 Pablo Alvira

Cultura Fotográfica na Bahia: Osmar Micucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960).........................................................................................................129 Valter Gomes Santos de Oliveira

resenha

TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge.............147 por Rozinaldo Antonio Miani


Imagem da capa

Paulo Menten, nascido em 1927, pintor, desenhista, gravador, crítico de arte, mestre, chegou a Londrina no final dos anos 70. Já havia construído uma sólida carreira, conquistado uma posição de relevo no cenário artístico brasileiro, particularmente através de seu trabalho com gravura. Atualmente se desenvolve projeto de organização de seu acervo constituído de textos (muitos, ainda, inéditos) e obras visuais. Este conta com apoio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PROMIC), de Londrina. A imagem de capa desta Domínios da Imagem faz parte da série de São Paulo antigo: Glória, São Francisco, Várzea do Carmo, Tabatinguera. Desta, principalmente, fez grande tiragem, explorando variações de cor e forma. Ele vai acrescentando portas, janelas, “texturando” os casarios, uns totalmente, outros parcialmente... Um olhar ingênuo ou descuidado não percebe essas sutilezas... Em outras ele faz novas imagens e imprime invertendo a matriz. Há gravuras que compõem série de 70 ou mais, imprimindo variação de cor em cada uma, como no caso do Menino do Vietnã. Ele é o grande alquimista da cor, um colorista sofisticado que sulca matizes com formões, goivas, buris, registrando imagens, casarios, ruas, praças, ladeiras, como essas tão peculiares de São Paulo. Embora seja um trabalho figurativo, Paulo abstrai-se da realidade ótica e expressa seu estado íntimo, lírico, sensível. Lembranças afetivas de um passado não distante. A forma, cor, composição tem a sofisticação Paulo Menten. Dolores B. Branco e Angelita M. Visalli


Apresentação

Com grande satisfação o LEDI (Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem), torna público o número 6 da sua Revista Domínios da Imagem. Nele contamos com a contribuição de pesquisadores (as) do Brasil e da Argentina que utilizam a imagem como suas fontes investigativas nos campos da história, da educação, do cinema, da dança, da fotografia, da literatura e da religiosidade, dentro das atuais tendências da historiografia. A divulgação de mais este número da Revista expressa dois aspectos importantes no âmbito dos estudos das imagens no Brasil. Em primeiro lugar, a importância, vitalidade e espaço que a imagem ocupa, atualmente e merecidamente, no âmbito das pesquisas científicas. Em segundo lugar, evidencia a consolidação do Laboratório de Estudos ... da UEL que, com estudos, eventos e a Revista contribui para disseminar junto à comunidade acadêmica, docentes e a comunidade, a imagem nas suas múltiplas interpretações. Convidamos a todos a ler os textos ora divulgados, assim, conhece-se a Revista e um pouco mais do sobre os estudos da imagem. Agradecemos a todos os colaboradores deste número pela confiança ao nos enviarem os respectivos manuscritos de seus textos e convidamos o público leitor e os estudiosos da imagem que nos enviem textos, resenhas e ensaios à nossa editora.

Terezinha Oliveira

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Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo Adriana Maria de Souza Zierer Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1988), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1999) e doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (2004). Atualmente é professora Adjunto II da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: Idade Média, Ramon Llul, imaginário medieval, cavalaria, mulher medieval, viagens imaginárias e rei Artur. Desde 2004 tem organizado eventos científicos na UEMA. Participa de vários periódicos como as revistas eletrônicas Brathair, Mirabilia e Outros Tempos.

Resumo

A Visão de Túndalo é um exemplum, narrativa de caráter moralizante com a função de convencer uma platéia através de uma lição moral. Os exempla eram apresentados por pregadores religiosos com o objetivo de conversão. A narrativa foi produzida no século XII por um monge cisterciense e traduzida para o português no século XV, o que mostra a sua importância no final da Idade Média. O aspecto pedagógico está bastante ressaltado através da oralidade. É através do diálogo entre o anjo e Túndalo que são explicados detalhadamente os tormentos do Além, relacionados às faltas dos pecadores. O ente celeste também explica ao nobre os motivos que levaram os eleitos a ficar nos três espaços do Paraíso, os Muros de Prata, de Ouro e de Pedras Preciosas, segundo o seu merecimento. Além de conversar com o cavaleiro Túndalo, no intuito de convencê-lo a se tornar um bom cristão, o manuscrito também dialoga com a platéia a quem o texto era dirigido, através de vários índices de oralidade (Zumthor), com verbos como ouvir, falar, contar. Para reforçar o aspecto pedagógico do exemplum são enfatizadas imagens relacionadas aos órgãos dos sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) no Paraíso e Inferno. A iconografia do final da Idade Média também confirma algumas descrições da Geografia do Além apresentadas na visio. Palavras-chave: Visão de Túndalo; educação; oralidade; imagens.

Abstract

Visio Tnugdali is an exemplum, a moral narrative with the task of convincing an audience through a moral lesson. The exempla were presented by religious preachers for the purpose of conversion. The narrative was produced in twelfth century by a Cistercian monk e translated to Portuguese in the fifteenth century (Visão de Túndalo), which shows its importance in the late Middle Ages. The pedagogical aspect is well highlighted by orality. It is through dialogue between the angel and Túndalo which are explained in detail the torments of addition related to shortages of sinners. The heavenly being also explains to the knight the motives for the elect to stay in the three areas of Paradise, the Walls of Silver, Gold and Precious Stones, according to their merit. In addition to talking with the rider Túndalo in order to convince him to become a good Christian, the manuscript also converses with the audience to whom the text was addressed through various levels of orality (Zumthor), with verbs such as listening, speak, tell. To reinforce the educational aspect of the exemplum are emphasized images related to the senses (sight, hearing, smell, taste and touch) in Paradise and Hell. The iconography of the late Middle Ages also confirms some descriptions of the afterlife topography shown in the visio. Key-words: Visio Tnugdali (Visão de Túndalo); education; orality; images. Recebido em: 04/03/2010

Aprovado em: 07/04/2010

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Adriana Maria de Souza Zierer

Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo

Salvação e Além no Ocidente Medieval Como seria a vida depois da morte? Como obter a salvação? No pensamento cristão o fiel se debatia entre o desejo do Paraíso e o medo do Inferno. A justiça divina seria feita no Além. Antes disso, os primeiros humanos, Adão e Eva haviam experimentado o Paraíso, ‘jardim cercado’, quando habitaram o Éden. Mas devido ao Pecado Original foram expulsos e o Paraíso Terrestre afastou-se dos humanos, passando a ser protegido por um muro de fogo, inacessível a maior parte dos mortais. Haveria a possibilidade de um novo Paraíso na terra? Na Bíblia, uma passagem do Salmo 90 e também do Apocalipse de S. João (Ap. 20, 1-6) ocasionou sentimentos sobre um tempo intermediário de felicidade na terra com a duração de mil anos, dando origem a vários movimentos milenaristas de contestação social, quando não ocorreria exploração ou sofrimento. A posição oficial da Igreja era totalmente contrária a esta idéia e desde Santo Agostinho afirmava-se que o milênio estava representado na Igreja e que não se sabia exatamente quando seria a Parúsia, segunda vinda de Cristo, no Juízo Final quando este separaria definitivamente os salvos dos condenados e iniciaria o Paraíso definitivo aos eleitos. Mas entre a morte e a Parúsia, o que aconteceria? Num primeiro momento acreditava-se que após a morte os defuntos ficavam em

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estado de sonolência no locus refrigerii (lugar de refrescamento), devendo acordar somente no Juízo Final. Outro lugar de descanso seria o seio de Abraão (LE GOFF, 2002, p. 25). Mas havia escritos também que defendiam locais de penas aos faltosos após a morte. Desde o século II, evangelhos apócrifos como Livro de Enoch e o IV Livro de Esdras previam vários lugares de tortura e este último escrito mencionava sete maneiras de punição (ZIERER, 2003, p. 145). Os teólogos cada vez mais aproximaram os castigos ao estado da alma após a morte. Por isso, a posição oficial no Ocidente desde o século XII foi de que as ações em vida determinavam o local para onde iam os mortos, sendo alguns deles já eternamente em estado de danação. Cada fiel deveria, conduzido pelos oratores, seguir uma vida virtuosa de esmolas e orações para que quando morresse pudesse ser conduzido a um bom lugar. O mundo era então visto como um lugar de combate entre as forças do bem, representadas pela Igreja, Deus e seu filho, Maria, os anjos e santos e de outro as forças do mal representadas por Satã e seus auxiliares, que tentavam o ser humano, já destinado desde a Queda para o mal e o pecado. Ainda que no Juízo Final Jesus viesse uma segunda vez para separar definitivamente os bons dos maus, estabelecendo a Jerusalém Celeste, após a morte já haveria um período de provação dos pecados e depois disso o Paraíso para os eleitos. A partir de meados

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Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo

do século XII começou a ser construída, pela Igreja, a noção de um lugar, purgatório, onde as faltas poderiam ter o seu tempo de sofrimento reduzido se o fiel tivesse se penitenciado na terra ou se os vivos intercedessem por ele mandando rezar missas e fazendo doações, o Purgatório. A figura do diabo, desde o ano mil, adquire, na arte, traços animalescos e o seu poder parece cada vez mais forte, sendo necessário o braço da Igreja para afastar o cristão do engano e do mal que o ser maléfico representa, atraindo as pessoas para os prazeres mundanos, como é o caso do cavaleiro Túndalo, que analisaremos com detalhes. Até mesmo na hora da morte anjos e demônios são representados diante da cabeceira do morto lutando pela sua alma e, até o último momento, o temor maior do cristão é morrer sem fazer a sua confissão ou sem ter se arrependido de seus pecados. Por isso, a Igreja, enquanto instituição, buscará reforçar o seu papel de mediadora na salvação, pois somente através dos sacramentos, do exorcismo e de suas orações os indivíduos poderiam ter a garantia de atingir o Paraíso. No final da Idade Média, a eclosão da Peste Negra e o perigo de um falecimento repentino fizeram surgir inúmeras representações da morte, que vem buscar o vivo e a alma, sendo disputada entre os anjos e o diabo. Neste sentido, pode-se mencionar livros sobre a Ars Moriendi (arte do bem morrer), do século XV, um livro preparatório e ilustrado sobre essa passagem dos vivos ao pós-mortem. Dentre essas representações do momento em que ocorre a morte, quando a alma sairia do corpo em direção ao Além, podemos ver uma imagem de Bosch. Em A morte do avarento aparece a luta entre anjos e demônios pela alma do morto, porém neste

caso, o diabo foi vitorioso, pois o usurário não se arrependeu dos seus pecados e pretendia levar um saco de dinheiro para o outro mundo.

Figura 1. Hieronymus Bosch. A morte do Avarento. (c. 1490). National Gallery of Art, Washington.

O quadro ratifica o preconceito contra os mercadores e banqueiros e enfatiza o pensamento da Igreja de condenação à usura, associada ao pecado da avareza. Aquele que

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Adriana Maria de Souza Zierer

estava preocupado com os bens materiais deixava de se preocupar com os pobres e se ligava às coisas mundanas. Além disso, segundo a Igreja, inspirada em alguns trechos da Bíblia, o mercador vendia o tempo de Deus e por isso estava propenso à danação. Na imagem aparece a figura da morte que vem buscar o moribundo enquanto este tenta guardar um saco de dinheiro. De nada adianta a tentativa do anjo apontando para o Céu e tentando levá-lo para perto de Cristo, pois as ações do morto o aproximam dos demônios. Na Visão de Túndalo, o cavaleiro é acusado de ter uma vez tentado roubar uma vaca e a punição que teve foi ter que passar por uma ponte cheia de pregos. No meio do caminho encontrou outro homem carregando um feixe de trigo. Nenhum dos dois queria dar passagem ao outro e quem caísse seria devorado por monstros. Depois o anjo chega e tira Túndalo dali, que reclama da dor nos pés. Enquanto numa versão em provençal da visio do século XV, o anjo cura os pés de Túndalo (VTindal, 1903, p. 77), nas versões portuguesas da mesma época o anjo lembra que os pés do cavaleiro eram antes ligeiros para fazer o mal e o aconselha a dar prosseguimento a sua jornada no Além (VT, 1982/83, p. 42; VT, 1895, p. 106). Quanto ao Inferno, governado por Lúcifer, o anjo rebelde que se revoltou contra Deus, lugar de castigos e escuridão, em baixo da terra, seria o local para onde iriam os que tivessem cometido pecados capitais e não se arrependido deles. Era caracterizado por trevas, fogo, montanhas, pontes estreitas, lagos gelados e fétidos. Daí o papel fundamental da Igreja para conscientizar os fiéis e envidar meios para afastá-los da danação eterna. O Paraíso, caracterizado como a Jerusalém Celeste, comunidade de eleitos, com traços 10

edênicos descritos no Apocalipse de São João, como a Árvore da Vida que frutificava doze vezes, seria o local destinado aos que já houvessem cumprido a suas penas no Purgatório e para aqueles poucos eleitos que durante a vida terrena houvessem se desviado das tentações e tido uma vida santa. Ao mesmo tempo que possuía traços edênicos (fonte da vida eterna, jardins) o Paraíso Celeste era caracterizado com uma cidade com muros (LE GOFF, 2002, p. 28). Segundo o Apocalipse de S. João: Aquele que falava comigo tinha como medida uma cana de ouro para medir a cidade, seus portões e sua muralha. A cidade é quadrangular: seu cumprimento é igual à largura (Ap. 21, 15).

Em volta dela havia pedras preciosas (Ap 21, 18-20), que são mencionadas na Visão de Túndalo (VT, 1895, p. 118). Também havia ouro, daí os melhores locais do Paraíso, segundo a visio, eram os Muros de Ouro e o de Pedras Preciosas. Cada cristão deveria ser insensível aos apelos do corpo, mas ao mesmo tempo, seu posicionamento em relação a ele, em vida, levaria à salvação ou danação. Aqueles que mais desprezaram os prazeres e tinham seguido uma vida de penitência, seriam os que obteriam os melhores lugares no Além, pois esse mundo e o outro eram vistos como baseados na hierarquia, com lugares determinados aos pecadores e aos salvos. Seguindo uma passagem de Gregório Magno, inspirada no profeta Ezequiel, a hierarquia de eleitos era dividida em virgens, continentes e casados e no Céu, o pseudo-Dionísio, o Aeropagita também explicou em sua obra do mesmo nome, a Hierarquia Celeste, as nove ordens angélicas e em último lugar os anjos. Acreditava-se que estes estavam em contato direto com os monges, considerados os mais

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Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo

puros da sociedade por viverem uma vida de isolamento e de oração para a salvação da humanidade. De acordo com Le Goff, as visões de Enéias, principalmente o livro VI da Eneida quando Enéias atravessa o campo dos mortos sem sepultura à esquerda, ouve os gritos e estrondos no Tártaro e à direita os Campos Elísios, onde se elevam cantos de felicidade, influenciaram as visões do Além medieval, bem como concepções celtas e germânicas, orientais e aquelas contidas na Bíbia (LE GOFF, 2002, p. 27). Baschet afirma que do século XII ao XV a espacialização do Além se sofisticou com a existência de cinco lugares do Além. Destes lugares havia o Paraíso, o Inferno, o Purgatório, o Limbo dos Patriarcas, isto é, aqueles que viveram antes da vinda de Cristo e o Limbo das Crianças. Os que permaneciam nos limbos foram aqueles que não receberam o batismo e por esse motivo nunca poderiam se beneficiar, totalmente, da presença divina. Isso ocorria porque, desde

o Pecado Original, o batismo era essencial para minorar, parcialmente, o pecado de toda a humanidade. Os patriarcas do Antigo Testamento, bem como Adão e Eva, haviam sido retirados deste limbo quando da descida de Cristo aos infernos (BASCHET, 2006, p. 394-408). Observemos uma representação do Juízo Final no final da Idade Média: No tríptico abaixo é possível observar a Geografia do Além, já apontada, desde o século XII, em relatos como a Visão de Túndalo. No centro da imagem temos a visão do Juízo Final. Os mortos ressuscitam para o segundo advento de Cristo que é precedido de figuras angélicas que tocam trombetas como anunciado no Apocalipse de São João, remetendo a sonoridade agradável e ao poder de justiça de Cristo, perto de quem está a espada da justiça. Ele está sentado sobre um arco-íris (ligação entre o Céu e a terra) com os pés pousados sobre o globo terrestre (símbolo de onipotência divina). Outro representante seu é o arcanjo Miguel que pesa as almas

Figura 2. Hans Memling. O Juízo Final (c. 1467-1471). Muzeum Narodowe, Gdansk.

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Adriana Maria de Souza Zierer

separando os salvos dos danados. Juntamente com Cristo estão os apóstolos, os santos e a Virgem Maria, conhecida como intercessora dos humanos e sua ‘advogada’. A imagem do artista alemão guarda semelhança com O Juízo Final (c. 1450-1451) de seu mestre, o pintor flamengo Roger van der Weyden. Este deu mais importância à ressurreição dos mortos e à pesagem da alma; seu arcanjo Miguel traja-se de branco e não com roupas militares. Não há a figura dos anjos cantores e no Inferno não aparecem os diabos. Do lado direito da imagem de Memling, recebidos por São Pedro e por anjos, os eleitos recebem vestimentas e são conduzidos à entrada da Jerusalém Celeste, em forma de igreja e associada, assim, a uma cidade celestial. Acima dos portais da cidade estão os anjos músicos que tocam vários instrumentos, como a harpa o alaúde e a flauta (DELUMEAU, 2003, p. 243). Segundo Delumeau, esta aparição mostra uma certa independência entre as imagens e o escrito, em quem, teoricamente, se baseavam (DELUMEAU, 2003, p. 17). Nos principais escritos sobre o Juízo Final não havia a profusão de anjos músicos como parte do Apocalipse bíblico, que a imagem representa. Para o mesmo autor, os anjos músicos estão relacionados com a importância cultural da música na Europa Ocidental e que aparece nas imagens do século XV. Quanto ao lado direito, tradicional, local de castigo na Bíblia, é a única parte da pintura que possui cores escuras, o vermelho e tons marrons. As almas caem, o que demonstra a localização do inferno no subsolo. O local também possui montanhas, um dos elementos do Inferno. Os demônios, tal como descritos na Visão de Túndalo, são animalescos, escuros e torturam as almas. Essas não conhecerão mais a salvação. Um anjo de Deus assiste a cena, certamente pelo 12

fato de que os bons, no Juízo Final, vêem as desgraças dos bons e vice-versa, o que também é mencionado pelo anjo a Túndalo na sua visio. Vejamos agora o papel da Visão de Túndalo na salvação dos fiéis representada pelo relato e seu papel na evangelização dos cristãos desde a sua confecção no século XII. Visão de Túndalo, Imaginário e Oralidade As fontes privilegiadas para compreendermos o imaginário medieval são as literárias e artísticas (LE GOFF, 1994, p. 13). Esse imaginário consiste em: [...] uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, ficções, imagens, compartilhadas pelos atores sociais. Toda sociedade, todo grupo produz um imaginário, sonhos coletivos garantidores de sua coesão e de sua identidade (SCHMITT, 2007, p. 351).

Outro elemento importante a ser levado em consideração é que na Idade Média a Literatura é marcada pela forte convivência entre oral e escrito. Uma maneira de nos aproximarmos desse período é buscar perceber como era a recepção das obras, as quais eram, principalmente, ouvidas e não lidas pela população. O gênero literário deste artigo é um exemplum, narrativa de caráter moralizante com a função de convencer uma platéia através de uma lição moral. Os exempla eram apresentados por pregadores religiosos com o objetivo de conversão. A narrativa conta a trajetória de um cavaleiro pecador, Túndalo, que fica como que morto pelo espaço de três dias quando empreende, acompanhado por um anjo, uma viagem do Inferno ao Paraíso para que se arrependesse dos pecados e passasse a levar uma vida virtuosa.

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Oralidade, Ensino e Imagens na Visão de Túndalo

A Visão de Túndalo foi produzida por volta de 1149 por um monge cisterciense e dela existem vários manuscritos em latim e línguas vernáculas, como alemão, anglo-normando, inglês, provençal, português, holandês, entre outras. Nas versões do século XII a obra teria sido dedicada a Gisela, abadessa de Regensberg pelo monge irlandês Marcos que a teria produzido em gaélico ou latim. Mesmo assim, não se sabe muito bem quem é esse Marcos e o escrito é considerado anônimo. Ao contrário dos tempos atuais, o período medieval nem sempre se preocupou com a autoria e era sempre importante a vinculação de um texto com outro mais antigo e de maior autoridade, principalmente a Bíblia. As versões da narrativa utilizadas neste estudo são do século XV (códices 244 e 266), quando a narrativa foi traduzida para português também por um monge cisterciense, do mosteiro de Alcobaça. Na versão do códice 244, traduzida por frei Zacarias de Payopelle, a obra teria sido composta por Marcos para a abadessa Gertrudes. Há também a versão do códice 266 que não fala do autor. Também utilizamos uma versão em provençal do século XV. Nos manuscritos do século XII, os tormentos vistos por Túndalo são divididos em oito lugares de tortura, Inferno Inferior e Paraíso (CAROZZI, 1994, p. 597). Nos do final da Idade Média, como o Purgatório já estava estruturado no imaginário medieval, os antigos lugares de castigo (ou Inferno) são transformados em Purgatório e o Inferno Inferior passa a ser visto como o Inferno propriamente dito. A versão em provençal separa, por títulos, as experiência no Purgatório, Inferno e Paraíso. Os clérigos eram os representantes do sagrado e sua ação visava obter o arrependimento e a salvação dos fiéis. Os monges, devido ao seu isolamento do ‘século’

eram considerados importantes interlocutores com o sagrado, daí o seu caráter importante na mediação da salvação. A fundação da Ordem de Cluny envolveu a criação do dia de Todos os Santos e de sufrágios em forma de missas que envolveram ações dos vivos para abreviar o sofrimento dos mortos no Além. A Ordem de Cister, criada em 1098 também enfatizou os pilares da tradição beneditina em suas ações de rezar, cantar e louvar a Deus. Essas ações foram consideradas análogas a dos anjos, com seus coros celestes, preparando assim, os fiéis para dirigirem-se a sua salvação. Ta n t o o s c l u n i a c e n s e s c o m o o s cistercienses criaram exempla com a função de evangelização. Ambas as ordens buscaram uma participação maior na salvação do indivíduo, que culminou com o discurso mais elaborado, dos séculos XI e XII, quando nos relatos sobre o Além aparecem os lugares para os condenados e os tipos de castigos que se sofre, buscando ações para evitá-los, mediadas pelos mosteiros. A Visão de Túndalo, escrita por um monge cisterciense, localiza este grupo religioso numa das melhores partes do Paraíso, o Muro de Ouro, abaixo apenas do Muro das Pedras Preciosas, local das nove ordens de anjos, das virgens e de São Patrício. Os monges, aqueles que haviam se guardado dos prazeres mundanos e dedicado a vida a Deus, tinham as cabeças coroadas de ouro e pedras preciosas, segundo o relato (VT, 1895, p. 117-118).

O objetivo do exemplum fica claro logo no primeiro parágrafo – levar ao arrependimento e conduzir o fiel ao caminho cristão: Começase a Estoria dhuun Caualeyro a que chamauan Tungulu ao qual foron mostradas uisibilmente [...] todas as penas do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias que ha no sancto parayso. [...] Esto lhe foi demonstrado por tal que se ouuesse de correger e emmendar dos seos peccados

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Adriana Maria de Souza Zierer e de suas maldades (VT, 1895, p. 101, grifo nosso)1.

Assim, era necessária a correção das ações de Túndalo por de Deus para que ele se regenerasse. Como esse relato seria lido e ouvido, também auxiliaria a salvação da sociedade. Desse modo, a visio pode ser entendida como um verdadeiro manual da salvação (ZIERER, 2007), ensinando aos fiéis o que deveriam evitar e quais atitudes tomar como cristãos. É importante observar como a oralidade funcionava no aspecto pedagógico do relato. A oralidade implicava teatralidade e improvisação por parte daquele que lia. A voz assegurava a autoridade, assim como a presença de um suporte escrito sobre o qual o leitor poderia fazer intervenções e modificações ao texto, segundo o desejo de causar determinada impressão sobre a platéia. Os sermões eram feitos em praças públicas, principalmente nos domingos e dias santos. Segundo o redator da versão portuguesa, aquilo que contava havia ouvido da própria boca de Túndalo, o que o tornava uma testemunha da visão: Eu frey marcos. que esto screuy. son testemunha desto todo. Ca eu ui con meus olhos o homen a que esto aconteceo e que me contou todo assi como ia ouuistes. e assi como o el contou a my. assi trabalhey eu de o contar o melhor que eu pudy (VT, 1895, p. 120).

Assim, o redator do texto tornava mais real a experiência, pelo fato de garantir que conhecia Túndalo e transcrevia exatamente como havia ‘ouvido’ o relato. Do mesmo modo, a sua interpretação e leitura, aos ouvintes, presentificava o ocorrido, como

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se todas as ações de Túndalo estivessem acontecendo naquele momento. No Apocalipse de S. João, que se caracteriza como uma revelação, também é notada a forte oralidade, na presença dos anjos que tocam trombetas anunciado a Parusia, bem como, no testemunho de João, de ter presenciado aquela visão e ter entrado em contato com o Anjo do Senhor: Disse-me então: “Estas palavras são fiéis e verdadeiras, pois o Senhor enviou o seu Anjo para mostrar aos seus servos o que deve acontecer muito em breve. Eis que eu venho em breve! Feliz aquele que observa as palavras da profecia deste livro”. Eu João, fui o ouvinte e testemunha ocular destas coisas [...] (Ap 22, 6-8).

O relato da Visão de Túndalo, portanto, se aproxima da revelação de João, pois este havia visto tudo aquilo para advertir os cristãos, assim como Túndalo, através da sua experiência e da oralidade, deveria avisar aos demais do que ocorreria no Além. Zumthor afirma que aquele que transmite a mensagem escrita é o recitador, o intérprete, e sua interpretação tem grande poder sobre a platéia. Essa tarefa, realizada inicialmente pelos monges, ganhou ainda mais peso quando realizada pelos frades mendicantes, que se tornaram especialistas na arte dos sermões, o que atendia os anseios dos fiéis, principalmente nas cidades. Tudo no exemplum é precedido da passagem que aquilo será ‘visto’. Além disso, a oralidade é fundamental para o aspecto pedagógico do relato. A visio é um diálogo entre o anjo protetor e Túndalo, no qual o primeiro vai explicando por que motivo aquele deveria passar pela experiência das punições do Purgatório e Inferno e depois

Todos os grifos nas citações das fontes são nossos.

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as glórias do Paraíso. O ente celeste também explica o porquê de cada castigo, por qual pecado aquela punição era realizada e depois nos espaços paradisíacos o merecimento de cada um por estar ali. Para que os ouvintes se aproximassem mais do relato, são minuciosas as sensações dos órgãos dos sentidos nas descrições dos lugares por onde passam e nos sofrimentos, que são extremamente vívidos. Assim, são enfatizadas, na narrativa, as sensações da visão, audição, olfato, paladar e tato para que fossem imaginadas pelos ouvintes, com riqueza nos detalhes dos locais percorridos e nas sensações do cavaleiro. São ouvidos gritos ou cantos melodiosos (audição), corpos são torturados ou usam vestes brancas (tato), pessoas alimentam-se de frutos ou são obrigados a tragar enxofre (paladar), e há menção a várias imagens coloridas e claras no Paraíso ou lúgubres, no Inferno (visão). Dentre os órgãos dos sentidos é possível dizer que são enfatizados a visão e a audição. Há, com relação à oralidade, dois níveis de discurso na narrativa. O primeiro, é entre o Túndalo e seus interlocutores, em especial, o anjo. Em segundo lugar, há o diálogo do pregador religioso com a platéia que ouve o relato. Ambos, Túndalo e os ouvintes, necessitam ser convertidos, daí o empenho no convencimento com argumentos. Logo no início, o objetivo da narrativa fica claro aos fiéis: Este tal e tan pecador quis deus por exemplo de nos todos. que uisse muytas cousas e as sofresse e que as contasse a nos per que tomassemos exemplo pera nos castigarmos de mal fazer (VT, 1895, p. 101).

Desse modo, o relato sobre o pecador Túndalo serviria a todos os cristãos. O objetivo era que os fiéis ouvissem e se identificassem com os pecados cometidos

para que se arrependessem, se confessassem e adotassem as ações preconizadas pelo clero. Com a aprovação do IV Concílio de Latrão, em 1215, era dever de todo o fiel se confessar, pelo menos uma vez por ano, para obter penitência e conseguir a salvação. O papel da dupla ouvir-falar é tão importante na transmissão desta visio, que o códice 266 da versão portuguesa se inicia da seguinte forma: “Aqui fala do cavaleiro Tungullo” (VT, 1982-83, p. 38). Segundo Zumthor, as narrativas medievais apresentam vários ‘índices de oralidade’, expressões associadas à audição (ZUMTHOR, 1993, p. 35; 39-41). Na Visão de Túndalo, esses índices estão presentes em verbos como contar, dizer, ouvir e muitas outras palavras relativas a sons, como cantos, gritos, gemidos, referindo-se ao Paraíso ou ao Inferno. Túndalo apela ao anjo em todo o percurso (abundância do uso do vocativo) e o exemplum é baseado no diálogo com a expressão ‘Rogo-te’, do cavaleiro, pedindo que o anjo lhe esclarecesse cada elemento do Além, os pecados e punições dos condenados ou glórias dos eleitos, seguido de ‘o anjo respondeu’ ‘disse’ e Túndalo ‘ouviu’, que ecoava também o fato de a própria platéia escutar a narrativa com toda a atenção para copiar as ações que levavam à salvação e evitar as que conduzissem à danação. Aqui temos um exemplo quando a alma quer saber sobre os que caíam em um lago fétido: Rogote senhor que me digas. Estas penas de quaaes almas son. Repondeo o angeo e disse. Este ualle tan fundo e tan escuro. He morada dos soberuosos (VT, 1895, p. 104).

O anjo tem um papel fundamental de explicar o Além e esclarecer os desígnios divinos. Desta forma, tanto Túndalo quanto os ouvintes vão conhecendo todos os espaços

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da pós-morte, tanto os maus quanto os bons, até que chega o momento em que a alma não pode prosseguir porque ali só poderia penetrar quem já fosse puro e pudesse ter a visão beatífica de Deus. Túndalo, Oralidade e Educação O aspecto pedagógico do exemplum fica expresso por todos os personagens que entram em contato com o cavaleiro. Tanto o anjo como os demônios com quem ele se depara, na sua viagem, funcionam como verdadeiros professores na arte da salvação. Podemos pensar que Túndalo havia sido, até então, um mau aluno, na medida em que tivera pouca preocupação com a sua alma e dera poucas esmolas aos pobres. Aparecem, em primeiro lugar, os demônios que procuram cercar a alma do cavaleiro e levar a sua alma ao Inferno no primeiro momento em que Túndalo saiu do corpo e pareceu morto. Estes acusam a alma de suas faltas, que são lembradas em forma de diálogo e também com o símbolo da vocalidade. Primeiro os demônios dizem: “[...] cantemos a esta alma cativa cãtares de morte. que filha he morte” (VT, 1982/83, p. 39) e depois, em chamamento: “Ai mesquinha, este é o povo que escolheste com os quais arderás no fogo do Inferno [...]” (VT, 1982-83, p. 39) e, por fim, os demônios a acusam de seus pecados e a questionam: Hora dize porque nõ es agora sobrevosa como soyas. Ou porque nõ fazes discórdias. Ou porque nõ fornigas. Ou porque õ levãtas pellejas como soyas. Hu som os teus devaeos. E a tua vãã gloria hu he. O teu comer e o eu bever que tu avias de que davas muy pouco aos pobres. Hu som as tuas locuras que tu fazias. Todo já he passado e tu penarás por ello (VT, 1982/83, p. 39).

Enquanto isso a alma “[...] ouvia tudo e 16

vendo tão má visão ficou muito espantada” (VT, 1982/83, p. 39). Assim, temos no relato o ouvir e o falar, relativos ao órgão da audição, e o ver, referente à visão. Os demônios são os primeiros a apontar a Túndalo seus erros, associados aos pecados mundanos e aos sete pecados capitais, que todos os fiéis deveriam evitar. No trecho são mencionados vários desses pecados como a soberba (orgulho), a fornicação (luxúria), as pelejas (relacionado à ira), o comer e beber (gula), o fato de dar pouco aos pobres (avareza), os devaneios (talvez associados à preguiça) a vã glória, associada à inveja ou ao orgulho. Logo a seguir aparece o anjo identificado com luz e claridade que explica, ao cavaleiro, que o objetivo de toda a sua provação seria que se emendasse de ‘seus pecados e das suas maldades’ e que tudo aquilo era um sinal da misericórdia divina: Deus ha de ti piedade e non padeceras tantas penas quantas mereciste. mais passaras por muytos tormentos e depois desto tornaras ao corpo. Por corregeres tua uida (VT, 1895, p. 102-103).

O anjo, como guia espiritual, tem a função de esclarecer os desejos de Deus e da Igreja. Enfatiza também sempre a questão da misericórdia divina, o fato de Deus desejar salvar a alma do cavaleiro. Outro elemento importante no papel do anjo, como elemento da salvação, é que ele se caracteriza como anjo da guarda de Túndalo e também enfatiza o papel do livre arbítrio na salvação, lembrando ao cavaleiro de suas faltas passadas: [...] sempre eu fuy contigo des o dia que nacisti. E hya contego hu quer que tu hyas. Mais tu nunca quiseste creer meus conselhos. Nen fazer a minha uoontade (VT, 1895, p. 102).

O cavaleiro, para se salvar, precisava passar por um processo de reeducação, se

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arrependendo de suas faltas para depois obter a salvação. Era necessário, na sua condição de nobre, com influência social, que repassasse os conhecimentos adquiridos através da oralidade a outras pessoas. Para completar o seu processo educativo, Túndalo precisava conhecer os pecados cometidos e experimentar a punição por alguns deles. Assim havia uma dualidade baseada nas virtudes e nos vícios. Dentre as virtudes houve grande valorização das virtudes teologais (fé, esperança e caridade) e cardeais (justiça, prudência, fortaleza e temperança). Além dessas, foi muito valorizada a humildade, e nas virtudes teologais e cardeais foi muito enfatizada a caridade do cristão com relação aos outros e a justiça. Quanto aos pecados, foi criado um septenário para eles no século V e no Moralia in Job (578-595), de Gregório o Grande criada a lista dos pecados capitais: preguiça, avareza, gula, luxúria, inveja, ira e orgulho. Esses pecados são ditos capitais porque se engendram uns aos outros e, sobretudo, porque cada um deles é o ponto de partida de ramificações que dão nascimento a numerosos pecados derivados [...] representados pelas árvores dos vícios [...] (BASCHET, 2006, p. 177).

Artistas, como Bosch, também retrataram em Os Sete Pecados Capitais (c. 1490, Museu do Prado, Madri) a relação destes com a danação da alma. Na imagem central do quadro, um grande círculo representa os olhos de Deus que vê os pecados da humanidade. Dentro do círculo central há uma íris menor com a imagem de Cristo, com a inscrição em latim ‘Cuidado, Deus tudo vê’. Há também quatro círculos menores, acima e abaixo do centro. No primeiro círculo menor à esquerda, um moribundo às portas da morte está para ser salvo pelo Anjo. Os

outros três círculos representam o Juízo Final. O círculo da direita em cima, os mortos ressuscitam e Cristo e seus santos estão prontos para realizar o julgamento final. No círculo de baixo, à esquerda, os condenados sofrem os castigos do Inferno e à direita, no último círculo os eleitos são conduzidos por anjos à Jerusalém Celeste. O fato de o círculo maior representar os pecados capitais enfatiza que a salvação está ligada ao fato de se ter evitado esses pecados. As punições que Túdalo presencia no Além podem ser visualizadas abaixo: Pecadores

Pe c a d o Castigo Capital

Ira

sofrem num vale profundo com carvões e com cruzel de ferro branco, que queima mais que carvões e depois são fritados em frigideiras

Vaidade

almas passam do fogo do enxofre para rio gelado e depois para o fogo novamente

Inveja

mergulhados num lago fétido ao cair de longa ponte por onde só atravessam os eleitos

4. Avaros

avareza

são comidos e atormentados pela besta Aqueronte, depois são colocados no fogo e no rio de enxofre

5. Ladrões

passam por ponte estreita com pregos afiados; preguiça enormes bestas comem e inveja os que caem das pontes

1. Assassinos

2. Traidores

3. Orgulhosos

jogados em enorme 6 . G l u t õ e s e G u l a e forno que queima tudo, Fornicadores luxúria torturados por diversas ferramentas 7. Luxuriosos, principalmente os eclesiásticos

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Luxúria

besta devora as almas e as vomita, almas concebem monstros, como serpentes e outros que as mordem, agulhas de ferro e de fogo consomem as almas

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Túndalo, acompanhado pelo anjo, escapa de algumas punições; outras vezes é deixado pelo ser celestial para sofrer, experimentando as penas dos ladrões, orgulhosos, avaros e luxuriosos, de forma que pudesse se arrepender de suas faltas e evitá-las no futuro. O anjo diz a ele que evite esses comportamentos quando voltasse ao mundo terreno para que não sofra no “[...] dia do juízo” (VT, 1895, p. 105). Assim, é possível observar que o processo educativo é realizado com base no ensinamento, por meio dos argumentos sobre o Paraíso e Inferno, mas também através do castigo. Do ponto de vista pedagógico, pode-se pensar que na narrativa, o anjo funciona como o mestre que apresenta uma lectio ao seu aluno – como obter a salvação. Ele apresenta os argumentos ao cavaleiro, numa situação de diálogo, tal como ocorria na escolástica. Sua autoridade maior é Deus e os ensinamentos da Bíblia. Túndalo, como aluno, precisa absorver o conhecimento apresentado pelo mestre. Neste sentido, faz vários questionamentos para ser esclarecido e confirmar a validade dos argumentos apresentados pelo anjo. Em determinados momentos da narrativa, percebemos que os ensinamentos foram compreendidos e que o cavaleiro se arrepende de suas faltas, o que concretiza que a aprendizagem havia sido realizada com êxito. Um desses momentos é quando os diabos iam levar sua alma ao Inferno, onde Túndalo vê Lúcifer: “Ai mesquinha eu son. Por que non quige creer as scripturas sanctas e os conselhos dos homeens boos. e amey mais os uiços do mundo [?]” (VT, 1895, p. 110). Aqui a consciência é alimentada com o medo dos terrores do Inferno, traço predominante da pedagogia cristã com relação à salvação, caracterizada como uma pedagogia do medo. Percebe-se também a 18

interação entre oral e escrito, uma vez que o pecador faz alusão à Bíblia. Um momento importante no seu processo educacional é quando Túndalo questiona o anjo sobre a validade da misericórdia divina, pois ele estava sendo castigado e experimentando várias punições do Purgatório: Disse com gram temor. Ay senhor. E hu he aquella misericordya que nos os saybos de Deos diz~e que he muy misericordioso. Pois hu he aquella misericrordya, que ey tantas penas passadas? (VT, 1982/83, p. 42).

Nesse momento o anjo esclarece, com paciência, que Deus possui misericórdia, mas age com justiça: Como quer que deus aia muyta misericórdia e seia muy misericordioso como he. Non leixa por em de fazer justiça. Segundo a justiça de cada huun em como a merece. Assi segundo a sua grande misericrodia. Perdoa muytas cousas a muytos que mereciam muy mais grandes penas por ellas (VT, 1895, p. 107).

Assim, o anjo enfatiza o papel do livre arbítrio, do merecimento e das ações a serem feitas conduzidas pela Igreja: arrependimento, confissão e penitência. Ele acrescenta ainda: [...] aqueles que receberon penitencia pola confisso que fezeron e non coprirom em esse mundo assi como lhes foy mandado. Conuen que a conpram em estes logares que uiste (VT, 1895, p. 107).

Com essa explicação, a alma pode perceber que a justiça divina é sempre realizada segundo as ações de cada um na terra. Os que sofreram terão glórias, os que tiverem prazeres terão padecimentos. Além do medo de sofrer aquelas penitências, o cavaleiro encontra no Purgatório e Inferno vários parentes e conhecidos seus, o que aumentava o seu medo de ir para aqueles locais após a morte.

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Após passar pelo Inferno, Túndalo e o anjo sobem visitando, inicialmente, um PréParaíso, local dos ‘não muito bons, nem muito maus’, associado à concepção agostiniana dos non valde mali. Esses passavam quase a maior parte do tempo em felicidade, mas algumas horas do dia enfrentavam tormentos, em virtudes de pecados como o adultério, depois compensado com doações aos pobres. Por fim, Túndalo e o anjo ascendem mais e chegam ao Paraíso, dividido em três partes. Inicialmente, o Muro de Prata, dedicado aos continentes, isto é, os casados que não pecaram. Do mesmo modo que antes, com relação aos tormentos no Inferno, no Paraíso, Túndalo pergunta como é a estrutura do lugar e por que estão ali. Com relação ao primeiro estágio do Paraíso, o Muro de Prata: Senhor rogote que me digas a quaaes almas he dada esta folgura. E o angeo lhe disse. Esta folgança he dada aos casados e a todos aqueles que non britaron em transpassaron a orden do casamento direito per peccado de adultério [...] (VT, 1895, p. 115).

Abaixo temos uma imagem de um manuscrito iluminado da Visão de Túndalo (século XV), por Simon Marmion. Ao centro, vemos a figura angélica em tons suaves de azul, que aponta os eleitos com vestes claras e com expressão de harmonia, neste local. Ao fundo, o muro. Neste lugar, havia belas vozes e muita alegria. Os cantos assemelhamse a “[...] cantares de órgãos” (VT, 1895, p. 114) e há bons odores. Tanto a presença de muros quanto as vestes brancas dos eleitos são elementos da Jerusalém Celeste no Apocalipse de São João. O segundo lugar do Paraíso é o Muro de Ouro, que tem a presença de uma árvore, representando a Igreja Católica e seu papel como instituição no Paraíso, local dos monges. Aqui temos outra vez presença de bela sonoridade, mas superior a do muro anterior. A alma escuta cantos ‘formosos e saborosos’ e instrumentos de órgãos, violas, alaúdes, entre outros (VT, 1895, p. 116). A harmonia é tamanha que os habitantes cantam sem mover as bocas e os instrumentos soam sem serem tocados (VT, 1895, p. 117).

Figura 3. Simon Marmion. Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento. Tondal vision (c. 1475). Disponível em: http:// hope.simons-rock.edu/~bad/heaven_hell/heaven/tondal.html Acesso em 20/ Jan/2009.

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Por fim, o anjo e Túndalo chegam à melhor parte do Paraíso, o Muro de Pedras Preciosas, destinado às virgens, aos santos, dentre os quais São Patrício, também irlandês como o redator da visio. Neste local, o muro era mais alto, sua claridade e formosura superava tudo que haviam visto, com muitas pedras preciosas coloridas, como jaspe, rubi, cristal, ametista, safira e muitas outras (VT, 1895, p. 118). Lá estavam também as nove ordens de anjos. Sobre o Muro de Pedras Preciosas, além da sua beleza, a alegria ali era maior do que a passada em todos os outros lugares por onde haviam percorrido e segundo o redator, “[...] viram coisas que o olho não viu, nem orelha ouviu, nem coração de homem cuidou nem pensou [...]” (VT, 1895, p. 119). A citação é retirada da Bíblia (I Co 2, 9). Túndalo ainda “[...] ouuio palauras muy marauilhosas e muy sanctas. per tal guisa que non conuen a nenhuun homen de as dizer [...]”. (VT, 1895, p. 118), mostrando que os prazeres do Paraíso são tão maravilhosos que são impossíveis de ser expressos com palavras. De novo temos a questão da oralidade, pois o anjo afirma: [...] filha minha, ouves tu isto, e vês como é. Inclina a tua orelha e olvida o teu povo e a casa de teu pai. E cobiçará Deus a tua formosura, isto é a alma, que vos direi (VT, 1895, p. 119).

Ali, naquele local, era sempre possível ver o grande louvor e as companhias dos santos, anjos, arcanjos patriarcas, mártires, virgens, apóstolos. Túndalo quer permanecer ali, mas o anjo lhe lembra que precisa voltar [...] e todas as cousas que uiste demostrarlas as e contarlas as a todos os homeens a que o demostrar. E contar poderes. Por que façan prol de suas almas (VT, 1895, p. 119). 20

Assim, temos o ver-ouvir-contar continuamente enfatizado e fundamental no processo educativo da salvação de Túndalo e dos outros que seriam salvos pelo seu relato. Um outro momento importante de consciência pedagógica do que aprendeu é quando a alma volta ao corpo: Ai, Deus, senhor. Muito maior é a tua misericórdia que a minha maldade. Grande piedade fizeste sobre mim senhor e tantas penas e tribulações mostrastes e de todas me livraste (VT, 1982-83, p. 38).

Tal reflexão, seguida do fato de que após a sua volta o cavaleiro passou a levar uma vida de bom cristão, mostra que o seu arrependimento foi verdadeiro e que a sua alma seria salva na outra vida. Depois de voltar ao corpo, Túndalo pede logo para tomar a hóstia, em sinal de obediência à Igreja, responsável pela sua salvação. Demonstra também que havia aprendido os novos conhecimentos, arrepende-se dos seus pecados e reparte os seus bens. Conta o que viu e passa a levar uma vida virtuosa para que pudesse retornar ao Paraíso Celestial. Inclusive, passou a pregar as escrituras, coisa que antes não sabia (VT, 1982-83, p. 50). Sobre a experiência do cavaleiro é possível afirmar que passou por cinco fases: 1- um pecador é escolhido para conhecer as dores do Inferno e glórias do Paraíso através de uma viagem terrestre, acompanhado por um guia divino, o anjo; 2- ele enfrenta dificuldades e sofrimentos num primeiro momento; 3-depois experimenta as alegrias divinas; 4- num último momento, retorna ao mundo terreno regenerado. 5- Através desta trajetória, ele se arrepende dos seus pecados e conta o que viu no Além-túmulo aos outros, possibilitando assim não somente a sua salvação, mas a de vários outros

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cristãos, através do seu exemplo. Abaixo, sistematizada a experiência de Túndalo:

Ou Figura 4. Estrutura da Visão de Túndalo

No processo de salvação, a oralidade é fundamental porque permitiu a regeneração, não somente de Túndalo, mas a conversão de outros indivíduos da sociedade cristã. Um elemento ainda a se ressaltar na relação oral-escrito da narrativa e seu papel educativo é que os textos das versões portuguesas mencionam três ou quatro vezes a palavra ‘evangelhos’, o que mostra também a importância da Bíblia na conversão. A concepção dos não muito maus esta ligada aos escritos de um dos Pais da Igreja, Santo Agostinho. É este o clérigo mencionado na versão portuguesa do códice 266. Considerações Finais A Visão de Túndalo reforça o papel da Igreja como mediadora da salvação e a necessidade de seguir os seus ensinamentos – frequentar missas, confessar os pecados, fazer doações e penitências. Enfatiza a urgência do cristão estar sempre vigilante para não cair nos enganos de Satã e a constante luta entre o bem e o mal para a salvação da alma. O re l a t o t o r n a c o m p re e n s í ve l a organização da Geografia do Além, bem como a identificação pelo fiel entre pecado

e punição e entre sofrimento terreno e posterior recompensa no Paraíso, daí seu caráter moralizador, auxiliando a transmissão da mensagem da Igreja e reforçando o seu papel de intermediadora na salvação. A visio também contribui com a espacialização do Além nos séculos XIV e XV que é realizada na Literatura, por exemplo, através da Divina Comédia, de Dante Alighieri, com seus nove círculos do Inferno e sua correspondência com a punição dos pecados. Na obra, os usurários ocupavam o sétimo círculo do Inferno. Essa espacialização também é expressa na Arte, por exemplo com Fra Angélico em seu O Juízo Final, (c. 14321435, Museo di S. Marco, Florença), onde o Inferno é representado numa montanha, dividido em vários estágios ou níveis, de acordo com o pecado cometido, e cada pecador tendo a sua punição correspondente. No último nível aparece Satã devorando os condenados. Pode-se notar a influência da visio em determinados artistas e obras como Bosch, que retrata várias torturas da Visão de Túndalo em seus quadros e tem uma pintura intitulada Tondal’s vision (c. 1450-1516, Museu Lázaro Galdiano, Madri). No Livro de Horas do Duque de Berry (século XV) há uma iluminura que representa Lúcifer sofrendo na grelha do Inferno, inspirada na passagem do cavaleiro Túndalo pelo Além (DELUMEAU, 2009, p. 357), o que mostra a popularidade do relato. O sucesso da Visão de Túndalo, como luta de cada cristão para evitar o Inferno e se apegar à conduta necessária para atingir o Paraíso, além de ter tido influências sobre a Literatura e na confecção de imagens posteriores a sua redação, pode ser explicado pela vitalidade da permanência da obra ao longo do tempo. Composta no século XII, teve vários manuscritos circulando em

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idiomas diversos da Europa Ocidental até o século XV, não só na forma de exemplum, mas também sob a forma de poesia, o que demonstra a sua influência no imaginário medieval. Fontes

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Referências

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Lago dos Cisnes de Matthew Bourne: práticas do olhar de suas imagens dançantes

Alba Pedreira Vieira Graduada em Educação Física pela Escola Superior de Educação Física de Goiás (1987), mestre em Educação Física – Valdosta State University (1996), e doutora em Dança pela Temple University, Estados Unidos (2007). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal de Viçosa. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em DANÇA E EDUCAÇÃO, atuando principalmente nos seguintes temas: dança, educação, cultura, lazer e escola. Foi membro da Comissão de Criação do Curso de Graduação em Dança (Licenciatura e Bacharelado) e Coordenadora Geral do Curso de Especilização Lato Sensu em Dança Educativa Moderna da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Na UFV atuou como Coordenadora Geral do Curso de Graduação em Dança (Licenciatura e Bacharelado). Líder do Grupo de Pesquisa Transdisciplinar em Dança (cadastrado no CNPq). Co-autora do Relatório da UNESCO sobre as Diretrizes para o Ensino da Dança nos países da América Latina e do Caribe. Membro da World Dance Alliance e do Congress of Research in Dance.

Resumo

Este texto discute, através das lentes dos estudos da cultura visual e da semiótica, o Lago dos Cisnes de Matthew Bourne. Examino significados das imagens e signos de movimentos corporais dos bailarinos, gestos, olhares e explorações territoriais no segundo ato, Um parque em St. Jame’s. Ao contrastar temas em balés clássicos que são convencionais em vez de desafiadores, esta produção é um exemplo contemporâneo de trabalhos de vanguarda. Uma obra de vanguarda é freqüentemente associada com o pós-modernismo e geralmente comparada com trabalhos de dança tradicionais ou dominantes, especialmente os de balé clássico. Assim, a composição está na dianteira da experimentação artística, porque afirma, implicitamente, que balés tradicionais podem ser reconstruídos através das lentes do debate contemporâneo sobre o que é natural e convencional em termos de estereótipos de gênero. Palavras-chave: dança; imagens; estereótipos de gênero.

Abstract

This paper discusses, through the lens of visual culture studies and semiotics, Matthew Bourne’s piece Swan Lake. I examine meanings of images and signs that make up this piece. The investigation is delimited to the dancers’ bodily movements, gestures, gazes and territorial explorations in Act Two, A park in St. Jame’s. By contrasting themes in classical ballets that are conventional rather than challenging, this contemporary piece is an example of avant-garde works. Indeed, avant-garde is often associated with post-modernism and is frequently contrasted with mainstream or traditional dance works, especially classical ballet. Hence, the piece is at the forefront of artistic experimentation because it implicitly affirms that traditional ballets can be reconstructed through the lens of contemporary discussions about what is natural and conventional in gender stereotypes. Keywords: dance; images; gender stereotypes. Recebido em: 09/04/2010

Aprovado em: 02/06/2010

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Alba Pedreira Vieira

Lago dos Cisnes de Matthew Bourne: práticas do olhar de suas imagens dançantes

Introdução Meu objetivo neste artigo é discutir, através das lentes dos estudos da cultura visual e da semiótica1, a peça de Matthew Bourne Lago dos Cisnes (1996). Conceitos de teorias da cultura visual e semiótica auxiliam a examinar significados de imagens e signos que compõem esta obra2. Dentre os vários signos (por exemplo, cenário, iluminação, figurino) e imagens deste espetáculo de dança, delimito minha análise para movimentos corporais dos bailarinos, gestos, olhares e explorações territoriais3 no segundo ato, Um parque em St. Jame’s.

O segundo ato engloba símbolos específicos que sugerem representações convencionais de bailarinos do sexo masculino, especialmente no balé clássico, como figuras fortes e independentes (por exemplo, seus movimentos e saltos clássicos, energéticos e precisos que sugerem habilidade de comando – vide foto 1), enquanto ainda apresenta visões alternativas através das quais eles são apresentados como vulneráveis e dependentes do amor e da aceitação de outros seres humanos. Um exemplo, é quando o príncipe tenta imitar os movimentos do cisne, e quando o príncipe e o cisne carregam e acariciam um ao outro (vide foto 2). Estas qualidades são

Foto 1. Bailarinos representando cisnes realizando saltos clássicos, energéticos e precisos. Disponível em: http:// unitedinfashion.com/blog/wp-content/uploads/2010/01/swan-lake2.jpg

Minhas reflexões são baseadas, principalmente, no livro Practices of Looking (Práticas do Olhar) de Marita Sturken e Cartwright Lisa e Marcel Danesi, Of cigarettes, high heels and other interesting things (Sobre cigarros, saltos altos e outras coisas interessantes). 2 Assisti um vídeo da obra de Bourne gravada pela Warner Vision, Adventures in Motion Pictures”, produção para a BBC e NVC Arts. 3 Territorialidade refere-se à exploração das zonas de contato interpessoal e padrões de toque entre os seres humanos (Marcel Danesi, Of cigarettes, high heels and other interesting things). 1

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Foto 2. O príncipe e o cisne acariciam um ao outro. Disponível em: http://i.thisislondon.co.uk/i/pix/2006/12/ swanlake131206_243x231.jpg

essenciais para construir o que eu vejo como o principal conceito da obra, a quebra de convenções em trabalhos contemporâneos inspirados pelos balés de repertório. No geral, a principal diferenciação4 no Lago dos Cisnes de Bourne é os papéis dos cisnes sendo desempenhados somente por bailarinos em vez de bailarinas (vide foto 3), o que tem sido a tradição por mais de um século. Sugiro que o trabalho de Bourne age como uma declaração contra-hegemônica

Foto 3. Papéis dos cisnes sendo desempenhados somente por bailarinos em vez de bailarinas. Disponível em: http://dickieandbutch.files.wordpress.com/2010/04/ swa0033022106.jpg

sobre as imagens, signos e significados dominantes do Lago dos Cisnes original (foto 4). Produções contemporâneas em dança contra-hegemônicas mantêm em “[...] constante tensão e fluxo significados dominantes”5 de obras de dança clássicas. Maneiras pelas quais Bourne constrói e desconstrói modos convencionais de performance incluem representar e perturbar as imagens tradicionais e os papéis dos corpos de bailarinos do sexo masculino no palco6.

Foto 4. Papéis dos cisnes sendo desempenhados somente por bailarinas no Lago dos Cisnes original. Disponível em: http://lastheplace.com/images/article-images/1A_2008_WRITERS/1Lori/swan-lake.jpg Tomo emprestado o termo ‘diferenciação’ dos estudos da cultural visual. Na publicidade, isto se refere às estratégias para diferenciar ou distinguir qualidades de um produto ou de uma marca da outra (Sturken e Cartwright, 2003). Neste artigo, a diferenciação se refere às estratégias que Mathew Bourne usa para fazer seu trabalho distinto do Lago dos Cisnes clássico, embora ele ainda conserve alguns dos seus elementos essenciais, os quais apresento mais adiante neste texto. 5 Sturken e Cartwright, Practices of Looking, 352. Para outras discussões sobre contra-hegemonia, consulte as páginas 54-56. 6 Para uma discussão de outros artistas norte-americanos e europeus que quebram os modos convencionais de performance ver Ramsay Burt (Of the Presence of the Body - Da Presença do Corpo). 4

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O Lago dos Cisnes contemporâneo incorpora três elementos que, segundo Francis Sparshott, estão envolvidos em toda operação de arte: transformadores (os artistas), as mudanças que eles criam (o produto), e as mudanças que eles fazem (criação e produção)7. Minha ênfase é sobre as mudanças que os artistas criam, o que me leva a pensar sobre os motivos do coreógrafo no processo de mudança. Ao desafiar a estética clássica do Lago dos Cisnes, Bourne põe em cheque expectativas e esquemas do público. O termo ‘estética’ se refere ao valor, significado e interpretações da arte (Sturken e Cartwright, 2003). Em relação à estética, indago: Que valores os artistas estão questionando no assim chamado Lago dos Cisnes ‘todo masculino’? ‘Esquemas’ são os padrões do inconsciente cultural que ajudam a explicar uma realidade ou experiência 8. Assim, a interpretação pessoal do que é significativo e como construo significados sobre esta peça é baseada em minhas expectativas anteriores, alfabetismo cultural em dança9, experiências de vida e visão de mundo. Minha voz é importante neste processo porque o público é o quarto elemento essencial em toda operação de arte (Sparshott, 1984). Cada um de nós (o criador, os artistas e platéia), cria significados diferentes, mas para o objetivo deste estudo minha discussão é delimitada ao modo como negocio minha própria leitura de signos e

imagens selecionados nesta obra. Ao tomar emprestado o termo ‘leitura negociada’ de Stuart Hall10, exprimo meu papel ativo na construção de significados de acordo com minha própria condição social, crenças e valores. Apresento-me como uma educadora em dança brasileira, de classe média e heterossexual porque essas qualidades influenciam meu ponto de entrada para esta discussão. Nasci e cresci em um país latino que tem uma visão predominante acerca de estereótipos de gênero na dança. Fui criada em um contexto em que é comum assistir coreografias e danças nas quais o bailarino assume um papel masculino ativo e assertivo e a dançarina é geralmente sensual e passiva. Portanto, devo negociar meus próprios significados com aqueles pretendidos pelo Matthew Bourne. Também reconheço que, apesar dos meus esforços constantes para desafiar perspectivas tendenciosas sobre os estereótipos de gênero, já faço parte destas redes de poder que procuro me opor nas minhas leituras de dança 11. Assim, autocontradições podem fazer parte da minha análise. Consciente de que os significados aqui apresentados são provisórios e não definitivos e que eu sou uma leitora real ao invés de ideal, espero iluminar esta obra em movimento, enquanto me coloco em movimento também.

Francis Sparshott, The Theory of the Arts – A Teoria das Artes (Princeton Un. Press, 1982). Explicação oral de Luke Kahlich na disciplina de pós-graduação do Curso de Doutorado em Dança. Alfabetismo cultural em dança “como tem sido mais recentemente denominada este tipo de educação em artes traduz o “[...] ensinar a ver com sentido” (Hernández, 2009, p. 190). Segundo Hernández, “[...] essa forma de alfabetismo pode ajudar a redefinir o papel do sujeito no processo de interpretação [da obra de arte]” (2009, p. 206). A partir da mudança da pergunta ‘o que você vê’ para ‘o que você vê de si nesta obra [dança]’, o foco que a perspectiva da alfabetização em dança fixava na codificação e decodificação das coreografias ou representações corporais expande-se em um processo de aprendizagem mais compreensivo e envolvente. Ademais, o alfabetismo cultural em dança permite aos sujeitos não só aprender a falar sobre esta linguagem, e a assistir e criar danças, mas também a estabelecer conexões entre esta arte e conceitos e temas sociais. 10 A definição de Stuart Hall sobre leitura negociada é discutida por Sturken e Cartwright, Practices of Looking. 11 Cheguei a este entendimento após refletir na discussão de Ramsay Burt’s (2004) em Genealogy and Dance History (Genealogia e História da Dança). 7 8 9

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Um Olhar sobre o Lago dos Cisnes de Matthew Bourne Esta composição artística é uma versão contemporânea do Lago dos Cisnes de Petipa e Ivanov, um balé clássico francês que tem sido um enorme sucesso desde que foi apresentado pela primeira vez em 1895. O Lago dos Cisnes clássico e a versão de Bourne têm símbolos comuns, mas utilizados de diferentes maneiras. Por exemplo, a interpretação contemporânea de Bourne mantém o título do balé de repertório, a íntegra da composição músical de Tchaikovsky, e os elementos essenciais da trama clássica. O novo enredo, embora recriado, ainda levanta questões relacionadas com as do original, possibilidades e impossibilidades do amor, traição, esperança, felicidade e tragédia. O cenário, figurinos, iluminação, enredo, sons e músicas, expressões faciais, maquiagem, movimentos, sequências e gestos foram especialmente criados para entrelaçar a obra de Bourne com outros elementos para constituir o seu texto, o

Foto 5. Príncipe suplica pelo afeto de sua mãe, a rainha, que não corresponde aos apelos do filho (Disponível em: http://www.ballet.co.uk/images/bourne/jr_mbsl_ westmoreland_tranah_hug_500.jpg

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sistema de signos que o coreógrafo e sua companhia recorreram para “[...] criar e enviar as mensagens” (Danesi, 1999, p. 5). A trama principal da peça contemporânea é sobre a história de um jovem nascido na realeza que se sente desesperado e solitário sem amor em sua vida. Sua mãe, a rainha, não expressa afeto pelo seu filho (foto 5) ainda que ostensivamente se apresente com seus amantes jovens na presença do príncipe. O príncipe não tem outra escolha para viver a vida que ele preferiria, sonhando com o dia em que ele pudesse ser tão livre como um cisne. Esta oportunidade chega quando ele inicia um relacionamento com uma mulher jovem, e isto enfurece sua mãe, que coloca objeções em ver seu filho envolvido com alguém que não tem o sangue real. Como o estilo de vida da realeza restringe sua interação com pessoas ‘normais’, o príncipe se envolve em um caso passional com um cisne. Esta relação surreal enfoca o papel do inconsciente e destrói a oposição entre o real e o imaginário12, isto é, o príncipe sonha em ter o amor, força, liberdade e sensualidade do cisne (foto 6).

Foto 6. Príncipe sonha em ter a liberdade e sensualidade de um cisne (Disponível em: http://www.ballet. co.uk/images/bourne/jr_mbsl_westmoreland_swans_ bed_500.jpg

Para uma discussão mais aprofunda sobre surrealismo, ver Sturken e Cartwright, Practices of Looking.

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O segundo ato, Um parque em St. Jame’s, é crucial no desenrolar do enredo. O príncipe, depois de ter vagado pelas ruas da cidade, acaba em um parque bêbado e sozinho. Ele vê alguns cisnes nadando pelo lago e sonha em escapar de sua vida infeliz (foto 7). A estética tradicional do Lago dos Cisnes clássico é quebrada por duetos poderosos entre dois bailarinos, o príncipe e o cisne (fotos 8, 9 e 10), assim como as danças de interlúdio realizadas pelos cisnes do sexo masculino. Acredito que essas danças são essenciais nesta peça devido ao seu foco em contradizer e subverter o mito associado

ao principal símbolo da dança, o corpo. No balé clássico, este mito foi construído de acordo com os estereótipos de gênero de bailarinos dos sexos masculinos e femininos e o que eles estão autorizados a realizar, transformando os significados conotativos dos seus movimentos, gestos, olhares e exploração territorial de tal forma que pareçam denotativos, daí naturais 13. Por exemplo, os membros das audiências de balés de repertório se acostumaram a ver mulheres representando os cisnes. Esta estratégia, intencional, induz os espectadores a relacionarem qualidades culturalmente

Foto 7. Príncipe encontra os cisnes no parque (Disponível em: http://www.ballet.co.uk/images/brotherston/ bc_swanlakes_swans_500.jpg

Foto 8. Dueto entre o príncipe e o cisne (Disponível em: http://media.tumblr.com/tumblr_kwzhl68A5H1qza2lu. jpg

Foto 9. Dueto entre o príncipe e o cisne (Disponível em: http://farm4.static.flickr.com/3445/3352525630_ dae123ef25.jpg)

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Foto 10. Dueto entre o príncipe e o cisne. Disponível em: http://grhomeboy.files.wordpress.com/2007/01/ swanlakeopening.jpg

A discussão sobre a relação entre mito e imagens são apresentadas por Sturken e Cartwright, Practices of Looking, 360.

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Foto 11. Lago dos Cisnes tradicional: o príncipe Siegfried se apaixona por Odette, a rainha dos cisnes. Disponível em: http://static.guim.co.uk/sys-images/Arts/Arts_/Pictures/ 2009/3/26/1238081729326/Swan-Lake-by-AmericanBal-001.jpg

atribuídas às mulheres (tais como passividade, conformismo, tranquilidade e fragilidade) para os cisnes. Ela também reforça as expectativas dos espectadores acerca das características ‘naturais’ das bailarinas bem como dos cisnes. Tendo visto muitas remontagens tradicionais do Lago dos Cisnes, esperava ver

nesta seção da versão de Bourne o príncipe Siegfried se apaixonar por Odette, a princesa transformada em rainha de cisnes fêmeas pela malvada Rothbart (foto 11). Previa que bailarinas etéreas com tutus e sapatilhas de ponta iriam desempenhar o papel de cisnes e movimentar seus braços com um fluxo suave, elegante e gracioso de ‘asas’ (foto 12).

Foto 12. Lago dos Cisnes tradicional: bailarinas etéreas com tutus e sapatilhas de ponta desempenham o papel de cisnes e movimentam seus braços com um fluxo suave, elegante e gracioso de ‘asas’. Disponível em: http://maranastudio.net/ www/ballet5.1.jpg

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Na obra de Bourne não há uma princesa magra, mas um bailarino robusto, o cisne, no papel de Odette (foto 13). Ele executa, no geral, movimentações fortes e enérgicas (foto 14) em vez de movimentos cujas qualidades poderiam levar o espectador a se recordar daqueles que são, tradicionalmente, realizados por bailarinas no papel da princesa. Por exemplo, o tronco de Odette cede e flexiona à frente14 enquanto o do cisne está sempre na vertical (foto 15). No balé clássico,

a postura do tronco de Odette sugere submissão e resignação diante da força do outro – o feitiço de Rothbart –, enquanto a postura do cisne indica insubordinação e resistência. Outro sinal da tendência de Odette em se sujeitar ao outro é seu olhar cabisbaixo, que é substituído pelo olhar direto e assertivo do cisne que fita o espaço em nível horizontal (foto 16) ou encara o príncipe (foto 17). As diferenças destes símbolos, a posição do tronco e o olhar, indicam um cisne autoconfiante, em vez de um inseguro.

Foto 13. Bailarino robusto, o cisne, no papel de Odette. Disponível em: http://www.ballet.co.uk/images/kemp/ jm_swan_kemp_arms_over_500.jpg

Foto 14. Cisne executando movimentações fortes e enérgicas. Disponível em: http://www. calendarlive.com/media/alternatethumbnails/ photo/2006-03/22349900.jpg 14

Sally Banes, Dancing Women: Female bodies on stage.

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Foto 15. Tronco do cisne está sempre na vertical. Disponível em: http://i.thisislondon. co.uk/i/pix/2009/07/swan-243x508.jpg

Foto 16. Lago dos Cisnes de Bourne: olhar direto e assertivo do cisne que fita o espaço em nível horizontal. Disponível em: http://profile.ak.fbcdn.net/ object2/551/48/n145007524736_6900.jpg

Foto 17. Lago dos Cisnes de Bourne: olhar direto e assertivo do cisne que encara o príncipe. Disponível em: http:// www.classicalsource.com/images/upload/7787_1.jpg

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Odette mostra sinais de um ‘corpo dócil, enquanto o cisne revela características de um corpo resistente. De acordo com Michael Foucault, corpos dóceis referem-se à submissão corporal dos sujeitos diante do poder dominante,15 uma ilusão criada pelas formas em que, geralmente, as imagens corporais dançantes de Odete são apresentadas. Barbara Browning (2004) afirma que o corpo dançante resistente executa movimentos e gestos que contradizem e questionam as práticas institucionais, normas, regras e estereótipos. O corpo do cisne é um bom exemplo de um corpo resistente em dança (foto 18), pois ela se recusa a se encaixar no que é esperado do caráter de Odette. Atuando como os cisnes, os bailarinos do sexo masculino expressam emoções profundas através de movimentos vigorosos e fortes em vez dos delicados e suaves executados por bailarinas (foto 19). Esta mudança no sexo e na qualidade do movimento permite que

o telespectador construa novas imagens e possibilidades para os corpos dançantes ao assistirem o Lago dos Cisnes. Além disso, esta é outra estratégia que permite ao espectador questionar e refletir sobre a constante interação que existe entre o natural e o convencional em dança. Por que os cisnes devem ser sempre representados por bailarinas do sexo feminino? Por que os movimentos dos cisnes devem estar, necessariamente, relacionados a certas qualidades de movimento? Bourne brinca com estes aspectos relacionados aos papéis masculinos e femininos e com movimentos que são, culturalmente, construídos no palco teatral e também no palco da vida cotidiana. Seus bailarinos criam uma tensão entre o que é natural e convencional em dança através da realização de movimentos sugestivos de masculinidade enquanto agem como os cisnes, criaturas tradicionalmente representadas por bailarinas.

Foto 18. Corpo resistente do cisne. Disponível em: http:// gaylondontravel.com/blog/wp-content/uploads/2010/01/ swan-lake.jpg

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As ideias de Foucault são discutidas por Marita Sturken e Cartwright Lisa, Practices of Looking.

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Foto 19. Cisnes nos corpos de bailarinos do sexo masculino expressam emoções profundas através de movimentos vigorosos e fortes. Disponível em: http://4.bp.blogspot. com/_a5lhupBpnQ4/Sdobl7oQYvI/AAAAAAAABMo/ zsXHCihvl84/s400/1.jpg

No segundo ato, no entanto, Bourne coreografou um acervo de movimentos para bailarinos que criaram diversos tipos de qualidades dinâmicas e expansivas. Em duetos e coreografias desta parte da obra, além da predominância de movimentos intensos, bruscos e enérgicos também há aqueles que são leves, sustentados e lentos, qualidades de movimento que são

normalmente realizadas por bailarinas. Será que um espectador relacionaria as últimas qualidades de movimento com feminilidade? Usando sinais de dança que podem ser associados com a bravura das formas masculinas dançantes, Bourne parece querer desestabilizar os significados que as qualidades de tais movimentos geralmente significam.

Foto 20. Movimentos intensos e enérgicos. Disponível em: http://www.ballet.co.uk/images/bourne/bc_jason_piper_ swan_jump_500.jpg

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A mistura de códigos físicos de feminilidade e masculinidade é uma prática de fusão de gêneros porque questiona as categorias tradicionais de masculinidade e feminilidade bem como as normas e comportamentos sexuais que lhes estão associados 16. Ao observar a articulação de sinais associados com os estereótipos de gênero masculino e feminino, o espectador pode pôr em causa os códigos de gênero que não são apenas dominantes na nossa América Latina, mas na maioria das sociedades ocidentais. À semelhança do coreógrafo e bailarino David Gere, alguém poderia perguntar: “O que exatamente então, são os códigos físicos que significam efeminação?”17. A obra de Bourne desafia tal questão, criando imagens que se recusam a obedecer às expectativas tradicionais e noções conservadoras do que é considerado o ‘comportamento natural’ em balés clássicos. A estética do Lago dos Cisnes original também é quebrada no segundo ato da versão contemporânea quando duetos que são tradicionalmente realizados por um bailarino e uma bailarina acontecem com dois bailarinos do sexo masculino. Eles abraçam, acariciam e tocam o corpo um do outro de uma forma muito pouco convencional para bailarinos de balé clássico do sexo masculino. Por que duetos deveriam ser sempre compostos por um homem e uma mulher? A resposta está oculta em estórias de sexismo, que nutrem o campo da dança e são alimentadas não só por aspectos biológicos, mas também culturais.

Está além do escopo deste artigo discutir questões econômicas, políticas, sociais e históricas que criam as condições que distinguem os comportamentos específicos que são atribuídos e aceitos para cada sexo18. Importante para esta discussão é a gama de possibilidades de interações corporais e explorações territoriais entre homens que são exibidas em várias imagens no trabalho de Bourne, o que pode provocar em membros da platéia o desejo de reavaliar os símbolos dominantes acerca do que bailarinos devem ou não fazer em um palco. O ápice do segundo ato é a imagem do cisne levantando o príncipe e envolvendo-o em seus braços; o abraço é plenamente correspondido. Esta proximidade é uma exploração territorial não convencional para bailarinos do sexo masculino, particularmente em balé clássico, porque não se espera que eles sejam carregados, principalmente por outro homem, mas que carreguem e apóiem as bailarinas. Esta imagem convencional lembra uma cena comum em vários filmes. Quando um casal heterossexual acaba de se casar, ao entrar no quarto para a sua primeira noite de núpcias, o homem carrega a mulher em seus braços. Através da prática de transcodificação19, Bourne toma emprestada esta interação física que é típica de um código de relacionamento heterossexual, o qual domina na sociedade ocidental, e a re-apropria para criar novos significados. Esta cena poderia ser interpretada como uma ligação romântica entre o príncipe e o cisne, ou pode ser vista também como um sentimento de cuidado

Para uma discussão mais aprofundada de fusão de gênero, ver Marita Sturken e Cartwright Lisa, Practices of Looking. David Gere, “[...] 29 Gestos afeminados: O coreógrafo Joe Goode e o heroísmo de efeminação”, p. 350, Dancing Desires: Choreographing sexualities on and off the stage” (Desejos dançantes: coreografando sexualidades no e fora do palco) editado por Jane C. Desmond. 18 Para uma discussão profunda sobre como o sexismo nutre a dança e aspectos culturais em torno de ambos, consulte The Male Dancer: Bodies, Spectacle and Sexualities (O bailarino: Corpos, espetáculo e sexualidades) de Ramsay Burt, e Dancing Women: Female bodies on the stage (Mulheres Dançantes: corpos femininos em cena de Sally Banes). 19 Marita Sturken e Lisa Cartwright, Practices of Looking. 16

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F o t o 21 . I n t e ra ç õ e s c o r p o ra i s e explorações territoriais entre bailarinos (Disponível em: http://4.bp.blogspot. com/_V4ysjEDIZmc/S2li8tyeiJI/ AAAAAAAAA6c/R6bOei0gCeQ/s400/ swan+lake+s.JPG

fraternal profundo, inefável e delicado, além de carinho e solicitude entre eles. Afinal, os pais também carregam seus filhos. Prefiro interpretar este gesto como uma resistência ao código convencional de comportamento em um namoro heterossexual 20 porque imagens similares com signos diferenciados – casais de diferente ou do mesmo sexo – podem ser símbolos de romance, amor e carinho, tanto em relações homossexuais, bem como nas heterossexuais. Considerações Finais De maneira geral, a obra artística de Bourne se desenvolve numa constante tensão entre o que é considerado ‘natural’ e ‘convencional’21 para o corpo do bailarino. O Lago dos Cisnes contemporâneo constrói e desconstrói o estereótipo do bailarino que tem sido produzido no balé clássico

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por séculos: aquele que constantemente representa um corpo forte e viril, que está sempre pronto para carregar, apoiar e fitar o corpo da bailarina. A versão de Bourne, especialmente no segundo ato, re-produz o corpo do bailarino ao mostrar sua força e concomitante necessidade de ser cuidado. Ao contrastar temas em balés clássicos q u e s ã o c o n ve n c i o n a i s e m ve z d e desafiadores, esta produção é um exemplo contemporâneo de trabalhos de vanguarda. Uma obra de vanguarda é freqüentemente associada com o pós-modernismo e geralmente comparada com trabalhos de dança tradicionais ou dominantes, especialmente os de balé clássico. Assim, a c o m p o s i ç ã o e s t á n a d i a n t e i ra d a experimentação artística, porque afirma, implicitamente, que balés tradicionais podem ser reconstruídos através das lentes do debate contemporâneo sobre o que

Para uma discussão detalhada sobre signos relacionados a performances tradicionais de namoro entre pessoas de sexos diferentes, consulte Danesi, Of Cigarettes. Marcel Danesi, Of Cigarettes, tem uma discussão interessante sobre esta tensão em muitos outros aspectos da vida.

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é natural e convencional em termos de estereótipos de gênero. Porque no Lago dos Cisnes clássico só há bailarinas interpretando os cisnes, esta obra desconsidera os espectadores que apreciam ver tais movimentações acontecendo em corpos masculinos. No segundo ato da obra de Bourne, há apenas imagens de corpos do sexo masculino no palco. De fato, todos os cisnes, habitualmente representados por bailarinas, são dançados por bailarinos de troncos nus e descalços que se vestem com calças cobertas por penas. Com esta estratégia, Bourne inova e renova o olhar para o corpo do bailarino22, que pode ser apreciado por outros bailarinos no palco bem como por membros da platéia de ambos os sexos. Assim, esta estratégia incita a pensar como produções de dança contemporânea, como o Lago dos Cisnes ‘todo masculino’, como é conhecido, respeitam e contemplam a diversidade do público. Incluindo a de gênero. Este Lago dos Cisnes contemporâneo levanta questões de estética ou o que é válido e valorizado nas artes. Por exemplo, poder-se-ia indagar: É válido reconstruir um balé romântico de repertório de maneira que se mantenha a sua mensagem essencial, o amor entre duas pessoas, ao mesmo tempo em que também se altera e desafia um código de relacionamento tradicional no Ocidente cujo principal signo é a heterossexualidade? Minha resposta é sim, porque esta reinterpretação do Lago dos Cisnes mostra como a arte contemporânea é um meio que não apenas representa, mas também desafia os códigos sociais tradicionais. A meu ver, códigos convencionais tornam-se evidentes

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quando eles são quebrados. A obra de Bourne, ao apresentar imagens que fogem ao considerado usual, faz parte de um movimento amplo na dança contemporânea que está, lentamente, movimentando fronteiras entre os símbolos ‘naturais’ e ‘convencionais’. Para isto, as imagens comunicam a inclusão na obra de forças contra-hegemônicas, tais como alterações no sexo dos bailarinos que tradicionalmente desempenham determinados papéis, movimentos, gestos, exploração territorial e foco que desafiam significados dominantes e as ordens sociais que os sustentam. Referências BANES, Sally. Dancing Women: Female bodies on the stage. New York: Routledge, 1998. BROWNING, Barbara. Breast Milk is Sweet and Salty: A choreography of healing. In: LEPECKI, André (Ed.). Of the Presence of the Body. Connecticut: Wesleyan Un. Press, 2004, p. 97-109. BURT, Ramsay. Genealogy and Dance History: Foucault, Rainer, Bausch, and Keesmaeker. In: LEPECKI, André (Ed.). Of the Presence of the Body. Connecticut: Wesleyan Un. Press, p. 2944, 2004. ______. The Male Dancer: Bodies, Spectacle and Sexualities. New York: Routledge, 1995. DANESI, Marcel. Of Cigarettes, High Heels, and Other Interesting Things. New York: St. Martin’s Press, 1999. DESMOND, Jane C. Choreographing sexualities on and off the stage. Madison: University of Wisconsin Press, 2001. G E R E , D av i d . 2 9 E f f e m i n a t e G e s t u re s : Choreographer Joe Goode and the Heroism of Effeminacy. In: DESMOND, Jane (Ed.). Dancing Desires: choreographing sexualities on and off the stage. Madison: University of Wisconsin Press, 2001.

Uma discussão aprofundada sobre os olhares masculinos e femininos está em Sturken e Cartwright, Practices of Looking, p. 350.

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Lago dos Cisnes de Matthew Bourne: práticas do olhar de suas imagens dançantes HERNÁNDEZ, Fernando. Da Alfabetização Visual ao Alfabetismo da Cultura Visual. In: TOURINHO, Irene; MARTINS, Raimundo (Ed.). Educação da Cultura Visual: Narrativas de Ensino e Pesquisa. Santa Maria: Editora da UFSM, 2009. KAHLICH, Luke. Aesthetics and Philosophical Inquiry (Investigações em Estética e Filosofia). Philadelphia/PA: Temple University: 2004.

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O Amigo da Onça entre as Fronteiras do Público e do Privado (1956 – 1961)

Ana Flávia Dias Zammataro Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina (2007) e mestrado em História Social pela Universidade Estadual de Londrina (2010). Tem experiência na área de História, com ênfase em História contemporânea e História do Brasil República, trabalhando com fontes imagéticas como charges, caricaturas e cartuns. Atualmente, é graduanda do curso de Arquivologia pela Universidade Estadual de Londrina.

Resumo

A partir de bibliografias específicas, debatem-se, neste trabalho, os conceitos de público e privado, a delimitação de seus domínios bem como a fusão destes. Essa discussão teórica permite o embasamento necessário para a análise imagética do cartum Amigo da Onça enquanto manifestante do imaginário de seu tempo e espaço. Encontramos, pois, nos cartuns de Péricles Maranhão, seu artista criador, temáticas primeiramente ocorridas em espaços públicos. O recorte temporal, todavia, (1956-1961), período do governo JK, no qual a busca pelo progresso, modernização e consequentemente a cultura de consumo estavam em evidência no país, possibilita o encontro do público e do privado, em uma invasão mútua destes espaços. Assim, o Amigo da Onça é tomado como símbolo do imaginário de seu período, manifestando em suas abordagens essas premissas, evidenciando diferentes domínios e/ou sugerindo o seu encontro. Palavras-chave: público/privado; Amigo da Onça; cartum.

Abstract

From specific bibliographies, are discussing in this work, concepts of public and private, the delimitations of its domains as well as merging them. This theoretical discussion allows the necessary basis for the cartoon’s analysis imaging Amigo da Onça the imaginary’s protester time and space. We find, therefore, in Péricles Maranhão’s cartoons, his creative artist, theme first occurred in public spaces. The time frame, however, (1956-1961), JK government’s period in which the pursuit of progress, modernization and consequently consumer culture, were in evidence in the country, enables meeting public and private, in a mutual invasion of these spaces. Thus, Amigo da Onça is taken as an imaginary’s symbol of its period, expressing in these assumptions their approach, highlighting different spaces and/or suggesting their meeting. Keywords: public/private; Amigo da Onça; cartoon.

Recebido em: 13/04/2010

Aprovado em: 22/06/2010

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Introdução Criado pelo artista Péricles Maranhão em 1943, o Amigo da Onça foi publicado na revista O Cruzeiro1 por mais de 30 anos quase que ininterruptos. Percorrendo espaços sociais plurais, tratava de temas diversos, fazendo críticas à sociedade, aos vícios humanos, satirizando a corrupção política, as mazelas do governo. O personagem principal que deu nome ao cartum2 – “Amigo da Onça” – justificava o seu deboche pela própria carga simbólica que carregava o seu nome: um “amigo” pronto para entregar o outro em seus deslizes físicos e psicológicos, colocando-o na mais deplorável situação enquanto enaltecia a si próprio. O Amigo da Onça muito mais que cartum, virou jargão entre os leitores que adquiriam a revista O Cruzeiro, muitas vezes para acompanhá-lo. E, devido ao seu grande sucesso, foi mantida sua publicação mesmo após a morte de Péricles Maranhão, em 1961. Primeiramente, por meio de alguns originais inéditos do artista,

até 1965, depois, pelas mãos de Carlos Estevão, até 1975, artista de grande talento que já trabalhava na revista com memoráveis publicações. O recorte temporal deste artigo tem como base a dissertação de mestrado3 desenvolvida com esse mesmo objeto: 1956 a 1961. Trabalhamos com conceitos do período que nos são caros para compreensão daquele imaginário e para entender o Amigo da Onça como parte daquele costume e cotidiano. Assim, perspectivas específicas do governo de Juscelino Kubitschek que se difundiam com cada vez maior frequência, faziamse presentes também nas abordagens do cartum. Deste modo, tomamos a imagem como manifestação do imaginário daquele momento. Questões como a modernização e o desenvolvimento do país, difundidos e buscados nesse governo, mostravamse nos temas do Amigo da Onça, no qual se enaltecia o progresso, o moderno, o rico, em detrimento do ultrapassado, da pobreza, – esta considerada um empecilho

A revista O Cruzeiro foi um periódico de grande sucesso no Brasil que em seu primeiro número, publicado em 10 de novembro de 1928, teve uma tiragem de 50.000 exemplares. Dita como “a primeira revista semanal ilustrada do Brasil”, ela fundou e fundamentou valores, ditando regras de comportamento, modos de se vestir contando com a imprescindível presença das imagens, desde fotografias, pinturas até caricaturas. Seus temas variavam entre assuntos políticos até festas da alta sociedade carioca, Cassino da Urca, moda e culinária. Pertencia ao Diários Associados, rede de comunicação de propriedade do jornalista Assis Chateaubriand. 2 Por tratar de temas dirigidos à coletividade e com abordagens cotidianas, o Amigo da Onça é considerado como cartum. Sua tendência é de abordar assuntos de conhecimento universal, por isso seus personagens representam indivíduos particulares em suas problemáticas coletivas. Pode fazer uma crítica à sociedade como um todo, ironizar crises existenciais de sujeitos individuais e coletivos de um modo satírico e mordaz e, nessa medida, a-históricos. Suas temáticas transcendem a temporalidade podendo ser compreendidas e estudadas como objeto histórico atual, na medida em que trazem assuntos que até hoje pairam no imaginário coletivo. Concordamos, nessa medida, com Camilo Riani, para quem o cartum é: “Desenho humorístico sem relação necessária com qualquer fato real ocorrido ou personalidade pública específica. Privilegia, geralmente, a crítica de costumes, satirizando comportamentos e o cotidiano [...]” (RIANI, 2002, p. 25). 3 Esse artigo é parte da dissertação de mestrado em História Social pela Universidade Estadual de Londrina, de título: O imaginário em traços: Progresso, Modernização e Cultura de Consumo no cartum Amigo da Onça (1956-1961), defendida no ano de 2010. 1

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para o desenvolvimento do país. Em meio a estas questões, enaltecia-se a cultura de consumo que vinculava o bem-estar dos indivíduos à aquisição de bens e produtos. A publicidade, neste sentido, teve papel imprescindível ao associar a imagem do belo e do status social à aquisição do produto que divulgava. Essas propagandas tendiam a adentrar nos lares dos indivíduos como parte de uma autoconstrução destes, criando uma atmosfera propícia à compra por meio da divulgação do universo privado dos consumidores. Para a compreensão desse universo, e, consequentemente, desta transformação, analisamos uma imagem do início da década de 1950, corroborando a frequência do privado em detrimento do público no decorrer destes anos. Nas análises das imagens do começo desta década, percebeu-se o grande número de anedotas dirigidas ao universo público, no ambiente das ruas, passando, ao longo dos anos a dirigir-se a âmbitos privados. E, embora seja uma transformação que já vinha ocorrendo, ela se torna muito mais expressiva no governo JK, no qual temos premissas difundidas que colaboram para isso. É, pois, a partir disso que se delimita a temporalidade deste artigo: 1956-1961. Seja nos anúncios publicitários, seja nas imagens de humor, a privacidade se torna expressiva como modo de chegar ao cotidiano particular dos indivíduos, como modo de despertá-los para o que se pretendia. Assim, o Amigo da Onça, que tinha suas anedotas antes basicamente dirigidas a universos públicos, passa a abordar o cotidiano das familias, sua privacidade. A revista O Cruzeiro também coloborou para a construção desse pensamento pela publicidade e pelas reportagens, como as quais vinculou à trajetória política de Juscelino Kubitschek, sua vida particular. Neste artigo, optamos por essa

discussão por ser significativa nas abordagens do Amigo da Onça. Nesse aspecto, foram analisadas 5 imagens, sendo uma delas, um anúncio publicitário, com o qual a temática de um dos cartuns se aproxima, difundindo uma cultura de consumo que se voltava para a exaltação do indivíduo em sua subjetividade. Discutem-se, também, a partir de bibliografias específicas, os conceitos de público e privado, apontando para a diluição de suas fronteiras para nos dar o respaldo teórico necessário no que diz respeito à compreensão dos cartuns como simbólico destes conceitos. E, nesse sentido, a revista O Cruzeiro, em seu próprio conteúdo, foi também difusora deste processo ao publicar reportagens de JK e sua carreira política como extensão de sua vida particular. Os conceitos de público e privado e sua historicidade Na passagem da Monarquia para a República, as fronteiras entre o público e o privado começam a se fundir. Os muros que separavam a vida cotidiana vivida no interior dos lares, caracterizando costumes, modos, ritos, gestos e símbolos passam a ser de ordem pública, principalmente com a intervenção do Estado nos limites do privado. A busca pela urbanização do país nos moldes das nações europeias passavam por uma regularização da vida privada dos indivíduos. O governo interfere em questões de saneamento e higiene visando à modernização e o progresso do país. As reformas urbanas no Rio de Janeiro na gestão de Rodrigues Alves, e, na mesma medida, a Revolta da Vacina, foi um significativo fato que demonstra a interferência do poder público na vida cotidiana da população. A vacina obrigatória e, junto com ela, a invasão das casas, colabora para uma mentalidade em

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que se diluem as fronteiras entre o público e o privado e na qual, principalmente, primava-se por uma expulsão da miséria e da pobreza. Neste sentido, nos diz Paulo César Garcez Marins: Agindo tanto no controle dos espaços públicos e privados como no dos logradouros públicos, as reformas urbanas cariocas expulsariam grande parte da pobreza e da miséria, das manifestações populares e das atividades tradicionais visíveis nas ruas e nas casas modestas da cidade (MARINS, 1998, p. 143).

Podemos notar que a interferência pública na vida privada é uma via de mão dupla: na intenção de urbanizar, eram proibidas manifestações cotidianas em espaços públicos, no entanto, ao fazê-lo acabavam por interferir no universo privado dos indivíduos, ditanto regras e formas de vivência. A privacidade era sim estimulada por aqueles que estavam no poder, porém, desde que não extravasasse os interesses da esfera pública. Desse modo, concordase com Antonie Prost (2009), para quem a delimitação de fronteiras entre o público e o privado é um fenômeno histórico construído a partir de determinadas sociedades e de diversas maneiras. Assim, apesar dessa intevenção do poder público em questões da esfera privada, a burguesia da Belle Epóque fazia por separar esses dois domínios, no qual o âmbito privado deveria ser definitivamente separado do público, donde a burguesia se encontraria afastada das vivências da pobreza. Conforme Prost: Para a burguesia da Belle Époque, não há nenhuma dúvida: o “muro da vida privada” separa claramente dois domínios. Por trás desse muro protetor, a vida privada e a família coincidem com bastante exatidão. Esse domínio abrange as fortunas, a saúde, os costumes, a religão [...] (PROST, 2009, p. 14).

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A fronteira entre o público e o privado é mantida, e muito mais que isso, é uma ordem natural da sociedade aristocrata do início do século XX, na Belle Époque, manter, sob os domínios reservados, assuntos da vida particular da família. Era a burguesia tentando se preservar dos camponeses ou dos operários das classes mais baixas das cidades que, por seu turno, não faziam separação entre vida pública e privada pelas suas condições que não lhes permitiriam ficarem isentos dos olhares dos “de fora” à sua vida particular. Nesse sentido, a vida pública passa a ser sinônimo de clareza, acentuando a distinção entre o público e o privado e, com o tempo, aproximando-os. De acordo com Hall, Hunt, Perrot (2009): A vida pública postula a transparência; ela pretende transformar os ânimos e os costumes, criar um homem novo em sua aparência, linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de um espaço remodelados, através de uma pedagogia do signo e do gesto que procede do exterior para o interior (HALL; HUNT, PERROT, 2009, p. 14).

A distinção entre o público e o privado é clara, porém, os universos se aproximam. A publicidade lança mão de um discurso que visa atingir os indivíduos em seus lares, sua particularidade. Do mesmo modo, as paródias, os desenhos de humor passam a adentrar, por meio de suas abordagens, na vida privada de seus personagens. No trabalho com o Amigo da Onça, notamos essa significativa mudança no decorrer de sua publicação. Anedotas que antes se dirigiam muito mais a âmbitos públicos, dirigem-se a âmbitos privados abordando questões familiares, crises conjugais, satirizando a convivência do genro com a sogra. Como parte de seu meio, Péricles Maranhão incorporava no discurso de sua imagem aquilo que estava evidente na sociedade. O governo de Juscelino Kubitchek

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foi retratado também pela figura do próprio presidente em sua vida privada: sua infância, toda a sua trajetória pessoal e profissional até atingir o cargo de administrador do país. Era a sua vida pública como extensão de sua trajetória pessoal. A construção do governo jk pela O Cruzeiro: o privado no público Inserida no imaginário no qual os espaços público e privado se fundiam, a revista o Cruzeiro vinculava a imagem de Juscelino Kubitschek e de seu governo a sua trajetória pessoal. O seu sucesso profissional era então atribuído também à luta pessoal do menino de infância humilde que não hesitou em batalhar pela carreira política. Alguns dias após Juscelino Kubitschek tomar posse, O Cruzeiro publica uma matéria de 10 páginas, em 4 de fevereiro de 1956, de título: “Juscelino – Nonô da mestra – o menino pobre de Diamantina é o Presidente do Brasil”, com fotos de Eugênio Silva e texto de Olavo Drummond, então deputado da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, relatando todas as dificuldades enfrentadas pelo Presidente, tanto em sua trajetória pública, quanto pessoal, trilhando sua própria estrada rumo à presidência da República. A matéria traz fotos do presidente, o quarto onde passou grande parte de sua infância. Conjugava, consubstancialmente, os seus hábitos simples e cotidianos com a sua determinação, persistência e capacidade de administrar o país. Conjugava-se, enfim, a sua vida privada à sua vida pública. Muito mais que uma ação da revista O Cruzeiro, o próprio Juscelino Kubitschek utilizou-se de sua autoimagem para se promover enquanto político. Imagens de sua vida cotidiana emanavam uma grande aproximação com o público leitor – e eleitor

– das revistas ilustradas, trazendo-o para mais perto da realidade dos indivíduos. Em 11 de fevereiro de 1956, O Cruzeiro publica uma reportagem do presidente em suas viagens, intitulada: “JK em busca de riqueza para o Brasil – O Presidente descreve a sua viagem com exclusividade para O Cruzeiro”, assinada por Eugênio H. Silva e Álvares da Silva. Essa reportagem traz, entre outras imagens, a fotografia do Presidente comprando um presente para sua ‘filhinha’ – momento de sua vida pessoal – trazendo o leitor para mais perto de sua intimidade e privacidade. Observa-se que as insígnias do público passam a adentrar nos âmbitos privados e na política elas ditam a conduta de comportamentos, modos de se vestir, regras na linguagem, ultrapassando as barreiras daquilo que antes era exclusiva dos ambientes particulares, fazendo com que ambos os domínios se encontrem, um como extensão do outro. Segundo Hall, Hunt e Perrot (2009) há a “politização da vida privada”: ditam-se as regras para vestimenta e para a presença de determinados objetos dentro das casas, uma invasão de símbolos públicos na privacidade dos lares. O sentido da vida privada se estende ao sentido da “vida cotidiana” “[...] na medida em que o último se remete também, à intimidade, aos modos de vida, ao dia-a-dia da existência privada, familiar, pública, às formas de transmissão dos costumes e dos comportamentos” (ALENCASTRO, 1997, p. 8).

É nessa aproximação entre esfera pública e privada que os ambientes passam a ser um como extensão do outro. A vida pessoal se estenderia a uma boa conduta pública, assim como a imagem de JK vinculada pela O Cruzeiro. A aproximação entre público e privado não seria diferente com o Amigo da Onça,

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ele mesmo porta-voz de um discurso que poderia debochar pelas vias de seu humor “não comprometido”. Temas, antes corriqueiramente dirigidos a espaços públicos, obtêm maior frequência em espaços privados, principalmente após meados da década de 1950 em diante. Elias Thomé Saliba nos fala dessa capacidade do humor de aproximar e fundir esses dois domínios, por meio do caráter “não oficial” de seu discurso: Se ao jogar com essa duplicidade do antigo e do moderno, o humor paródico oferecia estratégias apenas efêmeras de representação, e até de legitimidade, por outro lado, pelas suas próprias características de descompromisso, de ausência de sistematização e de fragmentação, ele acabaria por incentivar a diluição de fronteiras entre o privado e o público [...] (SALIBA, 1998, p.344).

O Amigo da Onça é sintomático dessa diluição: por meio dele, âmbitos familiares em seus deslizes, em sua hipocrisia social, são retratados, fazendo uma crítica com seu humor satíricio e ácido. O público e o privado no cartum Amigo da Onça Péricles Maranhão trabalhou com temas variados em seu cartum. O Amigo da Onça fez sátiras à corrupção política, debochou da pobreza e da feiúra, fez críticas às mazelas do governo, ironizou a convivência com a sogra e a hipocrisia social. Suas abordagens de entendimento coletivo e universal dirigiamse, em sua maioria, a todo e qualquer político corrupto, a todos os indivíduos fora dos padrões de beleza ditados na época, a todos os pobres excluídos por suas vestimentas e moradias precárias. Circulando por ruas, praças, praias, seus temas eram tratados principalmente em âmbitos públicos. 44

Considerando as publicações de Péricles além do recorte temporal deste artigo, confirmamos a constância de anedotas ocorridas em ambientes públicos no início da década de 1950, havendo uma significativa transformação a partir de meados desta mesma década: o Amigo da Onça se faz presente com maior frequência no interior dos lares dos indivíduos retratando suas crises e conflitos. Para Elias Thomé Saliba (1998), o surgimento do humor paródico e com ele o humor chanchada, nos anos de 1950, vem colaborar para esta mudança de mentalidade na qual o público e o privado se fundem. Conforme o autor, a chanchada era [...] o momento máximo não apenas do impulso paródico do humor brasileiro, mas também das suas fraquezas e das suas ambiguidades na representação da vida brasileira. As referências quase obsessivas da chanchada à troca de identidades – reduzindo quase toda a representação das relações sociais à lábil e esquiva questão da identidade – conduziam, não raro, à visões abstratas ou de ‘pura exterioridade’ das relações sociais, aumentanto ainda mais a confusão entre os domínios públicos e privados (SALIBA, 1998, p. 357).

A imprensa, o cinema, a publicidade, o humor quebram as barreiras que dividiam o público do privado, retratando, por meio das lentes das câmeras e dos traços do humor gráfico, o lado intimista dos indivíduos. Os cartuns do Amigo da Onça são analisados com o objetivo de corroborar esta transformação. Para esta análise, utiliza-se a metodologia proposta por Erwin Panofisky (1976) do “paradigma indiciário”. Segundo as concepções do autor, [...] necessitamos de uma faculdade mental comparável a de um clínico em seus diagnósticos – faculdade essa que só me é dado descrever pelo termo bastante desacreditado de ‘intuição sintética’ [...]” (PANOFSKY, 1972, p. 72).

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Como esse apelo ao estudo dos indícios do documento requer algumas preocupações particulares, os historiadores devem se ocupar mais com as aspirações coletivas, com culturas e sociedades do que com as individualidades. Isso também é válido ao intuito de se definir as ‘intenções’ dos artistas. Em primeiro lugar, essas ‘intenções’ não podem ser definidas cientificamente, uma vez que estão acordadas com padrões ditados na época daqueles que produzem, ao meio em que vivem. Isso ocorrerá também com o pesquisador que analisa a imagem, na medida em que sua análise estará imbuída da bagagem cultural que possui. Portanto, há necessidade de se focar mais diretamente na coletividade que na particularidade. Panofsy (1976) propõe etapas de análise da imagem, a qual utilizamos no estudo do Amigo da Onça. Teríamos, assim, em um primeiro momento, uma ‘descrição préiconográfica’, que seria a identificação das formas e dos objetos presentes na imagem, ou conforme Panofsky, “[...] o mundo das formas puras, portadoras de significados primários ou naturais” (PANOFSKY, 1976, p. 50). Secundariamente, na ‘análise iconográfica’, temos a identificação nas imagens de certas atitudes, características que ligam o conteúdo da obra a algum significado a que o observador faz uma ligação direta. Nessa etapa, há também a descrição e identificação da imagem – Fotografia? Charge? Cartum? Caricatura? – e seus personagens, seu significado convencional; por fim, a ‘interpretação iconológica’, que se liga ao conteúdo trabalhado na imagem que, conforme Panofsky, [...] é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude

básica de uma nação, de uma classe, um período, crença religiosa ou filosófica – qualificados por uma personalidade e condensados numa obra. Não é preciso dizer que estes princípios se manifestam, e portanto esclarecem, quer através dos ‘métodos de composição’, quer da ‘significação iconográfica’ (PANOFSKY, 1976, p. 52).

Com o exposto, infere-se que uma interpretação iconológica eficaz advém de uma análise correta das imagens, das histórias e alegorias. Nessa, o historiador deve aferir de métodos em que haja comparação de documentos, para recuperar elementos peculiares do momento histórico do objeto, sempre tendo como base documentos que estejam imbuídos de um certo significado intrínseco que, para o historiador, será testemunho de tendências políticas, religiosas, filosóficas, particulares de uma nação ou período. Reconhecidos os elementos iconográficos e feitas as interpretações iconológicas, toma-se o Amigo da Onça como imagem de humor gráfico com suas especificidades. Desse modo, analisam-se nos seus elementos algumas das etapas propostas por Edson Carlos Romualdo (2000) para a análise das charges/(cartuns) enquanto imagem de humor: adereços e roupas dos personagens; lugar em que se encontram; fisionomia; dote físico; data, aplicando-as aos ‘amigos da onça’ aqui analisados. A fim de que se confirmem as tranformações ocorridas nas temáticas do cartum, no que diz respeito à maior frequência de ambientes privados em detrimento dos públicos ao longo da década de 1950, selecionou-se uma imagem do início desta mesma década que nos possibilita a análise destes conceitos.

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Figura 1. O Cruzeiro, 04 de março de 1950

É no espaço público da rua que Péricles Maranhão tece a abordagem do Amigo da Onça nesse cartum. De 04 de março de 1950, início da década do recorte temporal deste trabalho, a imagem, dentre outras tantas produzidas por Péricles, demonstra a universalidade, sobretudo porque ocorrida em ambiente público e tratando de tema de entendimento coletivo. O primeiro plano da imagem é composto pelo próprio asfalto que caracteriza as ruas por onde circulam pessoas e carros – este elemento que dá o sentido central da anedota do Amigo. A presença do semáforo e da sombra do prédio no plano de fundo confirma o conteúdo desse espaço de uma cidade em busca da modernização. Ocupando a posição central da imagem o elemento carro, o motorista e o próprio Amigo da Onça dão sentido a fala do último. Este aproveita-se da presença do policial para entregar o personagem motorista

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em sua falha com a lei ou como ‘amigo da onça’ que é, cria uma situação apenas para colocar o personagem motorista em apuros, ao dizer: “– Onde você comprou a carteira de motorista?”. Com a fala inesperada e debochada do Amigo, o personagem motorista curva seu corpo em direção a ele, abre a boca e arregala os olhos em atitude de surpresa a indignação. Péricles Maranhão ainda denotam a situação colocando traços em volta de sua cabeça que caraterizam uma situação inesperada. O sintoma de reprovação de sua fala é também confirmado pela postura do personagem policial, que denota uma fisionomia de surpresa, lançando um olhar de reprovação, haja vista o recurso dos raios que lhes saem dos olhos. O policial, ao ouvir o Amigo, prontifica-se para notificar o motorista que, na realidade – ou não –, não poderia dirigir por ter carteira forjada. A fisionomia de despreocupação do Amigo da Onça intensiona passar a sensação de sua inocência forjada em meio àquela situação que ele mesmo causou ao outro. O tema revela a constância do fato naquele período, traçado por Péricles Maranhão pelas vias permissivas do humor. O artista utiliza cores amenas e primárias, muito característica de seus primeiros desenhos, o que se soma ao traço ameno das bordas do cartum que não fazem uma divisão bem demarcada com a própria página da revista. Ao longo da década, as abordagens do Péricles Maranhão com o Amigo, vão ganhando novos espaços. Na publicidade, a divulgação de produtos que vinculavam a sua aquisição ao bem-estar das famílias em seus ambientes privados colaborou para firmar essa mentalidade em que o público e o privado se misturavam. Sobre isso, versa Elias Thomé Saliba (1998):

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O Amigo da Onça entre as Fronteiras do Público e do Privado (1956-1961) O cinema e a publicidade – primeiro por meio do jornal, depois por meio das revistas – [...] e a televisão nos anos 50 certamente serão meios de comunicação que continuarão a expressar desconcerto e o paroxismo das relações entre o público e o privado. [...] Em lugar da lenta especialização dos lugares e momentos que, afinal, acabariam por apontar os limites do público e do privado, os meios de comunicação de massa virão apenas sobrepor novas camadas de indiferenciação, estimulando, cada vez mais, a confusão entre infixidez entre os dois domínios. [...] (SALIBA, 1998, p. 357-358).

dos cavalos é o contraste da imagem da Lambretta, o que se corrobora pela legenda. A chamada do anúncio diz que “Alguém aquí é mais esperto...”, associando esperteza com imagem da Lambretta. Esta significava velocidade, economia de tempo, bons negócio e inteligência, com a Lambretta “abrindo novos horizontes de prosperidade”. Aos cavalos ficava relegada a imagem de lentidão, de atraso, de ultrapassado, ou seja, a contradição da aquisição da Lambretta. Neste sentido, o cartum em que o Amigo da Onça vai até a casa da garota levandolhe flores com a sua Lambretta – o segundo momento da imagem – contrapõe-se à figura do outro personagem que volta da casa da garota com uma fisionomia de ira, com a sua bicicleta – o primeiro momento da imagem. A bicicleta é associada à imagem dos cavalos, ultrapassado, pouco inteligente, ficando para trás.

Figura 2. O Cruzeiro, 1957

A publicidade adentraria em questões que diziam respeito à intimidade dos indivíduos, associando a compra ao melhor, ao belo. Inserido nesse contexto, o Amigo da Onça também fazia esses tipos de associações em seus cartuns. A próxima imagem (Figura 3), de 12 de julho de 1958, liga-se com a ideia contida na chamada publicitária de 1957 (Figura 2), também publicada na O Cruzeiro. Neste anúncio, a imagem

Figura 3. O Cruzeiro, 12 de julho de 1958

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Todo o poder de conquista no cartum é delegado ao Amigo da Onça, não pela sua gentileza em levar flores à garota – o que o primeiro pretendente já o fizera – mas pelo poder de conquista simbolizado pela sua Lambretta. A rota de seu caminho é visível, uma vez que os espaços da imagem são bem demarcados por Péricles e pelas cores utilizadas. Sua vestimenta faz parte daquele cotidiano do final da década de 1950 e início de 1960, quando prevalecia a imagem do jovem de blusão de couro e jeans, em motos ou lambretas. A mocinha também caracteriza aquele tempo, no qual, cada vez mais, moda e comportamento se associavam, abandonando as saias rodadas para tornar-se adepta das calças tipo cigarette. Péricles Maranhão, neste cartum, apresenta o contexto histórico específico de sua época no qual fervilhava uma crescente mentalidade em torno do consumo. A sua abordagem, neste sentido, é intimista, voltada para questões que dizem respeito à vida particular dos personagens do cartum, a sua privacidade.

Figura 4. O Cruzeiro, 12 de março de 1960

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A abordagem da Figura 4 é intimista tanto em seu conteúdo quanto no ambiente em que ocorre. Alocada no interior da casa da garota, este cartum de 12 de março de 1960 contém elementos trabalhados por Péricles que simbolizam o cotidiano, os costumes, por meio da disposição dos artefatos do ambiente. As cores fortes utilizadas, os objetos que emanam movimento, mesmo parados, como os quadros na parede, os elementos do abajur e a disposição dos vasos nas prateleiras no plano de fundo da imagem denotam modernidade. No primero plano, a vestimenta do Amigo da Onça é um dos elementos que confirmam a abordagem privada do cartum: este se sente à vontade com seu pijama. Com sua característica fisionomia de despreocupação, de descompromisso, aborda a sua sobrinha, dirigindo-lha a fala: “– Bobagem, sobrinha, o amor vem depois...”. O sentido de sua fala se dá pela presença do personagem sentado no sofá no plano de fundo do cartum: Péricles deu a este características boçais e um tanto grotescas, aproximando-o do animalesco. Seus dentes são salientes e saem para fora da boca, o que leva o personagem ao ato de babar, ele possui verrugas no rosto, é estrábico, suas orelhas e nariz são desproprocionais para o tamanho de seu rosto e seus cabelos estão despentados. A sua boçalidade corrobora-se ainda mais pelos traços em volta de sua cabeça e os corações que indicam um personagem apaixonado. A posição em que se encontra, com pés cruzados e mãos segurando firmemente o ramalhete de flores, acompanha as suas características psicológicas. O grotesco de sua imagem é também percebido pela sobrinha do Amigo no primeiro plano da imagem, que olha para o pretendente com aflição, levando uma das mãos até a boca e suando. A imagem que lhe vem à cabeça,

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O Amigo da Onça entre as Fronteiras do Público e do Privado (1956-1961)

demonstrada por meio do balão, é a de um sapo, confirmando o seu aspecto animalesco. O seu porte físico dentro dos padrões da época – cabelos bem assentados, cintura fina, quadris e bustos largos se contrapõe à imagem de seu pretendente. A fala de seu tio lhe coloca aflita, pois haverá de tomar uma decisão. Observamos, no entanto, a segunda intenção do Amigo por meio dos cifrões em volta de sua cabeça colocados por Péricles: seu interesse era apenas o dinheiro do personagem/pretendente. Na privacidade de seu próprio lar, a fala inesperada do Amigo da Onça ironiza e debocha a convivência com a sogra no próximo cartum de 01 de julho de 1961. Em sua fala há uma quebra de sentido: primeiramente, parece procurar pela sogra que sumiu. E depois, oferece recompensa para mantê-la longe de sua casa. O cartum colabora por fortalecer o estereótipo da sogra, confirmado por Péricles Maranhão, ao associar a sua presença como sinônimo de estorvo: morar com ela, depois de casado, era comum, no entanto, não muito aceito, devido às intrigas no relacionamento com o genro. O cartum apresenta o próprio lar do Amigo da Onça e de sua família. Seus elementos decorativos – móveis, tapete, planta, quadro, cortina, telefone – e as vestimentas dos personagens caracterizam uma família de classe média. Os móveis sugerem modernidade, tanto em sua forma inovadora, como a luminária no plano de fundo, que reproduz movimento, quanto em suas cores, combinando tons fortes – que prevalecem – com os claros. No plano de fundo, a mulher, que representa a esposa do Amigo da Onça pai, mostra-se aflita e, ao mesmo tempo, desconfiada com a atitude de seu marido. Ao seu lado, a criança, com características físicas muito próximas de seu pai – o próprio Amigo da Onça. Temos

então, o Amigo da Onça criança, cujo olhar deixa transparecer as mesmas caracterizações psicológicas de seu pai: transgressoras, debochadas, irônicas. É assim que o observa, no primeiro plano da imagem, de um modo como se entendesse a intenção de sua atitude.

Figura 5. O Cruzeiro, 01 de julho de 1961

O Amigo da Onça, muito despreocupado, acende seu cigarro e liga para a polícia dizendo: “- Alô, é do distrito? Escuta: minha sogra sumiu de casa. Seu nome é fulana de tal. Se estiver aí, agüenta uns dias que ganhas uma “nota”. A quebra de sentido e perspectiva de sua fala se dá exatamente no momento em que diz que sua sogra sumiu. De um modo inesperado, refere-se a ela como “fulana de tal”, sem nome e sem possibilidade de identificação. Oferece, ainda, uma “nota” para mantê-la onde está. A sua atitude, frente ao acontecimento, ajuda a formar as estereotipias da sogra que, entre outros

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Ana Flávia Dias Zammataro, Alberto Gawryszewski

aspectos, era boçal e passiva diante das atitudes transgressoras do genro e baseia a abordagem em um universo privado. Considerações Finais No contexto histórico estudado, questões que diziam respeito ao progresso e modernização do país estavam evidentes e se faziam presentes em todos os meios. Com cada vez mais força difundia-se a necessidade de se desenvolver o país abrindo suas portas à indústria estrangeira, inserindo costumes aos moldes das nações europeias e norteamericanas. A imprensa teve papel crucial na difusão dessas questões que tomou conta do imaginário dos brasileiros da época, por meio de reportagens, propagandas e desenhos de humor. A revista O Cruzeiro e, na mesma medida, o Amigo da Onça atuaram como difusores dessas propostas que se fizeram evidentes de modo significativo no governo de Juscelino Kubitschek. O Cruzeiro com suas reportagens que enalteciam o desenvolvimento do Brasil, menosprezando tudo aquilo que pudesse significar atraso e divulgando a imagem do então presidente do país – JK –, por meio de seus feitos políticos e pessoais. Suas páginas, repletas também de conteúdos propagandísticos, ajudavam a afirmar uma crescente cultura de consumo na qual os indivíduos em seu bem-estar eram enaltecidos, na qual se cultuava sua subjetividade e, nesse sentido, a sua privacidade. O cartum Amigo da Onça, como parte deste processo, difundiu no mesmo sentido a modernidade que se buscava e o consumo que vinha se tornando palavra de ordem entre os indivíduos, estendendo as suas abordagens ao cotidiano e à vivência destes.

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Caracterizamos, assim, nosso período de estudo, conforme o que nos propõe Anna Cristina C. M. Figueiredo, para a qual há, neste período: A valorização do lazer em detrimento do trabalho, a exaltação da juventude, a ‘coação’ à felicidade, o hedonismo, a enfatização da personalidade e da esfera privada da vida dos indivíduos, a utilização do critério de status para diferenciá-los no lugar do critério de ‘classe’, a fetichização da mercadoria levada a seu ponto extremo, o intercâmbio de significados entre os objetos e o uso deles para mediar as relações humanas, a subversão da noção de poupança, a compulsão ao consumo... [...] (FIGUEIREDO, 1998, p.114).

Péricles Maranhão como homem de seu tempo e de seu espaço, é parte deste imaginário que se consolidava. Expressava por meio dos temas do Amigo da Onça, questões evidentes naquele contexto, ou se aproveitava dos costumes humanos em seus vícios e deslizes para fazer uma crítica. O Amigo da Onça é então um símbolo, a manifestação do imaginário de seu período. Dentro do recorte temático e temporal, percebemos a frequente transformação, a passagem do público para o privado, ou a diluição de suas fronteiras por meio das abordagen do cartum – estas cada vez mais intimistas. Referências ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Modelos da História e da historiografia imperial. 7-10. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de; NOVAIS, Fernando A. (org.). História da vida privada no Brasil – Império: a corte e a modernidade nacional. v.2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. FIGUEIREDO, Anna Cristina Camargo Moraes. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada. Publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Hucitec, 1998.

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O Amigo da Onça entre as Fronteiras do Público e do Privado (1956-1961) HALL, Catherine; HUNT Lynn; PERROT Michelle. Ergue-se a cortina. 13-47. In: PERROT, Michele (org.). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. v.4. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras. In: NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da Belle Époque à era do rádio, v.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. PROST, Antoine. Fronteiras e espaços do privado. 13-99. In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard

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Por trás da imagem, ‘o olhar’: o uso da fotografia em estudos culturais

André Camargo Lopes Especialização em ensino de sociologia pela Universidade Estadual de Londrina (2007). Professor do Colégio Estadual Professora Roseli Piotto Roehrig.

Resumo

Ao problematizarmos o uso da imagem fotográfica na pesquisa em estudos culturais, abordamos duas perspectivas de análise: o fotógrafo/pesquisador, tomado neste artigo, como agente produtor, tendo suas imagens como fonte de documentação a ser incorporada aos relatórios de campo e a narrativa da pesquisa científica: fontes visuais que documentam a estrutura do conjunto social em sua ação cotidiana e a fotografia produzida no grupo, ou seja, o uso da imagem como marco de memória na reconstituição de eventos dentro do grupo social. Tratase de padrões de representação e repetição, marcos temáticos e compositivos assim como um diálogo com o passado através dos espaços, na perspectiva de uma semiologia da imagética auto-representativa popular. Palavras-chaves: fotógrafo/pesquisador; fotografia popular; grupo social.

Abstract

To the questioning the use of the image photographic at investigation in cultural learning, boarding two perspectives of analyses: the photographer/investigator taken this article as producer agent, in yours images as font of documentation to being incorporate to the camp of report, fattening the narrative of the scientific investigation: visuals fonts how document the structure of the social conjunct in your quotidian action. And the photograph produced in group, the use of the image as mark of memory in reconstitute of events in of the social group, models of representation and repetition, thematic marks and composites thus as one dialogue with the past across of the spaces, in the perspective of one semiology of the imagistic popular auto- representative. Key Works: photographer/investigator; popular photograph; social group.

Recebido em: 09/04/2010

Aprovado em: 02/06/2010

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Por trás da imagem, ‘o olhar’: o uso da fotografia em estudos culturais

As experiências humanas são repletas de significados que se traduzem em um amplo conjunto gestual e sonoro, que dizem sobre o grupo social envolvido no evento. A partir desta perspectiva propomos, neste artigo, uma breve reflexão teórico-prática acerca do uso da fotografia em estudos culturais.1 As discussões problematizadas nele têm como referência a relação produtor/imagem, o que possibilita estabelecer dois movimentos de abordagem da fotografia como fonte

de estudos culturais: a imagem produzida pelo pesquisador/fotógrafo, decorrente da pesquisa participante e a imagem/documento, pertencente ao repertório familiar do grupo social estudado, diretamente relacionada com os estudos em história oral. As reflexões aqui construídas são resultantes de nossa pesquisa nas práticas do catolicismo tradicional popular brasileiro2, junto a Folias de Reis de Londrina (PR), e de nossos estudos da fotografia popular e

De acordo com a historiadora Mary Del Priori, a fotografia enquanto registro é plural, assim como as suas abordagens são igualmente múltiplas. Do simples inventario cronológico de fotógrafos ou de estilos de fotografar pode-se passar a digressões muito complexas, de inspiração teórica. Transcendendo ao caráter estético da imagem, ligando-a a diferentes tradições visuais, como a sociologia visual, ou a história visual, que priorizam em suas análises, o estudo de diferentes contextos (históricos, sociais, econômicos) da fotografia; quanto à semiologia, nos permite estudar a imagem fotográfica como uma mensagem, demonstrando o seu processo de comunicação e os seus códigos representados. 2 O termo ‘catolicismo tradicional popular brasileiro’ apresentado neste artigo promove uma projeção historiográfica ao mesmo tempo em que antropológica acerca de um modelo de vivência religiosa enraizada em um universo simbólico, estruturalmente medievalizado e pré-tridentino. Estruturamos nossa discussão acerca deste tema a partir de dois pressupostos teóricos que fixam no catolicismo uma tipologia a partir da vivência religiosa de seus agentes. Em artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira no ano de 1968, o Pe. José Comblin, a partir dos estudos de Thales de Azevedo (1966), propõe uma tipologia historiográfica que contribui para a compreensão da estrutura da vida religiosa católica e suas diversas vivências em relação à experiência religiosa no Brasil do século XX. Dentre as quatro bases levantadas pelo autor, é o Catolicismo medieval que contribui para a estruturação de um catolicismo tradicional e popular. O autor reconhece o trânsito na vivência religiosa destes agentes, não apontando para uma rigidez e imutabilidade deste quadro, todavia, é na matriz medieval do catolicismo praticado no Brasil que encontramos o catolicismo milagroso e o catolicismo penitencial. Este primeiro constitui-se em um modelo de catolicismo remanescente da expansão católica pela Europa, pautado no culto aos santos e ao poder milagroso dos mártires. No Brasil, como afirma o autor, alguns elementos de cunho sociológico contribuíram para a transferência e a manutenção desta vivência religiosa de forma quase arcaica. O isolamento de várias populações no interior brasileiro, assim como as altas taxas de analfabetismo nestas regiões, além da falta de sacerdotes possibilitaram o culto ritualístico popular. Este perfil de vivência religiosa, mesmo urbanizado e próximo às estruturas diocesanas da Igreja, se mantém pautado numa prática religiosa tradicional nas muitas famílias de migrantes que vivenciaram os grandes deslocamentos internos no Brasil entre as décadas de 1960 a 1990. Segue-se o mesmo perfil deste catolicismo milagroso, o catolicismo penitencial, pautado na auto-flagelação dos agentes e reforçado por períodos de nossa história cultural e religiosa, na qual, no imaginário popular estas passam a serem reconhecidos socialmente como atos de santidade ou de grandeza espiritual. Numa perspectiva mais ampla acerca desta relação entre o catolicismo e a formação da sociedade brasileira (superando a definição de popular – arraigado em classe social- definida por Comblin), a historiadora Célia Maia Borges, vê no termo ‘tradicional’, a expressão mais eficaz para definir o modelo de catolicismo que se instalou no Brasil, contrapondo em suas práticas e estrutura ao Catolicismo Tridentino. Segundo a autora, este catolicismo tem por principal característica no modo de organização, assim definido pela mesma, como sendo um sistema de organização de leigos, simbolicamente estruturado em um universo religioso medieval e definido estruturalmente pela organização social brasileira pautada nas formações das grandes famílias patriarcais de senhores rurais. Para tal, cabe ressaltar que a autora credita à organização social brasileira, a possibilidade desta vivência do catolicismo, não desconsiderando quão problemática seja esta qualificação quando se tem em mente a participação dos religiosos no processo de colonização brasileira. 1

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seus ritos de registros de iniciação religiosa.3 São dois momentos e metodologias de construção discursiva e análise da imagem fotográfica neste artigo. Neste caso, pretendese aqui, colocar em diálogo os dois campos metodológicos acima citados, na perspectiva de visualizar ao mesmo tempo os diversos ‘pontos de vista’ que estruturam a memória social de determinados grupos, manifesta ora em imagens, como no caso da fotografia popular, ou em suas ações ritualísticas presentes, como no caso do rito de Folias de Reis4. A fotografia como fonte de pesquisa cultural: reflexões acerca da relação pesquisador/ fotógrafo e imagem A natureza multidisciplinar que envolve a metodologia da história oral 5 tem na pesquisa participante uma extraordinária ferramenta de abordagem qualitativa em relação ao fenômeno cultural. De acordo com Brandão, a pesquisa participante tende a revelar as relações que se estruturam nos diversos ‘universos sociais e culturais’ que compõem a sociedade ou o grupo social estudado. Ou seja,

[...] todas as instituições da vida estão interligadas de tal sorte e de tal maneira se explicam através da posição que ocupam e da função que exercem no interior da vida social total, que somente uma apreensão pessoal e demorada de tudo possibilita a explicação científica daquela sociedade. Porque o primeiro fio de lógica do investigador deve ser não o seu, de sua ciência, mas o da própria sociedade que investiga tal como expressam os próprios sujeitos que a vivem (BRANDÃO, 1984, p. 12).

A pesquisa participante requer do pesquisador uma presença constante no cotidiano social do grupo estudado, tornando-o um ‘nativo’ para que o mesmo possa entender os sistemas de relações intragrupais e extra-grupais que se revelam nos agentes sociais abordados, a partir da lógica estrutural e da organização social que envolve o grupo. Esta postura na pesquisa possibilita ao pesquisador compreender a história de vida dos agentes sociais a partir de uma rede complexa de relações sociais, na qual estes se situam em suas narrativas orais e registros visuais como centro de desdobramento histórico – tendo em vista que o agente social, ao se relacionar com a narrativa históricosocial de seu grupo, parte de sua própria pessoa, de sua ‘história de vida’.

Nesse estudo realizado junto a famílias de moradores da região norte do município de Londrina, propomos uma semiologia da imagem doméstica, a partir do exercício de auto-representação de seus agentes. Este estudo tem suas bases na prática de ensino de sala de aula, em turmas de 1º. Ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Professora Roseli Piotto Roehrig. A proposta da atividade consiste em um levantamento amplo de imagens periodizadas entre os anos de 1950-90, num primeiro momento de familiares destes alunos. As imagens estão divididas em grupos temáticos como: o cotidiano de trabalho rural; o cotidiano de trabalho urbano; primeira comunhão; formatura escolar; retratos de família; lazer e retratos do bairro. Junto a este levantamento propomos numa perspectiva pedagógica, um estudo das características físicas locais, os deslocamentos humanos internos no município, as transformações na auto-imagem destas famílias (da fotografia realizada pelo fotógrafo - a fotografia doméstica), as condições para o registro da imagem e seu grau de relevância para os agentes representados. Enquanto documento de estudos culturais, estas imagens (juntamente com os depoimentos coletados) são cruzadas entre si, na perspectiva de se construir uma rede de representação, assim como um conjunto de temas e organização visual predominantes neste conjunto iconográfico. 4 Folias de Reis ou Companhias de Reis são grupos de cantores instrumentistas que percorrem em peregrinação áreas periféricas de algumas cidades brasileiras. Evento religioso pertencente ao universo popular, as Folias de Reis celebram no ciclo de Natal o nascimento de Cristo, cantam em residências anunciando a Boa Nova, abençoando com suas cantorias em nome do Santos Reis Magos (personagens da narrativa do capítulo 2 do Evangelho de São Mateus) as famílias que os recebem, pedindo esmolas e convidando para a festa de chegada e celebração do dia dos santos. Especificamente as imagens apresentadas neste artigo dizem respeito à jornada 2007/2008 de duas Companhias de Reis de Londrina: Mensageiros da Paz e Santa Luzia ambas da região norte do município. 5 Por trabalharmos com eventos históricos contemporâneos, nos fazemos valer de um rico conjunto de abordagens metodológica que, pautadas na história oral e na pesquisa participante, possibilita um contato com a dinâmica social estudada, assim como as representações mnemônicas dos eventos passados pelos agentes abordados. Aqui a fotografia, enquanto registro documental tem valorizado o seu caráter narrativo e simbólico, naquilo que Sartre em seu ensaio A Imaginação, apontou como sendo constituída de duas concepções que se completam: a imagem-percepção e a imagem-lembrança. 3

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É nesta proximidade entre o grupo pesquisado e o pesquisador que reside a leitura visual do evento, tendo em vista que ao inserir-se em um grupo social, o pesquisador deve construir parâmetros de análise do fenômeno cotidiano do grupo. Nesta perspectiva, a imagem fotográfica torna-se um elemento de documentação visual de um acontecimento observável ou verificável. A imagem assume um papel discursivo na relação fotógrafo/pesquisador e grupo pesquisado.

social, e o seu processo de seleção e recorte do fenômeno analisado. Na perspectiva de Martins, o ato fotográfico é um ato imaginativo, tais quais os registros escritos na pesquisa, uma interpretação que tem como filtro o olhar do próprio pesquisador. Nesse sentido, o verossímil não é necessariamente o concreto da ação, embora seja real. As imagens estão povoadas de dimensões, significações e determinações que transcendem a realidade fotografada.

O investigador torna-se presente desvelando ou mostrando a experiência do antropólogo no terreno, o seu lugar de observação, as relações estabelecidas, os saberes aí adquiridos ou construídos a partir daí. Inscreve a sua experiência pessoal num duplo contexto, o da relação com os observados (diálogo de mediação entre si e o outro) e o da relação com os leitores ou espectadores (comunicar a sua compreensão da experiência ao outro, simular para o leitor um mundo possível de significações e de ações, um mundo que lhe “fala”) (RIBEIRO, 2005, p. 629-630).

Mesmo que consigamos fazer uma etnografia dos elementos da composição fotográfica e consigamos, portanto, desconstruir os tempos da fotografia para chegar à realidade social que ela pretende documentar, estaremos em face de algo que é outra coisa, diversa daquilo que “estava lá” no momento do ato fotográfico. Teremos que admitir que essa realidade não é mais ela mesma e sim uma realidade mediada pelo tempo da fotografia, pelo olhar e pela situação social do próprio fotógrafo, por aquilo que ele socialmente representa e pensa – isto é, pelas ênfases que na composição decorrem do ato fotográfico, pelos objetos e temas que, desse modo são colocados no horizonte visual da sociedade e de seus membros (MARTINS, 2002, p. 224-225).

Ao pensar a potencialidade discursiva da imagem fotográfica tal qual o texto, não podemos dispensar o autor e o conjunto de intencionalidades que o movem em direção ao fenômeno social fotografado. Por trás da imagem fotográfica há mais que o registro do evento, há a construção de uma narrativa, de uma interpretação do fenômeno, a perspectiva do pesquisador/ fotógrafo. Trata-se de uma leitura que se estrutura em significados e situações que não são diretamente próprios daquilo que está sendo fotografado e daqueles que estão sendo fotografados, mas se refere à própria inserção do pesquisador/fotógrafo no mundo 6

A situação social do pesquisador/ fotógrafo corresponde à dimensão social ocupada por este na constituição do evento imagético, o que o aproxima da realidade apreendida, em uma construção narrativa deste momento. Uma narrativa imagética corresponde ao congelamento dos diversos tempos do evento apreendido, a um só tempo, o tempo fotográfico. Este processo é decorrente do modo de construir a imagem fotográfica e outra vez nos remete ao olhar do fotógrafo/pesquisador6.

O antropólogo Gilberto Velho ao se referir sobre este processo de interpretação social, afirma que: “[...] o pesquisador sempre terá que se defrontar com dois aspectos ou características de qualquer investigação antropológica. [...] seu trabalho é de natureza interpretativa. Não uma interpretação de dados brutos, “objetivos” e “naturais”, mas uma interpretação de interpretações, [...] a maneira como culturas, sociedades e grupos sociais representam, organizam e classificam suas experiências”.

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É nessa construção, aponta Martins, que o fotógrafo imagina que consolida o seu modo de construção fotográfica.7 Sendo assim, o que o pesquisador/fotógrafo constrói em sua imagem, é justamente aquilo que pretende dizer em sua fotografia. Imagens da fé: os recursos e recortes do registro visual Nos estudos da religiosidade popular a imagem contribui para a visualização da experiência entre o humano e o sagrado. Ao fotografar os atos de fé o pesquisador/ fotógrafo constrói um referencial visual que diz sobre a sua experiência junto ao ritual, revelando em sua narrativa imagética cinco pontos cruciais para a construção discursiva da imagem: • A valorização estética na imagem;

• A experiência de fé (a emotividade dos agentes); • A organização ritual; • O registro dos espaços; • A emoção não registrável em textos. A valorização estética da imagem se constitui no ato compositivo da cena a ser registrada. Por mais que se intencione o registro fiel e documental do rito, o que se tem é um recorte compositivo prédeterminado pelo fotógrafo/pesquisador. Esta experiência visual tende a refletir a leitura realizada por esse agente dos participantes do ritual, procurando valorizar olhares, movimentos de tensão e relaxamento das mãos, a relação com o ex-voto, o êxtase do momento de oração, entre outros elementos que dinamizam este momento de fé. A imagem abaixo traduz esse momento estético/religioso:

Imagem 1. Lílian Regina. Chegada de bandeira da Companhia de Reis Santa Luzia, 2008.

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Para o autor este modo de produção fotográfica corresponde a organização compositiva da imagem, uma seleção dos eventos, cuja a definição de seu campo de profundidade, resulta em um modo do fotógrafo juntar no espaço fotográfico o que da fotografia deve fazer parte e o modo como deve fazer parte.

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A senhora que segura a bandeira, elemento que congrega em sua composição os santos festejada no evento,8 é registrada em um raro momento de transfiguração da experiência religiosa. Seu olhar projeta-se para um vazio realçando a gravidade do evento da qual participa e a sua experiência de fé. A bandeira em primeiro plano, com seus adornos e ex-votos à vista, dizem sobre os planos das festas religiosas populares, essa relação estética e devocional com os santos. E para concluir, o plano fechado da composição visual da fotografia concentra-se na senhora e na bandeira, tendo em suas mãos todo o foco de ação dos outros agentes representados (elemento compositivo utilizado como recurso nas outras imagens). A perspectiva diagonal deste plano visual conduz o olhar do observador em um movimento de importância hierárquica entre os elementos da imagem (partindo do primeiro plano, a mulher e a bandeira para as figuras menos representativas para a narrativa da composição, o jovem e o senhor ao fundo, no plano visual direito do observador).

Imagem 2. LOPES, Alan E. C. contramestre recitando versos, 2008. 8

Esta planificação visual da composição fotográfica tem como preocupação relatar o fenômeno observado (imagens 1 e 2). O critério utilizado para a delimitação compositiva das imagens, constitui-se em suas funções narrativas e como estas fornecem elementos de aproximação para abordar a estrutura ritualística, ou seja, uma planificação visual pautada na descrição hierárquica dos elementos ritualísticos valorizando no discurso imagético o seu sentido narrativo assim como o universo emocional dos agentes envolvidos. Na imagem 2, três agentes que representam os Reis Magos das cantorias são registrados perfilados tendo como elemento direcionador do foco visual, o braço do violão no plano centro-esquerdo da imagem. Sendo assim, a imagem fotográfica se constitui como narrativa a partir de suas propriedades de expressão e de conteúdo. Estes elementos que dinamizam a imagem promovem um movimento de aproximação de um terceiro agente ao evento registrado: o leitor. É nesta relação de troca mútua ou dos planos referenciais de experiência e leitura do evento que o leitor se encontra no processo de constituição da imagem fotográfica. Neste sentido, a imagem se estrutura em uma tríplice relação entre o evento, a leitura do pesquisador/fotógrafo e os referenciais do leitor ao entrar em contato com os elementos significativos da composição visual. Mesmo através dos filtros do fotógrafo/pesquisador, o fenômeno cultural torna-se visível ao ter suas cores e ação ritualística colocadas em relevo pelo registro fotográfico. Ocorre na imagem fotográfica o recorte narrativo da dramaticidade na ação ritualística

Nas Folias de Reis, a bandeira é o elemento que congrega os elementos sagrados em diálogo com a cantoria e os participantes do ritual. A sua composição visual é repleta de flores que promovem o seu arranjo decorativo, assim como as fitas coloridas que complementam a simbologia das canções, as imagens do santos Reis e outros santos de devoção dos mestres-embaixadores das Companhias. Todo o ritual de jornada, terços e festa, manifesta-se em seu entorno.

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no contrato entre os participantes. A imagem abaixo tende a transmitir essa conotação, em que o gestual é apreendido em sua ação momentânea, não há a ‘pose’ do evento, o que há é a leitura do fenômeno pelo observador (o pesquisador/fotógrafo).

antropológica, remetendo o tempo registrado a dimensões históricas, da cultura e das relações sociais. Esta dimensão da fotografia é a que coloca o pesquisador/fotógrafo como agente dinamizador do fenômeno social apreendido em diálogo constante com o evento fotografado. O uso popular da fotografia: marcos de uma memória cotidiana

Imagem 3. LOPES, André C. Saudação à bandeira, 2007.

O gesto ‘puro’ em sua ação revela a carga de dramaticidade devocional da cena. Outra vez o plano fechado da imagem hiperdimensiona o conteúdo simbólico da ação. Bandeira e devoto no centro da composição, tendo o gesto de saudação supervisionado e legitimado pelos demais participantes que, com as violas em punho, criam na composição a expectativa da ação de saída, congregando os elementos cruciais em uma jornada de Reis: as violas e a bandeira dos Reis Santos. É nesta perspectiva que, por ser imagem, a fotografia enquanto manifestação sensível agrega diversos decodificadores que possibilitam – em termos de Martins (2002) – o seu descongelamento. As expressões de um rosto, um movimento, os elementos simbólicos do vestuário e do espaço que envolve o ato fotográfico, tendem a revelar na imagem a sua dimensão sociológica e

Processo contrário a ação pesquisador/ fotógrafo, porém, complementar na constituição de um conjunto iconográfico do cotidiano popular, é o exercício de leitura da fotografia como documento histórico. Nesta metodologia de análise é a intencionalidade e o referencial significante da imagem para o agente social pesquisado que é colocado em evidência. O pesquisador se volta para a produção do sentido da fotografia dentro do contexto social de sua produção. Em nossos estudos sobre o universo cultural de algumas famílias de moradores da região norte do município de Londrina, em suas práticas culturais, religiosas e cotidianas, propomos uma semiologia da imagem doméstica a partir do exercício de auto-representação de seus agentes. Nesta semiologia histórico-sociológica do cotidiano cultural popular, toda imagem é tratada como reflexo de uma ação discursiva de seus ‘autores’ (fotógrafo e modelo) em sua ação de registro do evento, o próprio agente em seu grupo social a registrar fenômenos visuais, que discursam e fixam momentos ‘balizes’ em seu trajeto histórico-cultural. Na fotografia popular, nos tradicionais Álbuns de Famílias, a imagem assume um caráter ‘documental’, um registro do evento. A função social da fotografia nesta prática é de registrar a ‘memória’ do momento, atribuindo ao tempo um caráter determinante, em

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particular, em um sentido histórico que se constitui a partir de um referencial emocional: documenta as mudanças físicas do espaço que comporta a história autobiográfica dos agentes, as fases de sua existência e a preservação da memória de entes queridos. Ao ampliarmos as observações para o cotidiano histórico-cultural do conjunto de famílias de moradores da região, promovemos também a abertura entre o cotidiano doméstico e suas representações do contexto históricosociológico que o envolve. Nesta perspectiva, ao pensarmos a fotografia popular, nos deparamos com um registro, um ‘marco referencial’ dos diversos eventos que envolvem a vida do grupo social9. De acordo com Lavelle, a fotografia doméstica é uma forma de linguagem nominativa, que ao retratar o evento, a fotografia o nomeia, materialmente. É o puro ato de registrar, comunicando apenas o evento, sem a pretensão de comunicar nada mais. Segundo a historiadora, a imagem fotográfica sobrevive fora de seu contexto de produção, tornando-se anônima, naquilo que a mesma denomina de ‘memória fantasmagórica do eu’, pois o retrato fotográfico sugere a existência de um indivíduo singular e dotado de uma interioridade que não se perde na sua representação. A partir desta referência estabelecida por Lavelle, o indivíduo é apresentado ao espectador como um fato. Porém, a leitura do conteúdo da imagem projeta-nos para problemas que somente a imagem fotográfica pode nos apresentar. De acordo com Joly (2008), o problema da leitura deste recurso visual encontra-se em sua intencionalidade, pois o autor é o outro, a rede social que estrutura a imagem produz 9

suas próprias inquietações acerca de sua representação. Para a autora, [...] interpretar uma mensagem, analisá-la, não consiste certamente em tentar encontrar ao máximo uma mensagem preexistente, mas em compreender o que essa mensagem, nessas circunstâncias, provoca de significações aqui e agora, ao mesmo tempo em que se tenta separar o que é pessoal do que é coletivo (JOLY, 2008, p. 44).

Neste caso a mensagem fotográfica deve ser lida a partir de elementos que a complementam, de leituras que permitam a comparação de elementos existentes na composição analisada. Contribui para isso, no campo da história oral, o cruzamento entre as fontes orais e visuais, não como elementos distintos em sua natureza, mas como complementos que possibilitam uma leitura mais aprofundada acerca das representações sociais que estruturam o núcleo familiar estudado. Em sua proposta de estudos sociológicos Bourdieu (2006) afirma que a fotografia, enquanto documento de estudos sociais e culturais, encontra no imaginário que a estrutura a sua importância significativa. É esta uma leitura indireta, em que o pesquisador parte da compreensão e interpretação que o agente produtor atribui à imagem, como leitura e consciência de seu universo social. Numa perspectiva geral, esta leitura consiste em isolar na imagem a sua temporalidade, o espaço onde foi produzida, a ação e os agentes representados, assim como o próprio fotógrafo, no intuito de construir uma figura em um universo de configurações possíveis10.

Ao nos referirmos a grupos sociais, nos projetamos aos grupos familiares, círculos de amigos, trabalho, igreja, futebol entre outros. Os exemplos aqui trabalhados pertencem ao universo familiar, restringido ao devocional e ritos de iniciação religiosa. Embasado na história comparada, que se interessa pelo presente, assim como na antropologia comparativa, que se interessa por uma determinada região cultural, Bourdieu, procura em suas análises, apanhar o invariante, ou seja, a estrutura, na variante observada com o objetivo de revelar as particularidades de uma realidade empírica historicamente construída, situada e datada.

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Imagem 4. Acervo da família Camargo Retrato da filha com um ano de idade, batizado, em 1954, em Porecatu – PR11.

Na imagem acima (imagem 4), temos a manifestação desse condicionante factual da fotografia que tem na figura representada a sua limitação discursiva. Para a compreensão deste evento visual é necessário que se entenda a intenção discursiva da imagem (no caso o registro visual da criança batizada, uma lembrança visual), que comportará o seu conteúdo simbólico e a ação do fotógrafo para a construção deste conteúdo. Assim como nos modelos fotográficos analisados por Lavelle, de famílias cariocas do século XIX, encontramos nestas imagens analisadas na década de 1950 do século XX, na região norte do Estado do Paraná, padrões que remontam às antigas técnicas de composição fotográfica de um retrato. É a criança, neste caso, o 11

foco da imagem, e não o evento, o batismo. Temos a fotografia como a materialização do indivíduo, isolado no plano visual. O evento restringe-se a memória contida na narrativa oral da proprietária da imagem. Compositivamente, a criança na imagem está sentada sobre uma banqueta coberta por um pano colorido, tendo ao fundo um pano escuro que a isola de qualquer outro elemento visual que concorra com ela, qual seja, o foco da narrativa imagética, destoando o tema compositivo (anjinho) – talvez uma justificativa plausível para a ausência dos pais na composição. O vestido branco que esconde os pés da criança e que ao mesmo tempo não tocam o chão transmite a sensação de que a criança encontra-se suspensa no ar, como um anjo, único foco luminoso em meio a uma composição escurecida artificialmente por um arranjo de estúdio. A interação entre os familiares da criança e o fotógrafo estabelece o discurso final da composição fotográfica. Nesta interação entre fotógrafo e retratado (no caso da criança, seus familiares), existe uma internalização do outro para o qual se mostra um representarse a si mesmo pelo olhar do outro (LAVELLE, 2003, p. 29). Este auto-representar pode ser constatado na imagem fotográfica abaixo (imagem 5), que foi realizada em meados dos anos de 1950 e pertence à família Camargo (assim como a imagem 4). De acordo com o proprietário da imagem e com as inscrições no verso da mesma, esta fotografia foi registrada em Brasília. Mesmo não se dando ao papel de dizer mais do que pretende, a fotografia em sua condição imagética carrega, em si, um conteúdo próprio que promove, na

As imagens 4, 5 e 6 fazem parte do acervo fotográfico das famílias Camargo e Ferreira, ambas moradoras do Jardim Paulista na Zona Norte de Londrina (setor 1), que numa perspectiva mais ampla, compõe o universo social e cultural que envolve os agentes produtores das Companhias de Reis, reiterando um padrão de representações religiosas que tem num espaço social e tempo social a sua base de convergência.

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leitura do pesquisador, um diálogo com as representações que o agente promovia de si no período. Ela reflete, também, um conjunto de representações da época a se repetir no registro fotográfico.

Imagem 5. Acervo da família Camargo

Na imagem acima toda a composição visual central promove um discurso que minimiza os elementos periféricos. O registro no pára-choque do caminhão ‘Londrina caçula do Brasil’, identifica, na pessoa representada, a sua origem regional. A composição da imagem reforça esta leitura, quando apoiado com o braço direito à cabine do Fiat – FNM, carregado de madeira. O retratado pousa, atraindo toda o foco visual não para a paisagem local onde se insere, mas para si e para o caminhão12. Um último elemento que reforça esta intencionalidade discursiva de um registro do evento, como uma ação documental do período, é a menção sobre a

cidade no verso da fotografia com a seguinte inscrição: ‘Sidade Livre / Brazilia / Estareiera maderence’. Esta perspectiva de observação é possível, a partir do constatar sociológico de que no imaginário social13, a fotografia persiste como a representação verossímil da realidade, atribuindo a esta valores não apenas visuais, mas éticos e estéticos. Esta materialidade da imagem fotográfica constituída, no campo social, só pode ser apreendida através da estruturação do campo simbólico que a envolve. Por ser icônica, a imagem fotográfica torna-se uma representação que ao mesmo tempo em que reflete o aspecto psicológico de seu conteúdo (o marco pessoal, a afirmação de pertencimento em um momento importante na construção histórica recente do país – no caso da imagem em questão: a construção de Brasília) traduz para a análise seus aspectos sociológicos (como a identificação dos muitos agentes participantes deste processo, a identidade regional dos agentes ou o tipo de serviço prestado). Neste sentido, são os aspectos identitários que dentro do espaço social em que a imagem transita que lhe atribuirão suas qualidades socioculturalmente elaboradas construindo nesta imagem a sua conjuntura significante14. Contribui para esta definição, Martins, ao afirmar que a leitura popular da fotografia se propõe, sobretudo, em seus usos:

De acordo com Arnheim, o assunto da imagem promove o deslocamento visual criando um senso de direção e deslocamento na imagem que é favorecido pela ação desproporcional dos pesos visuais presentes na composição. 13 O imaginário social corresponde dentro destes grupos a um conjunto de imagens verbais e visuais gerados no interior do grupo social, através de uma relação consigo mesmo, ou com grupos exteriores a ele, desde grupos próximos a conjuntura universal. De acordo com Baczko, todo imaginário é coletivo não podendo ser confundido com imaginação, uma atividade psíquica individual. Transcendendo estes limites, englobando um denominador comum das imaginações, o imaginário as supera, interferindo nos mecanismos da realidade palpável que alimenta a própria imaginação – política, econômica, social, cultural. 14 De acordo com Joly, a análise da imagem concentra-se na sua produção de sentido, ou seja, na maneira como as imagens provocam significações, isto é, interpretações. Esta definição, de acordo com autora, converte a imagem em um signo, um elemento comunicacional, que comporta em si um significado associado a um referente (no caso da fotografia, visual). A fotografia como signo visual, corresponde a um ícone, ou seja, o seu significante mantém uma relação de analogia com o seu referente, isto implica em uma identificação direta com a imagem representada. 12

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Por trás da imagem, ‘o olhar’: o uso da fotografia em estudos culturais [...] nas formas espontâneas de interpretá-la, nos comentários que suscita, nas recordações que viabiliza, na vivência que promove (MARTINS, 2003, p. 226).

A fotografia atua como um exercício auto-interpretativo do próprio grupo social, servindo como substrato para o estudo da construção social da realidade15.

Imagem 6. acervo da família Ferreira. Grupo de catequistas e catequizandos da paróquia Nossa Senhora do Rosário – Vila Recreio – 1964.

Acerca desta formação social da imagem, temos na imagem fotográfica acima (Imagem 6) – pertencente ao acervo fotográfico da família Ferreira, moradores-fundadores do Jardim Paulista – a presença de pessoas em um marco significativo para estes agentes, a formatura da primeira turma de catequizandos da Paróquia Nossa Senhora do Rosário na Vila Recreio. Nota-se, na imagem, a ausência do prédio da igreja – a fotografia é registrada no pátio. No centro da composição estão às

crianças que compõem esta primeira turma de catequizandos, símbolos do trabalho de todo o corpo humano que as envolve no restante da composição fotográfica. Esta imagem (como veremos mais a frente) registra o início, e acima de tudo, a relação significativa deste evento para os paroquianos envolvidos. Esta semiologia imagética, autorepresentativa do grupo social, possibilita uma análise dos círculos de sociabilidade do grupo. Neste sentido, a imagem fotográfica torna-se um vestígio deixado pela ausência perdida no tempo, permitindo ao pesquisador em sua bricolage recompor, a partir destes marcos referenciais, os pontos nos quais o indivíduo ou a coletividade do grupo social se concentram. Chama-nos a atenção com igual força a sucessão de etapas na memória que é toda dividida por marcos, pontos onde a significação da vida se concentra: mudanças de casa ou de lugar, morte de um parente, formatura, casamento, empregos, festas. As festas de que toda a família participa como o Natal, são mais recordadas do que as mais individuais: formaturas, aniversários (BOSI, 2004, p. 415)16.

A imagem fotográfica atua em uma ação constitutiva de uma identidade presente na memória. De acordo com Bosi (2004), cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Os deslocamentos dos indivíduos promovem alterações sobre estes pontos de vista acerca do referencial coletivo, o que fragmenta na ação individual dos sujeitos

Segundo Pais “[...] o espaço surge como um suporte mediador e cuja mediação se exerce através da sua significação simbólica. Assim, se um contexto social nos permite observar de que modo se regulam distintos estilos de ação, distintas condutas comportamentais, é porque esse contexto nos permite descobrir um espaço de práticas sociais com significados simbólicos relativamente precisos”. (2003, p. 128) Dentro desta lógica o espaço social delimita-se dentro de um contexto que se constrói a partir de normas socializadoras, que se estabelecem para promover a prática e a coesão social. 16 Na perspectiva da autora existe na construção da memória tanto individual quanto coletiva, espaços de referência para a estruturação destas. Existe dentro desta delimitação espacial da identidade do indivíduo ou do grupo, um núcleo espacial que assegura a identidade deste em relação à conjuntura social que envolve os indivíduos e seus grupos. Sendo assim, os indivíduos falam a partir de marcos referenciais, e estes espaços materializam esta permanência da memória acerca do fato. 15

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que compõe o grupo social a estruturação da memória coletiva, transformando esta unidade social em um conjunto de percepções e representações heterogêneas acerca de um mesmo referencial. Para a autora: [...] pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual (BOSI, 2004, p. 413).

Acerca da imagem fotográfica acima (Imagem 6), podemos notar que estas transformações cristalizam o passado como algo imutável, como o conjunto de pessoas a posarem para a lente fotográfica, demarcando um território e um tempo neste espaço, assim como os papéis que cada um representa. Este passado irretocado da imagem fotográfica se faz presente nas representações do passado, transformando o falar em um congelamento fotográfico. Percebe-se neste trecho de entrevista com uma das jovens retratadas (hoje com 65 anos) que, ao se ver na imagem, também projeta sobre esta o seu valor significativo, registrando não só os personagens que compõem a cena, mas sim, a sua relação com um passado social vivo em suas representações presentes: Foi em sessenta e três que ela começou. Ela. A pedra né? Fundamental mesmo, o começo foi num Natal de sessenta e dois ao ar livre. Aí, em sessenta e cinco, no dia vinte e cinco de abril, no dia que frei C. completava setenta e dois anos, aí ele “tava” rezando a missa e ele caiu no altar. Porque a gente. Agora não né? A gente re... Não, reza o Credo ainda na, na, no meio da missa. Só que quando introduziu o Credo, os dominicanos tinham um rito diferente, eles “falava”: – Creio em um só Deus.

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E a gente continuava. Continuava o resto. Então quando ele falou: – Creio em um só Deus. Aí ele caiu morto. “Qué” dizer a parte dele foi terminada né? Que foi é... E caiu, ai. Os congregados cataram ele no altar, “levou” para Casa Paroquial. Aí a gente continuou rezando. Naquela época não tinha Ministro. Aí, quem abriu e colocou o cálice lá no sacrário né? Foi a M. G., e a gente continuou a rezar o terço. Aí depois no outro dia, o Bispo veio e terminou aquela missa e começou outra. A paróquia foi construída pela comunidade, mas veio dinheiro da Alemanha também. Em todas as fases dela né? A primeira fase, veio dinheiro de Malta, da Serra dos Freis Dominicanos. Depois o salão paroquial é... As outras partes né? Veio dinheiro da Alemanha e também dos paroquianos. Nós “teve” feito muitas “quermesse”, feijoada né? Churrasco. Então era bem divertido. Agora isso não tem mais. Como eu falei pra você da dificuldade do vandalismo. Porque “tão” todo mundo em festa lá, festejando. De repente chega um bando de baderneiros e atrapalha tudo. [Quando perguntado a ela a origem destes baderneiros, ela aponta a elementos externos ao seu meio social] (...) Não vem de fora [em relação aos baderneiros]. Você não conhece. E as famílias ficam receosas né? De participar. Como “era” aquelas festas bonitas, que a gente “fazia”. Famílias “participava”. Famílias inteiras. Agora já é mais difícil, que as famílias, as famílias de hoje não quer colocar os filhos em situação de risco né? De perigo. Como é que chama isso? É a... a falta de segurança17.

A partir desta relação entre as duas imagens que se estruturam enquanto memória deste período, a imagem fotográfica como registro de uma memória se torna um mecanismo de sociabilidade visual que oferece aos

Entrevista realizada em setembro de 2006, quando levantamento de fontes para a produção do trabalho de monografia de especialização em Ensino de Sociologia. O local da entrevista foi a residência da entrevistada, na Rua Brigadeiro Franco no Jardim Paulista, em Londrina (PR), próximo a Avenida Melo Peixoto. O trecho extraído faz menção a formação da Paróquia Nossa Senhora do Rosário. A entrevistada é a figura feminina que a parece atrás da segunda criança do plano visual esquerdo do observador. (ver imagem 6)

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indivíduos que a compartilham a espécie de um quebra-cabeça, um fragmento concreto deste tempo social, reconstituído através dos fragmentos deixados pela trajetória do grupo social; uma identidade coletiva gravada na auto-identidade dos sujeitos. Esta relação de analogia da imagem fotográfica com o elemento representado (referente), ou com a memória do evento, coloca a fotografia neste processo de análise como uma representação do vivido, um caminho de entrecruzamento de memórias de um tempo, um espaço social ou um evento. Este caminho permite localizar nas construções individuais do passado de cada indivíduo do grupo, pontos comuns que expõem a lógica de sociabilidade do grupo, que ora se mantém em uma continuidade que se manifesta em seus agentes sociais; ora se constituem através de novas lógicas grupais, que se caracterizam pelo movimento de seus membros, constituindo novas representações oriundas de rupturas entre o individual e o coletivo, ou até mesmo do desmantelamento da coletividade do grupo. Isso revela, na memória destes enquanto agentes sociais ativos, o indivíduo no grupo e a ação do grupo no indivíduo. Considerações finais Procuramos, ao longo deste artigo, apresentar duas perspectivas sobre o emprego da imagem em estudos culturais, assim como as possibilidades de inserção e leitura do pesquisador frente à imagem enquanto produção de seu trabalho de construção de registro ou como documento de análise. A partir de uma perspectiva da discursividade da imagem abordamos as implicações metodológicas de sua produção e análise. A imagem fotográfica, aqui, foi tomada

como um elemento discursivo, passível de intencionalidade, o que nos levou a propor a leitura destas intencionalidades visuais. Nestas perspectivas metodológicas é o espaço social ocupado pelo pesquisador frente à imagem o foco de toda a discussão trabalhada no texto. Assim, a imagem fotográfica foi trabalhada em sua perspectiva icônica enquanto elemento significante de um referente histórico-biográfico, ou antropológico-ritualístico. Para isso, utilizamos dois referenciais visuais que se complementam no estudo das representações da imagem cotidiana de um conjunto de moradores da região norte de Londrina. O primeiro referencial diz respeito à produção da imagem fotográfica enquanto fonte de pesquisa participante procurando envolver, nesta discussão, a posição social de seu autor junto ao grupo e a relação de troca entre as partes presentes na imagem. A intencionalidade é o resultado final da imagem – o estudo através da construção das imagens que, neste caso, a imagem é texto construído visualmente pelo pesquisador. No segundo aspecto, estabelecemos um diálogo com a análise de imagem, tendo como referência metodológica o cruzamento com a história oral. Para isso nos fizemos valer do estudo dos Álbuns de Famílias dos agentes envolvidos na pesquisa. Partimos do referencial significativo da imagem para o produtor, em um movimento de leitura inversa acerca da imagem, pois esta é discurso preso a um tempo social dotado de sentido histórico produzido em um contexto cultural expresso em sua composição. Referências ARNHEIM, Rudolf. Arte & Percepção Visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 1998.

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A Disputa do Imaginário: as representações do cangaço no cinema nacional (1950)

Caroline Lima Santos Professora tutora do curso de Licenciatura em História da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), Mestre em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisa financiada com bolsa de estudo pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Resumo

O imaginário popular sobre o movimento do cangaço inspirou cordéis, músicas e diversos filmes, produzidos no Brasil. Diante disso, convidamos o leitor a pensar sobre a produção cinematográfica da década de 1950, a partir da película “O Cangaceiro”, do cineasta Lima Barreto, que lançou uma nova linguagem cinematografia com esta obra, a linha western. A proposta do artigo na perspectiva do imaginário seria discutir como o mito do cangaço através de filmes. “O Cangaceiro” lançou idéias e representações que ligam o movimento, o seu espaço geográfico, o nordeste brasileiro, a questões referentes à violência, o debate entre o arcaico e o moderno, e as abordagens dadas ao movimento através dos seus personagens. O trabalho focará as possibilidades da relação história-cinema e o cinema enquanto fonte de pesquisa. Palavras-chave: História, Cinema, Cangaço, Representações e Imaginário.

Abstract

The people’s imaginary over the folklore splinter group of the “cangaço”, inspired popular traditional poetry, songs, and several films, produced in Brazil. As a result, we invite the reader to think about the film Industry in the 1950s, starting with the film “O Cangaceiro (The Bandit)” by the movie maker Lima Barreto who with this motion picture launched a new film language, the western line. In the perspective of the imaginary what this article intends to do is to get through films like “O Cangaceiro (The Bandit)” and discuss the myth of “cangaço”, which is their way of living. This film has initiated ideas and representations that are linked; to the movement; its geographical area, the Brazilian Northeast; to issues related to violence; to the debate between the archaic and modern; and to the approaches given to the movement by their characters. This article focuses on the possibilities of the relationship cinema history, and the cinema itself as a source of research. Keywords: History, Movies, “Cangaço”, Representations and Imaginary.

Recebido em: 03/04/2010

Aprovado em: 17/05/2010

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A Disputa do Imaginário: as representações do cangaço no cinema nacional (1950)

Introdução De acordo com tais ilações, a temática relacionada a uma estética do cangaço tornase relevante para o campo da História pois, concomitantemente, aborda o cinema como manifestação artística e espaço de disputa ideológica em torno do imaginário. Portanto, trata-se de perceber como determinados cineastas associaram o cangaço a uma “normalidade” da cultura de violência, transformando-o numa referência que recorda à seca, o abandono, o atraso, resultando em um processo de estigmatização do Nordeste e da naturalização do cangaceiro como selvagem. A partir dessas considerações iniciais, este artigo pretende debater aspectos relacionados ao imaginário social do cangaço, pensando as diversas representações atribuídas ao movimento no ciclo de filmes produzidos no Brasil sobre o tema, ao longo do período que se estendeu de 1950 a 1970. Assim, tem-se como objeto de análise o filme O Cangaceiro (1953) do diretor Lima Barreto, película responsável por inserir o país no mercado cinematográfico internacional e traduzir a história do cangaço para o estilo Western. Considerando o papel desempenhado pelas imagens e o seu poder de aguçar o imaginário, como avaliar o potencial da temática do cangaço no cinema brasileiro?

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Partindo da análise elaborada pela historiadora Élise Jasmim (2006), a qual utilizou a literatura de cordel e filmes do Cinema Novo brasileiro como fontes documentais na sua pesquisa, pode-se compreender tal potencial observando como Lampião, valendo-se dos registros fotográficos e fílmicos de Benjamin Abraão, demonstrou a coesão do bando e lançou ao mundo exterior, principalmente em direção aos seus perseguidores, imagens de dignidade e uma postura de desafio à ordem estabelecida. Conforme Jasmim, com base no parâmetro de ‘clandestinidade exibida’ dos cangaceiros, percebe-se uma espécie de gênese da manipulação da imagem por parte dos grupos considerados criminosos. Da mesma forma os líderes do bando utilizavam este meio de comunicação para desafiar os adversários, mostrando que a existência de homens e mulheres no cangaço representava uma alternativa de vida. As fotos das cabeças cortadas dos cangaceiros – sob um ponto de vista da iconografia – apresentaram uma resposta violenta às provocações de Lampião. Como se sabe, após a emboscada que vitimou o bando, na gruta do Angico, no estado de Sergipe, o mito dos cangaceiros ganhou ênfase nos cordelistas, na literatura e no cinema, nesse sentido nossa proposta seria analisar as representações do movimento do cangaço no cinema nacional, na perspectiva do imaginário.

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A Disputa do Imaginário: as representações do cangaço no cinema nacional (1950)

Da imaginação a disputa de uma invenção: do bandido ao vaqueiro do cinema nacional Por muito tempo, o “imaginário” referiase apenas ao quimérico e à fantasia, assim, a temática não era abordada como objeto de análise científica. No entanto, autores como Bronislaw Baczko (1985) chamam atenção para o fato de que o estudo do imaginário tornou-se possível nas últimas décadas do século passado. Ademais, com o advento da história cultural, o imaginário entrou na moda historiográfica, comprovando o seu valor empírico no estudo e na pesquisa dos símbolos e signos. O estudioso justifica essa resignificação da palavra imaginário ao levantar o seguinte problema: Não será que o imaginário coletivo intervém em qualquer exercício do poder e, designadamente, do poder político? Exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potencia <<real>>, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio. (BACZKO, 1985, p. 298299).

Diante de tais considerações, as noções de imaginário e de representações podem ser colocadas nos seguintes termos: “[...] tem como objeto principal identificar a forma como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler”. (CHARTIER, 1990, p. 40) A partir da definição de representação, observa-se que o estudo do imaginário ultrapassa o “ilusório”, ganhando força real no discurso que envolverá poder e suas relações. O imaginário social e o simbólico fazem parte das diversas formas de poder e suas relações, antes presentes nos ritos e mitos, passaram a ter nas instituições seus guardiões. Nesse momento, o domínio do

imaginário social confunde-se com a história da propaganda, na qual o imaginário estaria a serviço da manipulação. Para Baczko, “é desse modo que se propõe instalar, no coração da vida coletiva, um imaginário especificamente político, que traduziria os princípios legitimadores do poder justo do povo soberano e dos modelos formadores do cidadão virtuoso”. (1985, p. 301). Essa interdisciplinaridade e o foco de trabalhos científicos sobre o imaginário social tiveram como incentivadoras a história das mentalidades e a escola dos Annales, que a colocou em relevo no que diz respeito ao comportamento econômico, demográfico dentre outros campos, já que de acordo com Baczko, o imaginário pode ser usado para “condicionar e manipular as massas, bloqueando a produção e renovação espontânea dos imaginários sociais”. (1985, p. 308). Para tal manipulação entende-se que os meios de comunicações, a exemplo dos visuais e de massa, teriam um papel importante, no sentido de trazer novas representações dos discursos ideológicos contrários aos do Estado totalitário. As propagandas exaltariam os pontos positivos desse Estado, formando um imaginário coletivo capaz de persuadir uma parte significativa da população, pois Uma das funções dos imaginários sociais consiste na organização e controlo do tempo coletivo no plano simbólico. Esses imaginários intervêm ativamente na memória coletiva, para qual, como dissemos, os acontecimentos contam muitas vezes menos do que as representações a que dão origem e que os enquadram. Os imaginários sociais operam ainda mais vigorosamente, talvez, na produção de visões futuras, designadamente na projeção das angustias, esperanças e sonhos coletivos sobre o futuro. (BACZKO, 1985, p. 312).

Seria, então, a construção das representações sociais e culturais na memória

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coletiva que manteria uma ordem social. No entanto, para manter e dar suporte a essas representações necessita-se de instrumentos que trabalhem com essa memória, que o sujeito social visualize e construa um símbolo a partir destas. Para garantir essa dominação simbólica, o controle dos meios de comunicação de massas é fundamental, pois esse suporte tecnológico assegura a circulação de informações e imagens, registrando na memória coletiva signos e símbolos que contribuirão na formação do imaginário social. Nessa perspectiva, tendo em vista as contribuições de Jasmim (2006) e a construção imagética de Lampião nos jornais, cordéis e na literatura, compreende-se que houve a produção de representações do personagem cangaceiro no cinema brasileiro. Entretanto, sobre essa produção intelectual no cinema o autor J. Luciano Cerqueira (1980) chama atenção para as questões que diferenciam os fora-da-lei como Billy the Kid e os cangaceiros. Em um trabalho sobre as personagens do cowboy e do cangaceiro no cinema, o autor evidencia a necessidade de uma história comparativa desses sujeitos, definindo os seus símbolos na arte cinematográfica e na literatura. De acordo com Cerqueira, para estudar sujeitos e os seus movimentos, faz-se necessário reconstituir as realidades vividas no tocante aos aspectos econômicos, sociais, políticos e geográficos – além de suas funções simbólicas na arte cinematográfica e literária e o seu desempenho em diferentes épocas. O fenômeno do cangaceiro, segundo o autor, foi diferente daquele do cowboy histórico. O último marcou a expansão do continente norte americano e a ocupação das terras indígenas por parte do colonizador inglês. Já o cangaço ocorreu em território ocupado. Outro problema está no contexto social e econômico onde se desenvolveu 70

o cowboy pois nesse momento travava-se uma luta de classes, opondo os pequenos proprietários e camponeses aos fazendeiros ricos e escravocratas. Esses elementos históricos diferenciam profundamente esses sujeitos, apresentados por Hobsbawm como bandidos sociais. Historicamente, não existe um elemento consistente que ligue o cowboy ao cangaceiro, de acordo com Cerqueira. No entanto, esses dois sujeitos apareceram no cinema como símbolo de uma categoria específica de filmes, o de bang bang. A figura do cowboy estava designada à do cavaleiro errante, um quase Dom Quixote. Assim surgiram Buffalo Bill e Billy the Kid que, imortalizados pelo cinema, tais personagens traziam consigo um projeto político, pensado e estruturado pela burguesia capitalista norte americana, como assinalou Cerqueira: [...] Exatamente quando as qualidades iniciais do capitalismo americano estão morrendo (o pioneirismo, o gosto pela aventura, etc.) para dar lugar a duas outras características, quais sejam a formação dos monopólios, no plano interno, e o imperialismo, no plano externo – onde as pessoas deverão adquirir novas características (conformismo, obediência, etc.) – pois bem, exatamente nesse momento surge a necessidade para as classes dominantes, de disseminar a impressão de que o tempo dos pioneiros continua. (CERQUEIRA, 1980, p. 123)

Sob essa perspectiva, pode-se entender o cinema como difusor de novas idéias, uma arte que forma novas consciências e um meio de comunicação de massas capaz de comercializar e movimentar um novo produto. O cinematógrafo também poderia convencer politicamente seus expectadores. No entanto, seria necessário adequar seus novos personagens e seus tipos a determinados símbolos. Nesse contexto, o cinema foi um

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A Disputa do Imaginário: as representações do cangaço no cinema nacional (1950)

instrumento na difusão da esperança e uma arma de propaganda de um novo projeto sociopolítico para a população norte americana. Já no Brasil, segundo Cerqueira, houve tentativas de utilizar o potencial do cangaceiro nas artes literária e cinematográfica, além da política. Enquanto o cowboy surgiu em um momento de expansão territorial e econômica, o cangaceirismo teve seu auge num momento de crise econômica profunda, na qual os produtores de açúcar e algodão sofreram com a queda de preços e com a concorrência estadunidense. Foi nesse período de crise econômica e social no Nordeste brasileiro que apareceram as figuras do cangaceiro e das volantes como alternativas possíveis de emprego e trabalho para as classes subalternas. Em síntese, simbolicamente, o cangaceiro representaria a pobreza e a injustiça sofrida, mas, também, a verdade e a bondade. Para o fortalecimento do novo sistema social e econômico brasileiro, fazia-se necessário cultivar determinados “tipos-síntese”, os quais estimulariam a população a superar as contradições do subdesenvolvimento. De mocinho a cangaceiro: de cangaceiro a herói Lucila Bernadet e Francisco Ramalho Jr., (2005) analisando exemplares do gênero western, identificaram alguns elementos semelhantes nos filmes sobre o cangaço. Cronologicamente, os autores trabalham com as produções entre os anos de 1953 a 1965, apontando que, nessas películas, sua característica principal estaria no fato de não tratarem do cangaceiro e sim na trajetória do herói, do mocinho e da mocinha. O problema estaria no personagem do herói, pois este, apesar de pertencer ao bando, não se sentia verdadeiramente um

cangaceiro, tendo ingressado no grupo por circunstâncias diversas. Os autores chamam a atenção para as estórias desses filmes, que estariam pautadas nos conflitos existenciais do herói e da sua decisão de deixar o cangaço. Esteticamente, os heróis, em grande medida, são dramáticos, estáticos e não evoluem, enquanto os personagens cangaceiros foram definidos a partir de um mito – aceito e conhecido, mas não discutido. Bernadet e Ramalho Jr. estabelecem uma comparação entre as estórias e as personagens dessas obras, percebendo que a relação herói-cangaceiro não era o único aspecto comum entre elas, pois também estava presente outra situação: Um conflito que tem dois pólos: de um lado, o cangaceiro propriamente dito e seus valores; de outro lado, os valores que o herói opõe aos primeiros, e que são em geral figurados por uma mulher. Assim, como romântico que não se restringe ao amor: a concretização desse ideal aplica, para o herói, na integração em – reconhecimento por parte de – uma comunidade, suas instituições, suas autoridades e seus membros todos – o povo. É o encontro ou a esperança do reencontro do herói com a mocinha, que desencadeia, no herói, o processo de opor-se ao personagem do cangaceiro, e que o leva finalmente a desligar-se do cangaço. (BERNADET & RAMALHO, 2005, p. 48)

O conflito de valores não colocava o cangaço negativamente, mas apenas expunha os dramas inerentes ao herói, pois os vilões dessas estórias eram representados pelas volantes, pela policia e pelos soldados. As categorias cangaceiro, herói, mocinha e volantes/policia se repetem em todos os filmes analisados pelos autores. O Cangaceiro (1953), o primeiro filme dessa linha e um clássico do cinema brasileiro, criou elementos que foram repetidos em outras películas sobre o cangaço.

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O filme traz cenas que definem bem a história. Em primeiro lugar, exibe a ação do bando de Galdino frente a um grupo do Rio de Janeiro, que estava medindo terras. Aqui, percebe-se dois pontos: o cangaceiro é algo ameaçador e sua oposição aos trabalhos dos funcionários denota a força do “governador do sertão”. Elementos que transformaram as figuras de Lampião e Corisco em mitos. Logo, tem-se nos filmes a mitologia do cangaço. Para reforçar a figura violenta do cangaceiro e seus valores religiosos, o ataque à cidade demonstrava a sua força e selvageria, enquanto o sequestro da professora, a ambição – representada no pedido de resgate. Contudo, o conceito de bandido social estava presente no filme, pois Galdino obriga um cabra seu a indenizar uma senhora, que havia sido roubada. O herói-cangaceiro também libertou pássaros e destruiu gaiolas, demonstrando piedade e senso de justiça. Em O Cangaceiro, não há nenhum compromisso em demonstrar a história do cangaço, trabalhando apenas com o mito e as características próprias e reconhecidas como as dos cangaceiros. O auge da película é a perseguição do bando de Galdino ao herói Teodoro, que foge com a mocinha Olívia. No decorrer da fuga, o público conhece mais a personalidade de Teodoro, compreende e simpatiza com o herói, nordestino, mas que não fazia parte do cangaço. A forma como ele ingressou no cangaço justifica a sua permanência no grupo e o seu amor por Olívia o faz enfrentar e se opor aos valores de Galdino. O encontro entre o herói e o cangaceiro reforçam os estereótipos de ambos: Teodoro sacrifica-se pela liberdade de Olívia; a mocinha representa o ideal feminino, pura, frágil e quase passiva, confiante na proteção do seu herói. A função dramática do filme seria, segundo os autores, o de despertar, 72

trazer à tona na estória, as boas qualidades do herói, que assim se redime. “O Cangaceiro” é a matriz para quase todos os elementos dos demais filmes da linha western. Os autores concluem que, nesses dramas constantes de cangaço, os seus temas, os valores, não denotam que estas películas tratem do “cangaço”. Em nenhum momento aceitam o cangaço ou suas especificidades, além de ser nítida a negação do cangaceiro, ele foi demonstrado com um mal entendido, um fenômeno que ocorreu, ou seja: Assim, o cangaço-herói-de-filme-brasileiro-decangaço – dentro do enredo, com elemento dramático da maior importância – necessita sempre de uma “explicação”: há infalivelmente a explicação justificativa “de como e por que me tornei aparentemente cangaceiro, mas no fundo não sou”. O herói pode então ser “desculpado” do cangaço. (BERNADET & RAMALHO, 2005, p. 49)

De acordo com Bernadet e Ramalho os cangaceiros, interpretados em sua maioria por Milton Ribeiro, nunca foram explicados, apenas foram dados. O mito do cangaço foi absorvido pelo cinema estilo western, provocando a falta de interesse por uma explicação deste. Segundo Célia Tolentino (2001), o filme estilo western, em sua essência, dialoga de forma maniqueísta através de uma luta entre o bem e o mal. Valores como o progresso, as leis, a ordem são vistos como algo bom e civilizado, enquanto a violência é caracterizada como a desordem – característica do mundo rural, que deve ser superada. O cineasta Lima Barreto era um intelectual orgânico da classe média e o seu filme produziu uma representação de sertão e de cangaço, que já começava no momento das filmagens – as empresas e diretores deste tipo de filme geralmente não filmavam na região nordestina, por diversos motivos, dentre

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eles o custo do relocamento. Entretanto, os atores, os roteiristas e o diretor reproduziam a fotografia, a montagem e o figurino a partir de idéias preconcebidas que tinham sobre o cangaço. A esse respeito, Ismael Xavier faz a seguinte consideração: Letra branca em tela preta, a legenda situa no passado, e definitivamente no passado, o universo de Teodoro e Galdino, personagens principais da aventura. Antes de tudo, o cangaceiro é definido como personagem arcaico e a estória já se anuncia como evocação de algo distante do qual estamos irremediavelmente separados. Para se introduzir, o filme prefere à fórmula ‘era uma vez...’, mais confessadamente comprometida com a fantasia, a fórmula do ‘quando havia’, onde o cuidado de confessar a ‘imprecisão’ da época sela a preocupação em acentuar que um dado de realidade inspira o filme. Produto da invenção, ele busca autenticar-se através dessa referência, assumindo-se enquanto retrato de um tipo real humano, o cangaceiro, tal como sugere o título. [...] O filme instala-se no nível do verossímil e não no da veracidade histórica. (XAVIER, 1983, p. 25)

Para Xavier, o cineasta Lima Barreto não tinha compromisso com a história do cangaço, o seu objetivo, possivelmente, seria contar a história desse movimento com o intuito de aguçar nosso imaginário e enxergar nesses homens e mulheres bandidos/as ou heróis/ heroínas. Contudo, deve-se observar as formas de construção de uma obra cinematográfica e quem a construiu, para compreensão das representações sociais atribuídas aos cangaceiros do Nordeste brasileiro, no contexto da década de 1950. É possível que o criador de O Cangaceiro não tenha compreendido a poesia e a estrutura das obras literárias que falavam de sertão, mas Lima Barreto deixou transparecer como a leitura, a exemplo de Os Sertões (1902) influenciou na sua forma de ver o Nordeste.

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El Icono de la Santísima Trinidad de Andréi Rublev: aproximación al estudio de la expresión artística del misterio trinitario en el icono bizantino de la Santísima Trinidad de Andrei Rublev Cecilia Inés Cibeira Profesora y licenciada en filosofía y doctoranda de la Pontificia Universidad Católica Argentina sobre el tema “Antropología icónica”. También realizó estudios en políticas culturales y técnica de la iconografía bizantina. Actualmente se dedica a la enseñanza en la Universidad Católica de La Plata y la Universidad del Norte “Santo Tomás de Aquino”. Es iconógrafa y dirige un proyecto de investigación sobre los aspectos filosóficos de la iconografía bizantina.

Resumen

En la historia de la iconografía trinitaria se destaca el icono de la Santísima Trinidad de Andrei Rublev. Por este motivo lo estudiamos para conocer su génesis, el lugar que ocupó en el tiempo histórico en el que se realizó y qué significa para nuestros tiempos. Palabras clave: Historia de la iconografía; Santísima Trinidad; Andrei Rublev.

Abstract

The Trinitarian iconography history makes the icon of the Holy Trinity by Andrei Rublev evident. This is the reason why it is studied, to know its origins, the place it held in historical time, as well its current meaning. Keywords: Iconography history; Holy Trinity; Andrei Rublev.

Recebido em: 01/05/2010

Aprovado em: 17/07/2010

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El Icono de la Santísima Trinidad de Andréi Rublev: aproximación al estudio de la expresión artística del misterio trinitario en el icono bizantino de la Santísima Trinidad de Andrei Rublev Introducción Nuestro interés consiste en adentrarnos en el estudio del icono de la Santísima Trinidad del iconógrafo ruso Andrés Rublev para ver porqué este icono se presenta como modelo y cómo despierta tanta admiración hasta hoy, hecho que comparte en general con toda la iconografía bizantina: Desde hace algunos decenios se observa un renovado interés por la teología y la espiritualidad de los íconos orientales, señal de una creciente necesidad del lenguaje espiritual del arte auténticamente cristiano (JUAN PABLO II, Carta Apostólica duodecimum saeculum, IV, 11).

La sed simbólica del occidente postmoderno se ve atraída por la belleza del icono. Ahora bien, ¿qué significa representar iconográficamente la Trinidad? ¿En qué sentido esta obra manifiesta un mojón en el mapa trinitario del mundo? ¿En qué momento se alcanzó históricamente la mejor plasmación del misterio? Y, ¿cuál es la actualidad de la imagen de Rublev? Para responder a estas preguntas haremos una introducción a la iconografía bizantina en general, profundizando en los fundamentos teológicos que la sustentan incluyendo un aspecto novedoso en la bibliografía sobre el tema: los fundamentos trinitarios de la iconografía bizantina.

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Posteriormente nos detendremos en la expresión artística del misterio trinitario, primero en general y luego específicamente en la iconografía bizantina. Por último, profundizaremos la obra de Andrés Rublev e intentaremos ponerla en diálogo con lo trabajado en el Módulo 1 del Seminario Filosófico-Teológico dictado por el Dr. Pbro. Lucio Florio EL MISTERIO TRINITARIO COMO HORIZONTE DEL CAMINO HUMANO. Breve referencia a la Historia de la Iconografía en General La Iconografía Bizantina es considerada como escritura de imágenes en tanto se la considera más una teología en colores que una mera expresión artística. Por lo tanto puede ser definida como la representación de Cristo, su Madre y los santos según determinados cánones y siguiendo la tradición de la Iglesia. En relación con su origen, hay distintos aspectos desde donde considerar el tema, ya sea la cuestión artística (origen sirio-palestino, inspirado en el arte antiguo, en la pintura de los frescos, miniaturas y bajorrelieves de los sarcófagos), su estilo y espiritualidad (Bizancio desde los siglos VI a XIV) o su esplendor (Rusia). Pero también se remonta su origen a la tradición de San Lucas (a quien se considera el primero en pintar la imagen de la Madre de Dios que bendijo este arte y a los artistas)

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o la tradición de las imágenes aquerópitas, es decir, realizadas sin intervención humana, desde el relato oriental (el Mandylion) o el occidental (Santa Faz dada por gracia a la ‘Verónica’-vero: verdadero; icono: imagen). Por supuesto también se hace referencia al arte de las catacumbas que lo antecedió como expresión de los cristianos para expresar los misterios de la fe. Ahora bien, en relación a los fundamentos teológicos se considera la Encarnación del Verbo como la expresión Visible del Dios Invisible que, habiéndose mostrado en carne, permitió que su imagen fuera representada. La denominada querella de las imágenes generada a partir del movimiento iconoclasta generó la necesidad de un revisión de los fundamentos de las imágenes y es allí que el uso de imágenes dentro de la religión católica alcanzará su definición dentro de esta disputa y los consiguientes concilios que definieron la teología al respecto. En el Concilio VII se encuentran las herramientas conceptuales que permiten solucionar las herejías respecto a Cristo. Se acepta a Jesús como segunda persona de la Trinidad, con naturaleza humana y divina, verdadero Dios y Verdadero Hombre. En este contexto aparecen los argumentos de León III el Isáurico que, partidario del docetismo, sostenía que debía mantenerse la prohibición del antiguo Testamento y que por lo tanto, Dios que es invisible no puede ser representado. De la misma manera, Cristo tampoco puede tener imagen ya que no se puede representar sufriendo, porque ese hecho histórico ya está en el pasado y al pintar necesariamente debo elegir un aspecto: o lo divino (trascendente) o lo humano (no sufre más). La iconografía bizantina atenderá siempre a este aspecto desde las más diversas formas (inscripciones en las aureolas, del nombre, colores de la vestimenta, gestos

de las manos, etc.,) para señalar la unión hipostática, es decir, la naturaleza humana y divina de Cristo. León III en el 725 declara la guerra contra los iconos, influenciado por el judaísmo y el islamismo. La otra autoridad importante en el Imperio Bizantino en ese momento era San Germán, patriarca de Constantinopla (la capital de Bizancio) y en Roma el Papa era Gregorio II. León III quiere convencer a San Germán en contra de los iconos pero éste se niega y es destituido aunque cuenta con el apoyo del Papa. El primer acto es la destrucción de un Icono de Cristo y se produce entonces un levantamiento popular. Surgen teólogos a favor de los iconos. Entre ellos se destaca San Juan Damasceno, gran defensor de la iconografía y de la Encarnación. La persecución iconoclasta continúa con el emperador Constantino V Coprónimo. Y comienza a amainar entre los años 775 y 780 con León IV hijo del anterior emperador. La siguiente regente es Irene, viuda de Constantino V, quien consigue 27 años de paz. Este período abarca desde el 803 al 820. Muere León IV y su hijo Constantino VI no puede gobernar debido a su corta edad. Irene acepta la iconografía y defiende los iconos –a los que nunca había dejado de venerar- junto con Atanasio, el Patriarca. Siendo ellos autoridad, oriente y occidente celebran en el año 787 el último concilio juntos en contra del iconoclasmo. Este célebre 7° concilio ecuménico o 2° de Nicea (el primer concilio al que ya hemos hecho referencia, concilio de Nicea en el año 325, afirma la Divinidad del Verbo Encarnado) convocado por Gregorio III. En él se excomulga a los iconoclastas y se instituye la fiesta local de TODOS LOS SANTOS por todos los iconógrafos muertos en la

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defensa de los iconos. El concilio aprueba las imágenes (así como el Evangelio hace presente el kerigma con la palabra, el icono lo anuncia con los colores) y declara herejía teórica y práctica al iconoclasmo y se coloca un icono en el Templo de Santa Sofía para su veneración. Sin embargo, se sucederá un segundo período iconoclasta reavivado por León V (813-820) quien convoca un concilio en Santa Sofía apoyado en el aspecto teórico por Juan el Gramático. San Nicéforo no acepta las argumentaciones y se renueva la persecución. En 842 llega como Regente otra mujer, Teodora, que sugiere como Patriarca a Metodio y logran terminar con la persecución. Esta victoria se celebra el primer domingo de marzo del año 843, o sea el primer domingo de cuaresma, y es denominado ‘triunfo de la Ortodoxia’. Sin embargo sucesivas incomprensiones entre oriente y occidente sumadas a cuestiones políticas (cuando los lombardos amenazan Roma, el Papa desconfía del imperio iconoclasta y mira a Occidente y pide ayuda a Pipino el Breve, rey de Francia, quien lo salva de los bárbaros, acción que derivó en el Estado pontificio) generan la ruptura definitiva entre la Iglesia Apostólica Romana y la Iglesia Ortodoxa en 1054.

y agrega una no tan común fundamentación trinitaria del icono que resumimos a continuación por considerarla importante en el contexto de nuestro trabajo. El autor hace referencia a que Dios, fuente y origen de todo, tiene una imagen perfecta de sí: el Hijo, la Palabra Eterna (SCHÖNBORN, 1999, p. 18). Y cita a Atanasio en este sentido cuando habla del Hijo como imagen inmutable del Padre sin gradación ni desnivel de ser:

Un dato sobre los fundamentos trinitarios

Si bien el concilio de Nicea II selló las bases de una teología estética de la Trinidad el único texto del magisterio romano sobre estas cuestiones es el de Benedicto XIV (1745). La necesidad de este texto surge ya que diversos artistas realizaban muy libremente representaciones de la Santísima Trinidad que podían confundir al creyente. El principio central de este texto es que Dios puede ser representado tal como la Escritura dice que Él se ha dignado aparecer,

La generalidad de la bibliografía sobre iconografía bizantina desarrolla el tema de la fundamentación del icono desde diversas perspectivas: tradición, piedad, etc. Y en lo que respecta a los fundamentos teológicos es unánime la referencia a la Encarnación que posibilita el icono. En la obra de Christoph SCHÖNBORN sobre el icono de Cristo, el autor va más allá 78

En el contexto de la teología trinitaria, la noción de imagen pierde toda apariencia de inferioridad (SCHÖNBORN, 1999, p. 23).

Por lo tanto, se trata de una imagen consustancial, donde no hay participación, no hay semejanza, ya que se trata de Dios mismo, hay identidad de esencia. Esto repercute de forma importante en relación con la noción de imagen: Mediante la revelación del misterio de la Trinidad se ha abierto una nueva dimensión de la imagen (SCHÖNBORN, 1999, p. 24).

Por supuesto que esto no contradice la fundamentación cristológica sino que la complementa armoniosamente. Historia general de la Iconografía Trinitaria

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reconociendo con ello tácitamente a los artistas el derecho a recurrir a las teofanías bíblicas para tomar de ellas diversos motivos a la hora de la representación de la Trinidad (BOESPFLUG, 2004, p. 235). Por lo tanto la representación trinitaria fue abandonando las formas desviadas del misterio y, entre las permitidas, es el debate sobre la interpretación de Génesis 18 el que nos interesa en relación al tema que nos ocupa en este trabajo. Au n q u e l a e x é g e s i s o c c i d e n t a l contemporánea no interpreta unánimemente el pasaje como una teofanía trinitaria y existe un debate en este sentido, la tradición iconográfica sí lo usó en este sentido (BOESPFLUG, 2004, p. 239): Será la visión de Mambré la que se abra paso, por primera vez, como una de las más claras “alusiones” al dogma trinitario. Como plasmación iconográfica de la Teofanía de Mambré podemos señalar primeramente al Fresco de la catacumba de la Vía Latina en Roma, fechada hacia el siglo IV, en la que, desde su racismo pictórico, el pincel del artista creyente parece aludir desde la identidad de los tres visitantes celestes a la Trinidad. El autor del mosaico de Santa María la Mayor, también en Roma, es más clarividente en lo que respecta a la identificación de uno de los personajes de la Teofanía, ya que el del centro aparece rodeado de un óvalo de luz, distinción iconográfica que designa a Cristo; la semejanza de los otros dos personajes con la figura central llevaron a relacionarlos con el Padre y el Espíritu. Aun así, un contraste del fresco de la Via latina y del mosaico de Santa María la Mayor a la luz del contrapunto exegético del los principales Padres latinos no termina por aportar desde su interpretación unanimidad en la lectura de la Teofanía de Mambré. No obstante, todo este discurso escriturístico sirvió como base y referencia para extender hasta la Edad media 1

la representación antropomorfa de la Teofanía de Mambré. El arte medieval español, lo asume (RAMOS DOMINGO, 2000, p. 488).

Podemos citar algunas interpretaciones diversas de los Padres en relación a este asunto. Tertuliano e Hilario de Poitiers solo ven en la teofanía de Mambré al Verbo preencarnado acompañado de dos ángeles. San Ambrosio interpreta el pasaje en sentido trinitario en algunas de sus obras, en otras no. Gregorio de Elvira quiere reconocer en las figuras de los ángeles o varones que acompañan al Señor a Moisés y a Elías. Por su parte San Agustín, en su De Trinitate ve en la visión de Mambré la Trinidad de personas en unidad de sustancia, dando plenamente un sentido trinitario a la frase: Tres vidit et unum adoravit (RAMOS DOMINGO, 2000, p. 488). La iconografía bizantina va a recoger esta interpretación. Y sobre esta base irá poco a poco profundizando en la exégesis del texto hasta que nazca sobre esta base el icono de Rublev. Historia de la Trinidad en la Iconografía Bizantina Podemos plantear la historia de este icono desde dos orígenes: por un lado, el origen artístico; or otro lado, el origen espiritual. En relación al origen artístico, el icono de la Trinidad de Rublev hecho en 1425 se inserta en la historia de la iconografía a partir de la representación iconográfica de La visita del Señor a Abraham en Mamré presente en las Sagradas Escrituras en el Capítulo 18 del libro del Génesis1.

El Señor se apareció a Abraham junto al encinar de Mamré, mientras él estaba sentado a la entrada de su carpa, a la hora de más calor. 2 Alzando los ojos, divisó a tres hombres que estaban parados cerca de él. Apenas los vio, corrió a su encuentro desde la entrada de la carpa y se inclinó hasta el suelo. 3 diciendo: «Señor mío, si quieres hacerme un favor, te ruego que no pases de largo delante de tu servidor. 4 Yo haré que les traigan un poco de agua. Lávense los pies y descansen a la sombra del árbol. 5 Mientras tanto, iré a buscar un trozo de pan, para que ustedes reparen sus fuerzas antes de seguir adelante. ¡Por algo han pasado junto a su servidor!». Ellos respondieron: «Está bien. Puedes hacer lo que dijiste». 6 Abraham fue rápidamente a la carpa donde estaba Sara y

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La primera representación del icono incluía todos los personajes del relato. Poco a poco el icono se fue simplificando. Desaparecen los sirvientes, luego Abraham y Sarah,y por último los elementos sobre la mesa quedan representados en una copa que simboliza el sacrificio eucarístico. Y se enfoca la atención en los tres visitantes que, por un lado se tratan como a un Señor, pero también como tres ángeles. Por ello la Tradición ha interpretado el pasaje como prefiguración veterotestamentaria 2 del Misterio de la Santísima Trinidad: E l c o m e n t a r i o l i t ú rg i c o l o d e s c i f ra : “Bienaventurado Abraham, tú los has visto, has recibido la divinidad una y trina (ENDOKIMOV, 1991, p. 248).

Por lo tanto vemos iconos bizantinos donde se representa la escena con todos los personajes: encontramos a Abraham y a Sarah, los tres ángeles, la mesa del banquete donde está el cordero y todos los utensilios de la comida ofrecida, la encina, la carpa y el paisaje. Poco a poco la escena se va simplificando y los personajes desapareciendo y solamente quedan y se resaltan los tres ángeles. Finalmente el icono de Rublev atiende únicamente a este aspecto y se erige como la

representación máxima de tal misterio como más adelante profundizaremos. En relación al origen espiritual de este icono la historia nos remonta a san Sergio de Radonez3. Diecisiete años después de su muerte San Nicón le encarga el icono a Andrés en memoria de él. En el guión de la película dedicada al iconógrafo, Tarkosky pone letra a la carta que un mensajero le hace llegar de parte del monje: En nombre del Señor nuestro Dios y de nuestro Salvador Jesucristo, y de la muy venerada Santísima Trinidad, del Padre, del Hijo y del Espíritu Santo. Andréi, ¿no habrás muerto? Demasiado dura es la hora que le ha tocado vivir a toda la tierra rusa, demasiado pesadas las pruebas para todo el pueblo ortodoxo, pruebas mandadas por nuestro Señor para expiar los pecados nuestros, para recordar nuestras disputas y nuestras rencillas. Y por todo ello no te deseo mal alguno, ni he de regañarte por acto alguno, y te escribo como a un hermano en la fe y en la sangre. Terribles son los tiempos, hermano Andréi, que han llegado. ¡La peste, los tártaros caen sobre nosotros, así como también las peleas entre hermanos! En verdad, en nuestros tiempos, incluso gozando de libertad, los hombres más se parecen a los sepultados. ¡En todos los confines de nuestra tierra se oyen llantos y lamentos! ¡Y en todas partes reina el dolor y la miseria!

le dijo: «¡Pronto! Toma tres medidas de la mejor harina, amásalas y prepara unas tortas». 7 Después fue corriendo hasta el corral, eligió un ternero tierno y bien cebado, y lo entregó a su sirviente, que de inmediato se puso a prepararlo. 8 Luego tomó cuajada, leche y el ternero ya preparado, y se los sirvió. Mientras comían, él se quedó de pie al lado de ellos, debajo del árbol. 9 Ellos le preguntaron: «¿Dónde está Sara, tu mujer?». «Ahí en la carpa», les respondió. 10 Entonces uno de ellos le dijo: «Volveré a verte sin falta en el año entrante, y para ese entonces Sara habrá tenido un hijo». Mientras tanto, Sara había estado escuchando a la entrada de la carpa, que estaba justo detrás de él. 11 Abraham y Sara eran ancianos de edad avanzada, y los períodos de Sara ya habían cesado. 12 Por eso, ella rió en su interior, pensando: «Con lo vieja que soy, ¿volveré a experimentar el placer? Además, ¡mi marido es tan viejo!». 13 Pero el Señor dijo a Abraham: «¿Por qué se ha reído Sara, pensando que no podrá dar a luz, siendo tan vieja? 14 ¿Acaso hay algo imposible para el Señor? Cuando yo vuelva a verte para esta época, en el año entrante, Sara habrá tenido un hijo». 15 Ella tuvo miedo, y trató de engañarlo, diciendo: «No, no me he reído». Pero él le respondió: «Sí, te has reído». 2 Cfr. La polémica aclarada en el punto anterior. 3 “San Sergio de Radonega (1313-1392) no ha dejado ningún tratado teológico, pero su vida entera estuvo consagrada a la Santa Trinidad. Objeto de su contemplación incesante, este misterio divino derrama en él y hace de él esa paz encarnada con que resplandecía visiblemente ante todos. Dedicó su iglesia a la Trinidad y se esforzó en reproducir una unidad a su imagen en su entorno inmediato y hasta en la vida política de su tiempo. Se podría decir que reunión a toda la Rusia de su época alrededor de su iglesia. […] En la memoria del pueblo ruso permanece como el protector celeste, el consolador y la expresión misma del misterio trinitario, de su Luz y de su Unidad” (ENDOKIMOV, 1991, p. 246).

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El Icono de la Santísima Trinidad de Andréi Rublev: aproximación al estudio de la expresión artística... Y por todo ello, como ya sabes, no está firme entre el pueblo la fe en la fuerza de nuestra Iglesia Ortodoxa. Y la verdad es que no te miento al decirte que muchos no creen en absoluto que algún día llegue por fin a nuestra tierra rusa el reino de la verdad y el imperio del bien… No puedo yo permitir que el pueblo caiga en manos del diablo, y por todo ello he decidido, en honor y para mayor gloria de la Santa Iglesia Ortodoxa nuestra y para aún mayor gloria de nuestro Santo Sergui de Rádonezh, construir la catedral de la Trinidad y hacerlo de piedra y adornarlo ricamente con todos sus atributos. ¡De modo que apelo a tu razón, tu corazón y tu Fe! Regresa al monasterio de la trinidad, adorna nuestro templo como te plazca, pues a tu arte mis pensamientos y a mi mismo entrego. ¡Créeme, pues aquello que para mí busco para ti lo deseo! ¡Dios misericordioso te perdonará que rompas con tu promesa, pues gratos le serán los altos fines con que has de guiarte! Y si hasta hoy me guardas rencor y crees que únicamente me ocupo de las cosas mundanas y asuntos de dinero, allá tú. Entonces te dije las cosas como eran. ¡Ante Dios estoy limpio de pecado, pues en mi no he gastado ni una moneda de lo recogido! Como tampoco te pido que pintes el templo para alegrar mis ojos. Que la paz sea contigo, hermano Andréi, y si por algo estás disgustado comigo, te pido que me perdones en lo que te haya podido ofender. Nikon.

Por lo tanto, la tradición nos muestra que el origen espiritual del icono de la Santísima Trinidad de Rublev tiene su origen en la contemplación de San Sergio. La primera capilla en honor de la Trinidad que construye San Sergio fue destruida por el fuego y por las invasiones de los tártaros. Una nueva iglesia de piedra es destruida también por los tártaros en 1408. Rublev se inserta en la tradición de este monje ruso y en la iglesia que él había erigido pinta la Trinidad a pedido del monje sucesor de san Sergio, san Nikón que reconstruye una nueva iglesia de cúpulas doradas (1409-1411) después de las

destrucciones. Entre 1422 y 1426 Rublev se encarga de la decoración del iconostasio. En este contexto de división y guerra, de sufrimiento y desolación, como nos lo ilustra la carta citada anteriormente y lo narra la historia, el Iconógrafo, en el espíritu trinitario de San Sergio, elige representar el amor que vence la división: En vez de pintar escenas de guerras o el temible juicio final, pinta el misterio de la Trinidad (CODINA, 1997, p. 98).

Este icono será fuente de renacimiento espiritual para los visitantes hasta que acaba siendo olvidado y oscurecido por el humo de las velas. Entre 1905 y 1926 es restaurado y se descubre la viveza de los colores originales. Hoy en día se encuentra en el museo de la Galería Tretiakoff de Moscú (CODINA, 1997, p. 98). En el concilio de los 100 capítulos se erige este icono como modelo de la iconografía y asimismo de todas las representaciones de la Trinidad (ENDOKIMOV, 1991, p. 248). Explicando el icono Los escritos explicando este icono son numerosísimos. Sin embargo en la mayoría encontramos una referencia unánime – explícita o no – a la exposición dada por Paul Endokimov en su Teología de la belleza. Por lo tanto nos guiaremos por esta última de la que haremos una breve síntesis. Endokimov explica el icono desde tres planos: la reminiscencia del relato de Mamré; la economía divina; el tercer plano intra divino. El primero representa la visita de los tres misteriosos hombres a Abraham. El segundo nivel señala el designio salvífico de Dios de que el Hijo se encarne y muera para salvar a la humanidad. Y el tercero representa la

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comunión trinitaria. Los tres niveles se funden en el icono en movimiento circular, ya que esta es la figura geométrica que sostiene los tres personajes principales: […] recrea el ritmo mismo de la vida trinitaria, su diversidad única y el movimiento de amor que identifica las Personas sin confundirlas (ENDOKIMOV, 1991, p. 247).

Los tres ángeles representan las tres personas: Padre, Hijo y Espíritu Santo. Hay diversidad de interpretaciones en relación a cuál de los ángeles representa a cada persona. Sin embargo la identidad de rostros apela a la Unidad de Dios. Sin embargo el ángel del centro podría ser el Hijo ya que tiene las vestimentas con las cuales la iconografía bizantina representa a Cristo. El de la izquierda, el Padre; sus vestimentas son etéreas y por último, a la derecha, el Espíritu cuyo color verde evoca la vida. Están sentados a la Mesa en tronos que señalan su dignidad. Tanto en la mesa como en los tronos se aprecia la perspectiva invertida propia de esta expresión artística que tiene como objetivo causar en el contemplador su entrada a la escena. Sobre la mesa: la copa, dentro de ella algunos autores señalan que se encuentra el cordero degollado, otros el rostro del Cristo en la Cruz. De cualquier forma, representa el sacrificio del Verbo que se entrega al Padre para la redención de la humanidad. Por detrás de los ángeles, tres elementos: un templo-casa: la humanidad, la Iglesia, la nueva Jerusalén, la casa del Padre; un árbol que simboliza la cruz, el árbol de la vida y por último la roca que simboliza el cosmos. El movimiento del icono está logrado por las miradas de los ángeles que invitan al observador a entrar en el diálogo trinitario: El movimiento parte del pie izquierdo del ángel de la derecha, continúa en la inclinación de su 82

cabeza, pasa al ángel de en medio, arrastra irresistiblemente el cosmos: la roca, el árbol, y se resuelve en la posición vertical del ángel de la izquierda donde entra en reposo, como en un receptáculo ENDOKIMOV, 1991, p. 250).

En esas miradas, el Hijo mira al Padre y se inclina en actitud de obediencia, el Padre observa al Espíritu, solicitando el auxilio hacia el Hijo en su Misión y el ángel de la izquierda contempla la copa, que es el centro geométrico del icono. Las miradas le dicen al hombre que la vida trinitaria en su diálogo eterno tiene como tema al hombre y su destino. Cuestiones trinitarias derivadas La iconografía bizantina tiene por autor a la Iglesia, por tanto, las representaciones de los iconos lo son de los Misterios de la fe presentados por la Teología. Y si bien cada icono representa un motivo, por lo general, derivan en la contemplación de todo el Misterio de la Fe. Es así que los iconos de la Madre de Dios son iconos de la Redención, el icono de la Natividad conduce a la contemplación de la Pascua y también el icono de la Trinidad manifiesta a través de sus elementos y su movimiento el Misterio de la fe. Por otra parte, la hermenéutica de la obra de arte permite que – aún atendiendo al Magisterio – el observador recree en su contemplación diversos aspectos desde su horizonte. Atendiendo a lo dicho, plantearemos algunos aspectos que se derivan del icono que estudiamos. Si pudiéramos subtitular el icono de la Santísima Trinidad, sería una buena opción elegir “El icono de la unidad en el amor”: “Una poderosa llamada se desprende del icono:

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El Icono de la Santísima Trinidad de Andréi Rublev: aproximación al estudio de la expresión artística...

“Sed uno, como el Padre y yo somos uno” (ENDOKIMOV, 1991, p. 258). El misterio de la perijóresis o circumincesión se ha logrado acertadísimamente en la geometría que sostiene el icono haciendo entrar los tres ángeles en el círculo. El círculo permite mostrar la íntima comunión, pero a la vez es un continuo darse, un dinamismo puesto en el magnífico juego de las miradas que celebra el diálogo absoluto en el amor. ¿Por qué? Porque el tema del diálogo parece escucharse sutil pero firmemente para el oído atento. Desde el icono las voces eternas habla de un darse en plenitud a la creatura humana, donde termina el diálogo de las miradas: en el centro geométrico del icono, en la copa del Sacrificio, en la Redención: “Ves la Trinidad si ves el Amor”4. Es la expresión del darse en las diversas kenosis. Por otra parte, la belleza artística de este icono hace justicia a la Belleza que esplende en la Bondad y Verdad del Misterio Trinitario. De lo dicho se desprende un aspecto interpelante. Citando la advertencia de Rahner. “[…] si, por un absurdo, Dios no fuera trinitario, no habría que cambiar casi nada de los manuales dogmáticos y de los libros de espiritualidad del momento”5. ¿Cuál es la interpelación?: La Iglesia absoluta de las Tres Personas divinas se establece como imagen conductora de la Iglesia terrestre de los hombres, comunidad del amor mutuo, unidad en lo múltiple, unidad de todas las personas humanas en una sola naturaleza recapitulada en Cristo (ENDOKIMOV, 1991, p. 245).

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La iconografía bizantina tiene en su vocación más profunda la invitación al hombre a reconocer su vocación icónica de iluminarse por la gracia del Espíritu Santo en su realización plena en el camino de cristificación. Ahora bien, el icono de la Santísima Trinidad da un paso más y completa la invitación que, a través de Cristo, introduce al hombre en el misterio trinitario: El hombre es imagen del Dios trinitario; en su naturaleza la Iglesia-Comunidad se inscribe como su última verdad. Todos los hombres son llamados a reunirse alrededor de la misma y única copa, a ascender hasta el nivel del corazón divino y tomar parte en la comida mesiánica, hacerse un solo Templo-Cordero (ENDOKIMOV, 1991, p. 258).

Y como en el icono, el llamado se hace comunitario: Sea cual fuere el modelo histórico concreto, lo perdurable es la vocación de todo pueblo a actualizar su realidad de “[...] eikon” trinitario (FLORIO, 2000, p. 219).

El llamado a hacerse Eikon trinitario, el hombre y su otro, a través de Cristo. Conclusión Boespflug se pregunta: “¿La Trinidad será un “tema” en vía de extinción en el Arte”? (BOESPFLUG, 2004, p. 243). La ausencia de una producción que merezca el calificativo de significativa para la segunda mitad del siglo XX podría contribuir a explicar el sorprendente éxito del icono de Rublev en el mundo católico, icono que ha venido a ocupar desde el año 1975,

Cf. San Agustín, De Trinitate, VIII, 8, 12: CCL 50, 287 citado por Benedicto XVI, Deus caritas est, p. 45. Cfr. “El Dios Trino como principio y fundamento trascendente de la historia de la salvación”, Mysterium Salutis, t. II, Madrid (2º) 1977, págs.269 ss, citado por Florio, L., Mapa Trinitario del mundo, pág. 104.

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sin que nadie pudiera preverlo, el lugar dejado vacante por el “[...] arte moderno” (BOESPFLUG, 2004, p. 244). Esta ausencia podría explicarse también en relación a la mencionada ausencia del tema Trinitario que denuncia Rahner6. En este sentido el icono de la Santísima Trinidad con su perspectiva invertida invita al hombre, más que cualquier otro icono, a entrar en el misterio trinitario como el cuarto comensal, invitado privilegiado del Amor. Y es así que la experiencia trinitaria todavía necesita ser incorporada, encarnada, en el fiel, en la Iglesia. Por otra parte y como última conclusión queríamos destacar el aspecto comprometido de esta obra. Por su dulzura y belleza, la iconografía en general y este icono en particular podrían ser objeto de crítica frente a una de las que santo Tomás considera la más importante objeción a la existencia de Dios: el mal. Ahora bien, cuando comprendemos la génesis de la obra, la experiencia personal de Rublev su autor artístico y la experiencia espiritual de san Sergio, su autor teológico, podemos ver que este icono quiere ser respuesta a la experiencia de muerte, dolor, agonía, guerra e incomprensión de la dolorosa experiencia de los rusos de ese tiempo. Por lo cual la obra no es un escapismo estético dulcificado para evadirse – un poco la propuesta esteticista postmoderna – sino compromiso en tiempo y espacio, el misterio hablando al aquí y ahora, como en la Rusia del siglo XV. Creemos no ser caprichosa nuestra interpretación si leemos el icono desde la

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misma oración con la que San Sergio nos invita a contemplarlo: “Venced la dolorosa división del mundo contemplando la Trinidad”. Referências BENEDICTO XVI. Deus caritas est. Carta Encíclica del Sumo Pontífice Benedicto XVI sobre el amor Cristiano. Buenos Aires: San Pablo, 2006. BOESPFLUG, François. La Trinidad en el arte: un balance teológico. Estudios Trinitarios, Salamanca, v. 38, n. 2, Mayo-Agosto 2004. CODINA, Víctor. Los caminos del Oriente cristiano: iniciación a la Teología Oriental. Cantabria: Sal térrea, 1997. ENDOKIMOV, Paul. El arte del ícono: teología de la beleza. Madrid: Publicaciones Claretianas, 1991. FLORIO, Lucio. Mapa trinitario del mundo. Salamanca: Secretariado Trinitario, 2000. JUAN PABLO II. Carta apostólica duodecimum saeculum a los obispos de la iglesia católica al cumplirse el xii centenario del ii concilio de nicea, Disponible en: http://www.vatican.va. Búsqueda en: 01/04/2010. RAMOS DOMINGO, José. Tipología Trinitaria en el arte español. Estudios trinitarios, v. 34, n. 3, sept./dic. 2000. RUTA, Juan Carlos. De Verbo Incarnato VI, La Santísima Trinidad en Sí misma y en y con nosotros. La Plata: Fundación Santa Ana, 2004. SÁENZ, Alfredo. El ícono, esplendor de lo sagrado. Buenos Aires: Ediciones Gladius, 1998. SCHÖNBORN, Christoph. El icono de Cristo: una introducción teológica. Madrid: Ediciones Encuentro, 1999. TARKOVSKI, Andréi. Andréi Rubliov: el guión literário. Salamanca: Sígueme, 2006. ZENDLER, Egon. L’icona, immagine dell’invisibile. París: Edizioni Paoline, 1981.

Cfr. El parágrafo anterior de este trabajo.

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A Apreensão Espacial na Sociedade Italiana do Pós-Guerra

Denaldo Alchorne de Souza Graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialização em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), graduando em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e docente efetivo do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Tem experiência em História do Brasil República, com ênfase no estudo da construção da identidade nacional através do futebol, do cinema, da música, das festividades, dos quadrinhos e de outras atividades culturais.

Resumo

O presente trabalho procura investigar a apreensão espacial dos italianos no período posterior à Segunda Guerra Mundial através da análise dos filmes Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica, e Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini. Palavras-chave: Cinema; Espaço Social; História da Itália.

Abstract

This work aims to investigate the spatial understanding of the Italians in the period after the Second World War through the analysis of films Roberto Rossellini’s Open City (1945), Vittorio De Sica’s The Bicycle Thief (1948) and Federico Fellini’s Nights Of Cabiria (1957). Key words: Cinema; Social Space; History of Italy.

Recebido em: 06/05/2010

Aprovado em: 11/06/2010

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A apreensão espacial na sociedade italiana do pós-guerra

Este texto tem como objetivo apresentar um estudo que incorpora o cinema ao conjunto das fontes historiográficas. Já há algum tempo o cinema é utilizado pelo historiador como objeto de análise e como um desafio metodológico. Segundo Marc Ferro, o filme deve ser observado pelo historiador: [...] não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas. Ele não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza (FERRO, 1992, p. 87).

A temática escolhida para o estudo em questão foi a apreensão espacial feita pela sociedade italiana em diferentes momentos do período posterior à Segunda Guerra Mundial através da análise de filmes do NeoRealismo italiano. Este movimento cinematográfico se consolidou em 1945 com o filme Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini. Além de Rossellini, inúmeros outros diretores se destacaram como Luchino Visconti e Vittorio De Sica. Através deles, o cinema italiano atingiu o seu apogeu em filmes que falavam da situação social das áreas urbanas e rurais do país após a Segunda Guerra Mundial. A partir de 1953, o Neo-Realismo passou por algumas modificações, quando diretores como Federico Fellini e Michelangelo Antonioni passaram a optar por um cinema mais intimista e filosófico. No entanto, a influência do movimento manteve-se durável 86

não apenas na Itália como em todo o mundo. O Neo-Realismo influenciou, especialmente, os países periféricos que viam nessa nova proposta uma alternativa que possibilitava conciliar a carência financeira com a opção de fazer filmes mais comprometidos com a realidade social terceiro-mundista (FABRIS, 1996). No cinema neo-realista, a linguagem era a mais documental possível, procurando captar o cotidiano dos operários, camponeses e pescadores. Na pobreza em que a Itália vivia, naquele momento, só era possível realizar um filme com o mínimo de recursos. Para isso, os cineastas usavam atores poucos conhecidos e até não profissionais. Foram abandonados todos os aparatos do cinema tradicional, substituindo os estúdios pelas ruas. Essas escolhas só faziam ressaltar ainda mais o realismo na tela. André Bazin nos fala que: A margem de perda do real implicada em qualquer tomada de posição “realista” permite muitas vezes ao artista multiplicar, pelas convenções estéticas que ele pode introduzir no lugar que ficou vago, a eficácia da realidade escolhida. Tem um exemplo notável disso com o cinema italiano recente. Por falta de equipamento técnico, os diretores foram obrigados a gravar posteriormente o som e o diálogo: perda de realismo. Livres, porém, para brincar com a câmara sem relação com o microfone eles aproveitaram para estender seu campo de ação e sua mobilidade, de onde veio o acréscimo imediato do coeficiente de realidade (BAZIN, 1991a, p. 246).

Portanto, a precariedade técnica possibilitou que a câmara cinematográfica

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A apreensão espacial na sociedade italiana do pós-guerra

pudesse encontrar espaços geográficos como vielas e cortiços que, no cinema tradicional, ficavam escondidos. Porém, essa opção pelo realismo não se devia somente a precariedade econômica, mas também a opção dos cineastas de olhar para a realidade em que viviam. Quando o cineasta neo-realista filmava um espaço, ele procurava vivenciar a realidade filmada. Nesse sentido ele se aproximava da observação participante do antropólogo. Porém, ia além, pois o antropólogo não perde o seu distanciamento, tem a consciência que não pertence àquele espaço estudado. Já o cineasta neo-realista estava inserido na temática, ele vivenciou de alguma forma a resistência do período da Guerra, as dificuldades econômicas do pós-1945 e a ascensão econômica da Itália nos anos 1950. Ele fez parte dessa realidade. Entre as inúmeras influências que o NeoRealismo deixou para o cinema mundial queria aqui ressaltar a inovadora descrição do espaço social através de seus contrastes. No cinema clássico, a utilização dos espaços quase nunca assumia uma função descritiva. Em Rastros de Ódio (1956), de John Ford, por exemplo, os grandes planos utilizados para retratar o personagem Ethan Edwards (John Wayne) no Monumental Valley têm uma função mais psicológica – mostrar a solidão e a amargura do personagem – do que descritiva. Se ficamos maravilhados com a paisagem do deserto americano, pouco sabemos sobre esse deserto: onde começa, onde acaba, quais as suas contradições, como viviam seus habitantes. É como se esse deserto fosse mais idealizado do que real.

No Neo-Realismo, ao contrário, a utilização do espaço tinha uma função quase documental. O cineasta via o espaço não somente com as características físicas que lhe era atribuído por quem o ocupava, mas também, e, principalmente, com o significado social que os indivíduos lhe conferiam. O espaço não estava desvinculado da sociedade. Ele era um produto histórico e, portanto, inseparável da reprodução e transformação da sociedade. Nesse sentido, o cineasta era parte integrante deste espaço e, ao filmá-lo, relatava também as relações sociais vividas, as diversões, os conflitos, as alianças e as vivências carregadas de significados dos italianos daquele determinado período histórico1. Portanto, através do olhar do cineasta neo-realista sobre o espaço retratado, poderemos apreender as transformações históricas por que passou a sociedade italiana. Assim, um mesmo espaço pode estar presente em filmes de distintas épocas, porém o olhar cinematográfico sobre esse espaço mudou, as preocupações do cineasta sobre a realidade mudaram, consequentemente a sociedade italiana também mudou. Pa ra c h e g a r m o s a e s s e s o l h a re s diferenciados da sociedade italiana, escolheremos três filmes de épocas distintas que abordam um mesmo locus: a cidade de Roma. Os filmes são Roma, cidade aberta (1945), Ladrões de bicicleta (1948) e Noites de Cabíria (1957). No filme Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, italianos de diversas origens sociais e tendências políticas se unem para lutar contra a ocupação nazista (BAZIN, 1991b,

Para Armand Frémont: “Numa acepção bastante vaga, o espaço social define o território de um grupo ou de uma classe numa dada região: o espaço social de uma família, dos operários de uma fábrica, das mulheres de uma aldeia, das pessoas idosas de uma cidade... Uma concepção mais rica e mais sintética faz do espaço social uma malha na trama das relações hierarquizadas do espaço e dos homens: num território relativamente restrito, mas não pontual, uma combinação bastante forte das relações dos homens entre si, e dos homens com os lugares, distingue-se por uma coerência particular, de que os homens e as mulheres do grupo têm nítida consciência” (1980, p. 145).

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p. 318-320; GOMES, 1982a, p. 240242). Figuras significativas são Manfredi, um intelectual e militante comunista, Don Pietro, um padre, e Francesco, um operário, que representam a união de grupos políticos diferenciados contra o invasor. Porém, eles não são protagonistas. O grande herói é o povo italiano que resiste ao ódio, à intolerância e não se entrega ao desespero. A psicologia de cada personagem é evitada, deixando que eles se movam no espaço geográfico da cidade de Roma. A resistência se dá em diferentes lugares de Roma: do apartamento estilo classe média de Manfredi aos apartamentos operários de Francesco e de Pina, da Igreja de São Clemente ao esconderijo na gráfica comunista. Todos esses lugares estão resistindo aos espaços de cooptação – o cassino onde trabalham Marina e Lauretta e a confortável casa de Marina – e de ocupação – o Quartel-General dos nazistas. A cidade de Roma propriamente dita, isto é, os espaços abertos e públicos, não é dos ocupantes nem dos resistentes, está em disputa, é um espaço aberto como o próprio título do filme sugere. Neste sentido, é interessante notar que o filme abre e fecha com planos gerais da cidade de Roma. Se no início vemos os militares alemães marchando sobre a cidade ocupada, no plano final são as crianças italianas que caminham para um futuro. Para Rossellini, não teria significado, em 1945, mostrar as diferenciações sociais e econômicas existentes entre os bairros ricos e suburbanos, já que o inimigo a ser derrotado unia pessoas de diferentes classes e tendências políticas. Porém, três anos depois, a recém-inaugurada República Italiana ainda estava mergulhada nas dificuldades econômicas e sociais de um país destruído pela Guerra. No plano político, travavase uma luta ideológica entre democratas 88

cristãos, socialistas, comunistas e neofascistas sobre o caminho que deveria ser trilhado pela nova República. Como conciliar a necessidade econômica com a ética? É diante desta nova questão que Vittorio De Sica se debruçou em Ladrões de Bicicleta (1948) (BAZIN, 1991c, p. 324-277; BAZIN, 1991d, p. 278-294; GOMES, 1982b, p. 124-127). No filme, o diretor optou por retratar uma ‘micro-história’, o roubo de uma bicicleta de um semi-empregado, Antonio Ricci, e a perseguição deste e seu filho Bruno ao ladrão pelas ruas de Roma. Através dessa história observamos uma descrição realista da geografia da grande cidade de Roma. O espectador sai do filme compreendendo a dinâmica espacial que tem como principal característica a dicotomia entre o subúrbio e o centro da cidade. O subúrbio é associado ao mundo da solidariedade, ou onde ela é possível. É o espaço onde se encontra a mulher amada e os filhos, onde todos se identificam, são trabalhadores, pobres, moram em apartamentos parecidos. É o espaço onde é possível a cooperação: trabalhadores sindicalizados discutindo problemas políticos comuns, organizando espetáculos comunitários e onde é possível encontrar ajuda nos momentos mais difíceis. A grande cidade, ao contrário, é associada ao mundo da incerteza, da desordem e da individualidade. É o espaço onde tudo se confunde: o rico e o pobre, a autoridade e o trabalhador. Quando roubam a bicicleta de Ricci, criase uma justificativa para que os personagens façam uma viagem pela cidade de Roma e nos mostre suas contradições. Na verdade, os personagens irão fazer uma via-crúcis pelo inferno associado à vida de uma grande cidade. Ricci e seu filho irão procurar o ladrão, primeiramente, na feira de peças de bicicleta. A partir daí, eles irão percorrer as ruas de Roma.

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A apreensão espacial na sociedade italiana do pós-guerra

Iremos ver amplas avenidas e ruelas imundas; locais que se praticam a religião popular – a vidente – e onde praticam a religião oficial – a igreja assistencialista; o prostíbulo e a central de polícia; o restaurante requintado e a casa miserável onde mora a mãe do ladrão e, no final do filme, um grandioso estádio de futebol onde uma multidão sem identidade – massa – se diverte. Porém, essa descrição tem um caráter amargo. Quando Ricci encontra o ladrão de sua bicicleta, se depara com uma realidade igual a sua: um espaço com suas carências e misérias, mas também com sua solidariedade. É a solidariedade entre os moradores do bairro do ladrão que impede Ricci de conseguir de volta a sua bicicleta. Esse episódio nos salva do maniqueísmo de considerar o ladrão uma pessoa ‘má por natureza’, mas também nos coloca num problema maior. Se o ladrão não é o culpado pela miséria e pobreza do protagonista – ele vive em condições econômicas bem piores que Ricci – de quem é a responsabilidade? Como sobreviver em tal mundo? Nesse momento o filme consegue sair da ‘microhistória’ inicial para nos colocar novamente na História da sociedade italiana daquele momento. Qual o caminho que a sociedade italiana empobrecida deve tomar? Já o filme Noites de Cabíria de Federico Fellini foi feito quase dez anos depois. A sociedade tinha se modificado. A reconstrução econômica da Itália com a implementação do Plano Marshall contribuiu para a derrocada do clima fatalista do Neo-Realismo italiano dos primeiros anos. Se o Neo-Realismo refletia a realidade, o estilo neo-realista deveria mudar porque agora a realidade era outra (GOMES, 1982c, p. 434-437). No filme de Fellini vemos outra vez a dicotomia entre subúrbio e grande cidade. O subúrbio continua sendo retratado como um local de pobreza, falta de infra-estrutura,

mas também de pessoas simples, solidárias e honradas. A grande cidade é retratada como o espaço onde as coisas acontecem, onde é possível buscar a realização de um sonho. Porém, nessa dicotomia entre subúrbiocidade, algumas mudanças em relação a Ladrões de Bicicleta são observadas. O sonho do suburbano não é mais sair da pobreza e conseguir um emprego rentável, seguro e digno. Cabíria é uma prostituta, porém ela não tem vergonha de ser prostituta e não se sente menos digna por isso. O seu sonho não é material, mas emocional. Ela não despreza de modo algum sua profissão. E se existissem cafetões de coração puro capazes de compreender as pessoas e de encarnar, sequer o amor, mas a confiança na vida, ela provavelmente não veria nenhuma incompatibilidade entre suas esperanças e suas atividades noturnas (BAZIN, 1991e, p. 301).

Já a grande cidade não é mais visto como o espaço da desordem e da incerteza, mas, sim como o mundo dos sonhos, da esperança e do amor impossível. Mas a cidade também é o espaço dos desencantos, da traição e do escárnio. Nessa nova via-crúcis é no subúrbio, onde ‘nada acontece’, que se delineia o caráter do personagem e a sua salvação. Esta salvação não é conseguida na obtenção do ideal, do inatingível, representado pela cidade; mas na compreensão que o sentido da vida está na busca, na perseverança, enfim, na própria vida, representada pelos subúrbios. Portanto, o filme Noites de Cabíria retratou a realidade italiana de 1957, não mais buscando a sobrevivência econômica, mas objetivando novos caminhos para o futuro, novos valores para lutar. Com certeza, os novos valores eram mais introspectivos, eram mais individualistas, mas nem por isso eram menos dignos que os buscados pela sociedade italiana em 1945 e em 1948.

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Denaldo Alchorne de Souza

Assim, através de uma análise dos três filmes que retratam a cidade de Roma em momentos diferenciados podemos fazer um pequeno esboço da história italiana do pósGuerra. Em Roma, cidade aberta, a oposição entre o espaço dos ocupantes nazistas e o espaço da resistência demonstra que a luta principal era inter-classista e interideológica. Os espaços estavam misturados. Não havia uma definição de subúrbio e cidade. Os centros de resistência podiam estar em ambos. Podia estar entre os intelectuais ou entre os pobres, entre os comunistas ou entre os católicos. Já em 1948, os problemas advindos da Guerra eram esquecidos diante de um temor mais imediato: a sobrevivência econômica. Em Ladrões de bicicleta, as diferenciações urbanas eram nítidas; a luta de classes – mesmo que seja não revolucionária – já estava colocada. A cidade e os subúrbios eram irreconciliáveis. No final, o que restava era a esperança. Finalmente, em 1957, a Itália estava vivendo uma época de prosperidade; os problemas ideais coletivos da época da Resistência e da Reconstrução foram esquecidos e o futuro era incerto. Em Noites de Cabíria a oposição entre subúrbios e cidade permanecia. A distinção não era mais econômica, mas de valores. Os da cidade eram encantadores, porém impuros e falsos. Era no subúrbio, onde ‘nada acontecia’, que se devia buscá-los. 1945, 1948 e 1957; Rossellini, De Sica e Fellini; três épocas distintas, três homens diferentes; três olhares

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sobre o espaço geográfico; porém uma única história e uma mesma preocupação em retratar a sociedade italiana. Esta tarefa somente foi possível porque o cinema é hoje entendido como uma fonte imprescindível para a compreensão da História. Referências BAZIN, André. O realismo cinematográfico e a escola italiana da liberação. In: O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991a. ______. Defesa de Rossellini. In: O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991b. ______. Ladrões de bicicleta. In: O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991c. ______. De Sica diretor. In: O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991d. ______. Cabíria, ou a viagem aos confins do neo-realismo. In: O Cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991e. FA B R I S , M a r i a ro s a r i a . O N e o - re a l i s m o cinematográfico italiano. São Paulo: Edusp/ Fapesp, 1996. FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FRÉMONT, Armand. A região, espaço vivido. Coimbra: Almedina, 1980. GOMES, Paulo Emílio Sales. Il generale della Rovere. In: Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982a. ______. A solidão de Umberto D. In: Crítica de Cinema no Suplemento Literário.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982b. ______. As noites de Fellini. In: Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982c.

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Imagens do Cotidiano da Escola para Todos (ou Escola Inclusiva) em Finais do Século XX: tempo e espaço como focos de análise

Fabiany de Cássia Tavares Silva Mestrado em Educação: História e Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade, pela mesma Universidade (2003). Realizou estágio de doutoramento na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade do Porto (Portugal), no Centro de Intervenção e Investigação Educativa (CIIE), com bolsa PDEE – Capes. Atualmente é professora-pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atuando na Graduação e Pós-Graduação (Cursos de Mestrado e Doutorado), tendo como objetos de estudo e pesquisas a Escola, a cultura escolar, o currículo, a exclusão/integração/inclusão, as práticas e os materiais pedagógicos.

Resumo

Este trabalho realiza análise sobre a relação espaço e tempo no processo de materialização das imagens de uma escola para todos, inclusive para os indivíduos com deficiência. Tal análise não se restringe somente ao campo da investigação da relação deficiência-escolarização, mas expressa uma preocupação com essa escola para todos, que se está reinventando, desde finais do século XX. Contudo, a escola que chamamos ‘para todos’ é algo que vem se desenvolvendo desde o fim do século XIX e ao longo do século XX em países como Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha, entre outros. No Brasil, entretanto, essa escola parece fundar-se na desarticulação entre ela própria e o tecido econômico e social. Dessa forma, as imagens do cotidiano da escola, ao assumirem características definidas pelo tempo e espaço, parecem imprimir um entre-lugar cultural e histórico em que se expressam os princípios da exclusão e da igualdade, geradores do paradoxo da escola inclusiva, ao mesmo tempo, que contribuem para a inauguração de uma nova cultura escolar. Palavras-chave: Escola para Todos; Imagens; Espaço e Tempo Escolares

Abstract

This work analyzes the relation between space and time in the process of materializing images of a school for everyone, including the deficient. The analysis does not restrict itself to the field of investigation of the relation between deficiency and education, but expresses a concern with this school, being renovated, since the end of the XX century. Schooling ‘for everyone’, as it is commonly called, has been developed since the end of the XIX century and during the XX century in countries like France, the United States, Germany, among others. However, in Brazil, this schooling appears to be based on the disarticulation between itself and the economic and social tissue. Thus, the daily images of schooling on assuming characteristic defined by space and time, appear to imprint an historical and cultural inter-space in which the principles of exclusion and equality are expressed, generators of the paradox of inclusive schooling, at the same time contributing to the inauguration of a new schooling culture. Keywords: Schooling for everyone; Images; Schooling Space and Time

Recebido em: 02/04/2010

Aprovado em: 18/05/2010

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Imagens do cotidiano da escola para todos (ou escola inclusiva) em finais do século XX: tempo e espaço como focos de análise

[...] é fato que a educação cumpre finalidades determinadas pela sociedade, não é menos verdade que os projetos, os discursos, as teorias pedagógicas materializam-se no cotidiano da escola; é nesse âmbito que a intercessão de subjetividades e práticas cadencia ritmos, ritualiza comportamentos, intercambia experiências, configura formas de agir, pensar, sentir e possibilita a identidade/ diferenciação da escola no conjunto das instituições sociais (SOUZA, 1998, p. 19).

e tornou-se, em pouco tempo, um modelo predominante quando se fala da escola para todos no Brasil. Entretanto, parece ser uma escola simultaneamente em crise e em consolidação, precisamente por exprimir o processo ainda em desenvolvimento de uma cultura escolar. Para Viñao Frago a cultura escolar,

A pesquisa que deu origem a este texto foi desenvolvida em duas escolas da periferia da capital de um Estado brasileiro, e teve como preocupação central compreender/capturar duas questões essenciais na produção da chamada escola para todos, ou inclusiva, — o tempo e o espaço. O processo de reinvenção da escola para todos é inaugurado no início da década de 1990, com a Declaração de Jontiem, como parte da reforma política do/ no cenário educacional. No caso brasileiro, esse processo está instalado desde meados da década de 1990 e correspondeu, na época, a uma tentativa de remodelação administrativo-pedagógica da escola básica, na busca pelo estabelecimento da igualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos indistintamente. Contudo, a escola que chamamos para todos é algo que vem se desenvolvendo desde o fim do século XIX e ao longo do século XX em Países como Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha, entre outros. Esse tipo de escola foi considerado o mais adequado para a escolarização dos alunos com necessidades especiais (ou deficientes),

[...] é vista como um conjunto de teorias, princípios ou critérios, normas e práticas sedimentadas ao largo do tempo no seio das instituições educativas. Trata-se de modos de pensar e atuar que proporcionam estratégias e pautas para organizar e levar a classe a interagir com os companheiros e outros membros da comunidade educativa a integrar-se à vida cotidiana do centro docente (1996, p.169).

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Diante disso, focalizo imagens do cotidiano que retratam alguns dos contornos da realidade educativa, com os problemas e percalços que envolvem a história das instituições educativas. Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que, circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas se organizam (CERTEAU, 2000, p. 66-67).

Dessa forma, esse texto divide-se em duas partes relativamente autônomas. Num

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primeiro momento procuro dar conta das dinâmicas globais da investigação sobre as instituições educativas, no caso a escola inclusiva brasileira para, em articulação com algumas das tendências da pesquisa em história da educação, discernir sobre os desafios com que ela se confronta. A segunda parte apresenta e analisa algumas imagens cotidianas sobre a lógica e as tensões internas que produzem e, ao mesmo tempo, são produtos do tempo e do espaço escolar. Para esta realização apóio-me, além das observações in loco¸ na leitura de algumas fotografias escolares1, como testemunho, ainda que precário, das condições de escolarização dos alunos com necessidades especiais. Breve apreciação crítica sobre o desenvolvimento da escola para todos, ou inclusiva, no Brasil A forma como a sociedade ao longo da história foi encarando os indivíduos com deficiência está intimamente ligada a fatores econômicos, sociais e culturais de cada época. É desnecessário remontar à antiguidade para retratar como os indivíduos diferentes foram encarados ao longo do tempo, objetos de um tratamento especial, desde serem considerados como tomados pelo demônio (Idade Média), até serem tratados como loucos e internados em hospícios (séculos XVIII e XIX). No campo da educação, no entanto, existem aspectos essenciais de natureza histórico social mais vastos ligados a determinados períodos no tempo, distinguidos por Baptista (1993) como: o

primeiro essencialmente asilar; o segundo de forte tendência assistencial, aliado a algumas preocupações educativas e; o terceiro e mais recente, caracterizado pela preocupação com a integração dos deficientes com seus iguais. No Brasil só no século XIX esses indivíduos começam a ser objeto de alguma forma de ensino, ainda que claramente segregado e, só quase nos finais do século XX se ‘beneficiaram’ de uma educação com seus iguais nas escolas de ensino regular. Contudo, os livros sobre a história da educação e, mais, precisamente, sobre a história da educação dos indivíduos com deficiência no Brasil operaram uma descrição genérica do que poderia ser fundamental para compreensão desses grandes períodos históricos. Os textos sobre a escolarização dos deficientes mantiveram como eixo a própria deficiência, desconectados propriamente das relações sociais, ou mesmo escolares. A escola enquanto instituição, a organização sistemática do estudo e da educação, é uma contribuição dos tempos, o produto de situações em mudança, que fizeram surgir a necessidade de transmitir os conhecimentos que a sociedade ia acumulando. É, ainda, a necessidade de investir numa instituição específica, a educação, transmitindo o saber que vai aumentando à medida que o homem atua na luta contra a natureza, e cuja posse permite influir de uma forma mais eficaz na realidade social e natural. Essa se tornou a instituição social por meio da qual os indivíduos conseguem aceder numa forma gradual ao patrimônio cultural (os conhecimentos, as capacidades técnicas, os valores), que a sociedade na qual estão

O surgimento e a difusão das fotografias escolares vinculam-se à disseminação do valor social da escola na sociedade brasileira. Elas são a expressão da forma escolar, representações de uma cultura institucional informativa de conhecimentos, normas, símbolos e valores considerados legítimos.

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inseridos conseguiu acumular. Nesse sentido, a evolução da escola está estritamente ligada à evolução da sociedade, a qual denota que, também, as articulações no seu interior evoluem e se tornam cada vez mais complexas, à medida que nos aproximamos da modernidade. Considerar a escola como cultura, interpenetrada por fatores políticos e ideológicos, configura a possibilidade de compreensão do cotidiano e dos processos o rg a n i z a c i o n a i s, p a u t a d o s e m u m a compreensão que alia a percepção macro à micro-história. As ciências da educação, em geral, e a história da educação, em particular, fornecem material empírico e teórico, e uma massa crítica considerável no sentido de mostrar que quando a diversificação não é um recurso dos alunos, dos estudantes ou das suas famílias, mas um dispositivo do sistema educativo que o usa com vista ao aumento da sua eventual eficácia política e social, a seletividade social da escola aumenta. Quero demarcar-me do que parece ser uma tentativa de valorizar as diferenças na escola, para melhor justificar e legitimar a seleção levada a cabo, a chamada escola inclusiva, nesses novos tempos de produção e consumo diversificados. De acordo com Blanco, o conceito de escola inclusiva é ligado à: [...] modificação da estrutura, do funcionamento e da resposta educativa, de modo que se tenha lugar para todas as diferenças individuais, inclusive aquelas associadas a alguma deficiência. Logo é um conceito muito mais amplo do que o de integração (BLANCO, 1998, p. 4).

Na minha perspectiva, isso seria igual ao reforço da arrogância da escola e, assim, uma subversão do ideal intercultural. Valorizar as diferenças na escola pode querer dizer

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aumentar o valor dos recursos culturais (de todos os grupos sociais, mas especialmente dos subalternizados), sem subestimar a importância daquilo que nos liga uns aos outros. Ainscow (1997) ressalta que, no mundo desenvolvido, existe o número necessário de lugares nas escolas, em que o problema consiste em se encontrarem meios de organizar as escolas e as salas de aula, de modo a que todas as crianças e jovens tenham sucesso na aprendizagem, diferente dos Países em desenvolvimento, em que há, contudo, um longo caminho a percorrer no que diz respeito a milhões de crianças, incluindo as que apresentam deficiências, a quem o direito à escola ainda é negado. De fato, quando hoje em dia a muito apregoada diferenciação entra em jogo no sistema educativo é, sobretudo, no sentido de diversificar saídas para a estrutura ocupacional. Em outras palavras, o ensino para o aluno-padrão do sistema não se altera. O que muda é o canal, a via pela qual cada aluno é dimensionado para o chamado processo de escolarização. Mais uma vez, a reflexividade contemporânea nos parece ser iludida. A s e l e t i v i d a d e e s c o l a r, c o n t u d o , manifestação estrutural da escola brasileira, não se alocou somente na educação comum, mas, também, na especial. A esta última, trouxe consequências de duas ordens:- de absorção de população não-deficiente e imputação das causas do baixo rendimento escolar do deficiente às peculiaridades da sua deficiência. Nesse sentido, a expansão dos serviços de educação especial pode ser entendida como resposta à necessidade, dentre outras, de explicação das diferenças de rendimento da clientela escolar e, a de justificar essa diferença como não somente intrínseca aos processos

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de ensino operacionalizados, portanto, oriundos de causas muito específicas. Dessa forma, a escola inclusiva viabiliza a inclusão dos alunos deficientes por meio de uma sala intitulada de recursos, instituída por dois critérios fundantes: de um lado, o conceito que a identifica como capaz de oferecer e assegurar as aprendizagens indispensáveis à integração dos deficientes no ensino comum. De outro, a necessidade da escola de construir uma identidade inclusiva, encobrindo, em última análise, a natureza do fracasso escolar. Enfim, nessa escola está em discussão uma determinada pedagogização da infância, concebida a partir de valores, significados, demarcações culturais e biológicas. Uma infância que, apesar de biologicamente determinada, pode ser escolarizada e disciplinada, talvez protegida da exclusão. O espaço e o tempo em foco: por entre as imagens cotidianas das instituições educativas (ou das escolas inclusivas) As instituições educativas são, como afirma Magalhães: [...] como as pessoas, portadoras de uma memória. Uma memória factual, ausente na transmissão oral, uma memória fixista e por vezes justificativa e marcada por exageros de vária ordem. Uma memória gerada por contraposição com outras memórias, que corre ao ritmo do tempo – o tempo das pessoas, o tempo das gerações. Uma memória em torno do fabuloso e do heróico. Uma memória ritualista e comemorativa. E esta é uma realidade que o historiador não pode ignorar. As instituições educativas, se transmitem uma cultura – a cultura escolar, não deixam de produzir culturas (MAGALHÃES, 1996, p. 9).

As Escolas Seriema e Lontra2 integram o total de 87 escolas pertencentes à rede

estadual de ensino. A primeira foi criada há 16 anos e abriga uma sala de recursos, lugar privilegiado ocupado pelo currículo especial, o qual se afirma na necessidade de modificação instrumental do ensino em função dos indivíduos e de suas deficiências. A segunda, a 13 anos e oferecendo ensino fundamental aos alunos com necessidades especiais atendidos na sala de recursos da Escola Seriema. E s s a s e s c o l a s f o ra m p l a n e j a d a s posteriormente à ocupação do bairro. Assim, sua estruturação espacial, muros, salas e pátio significavam uma separação simbólica e material com as ruas, com as casas e, consequentemente, as constituíam em instituições específicas. Estavam situadas a dois quarteirões do terminal de ônibus do Bairro das Pantaneiras, as ruas de acesso eram asfaltadas, com calçamento, sarjeta, iluminação pública e sinalização de trânsito. Esse Bairro localizavase em região periférica da cidade, distante uns 18 quilômetros do centro, margeando a avenida que dá acesso a Rodovia que liga esse Estado-membro aos demais e cidades interioranas. Abriga mais duas escolas da rede estadual, uma da rede municipal e 04 escolas particulares. Essa região foi a que mais cresceu em termos populacionais, na década de 90, e esse ritmo de crescimento aliado ao desenvolvimento econômico, continua acelerado. Apesar de o crescimento populacional do município ter sido intenso nas duas décadas anteriores, a distribuição populacional pelas diversas regiões parece ter obedecido a uma determinação sócio-econômica. É possível classificar a ocupação do Bairro das Pantaneiras como de classe social menos favorecida, oriunda da migração populacional

Nomes fictícios.

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do interior desse Estado-membro e de outros, aquecida pela promessa de enriquecimento em uma capital de um Estado-membro recém criado. A pobreza era evidente para o modelo dessa localidade, onde as casas ocupavam minúsculos terrenos, em sua maioria possuíam dois quartos/cozinha/banheiro/ sala construídos em alvenaria, o que não chegava a configurar o modelo de pobreza de outros Estados. Contrastando com a harmonia visual dessas construções as edificações públicas — Biblioteca Municipal Comunitária, Centros de Saúde, Parque de lazer/esportes e, Distrito Policial — não combinavam com o padrão, inclusive da escola, pois tinham arquiteturas modernas e espaçosas, com acabamento sofisticado, personificando a idéia de ‘monumento’. O dito monumento tem uma tradição secular e para o seu embelezamento contribuíram muitas gerações. Nesse lugar, as pobres gentes que vivem em choupanas apertadas, meio em ruínas, sombrias, sem nenhum conforto, buscam por alguns instantes, a evasão de sua vida ingrata e miserável (VIÑAO FRAGO & ESCOLANO, 1998, p.37).

A arquitetura influenciava a sociedade favorecendo o desenvolvimento de uma cultura. O espaço-escola, nesse sentido, era um elemento cultural e pedagógico não apenas pelos condicionantes que suas estruturas induziam, mas, também, pela simbolização que ocupava na vida social. O prédio da Escola Seriema ocupava uma área murada correspondente a meio quarteirão de casas, com apenas uma entrada principal, sua edificação estava posicionada no centro do terreno, o que significava que havia área para ampliação. Espacialmente a

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construção estava distribuída em 4 (quatro) blocos interligados por um pátio relativamente pequeno, sendo 2 (dois) blocos com 4 (quatro) salas de aula, um bloco com 3 (três) salas de aula e banheiros, 1 (um) bloco que abrigava a administração da escola.

Figura 1. Vista da entrada da Escola Seriema (SILVA, 2003).

A imagem acima é representativa dessa modalidade de construções escolares de baixos custos preponderantes na rede pública estadual nessas últimas décadas. Quanto a representação contida nessas imagens, era a expressão da recriação da própria escola e do sentido de ser aluno. A projeção do muro e do portão parecia ser uma solução arquitetônica para o enquadramento e, ao mesmo tempo distanciamento de um grande número de crianças das vicissitudes da rua e, porque não dizer, do bairro. Já a Escola Lontra edificada em uma área relativa a um quarteirão de casas, era ladeada por muros altos que, impossibilitavam sua identificação como escola para quem não fosse morador do bairro, pois se assemelhava a uma prisão. Assim, a organização espacial do prédio escolar, da qual a existência do muro era apenas um dos elementos, compunha parte do imaginário ao qual tinham acesso as pessoas da comunidade, ou mesmo os alunos.

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Figura 2. Vista da entrada da Escola Lontra (SILVA, 2003).

A separação da rua e o isolamento transmitido por esses muros podiam configurar tanto o discurso da proteção, do impedimento à circulação de pessoas estranhas como a imposição de uma postura espaço-temporal intrínseca à ordem escolar. Ao estruturar ou modificar a relação entre o interno e o externo ao meio escolar – as fronteiras, o que fica dentro e o que fica fora —, ou seu espaço interno —, ao abrir ou fechar, ao dispor, de uma maneira ou de outra as separações e os limites, as relações e comunicações, as pessoas e os objetos, estamos modificando a natureza do lugar. Estamos mudando não somente os limites, as pessoas ou os objetos, mas também o mesmo lugar (VIÑAO FRAGO, 1998, p.71).

Sua edificação estava posicionada na parte frontal do terreno, próxima ao portão principal que dava acesso ao pátio e aos distintos blocos de salas de aula. Imediatamente a frente do pátio encontrava-se o bloco da administração, ladeado por 2 (dois) blocos de salas de aula com 4 (quatro) salas cada um, mais os banheiros feminino e masculino. Na parte traseira do terreno estava construído um bloco com 2 (duas) salas de aula, o qual não estava interligado ao pátio. Nessas escolas, os blocos da administração ficavam privilegiadamente posicionados de

frente para os blocos de sala de aula e para o pátio, compostos pela sala para Direção, sala para professores, sala para coordenação, secretaria e cozinha. Os blocos de sala de aula estão construídos ao redor do pátio, tendo suas portas de entrada/saída ligadas diretamente a ele, excetuando-se o bloco interno da Escola Lontra. A delimitação de circulação era, portanto, uma apropriação diferençada e diferenciadora do espaço escolar, podia ser observada na disposição do pátio e das salas de aula. Essa disposição era apenas uma das formas autorizadas de apropriação do espaço-escola, ao mesmo tempo que denotava mudanças e ou continuidades na forma de conceber a educação escolar e suas relações com os indivíduos escolares. Para Certeau (1998, p. 202): [...] o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres.

O espaço da escola, materializado na arquitetura do prédio escolar, bem como nas suas divisões e subdivisões internas, produzia tanto quanto era produto de uma nova forma de cultura, a cultura escolar que, ia se constituindo e incorporando os múltiplos significados produzidos nesse mesmo lugar quando relacionado a outros lugares. Quanto ao estado de conservação, a precariedade dos prédios era verificada na falta de reparos na construção, pintura e condições de uso de alguns ambientes, por exemplo, banheiros com louças quebradas, salas de aula com infiltração e vidros quebrados, quadra de esportes sem nenhum tratamento adequado para o piso. “Todo espaço é um lugar percebido. A percepção é um processo cultural (Viñao Frago & Escolano, op.cit, p. 78)”. A precariedade do

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prédio-escola pode constituir um elemento significativo na configuração de um menor prestígio social dessa instituição. No plano arquitetônico, a disposição e distribuição interna dos espaços das salas de aula da Escola Seriema estavam, assim, constituídas: 15 (quinze) salas, sendo 14 delas construídas para esse fim e 01 ‘sala de aula adequada’, por tratar-se de espaço destinado ao dormitório do zelador da escola. Nessas 14 salas eram oferecidos: ensino fundamental, 1º e 2º ciclos, no período vespertino; 5ª a 8ª série e recuperação paralela no período matutino; Educação de Jovens e Adultos no período noturno. Na sala adaptada era oferecida a educação especial. A Escola Lontra contava com 10 (dez) salas de aula usadas para o ensino fundamental, 1º e 2º ciclos, no período vespertino, 5ª a 8ª série e recuperação paralela, no período matutino. Como tendência geral para essas disposições e distribuições está “[...] a fragmentação e diferenciação – um espaço para cada atividade” (VIÑAO FRAGO, 1998, p.111). A grande maioria dos alunos dessas duas escolas era oriunda de famílias cujos pais possuíam pouca ou quase nenhuma escolarização. A trajetória escolar desses alunos era muito inconstante, com transferências, abandonos, evasões e reprovações. A análise da complexa relação entre as escolas e suas formas de organização e funcionamento feitos, precedentemente, comunicou toda uma construção cultural da organização do espaço para o contexto da cultura escolar. Essa análise não bastou para penetrar no mais tradicional da disposição do espaço escolar, nomeadamente a sala de aula. Segundo Viñao Frago & Escolano: [...] a distribuição interna dos espaços, usos e funções requer uma análise geral e permite, 98

por sua vez, análises específicas de cada um dos mesmos (1998, p. 111).

Essa análise específica, nesse item, estava na associação com o tempo escolar, que regulava o ritmo da prática educativa. Uma das marcas mais fortes da conceituação e funcionamento da sala de recursos era o estabelecimento de critérios e formas de utilização do espaço e tempo, que concorria para a alteração da ordem racionalizada de escola. Sem dúvida foi nessa alteração que se expressou a cultura escolar. Viñao Frago vê no conceito de cultura escolar os: [...] modos de pensar e atuar que proporcionam a seus componentes estratégias e pautas para desenvolver-se tanto nas aulas como fora delas – no resto do recinto escolar e no mundo acadêmico – e integrar-se na vida cotidiana das mesmas (2000a, p. 100).

Essa compreensão de cultura escolar podia significar o modo como a escola se apropriava, instituía e organizava as diferenças, realizando determinadas representações dessa deficiência e produzindo uma prática para formação desse indivíduo. Isso me levava a precisar que os espaços e tempos específicos da sala de recursos, nas escolas da rede, conformavam as marcas de uma forma particular de tratamento da deficiência, isto é, a deficiência frente a uma ‘forma escolar’. A sala de recursos da Escola Seriema funcionava no período matutino, no mesmo turno de funcionamento do ensino fundamental — 5ª a 8ª série, apenas uma turma do ciclo I e outra de recuperação paralela. Contava com 10 alunos, sendo 02 deles da mesma escola, 05 da Escola ‘Lontra’, e 03 de outra escola. Alojada em uma sala construída para o pernoite do caseiro, era uma sala de aula adaptada, pois não tinha o espaço métrico de uma sala de aula e a disposição funcional para

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tal, pois comportava uma pia e um banheiro desativado. Esse espaço abrigava, ainda, alguns materiais em desuso pela escola, tais como, armários, máquinas de escrever e mimeógrafos.

Figura 3. Espaço interno da sala de recursos da Escola Seriema (SILVA, 2003).

Já as salas de aulas comuns dessa escola, apesar de diferirem em espaço métrico das salas de recursos, não apresentavam condições adequadas de uso, algumas tinham janelas com vidros quebrados, ventiladores de teto quebrados, carteiras em número insuficiente para os alunos matriculados e, precária iluminação, pela ausência de lâmpadas. Em outras podia se observar melhores condições de uso, pelo simples atendimento aos requisitos que faltavam às primeiras. Ressalto, ainda, que a sala de recursos não dividia o espaço com outras salas de aulas, pois estava projetada para o muro lateral. Essa distribuição espacial não era algo indiferente, e parecia determinar em boa medida as reduções de possibilidades de adaptação da escola aos supostos requerimentos específicos dos alunos com indicadores de necessidades especiais. Vale dizer, uma visão subjetiva do espaço como que reveladora de determinadas mensagens por parte da escola,

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constituindo uma forma de relação com as necessidades dessa sala e de seus alunos. Isso se reforçava na entrada dos alunos para essa sala, a mesma era independente, feita pela lateral do prédio, o que desobrigava os alunos a passarem pelo pátio. A delimitação dessa circulação e apropriação diferenciadas e diferenciadoras imposta à sala de recursos dessa Escola podia ser observada na entrada e acessos próprios para esses alunos. Uma vez que eles não precisavam passar pelo pátio para chegarem até sua sala, o faziam a partir de um acesso lateral, inclusive no momento de buscarem seus lanches, pela lateral do edifício onde se encontrava a cozinha. Penso que a separação da sala de recursos com o resto da escola se fortalecia na ausência do uso do pátio, palco dos acontecimentos e da observação da administração, espaço de trocas, transição do trabalho para o lazer e vice-versa, o local que permitiria aos alunos a passagem de uma cultura à outra. Essa separação não era apenas mais um dos elementos de distinção, ela impunha formas legítimas, ou não, de sua apropriação e de sua utilização. Essa apropriação parecia não estar autorizada aos alunos da sala de recursos, talvez por que eles não eram entendidos como fazendo parte dela, alguns vinham de outras escolas. A sala de recursos, no entanto, apresentava similaridade com as salas de aulas comuns, dessa mesma escola, nos dois traços mais característicos da sua organização pedagógica e espacial, em que pesem as diferenças de espaço físico. O primeiro deles seria a disposição das carteiras e dos alunos, próximos à professora e ao quadro negro ou memoboard3. Essa disposição permitia colocar em prática, ao

Espécie de lousa em fibra de carbono, que utiliza caneta esferográfica no lugar de giz.

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mesmo tempo, o ensino mútuo e o individual, bem como o acompanhamento e correção das atividades de todos, no momento em que estão sendo realizadas. O segundo traço é o ambiente visual dessa sala, igual aos das salas de aulas comuns, com a presença de cartazes com as letras do alfabeto, varal de produções dos alunos, quadro horário, calendário, quadrode-giz e carteiras. Nas três salas comuns observadas na Escola Lontra essa similaridade não existia, pois, as mesmas apresentavam outros traços, tais como: mobiliários em sala de aula dispostos de forma alternada, isto é, alguns dias foi possível presenciar uma organização de filas duplas, realizadas apenas com a aproximação de duas carteiras; em outros, filas que continham uma, duas e até três carteiras, distantes ou próximas da mesa e/ ou carteira dos professores.

a precariedade dos espaços físicos dessas salas que, apresentavam rachaduras, infiltrações, vidros quebrados e pouca luminosidade. Ora, em que pesem as distinções dessa organização pedagógica e espacial e sua correlativa organização das pessoas e objetos na sala de aula, elas não deixavam de constituir uma tentativa de “[...] introduzir ordem e previsão, certeza e racionalidade, regulação e uniformidade” (VIÑAO FRAGO & ESCOLANO, 1998, p. 131), numa situação educativa em que os elementos de controle, próprios da forma escolar pareciam estar sendo minados. A sala de recursos estaria, assim, produzindo o embate de culturas, pela imposição do seu modelo frente ao modelo escolarizado de escola, isto é, [...] espaço fechado e totalmente ordenado para a realização de cada um de seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regrado, que não pode deixar nenhum lugar a um movimento imprevisto, cada um submete sua atividade aos ‘princípios’ ou ‘regras’ que a regem (GUY VINCENT, 1994, p. 4) 4.

Nesse sentido, eram as relações estruturais que marcavam precisamente a formação da cultura escolar pelas práticas específicas de espaço e tempo produzidas. Figura 4. Ambiente interno da sala de recursos da Escola Seriema (SILVA, 2003).

Quanto ao ambiente visual, não havia padrão estabelecido, uma vez que as salas de primeira etapa do primeiro ciclo apresentavam cartazes, varal de produções, mas, as das etapas subseqüentes sequer tinham qualquer cartaz. Acrescente-se a isso,

Os tempos escolares, as horas, os dias, se constituem em marcos de aprendizagem e em mecanismo para auto-regulação dos comportamentos da infância (ESCOLANO, 2000, p. 85).

Distribuídos em diferentes tempos de frequência e permanência semanal, os alunos da sala de recursos estão como que dando forma à afirmação acima.

Texto extraído do original em francês da obra coordenada por Guy Vincent. L’education prisinnière de la forme scolaire? Scolarisation et socialization dans les sociétés industrielles.

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Imagens do cotidiano da escola para todos (ou escola inclusiva) em finais do século xx: ...

O procedimento mais utilizado para o agrupamento desses alunos, nos diferentes tempos de permanência e freqüência, tinha sido organizado em torno dos comportamentos, correspondência em níveis de aprendizagem acadêmica, na perspectiva de construção de grupos que apresentassem uma certa homogeneidade nestes aspectos. O tempo organizado me parecia mais amplo e incorporava as considerações temporais acerca das necessidades educativas dos alunos, ao mesmo tempo, que um tempo do professor. Já o segundo implicava a conexão entre essas necessidades e a execução das atividades. Para Gairín-Sallán o tempo escolar ao [...] permitir o estabelecimento de unidades cronológicas de diversa índole resulta uma condição imprescindível para a adequada ordenação, racionalização e desenvolvimento da atividade educativa (1993, p. 233).

Enfim, as possibilidades generalizadas nas categorias espaço e tempo visam pluralizar a investigação histórica, exigindo uma atualização contínua de observação da formação dos fenômenos educativos, no decorrer das mudanças dadas no cruzamento das esferas cultural, escolar e econômica. Para essa observação entendo imprescindível a consciência da historicidade desse cruzamento, dos processos em que se apóiam, da manifestação do real e dos resultados a que, num dado momento, dá corpo. Assim, essas categorias pareceram-me imprescindíveis para apreender o ritmo das mudanças em que se forjam a historicidade da escola inclusiva, ao mesmo tempo que conseguiram assinalar o que ocorre na/pela cultura escolar.

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As Imagens que Surgem pela Força da Escrita: o Auto de Suassuna – do Medievo à Crítica Social*

João Evangelista do Nascimento Neto Possui graduação em Licenciatura em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (1998), especialização em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2003) e mestrado em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2006). Atualmente é Professor auxiliar da Universidade do Estado da Bahia e professor nível 4 do Colégio Estadual João Batista Pereira Fraga. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura, Cinema e Identidade Nacional.

Resumo

No presente trabalho, discute-se a aproximação cultural entre a contemporaneidade e o período medieval defendida por Ariano Suassuna. No Auto da Compadecida, a ética é enfocada pelo autor como meio de moralizar a sociedade taperoense, através da escatologia religiosa. As personagens do Auto, desse modo, representam as divindades que são caracterizadas de acordo com a concepção dos autos medievais e configuram um aspecto central do discurso da obra: Manuel, a Virgem Maria, o Encourado e seu Demônio apresentam características da tríade escolástica da Idade Média, tanto em sua caracterização física quanto psicológica. Assim, traços culturais do sertão nordestino, revelados através da coexistência de um catolicismo tradicional com o imaginário local, são transpostos para a literatura pelas mãos de Ariano Suassuna e analisados aqui pelos olhares críticos de BENSANÇON (1997), CLASTRES (1990), NOGUEIRA (2002) e VASSALO (1993). Palavras-chave: medievo; religião; literatura.

Abstract

This paper aims at discussing the cultural approach between the contemporary and the medieval period defended by Ariano Suassuna. In his play Auto da Compadecida, ethics is focused as a means to moralize the society of Taperoá, Brazil, using the Christian eschatology. The characters in the play, thus, represent the deities that are typified according to the conception of the medieval documents and establish a central aspect of the discourse in his work: Manuel, Virgin Mary, the Encourado and his Devil. They show features of the scholastic triad of The Middle Ages, not only in their physical characterization but also in the psychological one. Hence, the cultural traits of the interior Northeast revealed by the coexistence between a traditional Catholicism and a local imagery are transposed into literature by Ariano Suassuna and analyzed here by the critical look of BENSANÇON (1997), CLASTRES (1990), NOGUEIRA (2002) and VASSALO (1993). Keywords: Medieval; Religion; Literature.

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Uma primeira versão deste texto foi apresentada, como comunicação oral, no 17º COLE, em 2009. Recebido em: 11/04/2010

Aprovado em: 19/05/2010

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As imagens que surgem pela força da escrita: o Auto de Suassuna – do medievo à crítica social

Uma aproximação cultural entre a contemporaneidade e o período medieval é defendida por Suassuna em suas obras e aulas-espetáculo, que ministra por todo o país, como afirma Lígia Vassalo, ao escrever sobre o autor paraibano: A medievalidade imprime a marca mais específica ao seu teatro, recortando transversalmente os temas, os textos e os modelos formais. Ela decorre de imediato de suas fontes populares, que retiveram o modelo medieval e o transmitem por via indireta; e, mediatamente, das fontes cultas católicas de seu teatro. Suas estruturas semântico-formais abstratas (ou arquitextos) são escolhidos entre as práticas mais antigas da cena ibérica, de que o romanceiro tradicional nordestino guarda muitas consonâncias nas técnicas e nos temas. Ela também está presente no problema da definição dos subgêneros a que pertencem suas peças, pois nenhuma corresponde à matriz pura, sendo o hibridismo e a ausência de formas genuínas, outro traço medieval (VASSALO, 1993, p. 29).

Essa visão busca a valorização da cultura popular brasileira, formada da mestiçagem entre a cultura indígena e negra e a assimilação da cultura europeia, mais especificamente a ibérica na construção da cultura brasileira. A obra suassuniana contém um ideário de transformação pelo retorno às origens como resgate das tradições nacionais, numa ojeriza às influências estrangeiras que massificam e destroem as peculiaridades regionais. Ao identificar o conflito e o caos na sociedade, Suassuna aponta a solução, acreditando no

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pronto restabelecimento do ser humano e na conversão através da ética e religião, sendo dois elementos muitas vezes tão interligados que fica difícil distinguir um do outro. No Auto da Compadecida a ética é enfocada pelo autor como meio de moralizar a sociedade taperoense, através da escatologia religiosa. A moral católico-cristã é que precisa reger e impor a ética social e os problemas políticosociais serão solucionados a partir do instante em que o homem retornar à fé ‘verdadeira’ em vida ou perdoado na morte. A corrupção existente na própria Igreja é protagonizada pelo Padre, pelo Bispo e pelo Sacristão do Auto, quando as personagens desviam-se de suas funções eclesiásticas por motivos financeiros e escusos e são envolvidos pelo processo de reificação e subjugados pelo pecado da ganância, como nos autos de Gil Vicente. JOÃO GRILO: É Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é benzer o motor do Major Antônio Moraes e outra é benzer o cachorro do Major Antônio Moraes. PADRE (mão em concha no ouvido): Como? [...] E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Moraes? [...] Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus (Auto da Compadecida, p. 23-24).

Todos os pecados são contextualizados, como a influência do coronelismo, que é, para o escritor paraibano, uma corrupção dentro da ordem religiosa, causada pelo afastamento dos ‘verdadeiros’ ensinamentos da fé.

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As imagens que surgem pela força da escrita: o Auto de Suassuna – do medievo à crítica social ANTÔNIO MORAES (voltando): Ah, padre, estava aí? Procurei-o por toda parte. PADRE (da igreja): Quanta honra! Uma pessoa como Antônio Moraes na igreja! Há quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus! ANTÔNIO MORAES: Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que não venho à missa! PADRE: Qual o quê, eu sei de suas ocupações, de sua saúde... ANTÔNIO MORAES: Ocupações? O senhor sabe muito bem que não trabalho e que minha saúde é perfeita. PADRE (amarelo): Ah, é? ANTÔNIO MORAES: Os donos da terra é que perderam hoje em dia o senso de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como antigamente, a velha ociosidade senhorial! (Auto da Compadecida, p. 32).

A relação de opressão entre o padeiro e sua esposa e os seus empregados, Grilo e Chicó, também passa pelo âmbito econômicosocial. Os patrões exploram os funcionários dando-lhes um ínfimo salário e obrigando-os a um árduo trabalho, praticando o pecado da avareza, pelo lucro excessivo, aproveitandose da diferença de classe para humilhar e subjugar os empregados. MULHER: Quer dizer que não tem jeito de eu arranjar esse gato? [...] JOÃO GRILO: Tem um jeito, e é até fácil! [...] Um conto está bom? MULHER: Está não, está caro. [...] Só dou quinhentos e, se você não aceitar, será demitido da padaria. [...] PADEIRO: Ladrão! Ladrão! JOÃO GRILO: Ladrão é você, presidente da irmandade! Três dias passei em cima de uma cama, tremendo de febre. Mandava pedir socorro a você e a ela, e nada. Até o padre, que mandei pedir para me confessar, não mandaram. E isso depois de passar seis anos trabalhando naquela desgraça! (Auto da Compadecida, p. 87-88, 92).

As personagens do Auto que representam as divindades são caracterizadas de acordo com a concepção dos autos medievais e configuram um aspecto central do discurso da obra. Manuel, a Virgem Maria, o Encourado e seu Demônio apresentam características da tríade escolástica da Idade Média, tanto em sua caracterização física quanto psicológica. A medievalidade se faz notar ainda, em Suassuna, através da técnica do teatro épico cristão, com suas modalidades específicas e seus personagens estereotipados. Isto ocorre porque a Idade Média é o espaço em que floresceu uma dramaturgia que associa o religioso e o popular através das oposições litúrgico/ profano e sério/ jocoso. E sobretudo porque, sendo a cultura popular nordestina acentuadamente medievalizante, aquela marca atua como uma espécie de fonte para o próprio romanceiro, onde o aspecto religioso se reforça não só por causa da religiosidade popular da região como também pela opção pessoal da crença do autor, convertido ao catolicismo na maturidade. Por isso as peças de Suassuna se revestem de traços ideológicos próprios da Idade Média, como o maniqueísmo e o tom moralizante (VASSALLO, 1993, p. 29-30).

É na idade medieval que se confere importância à figura do Diabo. Se antes ele apenas representava um desvio do cristianismo e da fé, torna-se, a partir de então, o opositor por excelência. Vindo da tradição hebraica, ele tem seus poderes aumentados sensivelmente e ganha legiões de ajudantes: os anjos decaídos do céu por terem seguido ao traidor Lúcifer. Satanás passa a ser a personificação do mal, o inimigo do Todo-poderoso e de sua criação, a humanidade; daí o interesse do Diabo em destruir o homem, pois assim fazendo, intentava contra o seu oposto, Deus: Na medida em que são criaturas espirituais, capazes, todavia, de se manifestar de maneira

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João Evangelista do Nascimento Neto corpórea sobre a Terra e, como inimigos de Cristo, apostam na debilidade moral dos cristãos, os demônios da Europa medieval possuem seguramente um poder muito grande. No século X, Ratherius, bispo de Verona, julga necessário relembrar aos seus subordinados que Satã e suas legiões, por mais poderosos que fossem, estavam submissos à autoridade do Deus todo-poderoso. Afirmação que deveria estar perfeitamente evidente, ao menos para ao clero, e, no entanto, é precisamente esse clero que sublinha a todo momento a quase onipotência de Satã. As pregações eclesiásticas tendem a destacar cada vez mais o Mal e as suas conseqüências, a bem-aventurança, cedendo lugar progressivamente à danação, sendo o Bom cada vez mais intuído, implícito na dissipação dos terrores do Mal e do Castigo Eterno (NOGUEIRA, 2002, p. 47-49).

Há um direcionamento dos sermões e das benevolências divinas para a malignidade de Satã e uma consequente punição para o homem que seguir seus preceitos: o fogo eterno simbolizado na alegoria do Inferno. O Diabo ascende em poder e torna-se rival de Jesus Cristo, que o venceu, mas não o derrotou definitivamente. Daí, a homilia desviar o foco do amor de Deus para a justiça divina. A partir do século XII, tornam-se freqüente as representações do Juízo Final e do Inferno, inclusive nas paredes das igrejas; e mais, no século XIV as pregações deixam os recônditos dos templos e vão buscar as classes populares em prol de disseminar os ensinamentos religiosos que apontam a morte e o afastamento do Bem, como pagamentos pela desobediência. Ao longo do período de crescimento medieval, os teólogos haviam domesticado a Morte. No século XIV, o medo volta a se instaurar. A Morte é o abismo negro, a quase certeza da danação eterna. As ‘Artes Marandi’, coleções de imagens, tornam-se os guias desta inescapável desdita. O leito de morte é o palco de uma ancestral disputa: de um lado o anjo da guarda, o defensor da alma ‘inevitavelmente’ pecadora, resiste ao assalto

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de legiões de demônios, que ameaçam com suas garras a alma do moribundo (NOGUEIRA, 2002, p. 88).

O teatro religioso contribuía para disseminar a crença no Diabo e sua atuação malévola. Para simbolizar essa nova caracterização do Diabo a iconografia também criou um modelo que misturava homem, animal e anjo. Satanás passou a ter um perfil de uma criatura de tez escura, meio homem, meio bode e com asas de um morcego, o que indicava que era um anjo caído. Tal aparência difundida pelo clero era necessária para que a população medieval compreendesse os perigos que corria se permitisse a aproximação do Mal. Era uma preleção erudita baseada nos estudos dos teólogos do Vaticano que intentava agregar os fiéis pelo terror de um ser tão perigoso quanto feio, capaz de rivalizar com o Cristo e, assim assumir a função de carrasco do ser humano: Contudo, duas imagens de Satã coexistem: uma popular e outra erudita, esta, de longe, a representação mais trágica, pois o Demônio, nas consciências populares, é uma entre outras tantas sobrevivências míticas que uma conversão imposta não conseguiu exterminar. O diabo popular é uma personagem familiar, às vezes benfazeja, muito menos terrível do que o afirma a Igreja, e pode ser, inclusive, facilmente enganado. A mentalidade popular defendiase, desse modo, da teologia aterrorizante – e muitas vezes incompreensível – da cultura erudita (NOGUEIRA, 2002, p. 98-99).

A figura de Jesus Cristo, que antes reinava absoluto no cenário cristão, agora tem que dividir espaço e poder com Satanás. Seu perfil também sofre uma mudança de curso: se antes personificava as virtudes do amor, da paz e do perdão, agora se transforma mais do que tudo no Deus da Justiça. Devido ao novo status de seu inimigo, não cabe mais

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um Deus afável, mas um Ser que precisa baixar seu cetro sem titubear sobre aqueles que não seguem as suas leis, seus desígnios. É a contrapartida de existir um acusador que exige de Deus o cumprimento das leis que ele mesmo criou. Mas a teologia medieval ao retirar de Cristo o caráter essencialmente caridoso não deixa uma lacuna, pois o substitui por Maria, sua mãe. É a Virgem quem exerce a função de mediar o homem e a divindade. Se Jesus passa a ser caracterizado como um ser divino que prega a justiça, e assim minora seus caracteres humanos, a Igreja acentua a misericórdia de sua genitora, ratificando a sua vida simples e seu sofrimento. Os santos também são recorridos com freqüência no intento de que esses intercedam junto ao Cristo ou à Virgem Maria para a solução dos problemas mais diversos, mas é Maria quem simboliza a nova temática do cristianismo. Vê-se no Auto da Compadecida o modelo medieval na figura de Maria subordinada ao seu filho, mas que é vista como aquela capaz de persuadi-lo. Há aí a visão ocidental da mãe como o membro mais respeitado da família, pela sua dedicação ao lar e por encerrar em si mesma duas visões: a de fragilidade da mulher; e de fortaleza matriarcal, capaz de gerar a vida e lutar pela subsistência. Logo, Maria ocupa a posição ‘privilegiada’ para advogar em prol da humanidade e adentrar na guerra espiritual do Bem contra o Mal. Aliás, um grande reforço para o cristianismo e para o homem dependente dessa fé e dessa capacidade de ela intimidar Satã. Há exemplos disso na obra de Gil Vicente, que cronologicamente situa-se no Renascimento, mas de evidente influência do medievo, que repercutem no texto teatral de Ariano Suassuna. No Auto da Compadecida, as personagens divinas possuem estes traços medievais.

Manuel (Cristo) é o magistrado de um julgamento a que todo homem deverá ser submetido após a morte; há o Encourado, de aparência horrenda, mas tentando fingir ser o próprio Senhor, com um livro em suas mãos relatando todos os atos que cada pessoa cometeu; e a Compadecida, resignada advogada de defesa, que luta para salvar o homem das garras do Mal. Suassuna caracteriza o Encourado como um vaqueiro, utilizando-se de uma crença local para apresentá-lo como rústico e grotesco. Um ser que deseja as glórias destinadas a Manuel e, por isso, utiliza-se do artifício do terror para consegui-lo, mas que é acompanhado por parvos ajudantes: [...] soam ritmadamente duas pancadas, fortes e secas, de tambor e uma de prato, com uma pausa mais ou menos longa entre elas, ruído que deve se repetir até a aparição do Encourado. Este é o Diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem que se veste como vaqueiro. Esta cena deve se revestir de um caráter meio grotesco, pois a ordem que o Demônio dá, mandando que os personagens de deitem, já insinua o fato de que o maior desejo do diabo é imitar Deus, resultado de seu orgulho grotesco (Auto, p.129).

O Cristo da obra suassuniana tem em seu semblante a bondade, caracterizando a missão salvadora, quando veio a terra de boa vontade para morrer pelos pecadores. Sua feição negra na obra é propositadamente pertinente para suscitar a questão da discriminação no ambiente que contextualiza as peripécias de João Grilo. Quando o ‘amarelo’ diz que o Senhor é ‘gente e ao mesmo tempo é Deus’, reconhece uma divindade que afasta o Deus dos seus fiéis: [...] as manifestações do insólito e do extraordinário provocam geralmente o medo e o afastamento. [...] Esta separação tem por vezes efeitos positivos; não se limita a “isolar”,

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João Evangelista do Nascimento Neto também valoriza. Por isso, a fealdade e a disformidade, embora singularizem aqueles que a manifestam, ao mesmo tempo também os consagram (CLASTRES, 1990, p.24).

Aliás, Manuel logo esclarece que ninguém deve se iludir ao olhar para seu semblante. A sua função benevolente findou-se outrora na cruz, agora ocupa um outro cargo, o de juiz. [...] De repente, João ajoelha-se, como que levado por uma força irresistível e fica com os olhos fixos fora. Todos vão-se ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para não ver o Cristo que vem entrando. É um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de iluminura. Todos estão de joelhos, com o rosto entre as mãos. ENCOURADO: [de costas, grande grito, com o braço ocultando os olhos] Quem é? É Manuel? MANUEL: Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vão ser julgados (Auto, p. 136-137).

A Compadecida é descrita como símbolo da mansidão e benignidade. Sua aparição dá-se da mesma forma que o filho. Sua voz é mansa, mas firme. Seus gestos discretos, mas significativos. O Encourado classifica-a como bisbilhoteira, quando afirma que ‘Lá vem a Compadecida! Mulher em tudo se mete!’. Dessa forma está expondo o preconceito contra a mulher e ao mesmo tempo temendo sua atuação. Ele reconhece em Maria o poder de derrotá-lo, ao contrapor-se aos seus argumentos. Vê a autoridade que ela exerce sobre o Juiz, por ser sua genitora e, por extensão, mãe de toda a humanidade. Maria utiliza-se dessa influência em favor do homem, já que a tradição patriarcal eleva a mãe ao posto mais alto, mas dentro de um lar. É ela quem consegue aliar firmeza e doçura e essa temperança peculiar faz com que lute por seus filhos adotivos: os homens.

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A Compadecida age como a mãe dedicada aos filhos; a sua condição de mãe é, por conseguinte, superior a de filho, assim, o seu poder de convencimento torna-a eficaz no intento de defender os pecadores: ENCOURADO: Protesto. MANUEL: Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou. ENCOURADO: Grande coisa esse chamego que ela faz pra salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo (Auto, p. 159).

Suassuna entende que o resgate e pregação da moral cristã empreende uma visão da cultura popular que deve ser restabelecida. Seguir as crenças do catolicismo popular é trazer à tona resquícios míticos, tradições, estilos de vida e expressões artísticas que encerram uma identidade própria. O escritor apropria-se da iconoclastia medieval para reforçar suas idéias; e em todo o Auto há a presença dessas imagens. Suscitálas é fazer com que o leitor compreenda o intento da obra. Percebê-las é constatar a forte marca de uma cultura religiosa que se fortaleceu sobremaneira na Idade Média e que se mantém viva no imaginário popular das camadas mais simples da população. É no período do medievo que se estabelecem os parâmetros para o catolicismo popular dos dias atuais. A partir do momento em que os sermões deixaram o ambiente sacro: igrejas, mosteiros e conventos para ganhar as praças e ruas dos vilarejos e alcançar uma parcela significativa da população medieval que não compreendia as mensagens proferidas nos púlpitos, abriu-se um espaço para que essas mesmas preleções pudessem interagir com o povo e os seus costumes. Não foi só o discurso sacro que influenciou o homem medieval, mas do mesmo modo ele foi influenciado pelos costumes, pelas

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histórias que compunham o imaginário da época. O cristianismo erudito cedeu lugar a uma fé mais próxima do fiel a ser conquistado, e foi por este adaptado. Costumes pagãos foram acrescentados e alterados para coincidir com acontecimentos bíblicos ou da vida dos santos; e, de acordo com o local, criou-se um cristianismo próprio baseado no folclore regional. No Nordeste brasileiro, a figura do Diabo é representada como um vaqueiro, um ser rústico resultado de um folclore do lugar. Percebe-se, portanto, que a religiosidade popular é a maneira de o povo enxergar e reutilizar o sagrado, apropriando-se do erudito de maneira selecionada e modificada pelos hábitos locais. O catolicismo no Brasil foi implantado de maneira coercitiva, visando à dominação de um novo mundo. Mas, adaptar o cristianismo era rivalizar com a diversidade de mitos que antecedem a fé trazida pelo lusitano; e contrapor-se aos costumes das diferentes tribos indígenas que habitavam o Brasil e possuíam suas crenças, seus costumes, bem como era resistir à influência dos negros africanos. O catolicismo popular reúne, de certa forma, práticas e crenças de outros troncos religiosos, mesmo que de modo camuflado ou assimilado pela religião dominante. A religião popular é uma religião de sensações, quando os elementos místicos atribuem importância aos eventos sobrenaturais que povoam o imaginário dos seus adeptos e tornam-se comuns na prática da fé. É uma fé que abrange traços oficiais e marginalizados: uma religião nãoinstitucionalizada que reinterpreta a crença tradicional e convencional e adequando-a às transformações sócio-econômicas e culturais do lugar. Há exemplos no Auto da Compadecida que atestam a fé do catolicismo popular

influenciado por nuances de várias culturas. A crença da mulher do padeiro nos efeitos milagrosos do ato de benzer é uma delas, por isso a sua insistência de que o Padre o faça com o seu cachorro, mas orar pelo animal destoa de toda concepção ocidental da destinação das orações, quanto mais em latim: MULHER: ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está morrendo! É o filho que eu conheço neste mundo, padre! Não deixe o cachorrinho morrer, padre! PADRE: [comovido] Pobre mulher! Pobre cachorro! [João Grilo estende-lhe um lenço e ele se assoa ruidosamente.] PADEIRO: O senhor benze o cachorro, Padre João? (Auto, p. 41).

Após a morte do animal, a Esposa do padeiro exige do cônego um enterro para o ‘seu filho’ em latim. Se um cadáver não fosse enterrado, acreditava-se que teria sua entrada nos céus vedada, por não ter voltado ao pó de onde veio. Mas isso cabe ao ser humano e no Auto é ampliado para qualquer ser vivo, mesmo um animal. Baseada nessa concepção de salvação da alma, a Mulher do comerciante quer todas as pompas para o sepultamento de seu ente querido, o animal de estimação que vivia com as maiores regalias. O latim dá o tom cerimonioso à situação e conferelhe importância; e o cerimonial confere ao cão a sua salvação. O fato realiza-se após um ardil tramado por Grilo, ao inventar um testamento para o animal. GRILO: Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente pra morrer, botava uns olhos bem compridos pr’os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que

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João Evangelista do Nascimento Neto o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso dele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão (Auto, p. 52).

Outro desvio religioso é percebido em Severino que acredita no poder miraculoso de amuletos, retomando certos cultos pagãos, mas transpostos para o contexto do cristianismo, pelo fato de eles serem bentos por um homem santificado pela Igreja ou então pelo próprio povo, como é o caso do Padre Cícero, um exemplo da canonização realizada pela gente do sertão. SEVERINO: Uma gaita? Pra que eu quero uma gaita? GRILO: Pra nunca mais morrer dos ferimentos que a polícia lhe fizer. SEVERINO: Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez. GRILO: Mas cura! Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer! (Auto, p. 112).

No último ato da peça suassuniana dá-se o julgamento das personagens mortas por Severino e o Cangaceiro. Há aqui a expressão maior de uma religiosidade popular, quando do tratamento de Grilo ao Encourado. O Diabo é visto pelo olhar picaresco como uma assombração em meio a tantas outras que povoam o imaginário nordestino, por isso o pouco respeito ao Demônio. A coragem do ‘amarelo’ pode ser conferida às presenças de Manuel e da Compadecida, mas também pela visão que tem do próprio inimigo, como alguém que pode ser ludibriado, já que não é dotado de tanta inteligência. O Encourado é um ser ‘mágico’, um ente que cria ilusões, mas o maior temor que se pode ter dele não se constitui nesses seus poderes, mas em sua capacidade de acusação. 110

GRILO: Foi gente que eu nunca suportei: promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia. Esse aí é uma mistura disso tudo. [...] Tenho visto poucos sujeitos levar carão e ficar com cara lisa como esse [...]. MANUEL: É besteira do demônio. Esse sujeito tem mania de fazer mágica. GRILO: Eu logo vi que só podia ser confusão desse catimbozeiro. [...] é que esse filho de chocadeira quer levar a gente pra o inferno [...] (Auto, p. 148-160).

A iconoclastia, também fonte da influência da Idade Média, é um dos pilares do catolicismo popular. As imagens representam passagens bíblicas e reforçam a fé de um homem cada vez mais cético, face às adversidades da vida. Pois é por causa dessas adversidades que ele deve voltar-se para o divino, reconhecendo nele a solução para o seu infortúnio. [...] a imagem não cai gratuitamente do céu. Ela é tomada numa história santa e autenticada por ela. Ela não é exterior à religião, ela não é um acréscimo supérfluo ou um excitante psicológico de devoção, que um culto em espírito e em verdade pudesse dispensar. Ela é interior à religião. Ela faz parte de sua explicação teológica. Ela está integrada na liturgia. De uma como da outra ela tira uma garantia. De ambas ela tira também sua vida: é a luz da fé que o ícone desvenda o que se espera dele representar. Quem não tem essa fé não vê mais nada. É na prece que se realiza, através da imagem, o contato deificado com o protótipo (BENSANÇON, 1997, p. 228229).

A obra do escritor paraibano é permeada das imagens católicas e sua transposição para o cinema, realizada por Guel Arraes, acentua a iconografia, recorrente em toda película, como a do episódio da morte da cachorra. No filme, as paredes da igreja são preenchidas por afrescos que representam a paixão de Cristo. Não obstante, a igreja é recorrente na obra literária e na fílmica. Sua simbologia de lugar santo é reforçada, inclusive na adaptação de

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Guel Arraes, que a utiliza como cenário para o Julgamento Final. CHICÓ: A cachorra cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre! (ARRAES, 2000, Capítulo 5).

No filme, o julgamento é iniciado e o ambiente da igreja é na penumbra, isto faz com que as velas dos romeiros caracterizem o local como um ambiente de devoção. As velas simbolizam promessas feitas ou a chama que ilumina o caminho dos mortos. O surgimento do Encourado traz à tona a visão medieval do inferno como um local de terríveis sofrimentos. O cheiro forte de enxofre anuncia o aparecimento de Satã, que tenta esconder sua verdadeira face, mas é desmascarado por João Grilo. Ele possui a capacidade de imitar1 fisicamente as pessoas e é isso que tenta fazer com Cristo, mas logo é desmascarado também. Manuel surge sentado em seu trono e rodeado de ‘anjos barrocos’, trazendo em relevo no peito o seu coração, simbolizando o amor que possui pela humanidade. A

Compadecida surge envolta numa aura de pureza e paz. Está completa a cena do julgamento, que culminará na volta de Grilo a terra a fim de obter uma outra oportunidade e traçar um novo percurso a sua vida. Se o catolicismo tradicional renega a idéia de o homem poder nascer mais de uma vez, em contraponto às doutrinas convencionais da igreja, elas coexistem no imaginário da fé popular do sertanejo nordestino na ressurreição. Referências BENSANÇON, Alain. A imagem proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru, SP: EDUSC, 2002. O AUTO da Compadecida. Direção de Guel Arraes. Co-produção Globo Filmes. Produtor associado: Daniel Filho. Brasil: Globo Filmes, 2000. 1 bobina cinematográfica (115 min). SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Ed. comemorativa de 50 anos. Rio de Janeiro: Agir, 2004. VASSALO, Lígia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

A doutrina católica que afirma ser o Diabo capaz de se metamorfosear em outros seres, humanos ou não, surgiu na Idade Média (NOGUEIRA, 2002).

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Historia Social Y Cine: una aproximación al período 1955-1976 a través de Los Traidores

Pablo Alvira Doctorando en Humanidades y Artes por la Universidad Nacional de Rosario (UNR). Becario doctoral de CONICET. Profesor de la Universidad Nacional de Rosario. Autor del artículo ‘Infierno verde. Las aguas bajan turbias y la explotación de los mensúes en el Alto Paraná (1880-1940)’, en Navegamérica n. 3.

Resumen

En el presente artículo se intenta un acercamiento al conflictivo período de la historia argentina contemporánea que transcurre entre 1955 y 1976, a través del análisis del film Los traidores, realizado en 1972. El film narra la trayectoria de un dirigente sindical que se corrompe en su ascenso al poder. Se propone aquí un abordaje múltiple: el análisis del film como documento histórico, acercándonos al ámbito de la experiencia inmediata de los sujetos; como interpretación de la historia reciente; y como herramienta política, en el contexto de la década de 1970. Se pretende dar una imagen abierta y diversa del período, reforzando la utilidad del cine para la historia social. Palabras clave: cine político; Los Traidores; sindicalismo.

Abstract

This article attempts an approach to the troubled period of the contemporary history of Argentina that elapses between 1955 and 1976 through analysis of the movie Los Traidores, filmed in 1972. The movie narrates the story of a trade union leader that is corrupted in his rise to power. It is proposed here a multiple approach: analysis of film as a historical document, approaching the level of immediate experience of the subjects, as the interpretation of recent history, and as a political agent in the context of the 1970s. It aims to provide an open and diverse image of the period, confirming the usefulness of cinema for social history. Keywords: polítical cinema; Los Traidores; unionism.

Recebido em: 03/03/2010

Aprovado em: 07/04/2010

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Pablo Alvira

Historia Social y Cine: una aproximación al período 19551976 a través de Los Traidores

Introducción En las últimas décadas, diversas manifestaciones culturales han alcanzado un status respetable como fuente para la historia. Las tradiciones orales, algunas expresiones artísticas, o lo que se da en llamar cultura popular, ya ocupan un lugar importante en la historia social no sólo como objeto sino como una fuente legítima. Sin embargo, el cine no ha logrado todavía el mismo reconocimiento; lo que no deja de sorprender, cuando es evidente la imbricación que tiene el hecho cinematográfico en la sociedad, desde su misma aparición, a fines del siglo XIX. Inscribimos por tanto este trabajo en el creciente esfuerzo historiográfico por cruzar cine e historia, acercándonos a un período crucial de la historia argentina, el que transcurre entre los golpes militares de 1955 y 1976, a través del análisis de un film mítico de la década del setenta: Los traidores, del grupo Cine de la Base, realizado en la clandestinidad entre 1971 y 1972, durante el gobierno militar. Los traidores dramatiza la vida de un dirigente sindical que se corrompe en su ascenso al poder. El argumento se basa en un racconto a través del cual la trayectoria del sindicalista peronista Roberto Barrera se va reconstruyendo lentamente. La película comienza cuando, ante la proximidad de unas elecciones que no tiene chances de ganar, Barrera planea y ejecuta, como último

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recurso, su propio secuestro. Durante su ‘secuestro’, Barrera evoca su pasado: origen familiar peronista, militancia clandestina durante la primera etapa de la Resistencia y delegado combativo dentro de la fábrica después. Hacia 1959, y ante la posibilidad de recuperar los sindicatos, Barrera concreta su primer negocio con la patronal. Llega a la dirigencia del gremio metalúrgico y, a la vez que asegura beneficios para los afiliados, negocia bajo cuerda con los factores de poder porcentajes de ganancias o beneficios políticos. Al final, la maniobra de autosecuestro da resultado y Barrera gana las elecciones, pero mientras festeja la victoria en las oficinas del sindicato, es muerto a tiros por un comando revolucionario. En la historiografía argentina, el estudio del cine y la historia es reciente pero ha tenido un sostenido crecimiento, aunque referido a nuestro problema específico, la producción académica es escasa. Sí es posible, en cambio, encontrar trabajos que analizan la relación entre arte y política en Argentina, particularmente la difícil relación entre vanguardias culturales y vanguardias políticas, como los de Andrea Giunta (2001), Ana Longoni (2005) y Nilda Redondo (2004). Acerca de Gleyzer, Cine de la Base o Los Traidores, la primera aproximación data de 1995, un artículo de Fernando Martín Peña en la Revista Film. Más tarde apareció El cine quema, del mismo Peña junto a Carlos Vallina, donde se reconstruye

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la trayectoria de Raymundo Gleyzer a través de testimonios de sus compañeros de ruta (PEÑA y VALLINA, 2000)1. Respecto del proceso histórico que se desarrolló entre 1955 y 1976, la bibliografía existente es pródiga en cantidad de trabajos y variedad de enfoques, y por lo demás, bastante conocida. De este corpus, nuestra referencia para la primera parte del artículo es el estudio clásico de Daniel James acerca del sindicalismo peronista, Resistencia e Integración (1990), que hace especial hincapié en el surgimiento de la llamada ‘burocracia sindical’. También el número de trabajos sobre la Nueva Izquierda en los sesenta y setenta creció en los últimos años. Para nuestros objetivos seguimos aquí el estudio de Cecilia Luvecce (1993) sobre el Peronismo de Base (PB) y las Fuerzas Armadas Peronistas (FAP), y el libro de Pablo Pozzi (2001) sobre el Partido Revolucionario de los Trabajadores – Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP). No abordaremos intensivamente la película desde una sola perspectiva de análisis, como lo hemos hecho en un trabajo anterior, donde sólo nos deteníamos en el film como documento, para reconstruir la experiencia de un grupo social (ALVIRA, 2009). Más bien aquí intentaremos explorar brevemente las posibilidades que ofrece un abordaje múltiple sobre una película. Analizaremos Los traidores a la vez como documento histórico – que como tal exige ser interpretado-, en tanto nos brinda información sobre modos de vida y pensamiento: la resistencia peronista, las relaciones obrero-patronales y obrerosindicales, la conflictividad cotidiana, entre otros aspectos del proceso histórico; como escritura de la historia (reciente), en cuanto el

relato mismo proporciona una interpretación del período histórico, intentando trazar la relación entre la recreación hecha por el film a través de la estrategia ficcional y la interpretación del proceso por parte de las organizaciones revolucionarias; y por último, como herramienta política: establecido el vínculo orgánico del Grupo de Cine de la Base con el PRT-ERP, situaremos la película en el contexto de la difícil relación entre vanguardias políticas y vanguardias artísticas. Escenas de la vida sindical En una primera instancia, elegimos para el análisis algunas escenas que son especialmente útiles para abordar dos temas fundamentales del período 55-76: la clase obrera y los líderes sindicales ante el gobierno militar de la ‘Revolución Libertadora’, y la conformación y consolidación de la burocracia sindical. El primer tema que se nos aparece es La Resistencia, primera escala en el activismo del joven Roberto Barrera. Con la llegada al gobierno de la facción encabezada por el general Aramburu, que se propuso explícitamente borrar al peronismo de la sociedad argentina, la política del gobierno con la clase trabajadora siguió tres líneas principales: primero, se intentó proscribir legalmente un estrato entero de dirigentes sindicales peronistas, en concordancia con la intervención de la CGT (Confederación General del Trabajo); segundo, se practicó una política de represión e intimidación del sindicalismo y sus activistas de base; por último, un esfuerzo conjunto por parte del gobierno y los empleadores en torno al tema de la productividad y la racionalización del

También debemos destacar un reciente artículo de Mariano Mestman (2008).

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trabajo, junto con un freno a los salarios y la reestructuración del sistema de negociaciones colectivas. La ofensiva antiobrera y antiperonista, sumada al abandono de la vieja dirigencia sindical, provocó en un amplio sector de las masas peronistas una reacción que comprendió variadas formas de lucha, violentas y no violentas, conocidas en conjunto como La Resistencia. Julio de 1956. Roberto Barrera y un compañero preparan los “caños” y los suben a un coche. Más tarde, almuerzo en la casa de la familia Barrera. PADRE: Porqué no dejás eso, Roberto. BARRERA: ¿Qué? PADRE: Porqué no trabajás dentro de la fábrica con la gente, en vez de tirarle bombas a los gorilas. Todos lo queremos a Perón, pero si no hay organización no se ven los resultados. Yo peleo desde el ’30, Roberto, y tiré muchas bombas y muchos petardos, y me corrieron más que a vos. BARRERA: Es otro momento, viejo. PADRE: Claro que sí. Por eso te digo, que lo mejor para aplastar a estos oligarcas es dedicar tus fuerzas a organizar a la gente dentro de las fábricas.

Desde mediados de 1956, fundamentalmente desde el fracaso del levantamiento del general Valle, es posible percibir con más claridad las divergencias dentro de ese heterogéneo grupo de prácticas conocido como ‘La Resistencia’. El hecho principal es que desde ese momento, tras confirmar que no era posible derrumbar al régimen en el corto plazo, los activistas peronistas obreros se concentraron en la recuperación de las comisiones internas y los sindicatos. La resistencia sindical, vinculada más directamente a la vida cotidiana de los trabajadores peronistas, se iba a diferenciar crecientemente de los comandos empeñados en el sabotaje y demás actividades clandestinas (JAMES, 1990, p. 119). El propio Barrera se convencerá de que ese es el camino que hay que tomar: 116

Abril de 1957. Barrera camina junto a su novia, Paloma, por la orilla del Riachuelo. PALOMA: ¿Así que te nombraron delegado? BARRERA: Sí. El viejo tiene razón. La mayoría de los compañeros están presos y no pasa nada. PALOMA: Pero vos nunca fuiste delegado... BARRERA: Y... Alguien tiene que poner la cara. Si todos escabullimos el bulto... Ya no lo tenemos más a Perón en la Plaza de Mayo, y los burócratas que andaban con él se hicieron humo, te das cuenta... Ahora es necesario organizar a la gente para enfrentar la violencia de los gorilas. Bueno, para eso somos de ideología peronista, ¿no? PALOMA: ¿Qué es para vos la ideología peronista? BARRERA: Y para mí, la ideología peronista es ser fiel a Perón, qué va ser. Puse bombas cuando creí que así provocaría el regreso de Perón. No resultó. Ahora voy a ser un puente entre Perón y mis compañeros, y a ver qué pasa...

El surgimiento de estos nuevos líderes sindicales no sólo estuvo relacionado con la frustración de la resistencia violenta a la dictadura, sino con el ataque directo del gobierno militar y la patronal al poder de los obreros en el lugar de trabajo. Según James: […] casi todo operario que pudiera ser conceptuado un ‘perturbador’, era vulnerable y estaba expuesto a represalias, al capricho del sector patronal (1990, p. 91).

Barrera, ya delegado de fábrica, construye su liderazgo local a través de la férrea defensa cotidiana de los derechos de los trabajadores ante el ataque del Estado y los empresarios. Octubre de 1957. Taller de la fábrica Aluminifer. Un supervisor recorre el taller cronometrando el tiempo de las tareas de cada obrero. De pronto, se escucha un grito de dolor. Es un obrero, que se lastimó la mano con una máquina. Lo auxilian los compañeros. El capataz les dice que no es nada, que se arregla con un apósito, que sigan trabajando. Aparece Barrera, que no permite que sigan trabajando. Al escuchar los gritos, baja de su

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Historia Social y Cine: una aproximación al período 1955-1976 a través de Los Traidores oficina Benítez, el encargado de la fábrica. BENÍTEZ: ¿¡Qué es lo que no va a permitir usted!? (Al capataz) Acompañe a este hombre a la enfermería. (Al resto) Y ustedes, sigan trabajando. (A Barrera) Y en cuanto a usted, le reitero que aquí no ha pasado nada más que lo que está a la vista de todos. BARRERA: Es el tercer compañero que se lastima esta semana. Y eso es por el trabajo incentivado. Mi obligación como delegado es impedir que esta fábrica se convierta en una carnicería. BENÍTEZ: Su obligación es mediar, no imponer. Las imposiciones aquí las ponemos nosotros, en primera instancia. Las conversaciones vendrán después. El trabajo incentivado lo estamos tratando con el sindicato. BARRERA: La intervención, querrá decir usted... BENÍTEZ: ¡Hágame el favor de volver a su trabajo! Y ustedes también.

El film le dedica buen metraje a la génesis del burócrata, y deja ver la legitimidad de origen de estos nuevos líderes. Como explica James: […] proscriptos muchos de los que eran hasta entonces dirigentes gremiales, adquirieron normalmente prominencia los activistas que se habían distinguido en la acción diaria en los sitios de trabajo. (1990, p. 107)

Establecidos sus orígenes, la película hace el centro de su relato las prácticas de este tipo de dirigencia sindical peronista que se consolidó después de 1959, y que se conoce como vandorismo. Una estructura gremial centralizada y definida por su permanente negociación con los otros factores de poder y sus alianzas cambiantes, caracterizada además por prácticas tales como el fraude electoral, el gangsterismo, el enriquecimiento personal, entre otras, en las cuales la película se detiene con particular atención. Luego de su actividad como delegado en la fábrica y haberse ganado el apoyo de las bases en primer término, y más tarde cierta confianza del sector patronal, en

1959 Roberto Barrera es elegido secretario general del gremio metalúrgico. A partir de allí, consolidará su poder a través de una serie de prácticas que rompían tanto con la incipiente democracia sindical del período 55-59, como con la posición de resistencia al gobierno y la patronal, además de poner en cuestión su propia reputación y su historia de militante. Y es que luego de la coyuntura especialmente conflictiva de 1959, la relación bases-dirigentes cambió y la defensa de los intereses de los trabajadores tomó otros caminos. Según James: En cada sindicato, la dominación por la nueva jerarquía peronista emergente se consolidó a medida que continuaba el proceso de desmovilización de las bases y el sacrificio de activistas. (1990, p. 222)

Es notable como Barrera ya negocia en otros términos frente a la patronal: Octubre de 1963. Casa de Benítez, gerente de Aluminifer. Barrera está reunido con Benítez y Carmona, otro empresario del sector. Están negociando el despido de 200 operarios de la empresa de Carmona. BARRERA: Por el 10 % este negocio no nos interesa para nada. Estamos arriesgando demasiado. Tenemos que repartir con los de la comisión interna. BENÍTEZ: ¿Otro scotch? CARMONA: Qué le parece si fijamos una cifra de $ 20.000 por cada operario que despidamos. BARRERA: Ustedes tuvieron una experiencia nefasta por no consultarnos a nosotros. Les tomaron la fábrica, perdieron millones en eso, y ahora me viene a pichulear 5.000 o 10.000 pesos. Pero en fin, dejémoslo en 20.000 por cabeza. Tenemos que ponernos de acuerdo en lo que vamos a decirle a la gente. Hay que ser tácticos con ellos. Hay que convencerlos que los juicios son costosos, lentos e inseguros. En cambio, guita fresca es guita fresca. ¿Trajo la lista de los 200 tipos? CARMONA: Sí, justamente acá la traje. Sírvase… BARRERA: (Mira la lista) ¡Eh, no! Ustedes no

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Pablo Alvira pueden echar a Vidoglio, a Fornese, Vilbecq, esos son todos activistas de nuestra lista. En cambio no veo ni a Bravo, Campucheli, Rubén Saldívar, que son todos comunistas conocidos. ¡Ustedes no saben ni lo que tienen adentro! CARMONA: La verdad… Esta lista fue elaborada por los supervisores en base al legajo de cada uno. Se trata de quedarse con los mejores obreros. BARRERA: Colasurdo, Polacoff, Bassi, Saldías; ¡Pero cómo quieren que salga bien esto si dejan a todos estos asquerosos adentro! BENÍTEZ: Pero Barrera, usted quiere echar a todos los de la lista opositora. Y muchos de ellos me consta que son peronistas. BARRERA: Benítez, usted sabe bien que lo que es malo para nosotros, es malo también para ustedes.

Incluso acciones obreras que son símbolo de la fuerza de la clase, como la huelga, se negocian e instrumentan en beneficio de la patronal y de los dirigentes sindicales. Pero los mecanismos de negociación de la cúpula sindical no son los únicos que el film reconstruye. Hay otros resortes del poder sindical que son expuestos, como los medios usados para ganar las elecciones sindicales. El disparador de la película es la elección del sindicato de Barrera, cuyo resultado no está asegurado para los burócratas, por lo que Barrera ejecuta una arriesgada maniobra de propaganda (su autosecuestro) y gana las elecciones. Pero a este extremo Barrera llega en un momento de crisis de la burocracia sindical, a principios de los setenta, cuando ni el fraude le garantiza el triunfo. Durante el auge del vandorismo, sostiene James, un importantísimo: […] factor de conservación del poder en un sindicato era la posibilidad que una cúpula tenía de controlar las elecciones, lo que le permitiría interceptar el paso a cualquier oposición interna (1990, p. 230). 2

Oposición interna que en la película es disciplinada violentamente. La primera secuencia muestra a unos matones golpeando a una persona, que después identificaremos con un grupo de la oposición combativa. También son interesantes, aunque desigualmente logradas, otras secuencias que muestran a los dirigentes sindicales en contacto directo con los militares, dentro y fuera del gobierno, así también como secuencias que evidencian la implicación directa de intereses norteamericanos en el proceso político argentino. El ejemplo más acabado de la síntesis que propone Los traidores es la escena de la inauguración de la nueva sede del sindicato de Barrera, ubicada en mayo de 1966. Asisten al evento muchos de los actores políticos con los cuales la burocracia sindical negocia: el empresario Montesi, que corta la cinta de inauguración, un coronel que ya habla de golpe de Estado con Barrera, y hasta el delegado de los sindicatos norteamericanos que negocia con Barrera el otorgamiento de créditos a cambio de ‘capacitación’ para dirigentes. Aparte de sus virtudes artísticas, la reconstrucción de estos mecanismos es uno de los mayores logros de la película. La notable recuperación de las prácticas concretas del ámbito sindical evidencia un apropiado uso por parte de los guionistas de la información recabada en el trabajo de investigación previo al rodaje. Esto posibilita que la película se convierta en una fuente válida para acercarnos a ciertos aspectos del proceso histórico, por cuanto es una ‘condensación’ de un modelo de práctica sindical2.

Tomamos la definición de ‘condensación’ dada por Rosenstone: “[…] la convención, la ficción, que nos permite seleccionar unos determinados datos y acontecimientos que representen la experiencia colectiva de miles e, incluso, de millones de personas que participaron o padecieron hechos documentados”. (2000, p. 59)

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Historia Social y Cine: una aproximación al período 1955-1976 a través de Los Traidores

Visiones del pasado (y del presente) Para nuestro análisis, no partimos de la premisa de que Los traidores es ‘una película del PRT’, porque no hay elementos que nos sugieran esa posibilidad, más bien los hay en sentido contrario. Según Nerio Barberis, miembro de Cine de la Base, […] la información básica de la película proviene de gente que estaba en el Peronismo de Base. Nunca del PRT ni de nada por el estilo. No hubo ninguna experiencia del PRT en nada de la película. Se que después en la legalidad la ve gente del PRT que dicen ‘¡qué bárbaro!’, y qué se yo, pero nada más (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 101).

Sin embargo es inevitable, y necesario, ver cómo el film se vincula con la interpretación histórica del partido. En primer lugar, porque los realizadores aceptaban como miembros del partido el corpus general de la elaboración teórica del PRT y de sus análisis concretos. En segundo lugar por el hecho de que, aunque tardíamente y no sin debate, el PRT asume como propia la película, porque consideraba que era útil para discutir el tema sindical. La pista del Peronismo de Base es claro porqué hay que seguirla: el relato está construido en base a información proporcionada por miembros de dicha organización. Para tratar de visualizar el intento de interpretación histórica que realiza el film tomamos en consideración su mirada sobre tres de las cuestiones más significativas que la película plantea: la clase obrera argentina, la traición de la burocracia sindical y el asesinato de los dirigentes ‘traidores’. Respecto a la cuestión de la clase obrera, la película no consigue mostrar una clase movilizada defensivamente, por intereses económicos, en consonancia con sus dirigentes, como efectivamente sucedió en algunos momentos. No muestra las bases

de sustentación de la burocracia sindical, que parece sólo sostenerse por el engaño. Tampoco muestra como esas bases incluso superaron a sus dirigentes en pleno auge del vandorismo, como durante el Plan de Lucha de 1964. Sólo se detiene en los grupos clasistas y/o antiburocráticos. Parece campear una visión idealizada de la clase obrera, que es necesario filiar. Según Pablo Pozzi, el propio PRT: […] generó una idealización de la clase obrera. La absolutización del proletariado como prototipo de todas las virtudes tuvo su basamento en el trotskismo, pero en el PRT-ERP llegó a convertirse en un obrerismo liso y llano. La clase obrera y, por extensión, cada obrero individualmente se convirtieron en el exponente de todas las virtudes. (2001, p. 103)

A la vez, el PRT-ERP consideraba que ‘no existe una clase obrera fuerte y madura, capaz de plantearse encauzar la expansión de la fuerzas productivas por una vía de desarrollo socialista’. Por lo tanto, la lucha armada debía desarrollarse en ligazón con aquellos sectores de la vanguardia del proletariado. A su vez, esta vanguardia era definida como aquellos obreros que apoyaban o eran permeables a la lucha armada. Esta consideración de la clase obrera implicaba una particular concepción del peronismo, ya que si bien el PRT se rendía ante la evidencia de identidad mayoritariamente peronista de la clase obrera argentina, la calificaba de atrasada. Para el PRT la lucha económica era vista como un nivel inferior de la lucha proletaria: la lucha armada era por definición revolucionaria y fundamental. Visión que hacían suya los autores de Los traidores, como lo recuerda Álvaro Melián: […] nuestra perspectiva realmente tenía una desviación obrerista, había una visión

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Pablo Alvira muy estilizada – digamos – de lo que era el problema obrero. Lo veíamos como una porción de la realidad, donde se resumía el núcleo central de la clase revolucionaria y a todo el resto le prestábamos muy poca atención. Las mediaciones no la teníamos muy claras, la posición era muy ultra en ese sentido (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 103).

El Peronismo de Base incurría también, a su modo, en la caracterización de una clase obrera virtuosa, aunque traicionada por la dirigencia sindical. Según la visión de este sector del peronismo, explica Luvecce: En ‘las bases’, pareció prevalecer el sentido del peronismo como movimiento social de oposición que negaba el poder al asociarlo a la corrupción, a los símbolos y los valores de la elite dominante, y como una voz potencialmente herética que daba expresión a los reclamos y esperanzas de los oprimidos. (1993, p. 31)

De esta forma, el ‘Peronismo Alternativo’ de fines de los sesenta “[…] se funda una reinterpretación del componente herético y “[…] ‘basista’ de la ideología peronista ‘original’” (LUVECCE, 1993, p. 31). La película se esfuerza en mostrar una alternativa sindical antiburocrática, pero en contraste con la escrupulosa descripción del derrotero de la burocracia sindical, la introducción de la oposición sindical es insegura, sus orígenes son desconocidos y sus contornos aparecen difusos. Parece ser un compendio general de las distintas tendencias sindicales antiburocráticas – clasistas, combativas y de liberación- e incluso de diferentes formas de lucha, como las tomas de fábricas y la lucha armada. Según Alvaro Melián: Nosotros acá no estábamos trabajando con esa realidad, y eso en la película se nota. Los personajes que reivindican una posición de tipo clasista son muy declamatorios, y la historia no

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está estructurada dramáticamente sobre algo que la ligue a toda esa tradición anterior (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 119).

La alternativa que la película presenta como viable para la clase obrera, el sindicalismo antiburocrático, ¿tenía que ver con los intereses del PRT-ERP? Como señala Pozzi, “[…] las resoluciones de V Congreso consideraban a la tarea sindical como meramente propagandística” (2001, p. 109). Aunque son conocidos los vínculos entre el PRT-ERP y sectores sindicales antiburocráticos, hacia 1972-73 el foco estaba puesto en otro lado. A pocos meses de las elecciones nacionales, ‘meses de preparación’ que le permitirían al partido jugar un rol protagónico en la inminente ofensiva de las masas, las resoluciones del V Congreso dedican unas pocas líneas al frente sindical. Según sugiere Cecilia Luvecce respecto del Peronismo de Base, Su existencia cercana a las bases lo mimetizó con ellas […] La apuesta ‘en las bases como ámbito privilegiado para construir un poder alternativo’ surgía probablemente, de las experiencias sindicales del PB en SITRACSITRAM, Córdoba, y en Tucumán (1993, p. 92).

La confluencia del clasismo y Peronismo de Base se manifestó fundamentalmente en Córdoba, y se hace palpable en un volante que el PB lanzó cuando SITRAC-SITRAM organizó la ocupación en Córdoba las plantas de FIAT en 1971: […] esta toma es un punto, es un paso, es una de las formas que tiene la lucha del pueblo y la clase trabajadora para recuperar el poder. FIAT ha dado su ejemplo al combatir a las direcciones sindicales traidoras, las que bajan sus cabezas ante el poder de nuestros enemigos y se venden, los que nunca confiaron ni confían en las fuerzas de la unión y la solidaridad de clase (VOLANTE del PB, 04/1971).

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Como vemos, en el film hay una combinación de dos perspectivas que de alguna manera confluyen en una idealización de la clase obrera: una perspectiva centrada en un núcleo revolucionario al que debe seguir el resto de la clase obrera, y otra irreductiblemente basista que deposita en las masas obreras el legado original y ‘subversivo’ del peronismo. Por otro lado, la alternativa sindical opositora y antiburocrática fue indudablemente una bandera del núcleo FAP-Peronismo de Base. Mientras que para el PRT-ERP, no fue un tema central hasta tiempos más tardíos3. 1959. Barrera está reunido con el gerente Benítez. Los obreros de la fábrica están trabajando a reglamento, hasta que la empresa baje los topes de producción. La discusión es fuerte, Barrera parece irreductible. BENÍTEZ (Se acerca a Barrera y le habla en un tono más conciliador): Usted Barrera, es un hombre de muchas posibilidades. Es firme, tiene ascendiente sobre los trabajadores. La empresa no tiene inconveniente en tratar con un delegado así. Aluminifer, como empresa líder, maneja información confidencial. Sabemos que el gobierno de Frondizi está dispuesto a llamar a elecciones para devolver los sindicatos. En esta zona, usted y su gente son los únicos que pueden presentar una lista que pueda ganar. Pero aquí van a jugar los que se avengan al diálogo, de llegar a un acuerdo entre las partes. Los otros no, los otros van muertos.

La escena precedente narra lo que será la primera inflexión en la trayectoria del futuro burócrata. En la escena siguiente, le confiesa a su novia que levantó el trabajo a reglamento, provocando una profunda desilusión en ella. La justificación de Barrera será variada: ‘tienen que aumentar los precios, y eso bajaría las ventas, y adónde vamos a parar nosotros’ o ‘no es momento para endurecerse demasiado. 3

No hay que darle motivo para que posterguen las elecciones [del sindicato]’. La película hace hincapié en el cebo institucional y la corrupción personal, y no refiere en ningún momento a una cuestión fundamental: la nueva correlación de fuerzas luego de los conflictos de 1959, muy desventajosa para los sindicatos frente al gobierno. En un contexto de desmoralización y aislamiento, de abandono de la militancia, fueron los líderes que optaron por el ‘pragmatismo institucional’ quienes se hicieron depositarios de la confianza de una gran parte de los trabajadores. El perfil del vandorismo que el film transmite es inequívoco. Sin embargo, en realidad la imagen contemporánea era ambivalente. Como bien observa James, […] para el público argentino, y ciertamente para las fuerzas sociales y políticas rivales, Vandor y sus camaradas sindicales estaban asociados también a la movilización masiva encarnada por la ocupación de fábricas (1990, p. 225).

Si la realidad no era tan simple, lo que debemos hacer es indagar de donde provienen los elementos conceptuales que Los traidores incorpora para su tratamiento del problema. Aunque más tarde el PRT-ERP matizaría su posición, hacia 1972 el problema sindical y por ende la cuestión de los ‘traidores’ no era ni mucho menos central hacia el interior del partido. Como ya hemos visto, la lucha sindical ocupaba un lugar importante pero subordinado en la lucha revolucionaria. Para quien la burocracia sindical y el corte ‘leales’ y ‘traidores’ era muy importante, era el que dio en llamarse ‘Peronismo Alternativo’ (LUVECCE, 1993): las FAP y el Peronismo

Cobra mayor importancia para el partido hacia 1974, con el desarrollo del Movimiento Sindical de Base (MSB), en el marco de un más amplio trabajo legal del PRT-ERP. Ver De Santis (2000, pp. 49-122).

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de Base. Para el PB la ruptura con lo que ellos llaman burocracia era radical. Por ejemplo: Para ello es necesario que la tendencia vuelque sus esfuerzos en el trabajo ideológico, político y organizativo en la clase obrera, en sus lugares de trabajo, para disputar el poder al enemigo principal, la burocracia, en el lugar donde encuentra su poder (Militância, 16/08/1973).

Para este sector del peronismo, […] el valor de la lealtad y el principio de la intransigencia frente a la negociación política actuaban como definitorios del enfrentamiento con los enemigos políticos. La prescindencia de la lealtad y la intransigencia en la acción revestía, inmediatamente, la connotación de traición y, por tanto, daba curso al enfrentamiento (LUVECCE, 1993, p. 111).

El relato del ascenso del burócrata, así como es revelador sobre ciertos aspectos, hace eje en la traición y no se refiere a otras variables decisivas en la constitución de la burocracia sindical: las derrotas de 1959, la situación del ala sindical respecto del movimiento, entre otras. Tampoco hay indicios de los conflictos dentro del propio sindicalismo peronista ni se refiere, además, a la crisis de la burocracia sindical después de 1966. Sin duda, la escena final del asesinato del burócrata fue la que más controversia causó entre quienes la vieron en ese momento, sobre todo cuando se exhibió más libremente en 1973. De acuerdo a Álvaro Melián, el PRT asumió Los traidores una vez terminada. El guionista sostiene que, aunque con críticas y objetando el final, el partido la asumió

porque le pareció útil para abrir el debate sobre el tema de la lucha antiburocrática4. Según Manuel Gaggero, importante dirigente del Partido: En esa época participé en el debate que generó Los traidores dentro del PRT, porque el final era, de algún modo, observado. Sectores del partido e inclusos sectores aliados opinaban que el final, la ejecución del burócrata, no era el final que nosotros propiciábamos. Más bien suscribíamos a la idea de que los burócratas tenían que ser reemplazados por la organización de las bases y el desarrollo de corrientes antiburocráticas. La película parecía proponer una solución militar, armada, aún cuando –como Raymundo decía- lo que hacía era en realidad reflejar lo que pasaba (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 93).

El asesinato de burócratas tampoco era una acción promovida por el Peronismo Alternativo, enconado enemigo de la burocracia. Luego de la ejecución de Alonso por un comando del ENR 5 , las FAP no lamentaron la pérdida pero dejaron en claro que esa no era la solución, al menos hasta ese momento: Entendemos que, una vez desatado el proceso y los traidores estén claramente marcados por el movimiento obrero, va a haber que ejecutarlos; pero también entendemos que el nivel del proceso no está para ajusticiarlo a Alonso (Cristianismo y Revolución nº 28).

Para FAP y Peronismo de Base, estaba claro que no se podía sustituir a las masas por las armas. La posición de otras agrupaciones peronistas como Montoneros y el mencionado ENR, era diferente. Su violencia contra la burocracia sindical, respondía, según Pozzi y Schneider (2000, p. 56),

A medida que pasaba el tiempo, la incomodidad con el final se hizo más evidente. El propio Gleyzer se dio cuenta de esto, y comenzó a concebir un epílogo para la película, que envuelto en la urgencia de aquellos años, no alcanzó a concretar. 5 Ejército Nacional Revolucionario, grupo armado de la izquierda peronista que también ejecutó Augusto Vandor y que más tarde se incorporó a Montoneros. 4

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Historia Social y Cine: una aproximación al período 1955-1976 a través de Los Traidores […] a una tradición (muchos activistas se formaron de la mano de la burocracia sindical e incorporaron muchos de sus criterios) o simplemente porque la política era percibida como un problema de espacios y no de masas.

Aunque la solución de la ejecución no era compartida por la mayoría de las organizaciones, la película introduce otros elementos para comprender el clima de época: por un lado, que había grupos que sí propiciaban el asesinato de sindicalistas, como Montoneros y otras agrupaciones menores; por otro, hay que señalar que más allá de la condición de burócrata, había actos como la delación, la entrega de militantes y la tortura – todos cometidos por Barrera – que eran considerados pasibles de ejecución revolucionaria por casi todas las organizaciones. Al hacer este abordaje, constatamos entonces en Los traidores la presencia de concepciones concurrentes, ligadas fundamentalmente al PRT/ERP y al núcleo Peronismo de Base-FAP, y también de otros elementos que son sintomáticos del período, como lo demuestra la polémica escena final. Cine y Revolución El proceso político que se desarrolló en la Argentina entre 1955 y 1976 – sobre todo lo que acaeció después del Cordobazo, en 1969- comportó una reconfiguración del campo popular, y dentro de él, una redefinición del papel que le cabía a los intelectuales en general y a los artistas en particular. Quienes se autodenominaban ‘trabajadores de la cultura’ se involucraron en

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los distintos combates y se debatieron entre el arte y la revolución. En el cine argentino es el movimiento llamado Tercer Cine, liderado por Cine Liberación y en cuya estela se sitúa Cine de la Base, el abanderado de estos cambios. Este cine, según explican España y Manetti, […] es un movimiento de lucha contra los otros: el primero, el cine hegemónico en sus fórmulas de industrialización; y el segundo el llamado cine de autor, en exceso individualist. (1999, p. 296)

Cine de la Base, vinculado al PRTERP, intentó ser en cierta forma difusor cinematográfico de la organización políticomilitar. Pero no sólo su obra más importante es difícil de identificar con el Partido –como vimos en las páginas precedentes – sino que la relación en general fue complicada y ambigua. Además de su importancia como organización político militar, es reconocido que el PRT-ERP fue una de las experiencias más interesantes de la lucha revolucionaria por su eclecticismo. En torno al eje del legado guevarista, supo nutrirse también de las más variadas corrientes del marxismo (POZZI, 2001). En este contexto de apertura, no es extraño que se haya producido la creación de un frente cultural a instancias de intelectuales vinculados al Partido. Así surgió el Frente Antiimperialista de Trabajadores de la Cultura (FATRAC), nucleamiento de artistas e intelectuales generado desde el PRT, creado en 1968 y disuelto hacia 19716. Los tiempos que corrían exigían a los intelectuales cuestionar su rol en el proceso revolucionario: […] abandonar el individualismo burgués y dejar de considerarse seres excepcionales

De ese año son los últimos documentos fechados a lo que tuvo acceso Ana Longoni (2005, p. 21). Lo que no obsta para que los artistas hayan seguido activando individualmente luego de la disolución del Frente.

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Pablo Alvira pero seguir produciendo en un contexto de construcción y producción intelectual colectiva y subversiva (REDONDO, 2004, p. 44).

Según un reconocido intelectual que participó del FATRAC: […] se discutía sobre la práctica inmediata. Es decir, acá no era cuestión de estar discutiendo: ‘Bueno, ¿que hacemos?’ Sino que estaba la huelga de los petroleros de Ensenada y decíamos: ‘vamos a volcar tarros de petróleo’. Estábamos organizados en función de una operatoria militar. Pero era toda una experiencia porque el cartel lo hacían los artistas […]; era una experiencia donde las dos vanguardias se fusionaban, las dos instancias se fusionaban (CASULLO apud LONGONI, 2005, p. 32).

Pero el acercamiento de las vanguardias a r t í s t i c a s h a c i a l a s o rg a n i z a c i o n e s revolucionarias no pareció verse correspondido con un flujo similar desde las vanguardias políticas. Un miembro de Cine de la Base recuerda: Como Raymundo, yo me relacioné con el PRT en la época del FATRAC, porque era un frente cultural. El Flaco Álvaro se enojó mucho, peleó mucho cuando lo cerraron. Pero era una época en la que, bueno, la orden era esa y no se discutía más. El planteo de ellos era que el FATRAC era un frente pequeño burgués que no coincidía con la propuesta revolucionaria. La propuesta revolucionaria era la proletarización de la pequeña burguesía (BARBERIS apud PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 71).

Para quienes formaron parte de aquel proceso, la evocación de esa limitación es amarga, y forma parte de una autocrítica que incluye a la política cultural como uno más de los graves errores que cometieron las organizaciones en la urgencia, en el vértigo del tiempo político. El compromiso revolucionario personal, que los intelectuales y artistas ofrecieron a las organizaciones, parece no haber provocado una apertura en

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sentido contrario, favoreciendo la recreación de una cultura de izquierda y revolucionaria. Según el testimonio de Nerio Barberis: Había una estrategia político militar, pero nunca una contribución, por el lado de la cultura, que se integrara a esa estrategia en forma dialéctica. Eso nunca existió. Lo que había era una serie de tipos que daban órdenes, y después otra serie de tipos como Raymundo, que por ahí se pasaba el día circulando por todo Buenos Aires para dejar la prensa del partido a los contactos que tenía. Esa era la realidad (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 140).

Para Luis Mattini, secretario general del PRT luego de la muerte de Santucho, el error del partido era pensar que esa cuestión la tenía resuelta como supuestamente tenía resueltos los problemas políticos, sociales y económicos. Reconoce que Santucho y algunos de los hombres más cultivados de la dirección del partido, aunque partidarios del realismo estético, estaban mucho más allá de las simplificaciones del ‘arte de compromiso’ o la banalización del arte en un supuesto ‘realismo socialista’. Sin embargo, considera que […] no pasaban más allá de las elaboraciones de la dirección del PRT con respecto a los lineamientos políticos para la intelectualidad progresista, y todo el esfuerzo volcado sobre ese sector tenía un carácter fuertemente orgánico, fuertemente utilitario, destinado al aprovechamiento concreto e inmediato en la política ‘legal’…[…] Pero la fuerza de la lucha política de la Argentina de los sesenta y setenta era tan enorme y el prestigio del PRT-ERP era tan creciente, que muchos intelectuales se incorporaron a pesar de las limitaciones que he comentado (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 140).

Aún en estas condiciones, el FATRAC le permitió a Gleyzer consolidar un grupo de trabajo junto con Álvaro Melián y Nerio

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Barberis. En ese marco realizaron dos Comunicados filmados sobre acciones del ERP7. Entre 1971 y 1972 rodaron Los traidores, iniciativa en la cual, como ya hemos visto, el PRT no tuvo ninguna intervención. Melián explicaba así la motivación del grupo a la hora de hacer la película: No sé hasta dónde creíamos en el grado de operatividad de una película, pero lo que sí es cierto es que sentíamos como la necesidad de responder a un desafío de la realidad que estaba tendido. Nos molestaba el hecho de que el cine argentino no hubiera atendido a esa realidad, lo que se estaba dando en un momento como ese, con un vértigo enorme. La realidad se presentaba con tantos matices, tan llena de elementos para encontrar claves cinematográficas que era necesario plantearse una respuesta (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 94).

Cine de la Base nació posteriormente a instancias de Gleyzer con el objetivo de facilitar la distribución de los materiales que el grupo de realizadores producía, principalmente Los traidores8. Según Nerio Barberis, uno de los integrantes: La película estaba hecha, el no tenía ningún interés que la película se diera en una sala: tenía que ir a la base y la base no iba al cine. Al cine iba la clase media. Peor si la película la ponían en una sala de arte. El quería que la película se viera en las villas, en los sindicatos, que la vieran los sectores populares (PEÑA Y VALLINA, 2000, p 137).

La idea de ‘llevar el cine a la gente’ no sólo implicó la circulación de la película en esos ámbitos, sino que el grupo acometiera una empresa más ambiciosa aún: la construcción de salas de cine. Luego de la construcción del

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Cine de la Base nº 1, con una capacidad de 200 personas, y a medida que se acumulaban los materiales, el grupo se propuso la construcción de 50 salas en todo el país. El objetivo no se cumplió, pero el intento significó un acontecimiento significativo de participación. El recuerdo de la experiencia por sus participantes hace hincapié en la independencia que el grupo tenía respecto de la organización política, más allá de que el contacto era permanente, porque en la organización “había muy poca gente que entendía el valor de lo que se hacía”. N. Barberis recuerda la complicada relación con el Partido: Porque arriba-arriba entendían, pero un escalón más abajo ya nadie entendía nada. Entonces nosotros nos escudábamos diciendo: ‘Arriba-arriba entienden’. Alguien había dicho: ‘El cine es estratégico’. Nosotros lo usábamos como argumento cuando había algún problema: ‘Maestro, mirá que arriba dijeron que el cine es estratégico’. ‘Es verdad’. ‘Entonces no nos jodan. Déjennos tranquilos.’ Y había una autonomía absoluta en ese mecanismo. Nosotros planteábamos esto y pedíamos y buscábamos que se nos abrieran los espacios de comunicación, que tuviéramos recursos, que tuviéramos la posibilidad de profundizar en el tema de la exhibición (PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 138).

Una vez originado como un grupo de distribución, habiendo establecido el modo de hacer llegar las películas a la base, el grupo se centró en la producción. Luego de Los traidores, Cine de la Base encontró un canal propicio, aunque efímero, para su actividad. Logró relacionar su propio proyecto políticocinematográfico con el proyecto político del

Uno sobre el asalto al Banco Nacional de Desarrollo y el otro sobre el secuestro de Stanley Silvester, cónsul inglés y gerente del frigorífico Swift, ambos de 1972. El núcleo de Cine de la Base eran Gleyzer, Melián, Barberis y Juana Sapire. Luego formarán parte Jorge Giannoni y Juan Greco, entre otros.

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Frente Antiimperialista por el Socialismo (FAS), durante la corta existencia de éste. El grupo consiguió financiamiento para comprar material fílmico y proyectores, así como tirar más copias de Los traidores. Con el FAS había aparecido nuestra relación política directa. El FAS era un organismo nuestro, eramos parte de él; se movilizaba, y nosotros filmábamos parte de su accionar. Hacerlo era una necesidad. Así, hubo películas terminadas sobre el tercero y el cuarto congreso, dos documentales que Cine de la Base distribuía. También filmamos el quinto congreso, con un despliegue tecnológico brutal, con un montón de cámaras, pero nunca se pudo terminar de compaginar (BARBERIS apud PEÑA Y VALLINA, 2000, p. 141).

El grupo, sobre todo Gleyzer, parece haber cumplido un rol organizador importante del sector de cultura del FAS. De todas formas, la experiencia para Cine de la Base no fue más allá de una actividad vertiginosa que se cortó abruptamente con la desaparición del FAS. Luego de esto, Cine de la Base produjo dos obras importantes: Me matan si no trabajo y si trabajo me matan, sobre la enfermedad del saturnismo en una fábrica del Gran Buenos Aires, y Las tres A son las tres armas9. Con el golpe del ’76 el grupo se disuelve, entre el exilio exterior y el exilio interior o, como en el caso de Gleyzer, la desaparición. Ni El PRT/ERP ni el resto de las organizaciones pudieron generar instancias de articulación, donde el arte se incorporara como experiencia revolucionaria y no como repositorio de militantes. Haya habido o no capacidad y disposición, lo cierto es que no hubo tiempo. Como señala Ana Longoni:

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[…] no parece errado afirmar que en esta coyuntura los intentos por conjugar vanguardia artística y vanguardia política quedaron mayormente sujetos a la lógica (de las urgencias) de la política. (2005, p. 33)

Conclusiones Al emprender un abordaje múltiple sobre Los traidores no obtuvimos respuestas definitivas sobre los problemas, pero sí nos hemos aproximado a distintos aspectos del convulsionado período 1955-1976. Al tratar la película como documento, basándonos en lo visible del film, pudimos intentar la reconstrucción de las prácticas concretas en el espacio obrero-sindical: vimos quiénes eran y cómo se desenvolvían los nuevos líderes obreros en la fábrica durante la época de la Libertadora, y observamos también el ascenso vertiginoso de Roberto Barrera, develando en la reconstrucción de su trayectoria los mecanismos por los cuales se formó en la dirección del movimiento obrero peronista la burocracia sindical. Desde esta perspectiva de análisis, Los traidores se convirtió en un documento, por lo que revela, por lo que hace visible respecto del despliegue cotidiano de las relaciones sociales, de las manifestaciones concretas de la conflictividad social. En este sentido, Los traidores – como otros films – nos ayuda a reconstituir el ámbito de la experiencia inmediata de los sujetos. Para abordar el film como escritura de la historia, en pos de hallar la o las interpretaciones que ensaya la película e identificar las concepciones previas de las que se nutre, elegimos para analizar tres cuestiones: el modo en que se describe

Debemos señalar también el cortometraje Ni olvido ni perdón, sobre la masacre de Trelew en agosto de 1972, que el grupo realizó durante el rodaje de Los traidores.

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la traición de la burocracia sindical, la caracterización que hace de la clase obrera y la controvertida representación de la solución drástica para la burocracia sindical. El eje de la película es la traición de Roberto Barrera, el burócrata. El énfasis en los beneficios personales que acarreaba el ‘pragmatismo’ de la burocracia, oscurece en el film lo que dicho accionar tuvo de efectiva estrategia sindical, sus límites y sus alcances, ofreciendo una imagen del vandorismo más lineal de lo que fue en realidad. El énfasis en el antagonismo bases-burocracia pudimos atribuirlo al Peronismo Alternativo, para quienes el tema de ‘la traición’ era recurrente. No así para el PRT, para quien la cuestión sindical no era central antes de 1973. Por otro lado, el film no muestra las bases de sustentación de la burocracia sindical, quien parece perpetuarse mediante el engaño y la manipulación. La incapacidad de comprender a un sector mayoritario de la clase obrera centrado en reivindicaciones económicas, parece provenir de dos visiones que idealizaban, cada una a su modo, a la clase obrera. Una visión obrerista generada por el PRT, que se centraba en el núcleo revolucionario – vanguardia del proletariado – a la que el resto de la clase obrera no podía sino seguir; por otro lado, la caracterización del PB de una clase obrera virtuosa, depositaria del legado original del peronismo, pero traicionada por la dirigencia sindical. También estas concepciones impiden una caracterización precisa de lo que la película presenta como oposición antiburocrática, presentando estos grupos como una mezcla de las tendencias que efectivamente existían. La película introduce además otros elementos que no se vinculaban de manera explícita con las dos agrupaciones que ya referimos, pero sí con un clima de época y

otras ideas que circulaban. Por ejemplo, la escena final: la ejecución de los burócratas era rechazada tanto por el PRT/ERP y el Peronismo Alternativo, pero era una realidad cotidiana imposible de obviar, además de ser una acción reivindicada por otras organizaciones de izquierda. Por último, situamos a la película y a sus realizadores en el contexto de la difícil relación entre arte y política que se dio en el período. Las organizaciones político-militares y la izquierda en general no pudieron articular una cultura autónoma, contrahegemónica, comparable al menos con el notable desarrollo político y la marcada influencia en diversos sectores sociales alcanzado por muchas de estas organizaciones. Son muchas las razones, quizá una de las más importantes fue un anti intelectualismo que desestimaba la posibilidad de las propias expresiones artísticas como manifestación del compromiso político. Cine de la Base surgió en este contexto, y no fue fácil la relación de los cineastas con el propio PRT. Los traidores fue una iniciativa del grupo en la que el partido no tuvo ninguna intervención en su génesis ni en su realización, aunque participó en la difusión posterior, e incluso asumió tardíamente el film y lo utilizó para el debate, también tardío, sobre la cuestión sindical. Vimos también que no fue sin reservas la apropiación que hizo el PRT: por un lado porque la película presentaba una agenda de temas que eran claramente peronistas, pero muy fundamentalmente por la polémica escena final, donde el burócrata era ejecutado por un comando revolucionario. El grupo pareció encontrar por un tiempo su lugar en el mundo cuando participó – esta vez claramente como cineastas – en la experiencia del FAS, pero también en este caso el vértigo de la política abortó cualquier desarrollo.

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Pablo Alvira

Los traidores es un caso paradigmático de una de obra de arte concebida para la lucha política. Pero no lo es en un sentido lineal, sino problemático, ya que sus realizadores actuaron al margen de la organización política en la que militaban y el contenido de la película es por lo menos heterogéneo y no responde directamente – cuando no entra en conflicto – a los postulados de aquella organización, ni de ninguna otra, sino que se trata más bien de una superposición de perspectivas. La generalidad de la que seguramente peca este trabajo, posiblemente se compense en parte con la imagen diversa, abierta, que intenta construir del período, en torno a Los traidores. Imagen que consideramos que la convergencia entre el cine y la historia puede ofrecer. El análisis de un film, sea cual fuere el enfoque elegido, ciertamente no resolverá los problemas que otros registros historiográficos no consiguen resolver. Pero es posible que sea una puerta de entrada a ciertos aspectos de los procesos históricos que suelen ser obviados o marginados, y ayude a la construir una imagen más rica del pasado.

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Cultura Fotográfica na Bahia: Osmar Micucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960)

Valter Gomes Santos de Oliveira Professor de História da Universidade do Estado da Bahia, atuando no eixo de História da Europa, com concentração no período moderno. Possue mestrado em História Social pela Universidade Federal da Bahia e desenvolve pesquisas ligadas à história da fotografia e cidade.

Resumo

O presente artigo discute o olhar fotográfico de Osmar Micucci em Jacobina, cidade do interior baiano, entre as décadas de 1950 e 1960. Atuando como fotógrafo free-lancer na sociedade desde aquele período, ele produziu uma vasta obra que se destacou no universo dos fotógrafos da cidade pelo olhar refinado e variedade temática. Difundida em diferentes formatos e suportes, sua obra demonstra, entre outras coisas, as constantes transformações ocorridas no espaço cultural de Jacobina e a afirmação da fotografia como linguagem privilegiada para expressar os desejos daquela população pelos momentos vividos. Palavras-chave: Fotografia; Cultura; Cidade.

Abstract

The present article discusses Osmar Micucci’s photographic eye in Jacobina, a town in Bahian inland, between the decades of 1950 and 1960. Acting as a free-lance photographer in society since that period, he has produced a vast work which has been highly praised amongst the town’s photographers due to his refined eye and thematic variety. Publicised in many shapes and forms, his work shows, among other things, the constant changes which have taken place in Jacobina’s cultural space and the affirmation of photography as a privileged language to express the demands of that population for the moments they had lived. Keywords: Photography; Culture; City.

Recebido em: 26/04/2010

Aprovado em: 01/06/2010

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Valter Gomes Santos de Oliveira

Cultura Fotográfica na Bahia: Osmar Micucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960)

Gosto de fotografar tudo! De preferência gente, e aquilo que se mexe, porém na sua forma mais natural, ou seja, quando não são percebidos que estão sendo fotografados, porque exatamente assim flagramos o lado real dos seus sentimentos, de suas ações, de seus olhares e do labor diário. É justamente na fixação destes momentos que me sinto envolvido encontrando o essencial das coisas, me descobrindo, me vendo, e, em síntese, conseguindo numa simples fotografia mostrar um veiculo de comunicação. Fotografando vou conhecendo gente e gravando estas verdades que me sensibilizam, congelo para a humanidade o que se passa numa pequena vila, cidade, estado ou país1.

Foi ‘fotografando tudo’, ou quase tudo, que Osmar Micucci deixou gravado seu nome no imaginário social de Jacobina. Atuando como fotógrafo durante as décadas de 1950 e 1980 ele produziu uma vasta obra que é destaque no universo da fotografia da cidade. Em diferentes formatos e suportes, ela é composta de milhares de imagens que demonstram, entre outras coisas, o processo de modernização do espaço urbano e a afirmação da fotografia como ‘veículo de comunicação’ bastante utilizado por diversos segmentos sociais. Mais do que ‘se descobrir’ Micucci revelou em suas imagens uma época em que a população local se reconhecia vivendo dentro da modernidade urbana, principalmente naqueles fins dos anos 50, buscando na fotografia a ‘fixação destes momentos’.

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As relações entre os fotógrafos e as cidades remontam aos primórdios da fotografia. No decurso do século XIX muitos fotógrafos produziram inúmeras obras sobre as cidades crescentes. O repertório de imagens existentes é enorme, uma vez que eles acompanharam tanto o cotidiano das grandes cidades em vias de modernização, a exemplo de Paris e do Rio de Janeiro, como até seus efeitos em pequenas cidades brasileiras. O significado do fotógrafo para as pequenas cidades brasileiras pode ser compreendido como fator de progresso visto que, até meados do século passado, o número de estúdios existentes era uma das formas de mensurar o nível de desenvolvimento. Por outro lado, as obras produzidas por esses fotógrafos constituem atualmente fontes importantes para se conhecer os traços homogêneos ou singulares dos efeitos das modernizações vividas pelas cidades do interior do Brasil. Cultura fotográfica A presença da fotografia no cotidiano da sociedade contemporânea é uma evidência. Desde que fora criada, seu uso se deu em diversas áreas: documentos pessoais, criminologia, ciências, registros familiares, imprensa, administrações públicas e privadas, e em mais outros diversos campos. Podese dizer que o raio de ação da fotografia atingiu praticamente todos os tipos sociais

Um dos raros escritos do fotógrafo Osmar Micucci encontrado em seu arquivo particular.

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Cultura fotográfica na Bahia: Osmar Minucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960)

do planeta. A historiadora Maria Inez Turazzi, ao se referir ao aspecto da fotografia no Brasil, fala em ‘cultura fotográfica’ nacional por considerar a existência de uma cultura fotográfica mundial. Conforme a autora: A cultura fotográfica, portanto, é também uma das formas da cultura, idéia reforçada pelo argumento de que a fotografia foi e continua sendo um recurso visual particularmente eficaz na formação do sentimento de identidade (pessoal ou coletiva), materializando em si mesma uma “visão de si, para si e para o outro”, como também uma “visão do outro” e das nossas diferenças (TURAZZI, 1998, p. 9).

Conforme assegura Turazzi, a cultura fotográfica não se restringe apenas à bagagem profissional dos fotógrafos, ‘onde se incluem os equipamentos, as escolhas formais e estéticas, bem como as diferentes tecnologias de produção da imagem fotográfica’, mas também como prática social, incorporada ao modo específico como cada sociedade representa seu mundo. São através dos usos e funções do artefato fotográfico por determinada sociedade que se podem perceber os traços de uma cultura fotográfica. Evidentemente, isso não está restrito apenas à produção dos grandes e famosos fotógrafos e nem tampouco aos lugares consagrados de sua existência, como os espaços de museus, arquivos, redações de jornais e revistas, presentes nas grandes cidades. Isso porque: [...] a cultura fotográfica de uma sociedade também se forma e se manifesta através da incorporação da fotografia em outros domínios da vida social, como o artesanato popular, as crenças religiosas e políticas, as sociabilidades familiares e urbanas, a inspiração artística ou literária. Quem mais além do poeta, diria

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que “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas, como dói!” (Carlos Drummond de Andrade, “Confidência do itabirano”) (TURAZZI, 1998, p. 9).

Considerando a existência de uma cultura fotográfica no Brasil, com o desenvolvimento de técnicas e singularidades temáticas, percebo também as marcas de uma cultura fotográfica na cidade de Jacobina. Acredito que ali a fotografia cumpriu (e ainda cumpre) importante papel na formação do ‘sentimento de identidade’ a que Turazzi se refere. No presente artigo, ver-se-á que o jovem fotógrafo Osmar Micucci acompanhou de perto, e com uma visão particular, diversos momentos da história de Jacobina produzindo na segunda metade da década de 1950 um grande inventário de imagens responsáveis pela criação de uma visão da cidade para os seus e para outros. Preocupada em registrar, e se ver registrada, a sociedade local encontrou na fotografia a maneira de materializar visualmente aqueles ‘momentos de ouro’ da história da cidade. O reduzido número de fotógrafos locais foi, portanto, convidado a dar conta de cobrir as cenas públicas e privadas do cotidiano da cidade2. Osmar Micucci e a fotografia em Jacobina Osmar Micucci de Figueiredo, primogênito do casal Carolino Figueiredo Filho e de Berardina Micucci de Figueiredo, nasceu em 1938, no município de Djalma Dutra (atual Miguel Calmon), distante 30 km de Jacobina. Seu avô paterno era um conceituado comerciante, o Coronel Carolino Felissíssimo

Através de dados obtidos a partir da minha pesquisa Memória Fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade, até o momento existem cadastrados 6 fotógrafos atuando com estabelecimento na cidade no período desse estudo (1955-1963); sendo que, no início dos anos 50 com apenas 3; nos anos 60 aumentando para 6 e já nos anos 70 o número ampliou para 12. Acredito que existiram outros, mas até o momento sem nenhuma informação de seus estabelecimentos ou até de obras dos mesmos.

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Figueiredo, que durante os tempos do Império exerceu a função de Coletor Geral na então Vila de Santo Antônio de Jacobina. Carolino Filho foi morar em Djalma Dutra no ano de 1933, onde lá instalou um estabelecimento comercial chamado A Jacobinense. O Lidador, único jornal de Jacobina na época, noticiou em alguns de seus exemplares os empreendimentos de Carolino Filho em Djalma Dutra, parabenizando a cidade pela aquisição daquele ‘elemento progressista’. Ali Carolino passou a agitar o universo artístico e cultural, promovendo eventos e também fazendo fotografias. Foi em Djalma Dutra que Carolino conheceu Berardina Micucci, jovem italiana natural da província de Potenza. Sua família migrou para o Brasil em 1928 quando ela tinha apenas quatro anos de idade. Em 1937 os dois se casaram, ele com trinta e seis anos e ela com treze. No ano seguinte, nasceu Osmar, o primeiro dos seis filhos que o casal tivera. Osmar Micucci não chegou a conviver em Djalma Dutra porque em 1939, falecendo o seu avô Carolino Figueiredo, em Jacobina, sua família mudou-se para lá. Carolino pai havia deixado como viúva Maria Hermila Vieira de Figueiredo e os dois filhos, Carolino e Perolina. Ele estava com oitenta anos de idade quando faleceu, e segundo informa o jornal O Lidador, já não estava mais lúcido. Quando, em fins dos anos trinta, Osmar Micucci e sua família chegaram a Jacobina, vivia-se ali um clima eufórico de progresso3. A cidade representava para a região um importante centro econômico, político e cultural. Na época, já contava com transporte

ferroviário, luz elétrica, hospital, escola pública, imprensa local, comércio diversificado e uma vida cultural agitada, pelo menos aos moldes de uma pequena cidade do sertão baiano, pois possuía cinema, clubes e um ativo calendário festivo. Some-se a isso o fato da crescente exploração de minas de ouro contribuindo com o grande afluxo populacional para a cidade e seu entorno 4. Jacobina possuía também dois representantes na Assembléia Estadual, os deputados Francisco Rocha Pires e Amarílio Benjamin, o que garantia certo prestígio político na obtenção das obras públicas para a região. Carolino Filho continuou exercendo a atividade de comerciante em Jacobina, onde desenvolveu ainda mais o gosto pela fotografia, garantindo-lhe uma renda paralela. O jovem garoto Osmar Micucci colaborava com o pai no comércio. Acometido por uma escoliose reumatismal, doença na coluna que lhe perturbou por longos anos, Carolino Filho saiu em busca de tratamento na Europa. Passando mais de um ano na Itália, trouxe de lá uma câmera Zeiss Icon, com a qual passou a trabalhar pelas suas andanças na região e fazendo, na cidade, diversos registros das ruas, casas e de sua família. Restam alguns negativos deste período e devido à raridade de registros visuais da cidade, apresentam-se hoje como documentos importantes para a história urbana local. Osmar Micucci cresceu em Jacobina tendo contato com o universo fotográfico não somente através de seu pai, mas também de outros fotógrafos. Quando sua família foi morar na cidade por ali já haviam passado vários fotógrafos itinerantes que prestaram

O jornal O Lidador foi um ardoroso divulgador das idéias de progresso na cidade durante a década de 1930. Em um dos seus diversos artigos sobre o tema aponta que a cidade vivia naqueles anos a “[...] sua fase de realizações”. Cf. exemplar nº 38, de 25 de maio de 1934, p. 1 (Jacobina progredindo). 4 A este respeito ver as dissertações de mestrado em História de Vanicléia Silva Santos Sons, danças e ritmos: A Micareta em JacobinaBa (1920-1950) e de Zeneide Rios de Jesus, Eldorado sertanejo: Garimpos e garimpeiros nas serras de Jacobina (1930-1940). 3

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serviços para a sociedade local, e outros também haviam instalado estabelecimentos temporariamente5. Os itinerantes foram os responsáveis, na sua grande maioria, pela expansão da fotografia no Brasil. No século XIX uma grande leva de fotógrafos estrangeiros aportou no Brasil a fim de conseguir novos clientes para os seus serviços. Em Salvador, desde o século XIX existiam estúdios de estrangeiros e brasileiros disputando um mercado que cada vez mais crescia na cidade. Muitas famílias abastadas de Jacobina, quando iam à capital, geralmente traziam entre suas bagagens fotografias, tipo cartede-visite, tiradas em estúdios. Por outro lado, os fotógrafos também arriscavam em partir para o interior em busca da expansão dos seus negócios6. Durante os primeiros anos da década de 1920, o jornal Correio de Jacobina anunciava a atuação do fotógrafo Rosendo Borges na cidade. Encontrei raras fotografias de autoria de Borges, como as da comemoração do centenário da independência do Brasil, em 1922, na Praça Rio Branco7. A presença de um fotógrafo como ele na cidade constituía excelente oportunidade para os habitantes mais abastados serem fotografados nos locais preferidos da sua terra, como um retrato de Alfredo Martins posando no Rio do Ouro, e diversas outras fotografias encontradas no formato cabinet 8 . Rosendo Borges atuou também em algumas localidades da

região, como Canabrava e Campo Formoso, produzindo ali imagens que hoje possuem importante valor documental. Foi no contexto da chegada da família de Micucci à Jacobina que recentemente havia sido instalado o Photo Ideal, estúdio de Juventino Rodrigues que marcou sensivelmente a moda fotográfica na cidade. Natural da vizinha cidade de Piritiba, ele fez carreira fotográfica em Jacobina e nela ganhou fama quando nos anos trinta e quarenta fotografou a sociedade local em seus rituais familiares e nos grandes eventos públicos, além de veicular muitas de suas imagens no jornal O Lidador. Juventino Rodrigues se destacou em alguns aspectos na trajetória da fotografia em Jacobina. Foi ele o primeiro fotógrafo a produzir um cartão-postal da cidade, em 1937, abordando uma cena da construção da ponte Manoel Novais. O cartão-postal teve seu momento áureo entre o fim do século XIX e início do XX, mas em pequenas cidades interioranas, como Jacobina, ele só foi uma realidade nas décadas seguintes9. Juventino Rodrigues produziu também uma vista panorâmica de Jacobina em 1948. Seu Panorama de Jacobina é uma rara vista do plano geral da cidade na época, formada por cinco fotos abordando a enchente ocorrida. As vistas panorâmicas chegaram a constituir uma moda durante certo período do século XIX no Brasil. Fotógrafos como Marc Ferrez, no Rio de Janeiro, se especializaram neste

Ver: OLIVEIRA, Valter G. S. de. Memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade. In: SAMPAIO, Alan e OLIVEIRA, Valter de (orgs.). Arte e Cidade: Imagens de Jacobina. Salvador: EDUNEB, 2006, p. 11-20. “Photographo - Abílio Cardozo – Chegando nesta cidade, onde pretende demorar-se alguns dias tira retrato de qualquer sistema, em casa de sua estadia e aceita chamados”. Nota no Jornal Ideal nº 12, de 31 de julho de 1927. 7 No artigo Da Photographia à Fotografia (1839-1949), da fotógrafa Maria Guimarães Sampaio, publicado na recente coletânea A Fotografia na Bahia (1839-2006) ela aborda a presença do fotógrafo em Jacobina, no entanto, sem veicular nenhuma de suas imagens. 8 Formato de apresentação de fotografias sobre papel que surgiu na Inglaterra em 1866 como uma evolução do formato cartão de visita, tendo portanto o mesmo tipo de apresentação, mas num tamanho maior, razão pela qual era dito de cabinet, de gabinete. 9 A respeito do cartão-postal e seus usos ver o capítulo O Cartão Postal: Entre a Nostalgia e a Memória, do livro Realidades e Ficções na Trama Fotográfica, de Boris Kossoy, e o capítulo A fotografia na Parahyba: Era Nova e a construção imagética da modernidade, do livro Fotografia na Paraíba, de Bertrand de Souza Lira. 5

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tipo de trabalho, desenvolvendo inclusive equipamento apropriado para este fim (TURAZZI, 2000, p. 28-30). Em Jacobina, ao que tudo indica essa moda também existia, visto que encontrei outras fotografias de vista panorâmica anteriores e posteriores à de 1948 de J. Rodrigues. Apesar da importante contribuição de Juventino Rodrigues na composição de vistas urbanas de Jacobina, na opinião dos fotógrafos que conviveram com ele, foi na fotografia de estúdio que mais se destacou. No seu Photo Ideal produziu bastante trabalho de retratos da sociedade local, nos mais variados formatos tipo carte-de-visite, cabinet e também desenvolvendo técnicas como de retoque e coloração. Poucos fotógrafos na cidade trabalharam e desenvolveram bem esta técnica. Para Cirilo Rosa, um dos seus concorrentes na área, “[...] ele [Juventino] também retocava bem, e trabalhava muito bem10”. Segundo Lindenício Ribeiro, também fotógrafo, e sobrinho de J. Rodrigues, Na realidade ele comercializava mais fotografias de estúdio e agora só que tinha uma particularidade, ele devido à inteligência, não havia luz elétrica no tempo, então fazia iluminação natural no estúdio e ficavam umas fotos parecendo foto de Salvador, de São Paulo e tinha o retoque nos negativos e ele melhorava muito. Até eu aprendi também com ele, trabalhei muito tempo com retoque, hoje não existe mais o retoque, só em computador que existe, mas, era retocada chapa a chapa, pessoa a pessoa, tirando rugas, sinais, melhorando até a pessoa ficar mais nova, mais bonito também. Ele era especialista nisso ai11.

A presença do estúdio de Juventino certamente atendia aos ensejos progressistas da cidade. Afinal, a população local não precisava mais se deslocar para os

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grandes centros, como Salvador, para ter a oportunidade de produzir seu retrato em um estúdio com os mais básicos equipamentos. Não foi possível conseguir nenhum registro de como era o interior do estúdio Photo Ideal nos anos trinta. No entanto, segundo as lembranças relatadas por Lindenício, que conviveu com o fotógrafo desde os anos cinquenta, é possível ter alguma noção: [...] eu via o sistema dele trabalhar que era com luz natural, me lembro até que tinha um couro de onça que botava lá como enfeite, com as fotos preto e branco dava um efeito muito bonito para tirar uma foto de criança sentada, outra com pessoas onde se equilibrava perto de uma mesa que ele tinha com o couro de onça.

Juventino também fazia uso de alguns dos acessórios utilizados nas grandes oficinas fotográficas existentes no Brasil no século XIX. Ainda que não se tenha detalhes de como era a estrutura do seu estúdio, podese ter noção a partir de como funcionava uma oficina fotográfica em fins do século XIX. Segundo Cândido Grangeiro, existiam diversas formas de oficinas fotográficas, mas para se fixar em uma cidade por um bom tempo era fundamental o uso de uma estrutura mínima: [...] com um bom salão de poses, diversos equipamentos, mobília, bibelôs etc. Isso representava, então, um bom investimento de capital, pois só desta forma tornavam-se locais adequados para um público urbano que se sofisticava e desejava possuir retratos (GRANGEIRO, 2000, p. 65).

Provavelmente, o estúdio do fotógrafo em Jacobina, estivesse distante dos modelos das grandes oficinas fotográficas existentes

Entrevista com o fotógrafo Cirilo Rosa em 05 de maio de 2005. Entrevista com o fotógrafo Lindenício Ribeiro em 3 de março de 2005.

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Cultura fotográfica na Bahia: Osmar Minucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960)

em São Paulo, ou talvez Salvador, porque o investimento necessário era muito alto, mas certamente foi bastante satisfatório para a cidade. Pelo menos é o que sugere o jornal O Lidador, quando acentua a importância do investimento do jovem fotógrafo na realização de uma exposição de retratos no seu estúdio situado à Avenida Cel. Teixeira, nº 50, no ano de 1940. O certame é, pois, digno do concurso de quantos se interessam pela Arte, e, mais que isso, pelo progresso da cidade que se rejubila em possuir um atelier à altura dos seus credos de civilidade (O Lidador, nº 330, 19/05/1940).

Destacando-se também em outros aspectos na fotografia em Jacobina, Juventino chegou a criar um ‘club de retratos’, que funcionou como forma de comercializar seus serviços fotográficos. O cliente que gostaria de adquirir uma dúzia de fotografias em formato de postais, poderia fazê-lo pagando vinte prestações semanais no valor de $2000, ou pagar o restante caso optasse pelo formato de gabinete. O Lidador, na oportunidade, comentou sobre a importância do empreendimento do fotógrafo para a cidade. Ahi está um emprehendimento que merece acolhida de todos. O sr. Juventino é um moço esforçado e precisamos dar preferência aos seus serviços afim de que progrida a sua photographia, coisa indispensável em uma cidade do interior. Amparemos o que é nosso! (O Lidador, nº 100, 11/08/1935).

A dificuldade de acesso aos produtos e equipamentos de fotografia, que a cada dia inovava nas grandes cidades, fazia com que os profissionais radicados nas cidades interioranas buscassem na arte do improviso dar conta das suas necessidades. Juventino

Rodrigues foi notabilizado como um criativo improvisador, construindo modelos de ampliadores e flashs para uso pessoal. Estes inventos fazem parte das lembranças de Lindenício Ribeiro. Por que na época não tinha ampliadores, aparelhos de ampliar só tinha em São Paulo, Salvador, Rio de janeiro. Ele criou o ampliador, ele mesmo fez o ampliador manual, fez na prensa manual também. Além disso, eu me lembro, eu era menino me lembro que nas festas que tinha nos clubes a gente levava a máquina e ele bolou um tipo de flash, o primeiro flash que teve em Jacobina foi feito através dele com um amigo que era... esses caras que trabalha com pólvora, com foguetera né? e eles projetaram uma pistola, uma coisa muito rudimentar, um processo que ele usava, aquilo lá causava a maior fumaceira no clube depois que acendia aquela luz lá. Ai ficava todo mundo esperando a fumaça passar pra poder enxergar os outros amigos que tavam ali. O primeiro flash que teve aqui foi meu tio quem inventou.

Considerando o fato de ter sido o profissional que mais tempo atuou em Jacobina, e pela abrangência da sua obra, Juventino Rodrigues foi um dos principais nomes na constituição de uma cultura fotográfica em Jacobina nas décadas de trinta e quarenta, tanto no aspecto artístico quanto no desenvolvimento do registro documental da cidade. Um outro fotógrafo atuante em Jacobina, desde os anos trinta, foi Aurelino Guedes. Natural da cidade de Barra do Mendes, este fotógrafo circulou por muitos lugares e tudo indica que não tenha se fixado, em definitivo, na cidade nos anos trinta. Além da informação observada no jornal O Lidador, sobre a parceria instituída com Juventino Rodrigues, em 1938, para a realização de um trabalho no Estado de Minas Gerais (O Lidador, nº 248, 14/08/1935); foi possível ter acesso também a algumas fotografias,

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seguramente das décadas de quarenta e cinqüenta, que fornecem informações do seu Foto Guedes; além dos anúncios publicitários no jornal Vanguarda. Au re l i n o G u e d e s p ro d u z i u s o b re Jacobina, principalmente nas décadas de quarenta e cinquenta, importantes imagens fotográficas de eventos cívicos, feira-livre, vistas panorâmicas, cenas de rua e da vida privada. No seu olhar para a cidade, notadamente panorâmico, ele aborda o crescimento e desenvolvimento da urbe e as principais ruas e praças do seu centro, ao tempo em que pela qualidade técnica e pelo formato instantâneo, conseguiu flagrar cenas da sociabilidade e dos detalhes arquitetônicos em construções. O jornal Vanguarda serviu como um veículo de divulgação dos trabalhos desse fotógrafo; em alguns dos seus exemplares, anuncia seus serviços para a população local e da região. Através dos mesmos, podese ter uma pequena idéia da difusão dos seus trabalhos fotográficos, produzidos nos mais variados suportes, como “ampliações, reproduções, foto-jóias, estatuetas, portaretratos, retratos em porcelana para túmulos, gravuras religiosas, molduras em todos os estilos fotografia em geral” ou também, “fotografia de eleitor”12. O jornal também chegou a veicular algumas imagens fotográficas do autor em seus exemplares. Só foi possível identificá-las por causa das legendas em algumas imagens e da sua identificação em outras, visto que o jornal não creditava as fotografias veiculadas, prática recorrente na época. A marca autoral das fotografias de Aurelino Guedes é a presença das legendas. Este tipo de recurso técnico já era bastante conhecido entre os fotógrafos brasileiros, 12

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como Marc Ferrez e Augusto Malta, no Rio de Janeiro, ou Rosendo Borges e Juventino Rodrigues, em Jacobina. Nos anos quarenta, quando a obra de autoria vinha se afirmando no Brasil, no cinema e na fotografia, ele pelo visto, não quis que seu nome ficasse no anonimato na cidade. Aurelino Guedes também produziu um álbum intitulado Panorama de Jacobina, em 1957, com o mesmo formato dos anteriores e enquadrando os mesmos ângulos, de maneira que sugere as metamorfoses da sua fisionomia urbana uma década depois. Possivelmente, seja dele a primeira fotografia de vista panorâmica, tanto pela sua proximidade com Juventino Rodrigues quanto pela técnica utilizada, associado ao fato da existência de uma legenda com o nome da cidade. Não encontrei maiores informações sobre as atividades deste fotógrafo e sobre sua formação. Lindenício Ribeiro lembra dele como um ‘fotógrafo dinâmico’, desenvolvendo com grande habilidade a prática de foto reportagem de rua. Ele se associou com meu tio em muitos trabalhos. Trabalhava mais externo, o serviço de Aurelino era mais externo. Ele era o tipo de um repórter, inclusive, no fim da vida dele, ele foi para Brasília e ele foi contratado pelo governo lá de Min... o governo lá de Goiás, ou não sei se foi em Brasília mesmo.

Parece que o nomadismo era uma característica marcante na vida de Aurelino Guedes. Em um poema, de sua autoria, há referência ao êxodo forçado de sua família da cidade de Barra do Mendes por conta de questões políticas locais13. Em Jacobina ele não conseguiu fixar moradia por longo tempo ininterrupto.

Anúncios publicados nos Jornais Vanguarda, nº 308, de 04 de setembro de 1955, p. 3, e nº 414, de 19 de outubro de 1957, p. 2, respectivamente. Poema publicado no jornal Vanguarda, nº 336, de 24 de março de 1956, p. 2 (Barra do Mendes).

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Cultura fotográfica na Bahia: Osmar Minucci e a fotografia em Jacobina (décadas de 1950 e 1960)

Entre 1954 e 1955, Amado Nunes, outro importante nome na fotografia local, chegou a Jacobina. Natural de Mairi, na época um povoado pertencente ao município, ele foi um dos muitos que se dirigiram na época para a cidade, em busca de emprego e de espaço para a educação dos filhos. Por muitos anos exerceu a profissão de escrivão do cartório cível. Encontram-se publicados nos jornais Vanguarda, sua identificação como escrivão em diversos editais da comarca de Jacobina. Tudo indica que, neste período, ele já possuía os domínios técnicos da fotografia, pois foi justamente ele quem passou as primeiras instruções de revelação para o jovem Osmar Micucci. Amado Nunes exerceu o ofício de fotógrafo como uma segunda atividade de renda. Ao que parece, apenas a profissão de escrivão era insuficiente para suprir as necessidades da família, composta de seis filhos. Durante as décadas de 1960 a 1970, ele trabalhou fazendo reportagens de casamento, aniversário, batizado, formatura, dentre outras atividades mais típicas de um fotógrafo free-lancer. Seu estúdio chamava-se “Nunes Foto” e funcionava em sua residência à Rua Manoel Novais, bem no centro da cidade. Suas fotografias, a princípio, indicam que ele era uma pessoa que viveu bastante a cidade. Ela era sua paisagem e ele estava atento aos seus detalhes. Tal qual um flâneur, foi conduzido pelas ruas, frequentou as praças, observou as pessoas, olhou para a cidade, tanto aquela que desaparecia quanto a que surgia de suas ruínas14. Ainda que não tenha executado profissionalmente suas primeiras fotografias em Jacobina, Amado Nunes deixou um grande conjunto de imagens da cidade entre as décadas de 1950 a 1970. 14

Especializado em fotografias de eventos, Amado Nunes não deixou escapar pelas lentes de sua máquina as transformações ocorridas na fisionomia urbana de Jacobina. Ele registrou as construções dos novos prédios no centro e das residências na periferia da cidade; acompanhou ano a ano a criação da estrada de asfalto que ligava Jacobina à Salvador, assim como a expansão do crescimento urbano, visto do alto das serras. Amado Nunes chegou a editar um pequeno álbum da cidade, intitulado Lembrança de Jacobina-Bahia. A iniciativa de lançar o álbum, provavelmente privada, certamente foi para atender aos desejos de consumo da população por lembranças visuais da cidade. Os álbuns de cidade foram uma constante no Brasil do século XIX. Lançados por fotógrafos ou ateliês, eles funcionavam como souvenirs, juntamente com os cartões-postais, na fase industrial da fotografia. Segundo as historiadoras Solange Ferraz e Vânia Carneiro o álbum de cidade é um tipo de publicação iconográfica na qual são aglutinadas, segundo um arranjo específico, fotografias que pretendem representar diversos aspectos da cidade. Amado Nunes foi um dos últimos fotógrafos representativos que produziu imagens em negativos 6x6cm em preto e branco. Presente em diversos momentos significativos da fase das grandes transformações ocorridas no tecido urbano de Jacobina, ele, como testemunha ocular produziu um conjunto de registros visuais em que se destaca o olhar atento ao que estava acontecendo na urbe, enfocando tanto suas mudanças quanto permanências. Entre os vários negativos que encontrei de sua produção, existem diversas

Walter Benjamin fala que “[...] a rua conduz o flanador a um tempo desaparecido” (1991, p. 185).

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imagens feitas sequencialmente como uma atividade de perseguição das mudanças na paisagem urbana. Em algumas delas, após juntar as peças, como num quebra-cabeça, notei que o autor tentou estabelecer uma linha contínua, numa narrativa visual, da desativação da linha férrea ao surgimento da via asfáltica. Em 1986, o fotógrafo falece em Salvador, onde já morava há alguns anos. De acordo com muitos depoentes em Jacobina, a moderna fotografia na cidade foi introduzida por Osmar Miccuci. A compreensão, neste caso, do caráter de moderno, para além do aspecto estético, está relacionada ao tipo de equipamento, mais compacto, ao flash eletrônico, ao formato das cópias, à utilização da fotomontagem, à introdução da fotografia colorida e ao desenvolvimento da fotografia de reportagem. A fotografia moderna surgiu no Brasil por volta dos anos 40, na cidade de São Paulo. Segundo Helouise Costa e Renato Rodrigues (1995), [...] a produção moderna pautou-se pela tentativa de alargar as possibilidades estéticas do aparelho fotográfico.

O fotógrafo moderno procurou romper com o padrão da fotografia tradicional, onde o caráter do belo ocupava lugar central. As atitudes desses fotógrafos, atentos às questões urbanas do seu tempo, marcaramse pela inserção de certos experimentalismos técnicos a serviço de uma estética que ia além da representação formal do belo. Os introdutores da fotografia moderna no Brasil deixaram profundamente marcados nas suas obras os impactos da expansão de São Paulo. Talvez residam neste aspecto as considerações à obra de Osmar Micucci em Jacobina. 138

Osmar Micucci cresceu e estudou em Jacobina, começando a trabalhar desde cedo. O comércio de seu pai já não garantia uma grande renda e quando, aos poucos sua saúde se debilitava, o rapaz de treze anos passou a colaborar com a renda familiar trabalhando precocemente. Segundo ele, não tendo sido um aluno aplicado na escola, o foi na fotografia. Conforme informações em seus apontamentos, os primeiros experimentos fotográficos foram feitos por volta de 1947, quando contava com apenas nove anos. No seu arquivo particular encontrei os primeiros negativos, feitos durante os festejos do desfile de Sete de Setembro de 1950, com as indicações técnicas sobre abertura e exposição. Nos seus depoimentos, Osmar Micucci descreve com muita empolgação os seus momentos iniciais com a câmera do pai, a Zeiss Icon, e as anotações que fazia a partir das orientações do mesmo. Depois dos primeiros experimentos com o seu pai, ele não largou mais uma câmera e passou a estudar a fotografia como um aluno aplicado. Sempre inconformado com os erros, era a partir deles que buscava melhorar, quando corrigia as fotografias que havia feito e não aprovava. Como profissional da fotografia, no universo cultural da Jacobina dos anos cinquenta e sessenta, o jovem Micucci foi um dos mais requisitados para produzir as imagens daqueles momentos especiais vividos pela população local. Na era da mídia visual dos grandes centros urbanos, caracterizada pelo nascimento da televisão e pelo auge do cinema, em Jacobina a sua fotografia cumpria este papel midiático. Dessa forma, no contexto em análise, a posição ocupada pelo fotógrafo era a de um profissional de destaque, ou seja, seu sentido do trajeto social era de ascensão naquela sociedade. Ascensão garantida seja pelo

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caráter da profissão ou pelo mérito particular de cada um deles. Um depoimento de Osmar Micucci acerca da sua profissão na época é bastante significativo: [...] a minha profissão, esse foi o maior ganho que eu tive em todas as áreas porque eu com o tempo fui ganhando a confiança pela integridade e ética que eu sempre tive, essa ética na fotografia fez eu penetrar em todas as camadas sociais e daí pra mim, eu acho, o maior crescimento que tive foi esse, mais do que o financeiro [...] (MINUCCI, 13/05/2005)15.

Um aspecto merece consideração a respeito do acervo de Osmar Micucci. Estimado em mais de 80 mil negativos, a l i e n c o n t re i d i ve rs a s i n f o r m a ç õ e s sistematicamente organizadas por temas e épocas em centenas de envelopes. Ainda que pudesse ser indiferente quanto ao ofício do historiador, ele demonstrou na sua prática a importância em arquivar todos os registros, das fotos às anotações técnicas, como se acreditasse que um dia eles fossem fundamentais para a escrita da história local. A segunda metade da década de cinquenta foi bastante significativa na formação e carreira do jovem Osmar Micucci. Já trabalhando como fotógrafo social e de reportagem, ele, entre os anos de 1955 e 1956, produziu uma série de fotografias por contratação. Nos seus arquivos de 1955, entre cerca de cem imagens, encontrei fotografias de pessoas, distribuídas entre retratos individuais e de grupos, cenas de desfiles cívicos e de partidas de futebol. Não se vê ali a cidade senão como pano de fundo das cenas de pessoas. Quanto ao aspecto estético das fotografias, nota-se um despojamento do jovem fotógrafo quando 15

registra cenas de partidas de futebol, como ainda não visto nas fotografias anteriores feitas na cidade. Em vários instantâneos, se vê cenas congeladas dos movimentos dos corpos e da bola, com imagens de composições que fugiam do padrão convencional existente em Jacobina, como uma fotomontagem feita a partir deste tema na década de 1960. Dos seus negativos de 1956, existem centenas de imagens distribuídas entre vistas externas da cidade, procissões religiosas e desfiles escolares pelas ruas, cenas internas nas igrejas, retratos de pessoas e imagens que denotam o interesse documental para as novidades surgidas, a exemplo do prédio do ginásio Deocleciano Barbosa de Castro; da Praça Rio Branco, depois de pavimentada a paralelepípedos naquele ano; da Avenida Beira-Rio em construção, localizada em frente à margem esquerda do Rio ItapicurúMirim; do prédio de correios e telégrafos, recentemente construído na Rua Senador Pedro Lago; do prédio das instalações do Hospital Regional; do Posto de Saúde, etc. Outras imagens também merecem atenção, como as de residências particulares em diversas ruas. Com estes variados temas, notei que o jovem profissional Osmar Micucci havia ampliado seu campo de abordagem como fotógrafo na cidade. Enquanto seus trabalhos anteriores ficaram restritos aos retratos sociais, nestes se encontram, além deste tipo de abordagem, a de registros de patrimônios e reportagens de rua. Durante esta fase inicial, Osmar Micucci adquiria os produtos e equipamentos em Salvador, onde também revelava seus negativos. Foi ali que teve contato com o estúdio do eminente fotógrafo Leão Rozemberg. Dentro do universo da smart society soteropolitana dos anos cinqüenta,

Entrevista com o fotógrafo Osmar Micucci realizada em 13 de maio de 2005.

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Leão Rozemberg era o fotógrafo mais caro, e o melhor, conforme a coluna Krista do jornal Estado da Bahia (CARVALHO, 1992, p. 59). A Bahia vivia naquele momento uma fase importante dentro da fotografia e cinematografia brasileira. A chegada do fotógrafo francês Pierre Verger, em 1946, na opinião de Gustavo Falcón teve o poder de elevar estética e antropologicamente a linguagem local, fato permitido pelas andanças internacionais do fotógrafo e por sua forma de abordar a realidade. A cidade do Salvador foi marcada pela presença de diversos estúdios fotográficos que [...] dividiam o tempo entre o atendimento a particulares e a produção de postais sobre pesca de xaréus, capoieira e baianas para vender aos turistas. Leão Rozemberg e Vavá Tavares, aliás, foram os pioneiros na fotografia a cores entre nós, introduzindo essa técnica em 1952 (FALCÓN, 2006, p. 83).

Diversos cineastas vinham filmar no Bahia como também alguns novos cineastas locais, e Leão Rozemberg empreendeu projetos nesta área, além de ser bem conceituado como fotógrafo na sociedade soteropolitana. Ao visualizar o estúdio daquele eminente fotógrafo, Osmar Micucci sonhava em desenvolver com a mesma qualidade técnica as atividades em Jacobina. No entanto, somente quando Amado Nunes lhe aconselhou a revelar pessoalmente suas fotografias, foi que, sob suas orientações, teve as primeiras lições de revelação e ampliação. A partir daí ele seguiu adiante seus próprios estudos, adquirindo livros de bolso sobre os segredos da fotografia. O fotojornalismo, surgido em meados dos anos 20 nos grandes centros urbanos, já ocupava, nos anos cinqüenta, as páginas dos jornais baianos de maior porte, como o A Tarde e o Jornal da Bahia, da capital do Estado. Em Jacobina, o jornal Vanguarda possuía 140

parcos recursos técnicos em matéria de impressão, e as fotografias não ocupavam um significativo espaço em suas páginas, muitas vezes sendo repetida uma foto em várias edições. A despeito da ausência de fotografias jornalísticas veiculadas no Vanguarda, em 1957, Osmar Micucci já se destacava fazendo reportagens fotográficas na cidade. Em março daquele ano ocorreu uma enorme enchente, onde os dois rios foram transbordados derrubando inúmeras residências (Vanguarda, nº 386, 23/03/1957). Osmar Micucci fez uma importante cobertura fotográfica daquele acontecimento, abordando imagens do centro e da periferia da cidade invadidos pelas águas dos rios. No mesmo ano, ele também fez reportagem dos eventos festivos ocorridos, como a Festa do Divino Espírito Santo e a Festa dos Cometas, mas, em sua opinião, a visita do presidente Juscelino Kubitschek foi a reportagem mais marcante produzida na época. Aquele evento histórico, inédito em Jacobina, exigiu do jovem fotógrafo a rapidez e a qualidade técnica que se esperava para cobrir e apresentar os resultados do trabalho realizado. E m 1 9 5 8 O s m a r M i c u c c i e s t ava produzindo cada vez mais fotografias na cidade. Entre os arquivos de negativos encontrei imagens de procissões religiosas, inauguração de cinema e também dos bailes da micareta, ocorridos nos clubes 2 de Janeiro e Aurora. Neste último, aconteceu naquele ano uma Festa de Roda Inglesa, onde o fotógrafo registrou as diversas crianças participantes. O fotógrafo também deixou fixadas diversas cenas de uma Gincana de Lambreta, quando um grupo de Salvador, presente na cidade, participou com suas máquinas barulhentas cortando as principais artérias da cidade. Entre elas, imagens descontraídas e hilárias com condutores de jegues desfilando pelas mesmas ruas.

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Com a vitória de Florivaldo Barberino nas eleições municipais de 1958, Osmar Micucci trabalhou para aquela administração fazendo a cobertura de toda a sua gestão, desde a posse até o final do seu mandato, em 1963. Micucci documentou praticamente todos os momentos políticos do prefeito: das intervenções urbanas promovidas na cidade, às inaugurações de obras públicas ou visitas de personalidades políticas, como a de Jânio Quadros em 1960. Onde tivesse a marca da administração do prefeito Barberino o fotógrafo estava lá. Para ele, aquela foi sua maior cobertura fotográfica em uma administração municipal. Essa característica da obra de Micucci, marcada pelo olhar oficial, é comparável à de Augusto Malta no Rio de Janeiro. O jornal Vanguarda foi importante como forma de divulgar os serviços fotográficos dos profissionais na cidade. Na edição de 15 de maio de 1960, aparece o seu primeiro anúncio comercial, o Foto Micucci, onde indica sua “expecialidade (sic) em reportagens de: casamento, batizado, aniversários, instantâneos de crianças e familiares etc.” Micucci passou a desenvolver também a venda de equipamentos e de serviços para amadores na cidade, como revelações, cópias, ampliações, máquinas, filmes, papéis, álbuns. Nos seus serviços para os clientes inaugurou uma série de novidades na confecção dos álbuns produzidos, como mudanças no formato e nos enquadramentos ousados, o que garantia uma ampla procura pelos seus serviços. Na década de 1960, Osmar Micucci se consolidava como o fotógrafo mais requisitado da cidade. Com olhar refinado e técnica aprimorada, características encontradas entre os principais expoentes do ramo, ele passou

a ser convocado a prestar inúmeros serviços ao poder público e a diversos particulares. Ao longo dessa década, e das seguintes, através de suas lentes ele explorou uma diversidade de temas, alguns incomuns a outros fotógrafos na cidade, fazendo com que seu nome ficasse definitivamente gravado na cultura fotográfica de Jacobina. O olhar fotográfico de Osmar Micucci

Partida de Futebol (1955)

Festa de Nossa Sra. da Conceição (1956)

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Enchente (1957)

Gingana da Lambreta (1958)

JK em discurso na Praça Rio Branco (1957)

Jânio Quadros em campanha (1960)

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Saltando no rio (1958)

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Lavadeiras no Rio do Ouro (1958)

Baile da Micareta (1958)

Bloco dos Cãos na Micareta (Década de1960)

Vista noturna da Praça Rio Branco (1962)

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Montagem de goleiro (Década de 1960)

Sem-teto (Década de 1960)

Filarmônica (1960)

Vista da cidade (1960)

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Reportagem sobre tragédia de avião (1969)

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Referências BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1991. CARVALHO, M. S. S. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). 1992. Dissertação. UFBA, 1992. CLUB de retratos. Jornal o lidador, n. 100, p. 4, 11/08/1935. EXPOSIÇÃO de retratos. Jornal o lidador, Vitória de Santo Antão, PE, n. 330, p. 1, 19/05/1940. FALCÓN, Gustavo. Notas, nomes e fatos da fotografia baiana (1950-2006). In: ALVES, Aristides (Coord.). A fotografia na Bahia (18392006). Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo; Funcultura; Asa Foto, 2006. JESUS, Z. R. Eldorado sertanejo: Garimpos e garimpeiros nas serras de Jacobina (1930-1940). 2005. Dissertação. UFBA, 2005.

MINUCCI, Osmar. Entrevista. 13/05/2005. OS PREJUÍZOS causados pelas chuvas. Jornal Vanguarda, n. 386, p.1, 23/03/1957. OLIVEIRA, Valter G. S. de. Memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade. In: SAMPAIO, Alan; OLIVEIRA, Valter de (Org.). Arte e Cidade: imagens de Jacobina. Salvador: EDUNEB, 2006. SANTOS, V. S. Sons, danças e ritmos: A Micareta em Jacobina-Ba (1920-1950). 2001. Dissertação. PUC. São Paulo, 2001. TURAZZI, Maria Inez. Marc Ferrez. Espaços da arte brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. ______. Uma Cultura Fotográfica. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, São Paulo, n. 27, 1998. 1 Fotografia. VIAJANTES. Jornal o lidador, Vitória de Santo Antão, PE, n. 248, p. 4, 14/08/1938.

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resenhas



TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005.

Rozinaldo Antonio Miani Doutor em História pela Unesp/Campus Assis. Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Graduado em Comunicação Social - habilitação em Jornalismo e História. Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Curso de Especialização em Comunicação Popular e Comunitária da UEL e do Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (CNPq). E-mail: mianirozinaldo@ gmail.com.

Recebido em: 19/04/2010

Aprovado em: 27/05/2010

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TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005.

Charge: sua razão de ser é significar e interpretar criticamente o real Raramente se concebe a produção de saberes científicos fora do circuito acadêmico, q u a n t o m a i s o u t o rg a r l e g i t i m i d a d e e reconhecimento aos ‘aventureiros do conhecimento’ por uma contribuição que não tenha como origem os pressupostos da dinâmica institucional universitária. Nesse sentido, e pela sua relevância, a obra Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge, de Luiz Guilherme Sodré Teixeira, já merece todo o nosso respeito e consideração. A referida obra compõe uma coletânea de estudos (Série Estudos) produzida pela Fundação Casa de Rui Barbosa e oferece uma importante contribuição para os pesquisadores da imagem e da iconografia, em geral, e para os estudiosos da charge, em particular. O autor já havia desenvolvido estudos nessa temática quando da produção da obra O texto como traço: a história da charge no Rio de Janeiro de 1860 a 1930, editada em 2001, também pela Fundação Casa de Rui Barbosa, desta feita como parte da Coleção Papéis Avulsos e, à época, já despontava como um dos pesquisadores de referência no estudo da charge. A despeito da importante contribuição que a obra em questão oferece, principalmente no que se refere à lúcida e pertinente propositura em definir um lugar próprio de significação para cada ‘gênero gráfico que se apropria da realidade para expressá-la através do traço de

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humor’ (que preferimos chamar de linguagens iconográficas), quais sejam, charge, caricatura e cartum, o trabalho de Luiz Guilherme é marcado por alguns delírios, ambiguidades e equívocos, que se intensificam em decorrência de um ‘preconceito às avessas’ demonstrado em relação à academia. O autor manifesta, ao longo de toda a obra, a sua aversão aos esquemas da produção universitária que, reconheçamos, tem seus fundamentos; no entanto, a própria lógica utilizada pelo autor não rompe com esse mesmo ‘esquema’ denunciado e que, aliás, é explicitamente assumido por ele. Em certos momentos de seu texto, Luiz Guilherme chega a agir com insensatez na sua crítica à racionalidade acadêmica; além disso, em defesa do mérito de seu trabalho ‘nãoacadêmico’ chega, contraditoriamente, a ‘desqualificar’ seu próprio esforço afirmando tratar-se de um trabalho marcado pelo ‘descompromisso’ e pela ausência de ‘rigor metodológico’, que mais comprometem do que avalizam sua contribuição ao debate. Outro equívoco cometido pelo autor diz respeito ao anacronismo em relação à questão do preconceito da academia em relação à imagem e ao humor. O ‘ranço academicista’ contra a imagem já é tido como relativamente superado entre os próprios pesquisadores da área, nos mais diversos campos do saber; no campo da História, por exemplo, a iconografia já tem seu espaço demarcado e consolidado. A crítica apresentada de que a imagem estaria restrita

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Resenha

ao ‘gueto acadêmico da história da arte’ já fora apresentada pelo historiador Marcos Antonio da Silva, há quase 20 anos e, desde então, muito já se fez no sentido de superar tal ‘preconceito’. Talvez o próprio autor devesse corroborar com esse movimento de superação do preconceito contra as fontes visuais, ao invés de disseminar ideias como as que ficaram expressas em afirmações do tipo: a charge, a rigor, ‘funciona’ precariamente como documento e como fonte primária no campo da história. Sustentado em sua crítica voraz ao academicismo, principalmente quando sugere uma suposta ‘apropriação ineficaz da imagem pela academia’ ou ainda quando afirma existir, em relação à imagem, uma ‘escassa credibilidade no campo do conhecimento formal’, o autor ofusca a própria realidade atual do que se vem praticando no interior das universidades no sentido de reconhecer o valor e o potencial da imagem enquanto objeto de conhecimento. Mais efetiva é a contribuição do autor quando este se manifesta para defender a necessidade de uma ‘ciência social da imagem’ ou, mais do que isso, uma ‘filosofia da imagem’ que, certamente, é compatível com o anseio de todos os pesquisadores da área, acadêmicos ou não. Nesse mesmo contexto, outro aspecto é merecedor de comentários, qual seja, o tratamento dado pelo autor à ‘autonomia discursiva’ da charge. Concordamos com o autor que a imagem goza de uma ‘estrutura narrativa autônoma’, mas, sem pretender expropriar a identidade singular da imagem, não se pode negligenciar que sua inteligibilidade passa necessariamente pela linguagem verbal, como bem nos ensina o pensador russo Mikhail Bakhtin em sua obra seminal ‘Marxismo e filosofia da linguagem’.

Há que se observar, ainda, que a bela recuperação histórica do humor como referência social e comunicação cultural integrada ao cotidiano como produto de verdade conflita com a desnecessária deselegância da utilização de fragmentos textuais de uma outra obra de Mikhail Bakhtin (A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais), em sua versão francesa, quando já temos uma tradução em língua portuguesa da referida obra desde 1987, editada pela Editora Hucitec em conjunto com a Editora da Universidade de Brasília (UnB). Trata-se de um ‘não-academicismo’ bastante arrogante, diga-se de passagem. Com respeito às suas particulares reflexões sobre a natureza da charge, compactuamos com o autor quando o mesmo afirma que a proposta da charge não é ‘registrar o real, mas significá-lo’ e também quando defende a charge como um ‘instrumento de intervenção política’. Acreditamos ser acertada, ainda, sua afirmação de que a charge funciona ‘como ‘porta-voz’ da sociedade, interpretando a notícia, expressando um ponto de vista, transformando o fato numa consciência sobre ele’. Porém, sua prolixidade quanto a qualificar demasiadamente a charge, acaba por proporcionar uma perda da efetividade analítica apresentada. Além disso, a qualificação da charge como ‘travessura’, ‘loucura’ ‘objeto banal’, bem como ‘produto típico de classe média’, ou ainda quando associa o chargista a um dramaturgo, conferem um caráter duvidoso e até certo ponto caótico e despolitizado para a charge, minando a ‘agressividade’ reivindicada como um de seus fundamentos estruturais. Ainda sobre as características da charge, acreditamos que o autor foi consumido por um ‘delírio’ quando se ocupou de analisar a temporalidade da charge. Se considerada

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como um produto comunicativo, a charge é apenas efêmera; como fonte histórica, deve ser reconhecida e analisada em sua temporalidade histórica. Afirmar que o tempo da charge é ‘alucinado, insano, aion delirante’, ou ainda, mais radicalmente, ‘sem cronologia’ é puro delírio e, tal postura, acaba por revelar certo deslumbramento ‘pós-modernizante’ por parte do autor. Como uma última questão, talvez a mais importante de todas as reflexões apresentadas por Luiz Guilherme, destacamos a seguinte afirmação: a charge estrutura seu discurso sobre o real como uma narrativa. Em todas as oportunidades (acadêmicas ou não) de exposição de nossa compreensão acerca da charge, não houve uma sequer em que não tenhamos explicitado a convicção de que a natureza da charge é essencialmente dissertativa. No âmbito das linguagens iconográficas, a modalidade que assume a natureza narrativa é a história em quadrinhos. Asseverar a natureza da charge como narrativa é expropriar o seu potencial persuasivo e amenizar o seu poder de atuar política e ideologicamente enquanto estratégia comunicativa. Reconhecer a sua natureza dissertativa é, ao contrário, reafirmar a sua ‘agressividade’, combatividade e seu potencial contestador, conferindo uma racionalidade, uma criticidade e uma produtividade social que, aliás, historicamente, se manifestou, sobretudo, nos momentos e

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episódios em que a charge se tornou alvo da censura mais austera de governos autoritários e dos empresários das corporações do ramo da comunicação. Para além das considerações aqui apresentadas acerca das teses e proposições defendidas pelo autor, a obra Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge de Luiz Guilherme Sodré Teixeira, deve ser incorporada à lista de leituras obrigatórias para todos aqueles que pretendem enveredar suas pesquisas pelo fascinante e contagiante universo das charges. Críticas e contraposições à parte, adquiram o livro e tenham uma boa leitura. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora UnB, 1987. MIANI, Rozinaldo Antonio. As transformações no mundo do trabalho na década de 1990: o olhar atento da charge na imprensa do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista. 2005. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, SP, 2005. SILVA, Marcos Antonio da. A construção do saber histórico – historiadores e imagens. Revista de História, São Paulo, n. 125, p. 117-134, ago.1991/ jul.1992. TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005.

Domínios da Imagem, Londrina, ano III, n. 6, p. 135-138, maio 2010


Normas para Publicação

A Revista Domínios da Imagem é uma publicação dirigida pelo Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná – Brasil. Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores que atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre distintas áreas que tratam dos domínios da imagem. A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com fluxo contínuo para o recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial e Científico e um Conselho Consultivo, compostos por pesquisadores ligados à várias universidades brasileiras e estrangeiras. Solicitamos aos nossos colaboradores que enviem seus trabalhos para o endereço abaixo mencionado atendendo as seguintes especificações: • Todo o material deve ser encaminhado em envelope contendo: 3 (três) cópias impressas em papel A4 (210x297mm), sendo 1 (uma) identificada e 2 (duas) sem identificação; • 1 (uma) cópia idêntica em CD-Rom; • 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico; • Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm; • Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical; • Os artigos terão a extensão de 08 a 20 laudas, no máximo, incluindo imagens; • As notas deverão ser colocadas no final do texto, podendo nelas constar referências bibliográficas e/ou comentários críticos ficando as referências restritas exclusivamente ao espaço das notas. Da remissão deve constar, entre parênteses, o nome do autor, seguido da data de publicação da obra e do número da página, separados por vírgulas. Exemplo: (Franco, 1983, p. 114); • Os artigos serão acompanhados de título, resumo e abstract de, no máximo, 10 linhas e de 03 palavras-chave em português e em inglês; • Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original, sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português; • As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavraschave em português e em inglês; • As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas, respeitando a legislação em vigor; • Abaixo do nome do autor deverá constar a Instituição à qual se vincula, bem como titulação máxima;

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• Caso o trabalho/pesquisa e/ou experiência didática tenha apoio financeiro de alguma agência de fomento, esta deverá ser mencionada; • Caberá ao Editor responsável, a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições recebidas. Normatização das notas: • SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico:subtítulo. Tradução. edição, Cidade: Editora, ano, p. ou pp. • SOBRENOME, Nome.Título do capítulo ou parte do livro. In: Título do livro em itálico. Tradução, edição, Cidade:Editora, ano, p. x - y. • SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico.Cidade: Editora, vol., fascículo, p. x-y,ano. • SOBRENOME, Nome. Título da tese em itálico:subtítulo. Tipo do trabalho: Dissertação ou Tese (Mestrado ou Doutorado, com indicação da área do trabalho) – vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver), página citada. • AUTOR(ES). Denominação ou título:subtítulo. Indicações de responsabilidade. Data. Informações sobre a descrição do meio ou suporte. (Para suporte em mídia digital) Obs: para documentos on-line, são essenciais as informações sobre o endereço eletrônico apresentado entre sinais < >, precedido da expressão “disponível em” - e a data de acesso ao documento, antecedida da expressão “acesso em”.

Os textos deverão ser enviados para o seguinte endereço: Revista Domínios da Imagem Departamento de História Universidade Estadual de Londrina Campus Universitário Cx. Postal 6001 Londrina – Paraná – Brasil CEP 86051-990

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